vigotsky - pensamento e linguagem

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Livro "Vigotsky - Pensamento e Linguagem"

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Page 1: Vigotsky - Pensamento e Linguagem
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Pensamento e LinguagemLev Semenovich Vygotsky (1896-1934)

EdiçãoRidendo Castigat Mores

Versão para eBookeBooksBrasil

Fonte Digitalwww.jahr.org

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado,

ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir

ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia

(1947-2002)

Copyright:Autor: Lev S. Vygotsky

Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores(www.jahr.org)

Page 3: Vigotsky - Pensamento e Linguagem

ÍNDICEApresentação

Nélson Jahr Garcia

Prefácio

1. O problema e a abordagem

2. A teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento das

crianças

3. A teoria de Stern sobre o desenvolvimento da linguagem

4. As raízes genéticas do pensamento e da linguagem

5. Gênese e estudo experimental da formação dos conceitos

6. O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância

7. Pensamento e linguagem

Notas

Bibliografia (notas biliográficas)

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PENSAMENTO

E LINGUAGEM

Lev Semenovich Vygotsky

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APRESENTAÇÃONélson Jahr Garcia

Vygotsky, um gênio da Psicologia. Quanto não poderialegar-nos se não tivesse partido tão jovem?

Agradeço ao Odair Furtado, professor de Psicologia daPUC-SP que, há vários anos, indicou-me esta obra como de leituraquase obrigatória. Aprendi a entender minha filha, criança ainda,compreendi melhor os adultos e a mim próprio inclusive.

Vygotsky estava preocupado em entender a relação entre asidéias que as pessoas desenvolvem e o que dizem ou escrevem. Nãoo fez apenas especulando em uma mesa de escritório, mas foi acampo, pesquisou, fez experiências. Extraiu conclusões como:

“A estrutura da língua que uma pessoa fala influencia amaneira com que esta pessoa percebe o universo ...”

Para aqueles que vêem na linguagem apenas um códigoaleatório, o autor responderia:

“Uma palavra que não representa uma idéia é uma coisamorta, da mesma forma que uma idéia não incorporada empalavras não passa de uma sombra.”

Vygotsky desenvolveu inúmeros conceitos fundamentais paraque compreendamos a origem de nossas concepções e a forma comoas exprimimos: “pensamento egocêntrico”, “pensamentosocializado”, “conceito espontâneo”, “conceito científico”, “discursointerior”, “discurso exteriorizado”, e tantos outros.

Para quem se interessa por entender as ideologias,comunicação, aprendizagem, doutrinação, persuasão esta é umaobra básica e indispensável.

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Prefácio

Este livro aborda o estudo de um dos mais complexosproblemas da psicologia — a inter-relação entre o pensamento e alinguagem. Tanto quanto sabemos esta questão não foi aindaestudada experimentalmente de forma sistemática. Tentamosoperar, pelo menos, uma primeira abordagem desta tarefa, levandoa cabo estudos experimentais sobre um certo número de aspectosisolados do problema de conjunto. Os resultados conseguidosfornecem-nos uma parte do material sobre que se baseiam asnossas análises.

As análises teóricas e críticas são uma condição prévianecessária e um complemento da parte experimental e, por isso,ocupam uma grande parte do nosso livro. Houve que basear ashipóteses de trabalho que serviram de ponto de partida ao nossoestudo nas raízes genéticas do pensamento e da linguagem. Comvista a desenvolvermos este quadro teórico, revimos e analisamosacuradamente os dados existentes na literatura psicológicapertinentes para o estudo. Simultaneamente, sujeitamos a umaanálise crítica as teorias mais avançadas do pensamento e dalinguagem, na esperança de superarmos as suas insuficiências eevitarmos os seus pontos fracos na nossa busca de um caminhoteórico por onde enveredar.

Como seria inevitável, a nossa análise invadiu algunsdomínios que lhe eram chegados, tais como a lingüística e apsicologia da educação Na análise que realizamos dodesenvolvimento dos conceitos científicos nas crianças, utilizamos ahipótese de trabalho relativa à relação entre o processo educacionale o desenvolvimento mental que havíamos elaborado noutraoportunidade fazendo uso de um corpo de dados diferente.

A estrutura deste livro é forçosamente complexa emultifacetada. No entanto, todas as suas partes se orientam parauma tarefa central: a análise genética das relações entre opensamento e a palavra falada. O primeiro capitulo põe o problemae discute o método. Os segundo e terceiro capítulos são análisescríticas das duas mais influentes teorias da linguagem e dopensamento, a de Piaget e a de Stern. No quarto capítulo tenta-sedetectar as raízes genéticas do pensamento e da linguagem; estecapítulo serve de introdução teórica à parte principal do livro, asduas investigações experimentais descritas nos dois capítulos

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seguintes. O primeiro estudo (capítulo 5o.) trata da evoluçãogenérica geral dos significados durante a infância; o segundo(capítulo 6o.) é um estudo comparativo do desenvolvimento dosconceitos “científicos” e espontâneos da criança. O último capítulotenta congregar os fios das nossas investigações e apresentar oprocesso total do pensamento verbal tal como surge à luz dosnossos dados.

Pode ser útil enumerar brevemente os aspectos da nossa obraque julgamos serem novos, exigindo, por conseguinte, uma nova emais cuidada verificação. Além da nova formulação que demos aoproblema e da parcial novidade do nosso método, o nossocontributo pode ser resumido como se segue:

(1) fornecemos provas experimentais de que os significadosdas palavras sofrem uma evolução durante a infância e definimosos passos fundamentais dessa evolução;

(2) descobrimos a forma singular como se desenvolvem osconceitos “científicos” das crianças, em comparação com osconceitos espontâneos e formulamos as leis que regem o seudesenvolvimento,

(3) demonstramos a natureza psicológica específica e a funçãolingüística do discurso escrito na sua relação com o pensamento e

(4) clarificamos por via experimental a natureza do discursointerior e as suas relações com o pensamento.

Não é do pelouro do autor fazer uma avaliação das suaspróprias descobertas e da forma como as interpretou: isso caberáaos leitores e aos críticos.

O autor e os seus associados têm vindo a investigar osdomínios da linguagem e do pensamento há já quase dez anos,durante os quais as hipóteses de que partiram foram revistas ouabandonadas por falsas. No entanto, a linha fundamental da nossainvestigação não se desviou da direção tomada desde início.Compreendemos perfeitamente o quanto o nosso estudo éimperfeito, pois não é mais do que o primeiro passo numa nova via.No entanto sentimos que, ao descobrirmos o problema dopensamento e da linguagem como questão central da psicologiahumana demos algum contributo para um progresso essencial. Asnossas descobertas apontam o caminho a seguir por uma novateoria da consciência, nova teoria essa que afloramos apenas no fimdo nosso livro.

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1. O problema e a abordagem

O estudo do pensamento e da linguagem é uma das áreas dapsicologia em que é particularmente importante ter-se umacompreensão clara das relações inter-funcionais existentes.Enquanto não compreendermos a inter-relação entre o pensamentoe a palavra, não poderemos responder a nenhuma das questõesmais específicas deste domínio, nem sequer levantá-las. Por maisestranho que tal possa parecer, a psicologia nunca estudousistematicamente e em pormenor as relações, e as inter-relações emgeral nunca tiveram até hoje a atenção que merecem. Os modos deanálise atomísticos e funcionais predominantes durante a últimadécada tratavam os processos psíquicos de uma forma isolada. Osmétodos de investigação desenvolvidos e aperfeiçoados tinham emvista estudar funções separadas, mantendo-se fora do âmbito dainvestigação a interdependência e a organização dessas mesmasfunções na estrutura da consciência como um todo.

É verdade que todos aceitavam a unidade da consciência e ainter-relação de todas as funções psíquicas; partia-se da hipótesede que as funções isoladas operavam inseparavelmente, numaininterrupta conexão mútua. Mas na velha psicologia, a premissainquestionável da unidade combinava-se com um conjunto depressupostos tácitos que a anulavam para todos os efeitos práticos.Tinha-se como ponto assente que a relação entre duasdeterminadas funções nunca variava: aceitava-se, por exemplo, queas relações entre a percepção e a atenção, entre a atenção e amemória e entre a memória e o pensamento eram constantes e,como constantes, podiam ser anuladas e ignoradas (e eram-no) noestudo das funções isoladas. Como as conseqüências das relaçõeseram de fato nulas, via-se o desenvolvimento da consciência comodeterminado pelo desenvolvimento autônomo das funções isoladas.No entanto, tudo o que sabemos do desenvolvimento psíquico indicaque a sua essência mesma é constituída pelas variações ocorridasna estrutura inter-funcional da consciência. A psicologia terá queconsiderar estas relações e as variações resultantes do seudesenvolvimento como problema fulcral, terá que centrar nelas oestudo, em vez de continuar pura e simplesmente a postular ointer-relacionamento geral de todas as funções. Para se conseguirum estudo produtivo da linguagem e do pensamento torna-seimperativo operar esta modificação de perspectiva.

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Um relance sobre os resultados de anteriores investigações dopensamento e da linguagem mostrará que todas as teoriasexistentes desde a antigüidade até aos nossos dias, cobrem todo oleque que vai da identificação, da fusão entre o pensamento e odiscurso num dos extremos, a uma quase metafísica separação esegregação de ambos, no outro. Quer sejam expressão de um destesextremos na sua forma pura, quer os combinem, quer dizer, quertomem uma posição intermédia, sem nunca abandonarem, contudo,o eixo que une os dois pólos, todas as várias teorias do pensamentoe da linguagem permanecem dentro deste círculo limitativo.

Podemos seguir a evolução da idéia da identidade entre opensamento e o discurso desde as especulações da lingüísticapsicológica, segundo a qual o pensamento é “discurso menos som”,até as teorias dos modernos psicólogos e reflexionistas americanos,para os quais o pensamento é um reflexo inibido do seu elementomotor. Em todas estas teorias a questão da relação existente entre opensamento e o discurso perde todo o seu significado. Se são uma ea mesma coisa, não pode surgir entre eles nenhuma relação.Aqueles que identificam o pensamento com o discurso limitam-se afechar a porta ao problema. À primeira vista, os partidários doponto de vista oposto parecem estar em melhor posição. Aoencararem o discurso como simples manifestação externa, comosimples adereço que reveste o pensamento e ao tentarem libertar opensamento de todas as suas componentes sensoriais, incluindo aspalavras (como faz a escola de Wuerzburg), não se limitam a pôr oproblema das relações existentes entre as duas funções, comotentam, também, à sua maneira, resolvê-lo. Na realidade, contudo,são incapazes de colocar a questão de uma maneira que permitadar-lhe uma solução real. Tendo tornado o pensamento e o discursoindependentes e “puros” e tendo estudado cada uma destas funçõesisoladamente, são forçados a ver as relações entre ambas comouma conexão mecânica, externa, entre dois processos distintos, Aanálise do processo do pensamento verbal em dois elementosseparados e basicamente diferentes impede todo e qualquer estudodas relações intrínsecas entre o pensamento e a linguagem.

O erro está pois nos métodos de análise adotados pelosinvestigadores precedentes. Para tratarmos com êxito da questão darelação entre o pensamento e a linguagem teremos que começar pornos perguntar a nós próprios, antes do mais, que método será maissuscetível de nos fornecer uma solução.

Dois métodos essencialmente diferentes de análise sãopossíveis no estudo das estruturas psicológicas. Parece-nos que umdeles é responsável por todos os fracassos com que se defrontaramos anteriores investigadores do velho problema que, por nosso

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turno, estamos começando a abordar e que o outro método é aúnica via correta para perspectivar a questão.

O primeiro método analisa os conjuntos psicológicoscomplexos em elementos. Pode ser comparado à análise química daágua em hidrogênio e oxigênio, elementos que, cada um de per sinão possuem as propriedades do todo e possuem propriedades quenão existem no todo. O estudante que utilizar este método nainvestigação de uma qualquer propriedade da água — por exemploqual a razão por que a água apaga o fogo — verificara com surpresaque o hidrogênio arde e que o oxigênio alimenta o fogo. Estasdescobertas não lhe serão de grande utilidade na resolução dosproblemas. A psicologia enfia-se na mesma espécie de beco semsaída quando analisa o pensamento verbal nos elementos que ocompõem — a palavra e o pensamento — e estuda cada um delesem separado. No decurso da análise as propriedades originais dopensamento verbal desapareceram. Nada resta ao investigador,senão indagar a interação mecânica dos dois elementos naesperança de reconstruir, de forma puramente especulativa, asevocadas propriedades do todo. Este tipo de análise desloca oproblema para um nível de maior naturalidade; não nos fornecenenhuma base adequada para , estudarmos as multiformesrelações concretas entre o pensamento e a linguagem que surgemno decurso do desenvolvimento e do funcionamento do discursoverbal em todos os seus aspectos Em vez de nos permitir examinare explicar casos e frases específicas e determinar regularidades queocorrem no decurso dos acontecimentos, este método produzgeneralidades relativas a todo e qualquer discurso e a todo equalquer pensamento. Além disso, induz-nos em sérios erros aoignorar a natureza unitária do processo em estudo, pois cinde emduas partes a unidade viva entre o som e o significado a quechamamos palavra e parte da hipótese de que essas duas partes sóse mantêm unidas por simples ações mecânicas.

O ponto de vista segundo o qual o som e o significado sãodois elementos separados com vidas separadas afetou gravemente oestudo de ambos os aspectos da linguagem, o fonético e osemântico. O estudo dos sons da fala como simples sons,independentemente da sua conexão com o pensamento, por maisexaustivo que seja, pouco terá a ver com a sua função comolinguagem humana, na medida em que não dilucida aspropriedades físicas e psicológicas específicas da linguagem falada,mas apenas as propriedades comuns a todos os sons existentes nanatureza. Da mesma forma, se se estudarem os significadosdivorciados do discurso, aqueles resultarão forçosamente num puroato de pensamento que se desenvolve e transformaindependentemente do seu veículo material. Esta separação entre o

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significado e o som é grandemente responsável pela banalidade dafonética e da semântica clássicas. Também na psicologia infantil, setem estudado separadamente os aspectos fonético e semântico dodesenvolvimento da linguagem. Estudou-se com grande pormenor odesenvolvimento fonético; no entanto, os dados acumulados fracocontributo trouxeram à nossa compreensão do desenvolvimentolingüístico enquanto tal e a relação entre eles e as descobertasrelativas à genética do pensamento continuam a ser essencialmentenulas.

Na nossa opinião, o outro tipo de análise, que podemoschamar análise em unidades, e a via correta a seguir.

Entendemos por unidade o produto da análise que, aocontrário dos elementos, conserva todas as propriedadesfundamentais do todo e que não pode ser subdividido sem queaquelas se percam: a chave da compreensão das propriedades daágua são as suas moléculas e não a sua composição atômica. Averdadeira unidade da análise biológica é a célula viva, que possuitodas as propriedades básicas do organismo vivo.

Qual é a unidade do pensamento verbal que satisfaz estesrequisitos fundamentais? Cremos que podemos encontrá-la noaspecto interno da palavra, no seu significado. Até à data,realizaram-se muito poucas investigações sobre o aspecto internoda linguagem, e as que se realizaram pouco nos podem dizer sobreo significado das palavras que não se aplique na mesma medida aoutras imagens e atos do pensamento. A natureza do significadoenquanto tal não é clara; no entanto, é no significado que opensamento e o discurso se unem em pensamento verbal. É nosignificado, portanto, que poderemos encontrar a resposta àsnossas perguntas sobre a relação entre o pensamento e o discurso.

A nossa investigação experimental, bem como a analiseteórica nos indicam que, tanto a psicologia da Forma (Gestalt),como psicologia associacionista, têm seguido direções erradas nainvestigação da natureza intrínseca do significado das palavras.Uma palavra não se refere a um objeto simples, mas a um grupo oua uma classe de objetos e, por conseguinte, cada palavra é já de siuma generalização. A generalização é um ato verbal de pensamentoe reflete a realidade duma forma totalmente diferente da sensação eda percepção. Esta diferença qualitativa a se encontra implicada naproposição segundo a qual há um salto qualitativo não só entre atotal ausência de consciência (na matéria inanimada) e a sensação,mas também entre a sensação e o pensamento. Temos todas asrazões para supor que a distinção qualitativa entre a sensação e opensamento é a presença no último de um reflexo generalizado da

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realidade, que é também a essência do significado das palavras e deque, por conseguinte, o significado é um ato de pensamento nosentido completo da expressão. Mas, simultaneamente, osignificado é uma parte inalienável da palavra enquanto tal,pertencendo, portanto, tanto ao domínio da linguagem como ao dopensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio, já nãofazendo parte do discurso humano. Como o significado das palavrasé, simultaneamente, pensamento e linguagem, constitui a unidadedo pensamento .verbal que procurávamos Portanto, torna-se claroque o método a seguir na nossa indagação da natureza dopensamento verbal é a análise semântica — o estudo dodesenvolvimento, do fundamento e da estrutura desta unidade, quecontém o pensamento a linguagem inter-relacionados.

Este método combina as vantagens da análise e da síntese epermite adequado estudo dos todos complexos. Em jeito deilustração tomemos outro aspecto ainda do nosso objeto de estudo,que também foi muito descurado no passado. A função primordialda linguagem é a comunicação, intercâmbio social. Ao estudar-se alinguagem por meio da análise em elementos, dissociou-se tambémesta função da função intelectual do discurso. Tratava-se ambascomo se fossem duas funções separadas, embora paralelas, semprestar atenção às suas inter-relações estruturais e evolutivas;contudo, o significado das palavras é unidade de ambas as funçõesda linguagem. É axioma da psicologia científica que a compreensãoentre espíritos é impossível sem qualquer expressão mediadora. Naausência de um sistema de signos, lingüísticos ou não, só é possívelo mais primitivo e limitado tipo de comunicação. A comunicação pormeio de movimentos expressivos, observada sobretudo entre osanimais não é tanto comunicação mas antes uma difusão de afeto.O ganso atemorizado que de súbito se apercebe dum perigo e alertatodo o bando com os seus gritos não está dizendo aos restantes oque viu, antes está contaminando os outros com o seu medo.

A transmissão racional, intencional de experiências e depensamentos a outrem exige um sistema mediador, que tem porprotótipo a linguagem humana nascida da necessidade dointercâmbio durante o trabalho. Segundo a tendência dominante, apsicologia descreveu esta questão de uma forma demasiadosimplificada, até muito recentemente. Partiu da hipótese de que omeio de comunicação era o signo (a palavra ou o som); de que, pelaocorrência simultânea, um som poderia ir-se associando com oconteúdo de qualquer experiência, passando a servir paratransmitir o mesmo conteúdo a outros seres humanos.

No entanto, um estudo mais aturado da gênese doconhecimento e da comunicação nas crianças levou à conclusão de

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que a comunicação real exige o significado — isto é, a generalização— tanto quanto os signos. Segundo a penetrante descrição deEdward Sapir, o mundo da experiência tem que ser extremamentesimplificado e generalizado antes de poder ser traduzido emsímbolos. Só desta forma se torna possível a comunicação, pois aexperiência pessoal habita exclusivamente a própria consciência doindivíduo e não é transmissível, estritamente falando. Para setornar comunicável terá que subsumir-se em determinada categoriaque, por convenção tácita, a sociedade humana encara como umaunidade. Pesquisar a verdadeira comunicação humana pressupõeuma atitude generalizadora, que constitui um estádio avançado dagênese do significado das palavras. As formas mais elevadas dointercâmbio humano só são possíveis porque o pensamento dohomem, reflete a atualidade conceitualizada. É por isso que certospensamentos não podem ser comunicados às crianças mesmoquando estas se encontram familiarizadas com as palavrasnecessárias a tal comunicação. Pode faltar o conceito adequado semo qual não é possível uma compreensão total. Nos seus escritospedagógicos, Tolstoy afirma que as crianças experimentam amiúdecertas dificuldades para aprenderem uma palavra nova não peloseu som, mas devido ao conceito a que a palavra se refere Há quasesempre uma palavra disponível — quando o conceito se encontramaduro.

A concepção do significado das palavras como unidadesimultânea do pensamento generalizante e do intercâmbio social éde um valor incalculável para o estudo do pensamento e dalinguagem. Permite-nos uma verdadeira análise genético-causal,um estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento dacapacidade intelectiva da criança e do seu desenvolvimento social.

Pode considerar-se como objeto de estudo secundário arelação mútua entre a generalização e a comunicação.

Virá talvez, a propósito mencionar aqui alguns dos problemasda área da linguagem que não exploramos especificamente nonosso estudo. O mais importante de todos é a relação entre oaspecto fonético da linguagem e o significado. Estamos em crer queos recentes e grandes passos em frente da lingüística se ficam emgrande medida a dever a alterações operadas nos métodos deanálise empregues no estudo da linguagem. A lingüísticatradicional, com a sua concepção do som como elementoindependente da linguagem, usava o som isolado como unidade deanálise Em resultado disto, centrava-se na fisiologia e na acústicamais do que na psicologia do discurso. A lingüística moderna utilizao fonema, a mais pequena unidade fonética indivisível pertinentepara o significado, unidade essa que, portanto, é característica da

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linguagem humana distinta dos outros sons. A sua introduçãocomo unidade de análise beneficiou a psicologia tanto como alingüística. Os benefícios concretos a que se chegou com aaplicação deste método provam terminantemente o seu valor. Estemétodo é essencialmente semelhante ao método de análise emunidades, distintas dos elementos, que utilizamos na nossainvestigação.

A fertilidade do nosso método pode ficar patente tambémnoutras questões relativas às relações entre as funções, ou entre aconsciência como um todo e as suas partes. Uma breve referência apelo menos uma destas questões indicará uma direção que o nossoestudo poderá vir a tomar futuramente, e assinalar o contributo dopresente estudo. Estamos a pensar na relação entre o intelecto e oafeto. A sua separação como objetos de estudo é uma importantedebilidade da psicologia tradicional pois que faz com que o processode pensamento surja como uma corrente autônoma de“pensamentos que pensam por si próprios”, dissociada da plenitudeda vida, das necessidades e interesses, das inclinações e dosimpulsos pessoais de quem pensa. Tal pensamento dissociado teráque ser considerado quer como um epifenômeno sem significado,que não poderá alterar de maneira nenhuma a vida e a conduta deuma pessoa, quer como uma espécie de força primeira queinfluenciaria a vida pessoal de uma forma inexplicável, misteriosa.Fecha-se assim a porta à questão da causa e da origem dos nossospensamentos, visto que a análise determinista exigiria umaclarificação das forças motrizes que orientam o pensamento poresta ou aquela via. Pela mesma razão, a velha abordagem impedequalquer estudo frutuoso do processo inverso: a influência dopensamento sobre o aspecto e a vontade.

A análise por unidades aponta a via para a resolução destesproblemas de importância vital. Ela demonstra que existe umsistema dinâmico de significados em que o afetivo e o intelectual seunem, mostra que todas as idéias contém, transmutada, umaatitude afetiva para com a porção de realidade a que cada umadelas se refere. Permite-nos, além disso, seguir passo a passo atrajetórias entre as necessidades e os impulsos de uma pessoa e adireção específica tomada pelos seus pensamentos, e o caminhoinverso, dos seus pensamentos ao seu comportamento e à suaatividade. Este exemplo deveria bastar para mostrar que o métodoutilizado neste estudo do pensamento e da linguagem é tambémuma ferramenta promissora para investigar a relação entre opensamento verbal e a consciência como um todo e entre aquele eas outras funções essenciais desta última.

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2. A teoria de Piaget sobre aLinguagem e o Pensamento das

crianças

I

A psicologia deve muito a Jean Piaget. Não é exagero dizer-seque ele revolucionou o estudo da linguagem e do pensamentoinfantis, pois desenvolveu o método clínico de investigação dasidéias das crianças que posteriormente tem sido generalizadamenteutilizado. Foi o primeiro a estudar sistematicamente a percepção e alógica infantis; além disso, trouxe ao seu objeto de estudo uma novaabordagem de amplitude e arrojo invulgares. Em lugar de enumeraras deficiências do raciocínio infantil quando comparado com o dosadultos, Piaget centrou a atenção nas características distintivas dopensamento das crianças, quer dizer, centrou o estudo mais sobre oque as crianças têm do que sobre o que lhes falta. Por estaabordagem positiva demonstrou que a diferença entre opensamento das crianças e dos adultos era mais qualitativa do quequantitativa.

Como muitas outras grandes descobertas, a idéia de Piaget étão simples que parece evidente. Já tinha sido expressa naspalavras de Rousseau, citadas pelo próprio Piaget, segundo asquais uma criança não é um adulto em miniatura e o seu cérebronão é um cérebro de adulto em ponto reduzido. Por detrás destaverdade, que Piaget escorou com provas experimentais, esta outraidéia simples — a idéia de evolução, que ilumina todos os estudosde Piaget com uma luz brilhante.

No entanto, apesar de toda a sua grandeza, a obra de Piagetsofre da dualidade comum a todas as obras pioneiras da psicologiacontemporânea. Esta clivagem é correlativa da crise que apsicologia está atravessando à medida que se transforma numaciência no verdadeiro sentido da palavra. A crise decorre da agudacontradição entre a matéria prima factual da ciência e as suaspremissas metodológicas e teóricas, que há muito são alvo dedisputa entre as concepções materialista e idealista do mundo. Napsicologia, a luta é talvez mais aguda do que em qualquer outradisciplina.

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Enquanto nos faltou um sistema generalizadamente aceiteque incorpore todo o conhecimento psicológico disponível, qualquerdescoberta factual importante conduzirá à criação de uma novateoria conforme aos fatos novos observados. Freud, Levy-Bruhl,Blondel, todos eles criaram os seus próprios sistemas de psicologia.A dualidade predominante reflete-se na incongruência entre estasestruturas teóricas, com os seus tons carregados de metafísica eidealismo, e as bases empíricas sobre que foram construídas. Namoderna psicologia fazem-se diariamente grandes descobertas,descobertas essas que, no entanto, logo são envolvidas em teoriasad hoc pré-científicas e semi-metafísicas.

Piaget tenta escapar a esta dualidade fatal atendo-se aosfatos. Evita deliberadamente fazer generalizações mesmo no seupróprio campo de estudo, pondo especial cuidado em não invadir osdomínios correlatos da lógica, da teoria do conhecimento daHistória da filosofia. Para ele, o empirismo puro parece-lhe o únicoterreno seguro. O seu livro, escreve ele, é,

antes do mais, e acima de tudo, uma coleção de fatos edocumentos. Os elos que unem entre si os diversos capítulos são oselos fornecidos por um método único a várias descobertas e demaneira nenhuma os de uma exposição sistemática (29) (29, p. 1).

Na verdade, o seu forte consiste em desenterrar novos fatos,analisá-los e classificá-los penosamente, quer dizer, na capacidadede escutar a sua mensagem, como dizia Claparède. Das páginas dePiaget cai uma avalanche de grandes e pequenos fatos sobre apsicologia infantil.

O seu método clínico revela-se como uma ferramentaverdadeiramente inestimável para o estudo dos todos estruturaiscomplexos do pensamento infantil nas suas transformaçõesgenéticas.

É um método que unifica as suas diversas investigações e nosproporciona um quadro coerente, pormenorizado e vivo dopensamento das crianças.

Os novos fatos e o novo método conduzem-nos a muitosproblemas; alguns são inteiramente novos para a psicologiacientífica, outros aparecem-nos a uma luz diferente. Os problemasdão origem a teorias, apesar de Piaget estar determinado a evita-lasatendo-se estreitamente aos fatos experimentais — e passando, demomento, por cima do fato de que a própria escolha dasexperiências é determinada por certas hipóteses. Mas os fatos sãosempre examinados à luz de uma qualquer teoria, não podendo por

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conseguinte ser totalmente destrinçados da filosofia. Tal éparticularmente verdade para os fatos relativos ao pensamento.

Para encontrarmos a chave do manancial de fatos coligidospor Piaget teremos que começar por explorar a filosofia que está pordetrás da sua investigação dos fatos — e por detrás da suainterpretação, que só é exposta no fim do seu segundo livro (30),num resumo do conteúdo.

Piaget aborda esta tarefa levantando a questão do inter-relacionamento objetivo de todos os traços característicos dopensamento infantil por ele observados, Serão tais traços fortuitos eindependentes, ou formarão um conjunto organizado, com umalógica própria, em torno de um fato central unificador? Piaget crêque assim é. Ao responder à pergunta, passa dos fatos á teoria eincidentalmente mostra o quanto a sua análise dos fatos seencontrava influenciada pela teoria, muito embora, na suaexposição, a teoria venha a seguir aos fatos.

Segundo Piaget, o elo que liga todas as característicasespecíficas da lógica infantil é o egocentrismo do pensamento dascrianças. Ele reporta todas as outras características que descobriu,quais sejam, o realismo intelectual, o sincretismo e a dificuldade decompreender as relações, a este traço nuclear e descreve oegocentrismo como ocupando uma posição intermédia, genética,estrutural e funcionalmente, entre o pensamento autístico e opensamento orientado.

A idéia de polaridade do pensamento orientado e nãoorientado tomada de empréstimo à psicanálise. Diz Piaget:

O pensamento orientado é consciente, isto é, prossegueobjetivos presentes no espírito de quem pensa, É inteligente, isto é,encontra-se adaptado a realidade e esforça-se por influenciá-la. Ésuscetível de verdade e erro ... e pode ser comunicado através dalinguagem. O pensamento autístico é subconsciente, isto é, osobjetivos que prossegue e os problemas que põe a si próprio não seencontram presentes na consciência. Não se encontra adaptado àrealidade externa, antes cria para si próprio uma realidade deimaginação ou sonhos. Tende, não a estabelecer verdades, mas arecompensar desejos e permanece estritamente individual eincomunicável enquanto tal, por meio da linguagem, visto que operaprimordialmente por meio de imagens e, para ser comunicado, temque recorrer a métodos indiretos, evocando, por meio de símbolos emitos, os sentimentos que o guiam (29) (29, pp. 59-60).

O pensamento orientado é social. À medida que se desenvolve

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vai sendo progressivamente influenciado pelas leis da experiência eda lógica propriamente dita. O pensamento autístico, pelo contrário,é individualista e obedece a um conjunto de leis especiais que lhesão próprias.

Entre estes dois modos de pensamento contrastantes:

há muitas variedades no que respeita ao seu grau decomunicabilidade. Estas variedades intermédias obedecerãonecessariamente a uma lógica especial, que também é uma lógicaintermédia entre a lógica do autismo e a lógica da inteligência.Propomos dar o nome de pensamento egocêntrico à principal formaintermédia (29)(29, p. 62).

Embora a sua função principal continue a ser a satisfaçãodas necessidades pessoais, já engloba em si algumas adaptaçõesmentais, um pouco da orientação para a realidade característica dopensamento dos adultos. O pensamento egocêntrico das crianças“situa-se a meio caminho entre o autismo no sentido estrito dapalavra e o pensamento socializado” (30)(30, p. 276) É esta ahipótese de base de Piaget.

É importante notar que através de toda a sua obra Piagetsublinha com mais intensidade os traços que são comuns aopensamento egocêntrico e ao autismo do que os traços comuns queos distinguem. No sumário do fim do seu livro, afirma com ênfase:“no fim de contas, o jogo é a lei suprema do pensamentoegocêntrico” (30)(30, p. 323). A mesma tendência é especialmentepronunciada no tratamento do sincretismo, muito embora eleassinale que o mecanismo do pensamento sincrético representauma transição entre a lógica dos sonhos e a lógica do pensamento.

Piaget defende que o egocentrismo se encontra a meiocaminho entre o autismo extremo e a lógica da razão, tantocronológica, como estrutural e funcionalmente. A concepçãogenética do pensamento baseia-se na premissa extraída depsicanálise, segundo a qual o pensamento das crianças é original enaturalmente autístico e só se transforma em pensamento realistapor efeito de uma longa e persistente pressão social. Piaget assinalaque isto não desvaloriza a inteligência da criança. “A atividadelógica não esgota a inteligência” (30)(30, p. 267). A imaginação éimportante para resolver problemas, mas não se preocupa comverificações e provas, coisas que são condições necessárias dabusca da verdade. A necessidade de verificarmos e comprovarmos onosso pensamento — quer dizer a necessidade da atividade lógica— surge mais tarde. Esta defasagem será de esperar, diz Piaget,visto que o pensamento começa a servir a satisfação imediata muito

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antes de procurar a verdade, forma mais espontânea dopensamento é o jogo ou as imaginações plenas de desejo que fazemo desejável parecer inatingível. Até à idade de sete ou oito anos ojogo domina a tal ponto o pensamento da criança, que é muitodifícil distinguir a invenção deliberada, da fantasia que a criançajulga ser verdade.

Resumindo, o autismo é encarado como a forma original,mais primitiva, do pensamento; a lógica aparece relativamentetarde; e o pensamento egocêntrico é o elo genético entre ambos.

Embora Piaget nunca tenha apresentado esta concepção deuma forma coerente e sistemática, é ela a pedra de toque de todo oseu edifício teórico. É certo que por mais de uma vez ele afirma queo pressuposto da natureza intermédia do pensamento infantil euma hipótese, mas também diz que tal hipótese está tão próxima dosenso comum que lhe parece pouco mais discutível do que o própriofato do egocentrismo infantil. Segue os traços do egocentrismo nasua evolução e até a natureza da atividade prática da criança e atéao posterior desenvolvimento das atitudes sociais.

É claro que, do ponto de vista genético, temos que partir daatividade da criança para podermos compreender o seupensamento; e essa atividade é incontestavelmente egocêntrica eegotista. O instinto social sob a sua forma bem definida só sedesenvolve mais tarde. O primeiro período crítico a este respeito sóocorre por volta dos sete ou oito anos de idade (30)(30, p. 276).

Antes desta idade, Piaget tende a ver o egocentrismo comoalgo que impregna tudo. Considera direta ou indiretamenteegocêntricos todos os fenômenos da lógica infantil na sua ricavariedade. Do sincretismo, importante expressão do egocentrismo,diz inequivocamente que impregna todo o pensamento da criança,tanto na sua esfera verbal, como na sua esfera sensorial Após ossete ou oito anos, quando o pensamento socializado começa aganhar forma, os traços egocêntricos não desapareceminstantaneamente. Desaparecem das operações sensoriais dacriança, mas continuam cristalizados na área mais abstrata dopensamento puramente verbal.

A sua concepção da predominância do egocentrismo nainfância leva Piaget a concluir que o egocentrismo do pensamentose encontra tão intimamente relacionado com a natureza psíquicada criança que é impermeável à experiência. As influências a que osadultos submetem as crianças.

não se encontram nestas como se se tratasse de uma placa

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fotográfica: são assimiladas, quer dizer, são deformadas pelo servivo que as sofre e implantam-se na sua própria substância. É estasubstância psicológica da criança, ou, por outras palavras, aestrutura e o funcionamento característicos do pensamento dacriança que procuramos descrever e em certa medida explicar(30)(30, p. 338).

Esta passagem resume a natureza dos pressupostos básicosde Piaget e conduz-nos ao problema geral das uniformidades sociaise biológicas do desenvolvimento físico, a que voltaremos na seçãoIII. Em primeiro lugar, examinemos a solidez da concepção dePiaget do egocentrismo da criança à luz dos fatos em que se baseia.

II

Como a concepção que Piaget tem do egocentrismo da criançaé de primeira importância na sua teoria, temos que indagar quefatos levaram não só a admitir esta hipótese, como também adepositar tanta fé nela. Por conseguinte, poremos estes fatos àprova comparando-os com os resultados das nossas própriasexperiências (46)(46, 47).

A base factual da convicção de Piaget é-lhe dada pelasinvestigações a que submeteu o uso que as crianças dão àlinguagem. As suas observações sistemáticas levaram-no a concluirque todas as conversações das crianças se podem classificar em umde dois grupos: o egocêntrico e o socializado. A diferença entreambos reside sobretudo nas suas funções. No discurso egocêntricoa criança fala apenas dela própria, não se preocupa com ointerlocutor, não tenta comunicar, não espera qualquer resposta efreqüentemente nem sequer se preocupa com saber se alguém aescuta. O discurso egocêntrico é semelhante a um monólogo numapeça de teatro: a criança como que pensa em voz alta, alimentandoum comentário simultâneo com aquilo que está a fazer. No discursosocializado, ela não procura estabelecer um intercâmbio com osoutros — pede, manda, ameaça, transmite informações, fazperguntas.

As experiências de Piaget mostram que a parte de longe maisimportante das conversas das crianças em idade pré-escolar éconstituída por falas egocêntricas. Chegou à conclusão de que 44 a47 por cento do número total de conversas registadas em criançascom sete anos de idade era de natureza egocêntrica. Este número,diz ele, deve ser consideravelmente mais elevado no caso dascrianças mais novas. Investigações posteriores com crianças de seise sete anos de idade demonstraram que, nesta idade, nem odiscurso social se encontra totalmente liberto de pensamentos

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egocêntricos. Ao demais, para além dos seus pensamentosexpressos, as crianças têm muitos pensamentos não expressos.Alguns destes pensamentos, afirma Piaget, ficam por exprimirprecisamente porque são egocêntricos, isto é, incomunicáveis. Paraos transmitir aos outros, a criança teria que ser capaz de adotar osseus pontos de vista. “Poder-se-ia dizer que o adulto pensasocialmente. mesmo quando se encontra só, ao passo que ascrianças com menos de sete anos pensam e falamegocêntricamente, mesmo em sociedade com os outros” (29)(29, p.56). Assim, o coeficiente de pensamento egocêntrico seránecessariamente muito mais elevado do que o coeficiente de falaegocêntrica. Mas só os dados orais são mensuráveis, só eles nosfornecem a prova documental sobre que Piaget baseia a suaconcepção do egocentrismo infantil. As suas explicações sobre odiscurso egocêntrico e o egocentrismo das crianças em geral sãoidênticas.

Em primeiro lugar, não há vida social persistente em criançascom menos de sete ou oito anos; em segundo lugar, a verdadeiralinguagem social das crianças, quer dizer, a linguagem utilizada naatividade fundamental das crianças — o jogo — é uma linguagemde gestos, movimentos e mímica, tanto quanto uma linguagem depalavras. (29)(29, p. 56).

Quando, com sete ou oito anos de idade, o desejo detrabalhar com os outros começa a manifestar-se, a fala egocêntricacontinua a subsistir.

Na sua descrição do discurso egocêntrico e do seudesenvolvimento genético, Piaget sublinha que esse discurso nãocumpre nenhuma função no comportamento da criança e que selimita a atrofiar-se à medida que a criança atinge a idade escolar.As experiências que nós próprios levamos a cabo, apontam paraconclusões diferentes. Estamos em crer que o discurso egocêntricoassume desde muito cedo um papel muito definido e importante naatividade da criança.

Para determinarmos qual a causa da fala egocêntrica e quecircunstâncias a provocam, organizamos as atividades das criançasduma forma muito semelhante à de Piaget, acrescentando-lhesporém uma série de frustrações e de dificuldades. Por exemplo,quando uma criança se preparava para pintar, descobriasubitamente que não havia papel, ou lápis da cor que necessitava.Por outras palavras, obrigavamo-la a defrontar-se comdeterminados problemas, obstruindo a sua atividade livre.(vercapítulo 7 sobre outros aspectos destes problemas)

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Descobrimos que nestas situações difíceis, o coeficiente dediscurso egocêntrico quase duplicava, em comparação com onúmero normal de Piaget para a mesma idade e também emcomparação com o nosso próprio número para crianças que não sedefrontavam com estes problemas. A criança tentaria dominar eremediar a situação falando para si própria: “Onde está o lápis?Preciso de lápis azul. Deixa lá, vou desenhar com o lápis vermelho emolho-o com água; ficará mais escuro e parecerá azul”.

Nas mesmas atividades sem impedimentos, o nossocoeficiente de fala egocêntrica era até um pouco inferior ao dePiaget. Portanto, é legítimo presumir que as interrupções do livredesenrolar da atividade são estímulos importantes para o discursoegocêntrico. Esta descoberta adequa-se com duas premissas que opróprio Piaget refere repetidas vezes ao longo do seu livro. Umadelas é a chamada lei da consciência, segundo a qual os obstáculosou as perturbações duma atividade automática fazem com que oautor dessa atividade se aperceba dela. A outra premissa é a queafirma que o discurso é uma expressão desse processo de tomadade consciência.

As nossas descobertas indicam que o discurso egocêntrico jánão se limita a ser um simples acompanhamento da atividade dacriança Para além de ser um meio de expressão e de libertação detensão em breve se torna um instrumento de pensamento nosentido próprio do termo — um instrumento para buscar e planeara solução de um problema. Um acidente ocorrido durante uma dasnossas experiências proporciona-nos um bom exemplo da formacomo o discurso egocêntrico pode alterar o curso de uma atividade:uma criança de cinco anos estava a desenhar um automóvelquando a ponta do lápis se quebrou. Apesar do acidente, a criançatentou acabar o círculo que representava uma roda, pressionando olápis sobre o papel com muita força, mas nada surgiu, a não seruma linha vincada e sem cor. A criança sussurrou de si para si:“Está partido.” pôs o lápis de lado, substitui-o por aquarela ecomeçou a desenhar um carro partido em resultado de umacidente, continuando a falar de si para si acerca da alteração dasua pintura. A expressão egocêntrica da criança acidentalmenteprovocada afetou tão manifestamente a sua atividade, que é difíciltomá-la erradamente por um simples subproduto, por umacompanhamento que não interferisse com a melodia. As nossasexperiências evidenciaram alterações muito complexas na inter-relação entre a atividade e a fala egocêntrica. Observamos como odiscurso egocêntrico começava por marcar o resultado final de umponto de viragem de uma atividade, deslocando-se depoisgradualmente para o meio e finalmente para o início da atividade,passando a assumir uma função diretora, de planeamento, e

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elevando a atividade da criança ao nível de um comportamento comobjetivos conscientes. O que acontece neste caso é semelhante àbem conhecida seqüência genética da designação dos desenhos.Um bebê começa por desenhar, decidindo depois o que é aquilo quedesenhou; numa idade ligeiramente superior, nomeia o seu desenhoquando este se encontra meio feito; e, por fim, decideantecipadamente aquilo que vai desenhar.

A concepção revista da função do discurso egocêntricoinfluenciará também necessariamente a nossa concepção da suatrajetória posterior e terá que ser recordada a propósito da questãodo seu desaparecimento por altura da idade escolar. Asexperiências podem fornecer-nos provas indiretas, mas nenhumaresposta terminante acerca das causas do seu desaparecimento.Não obstante, os dados obtidos sugerem-nos fortemente a hipótesede que o discurso egocêntrico é um estádio na evolução do discursovocal para o discurso interior. Nas nossas experiências, as criançasmais velhas comportavam-se de forma diferente das mais novasquando se encontravam face a face perante certos obstáculos.Freqüentemente, as crianças examinavam a situação em silêncioencontrando posteriormente uma solução. Quando inquiridos sobreo que estavam a pensar davam respostas que se assemelhavambastante ao pensamento em voz alta das crianças em idadepré-escolar Isto indicaria que, na criança em idade escolar, seencontram relegadas para o discurso interior sem som, as mesmasoperações mentais que a criança em idade pré-escolar leva a caboem voz alta, por meio do discurso egocêntrico. É claro que em Piagetnão há nada nesse sentido, pois este autor pensa que o discursoegocêntrico desaparece, muito pura e simplesmente. Odesenvolvimento do discurso interno nas crianças poucadilucidação específica merece. Mas como o discurso interior e oegocentrismo oralizado preenchem as mesmas funções, a conclusãoa tirar daqui seria que se, como Piaget defende, o discursoegocêntrico precede o discurso socializado, então o discurso interiortambém precede o discurso socializado — pressuposto que, doponto de vista genético, é insustentável.

O discurso interior do adulto representa o “pensar de si parasi” mais do que a adaptação social; isto é, desempenha a mesmafunção que o discurso egocêntrico das crianças. Tem também asmesmas características estruturais: fora do contexto seriaincompreensível para os outros, porque omite “mencionar” o que éobvio para o “locutor”. Estas semelhanças levam-nos a presumirque, quando desaparece da vista, o discurso egocêntrico não seatrofia pura e simplesmente, antes continua o seu curso e“mergulha nas profundidades”, isto é, se transforma em discursointerior. A nossa observação segundo a qual, na idade em que esta

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modificação ocorre, as crianças que experimentam dificuldadespassam a recorrer, quer ao discurso egocêntrico, quer ao discursosilencioso, a reflexão silenciosa, indica que esses dois discursospodem ser funcionalmente equivalentes. Partimos da hipótese deque os processos do discurso interior se desenvolvem e se vãoestabilizando aproximadamente no início da idade escolar e que istoé causa da rápida diminuição do discurso egocêntrico que nessaidade se observa.

Embora as nossas descobertas sejam de âmbito limitado,julgamos que nos permitirão ver a direção geral do pensamento e dalinguagem numa perspectiva nova e mais vasta. No ponto de vistade Piaget, as duas funções seguem uma trajetória comum, dodiscurso autístico ao discurso socializado, da fantasia subjetiva àlógica das relações. No decurso desta transformação, a influênciados adultos é deformada pelo processo psíquico das crianças masacaba por vencer. Para Piaget, o desenvolvimento do pensamentoprocessa-se por uma gradual socialização dos estados mentais maisprofundamente íntimos, pessoais, autísticos. Até o discurso social éapresentado como um discurso que sucede e não que precede odiscurso egocêntrico.

A hipótese que propomos inverte esta trajetória. Olhemospara a direção do desenvolvimento do pensamento durante umcurto intervalo de tempo, desde o aparecimento do discursoegocêntrico até ao seu desaparecimento, no quadro dodesenvolvimento da linguagem como um todo.

Consideramos que o desenvolvimento total segue a seguinteevolução: a função primordial da linguagem, tanto nas criançascomo nos adultos, é a comunicação, o contato social. Porconseguinte, a fala mais primitiva das crianças é uma falaessencialmente social. De inicio, é global e multifuncional; maistarde as suas funções tornam-se diferenciadas. Numa certa idade odiscurso social da criança subdivide-se bastante nitidamente emdiscurso egocêntrico e discurso comunicativo (Preferimos utilizar otermo comunicativo para a forma de discurso que Piaget designapor socializado — como se tivesse sido algo diferente antes de setornar social. Do nosso ponto de vista, as duas formas, acomunicativa e a egocêntrica, são ambas sociais, apesar de as suasfunções diferirem). O discurso egocêntrico emerge quando a criançatransfere as formas sociais cooperativas de comportamento para aesfera das funções psíquicas pessoais internas. A tendência dacriança para transferir para os seus processos internos os modelosanteriormente sociais é uma tendência bem conhecida que Piagetconhece muito bem. Noutro contexto, ele descreve como asdiscussões entre crianças dão origem às primeiras manifestações de

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reflexão lógica. Algo semelhante acontece, julgamos, quando acriança começa a conversar consigo, própria como se estivesse afalar com outrem. Quando as circunstâncias a obrigam a deter-separa pensar, o mais certo é começar a pensar em voz alta. Odiscurso egocêntrico, dissociado do discurso social geral, acaba como tempo por conduzir ao discurso interior que servesimultaneamente o pensamento autístico e o pensamento lógico.

O discurso egocêntrico como forma lingüística separada,autônoma e o elo genético altamente importante na transição entreo discurso oral e o discurso interior, um estádio intermédio entre adiferenciação das funções do discurso oral e a transformação finalde uma parte do discurso oral em discurso interior. É este papel detransição do discurso egocêntrico que lhe confere um interesseteórico tão grande. Toda a concepção do desenvolvimento dodiscurso se alterará profundamente, consoante a interpretação quese der ao papel do discurso egocêntrico. Assim, o nosso esquema dedesenvolvimento — primeiro, o discurso social, depois o discursoegocêntrico, depois o discurso interior — diverge profundamentenão só do esquema behaviourista tradicional, — discurso oral,murmúrio, discurso interior — mas também da seqüência de Piaget— que passa do pensamento autístico para o discurso socializado eo pensamento lógico através do discurso e do pensamentoegocêntrico. Na nossa concepção a verdadeira trajetória dedesenvolvimento do pensamento não vai no sentido do pensamentoindividual para o socializado, mas do pensamento socializado parao individual.

III

Dentro dos limites do presente estudo, não é possível avaliartodos os aspectos da teoria de Piaget sobre o desenvolvimentointelectual, as nossas preocupações centram-se sobre a suaconcepção do papel do egocentrismo na relação evolutiva entre alinguagem e o pensamento. Vamos contudo indicar, de entre assuas hipóteses teóricas e metodológicas, quais as que consideramoserradas, assim como os fatos que ele não consegue enquadrar nasua caracterização do pensamento da criança.

A psicologia moderna em geral, e a psicologia infantil emparticular, mostram tendência para combinarem as questõespsicológicas com as filosóficas. Um paciente do psicólogo alemãoAch resumiu muito adequadamente esta inclinação, ao observar nofim de uma sessão: “Mas isso é filosofia experimental!” E, naverdade, muitas questões do complexo campo do pensamentoinfantil encontram-se na fronteira da teoria do conhecimento, dalógica teórica e de outros ramos da filosofia. Repetidas vezes Piaget

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toca inadvertidamente um ou outro destes domínios, mas, comnotável coerência, refreia-se e abandona-o imediatamente. Noentanto, apesar da sua expressa intenção de evitar teorizações, nãoconsegue manter a sua obra dentro do quadro da ciênciapuramente factual. A escusa deliberada da filosofia é já de si umafilosofia — e uma filosofia que pode arrastar os seus proponentespara muitas incoerências. Exemplo disto é a concepção de Piagetsobre o papel da explicação causal em ciência.

Piaget tenta escusar-se a entrar em consideração com ascausas na apresentação das suas descobertas. Ao proceder assim,aproxima-se perigosamente daquilo a que, na criança, designa por“pré-causalidade”, muito embora no seu caso particular possa ver asua abstenção como um estádio “supracausa” sofisticado, em que oconceito de causalidade teria sido superado. Piaget propõe que sesubstitua a explicação dos fenômenos em termos de causa e efeitopor uma análise genética em termos de seqüência temporal e pelaaplicação de uma fórmula de concepção matemática dainterpenetração funcional dos fenômenos. No caso de doisfenômenos interdependentes, os fenômenos A e B, pode-seconsiderar que A é função de B ou que B é função de A. Oinvestigador reserva-se o direito de organizar a sua descrição dosdados da forma que melhor servir os seus objetivos em determinadomomento, embora eventualmente confira uma posição preferencialao fenômeno mais primitivo do ponto de vista do desenvolvimento,como fenômeno mais explicativo no sentido fonético.

Esta substituição da interpretação causal pela interpretaçãofuncional subtrai ao conceito de desenvolvimento todo e qualquerconteúdo real. Muito embora, ao analisar os fatores sociais ebiológicos, Piaget reconheça que o estudioso do desenvolvimentomental tem por obrigação explicar a relação entre ambos e a nãodescurar nenhum, a sua solução é a seguinte:

Mas, para começar, há que escolher um dos idiomas emdesfavor do outro. Optamos pelo idioma sociológico, massublinhamos que não há nenhum exclusivo nisto — reservamo-noso direito de voltarmos a adotar a explicação biológica da criança, ea traduzir nos termos que lhe são próprios a descrição quetentamos dar aqui (30)(30, p. 266).

Esta concepção reduz realmente toda a demarche de Piaget auma escolha arbitrária.

O quadro de trabalho fundamental da teoria de Piagetapoia-se no pressuposto de que há uma seqüência genética de duasformas opostas de intelecção que a teoria psicanalítica descreve

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como duas formas que se encontram ao serviço do princípio doprazer e do princípio da realidade. Do nosso ponto de vista, apulsão dinâmica de satisfação das necessidades e a pulsão deadaptação à realidade não podem ser consideradas como coisasseparadas que se opõem mutuamente. Uma necessidade só podeser verdadeiramente satisfeita através de uma certa adaptação àrealidade. Além disso, não há adaptação pela adaptação: aadaptação é sempre orientada pelas necessidades, o que é umtruismo inexplicavelmente descurado por Piaget.

Piaget compartilha com Freud não só a concepçãoindefensável da existência de um princípio de prazer que precederiao princípio da realidade. mas também a abordagem metafísica queeleva o princípio do prazer do seu verdadeiro estatuto de fatorsecundário, biologicamente importante, ao nível de uma força vitalindependente, de primo-motor do desenvolvimento psíquico. Comoseparou a necessidade e o prazer da adaptação à realidade, Piaget élogicamente forçado a apresentar o pensamento realístico como algoque existe dissociado das necessidades concretas, dos interesses edas aspirações concretas, como pensamento “puro” que tem porfunção exclusiva a busca da verdade pela verdade, exclusivamente.

O pensamento autístico — que originalmente era o oposto dopensamento realístico na seqüência de Piaget — é, em nossaopinião, uma evolução tardia, um resultado do pensamentorealístico e do seu corolário, o pensamento conceptual, que nosconduz a um certo grau de autonomia relativamente á realidade,permitindo assim a satisfação na fantasia das necessidadesfrustradas pela vida real. Esta concepção do autismo é coerentecom a de Bleuler (3). 0 autismo é um dos efeitos da diferenciação eda polarização das várias funções do pensamento.

As nossas experiências trouxeram a primeiro plano outroponto importante, que até aqui tem sido descurado: o pape! daatividade da criança na evolução dos seus processos intelectivos.Vimos que o discurso egocêntrico não se encontra suspenso novácuo, mas está diretamente relacionado com a forma como acriança lida com o mundo exterior real. Vimos que isto é parteintegrante dos processos de atividade racional que a inteligênciacomo que assume nas ações infantis carregadas de incipienteintencionalidade e que esse discurso vai progressivamente servindopara resolver certos problemas e planear à medida que asatividades da criança se vão tornando mais complexas. Esteprocesso é desencadeado pelas ações da criança; os objetos comque esta lida representam a realidade e modelam os seus processosde pensamento.

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À luz destes fatos, as conclusões de Piaget exigem um certonúmero de clarificações relativamente a dois pontos importantes.Em primeiro lugar, as peculiaridades do pensamento das criançaspor ele analisadas, tais como o sincretismo, não abarcam umdomínio tão vasto como Piaget julga. Sentimo-nos inclinados apensar (e as nossas experiências no-lo confirmam) que a criançapensa de uma forma sincrética em áreas de que não possuiconhecimentos ou experiência suficientes, mas que não recorre aosincretismo em relação a coisas que lhe são familiares ou que sãode fácil comprovação prática — e o número destas coisas dependedo método de educação. Da mesma forma, dentro do quadro dosincretismo propriamente dito, será de esperar encontrar algumasformas percursoras das futuras concepções causais que o próprioPiaget menciona de passagem. Os próprios esquemas sincréticos,apesar das suas flutuações, conduzem a criança a uma gradualadaptação; há que não subestimar a sua utilidade. Mais tarde oumais cedo, através de uma estrita seleção, da redução e daadaptação mútua, irão sendo burilados, transformando-se emexcelentes instrumentos de investigação nas áreas em que ashipóteses são aplicáveis.

O segundo ponto que há que ser reavaliado e sujeito a certaslimitações é a aplicabilidade das descobertas de Piaget às criançasem geral. As suas experiências levam-no a acreditar que as criançassão impermeáveis à experiência. Piaget estabelece uma analogia quejulgamos ser reveladora: diz ele que o homem primitivo só aprendecom a experiência em casos muito especiais e limitados de atividadeprática — e cita como exemplos disso casos raros de agricultura,caça e manufatura.

Mas este contato efêmero e parcial com a realidade não afetaminimamente a sua maneira de pensar. O mesmo se aplica àscrianças por maioria de razões (30)(30, p. 268-269).

No caso do homem primitivo, não podemos chamar àagricultura e à caça contatos desprezáveis com a realidade, poisconstituem praticamente toda a sua existência. A concepção dePiaget pode ser válida para o caso particular das crianças queestudou, nas não tem alcance universal. É ele próprio quem nos dáa causa da qualidade especial de pensamento que observou nassuas crianças:

A criança nunca entra em contato real e verdadeiro com ascoisas, pois não trabalha: brinca com as coisas, ou aceita-as comoponto assente (30)(30, p. 269).

As uniformidades de desenvolvimento estabelecidas por Piaget

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aplicam-se ao meio dado, nas condições em que Piaget levou a caboo seu estudo. Não são leis da natureza, são leis histórica esocialmente determinadas. Stern já havia criticado a Piaget o fatode não ter tomado na devida conta a importância da situação e domeio sociais. O caráter mais egocêntrico ou mais social da fala dascrianças depende não só da sua idade, mas também das condiçõesambientes. Piaget observou crianças enquanto brincavam emdeterminado jardim infantil e os seus coeficientes só são válidospara este meio infantil particular. Quando a atividade das criançasé exclusivamente constituída por jogos, é acompanhada por umgrande manancial de solilóquios. Stern assinala que nos infantáriosalemães, em que a atividade de grupo é maior, o coeficiente deegocentrismo era algo menor e que, em casa, o discurso dascrianças tende a ser predominantemente social desde muito tenraidade. Se isto se passa com as crianças alemãs, a diferença entre ascrianças soviéticas e as crianças que Piaget observou nosinfantários de Genebra devem ser ainda maiores. No seu prefácio àedição russa do seu livro, Piaget admite que é necessário compararo comportamento de crianças de ambientes sociais diferentes parapodermos estabelecer a diferença entre o social e o individual noseu pensamento. Por esta razão saúda a colaboração com ospsicólogos soviéticos. Também estamos convencidos de que o estudodo desenvolvimento das crianças provenientes de ambientes sociaisdiferentes e em especial de crianças que, ao contrário das criançasde Piaget, trabalham, levará necessariamente a resultados que nospermitirão formular leis com um âmbito de aplicação muito maisvasto.

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3. A teoria de Stern sobre odesenvolvimento da linguagem

A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecida eque tem vindo a ganhar terreno com o passar dos anos, é a suaconcepção intelectualista sobre o desenvolvimento da linguagem nacriança. Contudo, é esta mesma concepção que mais claramenterevela as limitações e as incoerências do personalismo filosófico epsicológico de Stern, os seus fundamentos idealistas e a suaausência de validade científica.

É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como“personalista-genético”. Analisaremos o princípio personalista maisà frente. Para já, vamos ver como Stern trata do aspecto genético.Afirmaremos já à partida que esta teoria, tal como todas as teoriasintelectualistas, é, pela sua própria natureza, anti-genética.

Stern estabelece uma distinção entre três raízes dalinguagem: a tendência expressiva, a tendência social e a tendência“intencional”. Enquanto as duas primeiras estão tambémsubjacentes aos rudimentos de linguagem observados nos animais,a terceira é especificamente humana. Stern define intencionalidadeneste sentido como uma orientação para um certo conteúdo, ousignificado. “Em determinado estádio do seu desenvolvimentopsíquico”, afirma ele, “o homem adquire a capacidade de significaralgo proferindo palavras, de se referir a algo objetivo” (38)(38, p.126). Em substância, tais atos intencionais são já atos depensamento; o seu surgimento denota uma intelectualização e umaobjetificação do discurso.

Em consonância com um certo número de autores querepresentam a nova psicologia do pensamento, embora em menorgrau do que alguns deles, Stern sublinha a importância do fator nodesenvolvimento da linguagem.

Não temos nada a obstar à afirmação segundo a qual alinguagem humana desenvolvida possui um significado objetivo,pressupondo portanto um certo grau de desenvolvimento dopensamento, e estamos de acordo em que é necessário tomar emlinha de conta a relação estreita que existe entre a linguagem e opensamento lógico. O problema está em que Stern encara aintencionalidade característica do discurso desenvolvido, que exige

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explicação genética (isto é, que exige se explique como foi gerada noprocesso evolutivo), como uma das raízes do desenvolvimento dalinguagem, como uma força motora, como uma tendência inata,quase como um impulso, mas, de qualquer forma como algoprimordial, geneticamente equiparada às tendências expressiva ecomunicativa — as quais na verdade são detectáveis já nosprimeiros estádios da linguagem. Ao ver a intencionalidade destamaneira (“die intentionale Triebfeder des Sprachdranges”), substituia explicação genética por uma explicação intelectualista.

Este método de explicar uma coisa pela própria coisa que háque explicar é o erro fundamental de todas as teoriasintelectualistas e, em particular, da de Stern — daí a sua vacuidadegeral e o seu caráter anti-genético (pois se relegam para osprimeiros estádios de desenvolvimento da linguagem característicasque pertencem aos seus estádios mais avançados) Stern responde àquestão de como e porque a linguagem adquire significadoafirmando. a linguagem adquire significado pela sua tendênciaintencional, isto é, pela tendência à significação. Isto faz-nosrecordar o médico de Molière que explicava os efeitos soporíferos doópio pelas suas propriedades dormitivas.

Da famosa descrição que Stern nos dá da grande descobertafeita pelas crianças por volta do ano e meio ou dois anos de idadepodemos ver a que exageros pode conduzir uma acentuaçãoexagerada dos aspectos lógicos. Por essa idade, a criança descobrepela primeira vez que cada objeto tem o seu símbolo permanente,uma configuração sonora que o identifica — quer dizer, que cadacoisa tem o seu significado. Stern crê que, pelo segundo ano da suavida, uma criança pode tomar consciência dos símbolos e da suanecessidade e considera que esta descoberta é já um processo depensamento no sentido próprio do termo:

A compreensão da relação entre o signo e o significado quedesponta na criança por esta altura é algo diferente em princípio dasimples utilização de imagens sonoras, de imagens de objetos e dasua associação. É a exigência de que todos os objetos, sejam elesquais forem, tenham o seu nome próprio pode considerar-se comouma verdadeira generalização levada a cabo pela criança (40)(40,pp. 109-110).

Haverá algum fundamento teórico ou factual para presumirque uma criança de um ano e meio ou dois anos de idade temconsciência de uma regra geral, de um conceito geral? Todos osestudos realizados sobre este problema nos últimos vinte anosindicam-nos que a resposta é negativa.

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Tudo o que conhecemos da mentalidade da criança de umano e meio ou dois anos entra em choque com a idéia segundo aqual ela poderia ser capaz de operações intelectuais tão complexas.Tanto a observação como os estudos experimentais indicam-nos quea criança só muito mais tarde apreende a relação entre o signo e osignificado, ou a utilização funcional dos signos; tal encontra-semuito para lá do alcance de uma criança com dois anos. Alémdisso, as investigações experimentais sistemáticas mostraram que acompreensão da relação entre o signo e o significado e da transiçãopara o estádio em que a criança começa a operar com os signos,não resulta nunca de uma descoberta ou invenção repentinas.Stern acredita que a criança descobre o significado da linguagem deuma vez por todas, mas na realidade, trata-se de um processoextremamente complexo que tem a sua “História Natural” (isto é, assuas origens e as suas formas de transição aos mais primitivosníveis genéticos) e também a sua “História Cultural” (que tambémtem as suas séries de fases próprias, o seu próprio desenvolvimentoquantitativo, qualitativo e funcional, as suas próprias leis edinâmica).

Stern passa virtualmente por cima de todas as intrincadasvias que conduzem ao amadurecimento da função do signo; a suaconcepção do desenvolvimento lingüístico é extremamentesimplificada. A criança descobre repentinamente que o discurso temsignificado. Esta explicação da forma como a fala se tornasignificante, merece em verdade ser equiparada à teoria dainvenção deliberada da linguagem, à teoria racionalista do contratosocial e a outras teorias intelectualistas famosas. Todas elasdesprezam as realidades genéticas e não explicam realmente nada.

Também do ponto de vista dos fatos a teoria de Stern nãoagüenta o confronto. Wallon, Kotfka, Piaget, Delacroix e muitosoutros, nos seus estudos das crianças normais e K. Buehler no seuestudo dos surdos-mudos, descobriram:

(1) que a descoberta por parte da criança da ligação entre apalavra e o objeto não conduz imediatamente a uma consciênciaclara da relação simbólica entre o signo e o referente, característicado pensamento bem desenvolvido, que, durante um grande períodode tempo, a palavra surge à criança mais como um atributo ou umapropriedade do objeto do que como simples signo, que a criançaapreende a relação externa entre o objeto e a palavra antes deperceber a relação interna signo-referente;

(2) que a descoberta que a criança faz não é uma descobertasúbita, de que se possa definir o instante exato em que ocorre. Umasérie de longas e complicadas “transformações moleculares”

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conduzem a esse momento crítico do desenvolvimento.

No decurso dos vinte anos que decorreram desde apublicação, do seu estudo, ficou estabelecido sem sombra dedúvidas que a observação fundamental de Stern era correta; isto é,há realmente um momento de descoberta que para uma observaçãomais grosseira surge como que não reparada. O ponto de viragemdecisivo do desenvolvimento lingüístico, cultural e intelectual dacriança descoberto por Stern existe realmente — embora este autortenha laborado em erro, ao dar-lhe uma interpretaçãointelectualista. Stern assinala dois sintomas objetivos da ocorrênciadessa transformação crítica: o surgimento de perguntas sobre osnomes dos objetos e as expansões rápidas, e por saltos, dovocabulário — daí resultantes; ambos estes sintomas são deprimeira importância para o desenvolvimento da linguagem.

A ativa procura de palavras por parte da criança, que nãotem equivalente no desenvolvimento da “linguagem” nos animais,indica uma nova fase na evolução lingüística. É por essa altura queo “grandioso sistema de signos da linguagem” (para citar Pavlov)emerge para a criança da massa dos outros signos e assume umpapel específico no comportamento. Um dos grandes feitos de Sternfoi ter assente este fato sobre os firmes alicerces dos sintomasobjetivos, o que torna a lacuna da sua explicação ainda maisflagrante.

Ao contrário das outras duas raízes da linguagem, aexpressiva e a comunicativa, cujo desenvolvimento é seguido desdeos animais mais inferiores até aos antropóides e ao homem, atendência intencional surge do nada: não tem História nemconseqüências. Segundo Stern, é fundamental, primordial; brotaespontaneamente e “duma vez por todas”. É esta propensão quetorna a criança capaz de descobrir a função da linguagem por meiode uma operação puramente lógica.

É certo que Stern não diz isto assim por estas palavras. Eleentrou em polêmica não só com os proponentes das teoriasanti-intelectualistas que vão buscar as raízes e os inícios dalinguagem das crianças a processos exclusivamente afetivos-conativos, mas também com aqueles psicólogos que sobrestimam acapacidade de pensamento lógico das crianças. Stern não repeteeste erro, mas comete outro ainda mais grave ao consignar aointelecto uma posição quase metafísica de primazia, como origem,como causa primeira indecomponível da fala significante.Paradoxalmente este tipo de intelectualismo mostra-separticularmente inadequado ao estudo do processo intelectual, queà primeira vista deveria ser a sua esfera de aplicação legítima. Por

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exemplo poderíamos esperar que o fato de se encarar a significaçãoda fala como resultado de uma operação intelectual trouxesse muitaluz à relação entre a linguagem e o pensamento. Na realidade, talabordagem, ao estipular como estipula um intelecto já formado,bloqueia toda e qualquer investigação sobre as interações dialéticasimplícitas do pensamento e da linguagem. O tratamento que Sterndá a este aspecto fundamental do problema da linguagemencontra-se repleto de incoerências e é a parte mais débil do seulivro. (38)(38).

Pontos tão importantes como o discurso interior, a suaemergência e a sua conexão com o pensamento mal são afloradospor Stern. Este passa em revista os resultados das investigações dePiaget apenas na sua análise das conversas infantis, descurando asfunções, a estrutura e o significado genético dessa forma delinguagem Stern é totalmente incapaz de relacionar as complexastransformações funcionais e estruturais do pensamento com odesenvolvimento da linguagem.

Mesmo quando Stern nos dá uma correta caracterização deum fenômeno genético, o enquadramento teórico da sua obraimpede-o de tirar as conclusões óbvias das suas própriasobservações. Este fato torna-se mais evidente do que nunca na suaincapacidade para ver as implicações da sua “tradução” dosprimeiros termos infantis na linguagem dos adultos. A interpretaçãoque dá às primeiras palavras das crianças é a pedra de toque detodas as teorias da linguagem infantil. É o ponto focal em que todasas principais tendências das modernas teorias da linguagem seencontram e entrecruzam. Poder-se-ia dizer, sem exagero que todaa estrutura de uma teoria é determinada pela tradução que se dádas primeiras palavras de crianças.

Stern acha que tais palavras não devem ser interpretadasnem dum ponto de vista puramente intelectualista, nem do pontode vista puramente afeto-conativo. Reconhece os méritos deMeumann ao opor-se à teoria intelectualista, segundo a qual asprimeiras palavras de uma criança designam realmente objetosenquanto objetos (28)(28). Não compartilha contudo, o pressupostode Meumann que afirma que as primeiras palavras são simplesexpressões das emoções e dos desejos das crianças. Através daanálise das situações em que elas surgem prova bastanteconclusivamente que estas palavras convêm também uma certaorientação em direção a um objeto e que esta “referência objetiva”ou função apontadora freqüentemente “predomina sobre o tommoderadamente emocional” (38)(38, p. 180).

Eis como Stern traduz as primeiras palavras:

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O significado da palavra infantil mamã traduzida para alinguagem desenvolvida, não é a palavra “mãe”, mas antes umafrase do gênero “Mamã, chega aqui”, ou “Mamã, dá-me”, ou “Mamã,põe-me em cima da cadeira”, ou “Mama, ajuda-me” (38)(38, p. 180).

No entanto, quando observamos as crianças em ação,torna-se óbvio que não é só a palavra mamã que significa, digamos,“Mamã, põe-me em cima da cadeira”, mas o conjunto docomportamento da criança nesse momento (o seu gesto deaproximação em direção à cadeira, tentando agarrar-se a ela, etc.Aqui, a orientação “afetiva-conotativa” em direção a um objeto (parautilizar os termos de Meumann) é ainda inseparável da tendênciaintencional da fala: ambas as tendências constituem ainda um todohomogêneo e a única tradução correta de mamã, ou de quaisqueroutras palavras primitivas é o gesto de apontar que as acompanha.A princípio a palavra é um substituto convencional para o gesto;surge muito antes da crucial “descoberta da linguagem” pelacriança e antes que esta seja capaz de executar operações lógicas.O próprio Stern admite o papel mediador dos gestos,. especialmentedo apontar, no estabelecimento do significado das primeiraspalavras. A conclusão inevitável seria a de que o apontar é de fato.uma atividade percursora da “tendência intencional”. No entanto.Stern escusa-se a ir buscar as raízes da história genética dessatendência. Para ele, esta não resulta de uma evolução a partir daorientação afetiva para o objeto no ato de apontar (gesto ouprimeiras palavras) — surge do nada e é responsável pelonascimento do significado.

A mesma abordagem anti-genética caracteriza também otratamento que Stern dá a todas as outras questões importantesanalisadas no seu vigoroso livro, tais como o desenvolvimento doconceito e os principais estádios do desenvolvimento da linguagem edo pensamento. Nem podia ser de outra maneira: esta abordagem éconseqüência direta das premissas filosóficas do personalismo, osistema desenvolvido por Stern.

Stern tenta erguer-se acima dos extremos tanto do empirismocomo do inatismo. Contrapõe o seu próprio ponto de vista dodesenvolvimento da linguagem, por um lado, ao de Wundt, queconsidera a linguagem da criança como um produto do meioambiente, sendo a participação da criança inteiramente passiva e,por outro lado, ao ponto de vista dos psicólogos para os quais odiscurso primário (as onomatopéias ou o chamado papaguear dosbebês) foi inventado por uma geração infindável de bebês. Sterntem cuidado em não descurar o papel desempenhado pelos jogos deimitação no desenvolvimento da linguagem, ou o papel da atividadeespontânea da criança, aplicando a estas questões seu conceito de

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“convergência”: a conquista da linguagem pela criança dá-seatravés de uma constante interação de disposições internas quepreparam a criança para a linguagem e para as condições externas— isto é, a linguagem das pessoas que a cercam -, que lhe fornecemquer o estímulo quer a matéria prima para a realização dessasdisposições,

Para Stern, a convergência é um princípio geral, aplicável àexplicação de todos os comportamentos humanos. Este écertamente mais um dos casos em que podemos dizer com Goethe:As palavras da ciência ocultam a sua substância”. A sonora palavraconvergência, que exprime aqui um princípio metodológicoperfeitamente inatacável (quer dizer, o princípio metodológico deque o desenvolvimento deveria ser estudado como um processodeterminado pela interação entre o organismo e o meio ambiente),liberta na realidade o autor da tarefa de analisar os fatores sociais eambientais no desenvolvimento da linguagem. É certo que Sternafirma realmente com bastante ênfase que o meio ambiente social éo fator principal do desenvolvimento da linguagem, mas, narealidade, limita o seu papel ao de um fato que se limita a acelerarou retardar o desenvolvimento, que obedece às suas próprias leisimanentes. Como tentamos mostrar, utilizando o seu exemplo decomo o significado emerge na linguagem, Stern sobrestimou osfatores orgânicos internos.

Esta deformação é resultado direto do quadro personalista dereferência. Para Stern, a “pessoa” é uma entidade psicologicamenteindependente que, “apesar da multiplicidade das suas funçõesparciais, manifesta uma atividade unitária, orientada para umobjetivo” (39)(39, p. 16). Esta concepção “monadista”, idealista, dapessoa individual, leva a uma teoria que vê a linguagem como algoradicado numa teleologia pessoal — e daí o intelectualismo e opendor anti-genético do ponto de vista de Stern sobre os problemasdo desenvolvimento lingüístico, o personalismo de Stern, ao ignorarcomo ignora a faceta social do comportamento lingüístico, conduz aabsurdos patentes. A sua concepção metafísica da personalidade,ao fazer decorrer todos os processos de desenvolvimento de umateleologia pessoal, inverte completamente as relações genéticasreais. Em vez de uma história evolutiva da própria personalidade,em que a linguagem desempenha um papel que se encontra longede ser secundário, temos a teoria metafísica segundo a qual apersonalidade gera a linguagem a partir dos fins para que tende asua própria natureza essencial.

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4. As raízes genéticas dopensamento e da linguagem

I

O fato mais importante posto a nu pelo estudo genético dopensamento e a linguagem é o fato de a relação entre ambas passarpor muitas alterações; os progressos no pensamento e nalinguagem não seguem trajetórias paralelas: as suas curvas dedesenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se ecorrer lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabampor se afastar de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimentofilogenético como ao ontogenético.

Nos animais, o pensamento e a linguagem têm varias raízes edesenvolvem-se segundo diferentes trajetórias de desenvolvimento.Este fato é confirmado pelos estudos recentes de Koehler, Yerkes eoutros sobre os macacos. Koehler provou que o surgimento de umintelecto embrionário nos animais — isto é, o aparecimento depensamento no sentido próprio do termo — não se encontra demaneira nenhuma relacionado com a linguagem. As “invenções” dosmacacos na execução e utilização de instrumentos, ou no capítuloda descoberta de caminhos indiretos para a solução dedeterminados problemas, embora sejam sem sombra de dúvidapensamento embrionário, pertencem a uma fase pré-linguística dodesenvolvimento do pensamento.

Na opinião de Koehler, as suas investigações mostram que ochimpanzé evidencia um esboço de comportamento intelectual domesmo gênero e do mesmo tipo que o do homem. São a ausência delinguagem. “esse instrumento técnico auxiliar infinitamentevalioso”, e a pobreza das imagens, “esse material intelectualextremamente importante”, que explicam a tremenda diferençaexistente entre os antropóides e os homens mais primitivos “evedam ao chimpanzé o mais pequeno desenvolvimento cultural”(18)(18, pp 191-192).

Vigora considerável desacordo entre os psicólogos dasdiferentes escolas acerca da interpretação teórica das descobertasde Koehler. A massa de literatura crítica a que estes estudos deramorigem representa uma grande variedade de pontos de vista o quetorna tanto mais significativo o ninguém contestar os fatos ou a

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dedução que mais particularmente nos interessa: a independênciaentre as ações do chimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boamente, mesmo pelos psicólogos que, como Thorndyke e Borovski.nada vêem nas ações do chimpanzé para lá dos mecanismosinstintuais e da aprendizagem por “tentativas e erros”, “nada mais,salvo o já conhecido processo de formação de hábitos” (4)(4, p. 179).e pelos introspeccionistas que fogem a rebaixar o intelecto ao níveldo comportamento dos macacos, mesmo dos mais avançados.Buehler diz com muito acerto que as ações dos chimpanzés não têmqualquer relação com a linguagem; e que, no homem, o pensamentomobilizado pela utilização dos utensílios (Werkzeugdenken) tambémtem uma relação muito mais tênue com a linguagem e com osconceitos do que qualquer outra forma de pensamento.

A questão seria bem simples se os macacos não tivessemnenhum rudimento de linguagem, não tivessem nada que seassemelhasse à linguagem. Ora, acontece que encontramos nochimpanzé uma linguagem relativamente bem desenvolvida, que,sob certos aspectos — sobretudo foneticamente — não deixa de sersemelhante à humana. Esta linguagem tem uma característicanotável: a de funcionar independentemente do intelecto. Koehler,que estudou os chimpanzés durante muitos anos na Estação deAntropóides das Ilhas Canárias, ensina-nos que as suas expressõesfonéticas denotam apenas desejos e estados subjetivos; sãoexpressões de afetos e nunca um sinal de algo objetivo” (19)(19, p.27). Mas a fonética dos chimpanzés e a humana têm tantas coisasem comum que podemos confiantemente presumir que a ausênciade um discurso do gênero humano não se deve a nenhuma causaperiférica.

O chimpanzé é um animal extremamente gregário e respondede forma muito intensa à presença doutros exemplares da suaespécie. Koehler descreve formas altamente diversificadas de“comunicação lingüística” entre chimpanzés. Em primeiro lugar vemo seu vasto repertório de expressões afetivas: jogo facial, gestos,vocalização; a seguir encontram-se os movimentos que exprimem asemoções sociais; gestos de saudação, etc. Os macacos são capazestanto de “compreender mutuamente os seus gestos” como tambémde “exprimir”, por meio de gestos, desejos que envolvem outrosanimais. Habitualmente, um chimpanzé executará o início de umaação que pretende que outro animal execute — por exemplo,empurrá-lo-á e executará os movimentos iniciais de marcha para“convidar” o outro a segui-lo, ou agarrará o ar quando pretende queo outro lhe dê uma banana. Todos estes gestos são gestosrelacionados diretamente com a própria ação. Koehler mencionaque o experimentador é levado a utilizar meios de comunicaçãoelementares essencialmente semelhantes para transmitir aos

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macacos aquilo que espera deles.

Estas observações confirmam sobejamente a opinião deWundt segundo a qual os gestos de apontar que constituem oprimeiro estádio do desenvolvimento da linguagem humana nãoaparecem ainda nos animais, mas alguns gestos dos macacos sãouma forma de transição entre o movimento de preensão e o deapontar. (56)(56, p. 219). Consideramos que este gesto de transiçãoé um passo muito importante da expressão afetiva não adulteradapara a linguagem objetiva.

Não há no entanto provas factuais de que os animais tenhamatingido o estádio da representação objetiva de nenhuma das suasatividades. Os chimpanzés de Koehler brincavam com barrocolorido, começando por “pintar., com os lábios e a língua epassando mais tarde para pincéis a sério; mas estes animais — quenormalmente transferem para as suas brincadeiras o uso dosutensílios e outros comportamentos aprendidos em atividades“sérias” (isto é, em experiências) e, vice-versa — nuncaevidenciaram a mínima intenção de representar o quer que fossenos seus desenhos nem o mais leve indício de atribuírem o maispequeno significado aos seus produtos. Afirma Buehler:

Certos fatos põe-nos de sobreaviso no sentido de nãosobrestimarmos as ações dos chimpanzés. Sabemos que nuncanenhum viajante confundiu um gorila ou um chimpanzé com umhomem, e que nunca ninguém observou entre eles nenhum dosutensílios ou métodos tradicionais que, nos homens, emboravariando com as tribos, indicam a transmissão de geração emgeração das descobertas já feitas, nenhuma das arranhadelas queexecutam na areia ou no barro poderia ser confundida comdesenhos que representassem alguma coisa ou com decoraçõestraçadas durante a atividade lúdica; não há linguagemrepresentacional, isto é, não há sons equivalentes a nomes. Todoeste conjunto de circunstâncias deve ter alguma causa intrínseca(7)(7, p. 20).

De entre os observadores modernos dos macacos, Yerkes deveser o único que explica a sua carência de linguagem por outrasrazões que não sejam as “causas intrínsecas”. A sua investigaçãosobre o cérebro do orangotango produziram dados muitosemelhantes aos de Koehler; mas levou as suas conclusões maislonge, pois admite uma “inteleção mais elevada” nos orangotangos— ao nível é certo de uma criança de três anos, pelo menos (57)(57,p. 132).

Yerkes deduz esta intelecção com base em semelhanças

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superficiais entre o comportamento dos homens e o dosantropóides: não apresenta nenhuma prova objetiva de que osorangotangos resolvam os problemas socorrendo-se da intelecção,isto é, de “imagens”, ou de que sigam e discirnam os estímulos. Noestudo dos animais superiores, pode-se usar a analogia com bonsresultados, dentro dos limites da objetividade, mas basear umahipótese em analogias não será com certeza um procedimentocientífico correto.

Koehler, por outro lado, foi mais além: não se limitou autilizar a simples analogia na sua investigação da natureza dosprocessos intelectuais dos chimpanzés. Mostrou também, por meiode uma análise experimental rigorosa, que o êxito das ações dosanimais dependia do fato de eles poderem ver todos os elementos dasituação simultaneamente — este fator era decisivo para o seucomportamento. Se o pau que utilizavam para chegar a um frutocolocado para lá das barras fosse ligeiramente deslocado de formaque o utensílio (o pau) e o objetivo (o fruto) deixassem de ser visíveisnum só relance, a resolução do problema tornar-se-ia muito difícil,freqüentemente impossível até (especialmente durante as primeirasexperiências). Os macacos tinham aprendido a alongar os seusutensílios, inserindo um pau no orifício praticado noutro pau. Sepor acaso os dois paus se cruzassem nas suas mãos formando umX, tornavam-se incapazes de realizar a operação familiar muitopraticada de alongar o utensílio. Poderiam citar-se dúzias deexemplos destes extraídos das experiências de Koehler.

Koehler considera que a presença real de uma situaçãobastante simples é condição indispensável em qualquerinvestigação do intelecto dos chimpanzés, condição sem a qual oseu intelecto não funcionará: conclui daqui que as limitaçõesintrínsecas da “imagética” (ou “ideação”) são uma característicafundamental do comportamento intelectual do chimpanzé. Seaceitarmos as teses de Koehler, então a hipótese de Yerkes parecemais do que duvidosa.

Em conexão com estes recentes estudos experimentais eobservações do intelecto e da linguagem dos chimpanzés, Yerkesapresenta novo material sobre o seu desenvolvimento lingüístico euma nova e engenhosa teoria que pretende explicar a sua carênciade verdadeira linguagem. “As reações orais”, afirma ele, “são muitofreqüentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas a linguagem nosentido humano não existe” (58)(58, p. 53). 0 seu aparelho vocal étão desenvolvido e funciona tão bem como o do homem. O que lhefalta é a tendência para imitar sons. A sua mímica está quasetotalmente dependente dos estímulos óticos; eles copiam ações, masnão sons. São incapazes de fazer o que o papagaio faz com tanto

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êxito.

Se as tendências imitativas do papagaio se combinassem como calibre intelectual das do chimpanzé, este último possuiria semdúvida linguagem, já que tem um mecanismo vocal semelhante aodo homem, assim como um intelecto de tipo e nível que lhepermitem utilizar os sons tendo em vista o discurso oral (58)(58, p.53).

Nas suas experiências, Yerkes aplicou quatro métodos paraensinar os chimpanzés a falar. Nenhum deles obteve êxito. Taisfracassos, em princípio, nunca resolvem um problema, como éclaro. Neste caso, estamos ainda para saber se é ou não possívelensinar os chimpanzés a falar. Não é raro que a culpa caiba aoexperimentador. Koehler diz que se os anteriores estudos nãoconseguiram mostrar que os chimpanzés não têm intelecto, tal nãose deve ao fato de os chimpanzés não o possuírem, mas devido àinadequação dos métodos, à ignorância dos graus de complexidadeno interior dos quais o intelecto do chimpanzé pode manifestar-se,à ignorância da sua dependência, à ignorância do fato que talmanifestação depende da existência de uma situação visual global.“As investigações sobre a capacidade intelectual — troçava Koehler— “testam tanto o investigador como o investigado” (18)(18, p. 191).

Sem terem resolvido a questão em princípio, as experiênciasde Yerkes mostraram mais uma vez que os antropóides não têmnada que se pareça com a linguagem humana, nem sequer emembrião. Se relacionarmos isto com o que já sabemos de outrasfontes, podemos presumir que os macacos são provavelmenteincapazes de acederem a uma verdadeira linguagem.

Possuindo eles o aparelho vocal indispensável e a gama desons necessários porque razão são incapazes de falar? Yerkesatribui isso à ausência da capacidade de imitação, ou à suadebilidade. Pode ter sido esta a causa dos resultados negativos dassuas experiências, mas provavelmente ele não terá razão ao vernessa carência a causa fundamental da ausência de linguagem nosmacacos. Embora ele a dê como ponto assente, esta última tese énegada por tudo o que conhecemos do intelecto do chimpanzé.

Yerkes dispunha de um excelente meio para comprovar a suatese, meio esse que por qualquer razão não utilizou e que muitogostaríamos de poder aplicar se disso tivéssemos possibilidadematerial: excluiríamos o fator auditivo ao adestrarmos asqualidades lingüísticas dos animais. A linguagem não dependenecessariamente do som. Há por exemplo a linguagem de sinais dossurdos-mudos e a leitura dos lábios, que é também interpretação de

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movimentos. Nas linguagens dos povos primitivos, os gestos sãoutilizados em paralelo com o som e desempenham um papel decerta importância. Em princípio, a linguagem não depende danatureza do material que emprega. Se é verdade que os chimpanzéstêm o intelecto necessário para adquirirem algo análogo àlinguagem humana, e o único problema reside no fato de não seremcapazes de imitação vocal, então deveriam ser capazes de dominarnas experiências um qualquer tipo de gestos convencionais, cujafunção psicológica seria precisamente a mesma dos sonsconvencionais. Como o próprio Yerkes conjectura, poder-se-iatreinar os chimpanzés a utilizarem gestos de mão, por exemplo, emsubstituição dos sons. O meio de expressão não está em causa; oque importa é o uso funcional dos signos, de quaisquer signos quepossam desempenhar um papel correspondente ao da linguagemhumana.

Este método ainda não foi posto à prova e não podemos ter acerteza dos resultados que daria, mas tudo o que conhecemos docomportamento dos chimpanzés, incluindo os dados de Yerkes. nosobriga a arredar a esperança de que pudessem aprender alinguagem funcional. Nunca ouvimos falar de que houvessequalquer indício de utilização sua dos signos. A única coisa quesabemos com certeza objetiva e, não que possuem “ideação”, masque, em determinadas circunstâncias são capazes de executarutensílios muito simples e recorrer a “desvios” e que estascircunstâncias exigem uma situação global perfeitamente visível eclara. Em todos os problemas em que não se verificava a existênciade estruturas visuais imediatamente perceptíveis, e que secentravam num outro tipo de estrutura diferente, — um tipo deestrutura mecânica, por exemplo — os chimpanzés abandonavam ocomportamento de tipo intuitivo para adotarem muito pura esimplesmente o método de tentativas e erros.

As condições necessárias para o funcionamento intelectualdos macacos serão as mesmas condições exigidas para a descobertada linguagem, ou o uso funcional dos signos? De maneiranenhuma. A descoberta da linguagem não pode depender em casonenhum de uma configuração ótica. Exige uma operação intelectualde tipo diferente e não temos quaisquer indicações que nos digamque tal operação se encontra ao alcance dos chimpanzés e a maiorparte dos investigadores admitem a hipótese de que eles carecem detal capacidade: esta carência pode ser a principal diferença entre ointelecto dos chimpanzés e o dos homens.

Koehler introduziu o termo Einsicht (intuição) para designaras operações intelectuais acessíveis aos chimpanzés. A escolha dotermo não é acidental. Kafka assinalou que Koehler parece

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significar com ele a ação de ver no sentido literal do termo e só porextensão a “visão” genérica de relações, ou a compreensão poroposição à ação cega (17)(17, p 130).

Deve dizer-se que Koehler nunca define Einsicht, nemexplicita a sua teoria. Na ausência de interpretações teóricas, otermo é algo ambíguo na sua aplicação: por vezes, designa ascaracterísticas específicas da própria operação, a estrutura dasações dos chimpanzés e por vezes o processo psicológico queprecede e prepara tais ações; como que um plano interno deoperações. Koehler não avança qualquer hipótese acerca domecanismo de reação intelectual, mas é claro que, funcione ointelecto como funcionar, e seja qual for a localização que lheatribuirmos, — nas próprias ações dos chimpanzés ou em qualquerprocesso preparatório interno (cerebral ou neuro-muscular) — atese mantém-se válida, a tese de que esta reação não é determinadapor traços de memória, mas pela situação tal como se apresentavisualmente. O chimpanzé desperdiçará até o melhor dosinstrumentos para determinado problema se não o vir ao mesmotempo ou quase ao mesmo tempo que o objetivo (i). Assim, a tomadaem consideração da Einsicht não altera em nada a nossa conclusãode que o chimpanzé, mesmo que possuísse as qualidades dopapagaio, seria com certeza sobremaneira incapaz de dominar alinguagem.

No entanto, como dissemos, o chimpanzé possui umalinguagem própria bastante rica. O colaborador de Yerkes, Learned,compilou um dicionário de trinta e dois elementos de discurso, ou“palavras”, que não só se assemelham foneticamente ao discursohumano, como possuem também certo significado, no sentido emque são suscitadas por certas situações ou objetos relacionadoscom o prazer ou o desprazer, ou que inspiram desejo, malícia oumedo (58)(58, p. 54). Estas “palavras” foram compiladas enquantoos chimpanzés aguardavam que os alimentassem, ou durante asrefeições na presença de humanos, ou enquanto os chimpanzésestavam sós. São reações vocais afetivas, mais ou menosdiferenciadas e, em certa medida, relacionadas, à maneira dosreflexos condicionados, com estímulos referentes à alimentação ou aoutras situações vitais quer dizer, era uma linguagem estritamenteemocional.

Relativamente a esta descrição da linguagem dos macacosgostaríamos de realçar três pontos: em primeiro lugar, acoincidência da produção dos sons com gestos afetivos,particularmente perceptíveis quando os chimpanzés se encontrammuito excitados, não se limita aos antropóides — pelo contrário, émuito vulgar nos animais dotados de voz. A linguagem humana teve

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certamente origem no mesmo tipo de reações vocais.

Em segundo lugar, os estados afetivos que suscitamabundantes reações vocais nos chimpanzés são desfavoráveis aofuncionamento do intelecto. Koehler menciona repetidamente que,nos chimpanzés, as reações emocionais, sobretudo as de grandeintensidade, obliteram qualquer operação intelectual simultânea.

Em terceiro lugar, dever-se-á sublinhar de novo que nosmacacos. a linguagem não tem por função exclusiva aliviar astensões emocionais. Tal como noutros animais e também nohomem, é também um meio de contato psicológico com os seussemelhantes Tanto nos chimpanzés de Yerkes e Learned, como nosmacacos observados por Koehler, esta função é inconfundível. Masnão se encontra relacionada com as reações intelectuais, isto é, como pensamento. Tem origem na emoção e faz claramente parte dosíndroma emocional total, parte essa, porém, que desempenha umafunção específica, tanto biológica como psicologicamente. Estámuito longe de constituir uma série de tentativas conscientes eintencionais para informar e influenciar os outros. Essencialmente éuma reação instintiva ou algo extremamente semelhante.

Dificilmente se porá em dúvida que, do ponto de vistabiológico, esta função da linguagem é uma das mais primitivas eque geneticamente tem algo a ver com os sinais visuais e oraisdados pelos chefes dos grupos animais. Num estudo recentementepublicado sobre a linguagem das abelhas, K. v. Frisch descrevecertas formas de comportamento muito interessantes e teoricamenteimportantes, que servem para o intercâmbio ou o contato (10) eque, sem sombra de dúvida, têm origem no instinto. Apesar dasdiferenças fenotípicas, estas manifestações comportamentais são noseu fundamental semelhantes ao intercâmbio lingüístico doschimpanzés. Esta similitude aponta mais uma vez paraindependência entre a “comunicação” dos chimpanzés e toda equalquer atividade intelectual.

Empreendemos esta análise de diversos estudos da linguageme do intelecto dos macacos para elucidarmos a relação entre opensamento e a linguagem no desenvolvimento filogenético destasfunções. Podemos agora resumir as nossas conclusões, que nosserão úteis para o prosseguimento da análise do problema:

(1) O pensamento e a linguagem têm raízes genéticasdiferentes.

(2) As duas funções desenvolvem-se segundo trajetóriasdiferentes e independentes.

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(3) Não há nenhuma relação nítida e constante entre elas.

(4) Os antropóides revelam um intelecto que, sob certosaspectos (a utilização embrionária dos instrumentos) é semelhanteao dos homens e uma linguagem também algo semelhante àhumana, mas em aspectos totalmente diferentes (o aspecto fonéticoda sua fala, a sua função de alívio emocional, os embriões de umafunção social).

(5) A estreita correspondência entre o pensamento e alinguagem, existente no homem, encontra-se praticamente ausentenos antropóides.

(6) Na filogenia do pensamento e da linguagem distingue-secom muita clareza uma fase pré-intelectual no desenvolvimento dalinguagem e uma fase pré-linguística no desenvolvimento dopensamento.

II

Ontogeneticamente, a relação entre a gênese do pensamentoe a da linguagem é muito mais intrincada e obscura; mas tambémaqui poderemos distinguir duas linhas de evolução distintas,resultantes de duas raízes genéticas diferentes.

A existência de uma fase pré-linguística do desenvolvimentodo pensamento na infância só recentemente foi corroborada porprovas objetivas. Aplicaram-se a crianças que ainda não tinhamaprendido a falar as mesmas experiências que Koehler levou a cabocom chimpanzés. O próprio Koehler havia já realizadoocasionalmente essas experiências com crianças com o objetivo deestabelecer comparações e Buehler empreendeu um estudosistemático das crianças com a mesma orientação. Os resultadosforam semelhantes para as crianças e os chimpanzés.

Sobre as ações das crianças, diz-nos Buehler:

eram exatamente como as dos chimpanzés, de tal forma estafase da vida das crianças poderia ser corretamente designada poridade chimpanzóide; na criança que estudamos correspondia aosdécimo primeiro e décimo segundo meses. É na idade chimpanzóideque ocorrem as primeiras invenções da criança — invenções muitoprimitivas, é certo, mas extremamente importantes para o seudesenvolvimento (7)(7, p. 46).

O que sobremaneira importa do ponto de vista teórico, tantonestas experiências, como nas dos chimpanzés, é a descoberta daindependência entre as reações intelectuais rudimentares e a

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linguagem. Notando isto, Buehler comenta:

Costumava-se dizer que a linguagem era o início dahominização (Menschwerden); talvez sim, mas antes da linguagem,há o pensamento implicado na utilização de utensílios, isto é, acompreensão das conexões mecânicas e a idealização de meiosmecânicos com fins mecânicos, ou, para ser ainda mais breve,antes de surgir a linguagem, a ação torna-se subjetivamentesignificativa — por outras palavras, torna-se conscientementefinalista (7)(7, p. 48).

As raízes pré-intelectuais da linguagem no desenvolvimentoda criança há muito que são conhecidas. O papaguear dascrianças, o seu choro e inclusivamente as suas primeiras palavrassão muito claramente estádios do desenvolvimento da linguagemque nada têm a ver com o desenvolvimento do pensamento. Tem-seencarado duma forma generalizada estas manifestações comoformas de comportamento predominantemente emocionais.Contudo, nem todas servem apenas a função de alívio de umatensão. Investigações recentes das primeiras formas decomportamento das crianças e das primeiras reações das crianças àvoz humana (efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo)mostraram que a função social da linguagem já é claramenteevidente durante o primeiro ano de vida, quer dizer, no estádiopré-intelectual do desenvolvimento da linguagem de criança.Observaram-se reações bem definidas à voz humana logo noterceiro mês de vida e a primeira reação especificamente social àvoz durante o segundo mês (5)(5, p. 124). Estas investigaçõestambém estabeleceram que as gargalhadas, os sons inarticulados,os movimentos etc., são meios de contato social logo durante osprimeiros meses da vida das crianças.

Assim, as duas funções da linguagem que observamos nodesenvolvimento filogenético já existem e são evidentes nas criançascom menos de um ano de idade.

Mas a mais importante descoberta é o fato de emdeterminado momento por alturas dos dois anos de idade, ascurvas de desenvolvimento do pensamento e da linguagem, atéentão separadas, se tocarem e fundirem, dando início a uma novaforma de comportamento. Foi Stern quem pela primeira vez e damelhor forma nos deu uma descrição deste momentosoacontecimento. Ele mostrou como a vontade de dominar alinguagem se segue à primeira compreensão difusa dos propósitosdesta, quando a criança “faz a maior descoberta da sua vida”, a deque “todas as coisas têm um nome” (40)(40, p. 108).

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Este momento crucial, quando a linguagem começa a servir ointelecto e os pensamentos começam a oralizar-se, é indicado pordois sintomas objetivos que não deixam lugar a dúvidas: (1)(1), asúbita e ativa curiosidade da criança pelas palavras, as suasperguntas acerca de todas as coisas novas (“o que é isto?”) e, (ii) oconseqüente enriquecimento do vocabulário que progride por saltose muito rapidamente.

Antes do ponto de viragem, a criança reconhece (como algunsanimais) um pequeno número de palavras que, tal como nocondicionamento, substituem objetos, pessoas, ações, estados,desejos. Nessa idade, a criança só conhece as palavras que lheforam transmitidas por outras pessoas. Agora a situação altera-se:a criança sente a necessidade das palavras e, por meio das suasperguntas, tenta ativamente aprender os signos relacionados comos objetos Parece ter descoberto a função simbólica das palavras. Alinguagem, que no estádio anterior era afetiva-conotativa entraagora no estádio intelectual. As trajetórias do desenvolvimento dalinguagem e do pensamento encontraram-se.

Neste momento, os problemas do pensamento e da linguagementrelaçam-se. Detenhamo-nos um pouco, examinemos o queacontece exatamente quando a criança faz a sua “grandedescoberta” e vejamos se a interpretação de Stern é correta.

Buehler e Koffka comparam ambos esta descoberta com asinvenções dos chimpanzés Segundo Koffka, uma vez descobertopela criança, o nome entra na estrutura do objeto, tal como o paupassa a fazer parte da situação de querer agarrar o fruto (20)(20, p.243).

Examinaremos a solidez desta analogia mais tarde, quandoanalisarmos as relações estruturais e funcionais entre opensamento e a linguagem. De momento, limitar-nos-emos a notarque “a grande descoberta das crianças” só se torna possível depoisde se ter atingido um nível de desenvolvimento do pensamento elinguagem relativamente elevado. Por outras palavras, a linguagemnão pode ser “descoberta” sem o pensamento.

Em resumo, devemos concluir que:

(1) No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e alinguagem têm raízes diferentes.

(2) No desenvolvimento lingüístico da criança, podemosestabelecer com toda a certeza uma fase pré-intelectual nodesenvolvimento lingüístico da criança — e no seu desenvolvimentointelectual podemos estabelecer uma fase pré-lingüística.

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3) A determinada altura estas duas trajetórias encontram-see, em conseqüência disso, o pensamento torna-se verbal e alinguagem racional.

III

Seja qual for a forma como abordemos o controversoproblema da relação entre o pensamento e a linguagem, teremossempre que tratar com certa exaustão do discurso interior. Este étão importante para a nossa atividade pensante que muitospsicólogos, entre os quais Watson, chegam a identificá-lo com opensamento — que consideram ser uma fala inibida e silenciosa.Mas a psicologia ainda não sabe como se dá a transição do discursoaberto para o discurso interior, nem com que idade ocorre, por queprocesso e por que razão se realiza.

Watson diz que não sabemos em que ponto dodesenvolvimento da sua organização lingüística, as criançaspassam do discurso aberto para o murmúrio e depois para odiscurso interior, porque esse problema só foi estudado de formaacidental. As nossas investigações levam-nos a crer que Watson põeo problema de uma forma incorreta. Não há razões válidas paracrer que o discurso interior se desenvolve duma forma mecânicaqualquer, por meio de uma gradual diminuição da audibilidade dafala (murmúrio).

É verdade que Watson menciona outra possibilidade: “talvezas três formas se desenvolvam simultaneamente” — afirma ele(54)(54, p. 322). Esta hipótese parece-nos tão infundada do pontode vista genético como a seqüência: fala em voz alta, murmúrio,discurso interior. Este “talvez” não é escorado por nenhum dadoobjetivo. Contra ele testemunham as profundas dessemelhançasentre o discurso externo e o discurso interior, reconhecidas portodos os psicólogos, inclusive Watson. Não há qualquer fundamentopara presumir que os dois processos, tão diferentes funcionalmente(adaptação social, num caso, e adaptação pessoal, no outro) eestruturalmente (com efeito, a economia extrema, elíptica, dodiscurso interior transforma a configuração do discurso até quase otornar irreconhecível), possam ser geneticamente paralelos econvergentes. Também não nos parece plausível (para voltarmos àtese principal de Watson) que se encontrem relacionadasmutuamente pela fala murmurada, a qual, nem pela sua estruturanem pela sua função, pode ser considerada um estádio intermédioentre o discurso exterior e o discurso interior. Encontra-se a meiocaminho apenas fenotipicamente e não genotipicamente.

Os nossos estudos do murmúrio nos bebês comprovam isto

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completamente. Descobrimos que, estruturalmente, quase não hádiferença nenhuma entre o murmurar e a fala em voz alta;funcionalmente, o murmúrio difere profundamente do discursointerior e não manifesta qualquer tendência a assumir ascaracterísticas deste último. Ao demais, não se desenvolveespontaneamente até à idade escolar, embora possa ser induzidomuito precocemente: com efeito, sob o efeito da pressão social, umacriança de três anos pode baixar a voz ou murmurar, durantecurtos períodos de tempo e com grande esforço. Este é o únicoponto que parece escorar a concepção de Watson.

Embora discordemos da tese de Watson, acreditamos que esteencontrou a abordagem metodológica correta: para resolver oproblema, teremos que procurar o elo intermédio entre o discursoaberto e o discurso interior.

Inclinamo-nos para ver esse elo no discurso egocêntrico dacriança descrito por Piaget, o qual, para lá do seu papel deacompanhamento da atividade da criança e as suas funçõesrepressiva e de alívio das tensões, facilmente assume uma funçãoplaneadora, isto é, se transforma em pensamento propriamente ditomuito natural e facilmente.

Se a nossa hipótese se verificar correta, teremos que concluirque a fala é interiorizada psicologicamente antes de serinteriorizada fisicamente. O discurso egocêntrico é discurso interiorpelas suas funções; é discurso em vias de se interiorizar,intimamente associado com o ordenamento do comportamento dacriança, já parcialmente incompreensível para os outros, mas quemantém ainda uma forma bem explícita, patente, na sua forma eque não mostra quaisquer tendências para se transformar emmurmúrio ou qualquer outra forma de discurso semi-silencioso.

Devíamos também ter então resposta para o problema darazão por que o discurso se interioriza. Interioriza-se porque a suafunção se altera. O seu desenvolvimento deveria ter também trêsestádios: não os que Watson julgava, mas os seguintes: discursoexterno, discurso egocêntrico e discurso interior. Passaríamostambém a dispor de um método excelente para estudar o discursointerior “ao vivo”, por assim dizer, enquanto as suas peculiaridadesfuncionais e estruturais estão ainda a formar-se; seria um métodoobjetivo, pois que estas peculiaridades surgem quando o discurso éainda audível, isto é, acessível à observação e à mediação.

As nossas investigações demonstram que o desenvolvimentoda linguagem segue o mesmo curso e obedece às mesmas leis que odesenvolvimento de todas as outras operações mentais que

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envolvem a utilização de signos, como sejam, a atividade decontagem e a memorização mnemônica. Verificamos que estasoperações se desenvolvem geralmente em quatro estádios. Oprimeiro é o estádio primitivo ou natural, que corresponde aodiscurso pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal, altura em queestas operações aparecem na sua forma original, tal como sedesenvolveram no estádio primitivo do comportamento.

Vem a seguir o estádio que poderíamos chamar “da psicologiaingênua”, por analogia com aquilo que se designa por “físicaingênua” — a experiência que a criança tem das propriedadesfísicas do seu próprio corpo e dos objetos que a cercam e aaplicação desta experiência ao uso dos instrumentos: o primeiroexercício da inteligência prática infantil que desabrocha.

Esta fase é muito claramente definida no desenvolvimentolingüístico da criança. Manifesta-se pela utilização correta dasformas e estruturas gramaticais antes de a criança tercompreendido as operações lógicas que representam. A criançapode operar com proposições subordinadas, com palavras como,porque, se, quando e mas, muito antes de dominar realmente asrelações causais, condicionais ou temporais. Domina a sintaxe dalinguagem antes de dominar a sintaxe do pensamento. Os estudosde Piaget provaram que a gramática se desenvolve antes da lógica eque a criança aprende relativamente tarde as operações mentaisque correspondem à forma verbal que já utiliza há muito.

Com a gradual acumulação da experiência psicológicaingênua, a criança entra numa terceira fase, que se distingue porsinais externos por operações externas que são utilizadas comoauxiliares para a solução dos problemas internos. É a fase em que acriança conta pelos dedos, recorre a auxiliares mnemônicos, etc. Nodesenvolvimento lingüístico caracteriza-se pelo discurso egocêntrico.

Chamamos ao quarto estádio, estádio de “crescimentointerno”. As operações externas interiorizam-se e sofrem umaprofunda transformação durante esse processo. A criança começa acontar de cabeça, a utilizar a “memória lógica”, quer dizer, a operarcom as relações intrínsecas e a utilizar signos. No desenvolvimentolingüístico é o último estádio do discurso interior, silencioso.Continua a haver uma interação constante entre as operaçõesexternas e internas e cada uma das formas converte-se incansável eincessantemente na outra e vice-versa. Pela sua forma, o discursointerior pode aproximar-se muito do discurso externo ou tornar-seaté exatamente igual a este último, quando serve de preparaçãopara o discurso externo — por exemplo, quando se está a pensaruma conferência que se vai proferir. Não existe qualquer divisão

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nítida entre o comportamento interno e o comportamento externo ecada um deles influencia o outro.

Ao considerarmos a função do discurso interior nos adultosapós se ter completado o desenvolvimento, temos de perguntar anós próprios se, no seu caso, os processos lingüísticos e intelectivostêm uma relação necessária, se podemos passar um traço de igualentre ambos. Também aqui, como no caso dos animais, a resposta énegativa.

Esquematicamente, podemos imaginar o pensamento e alinguagem como dois círculos que se intersectam Nas regiõessobrepostas, o pensamento e a linguagem coincidem, produzindoassim o que se chama pensamento verbal. O pensamento verbal,porém, não engloba de maneira nenhuma todas as formas depensamento ou todas as formas de linguagem. Há uma vasta áreade pensamento que não apresenta nenhuma relação direta com alinguagem. O pensamento manifestado na utilização de utensíliosencontra-se incluído nesta área, tal como acontece com opensamento prático em geral. Além disso, as investigações levadasa cabo pelos psicólogos da escola de Wuerzburg demonstraram queo pensamento pode funcionar sem quaisquer imagens verbais oumovimentos lingüísticos detectáveis por auto-observação. Asexperiências mais recentes mostram também que não hácorrespondência direta entre o discurso interior e a língua ou osmovimentos da laringe do indivíduo sujeito à observação.

Não há também quaisquer razões psicológicas para fazerdecorrer todas as formas de atividade lingüística do pensamento.Nenhum processo de pensamento estará com certeza a sermobilizado quando um indivíduo recita em silêncio um poemaaprendido de cor ou quando repete mentalmente uma, frase que lhefoi fornecida com propósitos experimentais — apesar do que possapensar Watson. Por último, há a linguagem lírica suscitada pelaemoção. Embora tenha todas as marcas auditivas da fala,dificilmente poderá ser classificada como atividade intelectual nosentido próprio do termo.

Somos portanto forçados a concluir que a fusão entre opensamento e a linguagem, tanto nos adultos como nas crianças éum fenômeno limitado a uma área circunscrita. O pensamento nãoverbal e a linguagem não intelectual não participam desta fusão esó indiretamente são afetados pelos processos do pensamentoverbal.

IV

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Podemos agora resumir os resultados da nossa análise.Começamos por tentar seguir a genealogia do pensamento e dalinguagem até às suas raízes, utilizando os dados da psicologiacomparativa. Estes dados são insuficientes para detectarmos astrajetórias de desenvolvimento do pensamento e da linguagempré-humanos com um grau mínimo de certeza. A questãofundamental, a de saber-se se os antropóides possuem ou não omesmo tipo de intelecto do que o homem, é ainda controversa.Koehler responde afirmativamente, outros respondem pela negativa.Mas seja qual for a solução que as futuras investigações derem aeste problema, uma coisa é já clara: no mundo animal, o percursopara um intelecto de tipo humano não é igual à trajetória para umalinguagem de tipo humano; o pensamento e a linguagem nãobrotam da mesma raiz.

Nem aqueles que negariam a existência de um intelecto noschimpanzés podem negar que os macacos possuem algo que seaproxima do intelecto, que o tipo mais elevado de formação dehábitos neles patente é um intelecto embrionário. A utilização deutensílios prefigura o comportamento humano. Para os marxistas,as descobertas de Koehler não constituem surpresa Marx afirmouhá muito (27) que a utilização e a criação de instrumentos detrabalho embora estejam presentes nos animais de formaembrionária, são características específicas do processo de trabalhohumano A tese de que as raízes do intelecto humano se estendemao reino animal e tem origem nele foi há muito admitida pelomarxismo vemo-la ser elaborada por Plekhanov (34)(34, p. 138).

Engels escreveu que os homens e os animais compartilhamtodas as formas de atividade intelectual; só o seu nível dedesenvolvimento difere (9): os animais são capazes de raciocinar aum nível elementar, de analisar (o partir de uma noz é um inicio deanálise) e de fazer experiências, quando confrontados comdeterminados problemas, ou quando se lhes depara uma situaçãodifícil. Alguns, como o papagaio, por exemplo, não só são capazesde aprender a falar, como podem até aplicar palavras com sentido,duma forma restrita: para pedir alguma coisa, usará palavras pelasquais receberá uma recompensa; quando é irritado deixará escaparas mais seletas invectivas do seu vocabulário.

Escusado será dizer que Engels não acredita os animais coma capacidade de pensarem ou de falarem ao nível do homem, mas,neste momento, não precisamos de aprofundar muito o significadoexato da sua afirmação. Por agora, apenas desejamos confirmarque não há boas razões para negar a existência, nos animais, deuma inteligência e uma linguagem embrionárias do mesmo tipo dados homens que, se desenvolvem, também como nos homens,

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segundo trajetórias separadas. A capacidade de expressão oral dosanimais não nos dá nenhuma indicação sobre o seudesenvolvimento mental.

Vamos agora resumir os dados pertinentes fornecidos porestudos recentes sobre as crianças. Vemos que nas criançastambém, as raízes e curso seguido pelo desenvolvimento do intelectodiferem dos da linguagem — e que, inicialmente, o pensamento énão-verbal e a linguagem é não-intelectual. Stern afirma que, emdeterminado ponto, as duas linhas de desenvolvimento se cruzam,tornando-se a linguagem racional e o pensamento verbal. A criança“descobre” que “cada coisa tem o seu nome e começa a perguntarcomo se chamam todos os objetos.

Alguns psicólogos (8) não estão de acordo com Stern,discordando que esta primeira fase de perguntas tenha ocorrênciauniversal e que seja necessariamente sintoma de qualquerdescoberta momentosa. Koffka adota uma posição intermédia entreStern e os seus opositores. Como Buehler, ele realça a analogiaentre a invenção de utensílios pelos chimpanzés e a descoberta pelacriança da função nominativa da linguagem mas, segundo ele, estadescoberta não é de tão vasto alcance como Stern supunha.Segundo o ponto de vista de Koffka, a palavra passa a fazer parteda estrutura do objeto no mesmo pé que todas as outras partessuas constituintes. Durante um certo período de vida da criança, apalavra para esta não é um signo, mas apenas uma daspropriedades do objeto que tem de ser fornecida para que aestrutura fique completa. Como Buehler apontou, cada novo objetoapresenta uma nova situação problemática para a criança e estaresolve o problema uniformemente nomeando o objeto. Quando lhefalta a palavra para o novo objeto pergunta-a aos adultos (7)(7, p.54).

Julgamos que esta concepção se encontra mais próxima daverdade Os dados existentes sobre a linguagem das crianças(escorados pelos dados antropológicos) sugerem-nos com grandeforça que durante um longo período de tempo a palavra é para acriança uma propriedade, mais do que o símbolo do objeto, que acriança apreende a estrutura-palavra-objeto mais cedo do que aestrutura simbólica interna. Escolhemos esta hipótese intermédiaentre as várias que se nos oferecem porque, tendo em conta a leidas probabilidades, achamos difícil de acreditar que uma criançaentre os dezoito meses e os dois anos de idade seja capaz dedescobrir a função simbólica da linguagem. Tal descoberta surgemais tarde e não duma forma repentina, mas através de uma sériede transformações “moleculares”. A hipótese que preferimos está emconformidade com a configuração geral da trajetória da dominação

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dos sons que nas anteriores seções descrevemos. Mesmo nascrianças em idade escolar o uso funcional de um novo signo éprecedido por um período de aprendizagem durante o qual acriança vai dominando progressivamente a estrutura externa dosigno. De forma correspondente, só ao operar com as palavras, quecomeçou por conceber como uma propriedade dos objetos, a criançadescobre e consolida a sua função como signo.

Deste modo, a tese de Stern da “descoberta” sofre limitações ecarece de uma reavaliação. Contudo, o seu princípio básicopermanece válido: é evidente que, sob o ponto de vista ontogenético,o pensamento e o discurso se desenvolvem ao longo de linhasseparadas e que num certo ponto essas linhas se encontram. Esteimportante fato está hoje definitivamente provado, sem detrimentode clarificação, através de estudos posteriores, dos detalhes em queos psicólogos ainda estão em desacordo: se esse encontro se dánum só ponto ou em vários pontos, como uma súbita descoberta ouapós longa preparação através do uso prático e da lenta trocafuncional, e se ocorre aos dois anos de idade ou na idade escolar.

Podemos agora sumariar a nossa investigação do discursointerior. Também aqui consideramos várias hipóteses e chegamos àconclusão que o discurso interior se desenvolve através de umalenta acumulação de mudanças funcionais e estruturais, que sedesliga do discurso externo da criança simultaneamente com adiferenciação das funções social e egocêntrica do discurso, efinalmente que as estruturas do discurso dominadas pela criançase transformam nas estruturas básicas do seu pensamento.

Isto conduz-nos a um outro incontestável fato de grandeimportância: o desenvolvimento do pensamento é determinado pelalinguagem, ou seja, pelos instrumentos lingüísticos do pensamentoe pela experiência sociocultural da criança. Fundamentalmente, odesenvolvimento da lógica na criança, como o demonstraram osestudos de Piaget, é função direta do seu discurso socializado. Ocrescimento intelectual da criança depende do seu domínio dosmeios sociais de pensamento, ou seja, da linguagem.

Podemos agora formular as principais conclusões a retirardas nossas análises. Se compararmos o desenvolvimento primitivodo discurso e do intelecto — que, como vimos, se desenvolvem aolongo de linhas separadas quer nos animais quer nas crianças detenra idade — com o desenvolvimento do discurso interior e dopensamento verbal, temos de concluir que o último estádio não éuma simples continuação do primeiro. A natureza do própriodesenvolvimento transforma-se, do biológico no sócio-histórico. Opensamento verbal não é uma forma natural de comportamento,

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inata, mas é determinado pelo processo histórico-cultural e tempropriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nasformas naturais do pensamento e do discurso. Desde que,admitamos o caráter histórico do pensamento verbal, teremos que oconsiderar sujeito a todas as premissas do materialismo histórico,que são válidas para qualquer fenômeno histórico na sociedadehumana. Só pode concluir-se que a este nível o desenvolvimento docomportamento será essencialmente governado pelas leis gerais dodesenvolvimento histórico da sociedade humana.

O problema do pensamento e linguagem estende-se, portanto,para além dos limites da ciência natural e torna-se no problemafocal da psicologia humana histórica, ou seja, da psicologia social.Consequentemente, ele deve ser colocado de um modo diferente.Este segundo problema exposto pelo estudo do pensamento dodiscurso será objeto de investigação separada.

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5. Gênese e estudo experimentalda formação dos conceitos

I

Até muito recentemente, o estudioso da gênese dos conceitosencontrava-se inferiorizado pela carência de um métodoexperimental que lhe permitisse observar a dinâmica interna doprocesso.

Os métodos tradicionais de estudo dos conceitossubdividem-se em dois grupos. O chamado método da definição,com as suas variantes, é típico do primeiro grupo de métodos. Éusado para investigar os conceitos já formados na criança atravésda definição verbal dos seus conteúdos. No entanto, este métodotem dois importantes inconvenientes que o tornam inadequado parainvestigar o processo em profundidade. Em primeiro lugar, é ummétodo que se exerce sobre o produto acabado da gênese dosconceitos, descurando a dinâmica e o desenvolvimento do próprioprocesso. Em vez de registar o pensamento da criança, limita-sefreqüentemente a suscitar uma reprodução verbal do conhecimentoverbal, de definições acabadas fornecidas a partir do exterior. Podeser um teste do conhecimento e da experiência da criança ou do seudesenvolvimento lingüístico, mais do que estudo de um processointelectual no verdadeiro sentido da palavra. Em segundo lugar,este método, ao centrar-se na palavra, não consegue entrar emlinha de conta com a percepção e a elaboração do material sensorialque dão origem aos conceitos. O material sensorial e a palavra sãomateriais indispensáveis na formação do conceito O estudoseparado da palavra coloca o processo num plano puramente verbalque não é característico do pensamento da criança. A relação entreo conceito e a realidade permanece por explicar; o significado deuma determinada palavra é abordada através de outra palavra eesta operação, por muito que nos permita descobrir, nunca nosdará um quadro dos conceitos da criança mas sim um registo dasrelações existentes no seu cérebro entre famílias de palavraspreviamente formadas.

O segundo grupo engloba os métodos utilizados no estudo daabstração. Estes métodos incidem sobre os processos psíquicos queconduzem à formação dos conceitos. Exige-se da criança quedescubra um certo número de traços comuns numa série de

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impressões discretas, abstraindo esses traços comuns de todos osoutros traços com que se encontram fundidos na percepção. Osmétodos deste tipo descuram o papel desempenhado pelo símbolo (apalavra) na gênese do conceito: um quadro parcial substitui aestrutura complexa do processo total por um processo parcial.

Assim, ambos os métodos parciais tradicionais separam apalavra do material da percepção e operam com uma, quer com ooutro, tomados em separado. A criação de um novo método quepermite a combinação de ambas as partes foi um grande passo emfrente. O novo método introduz no quadro experimental palavrassem sentido que a princípio não significam nada para a criançasujeita à experiência. Introduz também conceitos artificiaisrelacionando cada palavra sem sentido com uma combinaçãoparticular dos atributos dos objetos para a qual não exista nenhumconceito nem palavra. Por exemplo, nas experiências de Ach (1), apalavra gatsun vai a pouco e pouco significando “grande e pesado”;a palavra fal, pequeno e leve; Este método pode ser utilizado tantocom crianças como com adultos, visto que para resolver o problemao indivíduo observado não precisa ter já qualquer experiência ouconhecimento prévio. O método também entra em linha de contacom o fato de um conceito não ser uma formação isolada,ossificada, imutável mas parte ativa de um processo intelectual,constantemente mobilizada ao serviço da comunicação, doconhecimento e da resolução de problemas. O novo método centra ainvestigação sobre as condições funcionais da gênese dos conceitos.

Rimat levou a cabo um estudo cuidadosamente preparadocom adolescentes, utilizando uma variante deste método. Aconclusão principal a que chegou foi a de que a verdadeira gênesedos conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e sócomeça com o dealbar da puberdade. Escreve este autor:

Estabelecemos terminantemente que só ao findar o décimosegundo ano da vida das crianças se manifesta um acentuado esúbito aumento da capacidade de formar sem ajuda, conceitosobjetivos generalizados... O pensamento através dos conceitos,emancipado da percepção, traz à criança exigências que excedemas suas possibilidades mentais para as idades inferiores a dozeanos (35)(35, p. 112)

As investigações de Ach e Rimat provam a falsidade daconcepção segundo a qual a gênese dos conceitos se baseia nasconexões associativas. Ach demonstrou que a existência deassociações entre os símbolos verbais e os objetos, por maisnumerosas que sejam, não é, em princípio, por si própria suficientepara a formação dos conceitos. As suas descobertas experimentais

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não confirmam a velha idéia que pretende que um conceito sedesenvolve pelo máximo fortalecimento das conexões associativasenvolvendo os atributos comuns a todos — um grupo de objetos e oenfraquecimento das associações — estabelecidas entre os atributosem que esses mesmos objetos diferem.

As experiências de Ach demonstraram que a gênese dosconceitos é um processo criativo e não mecânico e passivo; que umconceito surge e toma forma no decurso de uma complexa operaçãoorientada para a resolução do mesmo problema, e que a simplespresença das condições externas que favorecem uma relacionaçãomecânica entre a palavra e o objeto não basta para produzir umconceito. Segundo este ponto de vista, o fator decisivo para a gênesedos conceitos é a chamada tendência determinante

Antes de Ach, a psicologia postulava a existência de duastendências básicas que regeriam o fluxo das nossas idéias: areprodução através das associações e a persistência. A primeiratendência, traz-nos à memória as imagens que em experiênciaspassadas se encontravam ligadas à imagem que, em determinadaaltura, nos ocupa o espírito. A segunda é a tendência de cadaimagem para regressar e voltar a penetrar no fluxo de imagens. Nassuas primeiras investigações, Ach demonstrou que estas duastendências não conseguiam explicar os atos de pensamento quepossuem uma finalidade conscientemente orientada. O estudo dosconceitos por parte de Ach mostrou que nenhum conceito novo seformava sem o efeito regulador da tendência determinante geradapela tarefa experimental.

Segundo o esquema de Ach, a gênese dos conceitos não segueo modelo de uma cadeia associativa em que um elo solicita osegundo: é um processo orientado para um objetivo, uma série deoperações que servem como passos intermédios em direção a umobjetivo final. A memorização das palavras e a sua relacionaçãocom determinados objetos, por si só, não conduz à formação doconceito: para que o processo comece terá de surgir um problemaque não possa ser resolvido doutra forma, a não ser pela formaçãode novos conceitos.

Esta caracterização do processo de formação de novosconceitos é no entanto insuficiente. A criança pode compreender eempreender a tarefa experimental muito antes de atingir os dozeanos de idade, e no entanto ser incapaz de formar novos conceitosaté ter atingido essa idade. O estudo do próprio Ach demonstrouque as crianças não diferem dos adolescentes e dos adultos pelaforma como compreendem os objetivos, mas pela forma como o seuespírito opera para atingir esses objetivos. O pormenorizado estudo

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experimental de D. Usnadze sobre a gênese dos conceitos em idadepré-escolar (44)(44, 45,) também demonstrou que, nessa idade, ascrianças abordam os problemas exatamente da mesma maneira queum adulto quando opera com conceitos, mas que o caminho queseguem para os resolver é inteiramente diferente. Só podemosconcluir que os fatores responsáveis pela diferença essencial entre opensamento conceptual do adulto e as formas de pensamentocaracterísticas da criança de tenra idade não são nem a tendênciadeterminante, nem o objetivo prosseguido, mas outros fatores queos investigadores não inquiriram.

Usnadze assinala que, embora os conceitos completamenteformados só surjam relativamente tarde, as crianças começam autilizar palavras socorrendo-se delas para estabelecerem umterreno de compreensão mútua com os adultos e entre si Com basenisto, conclui que as palavras se apoderam da função dos conceitose podem servir como meios de comunicação, muito antes deatingirem o nível dos conceitos característico do pensamentocompletamente desenvolvido.

Vêmo-nos confrontados, portanto, com o seguinte estado decoisas: uma criança é capaz de apreender um problema e visualizaro objetivo que tal problema levanta, num estádio muito precoce doseu desenvolvimento. Como as tarefas levantadas pela compreensãoe a comunicação são essencialmente semelhantes para a criança eo adulto, a criança desenvolve equivalentes funcionais dos conceitosnuma idade extremamente precoce. mas as formas de pensamentoque utiliza ao defrontar-se com estas tarefas diferemprofundamente das que o adulto emprega pela sua composição,pela sua estrutura e pelo seu modo de operação. O principalproblema suscitado pelo processo de formação do conceito — ou porqualquer atividade finalista — é o problema dos meios pelos quaistal operação é levada a cabo, por exemplo, não se consegue explicarcabalmente o trabalho, se se disser que este é suscitado pelasnecessidades humanas. Temos que entrar também em linha deconta com os instrumentos utilizados e a mobilização dos meiosadequados e necessários para o realizar. Para explicar as formasmais elevadas do comportamento humano, temos que pôr a nu osmeios através dos quais o homem aprende a organizar e dirigir oseu comportamento. Todas as funções psíquicas de grau maiselevado são processos mediados e os signos são os meiosfundamentais utilizados para os dominar e orientar. O signomediador é incorporado na sua estrutura como parte indispensávela bem dizer fulcral do processo total. Na gênese do conceito, essesigno é a palavra, que a princípio desempenha o papel de meio deformação de um conceito, transformando-se mais tarde em símbolo.Nas experiências de Ach não se dá a esta função da palavra a

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atenção suficiente. O seu estudo, embora tenha o mérito dedesacreditar, de uma vez por todas, o ponto de vista mecanicistasobre a formação dos conceitos, não pôs a nu a verdadeira naturezado processo — nem geneticamente, nem funcionalmente, nemestruturalmente. Enveredou por uma direção errada com a suainterpretação puramente teleológica, que eqüivale a afirmar que é opróprio objetivo que cria a atividade apropriada através datendência determinante — isto é, de que o problema traz consigo asua resolução.

II

Para estudar o processo de gênese do conceito nas suasdiferentes fases de desenvolvimento, utilizamos o método elaboradopor um dos nossos colaboradores, L. S. Sakharov (36). Poderíamosdescrevê-lo como o método do duplo estímulo: apresentam-se aoindivíduo observado duas séries de estímulos, uma das quais comoobjeto da sua atividade e a outra como signos que servem paraorganizar esta última. (2)

Sob muitos e importantes aspectos, este modo de procederinverte as experiências de Ach sobre a formação dos conceitos. Achcomeça por dar ao indivíduo observado um período deaprendizagem ou de prática; pode manipular os objetos e ler aspalavras sem sentido neles escritas antes de se lhe dizer qual atarefa que se lhe pede. Nas nossas experiências, põe-se o problemaao indivíduo sujeito a observação logo de início; o problema não sealtera durante toda a experiência mas as chaves para a suaresolução são introduzidas pouco a pouco, de cada vez que acriança volta um bloco. Decidimo-nos por esta seqüência porquejulgamos que, para que o processo se desencadeie, é necessário pôra criança perante o problema. A introdução gradual dos meiosnecessários à resolução do problema permite-nos estudar oprocesso total da formação dos conceitos em todas as suas fasesdinâmicas. A formação do conceito é seguida pela sua transferênciapara outros objetos; o indivíduo observado e induzido a utilizar osnovos termos para falar dos objetos diferentes dos blocosexperimentais e a definir o seu significado duma formageneralizada.

III

Na série de investigações sobre o processo de gênese dosconceitos iniciados no nosso laboratório por Sakharov ecompletados por nós e pelos nossos colaboradores Kotelova ePachlovskaia (48)(49)(48, 49, p. 70) estudaram-se mais de cemindivíduos — crianças, adolescentes e adultos, incluindo alguns

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com perturbações das atividades lingüísticas e intelectuais.

Os principais resultados do nosso estudo podem serresumidos como se segue: o desenvolvimento dos processos queacabam por gerar a formação dos conceitos começam durante asfases mais precoces da infância, mas as funções intelectuais que,em determinadas combinações formam a base psicológica daformação dos conceitos amadurecem, tomam forma edesenvolvem-se apenas durante a puberdade. Antes dessa idadeencontramos certas formações intelectuais que desempenhamfunções semelhantes aos dos conceitos genuínos que mais tardeaparecem. Relativamente à sua composição, estrutura efuncionamento estes equivalentes funcionais dos conceitos têm umarelação com os verdadeiros conceitos que é semelhante à relaçãoentre o embrião e o organismo completamente desenvolvido.Identificar ambos seria ignorar o lento processo de desenvolvimentoentre a fase inicial e a fase final.

A formação dos conceitos é resultado de uma complexaatividade em que todas as funções intelectuais fundamentaisparticipam. No entanto, este processo não pode ser reduzido àassociação, à tendência, à imagética, à inferência ou às tendênciasdeterminantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas nãosão suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, comomeios pelos quais dirigimos as nossas operações mentais,controlamos o seu curso e o canalizamos para a solução doproblema com que nos defrontamos.

A presença de um problema que exige a formação deconceitos não pode por si só ser considerada como causa doprocesso, embora as tarefas que a sociedade coloca aos jovensquando estes entram no mundo cultural, profissional e cívico dosadultos sejam um importante fator para a emergência dopensamento conceptual. Se o meio ambiente não coloca osadolescentes perante tais tarefas, se não lhes fizer novas exigênciase não estimular o seu intelecto, obrigando-os a defrontarem-se comuma seqüência de novos objetivos, o seu pensamento nãoconseguirá atingir os estádios de desenvolvimento mais elevados, ouatingi-lo-á apenas com grande atraso.

A tarefa cultura, por si só, porém, não explicas o mecanismode desenvolvimento que tem por resultado a formação do conceito.O investigador deve intentar compreender as relações intrínsecasentre as tarefas externas e a dinâmica do desenvolvimento econsiderar a gênese dos conceitos como função do crescimentocultural e social global da criança, que não afeta apenas o conteúdomas também o seu modo de pensar A nova utilização significativa, o

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seu emprego como meio para a formação dos conceitos é a causapsicológica imediata da transformação radical no processointelectual que ocorre no limiar da adolescência.

Nesta idade não aparece nenhuma função elementar novaque seja essencialmente diferente das que já existem: todas asfunções existentes passam a ser incorporadas numa novaestrutura, formam uma nova síntese, passam a fazer parte de umnovo todo complexo; as leis que regem este todo determinamtambém o destino de cada sua parcela individual. O recurso àspalavras para aprender a orientar os processos mentais pessoais eparte integrante do processo de formação dos conceitos. Acapacidade para regular as nossas ações pessoais utilizando meiosauxiliares só atinge o seu completo desenvolvimento naadolescência.

IV

Da nossa investigação resultou que a acessão à formação dosconceitos se opera em três fases distintas, cada uma das quais sesubdivide em vários estádios. Nesta seção e nas seis que se seguem,descreveremos estas fases e as suas subdivisões à medida queaparecem quando as estudamos pelo método do “duplo estímulo”.

Os bebês dão o primeiro passo para a formação dos conceitosquando congregam um certo número de objetos num acervodesorganizado ou “monte” para resolverem um problema que nósadultos resolveríamos geralmente formando um novo conceito. O“monte”, constituído por um conjunto de objetos dessemelhantesreunidos sem qualquer base. revela um alargamento difuso nãoorientado, do significado do signo (palavra artificial) a objetosaparentemente não relacionados uns com os outros, ligados entre siocasionalmente na percepção da criança.

Neste estádio, o significado das palavras para a criança nãodenota mais do que uma conglomeração sincrética e vaga dosobjetos individuais que duma forma ou doutra coalesceram numaimagem no seu espírito. Dada a sua origem sincrética, essa imagemé altamente instável.

Na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende afundir os elementos mais diversos numa só imagem não articuladassob a influência mais intensa de uma impressão ocasional.Claparède deu o nome de sincretismo a esta conhecidacaracterística do pensamento infantil; Blonski chamou-lhe“coerência incoerente” do pensamento infantil. Descrevemos noutraocasião o fenômeno como resultado de uma tendência para

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compensar a pobreza das relações objetivas bem apreendidas pormeio de uma super-abundância de relacionações subjetivas e paraconfundir estas reações subjetivas com as ligações objetivas entreas coisas. Estas relações sincréticas e os “montes” de objetos:congregados em torno do significado de uma palavra, refletemtambém os laços objetivos, na medida em que estes últimoscoincidirem com as relações existentes entre as percepções ouimpressões da criança. Por conseguinte, muitas palavras têmparcialmente o mesmo significado para o adulto e a criança,especialmente as palavras que se referem a objetos concretos quefazem parte do meio ambiente habitual da criança. Os significadosque os adultos e as crianças atribuem a determinada palavra comoque “coincidem” muitas vezes no mesmo objeto concreto e isto bastapara assegurar a compreensão mútua.

A primeira fase da formação dos conceitos que acabamos dedescrever subsume três estádios distintos. Foi-nos possívelobservá-los pormenorizadamente no quadro do estudoexperimental.

O primeiro estádio na formação dos conjuntos sincréticos querepresentam para a criança o significado de determinada palavraartificial é a manifestação do estádio das aproximações sucessivas(de “tentativas e erros”) no desenvolvimento do pensamento. Ogrupo é criado ao acaso e a adjunção de cada objeto não é mais doque uma simples tentativa ou hipótese, o objeto é imediatamentesubstituído por outro, mal se verifica que a hipótese é errada, isto é,quando o experimentador volta o objeto e mostra que este tem umnome diferente,

Durante o estádio que se segue, a composição do grupo égrandemente determinada pela posição espacial dos objetosexperimentados, isto é, por uma organização puramente sincréticado campo visual da criança. A imagem ou grupo sincréticosformam-se como resultado da contiguidade no espaço ou no tempodos elementos isolados ou pelo fato de a percepção imediata dacriança os levar a uma relação mais complexa.

Durante o terceiro estádio da primeira fase da formação dosconceitos a imagem sincrética repousa numa base mais complexa: écomposta de elementos retirados de diferentes grupos ou “montes”já anteriormente formados pela criança da forma que acima sedescreveu. Estes elementos sujeitos a uma nova combinação nãotêm qualquer relação intrínseca entre si, de forma que a novaformação possui a mesma “coerência incoerente” que os primeirosconjuntos. A única diferença reside no fato de que ao tentar darsignificado a um novo nome a criança já consegue seguir uma

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operação a dois tempos, mas esta operação mais elaboradapermanece sincrética e não produz uma ordem mais elevada do quea simples reunião de “montes”.

V

A segunda fase importante na via da gênese do conceitoengloba muitas variações de um tipo de pensamento quedesignaremos por “pensamento por complexos”. Num complexo, osobjetos individuais isolados encontram-se reunidos no cérebro dacriança não só pelas suas impressões subjetivas, mas também porrelações realmente existentes entre esses objetos. Isto é um novopasso em frente, uma progressão para um nível muito superior.

Quando atinge esse nível a criança já superou parcialmente oseu egocentrismo. Já não confunde as relações entre as suasimpressões com relações entre coisas — passo decisivo paraabandonar o sincretismo e se aproximar do pensamento objetivo. Opensamento por meio de complexos já é um pensamento coerente eobjetivo, embora não reflita as relações objetivas da mesma formaque o pensamento conceptual.

No pensamento dos adultos persistem certos resíduos dopensamento por meio de complexos. Os nomes de família são talvezo melhor exemplo disto. Todo o nome de família, (“Petrov”, porexemplo) subsume o indivíduo duma maneira que se assemelhaestreitamente ao modo de funcionamento dos complexos infantis. Acriança que atingiu esse estádio de desenvolvimento como quepensa em termos de nomes de família; quando começa a organizaro universo dos objetos isolados, fá-lo agrupando-os em famíliasseparadas, mutuamente relacionadas.

Num complexo, as ligações entre os seus componentes sãomais concretas e factuais do que abstratas e lógicas; do mesmomodo, também não classificamos uma pessoa na família Petrov porhaver qualquer relação lógica entre essa pessoa e os outrosmembros portadores do nome. São os fatos que ditam a resposta.

As ligações factuais que subjazem aos complexos sãodescobertas através da experiência. Por conseguinte, um complexoé, acima de tudo, e principalmente, um agrupamento concreto deobjetos ligados por nexos factuais. Como um complexo não éformado no plano do pensamento lógico abstrato, os nexos que ogeram, bem assim como os nexos que ajuda a criar, carecem deunidade lógica; podem ser de muitos e diferentes tipos. Todo equalquer nexo existente pode levar à criação de um complexo. Éessa a principal diferença entre um complexo e um conceito.

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Enquanto os conceitos agrupam os objetos em função de umatributo, as ligações que unem os elementos de um complexo com otodo e entre si podem ser tão diversas quanto os contatos e asrelações existentes na realidade entre os elementos.

Na nossa investigação observamos cinco tipos fundamentaisde complexos que se sucediam uns aos outros durante este estádiode desenvolvimento.

Chamamos ao primeiro tipo de complexo o tipo associativo.Pode basear-se em todo e qualquer nexo que a criança note entre osobjetos da amostra e os objetos de alguns outros blocos. Na nossaexperiência o objeto-amostra, o que fora dado em primeiro lugar àcriança com o nome à vista, forma o núcleo do grupo a serconstruído. Na construção de um complexo associativo, a criançapode acrescentar um bloco ao objeto de partida por ter a mesma corque este, juntando a seguir outro porque é semelhante ao núcleopela sua forma e dimensão ou por qualquer outro atributo que lhechame a atenção. Qualquer conexão entre o objeto do núcleo eoutro qualquer objeto basta para que a criança inclua esse objetono grupo e o designe pelo “nome de família”. A conexão entre onúcleo e o outro objeto não tem que ser um traço comum, como porexemplo, a mesma cor ou forma; uma semelhança ou um contraste,ou uma proximidade no espaço podem também servir paraestabelecer a ligação.

Para a criança dessa idade a palavra deixa de ser o nomepróprio do objeto singular; torna-se o nome de família de um grupode objetos relacionados entre si por muitas e variadas formas,tantas e tão variadas como as relações entre as famílias humanas.

VI

O pensamento por complexos do segundo tipo consiste emcombinar os objetos ou as impressões concretas que estes deixamno espírito da criança em grupos que se assemelham muitoestreitamente a coleções. Os objetos são agrupados com base emqualquer traço por que defiram, complementando-se, assim,mutuamente.

Nas nossas experiências, a criança tomava objetos quediferiam da amostra pela cor, pela forma ou o tamanho, ou poroutra qualquer característica. Não pegava nelas ao acaso;escolhia-os porque contrastavam com o atributo da amostra quetomara como base do agrupamento e complementava esse atributo.O resultado disto era uma coleção das cores e formas presentes nomaterial da experiência, por exemplo, um grupo de blocos de

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diferentes cores.

O que guia a criança na construção da coleção era aassociação por contraste e não a associação por semelhança. Noentanto esta forma de pensar combinava-se por vezes com a formaassociativa propriamente dita, atrás descrita, produzindo umacoleção baseada em princípios mistos. A criança não conseguemanter-se fiel durante toda a experiência ao princípio queoriginalmente aceitara para base da coleção. Insensivelmente passaa considerar uma característica diferente, de forma que o grupo quedaqui resulta se torna uma coleção mista, de cores e turmas, porexemplo.

Este longo e persistente estádio de desenvolvimento dopensamento da criança radica na sua experiência, na qual verificaque coleções de coisas complementares formam por vezes umconjunto ou um todo. A experiência ensina à criança certas formasde agrupamento funcional: a chávena, o pires e a colher; um talherconstituído por um garfo, uma faca, uma colher e um prato; oconjunto de roupas que veste. Tudo isto são modelos de conjuntoscomplexos naturais. Até os adultos, quando falam dos pratos oudas roupas, habitualmente estão a pensar em conjuntos de objetosconcretos mais do que em conceitos generalizados.

Recapitulando, a imagem sincrética que leva à formação de“montes” baseia-se em nexos vagos e subjetivos; o complexoassociativo fundamenta-se nas semelhanças existentes ou outrasligações necessárias entre as coisas; o conjunto complexo, baseia-senas relações entre os objetos observadas através da experiênciaprática. Poderíamos dizer que o conjunto baseado nos complexos éum agrupamento de objetos baseado na sua participação na mesmaoperação prática — da sua cooperação funcional.

VII

Após o estádio de pensamento que opera por complexos, háque colocar necessariamente o complexo em cadeia — umaadjunção dinâmica e seqüencial de ligações isoladas numa única,sendo o significado transmitido de um elo para o outro. Porexemplo, se a amostra experimental é um triângulo amarelo, acriança poderia por exemplo, pegar em alguns blocos triangularesaté a sua atenção ser atraída por, digamos, pela cor azul do blocoque a determinada altura acabara de acrescentar ao conjunto;passaria a selecionar blocos azuis sem atender à forma —angulosos, circulares, semicirculares. Isto, por seu turno, bastapara voltar a alterar o critério; esquecendo-se da cor, a criançapassa a escolher blocos redondos. O atributo decisivo varia

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constantemente durante todo o processo. O tipo de nexos ou aforma como cada elo da cadeia se articula com o que o precede e oque se lhe segue não apresentam coerência nenhuma. A amostrainicial não tem importância fulcral. Cada elo, uma vez incluído numcomplexo em cadeia, é tão importante como o primeiro e podetornar-se um ímã para uma série de outros objetos.

A formação de cadeias demonstra flagrantemente a naturezafactual concreta e perceptiva do pensamento por complexos. Umobjeto que entrou num complexo devido a um dos seus atributos,não entra nele como portador desse atributo, mas como elementoisolado com todos os seus atributos. A criança não abstrai o traçoisolado do todo restante, nem lhe confere um papel especial comoacontece com os conceitos. Nos complexos a organizaçãohierárquica está ausente: todos os atributos são funcionalmenteequivalentes. A amostra pode ser completamente esquecida quandose forma uma ligação entre dois objetos diferentes. Estes objetospodem não ter nada em comum com alguns dos outros elementos e,no entanto, fazerem parte da mesma cadeia por força decompartilharem um atributo com outro dos elementos.

Por conseguinte, o complexo em cadeia pode ser consideradocomo a forma mais pura do pensamento por meio dos complexos.Ao contrário do complexo associativo, cujos elementos, no fim decontas, se encontram interligados por meio de um elemento — onúcleo do complexo — o complexo em cadeia não tem núcleo, hárelações entre elementos isolados, mas nada mais.

Um complexo não se eleva acima dos seus elementos comoacontece com o conceito; funde-se com os objetos concretos que oconstituem. Esta fusão do geral com o particular, entre o complexoe os seus elementos, esta amálgama psíquica, como Werner lhechamava, é a característica distintiva de todo o pensamento porcomplexos — e do complexo em cadeia, muito em particular.

VIII

Como o complexo em cadeia é factualmente inseparável dogrupo de objetos concretos que o formam, adquire amiúde umaqualidade vaga e flutuante O tipo e a natureza das ligações podemmudar de elo para elo imperceptivelmente quase. Muitas vezes, umasemelhança muito remota basta para criar uma ligação entre doiselos da cadeia. Por vezes os atributos são consideradossemelhantes, não devido a uma semelhança genuína mas devido auma vaga impressão de que têm alguma coisa em comum. Isto levaao quarto tipo de complexo observado nas nossas experiências.Poderíamos designá-lo por complexo difuso.

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O complexo difuso e marcado pela fluidez do próprio atributoque une os seus elementos individuais. Formam-se grupos deobjetos ou imagens perceptualmente concretos por meio de ligaçõesdifusas ou indeterminadas. Por exemplo, uma das crianças dasnossas experiências escolheria indiferentemente para associar a umtriângulo, trapézios ou triângulos, pois aqueles lhe faziam lembrartriângulos com os vértices cortados. Os trapézios conduzi-la-iamaos quadrados, os quadrados aos hexágonos, os hexágonos aossemicírculos e estes por fim aos círculos. A cor, como base para aseleção, é igualmente flutuante e variável. Os objetos amarelospodem ser seguidos por objetos verdes; a seguir o verde pode mudarpara azul e o azul para o preto.

Os complexos resultantes deste tipo de pensamento são tãoindefinidos que podem não ter limites. Tal qual uma tribo bíblicaque aspira a multiplicar-se até ser mais numerosa do que asestrelas do céu ou as areias do mar, também um complexo difusono espírito de uma criança é uma espécie de família que tempoderes de expansão ilimitados por adjunção sucessiva de mais emais membros ao grupo original.

As generalizações da criança nas áreas não sensoriais e nãopráticas do seu pensamento que não podem ser facilmenteverificáveis através da percepção ou da ação são os equivalentes navida real dos complexos difusos observados nas experiências. É bemsabido que a criança é capaz de transições surpreendentes, deespantosas generalizações e associações, quando o seu pensamentose aventura para lá das fronteiras do pequeno mundo palpável dasua experiência. Fora desse mundo, a criança constróifreqüentemente surpreendentes complexos ilimitados pelauniversalidade das ligações que abarcam.

Estes complexos ilimitados, porém, são construídos segundoos mesmos princípios dos complexos concretos circunscritos. Emambos os tipos de complexos, a criança mantém-se dentro do limitedas ligações concretas entre as coisas, mas, na medida em que oprimeiro tipo de complexos compreende objetos que se encontramfora da esfera do seu conhecimento prático, estas ligaçõesbaseiam-se naturalmente em atributos difusos irreais e instáveis.

IX

Para completar o quadro do pensamento por meio decomplexos. temos que descrever um outro tipo de complexos — quecomo que constitui a ponte entre os complexos e o estádio final esuperior do desenvolvimento da gênese dos conceitos.

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Chamamos pseudo-conceitos a este tipo de complexos,porque a generalização formada no cérebro, emborafenotipicamente se assemelhe aos conceitos dos adultos épsicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito; nasua essência é ainda um complexo.

Na montagem experimental, uma criança produz um pseudo-conceito sempre que cerca uma amostra com objetos que poderiamtambém ser congregados com base num conceito abstrato Porexemplo, quando a amostra é constituída por um triângulo amareloe a criança pega em todos os triângulos do material experimental,poderia estar a ser orientada pela idéia geral ou conceito detriângulo. No entanto, a análise experimental mostra que narealidade a criança é orientada pela semelhança concreta visível ese limita a formar um complexo associativo confinado a um certonumero de ligações, um certo tipo de conexões sensoras. Embora osresultados sejam idênticos, o processo pelo qual são atingidos não éde maneira nenhuma o mesmo que no pensamento conceptual (iii)

Temos de deter-nos a observar este tipo de complexos comalgum pormenor. Ele desempenha um papel predominante nopensamento da criança na vida real e é importante como elo detransição entre o pensamento por complexos e a verdadeiraformação de conceitos.

X

Os pseudo-conceitos predominam sobre todos os outroscomplexos no pensamento da criança em idade pré-escolar, pelasimples razão de que, na vida real, os complexos que correspondemao significado das palavras não são espontaneamente desenvolvidospela criança: a trajetória seguida por um complexo no seudesenvolvimento encontra-se pré-determinada pelo significado quedeterminada palavra já possui na linguagem dos adultos.

Nas nossas experiências, a criança, liberta da influênciadiretriz das palavras familiares, era capaz de desenvolversignificados de palavras e de formar complexos de acordo com assuas preferências pessoais. Só através da experimentaçãopoderemos avaliar o tipo e a latitude desta atividade espontânea dedomínio da linguagem dos adultos. A atividade pessoal da criançanão se encontra de maneira nenhuma esterilizada, embora seencontre geralmente oculta da vista e canalizada para viascomplexas, por influência da linguagem dos adultos.

A linguagem do meio ambiente, como os seus significadosestáveis, permanentes, aponta o caminho que a generalização

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infantil seguirá. No entanto, constrangido como se encontra, opensamento da criança prossegue ao longo da via pré-determinada,segundo a forma peculiar ao seu nível de desenvolvimentointelectual. O adulto não pode transmitir à criança o seu modo depensar. Apenas lhe fornece o significado já acabado de umapalavra, em torno do qual a criança forma um complexo — comtodas as peculiaridades estruturais funcionais e genéticas dopensamento por meio de complexos, mesmo quando o produto doseu pensamento é na realidade idêntico, pelo seu conteúdo, a umageneralização que poderia ter sido obtida por meio do pensamentoconceptual. A semelhança externa entre o pseudo-conceito e oconceito real, que torna muito difícil pôr a nu este tipo decomplexos é um dos mais importantes obstáculos para a análisegenética do pensamento.

A equivalência funcional entre o complexo e o conceito, acoincidência que existe na prática entre o significado de muitaspalavras para o adulto e a criança de três anos, a possibilidade decompreensão mútua e a aparente similitude dos seus processosintelectivos levou a presumir-se erradamente que todas as formasde pensamento e de atividade intelectual dos adultos já seencontram presentes em embrião no pensamento das crianças eque na puberdade não se dá nenhuma transformação radical. Éfácil compreender a origem desta concepção errada. A criançaaprende muito precocemente uma grande quantidade de palavrasque significam a mesma coisa para ela e para o adulto. Acompreensão mútua entre o adulto e a criança cria a ilusão de queo ponto final do desenvolvimento do significado das palavrascoincide com o seu ponto de chegada, de que o pensamento éfornecido já acabado à criança desde início e de que não se dánenhum desenvolvimento.

A aquisição pela criança da linguagem dos adultos explica defato a consonância entre os complexos da primeira e os conceitosda segunda — por outras palavras, a emergência de conceitoscomplexos ou pseudo-conceitos. As nossas experiências, em que opensamento das crianças não é entaramelado pelo significado daspalavras demonstra que, se não existissem os pseudo-conceitos, oscomplexos da criança seguiriam uma evolução diferente dosconceitos dos adultos e a comunicação verbal entre as crianças e osadultos seria impossível.

O pseudo-conceito serve como elo de ligação entre opensamento por complexos e o pensamento por conceitos. É dualpor natureza, pois um complexo já traz em si a semente emgerminação de um conceito. O intercâmbio verbal com os adultostorna-se assim um poderoso fator de desenvolvimento dos conceitos

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infantis. A transição entre o pensamento por complexos e opensamento por conceitos passa despercebida à criança, porque osseus pseudo-conceitos já coincidem no seu conteúdo com osconceitos dos adultos.

Assim, a criança começa a operar com conceitos, a praticar opensamento conceptual antes de se aperceber ter plena consciênciada natureza destas operações. Esta situação genética muitopeculiar, não se limita ao processo de acessão aos conceitos; é aregra mais do que a exceção no desenvolvimento intelectual dascrianças.

XI

Vimos já com clareza que só a análise experimental nos podedar os vários estádios e formas do pensamento por complexos Estaanálise permite-nos pôr a nu, duma forma esquemática, averdadeira essência do processo genético de formação dos conceitose dá-nos assim a chave para compreender o processo tal como sedesenrola na vida real. Mas um processo de formação dos conceitosexperimentalmente induzidos nunca refletem perfeitamente odesenvolvimento genético exatamente como ocorre na vida real. Asformas fundamentais do pensamento concreto que enumeramosaparecem na realidade em estados mistos e a análise morfológicaaté agora exposta terá que ser seguida por uma análise funcional egenética. Devemos tentar correlacionar as formas de pensamentocomplexo descobertas na experiência com as formas de pensamentoque encontramos no desenvolvimento real da criança e verificar asduas séries de observações uma com a outra.

A partir das nossas experiências concluímos que, no estádiodo pensamento complexo, os significados das palavras tal como ascrianças os percebem referem-se aos mesmos objetos que o adultotem no espírito, o que assegura a compreensão entre a criança e oadulto, mas que a criança pensa a mesma coisa de maneiradiferente, por meio de operações mentais diferentes. Tentaremosverificar esta proposição comparando as nossas observações com osdados sobre as peculiaridades do pensamento infantil e opensamento primitivo em geral coligidos pela ciência psicológica.

Se observarmos que grupos de objetos a criança relacionaentre si ao transferir o significado das primeiras palavras e comoprocede, descobrimos uma mistura das duas formas a que nasnossas experiências chamamos complexo associativo e imagemsincrética.

Tomemos de Idelberger um exemplo, que é citado por Werner

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(55)(55, p.206). No 251o. dia de vida, uma criança emprega apalavra au-au a uma figura de porcelana chinesa que representauma rapariga e com que a criança gosta de brincar No 307o. dia,chama au-au a um cão que ladra no pátio, aos retratos dos avós, aum cão de brinquedo e a um relógio. No 331o. dia aplica o mesmonome a um pedaço de pele com uma cabeça de animal notandoparticularmente os olhos de vidro e a outra pele sem cabeça. No334o.aplica-o a uma boneca de borracha que chia quando écomprimida e no 396o. dia aplica-o aos botões de punho do pai. No443o. dia profere a mesma palavra mal vê uns botões de péroladum vestido e um termômetro de banho.

Werner analisou este exemplo e concluiu que se podiacatalogar da seguinte forma todas as coisas a que a criançachamava au-au: em primeiro lugar, os cães e os cães de brinquedoe pequenos objetos oblongos que se assemelhassem à boneca deporcelana (por exemplo, a boneca de borracha e o termômetro); emsegundo lugar, os botões de punho, os botões de pérola e outrospequenos objetos semelhantes. O atributo que servia de critérioeram as superfícies oblongas ou as superfícies brilhantes parecidascom olhos.

É evidente que a criança unia estes objetos concretos segundoos princípios dos complexos. Estas formações espontâneas decomplexos preenchem completamente todo o primeiro capítulo dahistória do desenvolvimento das palavras infantis.

Há um exemplo bem conhecido e freqüentemente citado destetipo de derivas: a utilização pelas crianças da palavra quá-quá paradesignar primeiro um pato nadando na água dum lago e depoistoda a espécie de líquidos, incluindo o leite engarrafado; quandoacontece a criança observar uma moeda com uma águiadesenhada, a moeda passa a ser um quá-quá sendo depois adesignação transferida para todos os objetos redondos com oaspecto de moedas. Eis um complexo em cadeia típico: cada novoobjeto incluído na cadeia tem algum atributo comum com outroelemento, mas os atributos de ligação estão constantemente avariar.

A formação de complexos é responsável pelo fenômenopeculiar de uma palavra poder, em diferentes situações, tersignificados diferentes ou até opostos, desde que haja qualquernexo associativo entre esses significados. Assim, uma criança podedizer antes, quer para antes e depois, ou amanhã para amanhã eontem, indiferentemente. Temos aqui uma perfeita analogia comalgumas línguas antigas — o Hebreu, o Grego e o Latim — nasquais uma mesma palavra indica por vezes também o seu contrário.

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Os Romanos, por exemplo, tinham uma mesma palavra para alto ebaixo. Tal casamento de significados opostos só é possível emresultado do pensamento por complexos.

O pensamento primitivo tem outro traço muito interessanteque nos mostra o pensamento por complexos em ação e indica adiferença entre os pseudo-conceitos e os conceitos. Este traço, queLevy-Bruhl foi o primeiro a reconhecer nos povos primitivos, Storchnos doentes mentais e Piaget nas crianças — é designadocorrentemente por contaminação. Aplica-se o termo à relação deidentidade parcial ou estreita interdependência estabelecida pelopensamento primitivo entre dois objetos ou fenômenos que narealidade não apresentam qualquer continuidade nem nenhumaoutra conexão reconhecível.

Levy-Bruhl (26) cita von den Steinen a propósito de umflagrante caso de participação observado nos Bororo do Brasil quese orgulham de serem papagaios vermelhos. Von den Steinen aprincípio não sabia como interpretar uma afirmação tão categórica,mas acabou por achar que os índios queriam significarprecisamente isso. Não se tratava apenas de uma palavra de que setivessem apropriado, ou duma relação familiar sobre queinsistissem: o que queriam significar era uma identidade deessências.

Parece-nos que o fenômeno da contaminação não tevenenhuma explicação psicológica suficientemente convincente e istopor duas razões: em primeiro lugar, as investigações tenderam acentrar-se sobre o conteúdo do fenômeno e a descurar as operaçõesmentais nele envolvidas, isto é, a estudar o produto em vez doprocesso; em segundo lugar, não se efetuaram quaisquer tentativasadequadas para ver o fenômeno no contexto de outras conexões erelações formadas pelo cérebro primitivo. Acontece demasiadasvezes que aquilo que atrai a atenção das investigações é ofantástico, o extremo, como por exemplo, o fato de os Bororo seconsiderarem como papagaios vermelhos a expensas de fenômenosmenos espetaculares. No entanto, uma análise mais aturada mostraque até as conexões que não se chocam abertamente com a nossalógica são formadas pelos povos primitivos com base nos princípiosdo pensamento por complexos.

Como as crianças de certa idade pensam por pseudo-conceitos, como, para elas, as palavras designam complexos decoisas concretas, o seu pensamento terá necessariamente comoresultado a contaminação, isto é, conexões que não são aceitáveispela lógica dos adultos. Determinada coisa pode ser incluída emdiferentes complexos por força dos seus diferentes atributos

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concretos e. consequentemente, pode ter vários nomes. A utilizaçãode um ou de outro depende do complexo que é ativado emdeterminado momento. Nas nossas experiências observamosfreqüentemente casos deste tipo de contaminação em que um objetoera incluído simultaneamente em dois ou mais complexos. Acontaminação não é uma exceção no pensamento por complexos,muito pelo contrário, é a regra.

Os povos primitivos também pensam por complexos e,consequentemente, nas suas línguas a palavra não funciona comouma entidade portadora de um conceito, mas como um “nome defamília” para grupos de objetos concretos congregados nãologicamente, mas factualmente. Storch mostrou que este mesmotipo de raciocínio é característico dos esquizofrênicos que regridemdo pensamento conceptual para um tipo mais primitivo deintelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considera que o uso dasimagens concretas em lugar dos pensamentos abstratos é um dosmais característicos traços do pensamento primitivo. Assim, acriança, o homem primitivo, e o alienado, por muito que os seusprocessos mentais difiram no respeitante a outros aspectosimportantes, manifestam todos fenômenos de contaminação —sintoma do pensamento primitivo por complexos e da função daspalavras como nomes de família.

Estamos portanto em crer que a forma como Levy-Bruhlinterpreta a contaminação é incorreta. Este autor aborda o fato deos Bororo afirmarem serem papagaios vermelhos do ponto de vistada nossa lógica, presumindo que também para o homem primitivotal asserção significa uma identidade de essências. Mas como, paraos Bororo, as palavras designam grupos de objetos e não conceitos,a sua asserção tem diferente significado. A palavra que designapapagaio é uma palavra que designa um complexo de que elesfazem parte conjuntamente com os papagaios. Não implicaidentidade, tal como o fato de duas pessoas compartilharem omesmo nome de família não implica que sejam uma e a mesmapessoa.

XII

A história da linguagem mostra claramente que o pensamentopor complexos com todas as suas peculiaridades é o própriofundamento do desenvolvimento lingüístico.

A lingüística moderna estabelece a distinção entre osignificado de uma palavra, ou expressão, e o referente, isto é, oobjeto que designa. Pode haver um só significado e váriosreferentes, ou diferentes significados e um só referente. Quer

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digamos “o vencedor de Jena” ou o “derrotado de Waterloo”,estamos a referir-nos à mesma pessoa e, no entanto, o significadodas duas expressões é diferente. Só há uma categoria de palavrasque têm por única função a função de referência: são os nomespróprios. Usando esta terminologia, podíamos dizer que as palavrasdas crianças e dos adultos coincidem, pelos seus referentes masnão pelos seus significados.

Também na História das línguas encontramos exemplos deidentidades de referentes combinadas com divergências designificados. Esta tese é confirmada por uma grande quantidade defatos. Os sinônimos existentes em cada língua são um bom exemplodisto. A língua russa tem duas palavras para designar a Lua, a quese chegou através de diferentes processos de pensamentoclaramente refletidos pela etimologia Um termo deriva da palavralatina que conota “capricho, fantasia, inconstância” e tinha porintenção óbvia sublinhar a volubilidade de formas que distingue aLua de todos os outros corpos celestes. A palavra que está naorigem do segundo termo, que significa “mediador”, foi sem dúvidaimpregnada pelo fato de o tempo poder ser medido pelas fases daLua. Entre as línguas o mesmo acontece. Por exemplo, em Russo, apalavra que significa alfaiate deriva de uma velha palavra quedesigna uma peça de pano; em Francês, Inglês e Alemão significa “oque talha”.

Se seguirmos a evolução de uma palavra em qualquerlinguagem e por mais surpreendente que tal possa parecer àprimeira vista, veremos que o seu significado se transformaexatamente da mesma forma que o pensamento das crianças. Noexemplo que citamos, a palavra au-au aplicava-se a uma série deobjetos totalmente distintos do ponto de vista dos adultos. Nodesenvolvimento da linguagem semelhantes transferências designificado não constituem exceção, antes pelo contrário, são regra.O russo tem uma palavra para dia-e-noite, a palavra sutki. Aprincipio. significava costura, junção de duas peças de roupa, algoentretecido, passou depois a ser utilizada para designar todo equalquer tipo de junção, por exemplo, a junção de duas paredes deuma casa e, portanto, um canto ou esquina; começou a serutilizada metaforicamente para designar “crepúsculo”, a altura “emque o dia e a noite se casam, se encontram”; passou depois adesignar o intervalo entre um crepúsculo e o seguinte, o atual sutkíde 24 horas. Palavras tão diversas como costura, canto, crepúsculoe 24 horas são englobadas num só complexo no decurso dodesenvolvimento de uma palavra da mesma forma que uma criançaincorpora diferentes coisas num grupo com base na imagéticaconcreta.

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Quais são as leis que regem a formação das famílias depalavras? O mais freqüente é os novos objetos serem designados emfunção de atributos que não são essenciais, de forma que a palavranão exprime verdadeiramente a natureza da coisa nomeada. Comoum nome nunca é um conceito quando aparece pela primeira vez, ésimultaneamente demasiado limitado e demasiado vasto. Porexemplo, a palavra russa que designa rato significavaprimeiramente “ladrão”. Mas uma vaca não é nem de longe apenasum animal com cornos, nem um rato se limita a roubar; assim, osseus nomes são demasiado limitativos. Por outro lado, sãodemasiado latos, na medida em que esses epítetos podem seraplicados — e realmente são-no em certas línguas — a um certonúmero de outras criaturas. O resultado disto é uma lutaincessante, no seio da língua em desenvolvimento, entre opensamento conceptual e a herança, o legado, do primitivopensamento por meio de complexos. O substantivo criado por umcomplexo, o nome baseado num, entra em conflito com o conceitoque passou a representar. Na luta entre o conceito e a idéia que deuorigem ao nome, a imagem perde gradualmente terreno;desvanece-se da consciência e da memória e o significado originalda palavra acaba por ficar obliterado. Há alguns anos toda a tintade escrever era negra e a palavra russa que designa tinta refere-seà sua cor negra. Mas isso não nos impede de falarmos hoje de“negrura” vermelha, verde ou azul sem notarmos a incongruênciada combinação. As transferências dos nomes para novos objetosocorrem por contiguidade ou semelhança, isto é, com base emligações concretas típicas do pensamento por complexos. Aspalavras que estão sendo elaboradas na nossa épocaapresentam-nos muitos exemplos do processo como coisasheterogêneas se misturam num mesmo agrupamento. Quandofalamos da “perna da mesa”, do “cotovelo da rua”, da “boca nabotija”, estamos a agrupar objetos duma forma semelhante aoscomplexos. Nestes casos, as semelhanças visuais e funcionais queservem de mediadores no processo são bastante claras. Atransferência pode ser determinada, no entanto, pelas associaçõesmais variadas, e quando se trata de uma transferência que ocorreuhá muito tempo, é impossível reconstruir as conexões existentescom conhecimento perfeito do pano de fundo histórico doacontecimento

A palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceitomas antes uma imagem, um retrato, um esboço mental, uma curtahistória sobre esse conceito quer dizer, uma autêntica obra de arteem ponto pequeno. Ao nomearmos um objeto por meio de umconceito pictórico desse gênero, vinculamo-lo a um grupo em quefigura uma certa quantidade de outros objetos. A esse respeito, oprocesso de criação da linguagem é análogo ao processo de

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formação dos complexos no desenvolvimento intelectual dascrianças.

XIII

Na linguagem das crianças surdas-mudas podemos aprendermuitas coisas acerca do pensamento por complexos, pois a estascrianças falta o principal estímulo para a formação de conceitos.Privados de intercâmbio social com os adultos e deixados a sipróprios para determinarem que objetos devem agrupar sob a égidede um mesmo nome, formam os seus complexos livremente e ascaracterísticas especiais do pensamento por complexos aparecemna sua forma pura e nítida.

Na linguagem por sinais dos surdos-mudos, o ato de tocarum dente pode ter três significados diferentes: “branco”, “pedra” e“dente”. Os três significados pertencem a um mesmo complexo que,para melhor elucidação, exige um gesto suplementar de apontar ouimitativo, de forma a precisar-se que objeto se quer significar emcada caso concreto. As duas funções da palavra encontram-se, porassim dizer, separadas. Um surdo-mudo toca o dente e a seguir,apontando para a sua superfície ou fazendo um gesto de arremesso,diz-nos a que objetos se refere em cada caso.

Para comprovarmos e complementarmos os nossos resultadosexperimentais fomos buscar alguns exemplos de gênese decomplexos do desenvolvimento lingüístico das crianças, dopensamento dos povos primitivos e do desenvolvimento dalinguagem enquanto tal. Dever-se-á notar no entanto que até oadulto normal, que é capaz de formar e utilizar conceitos, não operasistematicamente com conceitos ao pensar. Para lá dos processosprimitivos de pensamento dos sonhos, o adulto desvia-seconstantemente do pensamento conceptual para o pensamentoconcreto do tipo dos complexos. A forma transitória do pensamento,o pseudo-conceito, não se limita ao pensamento das crianças;também nós recorremos a ela muito freqüentemente na nossa vidade todos os dias.

XIV

A nossa investigação levou-nos a dividir o processo de gênesedos conceitos em três fases principais. Descrevemos duas dessasfases, marcadas pela predominância da imagem sincrética e docomplexo, respectivamente, e chegamos agora à terceira fase. Talcomo na segunda, pode ser subdividida em vários estádios.

Na realidade, as novas formações não aparecem

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necessariamente apenas após o pensamento por complexos tercompletado a sua trajetória de desenvolvimento. Duma formarudimentar podem ser observadas muito antes de a criançacomeçar a pensar em termos de pseudo-conceitos. Essencialmente,no entanto, as formas que vamos começar a descrever têm umasegunda raiz, uma raiz independente. Possuem uma funçãogenética diferente da dos complexos no desenvolvimento mental dacriança.

A principal função dos complexos consiste em estabelecerligações e relações. O pensamento por complexos dá início àunificação das impressões dispersas; ao organizar elementosdiscretos da experiência em grupos cria uma base para futurasgeneralizações.

Mas o conceito desenvolvido pressupõe algo mais do que aunificação Para formar esse conceito é também necessário abstrair,isolar elementos e ver os elementos abstraídos da totalidade daexperiência concreta em que se encontram mergulhados. Nagenuína gênese dos conceitos é tão importante unificar comoseparar: a síntese tem que combinar-se com a análise. Opensamento por complexos não pode efetuar ambas as operações. Asuperabundância, a superprodução de conexões e a debilidade daabstração constituem a essência mesma do pensamento porcomplexos. A função do processo que amadurece durante a terceirafase do desenvolvimento da gênese dos conceitos é constituída pelasatisfação do segundo requisito, embora os seus primeiros passosradiquem num período muito anterior.

Na nossa experiência, o primeiro passo em direção àabstração dava-se quando a criança começava a agrupar o máximonúmero possível de objetos, por exemplo, objetos que erampequenos e redondos ou vermelhos e chatos. Como o materialexperimental não contém objetos idênticos, até os que apresentam omaior número de semelhanças são diferentes sob certos aspectos.Daqui se segue que, ao colher assim os que melhor “se casavam”, acriança tem que prestar mais atenção a certos traços de um objetodo que aos outros — dando-lhe um tratamento preferencial, porassim dizer. Os atributos, ao somarem-se, fazem com que o objetoque apresenta o máximo de semelhanças com a amostra se torne ocentro de atenção, abstraindo-se assim, em certo sentido, dosatributos a que a criança presta menos atenção. A primeiratentativa de abstração não é obvia enquanto tal, porque a criançaabstrai todo um grupo de traços, sem os distinguir claramente unsdos outros; amiúde, a abstração de um tal grupo de atributosbaseia-se apenas numa impressão vaga e geral de semelhança dosobjetos.

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No entanto, o caráter global da percepção da criança abriubrechas. Os atributos de um objeto foram divididos em duas partesa que não se deu a mesma importância — e isto é um começo deabstração positiva e negativa. Um objeto não entra já no complexoin toto, com todos os seus atributos — alguns vêem vedada a suaentrada; se, com isso, o objeto é empobrecido, os atributos queprovocaram a sua inclusão no complexo adquirem um relevo maisvincado no pensamento da criança.

XV

Durante o estádio seguinte do desenvolvimento da abstração,o agrupamento de objetos com base no máximo de semelhançapossível é superado pelo agrupamento com base num únicoatributo, por exemplo, o agrupamento exclusivo dos objetosredondos, ou dos objetos chatos. Embora o produto não se possadistinguir do produto de um conceito, estas formações, tal como ospseudo-conceitos, são meras percursoras dos autênticos conceitos.Segundo o uso introduzido por Gross(14), podemos chamar a estasformações conceitos potenciais.

Os conceitos potenciais resultam de uma espécie deabstração isolante de natureza tão primitiva que se encontrapresente em certo grau não só nas crianças de muito tenra idadecomo também nos animais. Pode treinar-se as galinhas aresponderem a um atributo distinto em diferentes objetos, como porexemplo, a cor ou a forma, se esse atributo for sinal de comidaacessível; os chimpanzés de Koehler, tendo aprendido a utilizar umpau como instrumento, utilizavam outros objetos compridos quandoprecisavam de um pau e não o tinham.

Mesmo nos bebês muito pequenos, os objetos ou as figurasque apresentam certos traços comuns evocam respostassemelhantes. No mais precoce estádio pré-verbal as criançasesperam nitidamente que situações semelhantes conduzam adesfechos semelhantes. A partir do momento em que uma criançaassociou uma palavra com um objeto, facilmente se aplica a umnovo objeto que a impressiona por, em certos aspectos, sersemelhante ao primeiro. Os conceitos potenciais, portanto, podemser formados, tanto na esfera do pensamento perceptual, como naesfera do pensamento prático, virado para a ação — com base nasemelhança de significados funcionais, no segundo. Estes últimossão uma importante fonte de conceitos potenciais. É doconhecimento geral que os significados funcionais desempenhamum papel muito importante no pensamento da criança infantil.Quando Se lhe pede que explique uma palavra, uma criançadir-nos-á aquilo que o objeto designado pela palavra em questão

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faz, ou — o que é mais freqüente — o que se pode fazer com esseobjeto. Até os conceitos abstratos são muitas vezes traduzidos nalinguagem da ação concreta: “Razoável quer dizer quando estou asuar e não me deixo estar numa corrente de ar”.

Os conceitos potenciais já desempenham um certo papel nopensamento por complexos. Por exemplo, os complexos associativospressupõem a existência de que se “abstrai” um traço comum dediferentes unidades. Mas enquanto o pensamento por complexospredominar, o traço abstraído é instável, não tem posiçãoprivilegiada e facilmente cede a sua dominância temporária a outrostraços. Nos conceitos potenciais propriamente ditos, um traço quealguma vez tenha sido abstraído não se volta a perder facilmente nomeio de outros traços. A totalidade concreta de traços foi destruídapela sua abstração e abre-se a possibilidade de unificar os traçosnuma base diferente. Só o domínio da abstração, combinado com opensamento por complexos desenvolvido permite à criança avançarpara a formação dos conceitos genuínos. Um conceito só surgequando os traços abstraídos são novamente sintetizados e aabstração sintetizada daí resultante se torna o principalinstrumento de pensamento. Como ficou provado pelas nossasexperiências, é a palavra que desempenha o papel decisivo nesteprocesso; a palavra é utilizada deliberadamente para orientar todosos processos parciais do estádio superior da gênese dos conceitos(iv).

XVI

No nosso estudo experimental dos processos intelectuais dosadolescentes observamos como as formas primitivas depensamento, quer as sincréticas quer as que se baseiam noscomplexos, vão desaparecendo gradualmente, como os conceitospotenciais vão sendo usados cada vez menos e os verdadeirosconceitos começam a formar-se — raramente a princípio e depoiscom crescente freqüência. Mesmo após o adolescente ter aprendidoa produzir conceitos, não abandona as formas mais elementares;estas continuam a operar durante um certo período, continuandoaté a predominar em muitas áreas do seu pensamento. Aadolescência é menos um período de consumação dodesenvolvimento do que de transição e crise.

O caráter transitório do pensamento do adolescente torna-separticularmente evidente quando observamos o funcionamento realdos conceitos acabados de adquirir. Certas experiênciasespecialmente projetadas para estudar as operações que osadolescentes levam a cabo com os conceitos põem em evidênciaacima de tudo uma flagrante discrepância entre a sua capacidade

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para formar conceitos e a sua capacidade para os definir.

O adolescente formará e utilizará muito corretamente umconceito numa situação concreta, mas sentirá uma estranhadificuldade em exprimir esse conceito por palavras e a definiçãoverbal, em muitos casos, será muito mais restritiva do que seria deesperar pela forma como o adolescente utilizou o conceito. A mesmadiscrepância ocorre no pensamento dos adultos, mesmo em níveisde desenvolvimento muito avançados. Isto está de acordo com opressuposto de que os conceitos evoluem de forma muito diferenteda elaboração deliberada e consciente da experiência em termos delógica. A análise da realidade com a ajuda dos conceitos precede aanálise dos próprios conceitos.

O adolescente defronta-se com outros obstáculos quandotenta aplicar um conceito que formou numa situação específica aum novo conjunto de objetos e circunstâncias em que os atributossintetizados no conceito aparecem em configurações que diferem daoriginal (exemplo disto seria a aplicação a objetos quotidianos donovo conceito “pequeno e alto” desenvolvido no teste dos blocos). Noentanto, o adolescente corretamente é capaz de realizar essatransferência num estádio relativamente precoce dodesenvolvimento.

Muito mais difícil do que a transferência em si é a tarefa dedefinir um conceito quando já não tem quaisquer raízes na situaçãooriginal e tem que ser formulado num plano puramente abstrato,sem referência a nenhuma situação ou impressão concretas Nasnossas experiências, há crianças ou adolescentes que resolvemcorretamente o problema da formação do conceito, mas descem aum nível muito mais primitivo de pensamento quando se trata dedefinir verbalmente o conceito e começam muito pura esimplesmente a enumerar os vários objetos a que aquele se podeaplicar na configuração particular em que se encontra. Neste casooperam com a palavra como um conceito mas definem-no comocomplexo — forma de pensamento esta que vacila entre o conceito eo complexo e que é característica e típica desta idade de transição.

A maior de todas as dificuldades é a aplicação de um conceitoque o adolescente conseguiu finalmente apreender e formular a umnível abstrato a novas situações que têm que ser encaradas nosmesmos termos abstratos — um tipo de transferência quehabitualmente só é dominado pelo fim do período de adolescência Atransição do abstrato para o concreto vem a verificar-se tão árduapara o jovem, como a primitiva transição do concreto para oabstrato. As nossas experiências não deixam quaisquer dúvidas queneste ponto, de qualquer forma, a descrição da gênese dos

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conceitos dada pela psicologia tradicional, a qual se limita areproduzir o esquema da lógica formal, não tem qualquer relaçãocom a realidade.

Segundo a escola clássica, a formação dos conceitos érealizada pelo mesmo processo do retrato de família nas fotografiascompósitas de Galton. Estas são realizadas tirando fotografias devários membros de uma mesma família sobre mesma chapa, deforma que os traços de família comuns a várias pessoas surgemcom extraordinária vivacidade, enquanto os traços pessoaisvariáveis de cada um se esfumam com a sobreposição. Presume-seque na formação de conceitos se dá uma intensificação de traçossemelhantes; segundo a teoria tradicional a soma destes traços é oconceito. Na realidade, como alguns psicólogos há muito notaram, eas nossas experiências demonstram, o caminho pelo qual osadolescentes atingem a formação dos conceitos nunca se conformacom este esquema lógico. Quando se vê em toda a suacomplexidade o processo de gênese dos conceitos, este surge-noscomo um movimento de pensamento dentro da pirâmide dosconceitos, que oscila constantemente entre duas direções, doparticular para o geral e do geral para o particular.

As nossas investigações mostraram que um conceito se formanão através do jogo mútuo das associações, mas através de umaoperação intelectual em que todas as funções mentais elementaresparticipam numa combinação específica. Esta operação é orientadapela utilização das palavras como meios para centrar ativamente aatenção, para abstrair certos traços, sintetizá-los e representá-lospor meio de símbolos.

Os processos que conduzem à formação dos conceitosdesenvolvem-se segundo duas trajetórias principais. A primeira é aformação dos complexos: a criança une diversos objetos em grupossob a égide de um “nome de família” comum; este processo passapor vários estádios. A segunda linha de desenvolvimento é aformação de “conceitos potenciais”, baseados no isolamento decertos atributos comuns. Em ambos os processos o emprego dapalavra é parte integrante dos processos genéticos e a palavramantém a sua função orientadora na formação dos conceitosgenuínos a que o processo conduz.

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6. O desenvolvimento dosconceitos científicos na infância

I

Para se idealizar métodos eficazes de instrução das criançasem idade escolar no conhecimento sistemático, é necessáriocompreender o desenvolvimento dos conhecimentos científicos noespírito da criança. Não menos importante do que este aspectoprático do problema é o seu significado teórico para a ciênciapsicológica. No entanto, o conhecimento que possuímos do conjuntodo assunto é surpreendentemente escasso e vago.

Que acontece no cérebro da criança aos conceitos científicosque lhe ensinam na escola? Qual é a relação entre a assimilação dainformação e o desenvolvimento interno de um conceito científico naconsciência das crianças?

A psicologia infantil contemporânea tem duas respostas aestas questões. Uma escola de pensamento crê que os conceitoscientíficos não têm História interna, isto é, não sofrem qualquerdesenvolvimento, mas são absorvidos de forma acabada por umprocesso de compreensão e assimilação. A maior parte das teorias emétodos de educação continuam a basear-se nesta concepção.Trata-se contudo de uma concepção que não resiste a um exame,quer do ponto de vista teórico, quer do ponto de vista das suasaplicações práticas. Como sabemos, a partir de investigações doprocesso de formação dos conceitos, um conceito é algo mais do quea soma de certas ligações associativas formadas pela memória, émais do que um simples hábito mental; é um complexo e genuínoato de pensamento, que não pode ser ensinado pelo constanterepisar, antes pelo contrário, que só pode ser realizado quando opróprio desenvolvimento mental da criança tiver atingido o nívelnecessário. Em qualquer idade, um conceito encarnado numapalavra representa um ato de generalização. Mas o significado daspalavras evolui e, quando a criança aprende uma nova palavra, oseu desenvolvimento mal começou: a princípio a palavra é umageneralização do tipo mais primitivo; à medida que o intelecto dacriança se desenvolve é substituída por generalizações de tipo cadavez mais elevado — processo este que acaba por levar à formaçãodos verdadeiros conceitos. O desenvolvimento dos conceitos, dossignificados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas

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funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração,capacidade para comparar e diferenciar. Estes processospsicológicos complexos não podem ser dominados apenas atravésda aprendizagem inicial.

A experiência prática mostra também que é impossível eestéril ensinar os conceitos de uma forma direta. Um professor quetenta conseguir isto habitualmente mais não consegue da criançado que um verbalismo oco, um psitacismo que simula umconhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidadesó encobre um vácuo.

Leão Tolstoy, com o seu profundo conhecimento da naturezada palavra e do significado, compreende mais claramente que amaior parte dos educadores que é impossível transmitir pura esimplesmente um conceito de professor para aluno. Ele narra assuas tentativas para ensinar linguagem literária às crianças docampo, começando por “traduzir” o seu vocabulário na linguagemdos contos populares e traduzindo depois a linguagem dos contosem linguagem literária. Tolstoy descobriu que não se pode ensinar alinguagem literária às crianças através de explicações artificiais, pormemorização compulsiva e repetição como se ensina uma línguaestrangeira. Escreve ele:

Temos que admitir que tentamos por diversas vezes ... fazeristo e que sempre nos defrontamos com uma insuperável aversãopor parte das crianças, fato que mostra que seguíamos um caminhoerrado. Estas experiências transmitiram-me a certeza de que éperfeitamente impossível explicar o significado de uma palavra ...Quando tentamos explicar qualquer palavra, a palavra “impressão”,por exemplo, substituímo-la por outra palavra igualmenteincompreensível, ou toda uma série de palavras cuja conexãointerna é tão incompreensível como a própria palavra.

Aquilo de que uma criança necessita, diz Tolstoy, é de umapossibilidade de adquirir novos conceitos e palavras a partir docontexto lingüístico geral.

Quando houve ou lê uma palavra desconhecida, numa frasequanto ao resto compreensível, e depois a lê noutra frase, começa afazer uma vaga idéia do novo conceito; mais tarde ou mais cedosentirá ... necessidade de usar a palavra — e uma vez que a use,passa a assenhorear-se da palavra e do conceito. Mas estouconvencido de que é impossível transmitir deliberadamente novosconceitos ao aluno ... tão impossível e fútil como ensinar umacriança a andar apenas pelas leis do equilíbrio ... (43)(43, p,. 143).

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A segunda concepção da evolução dos conceitos científicosnão nega a existência de um processo de desenvolvimento nocérebro da criança em idade escolar; defende porém que esteprocesso não difere essencialmente de maneira nenhuma dodesenvolvimento dos conceitos formados pela criança na suaexperiência quotidiana e que não tem qualquer interesseconsiderar-se estes dois processos em separado. Qual é ofundamento deste ponto de vista?

A literatura existente neste domínio mostra que ao estudarema formação dos conceitos na infância, muitos investigadoresusaram os conceitos quotidianos formados pela criança semintervenção da educação sistemática. Presume-se que as leisbaseadas nestes dados se aplicam também aos conceitos científicosdas crianças, não se considerando necessário comprovar estahipótese. Só um punhado dos mais perspicazes estudiososmodernos do pensamento da criança questionam a legitimidade detal extensão. Piaget traça uma linha de demarcação nítida entre asidéias da realidade desenvolvidas predominantemente pelos seusesforços mentais e as leis que são decisivamente influenciadas pelosadultos. Dá ao primeiro grupo de leis a designação de espontânease ao segundo a de não espontâneas e admite que estas últimasexigirão possivelmente uma investigação independente. A esterespeito avança muito mais e muito mais profundamente do quetodos os outros estudiosos dos conceitos infantis.

Ao mesmo tempo, há certos erros do pensamento de Piagetque infirmam o valor das suas concepções. Embora defenda que aoformar um conceito a criança o marca com as características damentalidade que lhe é própria, Piaget tende a aplicar a sua teseapenas aos conceitos espontâneos e presume que só estes podemesclarecer-nos verdadeiramente sobre as qualidades especiais dopensamento infantil; não consegue ver a interação entre ambos ostipos e as ligações que os unem num sistema total de conceitos,durante o desenvolvimento intelectual da criança. Estes errosconduzem-no a outro. A teoria de que a socialização progressiva dopensamento e a essência mesma do desenvolvimento mental dacriança constitui um dos alicerces fundamentais da teoria dePiaget. Mas, se as suas concepções sobre os conceitos nãoespontâneos fossem corretas, seguir-se-ia delas que um fator tãoimportante para a socialização do pensamento como aaprendizagem escolar não tem qualquer relação com o processo dedesenvolvimento interno. Esta incoerência é o ponto fraco da teoriade Piaget, tanto do ponto de vista teórico como prático.

Teoricamente, Piaget vê a socialização do pensamento comouma abolição mecânica das características do pensamento próprio

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da criança, como o seu gradual apagamento. .Tudo o que é novo nodesenvolvimento provém do exterior, substituindo os modos depensamento próprios da criança. Durante toda a infância há umconflito incessante entre duas formas de pensamento mutuamenteantagonistas, com uma série de compromissos em cada nível dedesenvolvimento sucessivo, até que o pensamento adulto acaba pordominar. A natureza própria da criança não desempenha nenhumpapel construtivo no seu desenvolvimento intelectual. QuandoPiaget diz que nada é mais importante para o ensino eficaz do queum conhecimento exaustivo do pensamento espontâneo da criança(33) move-o aparentemente a idéia de que, tal como é precisoconhecer um inimigo para poder vence-lo no combate, assim épreciso conhecer o pensamento da criança.

Contraporemos a estas premissas errôneas a premissa de queos conceitos não espontâneos têm que possuir todos os traçospeculiares ao pensamento da criança em cada nível dedesenvolvimento porque estes conceitos não são adquiridos porsimples rotina, antes evoluem por recurso a uma estrênua atividademental por parte da criança. Estamos em crer que estes doisprocessos — o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e dosconceitos não espontâneos — se encontram relacionados einfluenciam-se um ao outro permanentemente. Fazem parte de umúnico processo: o desenvolvimento da gênese do conceito, que éafetado por condições externas e internas variáveis mas éessencialmente um processo unitário e não um conflito de formasde intelecção antagônicas e mutuamente exclusivas. A instrução éuma das principais fontes dos conceitos da criança em idadeescolar e é também uma poderosa força de orientação da suaevolução, determinando o destino de todo o seu desenvolvimentomental. Se assim é, os resultados do estudo psicológico dosconceitos infantis podem aplicar-se aos problemas do ensino dumamaneira muito diferente daquela que Piaget pensava.

Antes de analisarmos pormenorizadamente estas premissas,pretendemos avançar as razões que nos assistem paradiferenciarmos os conceitos espontâneos e os não espontâneos —particularmente os científicos — e submetermos os últimos a umestudo especial.

Em primeiro lugar, sabemos da simples observação que osconceitos se formam e desenvolvem em condições internas ouexternas totalmente diferentes, consoante têm origem no que acriança aprende na sala de aulas ou na sua experiência pessoal.Nem sequer os motivos que movem a criança a formar os dois tiposde conceitos são os mesmos: o espírito defronta-se com problemasmuito diversos quando assimila conceitos na escola e, quando é

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entregue aos seus próprios recursos. Quando transmitimos umconhecimento sistemático à criança, ensinamos-lhe muitas coisasque esta não pode ver ou experimentar diretamente. Como osconceitos científicos e os conceitos espontâneos diferem pela relaçãoque estabelecem com a experiência da criança e pela atitude dacriança relativamente aos seus objetos, será de esperar que sigamcaminhos de desenvolvimento muito diferentes desde a suagestação até a sua forma final.

O destacar-se os conceitos científicos como objeto de estudotem também um valor heurístico. No momento atual, a psicologia sódispõe de dois métodos para estudar a gênese dos conceitos. Num,tratamos dos conceitos reais das crianças, mas empregamosmétodos — tais como a definição verbal — que não penetram paralá da superfície; o outro permite-nos uma análise psicológicaincomparavelmente mais profunda mas apenas recorrendo aoestudo de conceitos experimentais artificialmente concebidos.Estamos perante um urgente problema metodológico que consisteem encontrar meios de estudar os conceitos reais em profundidade— em encontrar um método que possa utilizar os resultados obtidospelos dois métodos que até aqui utilizamos. Parece-nos que aabordagem mais prometedora para o problema será o estudo dosconceitos científicos, que são conceitos reais, mas que, no entanto,se formam debaixo dos nossos olhos, quase à maneira dosconceitos artificiais.

Por fim, o estudo dos conceitos científicos enquanto tais, temimportantes implicações para a educação e a instrução. Embora osconceitos não sejam absorvidos já completamente formados, ainstrução e a aprendizagem desempenham um papel predominantena sua aquisição. Descobrir a relação complexa entre a instrução eo desenvolvimento dos conceitos científicos é uma importante tarefaprática.

Tais foram as considerações que nos serviram de orientaçãopara a tarefa de distinguir os conceitos científicos dos conceitos dodia a dia e submetê-los a um estudo comparativo. Paraexemplificarmos o tipo de questões a que tentamos dar resposta,tomemos o conceito “irmão” — um conceito quotidiano típicoutilizado habilmente por Piaget para determinar toda uma série depeculiaridades do pensamento infantil — e comparemo-lo com oconceito “exploração” com que a criança contacta nas suas aulas deciências sociais. Será o seu desenvolvimento igual, ou diferente?Será que a palavra “exploração” se limitará a repetir a evolução dodesenvolvimento de “irmão” ou será psicologicamente um conceitode tipo diferente? Apresentamos a hipótese de que os dois conceitosdevem diferir, tanto no seu desenvolvimento, como no seu

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funcionamento, e que estas duas variantes do processo de gênesedo conceito se devem influenciar mutuamente na sua evolução.

II

Para estudar a relação entre o desenvolvimento dos conceitoscientíficos e dos conceitos quotidianos, precisamos de uma bitola decomparação. Para construirmos um dispositivo de medição temosque conhecer as características típicas dos conceitos quotidianos naidade escolar e a direção do seu desenvolvimento durante esseperíodo.

Piaget demonstrou que os conceitos das crianças em idadeescolar são marcados predominantemente pelo fato de aquelas nãoterem uma percepção consciente das relações, embora asmanipulem corretamente duma forma irrefletida e espontânea.Piaget perguntou a crianças de idades compreendidas entre os setee os oito anos de idade o significado da palavra “porque” na frase:“Amanhã não vou à escola, porque estou doente”. A maior parte dascrianças respondeu: “Quer dizer que o menino está doente”; outrasresponderam: “Quer dizer que o menino não vai a escola”. Umacriança é incapaz de compreender que as perguntas não se referemaos fatos distintos da doença e da ausência à escola mas à suarelação interna. No entanto as crianças aprendem com certeza osignificado da frase, pois utilizam espontaneamente a palavra“porque” de uma forma correta, embora não a saibam empregardeliberadamente. Assim, não são capazes de terminar corretamentea frase seguinte: “O homem caiu da bicicleta porque... ”.Freqüentemente substituirão a causa por uma conseqüência(“porque partiu o braço”). O pensamento da criança não édeliberado, nem tem consciência de si próprio; por que razão entãoa criança acaba por conseguir tomar consciência dos seus própriospensamentos e dominá-los? Para explicar o processo, Piaget invocaduas leis psicológicas.

Uma dessas leis é a lei da conscientização, formulada porClaparède, que provou através de experiências muito interessantesque a percepção da diferença precede a percepção da semelhança.É com a maior das naturalidades que a criança responde a objetossemelhantes e não tem necessidade de tomar consciência do seumodo de resposta, ao passo que a dissemelhança cria um estado dedesadaptação que conduz à tomada de consciência. A lei deClaparède afirma que quanto mais suavemente utilizamos umarelação em ação, menos consciência teremos dessa relação, aconsciência que tomamos do que estamos fazendo varia naproporção direta das dificuldades que sentimos para nosadaptarmos a uma situação.

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Piaget utiliza a lei de Claparède para explicar odesenvolvimento do pensamento que se dá entre os sete e os dozeanos. Durante este período, as operações mentais da criançaentram repetidamente em conflito com o pensamento A criançasofre sucessivas derrotas e fracassos, devido às deficiências da sualógica e estas penosas experiências geram a necessidade de tomadade consciência dos seus conceitos.

Compreendendo que a necessidade não é explicação bastantepara nenhuma transformação ocorrida no desenvolvimento dopensamento, Piaget complementa a lei de Claparède com a lei daderivação ou do deslocamento. A tomada de consciência de umaoperação mental significa uma transferência dessa operação doplano da ação para o plano da linguagem, isto é, implica que serecrie essa mesma operação na imaginação, para que ela possaexprimir-se por palavras. Esta transformação não é, nem rápida,nem suave. A lei afirma que o domínio de uma operação no planosuperior do pensamento verbal apresenta as mesmas dificuldadesque o domínio dessa mesma operação no plano da ação. Isto explicaa lentidão do processo.

Estas interpretações não nos parecem adequadas. Asdescobertas de Claparède podem ter uma explicação diferente. Osestudos experimentais que nós próprios levamos a cabosugerem-nos que a criança toma consciência das diferenças maiscedo do que as semelhanças não por nenhuma deficiênciaresultante de um qualquer mau funcionamento, mas porque aconsciência da semelhança exige uma estrutura de generalização ede conceptualização mais desenvolvida do que a consciência dasdiferenças. Ao analisarmos o desenvolvimento dos conceitos dediferença e de semelhança, descobrimos que a consciência dasemelhança pressupõe a formação de uma generalização, ou de umconceito, que abarque os objetos semelhantes, ao passo que aconsciência da diferença não exige tal generalização — pode surgirpor outras vias. O fato de a ordem de seqüências genética destesdois conceitos inverter a seqüência da anterior manipulaçãocomportamental da semelhança e da diferença não é caso único.Por exemplo, as nossas experiências determinaram que as criançasrespondem às ações representadas graficamente antes deconseguirem responder à representação de um objeto, mas quetomam plena consciência do objeto antes da ação (v).

A lei da transferência constitui um exemplo da teoria genéticatão espalhada segundo a qual certos acontecimentos ou modelosobservados durante os primeiros estádios de um processo dedesenvolvimento se repetirão nos estádios mais avançados. Ostraços que efetivamente se repetem cegam muitas vezes os

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observadores para as significativas diferenças causadas pelo fato deos últimos processos se desenrolarem num estádio dedesenvolvimento superior. Podemos dispensar-nos de discutir oprincípio genético enquanto tal, pois que apenas nos interessa asua validade explicativa no tocante ao desenvolvimento daconsciência. A lei da transferência, como a lei da consciência, podequando muito responder à questão da razão pela qual a criança emidade escolar não tem consciência dos seus conceitos; não consegueexplicar como se atinge a consciência. Para explicarmos esseacontecimento decisivo no desenvolvimento fundamental da criançahá que procurar outra hipótese.

Segundo Piaget, na criança em idade escolar, a ausência deconsciência é um resíduo do seu egocentrismo, que está em vias dedesaparecimento, mas que continua a exercer influência na esferado pensamento verbal que se está começando precisamente aformar nesse momento. A consciência é atingida quando opensamento socializado maduro expulsa do nível do pensamentoverbal o egocentrismo residual, ocupando o seu lugar.

Tal explicação da natureza dos conceitos da criança em idadeescolar, baseada essencialmente na incapacidade geral dascrianças para tomarem consciência dos seus atos, não resiste àprova dos fatos. Vários estudos mostraram que é precisamentedurante os primeiros tempos da idade escolar que as funçõesintelectuais superiores, cujas características principais são aconsciência refletida e o controle deliberado, começam a ocupar oprimeiro plano no processo de desenvolvimento. A atenção, queanteriormente era involuntária, toma-se voluntária e depende cadavez mais do pensamento da própria criança: a memória mecânicatransforma-se em memória lógica orientada pelo significado,podendo começar a ser utilizada deliberadamente pela criança.Poder-se-ia quase dizer que tanto a atenção como a memória setornam “lógicas” e voluntárias na medida em que o controle de umafunção é a contrapartida da consciência que cada qual dele tem.Não obstante, não se pode negar o fato demonstrado por Piaget: acriança em idade escolar, embora vá ganhando em deliberação edomínio das suas funções, não tem consciência das suas operaçõesconceptuais, Todas as funções mentais de base se tornamdeliberadas e conscientes, durante a idade escolar, exceto o própriointelecto.

Para resolvermos este aparente paradoxo, temos quevoltar-nos para as leis fundamentais que regem o desenvolvimentopsicológico. Uma dessas leis afirma que a consciência e o controlesó aparecem num estádio relativamente tardio de desenvolvimentode uma função, depois de esta ter sido utilizada e praticada

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inconsciente e espontaneamente. Para submetermos uma função aocontrole da inteligência e da vontade, temos que a dominarprimeiro.

O estádio das funções indiferenciadas na infância é seguidopela diferenciação da percepção nos primeiros tempos da infância eo desenvolvimento da memória na criança em idade pré-escolar,para apenas mencionarmos os aspectos mais salientes dodesenvolvimento mental ocorridos em cada idade. A atenção, que éuma função correlativa da estruturação do que é apercebido erecordado, participa deste desenvolvimento. Consequentemente, acriança que se encontra prestes a entrar para a escola possui asfunções que terá que aprender para as submeter a um controleconsciente numa forma já relativamente madura. Mas, nessa idade,os conteúdos dos conceitos — ou melhor, dos pré-conceitos como sedevem chamar nessa idade — estão apenas começando a perder oseu caráter de complexos e teria que haver um autêntico milagrepara que a criança fosse capaz de tomar consciência deles e de osdominar durante esse período. Para que isso fosse possível. aconsciência não teria que limitar-se a tomar posse das suas funçõesisoladas teria que as criar.

Antes de continuarmos, queremos clarificar a palavraconsciência no sentido em que a usamos, quando falamos defunções não conscientes que se “tornam conscientes” (empregamosa expressão não consciente para distinguirmos o que não é aindaconsciente do “inconsciente” freudiano, resultante da repressão,que é um desenvolvimento posterior, que é efeito de umadiferenciação da consciência relativamente desenvolvida). Aatividade da consciência pode seguir diferentes vias; pode incidirsobre alguns aspectos apenas de um pensamento ou de um ato.Acabei, por exemplo de dar um nó — fi-lo conscientemente, noentanto não consigo explicar como o fiz, pois a minha consciênciase encontrava centrada mais sobre o nó do que sobre os meuspróprios movimentos, e como da minha ação,. Quando esta últimase torna objeto da minha consciência, terei acedido à plenaconsciência. Utilizamos a palavra consciência para designar apercepção da atividade do cérebro — a consciência de terconsciência. Uma criança em idade pré-escolar que, em resposta àpergunta: “eu sei o teu nome?”, responde dizendo o nome, nãopossui esta consciência auto-reflexiva; sabe o seu nome mas nãotem consciência de que o sabe.

Os estudos de Piaget mostraram que a introspeção só começaa desenvolver-se durante a idade escolar. Este processo tembastantes coisas em comum com o desenvolvimento da percepção eda observação externas durante a transição entre a primeira e a

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segunda infâncias, quando a criança passa da primeira expressãosem palavras, para a percepção dos objetos orientada pelaspalavras e por estas expressa — percepção em termos designificado. De forma semelhante, a criança em idade escolar passada introspeção não formulada para a introspeção verbalizada;percebe os seus próprios processos psíquicos como processossignificantes. Mas a percepção em termos de significado implicasempre um certo grau de generalização. Consequentemente, atransição para a auto-observação verbalizada denota um processoembrionário de generalização das formas interiores de atividade. Odesvio para um novo tipo de percepção interior significa tambémum deslocamento para um tipo superior de atividade interior, poisque cada nova maneira de ver as coisas abre a porta para novaspossibilidades de as manipular. Os movimentos do jogador dexadrez são determinados pelo que vê no tabuleiro; quando a suapercepção do jogo se altera, a sua estratégia alterar-se-á também.Quando apercebemos algum dos nossos atos de uma formageneralizada, isolamo-los da nossa atividade mental total, podendoassim centrar a atenção neste processo enquanto tal e estabeleceruma nova relação com ele. Desta maneira, o fato de nos tornarmosconscientes das nossas operações e de vermos cada uma delascomo um processo de determinado tipo — tal como uma recordaçãoou a imaginação — conduz-nos a dominar esse processo.

A instrução escolar induz o tipo de percepção generalizante,desempenhando assim um papel decisivo na conscientização doprocesso mental por parte da criança. Os conceitos científicos, como seu sistema hierárquico de inter-relações, parecem ser o meio emque primeiro se desenvolvem a consciência e o domínio do objeto,sendo mais tarde transmitidos para outros conceitos e outras áreasdo pensamento. A consciência reflexiva chega à criança através dosportais dos conceitos científicos.

A caracterização que Piaget nos dá dos conceitos espontâneosda criança como não conscientes e não sistemáticos tendem aconfirmar a nossa tese. A inferência de que espontâneo é sinônimode inconsciente transparece com toda a evidência em todos os seusescritos e é fácil de ver qual a base disso. Ao operar com osconceitos espontâneos, a criança não tem qualquer consciênciadesses mesmos conceitos, pois a sua atenção se encontra semprecentrada no objeto a que o conceito se refere e nunca no próprio atode pensamento. A concepção de Piaget, segundo a qual, para acriança, os conceitos têm uma existência desligada de todo equalquer contexto, é também clara. Segundo este autor, sequisermos descobrir e explorar as idéias espontâneas da própriacriança ocultas por detrás dos conceitos não espontâneos queprofere, teremos que começar por libertá-las de todo e qualquer

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vínculo a um sistema. Esta abordagem teve como resultado o tipode respostas que exprimem a atitude não mediatizada da criançarelativamente aos objetos e que impregnam todos os livros dePiaget.

A nós parece-nos óbvio que um conceito só pode cair sob aalçada da consciência e do controle deliberado quando faz parte deum sistema. Se a consciência significa generalização, ageneralização significa, por seu turno, a formação de um conceitode grau superior que inclui o conceito dado como seu casoparticular. Um conceito de grau superior implica a existência deuma série de conceitos subordinados e pressupõe também umahierarquia de conceitos com diversos níveis de generalidade. Oexemplo que se segue pode exemplificar a função desempenhadapor estes diversos graus de generalidade na emergência de umsistema: uma criança aprende a palavra flor e pouco depois apalavra rosa; durante um longo período de tempo não se pode dizerque o conceito “flor”, embora de aplicação mais lata do que apalavra “rosa”, seja para a criança mais geral. Não inclui nemsubordina a si a palavra “rosa” — os dois conceitos são inter-permutáveis e justapostos. Quando “flor” se generaliza, a relaçãoentre “flor” e “rosa”, assim como entre flor e outros conceitossubordinados, também se transforma no cérebro da criança. Umsistema vai ganhando forma.

Nos conceitos científicos que a criança adquire na escola, arelação entre esse conceitos e cada objeto é logo de início mediadapor outro conceito. Assim, a própria noção de conceito científicoimplica uma certa posição relativamente aos outros conceitos, istoé, um lugar num sistema de conceitos. Defendemos que osrudimentos da sistematização começam por entrar no espírito dacriança através do contato que esta estabelece com os conceitoscientíficos, sendo depois transferidos para os conceitos quotidianos,alterando toda a sua estrutura psicológica de cima até baixo.

III

A inter-relação entre os conceitos científicos e os conceitosespontâneos é um caso especial de um assunto muito mais vasto: arelação entre a instrução escolar e o desenvolvimento mental dacriança. Têm sido avançadas muitas teorias relativas a esta relaçãoe tal problema é ainda hoje uma das principais preocupações daPsicologia soviética. Passaremos em revista as três tentativas pararesolver a questão, de forma a situarmos o nosso estudo nocontexto mais geral.

A primeira teoria, que ainda hoje é a defendida por maior

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número de pessoas, considera que a instrução e o desenvolvimentosão mutuamente interdependentes, encarando o desenvolvimentocomo um processo de maturação sujeito a certas leis naturais, e ainstrução como a utilização das oportunidades criadas pelodesenvolvimento. Um dos aspectos mais típicos desta escola depensamento consiste nas tentativas que levou a cabo para separarcuidadosamente os produtos do desenvolvimento dos da instrução,pressupondo que assim poderia isolá-los na sua forma pura.Nenhum investigador o conseguiu até hoje. Geralmente atribuem-seas culpas destes fracassos à inadequação dos métodos,compensando-se os mesmos fracassos com um redobrar dasanálises especulativas. Estes esforços para dividir o equipamentointelectual das crianças em duas categorias podem ir a par com anoção de que o desenvolvimento pode seguir o seu curso normal eatingir um nível elevado sem o concurso da instrução — e que atéas crianças que nunca foram à escola podem desenvolver as formasde pensamento mais elevadas acessíveis aos seres humanos. Noentanto, o mais freqüente é modificar-se esta teoria de forma aentrar em linha de conta com uma relação que obviamente existeentre o desenvolvimento e a instrução: o primeiro cria aspersonalidades: a segunda, realiza-as. Encara-se a instrução comouma espécie de superestrutura erigida por sobre a maturação; oupara mudarmos de metáfora, estabelece entre o desenvolvimento e ainstrução uma relação semelhante à que existe entre o consumo e aprodução. Temos assim uma relação unilateral: a aprendizagemdepende do desenvolvimento, mas o curso do desenvolvimento não éafetado pela aprendizagem que se aprende.

Esta teoria repousa sobre a observação muito simples,segundo a qual qualquer instrução exige um certo grau dematuridade de algumas funções: não se pode da maneira nenhumaensinar uma criança de um ano a ler ou uma criança de três anos aescrever. Com isto reduz-se a análise da aprendizagem adeterminar o nível de desenvolvimento que várias funções terão queatingir para que a instrução se torne possível. Quando a partir domomento em que a memória da criança progrediu o suficiente paralhe permitir memorizar o alfabeto, a partir do momento em que asua atenção pode fixar-se numa tarefa aborrecida, a partir domomento em que o seu espírito atingiu uma maturidade suficiente,a ponto de poder apreender a conexão existente entre o signo e osom — então, pode começar-se a ensinar a criança a escrever.Segundo esta variante da teoria a instrução arrasta-se a reboque dodesenvolvimento. O desenvolvimento tem que cumprir determinadosciclos antes da instrução poder começar.

A verdade desta última afirmação é evidente; existe de fatoum nível mínimo que é indispensável. No entanto, esta concepção

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unilateral tem como resultado uma série de concepções erradas.Suponhamos que a memória, a atenção e o pensamento da criançase desenvolveram a ponto de esta poder começar a aprender aescrita e a aritmética; será que o estudo da escrita e da aritméticaprovocará alguma transformação, algum efeito, sobre sua memória,a sua atenção ou o seu pensamento? A resposta da psicologiatradicional é a seguinte: sim, na medida em que a criança exercitaestas funções; mas o processo de desenvolvimento enquanto tal nãose altera; nada de novo se passa no desenvolvimento mental dacriança; aprendeu a ler — nada mais. Esta concepção,característica da velha teoria pedagógica também impregnaligeiramente os escritos de Piaget, que acredita que o pensamentoda criança atravessa certas fases e estádios, independentemente dainstrução que tenha, recebido; a instrução continua a ser um fatorestranho. A bitola por que se deve medir o grau de desenvolvimentoda criança não é o que aprendeu pela instrução mas a maneiracomo pensa sobre assuntos acerca dos quais nunca recebeunenhum ensinamento. Aqui a separação — ou melhor, a oposição --entre a instrução e o desenvolvimento é levada até ao extremo.

A segunda teoria relativa ao desenvolvimento e à instruçãoidentifica os dois processos e foi W. James quem primeiro a expôs.Baseia ambos os processos na associação e na formação de hábitos,tornando assim a instrução sinônimo do desenvolvimento. Estaconcepção ressurge um pouco no presente momento, sendoThorndike o seu principal promotor. A reflexologia, que traduziu oassociacionismo para a linguagem da psicologia, vê odesenvolvimento intelectual da criança como uma acumulaçãogradual de reflexos condicionados; a aprendizagem é vistaprecisamente da mesma forma. Como a instrução e odesenvolvimento são idênticos não se levanta sequer a questão darelação existente entre ambos.

A terceira escola de pensamento, representada pela teoriagestaltista, tenta reconciliar as duas anteriores teorias embora,evitando as suas fraquezas. Embora este ecletismo tenha comoresultado uma abordagem algo inconsistente, consegue com istouma certa síntese entre os dois pontos de vista opostos. Koffkaafirma que todo o desenvolvimento tem dois aspectos, a maturaçãoe a aprendizagem. Embora isto signifique que se aceitam, numaforma menos extrema, ambos os pontos de vista, a nova teoriarepresenta um avanço sobre as duas outras, sob três pontos devista.

Em primeiro lugar, Koffka admite uma certa interdependênciaentre os dois aspectos do desenvolvimento. Com base numa certaquantidade de fatos, demonstra que a maturação de um órgão

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depende do seu funcionamento, que se melhora através daaprendizagem e da prática. A maturação, por seu turno,proporciona novas oportunidades para a aprendizagem. Mas Koffkalimita-se a postular uma influenciação mútua sem a examinarpormenorizadamente. Em segundo lugar, esta teoria introduz umanova concepção do próprio processo educacional como formação denovas estruturas e aperfeiçoamento das antigas. Dessa forma,concede-se à instrução um papel estrutural significativo. Acaracterística fundamental de todas as estruturas é a suaindependência relativamente à sua substância original — pode sertransferida para outros meios. Uma vez que a criança tenhaformado determinada estrutura, ou aprendido determinadaoperação, será capaz de a aplicar a outros meios. Demos-lhe umtostão de instrução e ela ganhou um milhão. O terceiro ponto emque esta teoria se mede vantajosamente com as anteriores é a suaconcepção da relação temporal entre a instrução e odesenvolvimento. Como a instrução já transmitida em determinadaárea pode transformar e reorganizar as outras áreas do pensamentoda criança, pode não se limitar a seguir a maturação ouacompanhar o seu passo, pode também precedê-la e acelerar o seuprogresso. O admitir-se que seqüências temporais diferentes sãoigualmente possíveis e importantes é uma contribuição da teoriaeclética que não devemos subestimar.

Esta teoria coloca-nos perante uma velha questão quereaparece sob um aspecto diferente: a quase esquecida teoria dadisciplina formal, habitualmente associada com Herbart. Esta teoriadefendia que a aprendizagem de certas matérias desenvolve asfaculdades mentais em geral, para além de transmitir oconhecimento do assunto estudado e as qualificações específicasdesse assunto. Na prática, esta teoria levou às formas maisreacionárias de pedagogia, como os “liceus clássicos” alemães erussos, que davam especial e desmesurado realce ao Latim e aoGrego como fontes de “disciplina formal”. O sistema acabou por serabandonado porque não satisfazia os objetivos práticos daeducação burguesa moderna. Dentro da psicologia propriamentedita, Thorndike levou a cabo uma série de investigações,esforçando-se por desacreditar a disciplina formal e por provar quea instrução não exercia nenhum efeito apreciável sobre odesenvolvimento. A sua crítica é convincente quando se aplica aosridículos exageros da doutrina da disciplina formal, mas não afeta oseu núcleo válido.

No seu afã para demonstrar o caráter errôneo da concepçãode Herbart, Thorndike executou experiências com as funções maisespecializadas, mais limitadas e mais elementares. Do ponto devista de uma teoria que reduz todo o conhecimento à formação de

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conexões associativas, a escolha da atividade pouca importânciateria. Em algumas experiências treinou as pessoas sujeitas àobservação a estabelecerem a diferença entre o comprimentorelativo de linhas, tentando determinar depois se a práticaadquirida tinha melhorado a sua capacidade para distinguirem asdimensões de diferentes ângulos. Como é natural, verificou que talnão tinha acontecido. A influência da instrução sobre odesenvolvimento tinha sido postulada pela teoria da disciplinaformal, mas apenas relativamente a matérias como a matemática ouo ensino das línguas, que mobilizam vastos complexos de funçõespsíquicas. A capacidade para avaliar o comprimento de algumaslinhas pode não afetar a capacidade para distinguir entre ângulosdiferentes, mas tal não quer dizer que o estudo da língua materna— com o conseqüente aperfeiçoamento dos conceitos — deixe de terqualquer efeito sobre o estudo da aritmética. A obra de Thorndikeapenas faz surgir como possível a existência de dois tipos deinstrução: o adestramento numa qualquer qualificaçãoespecializada, como por exemplo, a datilografia, que mobiliza aformação de hábitos e exige uma certa prática, que é a instruçãomais freqüente nas escolas profissionais para adultos, e o tipo deinstrução dada às crianças, que ativa vastas áreas da consciência.A idéia da disciplina formal pode ter pouco a ver com o primeirotipo de instrução, mas pode verificar-se válida para o segundo tipo.Salta à evidência que no processo superior que surge no decurso dodesenvolvimento cultural da criança, a disciplina formal devedesempenhar um papel que não desempenha nos processos maiselementares: todas as funções mais elevadas têm em comum aconsciência, o controle e a abstração. Em consonância com asconcepções teóricas de Thorndike, as diferenças qualitativas entreas funções mais elevadas e as funções mais elementares sãoignoradas nos seus estudos sobre a transferência da instrução.

Para formularmos a nossa proposta de teoria sobre a relaçãoentre a instrução e o desenvolvimento, partimos de quatro séries deinvestigações, (2) que tinham por propósito comum pôr a nu estasinter-relações complexas em certas áreas de instrução escolar:escrita e leitura, gramática, aritmética, ciências naturais e ciênciassociais. Os inquéritos específicos que levamos a cabo incidiam sobretópicos como o domínio do sistema decimal em função dodesenvolvimento do conceito de número; a consciência da criançarelativamente às operações que executa ao resolver problemasmatemáticos; os processos de interpretação e resolução dosproblemas, utilizados pelos detentores do primeiro grau de ensino.Veio a lume muito material interessante sobre o desenvolvimento dalinguagem escrita e falada durante a idade escolar, sobre os níveisde compreensão do significado figurado, daquele desenvolvimentodecorrentes, sobre a influência do domínio das estruturas

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gramaticais na evolução do desenvolvimento mental, sobre acompreensão das relações no estudo das ciências sociais e naturais.As investigações centravam-se sobre a nível de maturidade atingidopelas funções psíquicas no começo da escolaridade e a influênciada escolaridade sobre o seu desenvolvimento; sobre a seqüênciatemporal da instrução e do desenvolvimento; sobre as funções dasvárias matérias de ensino no âmbito da disciplina formal.

1.Na nossa primeira série de estudos, examinamos o nível dedesenvolvimento das funções psíquicas necessárias para aaprendizagem das matérias escolares básicas — leitura e escrita,aritmética, ciências naturais. Descobrimos que não se poderiaconsiderar que estas funções se encontrassem maduras noprincípio da instrução, mesmo para o caso das crianças que semostraram capazes de dominar o currículo muito rapidamente, ecom muito bons resultados. A linguagem escrita é um bom exemplo.Por que razão a escrita é tão difícil para os jovens estudantes queem certos períodos há um desfasamento de seis ou oito anos entreas suas “idades lingüísticas” escrita e falada? Habitualmente,explicava-se isto pela novidade da escrita: como nova função, estatem que repetir os estádios de desenvolvimento da fala; porconseguinte, a escrita de uma criança com oito anos de idade deveassemelhar-se à fala de um bebê de dois anos. Este último utilizapoucas palavras e uma sintaxe muito simples, porque o seuvocabulário é reduzido e não possui qualquer conhecimento dasestruturas das frases mais complexas; mas a criança em idadeescolar possui as formas gramaticais e lexicais necessárias àescrita, visto que são iguais às que se utilizam na linguagem falada.As dificuldades de dominar a mecânica da escrita não podemtambém explicar o tremendo abismo existente entre a linguagemoral e a linguagem escrita da criança em idade escolar. A nossainvestigação mostrou que o desenvolvimento da escrita não repete ahistória do desenvolvimento da fala. A linguagem escrita é umafunção lingüística distinta, que difere da linguagem oral tanto pelasua estrutura como pela sua função. Até os seus estádios maiselementares de desenvolvimento exigem um alto nível de abstração.É uma linguagem feita apenas de pensamento e imagem,faltando-lhe as qualidades musicais, expressivas e de entoaçãocaracterísticas da linguagem oral. Ao aprender a escrever, a criançatem que se libertar do aspecto sensorial da linguagem e substituiras palavras por imagens de palavras. Uma linguagem que épuramente imaginativa e que exige a simbolização da imagemsonora por meio dos signos escritos (isto é, um segundo grau desimbolização) terá que ser mais difícil para a criança do que alinguagem oral, tal como a álgebra é mais difícil do que aaritmética. Os nossos estudos mostram que é a qualidade abstratada linguagem escrita que constitui o obstáculo mais importante e

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não o subdesenvolvimento dos pequenos músculos ou quaisqueroutros obstáculos mecânicos.

A escrita é também um discurso sem interlocutor, dirigido auma pessoa ausente ou imaginária ou a ninguém em particular —situação esta que, para a criança, é nova e estranha. Os nossosestudos mostram que, no início do ensino, as motivações da criançapara aprender a escrever são muito fracas. A criança não sentequalquer necessidade disso e só tem uma vaga idéia da suautilidade. Na conversação, todas as frases são impelidas por ummotivo: o desejo ou a necessidade conduzem os pedidos, asperguntas arrastam consigo as respostas, o espanto leva àexplicação. Os móbeis mutáveis variáveis dos interlocutoresdeterminam em cada momento a elocução, o curso da linguagemoral. Esta não precisa de ser conscientemente orientada — asituação dinâmica encarrega-se disso. Os motivos para escrever sãomais abstratos, mais intelectualizados, encontram-se maisafastados das necessidades imediatas. No discurso escrito, somosobrigados a recriar a situação, a representá-la para conosco. Istoexige um certo distanciamento face à situação real.

A ação de escrever exige também da parte da criança umaação de análise deliberada. Quando fala, a criança tem umaconsciência muito imperfeita dos sons que pronuncia e não temqualquer consciência das operações mentais que executa. Quandoescreve, tem que tomar consciência da estrutura sonora de cadapalavra, tem que dissecá-la e reproduzi-la em símbolos alfabéticosque têm que ser memorizados e estudados de antemão. Da mesmaforma deliberada, tem que dar às palavras uma certa seqüênciapara formar uma frase. A linguagem escrita exige um trabalhoconsciente, porque a relação que mantém com o discurso interior édiferente da linguagem falada: esta última precede o curso dedesenvolvimento, ao passo que a linguagem escrita aparece depoisdo discurso interior e pressupõe a sua existência (o ato de escreverimplica uma tradução a partir do discurso interior). Mas agramática do pensamento não é igual em ambos os casos.Poderíamos até dizer que a sintaxe do discurso interior é o exatocontrário da sintaxe da palavra escrita, constituindo a linguagemfalada um caso intermédio.

O discurso interior é uma linguagem completamentedesabrochada em toda a sua dimensão, é uma linguagem maiscompleta do que a falada. O discurso interior é quasecompletamente predicativo porque a situação, o assunto pensado, ésempre conhecido de quem pensa. A linguagem escrita, pelocontrário tem que explicar completamente a situação para serinteligível. A transformação do discurso interior, condensado ao

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máximo, em linguagem escrita, pormenorizada ao máximo, exige oque poderíamos designar por semântica deliberada — estruturaçãodeliberada do fluir do significado.

Todos estes traços da linguagem escrita explicam por querazão o seu desenvolvimento na criança em idade escolar seguemuito atrasado em relação ao da linguagem oral. A discrepância écausada pela proficiência da criança nas atividades espontâneas,inconscientes e na sua falta de qualidades para a atividadeabstrata, deliberada. Como os nossos estudos mostraram, asfunções psicológicas sobre que se baseia a linguagem escrita aindanão se começaram a desenvolver quando o ensino da escrita seinicia e este tem que se erguer sobre os alicerces de processosrudimentares que mal estão começando a surgir por essa altura.

Resultados semelhantes se obtêm nos domínios da aritmética,da gramática e das ciências naturais. Em todos estes casos, asfunções necessárias para a aprendizagem nunca se encontrammaduras quando o ensino começa. Analisaremos brevemente o casoda gramática, que apresenta algumas características especiais.

A gramática é uma matéria que parece não ter grandeutilidade prática. Ao contrário de outras matérias escolares, não dáà criança qualificações que não possuísse já. A criança já conjuga edeclina quando entra para a escola e até houve quem afirmasse queo ensino da gramática podia ser dispensado. A isto só podemosretorquir que a nossa análise mostrou com toda a clareza que oestudo da gramática é de primeiríssima importância para odesenvolvimento mental da criança

É certo que, muito antes de entrar na escola, a criança possuijá um certo domínio da gramática da sua língua materna, mastrata-se de um domínio inconsciente adquirido duma formapuramente estrutural, tal como se adquire a composição fonéticadas palavras. Se pedirmos a uma criança de tenra idade queproduza uma combinação de sons, por exemplo, sc, veremos quelhe é muito difícil articulá-las deliberadamente; no entanto, no seiode uma estrutura, como na palavra Moscovo, a criança pronunciaráos mesmos sons facilmente. O mesmo se passa com a gramática. Acriança utilizará o caso ou o tempo do verbo corretamente numafrase, mas não será capaz de declinar ou conjugar uma palavra anosso pedido. Pode não adquirir novas formas gramaticais ousintáticas na escola, mas, graças ao ensino da gramática e daescrita, pode ganhar consciência do que faz para utilizarconscientemente as suas qualificações. Tal como, ao aprender aescrever a palavra Moscovo aprende que esta palavra é compostapelos sons m-o-s-c-o-v-o e aprende a pronunciar cada um desses

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sons separadamente, também aprende a construir frases, a fazerconscientemente o que fazia inconscientemente ao falar. Agramática e a escrita ajudam a criança a elevar-se a um nível maiselevado de desenvolvimento lingüístico.

Assim. a nossa investigação mostra que o desenvolvimentodos alicerces psicológicos necessários para o ensino das matérias debase não precede esse ensino, mas desabrocha numa contínuainteração com os contributos do ensino.

2. A nossa segunda série de investigações centrou-se sobre asrelações temporais entre os processos de ensino e odesenvolvimento das funções psicológicas que lhes correspondem.Descobrimos que o ensino geralmente precede o desenvolvimento. Acriança adquire certos hábitos e qualificações num dado domínioantes de aprender a aplicá-los consciente e deliberadamente. Nuncahá um paralelismo completo entre o curso do ensino e odesenvolvimento das correspondentes funções.

O ensino tem a sua própria seqüência e a sua própriaorganização, segue um currículo e um horário e não se podeesperar que as suas leis coincidam com as leis internas dosprocessos de desenvolvimento que solicita e mobiliza. Com base nosestudos que levamos a cabo, tentamos traçar curvas querepresentassem a evolução do ensino e das funções psicológicas quenele participavam; estas curvas não eram coincidentes, muito pelocontrário, evidenciavam uma relação complexa a mais não poderser.

Por exemplo, os diferentes passos dados na aprendizagem daaritmética podem não ter igual valor para o desenvolvimentomental. Acontece muitas vezes que três ou quatro estádiospercorridos no ensino desta matéria pouco acrescentam aoconhecimento que a criança tenha da aritmética e que, com oquinto passo, haja como que uma revelação: a criançacompreendeu um princípio geral e a sua curva de desenvolvimentosofre uma súbita e marcada subida. Para esta criança particular, oquinto passo foi decisivo, mas tal não pode tomar-se como regrageral. O currículo não pode determinar com antecedência o pontode viragem em que um princípio geral se torna claro paradeterminada criança. Não se ensina à criança o sistema decimal emsi, ensina-se-lhe a escrever números, a somar e a multiplicar, aresolver problemas e de tudo isto acabam por emergir alguns dosconceitos gerais do sistema decimal.

Quando a criança aprende uma operação aritmética ou umconceito científico, o desenvolvimento dessa operação ou do conceito

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está apenas no início. O nosso estudo mostra que a curva dedesenvolvimento não coincide com a curva do ensino escolar; oensino precede de muito o desenvolvimento.

3. A nossa terceira série de investigações assemelha-se aosestudos que Thorndike levou a cabo sobre a transferência doadestramento, exceto num aspecto: fizemos incidir as nossasexperiências não sobre as funções mais elementares, mas sobrematérias de ensino escolar e sobre as funções superiores, quer dizersobre as matérias e funções de que se poderia esperar que tivessemrelações significativas entre si.

Descobrimos que o desenvolvimento intelectual, muito aoinvés de seguir o modelo atomista de Thorndike, não se encontracompartimentado segundo os temas do ensino. A sua evolução émuito mais unitária, e as diferentes matérias escolaresinfluenciam-se mutuamente ao impulsionarem o seudesenvolvimento. Embora o processo de ensino siga a sua própriaordem lógica, desperta e orienta no cérebro da criança um sistemade processos que se encontra oculto à observação direta e quesegue as suas próprias leis de desenvolvimento. A detecção destesprocessos de desenvolvimento estimulados pela instrução é umadas tarefas fundamentais do estudo psicológico da aprendizagem.

Especificamente, as nossas experiências puseram emevidência os seguintes fatos inter-relacionados: as condições préviasdo ensino para diferentes matérias escolares são essencialmentesemelhantes; o ensino de uma determinada matéria influencia odesenvolvimento das funções superiores para além dos confinsdessa matéria específica; as principais funções psíquicasmobilizadas pelo estudo de várias matérias são interdependentes —as suas bases comuns são constituídas pela consciência e pelodomínio deliberado da matéria, os principais contributos dosprimeiros tempos de escola. Destas descobertas segue-se que todasas matérias escolares fundamentais atuam como uma disciplinaformal, facilitando cada uma delas a aprendizagem das outras; asfunções psicológicas por elas estimuladas desenvolvem-se numúnico processo complexo.

4. Na quarta série de estudos, atacamos um problema a quenão se prestou a devida atenção no passado, mas queconsideramos ser de importância fulcral para o estudo do ensino edo desenvolvimento.

A maior parte das investigações psicológicas relativas àaprendizagem escolar mediam o nível de desenvolvimento mental dacriança propondo-lhe a resolução de certos problemas

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estandardizados. Presumia-se que a quantidade de problemas quefosse capaz de resolver sozinha indicaria o nível do seudesenvolvimento mental nesse momento particular. Mas destamaneira, só se pode medir a parte do desenvolvimento da criançaque se encontra acabada, e esta é bem reduzida percentagem doacervo total. Tentamos abordar o assunto de diferente modo. Tendodeterminado que a idade mental de duas crianças era de oito anos,digamos, demos a cada uma delas problemas mais difíceis do queos que conseguiriam resolver por si sós, dando-lhes leve ajuda: oprimeiro passo da solução, ou outra qualquer forma de ajuda.Descobrimos que, em cooperação, uma das crianças podiaconseguir resolver problemas concebidos para crianças de dozeanos, enquanto a outra não conseguia ir além dos problemaspensados para crianças de nove anos. A discrepância entre a idademental real de uma criança e o nível que atinge quando resolveproblemas com auxílio indica a zona do seu desenvolvimentopróximo: no nosso exemplo, esta zona era de quatro para a primeiracriança e de um para a segunda. Podemos dizer realmente que oseu desenvolvimento é o mesmo? A experiência ensinou-nos que acriança com a zona mais extensa de desenvolvimento próximo terámelhor aproveitamento na escola. Esta medida dá-nos umaindicação acerca da dinâmica da evolução intelectual mais útil doque a idade mental.

Hoje em dia, os psicólogos compartilham da convicção doleigo, segundo a qual a imitação é uma atividade mecânica e quequalquer pessoa pode imitar praticamente tudo o que quiser se lhemostrarem como. Para imitar, é preciso dominar os meiosnecessários para avançar de algo que conhecemos para algo quedesconhecemos. Com o auxílio externo, todas as crianças podemfazer mais do que o que conseguiriam por si sós — embora apenasdentro dos limites impostos pelo seu grau de desenvolvimento.Koehler descobriu que um chimpanzé só consegue imitar os atosinteligentes de outros macacos que está em condições deeventualmente executar por si. É certo que o adestramentopersistente pode induzi-lo a executar ações muito maiscomplicadas, mas estas são executadas de uma forma mecânica etrazem todas as marcas dos hábitos sem sentido, mais do que dasintuições percucientes. Até o mais esperto dos animais é incapaz dese desenvolver intelectualmente através da imitação. Pode sertreinado, aperfeiçoado, a praticar certos atos específicos, mas osnovos hábitos não produzem novas capacidades gerais. Nestesentido, pode dizer-se que é impossível ensinar os animais.

No desenvolvimento das crianças, pelo contrário, a imitação eo ensino desempenham um papel de primeira importância. Põemem evidência as qualidades especificamente humanas do cérebro e

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conduzem a criança a atingir novos níveis de desenvolvimento. Aimitação é indispensável para se aprender a falar, assim como parase aprender as matérias escolares. A criança fará amanhã sozinhaaquilo que hoje é capaz de fazer em cooperação. Por conseguinte, oúnico tipo correto de pedagogia é aquele que segue em avançorelativamente ao desenvolvimento e o guia; deve ter por objetivo nãoas funções maduras, mas as funções em vias de maturação.Continua a ser necessário determinar o limiar mínimo a que devecomeçar, digamos, a educação aritmética, pois que é necessáriauma maturidade mínima das funções; mas temos que entrar emlinha de conta com o limiar superior: a instrução deve estar voltadapara o futuro e não para o passado.

Durante um certo período as nossas escolas favoreceram osistema “complexo” de instrução que se julgava encontrar-seadaptado à maneira de pensar das crianças. Ao pôr as criançasperante problemas que estas conseguiam resolver sem ajuda, estemétodo não conseguia utilizar a zona de desenvolvimento próximo edirigir a criança no sentido do que ainda não conseguia levar acabo. A educação seria orientada mais para as fraquezas da criançado que para os seus pontos fortes, encorajando-a assim apermanecer no estádio de desenvolvimento pré-escolar.

Para cada matéria de ensino há um período em que a suainfluência é mais proveitosa, porque a criança se encontra maisreceptiva. Montessori e outros educadores chamaram-lhe o períodosensitivo, termo que é usado também em biologia para os períodosde desenvolvimento ontogênico em que o organismo éparticularmente sensível a determinado tipo de influências. Duranteesse período, uma influência que antes ou depois pouco efeito teriapode alterar radicalmente a evolução do desenvolvimento. Mas aexistência de um tempo ótimo para o ensino de determinadoassunto não pode ser explicada em termos puramente biológicos,pelo menos no que toca a processos tão complexos como alinguagem escrita. As nossas investigações demonstraram anatureza social e cultural do desenvolvimento das funçõessuperiores durante este período, isto é, a sua dependênciarelativamente à cooperação com os adultos e ao ensino que estesministram. Os dados de Montessori não perderam contudo arelevância. Ela descobriu por exemplo que se se ensinar umacriança a escrever muito cedo, quando chega aos quatro e meio oucinco anos, a resposta dela é “uma explosão de escrita”, umaabundante e imaginativa utilização da linguagem falada que não énunca igualada por crianças de idade superior. Eis um exemploflagrante da forte influência que a instrução pode ter quando ascorrespondentes funções ainda não amadureceram completamente.A existência de períodos sensitivos para todas as matérias de ensino

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é perfeitamente escorada pelos dados que obtivemos nos nossosestudos. O período de escolaridade como um todo é o período ótimopara o ensino de operações que exigem consciência e controledeliberado; o ensino destas operações impulsiona ao máximo odesenvolvimento das funções psicológicas superiores na altura dasua maturação. Isto aplica-se também ao desenvolvimento dosconceitos científicos a que a escola primária introduz as crianças.

IV

Sob a nossa orientação, Zh.I. Shif conduziu uma investigaçãosobre o desenvolvimento dos conceitos quotidianos e científicosdurante a idade escolar (37). O seu principal propósito era o detestar experimentalmente as nossas hipóteses de trabalho sobre odesenvolvimento dos conceitos científicos em comparação com osconceitos quotidianos. Apresentavam-se à criança problemasestruturalmente semelhantes incidindo quer sobre materialcientífico, quer sobre material “ordinário”, comparando-se assoluções. As experiências iam desde a efabulação de histórias apartir de uma série de gravuras que mostravam o início de umaação, a sua continuação e o seu termo até ao completar defragmentos de frases terminadas por porque ou embora; estestextos eram complementados por análises clínicas. O material deuma série de testes foi retirado de cursos sociais do segundo e doquarto graus. A segunda série utilizava situações simples da vida dodia a dia, tais como: “o rapaz foi ao cinema, porque...”, “a meninaainda não sabe ler, embora...”, “Ele caiu da bicicleta, porque...”.Utilizaram-se métodos suplementares de estudo, como por exemplo:testou-se a extensão dos conhecimentos das crianças durantealgumas lições especialmente organizadas para o efeito. As criançasque estudamos eram alunas da escola primária.

As análises dos dados, que foram comparados em separadopara os diferentes grupos etários, mostraram que, na medida emque o currículo fornece o material necessário, o desenvolvimentodos conceitos científicos precede o desenvolvimento dos conceitosespontâneos.

Quantidade de fragmentos de frase corretamente

completados

SEGUNDO GRAU QUARTO GRAU*

Fragmentos terminados em “porque”

conceitos científicos 79,7% 81,8%

conceitos quotidianos 59,0% 81,3%

Fragmentos terminados em “embora”

conceitos científicos 81,3% 79,5%

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conceitos quotidianos 16,2% 65,5%

(*) No sistema escolar russo, as crianças do segundo e do quartograus terão, em média, oito a dez anos de idade.

Como poderemos explicar que a freqüência de resoluçõescorretas seja maior para os problemas que envolvem conceitoscientíficos do que para os problemas que envolvem conceitos davida quotidiana? Podemos de imediato pôr de parte a noção de quea criança é auxiliada pela informação que recebe na escola,faltando-lhe experiência nas coisas do dia a dia. Os nossos testas,tal como os de Piaget, incidiam sobre assuntos e relações que eramfamiliares às crianças e que estas mencionavam espontaneamentenas suas conversas. Ninguém pode admitir que uma criança saibamenos de bicicletas, de crianças, ou de escolas do que da luta declasses, da exploração ou da Comuna de Paris. A vantagem dafamiliaridade pesa totalmente a favor dos conceitos quotidianos.

A criança deve achar difícil resolver problemas da vidaquotidiana porque carece de consciência destes conceitos e portantonão pode operar com eles da forma que é exigida pela tarefa. Umacriança de oito ou nove anos utiliza corretamente a palavra“porque” numa conversa espontânea; nunca diria que um meninocaiu da bicicleta e partiu a perna porque foi levado para o hospital.No entanto, é com este tipo de afirmações que age até que oconceito de “porque” se torne completamente consciente. Por outrolado, completa corretamente frases sobre assuntos de ciênciassociais, como “A economia planificada é possível na URSS porquenão há propriedade privada — todas as fábricas, terras e oficinaspertencem aos operários e camponeses”. Por que razão é a criançacapaz de executar a operação neste caso? porque o professor,trabalhando com o aluno, forneceu a informação, fez perguntas,corrigiu e obrigou a criança a explicar. Os conceitos da criançaforam formados pelo processo da aprendizagem, em colaboraçãocom um adulto. Ao completar a frase, ela faz uso dos frutos dessacolaboração, desta vez independentemente. A ajuda do adulto,invisivelmente presente, permite à criança resolver esses problemasmais cedo do que os problemas da vida quotidiana.

No mesmo grupo etário (segundo grau), as frases com emborapatenteiam um quadro diferente: os conceitos científicos não seencontram mais avançados do que os conceitos da vida quotidiana.Sabemos que as relações adversativas aparecem mais tarde do queas relações causais no pensamento infantil espontâneo. Umacriança dessa idade pode aprender a utilizar conscientemente apalavra “porque”, pois nessa altura já domina o seu empregoespontâneo. Como não domina ainda igualmente a palavra

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“embora”, não pode, como é natural, utilizá-la deliberadamente noseu pensamento “científico”; por conseguinte, a percentagem derespostas certas é igualmente baixa para ambas as séries de testes.

Os nossos dados mostram um rápido progresso na soluçãodos problemas da vida quotidiana: no quarto grau os fragmentoscom “porque” são corretamente completados com igual freqüênciapara os conceitos quotidianos e os conceitos científicos. Istoconfirma a nossa hipótese de que um nível mais elevado no domíniodos conceitos científicos também eleva o nível dos conceitosquotidianos espontâneos. Uma vez atingidos a consciência e ocontrole em determinado tipo de conceitos, todos os conceitospreviamente formados são reconstruídos em conformidade com essaconsciência e esse controle.

A relação entre os conceitos científicos e os conceitosquotidianos espontâneos na categoria adversativa apresenta, noquarto grau, um aspecto bastante semelhante ao da categoriacausal no segundo grau. A percentagem de soluções corretas paratarefas que mobilizam os conceitos científicos ultrapassa apercentagem dos que mobilizam os conceitos espontâneos. Se adinâmica é a mesma para ambas as categorias, será de esperar queos conceitos quotidianos se desenvolvam rapidamente no estádioseguinte do desenvolvimento, acabando por apanhar os conceitoscientíficos. Começando dois anos mais tarde, todo o processo dedesenvolvimento de “embora” duplicaria a velocidade do de“porque”.

Pensamos que os nossos dados confirmam a hipótesesegundo a qual desde o princípio os conceitos científicos eespontâneos da criança — por exemplo, os conceitos de“exploração” e de “irmão” — se desenvolvem em sentidos inversos:partindo de pontos muito afastados movem-se em direção um aooutro. Este ponto é o fulcro da nossa hipótese.

A criança ganha consciência dos seus conceitos espontâneosrelativamente tarde; a capacidade para os definir por meio depalavras, para operar com eles conforme queira, aparece muitodepois de ter adquirido os conceitos. Ela possui o conceito (isto é,conhece o objeto a que o conceito se refere), mas não temconsciência do seu ato de pensamento. No seu desenvolvimento, oconceito científico, em contrapartida, começa usualmente pela suadefinição verbal sendo logo de início utilizado em operações nãoespontâneas — quer dizer, logo de início se começa a operar com opróprio conceito, que começa a sua vida no cérebro da criança a umnível que os conceitos espontâneos só atingem mais tarde.

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Um conceito infantil do dia a dia, como, por exemplo, “irmão”,está impregnado de experiência concreta. No entanto, quando selhe pede para resolver um problema abstrato sobre o irmão de umirmão, como nas experiências de Piaget, por exemplo, a criança ficaconfusa. Por outro lado. embora possa responder corretamente aquestões sobre a “escravatura”, a “exploração” ou a “guerra civil”estes conceitos são esquemáticos e carecem do rico conteúdoproveniente da experiência pessoal. São gradualmente preenchidospelo trabalho escolar e pelas leituras posteriores. Dir-se-ia que odesenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança se processade baixo para cima e que o desenvolvimento dos conceitoscientíficos segue uma trajetória descendente, em direção a um nívelmais elementar e concreto. Isto é conseqüência da diversidade deformas como os dois tipos de conceitos surgem. Se procurarmos araiz de um conceito espontâneo veremos geralmente que este temorigem numa situação de confronto com uma situação concreta, aopasso que os conceitos científicos implicam logo de início umaatitude “mediada” relativamente ao seu objeto.

Embora os conceitos científicos e espontâneos se desenvolvamem direções inversas, os dois processos estão estreitamenterelacionados. Por exemplo, os conceitos históricos podem começarpor desenvolver-se apenas quando o anterior conceito quotidiano dacriança se encontra suficientemente diferenciado — quando a suavida e a vida dos que a rodeiam pode conformar-se à generalizaçãoelementar “no passado e agora”, os seus conceitos geográficos esociológicos crescerão necessariamente sobre o terreno do esquemasimples “cá e lá”. Ao forçarem lentamente o seu caminhoascendente, os conceitos quotidianos abrem caminho para osconceitos científicos e o seu desenvolvimento descendente. Cria umasérie de estruturas necessárias para a evolução dos aspectos maisprimitivos e elementares de um conceito, que lhe dão corpo evitalidade. Os conceitos científicos, por seu turno, fornecemestruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitosespontâneos da criança rumo à consciência e à utilizaçãodeliberada. Os conceitos científicos desenvolvem-se para baixo,através dos conceitos espontâneos; os conceitos espontâneosdesenvolvem-se para cima, através dos conceitos científicos.

A influência dos conceitos científicos sobre o desenvolvimentomental da criança é análogo ao efeito resultante da aprendizagemde uma língua estrangeira, processo que é consciente e deliberadodesde o início. Na língua materna de cada qual, os aspectos maisprimitivos da linguagem são adquiridos antes dos mais complexos.Estes últimos pressupõem uma certa consciência das formasfonéticas, sintáticas e gramaticais, mas, com uma línguaestrangeira, as formas superiores desenvolvem-se antes do discurso

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espontâneo e fluente. As teorias intelectualistas da linguagem,como, por exemplo, a de Stern, que põem toda a tônica na relaçãoentre o signo e o significado já desde o início do desenvolvimentolingüístico, contêm um certo grau de verdade no caso das línguasestrangeiras. Os pontos fortes da criança nas línguas estrangeirassão os pontos fracos na sua própria língua e vice-versa. Na suaprópria linguagem, a criança conjuga e declina corretamente massem perceber o que faz: não sabe dizer o gênero, o caso ou tempoda palavra que emprega. Numa língua estrangeira, distingue entreos gêneros masculino e feminino e tem consciência das formasgramaticais desde o principio.

Com a fonética dá-se o mesmo. Embora não dê erros depronúncia na sua língua materna, a criança não tem consciênciados sons que pronuncia e, quando aprende a soletrar, sentegrandes dificuldades para dividir uma palavra nos sons que acompõem. Numa língua estrangeira, fá-lo facilmente e a escrita nãose atrasa relativamente à fala. Acha dificuldades na pronúncia, nafonética “espontânea”. O discurso fluente e espontâneo, com umdomínio rápido e seguro das estruturas gramaticais só lhe vemdepois de longo e árduo estudo.

Os resultados obtidos na aprendizagem de uma línguaestrangeira estão dependentes de se ter ou não atingido um certograu de maturidade na língua materna. A criança pode transferirpara a nova língua o sistema de significados que já possuía na suaprópria língua e o inverso também é verdade: uma línguaestrangeira facilita o domínio das formas superiores da línguamaterna. A criança aprende a ver a sua língua materna como umsistema particular entre muitos, aprende a considerar os seusfenômenos à luz de categorias mais vastas e isto conduz àconsciência das operações lingüisticas. Goeth disse com verdadeque “aquele que não conhece nenhuma língua estrangeira nãoconhece verdadeiramente a sua própria língua”.

Não é de surpreender que exista uma certa analogia entre ainteração mútua da língua materna e da língua estrangeira e ainteração entre os conceitos científicos e os conceitos da vidacotidiana, na medida em que ambos os processos fazem parte daesfera do pensamento verbal em desenvolvimento. Há contudotambém diferenças essenciais entre eles. No estudo das línguasestrangeiras, a atenção fixa-se nos aspectos exteriores, sonoros,físicos do pensamento verbal; no desenvolvimento dos conceitoscientíficos, a atenção fixa-se nos aspectos semânticos. Os doisprocessos de desenvolvimento seguem caminhos separados, emborasemelhantes.

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Não obstante, ambos os processos sugerem uma respostaúnica para o problema do modo como se formam os novos sistemas,estruturalmente análogos aos mais primitivos: a linguagem falada,a escrita, as línguas estrangeiras, o pensamento verbal, dumaforma geral. Os fatos experimentais resultantes dos nossos estudosinfirmam a teoria da transferência, que afirma que o estádioprimitivo mais avançado repete a trajetória do estádio anterior,verificando-se inclusive a recorrência das dificuldades já superadasno plano inferior. Todas as nossas provas confirmam a hipótese deque sistemas análogos se desenvolvem em sentidos inversos ao nívelsuperior e inferior, e que cada sistema influencia o outro e beneficiados pontos fortes do outro.

Podemos agora voltar-nos para a inter-relação dos conceitosnum sistema — o ponto fulcral da nossa análise.

Os conceitos não se encontram depositados no cérebro dacriança como ervilhas num saco, sem qualquer relação que os una.Se assim fosse, não seria possível nenhuma relação intelectual queexigisse uma coordenação de pensamentos, nem nenhumaconcepção geral do mundo. Nem sequer poderiam existir conceitosseparados enquanto tais; a sua própria natureza pressupõe umsistema.

O estudo dos conceitos das crianças a cada nível etáriomostra que o grau de abstração de generalidade (planta, flor, rosa)é a variante psicológica fundamental a partir da qual os conceitospodem ser hierarquizados significativamente. Se todos os conceitossão generalizações, então a relação entre os conceitos é uma relaçãode generalidade. O aspecto lógico dessa relação foi estudado muitomais completamente do que os seus aspectos genético e psicológico.O nosso estudo tenta colmatar este desfasamento.

Comparamos os graus de generalidade dos conceitos reais dacriança com as fases e os estádios atingidos por esta na formaçãoexperimental dos conceitos: sincretismo, complexos, pré-conceitos econceitos. Era nosso propósito descobrir se existia uma relaçãodefinida entre a estrutura da generalização tipificada por estasduas fases e o grau de generalização dos conceitos.

Conceitos com diferentes graus de generalidade podem surgirnuma mesma estrutura generalizativa. Por exemplo, as idéias derosa e de flor podem encontrar-se simultaneamente presentes noestádio do pensamento por complexos. Em conformidade com isso,podem aparecer conceitos de igual grau de generalidade emestruturas com diferentes graus de generalização; por exemplo, apalavra “flor” pode aplicar-se a todas as flores e a cada uma delas

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quer no estádio do pensamento por complexos, quer no estádio dopensamento conceptual. Descobrimos porém que, apesar de nãohaver completa correspondência, cada fase, ou cada estruturageneralizativa, tem como contrapartida um certo nível degeneralidade, uma relação específica entre os conceitos de ordemsuperior e de ordem inferior, uma combinação característica doconcreto e do abstrato. É verdade que o termo flor pode ser tãogeral ao nível do complexo como ao nível do conceito, mas apenasno tocante aos objetos a que se refere. Neste caso, um grauequivalente de generalidade não implica uma identidade de todos osprocessos psicológicos mobilizados pela aplicação da palavra.Assim, no pensamento complexo a relação entre “flor” e “rosa” não éuma relação de subordinação hierárquica: o conceito mais lato e oconceito mais restrito coexistem no mesmo plano.

Nas nossas experiências, uma criança muda aprendeu semgrandes dificuldades as palavras mesa, cadeira, escritório, divã,prateleiras, etc.. No entanto, verificou-se que a palavra mobília erade apreensão demasiado difícil. A mesma criança, que aprenderacom êxito as palavras camisa, chapéu, casaco, calças, etc., nãoconseguiu ultrapassar o nível desta série e aprender a palavraroupa. Verificamos que a um determinado nível de desenvolvimentoa criança é incapaz de deslocar-se “verticalmente” do significado deuma palavra para o de outra, isto é, de compreender as suasrelações de generalidade. Todos estes conceitos se encontram aomesmo nível, todos eles se referem diretamente a determinadosobjetos e são mutuamente delimitados da mesma turma que osobjetos são delimitados: o pensamento verbal mais não é do queuma componente do pensamento sensorial, determinado pelosobjetos. Por conseguinte, teremos que considerar este estádio comoum estádio pouco desenvolvido e sincrético no desenvolvimento dosignificado das palavras. O surgimento do primeiro conceitogeneralizado, como, por exemplo, o conceito de “mobília” ou de“roupas” é um sintoma de progresso tão relevante como osurgimento da primeira palavra com sentido.

Os níveis superiores de desenvolvimento do significado daspalavras regem-se pela lei da equivalência dos conceitos, segundo aqual todo e qualquer conceito pode ser formulado em termos deoutros conceitos, de um número ilimitado de maneiras.Ilustraremos o esquema subjacente a esta lei por meio de umaanalogia não tão rigorosa como seria idealmente de desejar, masque é bastante aproximada para o que pretendemos.

Se imaginarmos a totalidade dos conceitos distribuída pelasuperfície do globo, a localização de cada um deles pode serdefinida por meio de um sistema de coordenadas, que

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corresponderiam à latitude e à longitude da geografia. Uma destascoordenadas indicará a localização de um conceito entre osextremos da conceptualização abstrata do maior grau degeneralização possível e a apreensão imediata sensorial de umobjeto — isto é, o seu grau de concreto e de abstração. A segundacoordenada representará a referência objetiva do conceito, o pontoda realidade a que se aplica. Dois conceitos que se apliquem adiferentes áreas da realidade, mas que possuam o mesmo grau deabstração — por exemplo, plantas e animais — poderia conceber-seque teriam diferentes latitudes, mas a mesma longitude. A analogiageográfica falha em vários pormenores: por exemplo, os conceitosmais generalizados aplicam-se a um conteúdo de área mais vasta,fato que deveria ser representado na latitude por uma linha e nãopor um ponto. Mas serve-nos para transmitir a idéia de que, paracaracterizarmos adequadamente um conceito teremos de o colocarem dois domínios contínuos — um que representa o conteúdoobjetivo e outro que representa os atos de pensamento queapreendem o conteúdo. A interseção destes dois domíniosdetermina todas as relações entre o conceito dado e todos os outros— os conceitos que se lhe encontram coordenados, subordinados ouque os subordinam. A esta posição de um conceito no sistema totaldos conceitos poderemos chamar a medida da sua generalidade.

As múltiplas relações mútuas dos conceitos, sobre que sebaseia a lei da equivalência, são determinadas pelas respectivasmedidas de generalidade. Tomemos dois exemplos extremos: asprimeiras palavras infantis (pré-sincréticas), que carecem dequalquer grau de generalidade e os conceitos de númerosdesenvolvidos através dos estudos de aritmética. No primeiro caso,é óbvio que qualquer conceito só poderá exprimir-se através de sipróprio e nunca através de outros conceitos. No segundo caso,qualquer número poderá ser expresso de inúmeras maneiras, dadoque existe uma infinidade de números e que cada número contémem si as suas relações com todos os outros. Por exemplo, podemosexprimir o número “um” como sendo “mil menos novecentos enoventa e nove” ou em geral, como sendo igual à diferença entredois números consecutivos, ou como sendo igual a um númeroqualquer dividido por si próprio e duma miriade de maneirasdiferentes. Eis um exemplo puro de equivalência de conceitos Namedida em que a equivalência depende das relações degeneralidade entre os conceitos e estas relações são específicas paracada estrutura generalizante, esta última determina a equivalênciade conceitos possível na sua esfera.

A medida de generalidade determina não só a equivalência deconceitos mas também todas as operações intelectuais possíveiscom dado conceito. Todas as operações intelectuais — comparações,

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juízos, conclusões — exigem um movimento no seio dascoordenadas que delineamos. As transformações genéticas naestrutura de generalização provocam alterações também nestasoperações. Por exemplo, à medida que se atingem os níveis maiselevados de generalidade e de equivalência dos conceitos, torna-semais fácil recordar pensamentos independentemente das palavrasusadas. Uma criança de tenra idade reproduzirá um significadoexatamente nas mesmas palavras com que o recebeu. Uma criançaem idade escolar já pode reproduzir um significado relativamentecomplexo por palavras suas; assim, portanto, a sua liberdadeintelectual já é maior. Nas perturbações patológicas do pensamentoconceptual a medida de generalidade de um conceito encontra-sedistorcida, o equilíbrio entre o abstrato e o concreto encontra-sealterado e as relações com os outros conceitos torna-se instável. Oato mental pelo qual se apreende tanto o objeto como a relaçãoentre o objeto e o conceito perde a sua unidade e o pensamentocomeça a seguir trajetórias quebradas. caprichosas e ilógicas.

Um dos objetivos do nosso estudo dos conceitos reais dascrianças era o de encontrar índices da sua estrutura degeneralidade em que pudéssemos confiar, pois só por meio dessesíndices os esquemas genéticos dados, gerados pelos nossos estudosexperimentais dos conceitos artificiais, poderiam ser aplicados comproveito aos conceitos infantis em desenvolvimento.

Acabamos por achar esse índice na medida de generalidadedos conceitos, que varia com os diferentes níveis dedesenvolvimento, desde as formações sincréticas até aos conceitospropriamente ditos. As análises dos conceitos reais das criançastambém nos ajudaram a determinar a forma como os conceitosdiferem aos vários níveis nas suas relações com o objeto e osignificado das palavras e pelas operações intelectuais quepossibilitam.

Além disso, a investigação dos conceitos reais complementouo estudo experimental, mostrando com clareza que cada novoestádio do desenvolvimento da generalização é constituído sobre asgeneralizações do nível precedente; os produtos da atividadeintelectual do período precedente não se perdem. Nas nossasinvestigações não pudemos pôr a nu as relações internas entre asfases consecutivas porque, após cada insucesso, o sujeitoobservado tinha que libertar as generalizações que tinha feito erecomeçar de novo. Também a natureza dos objetos experimentaisnão era de molde a permitir a sua conceptualização em termoshierárquicos.

A investigação dos conceitos reais colmatou estas falhas.

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Descobriu-se que as idéias das crianças em idade pré-escolar (quepossuem a estrutura de complexos) resultavam, não doagrupamento de imagens dos objetos individuais, mas daelaboração de generalizações predominantes durante uma faseanterior. A um nível superior, descobrimos uma analogiasemelhante entre antigas e novas formações no desenvolvimentodos conceitos aritméticos e dos conceitos algébricos. A progressãodos pré-conceitos (os conceitos aritméticos da criança sãogeralmente deste tipo) para os conceitos genuínos, como porexemplo, os conceitos algébricos dos adolescentes, realiza-se pormeio da generalização das generalizações do período anterior. Nesteestádio anterior abstraíram-se certos aspectos dos objetosgeneralizando-se esses aspectos para se atingir a idéia de número.Os conceitos algébricos representam abstrações e generalizações decertos aspectos dos números e não dos objetos, significandoportanto uma nova trajetória de desenvolvimento — um novo e maiselevado plano de pensamento.

Os novos e mais elevados conceitos, por seu turno,transformam o significado dos conceitos inferiores. O adolescenteque já domina os conceitos algébricos atingiu um ponto deobservação a partir do qual vê os conceitos aritméticos segundouma perspectiva mais vasta. Vimos isto com especial nitidez quandorealizamos experiências com a passagem do sistema decimal paraoutros sistemas de numeração. Enquanto a criança opera com osistema decimal sem dele ter consciência enquanto tal, não dominaainda o sistema, mas, pelo contrário, encontra-se-lhe subordinada.Quando se torna capaz de o aperceber como um caso particular doconceito mais lato de escalas de notação, pode operarindiferentemente com este ou outro sistema de numeração. Acapacidade de passar de um para outro sistema (por exemplo, acapacidade de “traduzir” um número da base decimal para a basecinco) é o critério deste novo tipo de nível de consciência, na medidaem que indica a existência de um conceito geral de um sistema denumeração. Neste como noutros casos em que se dá uma passagemde um nível de significado para outro, a criança não é obrigada areestruturar separadamente todos os seus anteriores conceitos,coisa que seria realmente um trabalho de Sisifo. Logo que uma novaestrutura é incorporada no seu pensamento — geralmente atravésde conceitos aprendidos na escola — essa estrutura espalha-seimediatamente pelos outros conceitos a medida que estes sãoarrastados para as operações intelectuais de tipo mais elevado

A nossa investigação dos conceitos reais infantis de ordemsuperior lança uma nova luz sobre outra importante questão dateoria do pensamento. A escola de Wuerzburg demonstrou que aevolução do pensamento orientado não é regida por conexões

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associativas, mas pouco fez para clarificar os fatores específicas edeterminam realmente esta evolução. A psicologia gestaltistasubstituiu o princípio da associação pelo princípio da estrutura,mas não conseguiu estabelecer a distinção entre o pensamentopropriamente dito e a percepção, a memória e todas as outrasfunções sujeitas a leis estruturais; repetiu o modelo da teoriaassociativa ao reduzir todas as funções a um só nível. A nossainvestigação ajudou-nos a transcender este modelo mostrando queo pensamento de nível superior é regido pelas relações degeneralidade entre conceitos — um sistema de relações ausente dapercepção e da memória. Wertheimer demonstrou que opensamento produtivo está dependente da transferência doproblema da estrutura em que foi apreendido pela primeira vez paraum contexto ou estrutura completamente diferente. Mas, paratransferir um objeto de pensamento da estrutura A para a estruturaB temos que transcender as conexões estruturais dadas, e isto,como mostram os nossos estudos, exige um deslocamento para umplano de maior generalidade, para um conceito que subsume e regetanto A como B.

Podemos agora reafirmar numa base sólida que a ausência deum sistema é a diferença psicológica fulcral que distingue osconceitos espontâneos dos científicos. Poder-se-ia mostrar quetodas as peculiaridades do pensamento infantil descritas por Piaget(tais como o sincretismo, a justaposição, a insensibilidade àcontradição) decorre da ausência de um sistema nos conceitosespontâneos da criança — conseqüência das relações degeneralidade não desenvolvidas. Por exemplo, para que fosseperturbada por uma contradição, a criança teria que ver asafirmações contraditórias à luz de um qualquer princípio geral, istoé, no quadro de um sistema. Mas quando, nas experiências dePiaget, uma criança diz de um objeto que se dissolveu na águaporque era pequeno, e de outro que se dissolveu porque era grande,limita-se a proferir afirmações empíricas de fatos que decorrem dalógica das percepções. No seu cérebro não há qualquergeneralização do tipo “As dimensões reduzidas implicam adissolução” e, por conseguinte, não sente que as duas afirmaçõessejam contraditórias. É esta ausência de distanciação relativamenteà experiência imediata — e não o sincretismo visto como umcompromisso entre a lógica dos sonhos e a realidade — que explicaas peculiaridades do pensamento infantil, as quais, porconseguinte, não surgem nos conceitos científicos das crianças, osquais desde a sua gestação trazem consigo relações degeneralidade, isto é, alguns rudimentos de um sistema. A disciplinaformal dos conceitos científicos transforma gradualmente aestrutura dos conceitos espontâneos da criança e contribui para osorganizar num sistema; isto impele a criança a mais elevados níveis

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de desenvolvimento.

A nossa discordância com Piaget centra-se sobre um únicoponto. Ele pressupõe que o desenvolvimento e a instrução sãoprocessos completamente separados e incomparáveis e que afunção da instrução limita-se a introduzir os modos adultos depensar, os quais entram em conflito com os da criança e acabampor os superar. Estudar o pensamento das criançasindependentemente da influência da instrução, como fez Piaget,exclui-se uma importante fonte de transformações e impede-se oinvestigador de pôr a questão da interação entre o desenvolvimentoe a instrução que é característica a cada nível etário. A nossaabordagem centra-se sobre esta interação. Tendo descoberto muitose complexos laços internos entre os conceitos científicos e osconceitos espontâneos, esperamos que as futuras investigaçõescomparadas clarifiquem mais profundamente a suainterdependência. avançando nós próprios uma primeiraantecipação do alargamento do estudo do desenvolvimento dainstrução aos níveis etários mais baixos. No fim de contas ainstrução não começa na escola. Os futuros investigadores podemmuito bem descobrir que os conceitos espontâneos das crianças sãoproduto da instrução pré-escolar, tal como os conceitos científicossão produto da instrução escolar.

V

Para lá das conclusões teóricas, o nosso estudo comparativodos conceitos científicos e dos conceitos do dia a dia produziualguns resultados metodológicos. Os métodos por nós elaboradospara utilização nas nossas investigações permitiram-nos colmatar odesfasamento existente nas investigações dos conceitosexperimentais e dos conceitos da vida real. A informação recolhidasobre os processos mentais dos jovens estudantes de ciênciassociais, embora muito esquemática e rudimentar, sugeriu-nosalguns aperfeiçoamentos do ensino a introduzir no ensino dessadisciplina.

Retrospectivamente, temos consciência de algumas omissõese de alguns defeitos metodológicos, que talvez sejam inevitáveisquando se está abordando um novo campo de estudo. Nãoestudamos experimentalmente com pormenor a natureza dosconceitos do dia a dia da criança. Isto deixa-nos sem os dadosnecessários para descrevermos a evolução global dodesenvolvimento psicológico durante a idade escolar; porconseguinte, a nossa crítica às teses fundamentais de Piaget não seencontra suficientemente escorada em fatos de confiança esistematicamente recolhidos.

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O estudo dos conceitos científicos incidiu sobre uma únicacategoria — a dos conceitos das ciências sociais — e os conceitosparticulares selecionados para a investigação não formam nemindicam um sistema inerente à lógica do sujeito. Embora tenhamosaprendido muitas coisas sobre os conceitos científicos emcomparação com os conceitos espontâneos, pouco aprendemos emrelação às regularidades específicas do desenvolvimento dosconceitos sociológicos enquanto tais. Os futuros estudos deverãoincidir sobre conceitos que pertençam a diversos campos dainstrução escolar, comparando-se cada conjunto de conceitos comum conjunto de conceitos extraídos de uma área semelhante daexperiência do dia a dia.

Por último e sobretudo, as estruturas conceptuais queestudamos não eram suficientemente diferenciadas. Por exemplo,quando utilizamos fragmentos de frases terminados por “porque”,não separamos os vários tipos de relações causais (empíricas,psicológicas, lógicas) como Piaget fez nos seus estudos. Se otivéssemos feito, talvez tivéssemos sido capazes de estabelecer umadeterminação mais fina entre os resultados dos testes das criançasde diferentes grupos etários.

No entanto, até estas deficiências nos ajudarão a estabelecero itinerário das investigações futuras. O presente estudo não é maisdo que um primeiro e muito modesto passo na exploração de umanova área da psicologia do pensamento infantil que é muito plenade promessas.

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7. Pensamento e linguagemEsqueci a palavra que pretendia

dizer e o meu pensamento,

desencarnado, volta ao reino das sombras

(de um poema de Mandelstham)

I

Começamos o nosso estudo com uma tentativa de pôr a nu arelação existente entre o pensamento e a linguagem nos estádiosiniciais do desenvolvimento filogenético e ontogenético. Nãoencontramos nenhuma interdependência específica entre as raízesgenéticas do pensamento e da palavra. Tornou-se patente que arelação interna que buscávamos não era um requisito prévio dodesenvolvimento histórico da consciência humana, antes era umseu produto.

Nos animais, mesmo naqueles antropóides cuja fala éfoneticamente como a fala humana e cujo intelecto se aparenta como do homem, a linguagem e o pensamento não se encontraminterrelacionados. É indubitável que, no desenvolvimento dacriança, existe também um período pré-linguístico do pensamento eum período pré-intelectual a fala: o pensamento e a palavra não seencontram relacionados por uma relação primária. No decurso daevolução do pensamento e da fala gera-se uma conexão entre um eoutra que se modifica e desenvolve.

Seria errado no entanto encarar o pensamento e a fala comodois processos não relacionados entre si, seja como dois processosparalelos, seja como dois processos que se entrecruzassem emcertos momentos e se influenciassem mutuamente duma formamecânica.

A ausência de uma relação primária não quer dizer que aconexão entre eles só possa formar-se de uma forma mecânica.

A futilidade da maior parte das investigações primitivasdevia-se em grande parte ao fato de se pressupor que o pensamentoe a palavra eram elementos independentes e isolados e que opensamento verbal era fruto da sua união externa.

O método de análise baseado nesta concepção estava votadoao fracasso. Buscava explicar as propriedades do pensamentoverbal cindindo-o nos elementos que o compunham — a palavra e o

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pensamento — nenhum dos quais tomado em separado possuiriaas propriedades do todo.

Este método não é uma verdadeira análise que nos seja útilpara resolver problemas concretos, antes conduz à generalização.

Comparamo-lo à análise da água em hidrogênio e oxigênio —que só pode dar resultado em descobertas aplicáveis a toda a águaexistente na natureza, desde o Oceano Pacífico até uma gota deágua da chuva.

Semelhantemente, a afirmação segundo a qual o pensamentoverbal se compõe de processos intelectuais e funções de discursopropriamente ditas aplica-se a todo o pensamento verbal e nãoexplica nenhum dos problemas específicos com que se defronta oestudioso do pensamento verbal.

Tentamos uma nova abordagem do problema e substituímos aanálise em elementos pela análise em unidades, cada uma dasquais retém, sob uma forma simples, todas as propriedades dotodo. Encontramos esta unidade do pensamento verbal nosignificado da palavra.

O significado duma palavra representa uma amálgama tãoestreita de pensamento e linguagem que é difícil dizer se se trata deum fenômeno de pensamento, ou se se trata de um fenômeno delinguagem. Uma palavra sem significado é um som vazio; portanto,o significado é um critério da palavra e um seu componenteindispensável. Pareceria portanto que poderia ser encarado comoum fenômeno lingüístico. Mas do ponto de vista da psicologia, osignificado de cada palavra é uma generalização, um conceito. E,como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos depensamento, podemos encarar o significado como um fenômeno dopensar. No entanto, daqui não se segue que o pensamento pertençaa duas esferas diferentes da vida psíquica.

O significado das palavras só é um fenômeno de pensamentona medida em que é encarnado pela fala e só é um fenômenolingüístico na medida em que se encontra ligado com o pensamentoe por este é iluminado. É um fenômeno do pensamento verbal ou dafala significante — uma união do pensamento e da linguagem.

As nossas investigações experimentais confirmamintegralmente esta tese fundamental. Não só provaram que o estudoconcreto da gênese do pensamento verbal se tornou possível peloestudo do significado das palavras como unidade analítica, comolevaram também a outra tese que consideramos ser o maisimportante resultado do nosso estudo e que decorre imediatamente

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da primeira: a tese segundo a qual o significado das palavrasevolui. Este ponto de vista deve substituir o postulado daimutabilidade dos significados das palavras.

Do ponto de vista das velhas escolas da psicologia, a relaçãoentre a palavra e o significado é uma relação associativaestabelecida através da repetição da percepção simultânea de umcerto som e de um certo objeto. Uma palavra solicita no espírito oseu conteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nos recorda essemesmo amigo ou uma casa, os seus habitantes. A associação entrea palavra e o seu significado pode desenvolver-se mais forte ou maisdebilmente, pode ser enriquecida pela relacionarão com outrosobjetos de tipo semelhante, difundir-se por sobre um vasto domínio,Ou tornar-se mais limitada, isto é, pode sofrer transformaçõesquantitativas e externas, mas não pode modificar a sua naturezapsicológica. Para que tal acontecesse teria que deixar de ser umaassociação.

Desse ponto de vista, qualquer evolução do significado deuma palavra é impossível e inexplicável — conseqüência esta queconstitui um handicap tanto para os lingüistas como para ospsicólogos. A partir da altura em que se comprometeu com a teoriada associação, a semântica persistiu em considerar o significado dapalavra como uma associação entre o som e o conteúdo. Todas aspalavras, desde as mais concretas às mais abstratas, surgiam comosendo formadas da mesma maneira, relativamente ao seusignificado, parecendo não conter nenhum elemento característicoda fala enquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar o seusignificado tal como um objeto nos recordava outro objeto.

Pouco surpreenderá portanto que a semântica nem sequerpusesse a questão mais ampla da evolução do significado daspalavras. Reduzia-se essa evolução às variações nas conexõesassociativas entre as palavras isoladas e os objetos isolados: umapalavra poderia em determinada altura denotar um objeto passandodepois a associar-se com outro, como um sobretudo que, por mudarde proprietário, nos recordasse primeiro uma pessoa e, logo depois,outra.

A lingüística não compreendia que na evolução histórica dalinguagem, a própria estrutura do significado e a sua naturezapsicológica se transformam também.

Das generalizações primitivas, o pensamento verbal vai-seelevando ao nível de conceitos mais abstratos. Não é apenas oconteúdo de uma palavra que se altera, mas a forma como arealidade é generalizada e refletida numa palavra.

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A teoria associativa também não se adequa à explicação dodesenvolvimento dos significados das palavras na infância. Tambémneste aspecto, só pode explicar as alterações externas, puramentequantitativas, das conexões que ligam a palavra e o seu significado,o seu fortalecimento e o seu enriquecimento, mas não astransformações psicológicas e estruturais fundamentais que podemocorrer e ocorrem no desenvolvimento da linguagem infantil.

Infelizmente, o fato de o associacionismo em geral ter sidoabandonado durante um certo lapso de tempo não parece terafetado a interpretação da palavra e do significado. A escola deWuerzburg, cujo propósito principal era o de provar aimpossibilidade de reduzir o pensamento a um simples jogo deassociações e demonstrar a existência de leis específicas que regema corrente de pensamento, não reviu a teoria associativa da palavrae do significado, nem reconheceu sequer a necessidade de uma talrevisão. Esta escola emancipou o pensamento dos grilhões dasensação e da imagem e das leis da associação e transformou-onum ato puramente espiritual. Mas ao fazê-lo, regrediu para osconceitos pré-científicos de Santo Agostinho e Descartes, acabandopor chegar a um idealismo subjetivo extremo. A psicologia dopensamento encaminhava-se para as idéias de Platão, e, ao mesmotempo, deixava-se a linguagem à mercê da associação. Mesmo apósa obra realizada pela escola de Wuerzburg, continuou aconsiderar-se que a conexão entre a palavra e o seu significado erauma simples relação associativa. Encarava-se a palavra comocorrelativo externo do pensamento, como seu simples adereço, quenão tinha qualquer influência na sua vida interna. O pensamento ea palavra nunca estiveram tão separados como durante o períodode Wuerzburg. Na realidade, a destruição da teoria associativa nodomínio do pensamento incrementou o seu poderio no domínio dalinguagem.

A obra de outros psicólogos veio reforçar ainda mais estatendência. Selz continuou a investigar o pensamento sem tomar emconsideração a relação entre este e a linguagem e chegou àconclusão de que o pensamento produtivo do homem e dochimpanzé eram de natureza idêntica a tal ponto este investigadorignorava a influência das palavras sobre o pensamento.

Até Ach, que levou a cabo um estudo especial do significadodas palavras e que tentou superar o associativismo na sua teoriados conceitos se limitou a pressupor a existência de “tendênciasdeterminantes” que entrariam em ação conjuntamente com asassociações na formação dos conceitos. Por conseguinte, asconclusões a que chegou não vieram alterar a anterior compreensãodo significado das palavras. Ao identificar o conceito com o

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significado, impedia que se explicasse os desenvolvimentos e astransformações dos conceitos. Uma vez estabelecido, o significadode uma palavra ficava estabelecido para sempre; o seudesenvolvimento encontrava-se completo. Estes eram os mesmosprincípios que os psicólogos atacados por Ach defendiam. Paraambos os lados, o ponto de partida da evolução dos conceitosconstituía também o seu termo; só havia desacordo no tocante àforma como se iniciava o desenvolvimento da formação da palavra.

Na psicologia gestaltista (Psicologia da Forma), a situação nãoera muito diferente. Esta escola era ainda mais consistente do queas outras na tentativa de superar o princípio geral doassociativismo. Não satisfeita com uma solução parcial doproblema, tentou libertar o pensamento e a fala da lei da associaçãoe colocá-los a ambos sob o domínio da lei da gênese de estruturas.Surpreendentemente, nem esta escola — que é a mais progressivade todas as modernas escolas de psicologia — realizou quaisquerprogressos na teoria da linguagem e do pensamento.

Por um lado, manteve a separação completa entre estas duasjunções. A luz da teoria gestaltista, a relação entre o pensamento ea palavra aparece como uma simples analogia, uma redução deambos a um denominador estrutural comum. Encara-se a formaçãodas primeiras palavras com significado por parte das crianças comoalgo semelhante às operações intelectuais dos chimpanzés nasexperiências de Koehler. As palavras entram na estrutura dascoisas e adquirem um certo significado funcional, duma formabastante semelhante àquela como, para o chimpanzé, o pau setorna parte da estrutura de obtenção do fruto e adquire osignificado funcional de instrumento. Já não se encara a conexãoentre palavra e significado como uma questão de simplesassociação, mas como uma questão de estrutura. Parece ser umpasso em frente, mas se examinarmos mais de perto a novaabordagem, é fácil ver que o passo em frente é um passo em falso,ilusório, e que não saímos ainda do mesmo sítio. Aplica-se oprincípio da estrutura a todas as relações entre as coisas, damesma forma avassaladora como anteriormente se aplicava oprincípio da associação. Continua a ser impossível explicar asrelações específicas entre palavra e significado, pois à partidacontinua a considerar-se que em princípio são idênticas a todas asoutras relações entre coisas. Os gatos continuam a ser tão pardosna poeira da psicologia gestaltista como nos primitivos nevoeiros doassociacionismo universal.

Enquanto Ach procurava superar o associonismo com a“tendência determinante”, a teoria psicológica gestaltistacombateu-o com o princípio da estrutura — mantendo no entanto

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os dois erros fundamentais da velha teoria: o pressuposto daidentidade de natureza de todas as conexões e o pressuposto de queos significados das palavras não se alteram. Tanto a antiga como anova teoria psicológica partem ambas da hipótese de que a evoluçãodo significado de uma palavra termina mal esta emerge. As novastendências da psicologia produziram progressos em todos os ramos,exceto no estudo do pensamento e da palavra. Neste domínio, osnovos princípios parecem-se com os antigos como dois gêmeos.

Se a psicologia gestaltista estagnou no campo da linguagem,deu um grande passo à retaguarda no campo do pensamento. Aescola de Wuerzburg, pelo menos, considerava que o pensamentotinha leis próprias, ao passo que a escola gestaltista nega aexistência de tais leis. Reduzindo a um denominador estruturalcomum as percepções dos animais domésticos, as operaçõesmentais de um chimpanzé, as primeiras palavras significativas dascrianças e o pensamento conceptual dos adultos, oblitera toda equalquer distinção entre a percepção mais elementar e as maiselevadas formas de pensamento.

Esta recensão crítica pode ser resumida como se segue: todasas escolas e tendências psicológicas descuram um pontofundamental: todo e qualquer pensamento é uma generalização.Assim, estudam a palavra e o significado sem fazerem qualquerreferência à evolução. Enquanto estas duas condições persistiremem tendências sucessivas nas tendências posteriores, estas muitopouca relevância terão para o tratamento do problema.

II

A descoberta de que o significado das palavras evolui tira oestudo do pensamento e da linguagem de um beco sem saída. Ossignificados das palavras passam a ser formações dinâmicas e nãojá estatísticas, transformam-se à medida que as crianças sedesenvolvem e alteram-se também com as várias formas como opensamento funciona.

Se os significados das palavras se alteram na sua naturezainterna, então a relação entre o pensamento e a palavra também semodifica. Para compreender a dinâmica dessa relação, teremos quecomplementar a abordagem genética do nosso estudo principal coma análise funcional e examinar o papel do significado da palavra noprocesso de pensamento.

Consideremos o processo seguido pelo pensamento verbaldesde o primitivo e difuso surgir dum pensamento até à suaformulação Neste momento pretendemos mostrar não a forma como

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os significados evoluem ao longo de dilatados intervalos de tempo,mas o modo como funcionam no processo vivo do pensamentoverbal. A partir dessa análise funcional, poderemos mostrartambém que, em cada fase do desenvolvimento do significado daspalavras há uma relação particular entre o pensamento e alinguagem. Como a forma mais fácil de resolver os problemasfuncionais consiste em examinar a forma mais elevada dedeterminada atividade poremos por um momento de parte oproblema do desenvolvimento e consideraremos as relações entre opensamento e a palavra no cérebro que já atingiu a maturidade.

A idéia diretriz da discussão que se segue pode ser reduzida àseguinte fórmula: a relação entre o pensamento e a palavra não éuma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivémentre a palavra e o pensamento; nesse processo a relação entre opensamento e a palavra sofre alterações que, também elas, podemser consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional.As palavras não se limitam a exprimir o pensamento: é por elas queeste acede à existência. Todos os pensamentos tendem a relacionardeterminada coisa com outra, todos os pensamentos tendem aestabelecer uma relação entre coisas, todos os pensamentos semovem, amadurecem, se desenvolvem, preenchem uma função,resolvem um problema. Esta corrente do pensamento flui como ummovimento interno através de uma série de planos. Qualqueranálise da interação entre o pensamento e a palavra terá deprincipiar por investigar os diferentes planos e fases que umpensamento percorre antes de se encarnar nas palavras.

A primeira coisa que qualquer estudo revela é a necessidadede estabelecer a distinção entre dois planos de discurso. Ambos osaspectos da linguagem, tanto o interno, significante, semântico,como o aspecto externo, fonético, têm as suas leis de movimentoespecíficas, embora formem uma verdadeira unidade, mas que éuma unidade complexa e não homogênea. Alguns fatos dodesenvolvimento lingüístico da criança indicam a existência demovimentos independentes nas esferas fonética e semântica.Apontaremos dois dos mais importantes.

Quando começa a dominar a fala exterior, a criança principiapor uma palavra, passando depois a ligar dois ou três termos entresi; um pouco depois, progride das frases simples para outras maiscomplicadas, chegando por fim ao discurso coerente composto poruma série de frases dessas; por outras palavras, progride da partepara o todo. Relativamente ao significado em contrapartida, aprimeira palavra da criança é uma frase completa.Semanticamente, a criança parte do todo, de um complexosignificante e só mais tarde começa a dominar as unidades

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semânticas separadas, os significados das palavras e a subdividir oseu pensamento primitivamente indiferenciado nessas unidades. Oseu aspecto externo e o aspecto semântico da linguagemdesenvolvem-se em direções opostas — o primeiro do particularpara o geral, da palavra para a frase e o outro do todo para oparticular, da frase para a palavra.

Isto, em si, basta para mostrar como é importante distinguir oaspecto fonético do discurso do seu aspecto semântico. Como semovem em sentidos opostos, o seu desenvolvimento não écoincidente, mas isso não quer dizer que sejam independentes umdo outro. Pelo contrário, a sua diferença é o primeiro estádio deuma estreita união.

De fato, o nosso exemplo revela a sua conexão interna tãoclaramente como a sua diferença. O pensamento das crianças,precisamente porque surge como um conjunto amorfo e indistinto,tem que encontrar a sua expressão numa palavra isolada; à medidaque o seu pensamento se vai tornando mais diferenciado, a criançavai perdendo a possibilidade de se exprimir por meio de palavrasisoladas e tem que construir um todo compósito. Inversamente, aprogressão da linguagem em direção ao todo diferenciado numafrase, ajuda o pensamento da criança a progredir de conjuntoshomogêneos para partes bem definidas. O pensamento e a palavranão são talhados no mesmo modelo: em certo sentido há maisdiferenças do que semelhanças entre eles. A estrutura da linguagemnão se limita a refletir como num espelho a estrutura dopensamento; é por isso que não se pode vestir o pensamento compalavras, como se de um ornamento se tratasse. O pensamentosofre muitas alterações ao transformar-se em fala. Não se limita aencontrar expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a suaforma. Os processos evolutivos da fonética e da semântica sãoessencialmente idênticos, precisamente devido a seguirem sentidosinversos.

O segundo fato, que é tão importante como o primeiro, surgenum período de desenvolvimento posterior. Piaget demonstrou quea criança utiliza orações subordinadas em que figuram porque,embora, etc., muito antes de compreender as estruturassignificantes correspondentes a estas formas semânticas. Agramática precede a lógica. Também aqui, tal como nos nossosexemplos anteriores, a discrepância não exclui a unidade, antes lheé necessária.

Nos adultos, a divergência entre o aspecto semântico e oaspecto fonético do discurso é ainda mais flagrante. A lingüísticamoderna que se guia pela psicologia, encontra-se familiarizada com

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este fenômeno, especialmente no que toca ao sujeito e ao predicadogramaticais e psicológicos. Por exemplo, na frase “o relógio caiu”, aênfase e o significado podem variar com as situações. Suponhamosque noto que o relógio parou e pergunto, porque terá istoacontecido. A resposta é: “o relógio caiu”. O sujeito gramatical epsicológico coincidem: “o relógio” é a primeira idéia que existe naminha consciência; “caiu” é o que se diz do relógio. Mas se ouvir umbarulho no quarto ao lado e indagar o que aconteceu, e receber amesma resposta, o sujeito e o predicado psicológicos inverter-se-ão.Eu sabia que alguma coisa tinha caído — era disso que estávamos afalar. “O relógio” vem completar a idéia. Poder-se-ia trocar a frasepor esta: “o que caiu foi o relógio”. Então o sujeito gramatical e osujeito psicológico coincidiriam. No prólogo da sua peça O DuqueErnst von Schwaben, Uhland diz: “cenas sinistras desenrolar-se-ãoperante os vossos olhares”. Psicologicamente, o sujeito é“desenrolar-se-ão”: o espectador sabe que vai ver o desenrolar decertos acontecimentos. A idéia adicional, o predicado, é “cenassinistras”. Uhland queria dizer: “Aquilo que se desenrolará peranteos vossos olhares é uma tragédia”. Qualquer parte de uma frasepode tornar-se o sujeito psicológico, a parte portadora da ênfasefundamental; por outro lado, por detrás de uma estruturagramatical podem ocultar-se significados totalmente diferentes. Oacordo entre o sujeito gramatical e o sujeito psicológico não é tãopredominante como tendemos a presumir -- antes pelo contrário, éum requisito raramente satisfeito. Não são só o sujeito e o predicadoque têm os seus duplos psicológicos, pois também o gênero, onúmero, o caso, o tempo, o modo, o grau gramaticais o possuem.Uma exclamação espontânea, que do ponto de vista gramatical éerrada, pode ter encanto e valor estético. A correção absoluta só seconsegue para lá da linguagem natural, na matemática. A nossalinguagem quotidiana oscila constantemente entre os ideais daharmonia matemática e os da harmonia imaginativa.

Vamos ilustrar a interdependência dos aspectos semânticos egramaticais da linguagem citando dois exemplos que nos mostramque as variações da estrutura formal podem arrastar consigoalterações do significado de grande alcance.

Na tradução que fez da fábula “La Cigale et la Fourmi” (vi) deLa Fontaine, Krylov substituiu a cigarra de La Fontaine por umalibelinha. Em francês, cigarra é uma palavra feminina, sendoportanto, adequada para simbolizar uma atitude leviana edespreocupada. A nuance perder-se-ia numa tradução literal, poiscigarra em russo, é masculino, Ao decidir-se por libelinha, que emrusso é feminino, Krylov menosprezou a tradução literal em favor daforma gramatical necessária para dar o pensamento de La Fontaine(vii)

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Tjutchev fez o mesmo na sua tradução do poema de Heinesobre um abeto e uma palmeira. Em alemão, abeto é uma palavramasculina e palmeira é uma palavra feminina, e o poema sugere oamor de um homem por uma mulher, mas em russo ambas árvoressão femininas. Para manter a implicação, Tjutchev substituiu oabeto por um cedro, masculino. Lermontov, na sua tradução maisliteral do mesmo poema, destituiu-o destes matizes poéticos edeu-lhe um significado essencialmente diferente, mais abstrato emais generalizado. Um pormenor gramatical pode, em certascircunstâncias, modificar todo o propósito do que se diz.

Por detrás das palavras, há a gramática independente dopensamento, a sintaxe dos significados das palavras. A maissimples exclamação, não reflete uma correspondência rígida econstante entre som e significado, é, na realidade, muito pelocontrário, um processo. As expressões verbais não podem nascercompletamente formadas, têm que se desenvolver gradualmente.Este complexo processo de transição do significado para o som temtambém que se desenvolver e aperfeiçoar. A criança tem queaprender a distinguir entre a semântica e a fonética e acompreender a natureza da diferença entre uma e outra coisa. Aprincípio, começa por utilizar o pensamento e as formas verbais eos significados sem ter consciência deles como coisas distintas.Para a criança, a palavra é parte integrante do objeto que denota.Tal concepção parece ser característica da consciência lingüísticaprimitiva. Todos conhecemos a velha história do rústico queafirmava que não lhe surpreendia que os sábios, com todos osinstrumentos que possuíam, pudessem calcular o tamanho dasestrelas e as suas trajetórias — o que lhe fazia espécie era comoeles conseguiam saber o nome das estrelas. Algumas experiênciassimples mostram que as crianças em idade pré-escolar “explicam” onome dos objetos pelos seus atributos. Segundo elas, um animalchama-se “vaca” porque tem cornos, bezerro, quando os seuscornos ainda são pequenos, cão”, porque é pequeno e não temcornos; chama-se “carro” a determinado objeto porque não éanimal. Quando se lhes pergunta se poderia trocar os nomes dascoisas, chamando por exemplo, “tinta” a uma vaca e “vaca” à tinta,respondem que não, “porque a tinta é para escrever e a vaca dáleite”. Trocar os nomes significaria trocar as característicasespecíficas de cada objeto, tão inseparável é a conexão de ambos noespírito da criança. Numa experiência disse-se às crianças que emdeterminado jogo se chamaria “vaca” a um cão. Eis a seguir umexemplo típico de perguntas e respostas que ocorreram:

— Mas as vacas têm cornos?

— Têm.

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— Mas então não te lembras que os cães é que são vacas?Ora vê bem: os cães têm cornos?

— Pois claro. Se são vacas, se lhes chamamos vacas, têm queter cornos. Têm que ser uma espécie de vacas com corninhos.

Podemos ver pois como, para as crianças, é difícil separar onome de um objeto dos seus atributos, que aderem ao nome mesmoquando este é transferido, como as coisas possuídas seguindo o seudono.

A fusão dos dois planos da imagem, o plano semântico e oplano vocal, começa a desarticular-se à medida que a criançacresce e a distância entre um e outro vai aumentandogradualmente. Cada estádio no desenvolvimento das palavrasimplica uma inter-relação específica entre os dois planos. Acapacidade da criança para comunicar através da linguagemencontra-se diretamente relacionada com a diferenciação dossignificados das palavras no seu discurso e na sua consciência.

Para compreendermos isto teremos que recordar umacaracterística fundamental da estrutura dos significados daspalavras. Na estrutura semântica de uma palavra estabelecemos adistinção entre referente e significado: correspondentemente,distinguimos o nominativo de uma palavra da sua funçãosignificante. Quando comparamos estas relações funcionais eestruturais nos diversos estádios de desenvolvimento, isto é, noestádio primitivo, no estádio intermédio e no estádio maisdesenvolvido, deparamos com esta regularidade genética: aprincípio só existe a função nominativa; e, semanticamente, sóexiste a referência objetiva; a independência entre a significação e anomeação, assim como a independência entre o significado e areferência só surgem posteriormente e desenvolvem-se segundo astrajetórias que tentamos detectar e descrever.

Só quando este desenvolvimento se encontra completo é que acriança se torna totalmente capaz de formular o seu pensamento ecompreender o pensamento dos outros. Até essa altura, a utilizaçãoque dá às palavras coincide com a que lhes dão os adultos na suareferência objetiva, mas não no seu significado.

III

Temos que levar a nossa investigação a planos maisprofundos e explorar o plano do discurso interno que se encontrapor detrás do plano semântico. Examinaremos aqui alguns dosdados que obtivemos em experiências especialmente dedicadas aoassunto. Não poderemos compreender integralmente a relação entre

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o pensamento e a palavra em toda a sua complexidade se nãotivermos uma compreensão clara da natureza psicológica dodiscurso interno. No entanto, de todos os problemas relacionadoscom o pensamento e a linguagem, este é talvez o mais complicado,sobrecarregado como se encontra de toda a espécie de malentendidos terminológicos e doutro gênero.

Tem-se aplicado a expressão discurso interior ou endofasia avários fenômenos, e autores há que discutem entre si acerca decoisas diferentes e têm-se travado muitas discussões entre autoresque chamam o mesmo nome a coisas distintas. Originalmente,parece que se chamava discurso interior à memória verbal: exemplodisto, seria a recitação silenciosa de um poema sabido de cor. Nessecaso, o discurso interno difere do externo apenas da mesmamaneira que a imagem ou idéia de um objeto difere do objeto real.Era neste sentido que entendiam o discurso interior os autoresfranceses que tentaram descobrir como as palavras sãoreproduzidas pela memória — como imagens auditivas, visuais,motoras ou sintéticas. Veremos que a memória das palavras, amemória verbal é realmente uma das componentes, um doselementos constituintes do discurso interior, mas não o único.

Numa segunda interpretação, vê-se o discurso interior comoum discurso externo truncado — como “linguagem sem som”(Mueller) ou “discurso sub-vocal” (Watson). Bekhterev definiu-ocomo um reflexo do discurso inibido da sua parte motora. Talexplicação não é suficiente. A “locução” silenciosa das palavras nãoé equivalente ao processo integral do discurso interior.

A terceira definição, pelo contrário é demasiado ampla. ParaGoldstein (12)(13)(12, 13), a expressão recobre tudo que precede oato motor da fala, incluindo os “motivos do discurso” de Wundt e aindefinível experiência discursiva não motora, não sensível — isto é,todo o aspecto interior do discurso, de qualquer atividadediscursiva. É difícil aceitar a identificação do discurso interior comuma experiência interior não articulada, na qual os planosestruturais separáveis e identificáveis desapareceriam sem deixartraços. Esta experiência central é comum a toda e qualqueratividade lingüistica e só por esta razão, a interpretação deGoldstein não é adequada a essa função específica, única eexclusiva que merece o nome de discurso interior.

Levada até ás suas últimas conseqüências lógicas, o ponto devista de Goldstein conduzir-nos-ia à tese segundo a qual o discursointerior não é de maneira nenhuma linguagem, mas antes umaatividade intelectual e volitiva-afetiva, pois engloba os motivos dodiscurso e o pensamento que se exprime por palavras.

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Para obtermos uma descrição adequada do discurso interior,temos de partir do pressuposto de que se trata de uma formaçãoespecífica que tem as suas leis próprias e mantém relaçõescomplexas com as outras formas de atividade lingüística. Antes depodermos estudar a relação entre o discurso interior e opensamento, por um lado, e a linguagem, por outro lado, teremosque determinar as características e as funções que lhe são próprias.

O discurso interior é um discurso para o próprio locutor; odiscurso externo é um discurso para os outros. Seria na verdadesurpreendente que uma diferença de funcionamento tão radical nãoafetasse as estruturas de ambos os tipos de discurso. A ausência devocalização, por si só, não é mais do que uma conseqüência danatureza específica do discurso interior e não é, nem umantecedente do discurso exterior, nem a sua reprodução namemória, antes é em certo sentido, o contrário do discurso exterior.Este último consiste em verter os pensamentos em palavras,consiste na sua materialização e na sua objetivização. Com odiscurso interior, pelo contrário, o processo é invertido: o discursovolta-se para dentro, para o pensamento. Por conseqüência as suasestruturas têm que ser diferentes uma da outra.

O domínio do discurso interior é um dos mais difíceis deinvestigar. Manteve-se praticamente inacessível até se teremencontrado formas de aplicar os métodos genéticos deexperimentação. Piaget foi o primeiro investigador a preocupar-secom o discurso egocêntrico das crianças e a ver a sua importânciateórica, mas continuou cego à característica mais importante dodiscurso egocêntrico — a sua relação genética com o discursointerior — e isto veio distorcer a sua interpretação das suas funçõese estrutura. Fizemos dessa relação problema central do nossoestudo, e isso permitiu-nos investigar a natureza do discursointerior com invulgar exaustão. Um certo número de observações econsiderações levou-nos a concluir que o discurso egocêntrico é umestádio de desenvolvimento que precede o discurso interior. Ambospreenchem funções intelectuais; as suas estruturas sãosemelhantes; o discurso egocêntrico desaparece por alturas daidade escolar, quando o discurso interior começa a desenvolver-se.De tudo isto inferimos que se transformam um no outro.

Se esta transformação se dá, então o discurso egocêntricofornece-nos a chave para compreendermos o discurso interior. Umadas vantagens que advêm de se utilizar o discurso egocêntrico paraabordar o discurso interior é a de que aquele é acessível àobservação e à experimentação. É ainda um discurso vocalizado,audível, isto é, um discurso externo no seu modo de expressão, masé ao mesmo tempo um discurso interno na sua função e na sua

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estrutura. Para estudarmos um processo interno temos queexteriorizá-lo experimentalmente, relacionando-o com outraqualquer atividade; só então será possível a análise funcionalobjetiva. Na realidade, o discurso egocêntrico é uma experiêncianatural deste tipo.

Este método tem ainda uma outra grande vantagem: como odiscurso egocêntrico pode ser estudado no momento em quealgumas das suas características se estão desvanecendo enquantooutras novas se vão formando, estamos em condições de avaliar quetraços são essenciais para o discurso interior e que traços sãoapenas temporários, determinando assim o objetivo destemovimento que progride do discurso egocêntrico para o discursointerior — isto é, a natureza do discurso interior.

.Antes de passarmos aos resultados obtidos por este método,examinaremos rapidamente a natureza do discurso egocêntrico,sublinhando as diferenças entre o nosso método e o de Piaget.Piaget defende que o discurso egocêntrico da criança é umaexpressão direta do egocentrismo do seu pensamento, o qual, porseu turno, é um compromisso entre o autismo primário do seupensamento e a sua socialização gradual. À medida que a criançacresce, o autismo definha e a socialização desenvolve-se, levando aum desvanecimento do egocentrismo no seu pensamento e no seudiscurso.

Segundo a concepção de Piaget, a criança, pelo seu discursoegocêntrico, não se adapta ao pensamento dos adultos. O seupensamento mantém-se integralmente egocêntrico; isto torna a suaconversa totalmente incompreensível para os outros. O discursoegocêntrico não tem qualquer função no pensamento ou naatividade realística da criança — limita-se a acompanhá-los. E,como é uma expressão do pensamento egocêntrico da criança,desaparece simultaneamente com o seu egocentrismo. Do seu augede desenvolvimento no começo do desenvolvimento infantil, odiscurso egocêntrico cai a zero no limiar da idade escolar. A suahistória caracteriza-se mais pela involução do que pela evolução.Não tem futuro.

Na nossa concepção, o discurso egocêntrico é um fenômenode transição entre o funcionamento inter-físico e o funcionamentointra-físico, quer dizer, da atividade social e coletiva da criançapara a sua atividade mais individualizada — modelo dedesenvolvimento este que é comum a todas as funções psicológicasmais elevadas.

O discurso de si para si tem origem na diferenciação do

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discurso para os outros. Na medida em que a trajetória principal dodesenvolvimento psicológico da criança é uma trajetória deprogressiva individualização, esta tendência reflete-se na função ena estrutura do seu discurso.

Os nossos estudos experimentais indicam que a função dodiscurso egocêntrico é a mesma da do discurso interior: não selimita a acompanhar a atividade da criança: está ao serviço daorientação mental, da compreensão consciente; ajuda-a a vencer asdificuldades; é discurso de si para si, que se encontra íntima eutilitariamente relacionada com o pensamento da criança: o seudestino é muito diferente daquele que lhe consigna Piaget. Odiscurso egocêntrico desenvolve-se segundo uma curva ascendentee não segundo uma curva descendente: segue uma evolução nãouma involução. No termo dessa evolução transforma-se em discursointerior.

A nossa hipótese tem várias vantagens sobre a de Piaget: elaexplica a função e o desenvolvimento do discurso interior e, emparticular, o seu súbito incremento, quando a criança se defrontacom dificuldades que exigem consciência e reflexão — fato que asnossas experiências puseram a nu e que a teoria de Piaget não podeexplicar. Mas a maior vantagem da nossa teoria consiste no fato denos proporcionar uma resposta satisfatória a uma situaçãoparadoxal descrita pelo próprio Piaget. Para Piaget, a diminuiçãoquantitativa do discurso egocêntrico à medida que a criança vaicrescendo significa o desaparecimento dessa mesma forma dediscurso. Se assim fosse, seria de esperar que as suaspeculiaridades estruturais declinassem também: é difícil acreditarque o processo só afetasse a sua quantidade e não a sua estruturainterna. O discurso da criança torna-se infinitamente menosegocêntrico entre os três e os sete anos. Se as caraterísticas dodiscurso egocêntrico que o tornam incompreensível para os outrostêm realmente as suas raízes no egocentrismo, deveriam tornar-semenos patentes à medida que esta forma de discurso se vaitornando menos freqüente; o discurso egocêntrico deveria ir-seassemelhando ao discurso social, tornando-se progressivamentemais inteligível. Mas o que é que acontece? Será a fala de umacriança de três anos mais difícil de seguir do que a de uma criançade sete anos? Pelas nossas investigações chegamos à conclusão deque os traços do discurso egocêntrico, responsáveis pela suaininteligibilidade se encontram no seu ponto de desenvolvimentomais baixo aos três anos, atingindo o seu maior desenvolvimentoaos sete anos. Desenvolve-se em sentido inverso ao discursoegocêntrico. Enquanto este último vai diminuindo e atinge umaincidência nula por alturas da idade escolar, as característicasestruturais tornam-se progressivamente mais e mais pronunciadas

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Este fato lança uma nova luz sobre a diminuição quantitativado discurso egocêntrico, que é a pedra de toque da teoria de Piaget.

Que significa esta diminuição7 As características peculiaresdo discurso de si para si e a sua diferenciação relativamente aodiscurso exterior aumentam com a idade. Que diminuirá então?Apenas um dos seus aspectos: a vocalização. Quer isto dizer que odiscurso egocêntrico como um todo se encontra em vias dedesaparecer'? Estamos em crer que tal não se passe, porque, nessecaso, como poderíamos explicar o desenvolvimento dascaracterísticas funcionais e estruturais do discurso egocêntrico? Poroutro lado, tal desenvolvimento é perfeitamente compatível com adiminuição da vocalização — na verdade, clarifica até o seusignificado. O seu rápido declínio e o rápido desenvolvimento dasoutras características só na aparência são contraditórios.

Para explicarmos isto vamos partir de um fato inegável,experimentalmente demonstrado. As qualidades funcionais eestruturais do discurso egocêntrico tornam-se mais marcadas àmedida que a criança se desenvolve. Aos três anos a diferença entreo discurso social e o discurso egocêntrico da criança é nula. Aossete anos, temos um discurso que pela sua estrutura e pela suafunção é totalmente diferente do discurso social. Deu-se umadiferenciação dos dois discursos. Isto é um fato — e sabe-se bemque os fatos são de difícil refutação.

Uma vez isto aceite, tudo o resto daqui decorreautomaticamente. Se as peculiaridades funcionais e estruturais dodiscurso egocêntrico o vão isolando progressivamente do discursoexterior, então o seu aspecto vocal deverá desvanecer-se; e é isto,precisamente, o que acontece entre os três e os sete anos de idade.Com o progressivo isolamento do discurso de si para si a suavocalização torna-se desnecessária e perde significado e, dado queas suas peculiaridades estruturais se vão desenvolvendo, tambémimpossível. O discurso de si para si não pode achar expressão nodiscurso externo. Quanto mais independente e autônomo o discursoegocêntrico se torna, mais debilmente se desenvolve nas suasmanifestações externas. No termo do processo, separa-seintegralmente do discurso para os outros, deixa de ser vocalizado eparece nessa altura que está a morrer.

Mas isso é uma ilusão. Interpretar o coeficiente deprofundidade do discurso egocêntrico como um sinal de que estetipo de discurso está a morrer é como dizer que a criança deixa decontar quando cessa de utilizar os dedos para passar a calcularmentalmente. Na realidade., para lá dos sintomas de dissolução,oculta-se um desenvolvimento progressivo, o nascimento de uma

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nova forma de discurso.

O declínio da vocalização do discurso egocêntrico é sinal deque a criança se vai progressivamente abstraindo do som, e vaiadquirindo uma nova capacidade, a faculdade de “pensar aspalavras” em vez de as pronunciar. Tal é o significado positivo dograu de aprofundamento do discurso egocêntrico. A curvadescendente significa uma evolução em direção do discurso interior.

Podemos ver que todos os fatos conhecidos relativamente àscaracterísticas funcionais, genéticas e estruturais do discursoegocêntrico apontam para uma e mesma coisa: tal discurso evoluipara o discurso interior. A história do seu desenvolvimento só podeser compreendida como um progressivo desabrochar dascaracterísticas do discurso interior.

Estamos em crer que tal fato corrobora a nossa hipóteseacerca da origem e da natureza do discurso egocêntrico. Paraconvertermos a nossa hipótese numa certeza, temos que idealizaruma experiência suscetível de nos mostrar qual das duasinterpretações é a correta. Quais são os dados de que dispomospara esta experiência crítica?

Formulemos de novo as teorias sobre as quais temos de tomaruma decisão. Piaget crê que o discurso egocêntrico é gerado pelainsuficiente socialização do discurso e que só se pode desenvolverde uma maneira: diminuindo e acabando por morrer. O seu pontoculminante fica para trás, no passado. O discurso interior é algo denovo, importado do exterior paralelamente à socialização. O seuponto culminante está por vir. Evolui para o discurso interior.

Para obtermos provas a favor ou contra um ou outro dos doispontos de vista, temos que colocar a criança alternadamente emsituações experimentais que encorajem o discurso social e emsituações que o desencorajem, observando como as alteraçõesafetam o discurso egocêntrico. Consideramos esta experiência umexperimentum crucis pelas seguintes razões.

Se a fala egocêntrica da criança resulta do seu pensamentoegocêntrico e da insuficiência de socialização, então qualquerdebilitamento dos elementos sociais no quadro experimental,qualquer fator que aumente o isolamento da criança relativamenteao grupo conduzirá necessariamente a um súbito aumento dodiscurso egocêntrico. Mas se este último resulta de uma insuficientediferenciação entre o discurso para si próprio e o discurso para osoutros, então as mesmas alterações conduzirão ao seu declínio.

Tomamos como ponto de partida para a nossa experiência

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três observações do próprio Piaget: 1) o discurso egocêntrico sósurge na presença de outras crianças implicadas na mesmaatividade, e não quando a criança está sozinha; isto é, nummonólogo coletivo. 2) a criança tem a ilusão de que este discursoegocêntrico que não é dirigido para ninguém, é compreendido pelosque a cercam. 3) o discurso egocêntrico tem o caráter de discursoexterior. Não é inaudível nem murmurado. Estas características nãosão com certeza fruto do acaso. Do ponto de vista da própriacriança, o discurso egocêntrico ainda não se diferencia do discursosocial. Ocorre nas condições objetivas e subjetivas do discursosocial e pode ser considerado como um equivalente de insuficienteisolamento entre a consciência individual da criança e o todo social.

Na nossa primeira série de experiências (46)(47)(46, 47),tentamos destruir a ilusão da criança de que era compreendida.Após termos medido o grau de egocentricidade do discurso numasituação semelhante à das experiências de Piaget, pusemos acriança numa situação diferente e nova: com criançassurdas-mudas ou com crianças que falavam uma línguaestrangeira. O quadro experimental mantinha-se inalteradorelativamente a todas as outras condições. O coeficiente de discursoegocêntrico tornou-se nulo na maioria dos casos e nos restantes,desceu em média para um número que era um oitavo do primitivo.Isto prova que a ilusão da compreensão não é um simplesepifenômeno do discurso egocêntrico, antes se encontrafuncionalmente correlacionado com aquele. Os nossos resultadosdevem parecer paradoxais do ponto de vista das teorias de Piaget:quanto mais débil é o contato entre a criança e o grupo (quer dizer,quanto menos a situação social a força a ajustar os seuspensamentos aos outros e a fazer uso do discurso social) maislivremente deverá manifestar-se o egocentrismo do seu discurso edo seu pensamento. Mas, do ponto de vista da nossa hipótese, osignificado destas descobertas é claro: o discurso egocêntrico, queresulta do insuficiente grau de diferenciação entre o discurso parasi próprio e do discurso para os outros, desaparece quando osentimento de ser compreendido, que é essencial para o discursosocial, se encontra ausente.

Na segunda série de experiências, o fator variável era apossibilidade do monólogo coletivo. Após termos medido ocoeficiente de discurso egocêntrico de cada criança em situaçõesque permitiriam o monólogo coletivo, colocamo-las numa situaçãoque o tornava impossível — num grupo de crianças que lhe sãoestranhas ou então numa mesa separada num canto da sala;noutros casos deixava-se a criança trabalhar completamente só,fazendo-se com que o próprio experimentador abandonasse a sala.Os resultados desta série estão em concordância com os primeiros

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resultados. A impossibilidade do monólogo coletivo teve porconseqüência uma queda do coeficiente de egocentricidade e dodiscurso, embora não de forma tão flagrante como no primeiro caso— raramente se tornou nulo e em média baixou para um sexto donúmero inicial. Os diferentes métodos de impossibilitar o monólogocoletivo não tiveram a mesma eficácia no respeitante à redução docoeficiente de discurso egocêntrico. No entanto, a tendência para aredução desse coeficiente era patente em todas as variantes daexperiência. A exclusão do fator coletivo não libertou completamenteo discurso egocêntrico pelo contrário, inibiu-o. A nossa hipótese foimais uma vez confirmada.

Na terceira série de experiências, o fato variável era aqualidade vocal do discurso egocêntrico. Do lado de fora da salaonde a experiência se desenrolava, encontrava-se instalada umaorquestra que tocava tão alto ou fazia-se tanto barulho, que não sótodas as outras vozes, mas também a da própria criança ficavamafogadas numa variante de experiência, proibia-se expressamente àcriança falar alto, permitindo-se-lhe apenas que murmurasse. Maisuma vez o coeficiente de discurso egocêntrico baixou, sendo arelação entre o seu número e o número primitivo de 5:1. Tambémneste caso os diferentes métodos não tinham a mesma eficácia, masa tendência de base encontrava-se invariavelmente presente.

O propósito de todas estas séries de experiências era eliminaras características do discurso egocêntrico que se assemelham com odiscurso social. Chegamos à conclusão que tal levavainvariavelmente a um abrandamento do discurso egocêntrico. Éportanto lógico pressupor que o discurso egocêntrico é uma formaque se desenvolve a partir do discurso social e que ainda não seencontra separada desta nas suas manifestações, embora já sejadistinta nas suas funções e estrutura.

A discordância existente entre nós e Piaget no tocante a estaquestão tornar-se-á clara com o seguinte exemplo: estou sentado naminha secretária e falo para uma pessoa que se encontra colocadapor detrás de mim, não me sendo possível vê-la; se essa pessoa sairda sala sem eu dar por ela, continuo a falar, julgando que elacontinua a ouvir-me e a compreender-me. Externamente, estou afalar de mim para mim, mas psicologicamente o meu discursocontinua a ser social. Do ponto de vista de Piaget passa-se ocontrário com a criança: o seu discurso egocêntrico é um discursode si para si; apenas tem a aparência de um discurso social, talcomo o meu discurso dava a impressão de ser egocêntrico. Donosso ponto de vista, a situação é muito mais complicada:subjetivamente, o discurso egocêntrico da criança já possui a suafunção específica — nessa medida é independente do discurso

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social; no entanto, a sua independência não é completa, porque nãoé sentido como um discurso interior e a criança não o distingue dodiscurso para os outros. Também objetivamente é diferente dodiscurso social, mas também neste caso tal não se verificacompletamente, pois o discurso só funciona em situações sociais.Mas tanto subjetiva como objetivamente, o discurso egocêntricorepresenta uma transição entre o discurso para os outros e odiscurso de si para si. Já tem a função do discurso interior, mas,pela sua expressão, continua a ser semelhante ao discurso social.

A investigação do discurso egocêntrico preparou o terrenopara a compreensão do discurso interior, que passaremos aanalisar seguidamente.

IV

As nossas experiências convenceram-nos de que se deveencarar o discurso interior, não como um discurso sem som, mascomo uma função discursiva totalmente diferente. O seu traçoprincipal é a sua sintaxe muito particular. Em comparação com odiscurso exterior, o discurso interior parece desconexo e incompleto.

Esta observação não é nova. Todos os que estudaram odiscurso interior, mesmo os que o abordaram dum ponto de vistabehaviourista notaram esta característica. O método de análisegenética permite-nos ir além de uma simples descrição dessacaracterística. Aplicamos este método e verificamos que, à medidaque o discurso interior se desenvolve, evidencia uma tendência paraa forma de abreviação totalmente específica: nomeadamente, aomissão do sujeito de uma frase e de todas as palavras com elerelacionadas, embora preservando o predicado. Esta tendência paraa predicação surge em todas as nossas experiências com talregularidade que somos forçados a admitir que se trata da formasintática fundamental do discurso interior.

Para compreendermos esta tendência poderá ser-nos útilrecordarmos certas situações em que o discurso exterior apresentauma estrutura semelhante. A predicação pura ocorre no discursoexterior em duas circunstâncias: quando se trata de uma respostaou quando o sujeito da oração já é conhecido de antemão de todosos participantes da conversa. A resposta à pergunta: “Quer umachávena de chá?” não é nunca: “Não, não quero uma chávena dechá”, mas um simples “Não”. Obviamente, tal sentença só é possívelporque o sujeito já é conhecido de ambas as partes. À pergunta: “Oteu irmão leu este livro?” ninguém responde “Sim, o meu irmão leueste livro”. A resposta é um curto “Leu”, ou “Sim, leu”. Imaginemosagora que um grupo de pessoas está à espera do autocarro:

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ninguém dirá, ao ver que o autocarro se aproxima: “O autocarro deque estamos à espera aproxima-se”. O mais provável é a fraseconsistir num abreviado: “Vem aí”, ou qualquer expressão dogênero, pois o sujeito é evidente, dada a situação. Muitofreqüentemente, as frases abreviadas são causa de confusão. Oouvinte pode relacionar a frase com um sujeito que lhe ocupa oespírito duma forma predominante e não com um sujeito que oemissor quer significar. Se os pensamentos das duas pessoascoincidirem, pode-se conseguir um perfeito entendimento pelo usodos simples predicados, mas se estiverem a pensar em coisasdiferentes, o mais certo é haver um mal-entendido entre eles.

Nos romances de Tolstoy encontramos exemplos muito bonsde condensação do discurso exterior e sua redução a predicados:tais exemplos freqüentemente incidem sobre a psicologia doconhecimento: “Ninguém ouviu claramente o que ele disse, masKitty compreendeu-o. Compreendeu-o porque o seu espírito estavaconstantemente a observar as suas necessidades” (Anna Karenina,Parte V, Cap. 18). Poderíamos dizer que os seus pensamentos aoseguirem os pensamentos do moribundo, continham o sujeito a quea sua palavra se referia e que ninguém mais compreendeu. Mastalvez o exemplo mais flagrante seja a declaração de amor entreKitty e Levin por intermédio das letras iniciais:

“Há muito que desejava perguntar-lhe uma coisa.

— Faça favor.

— É o seguinte — disse ele, escrevendo as iniciais Q r: n p s,q d n m o n?. Estas letras queriam dizer: “Quando respondeu: nãopode ser, queria dizer naquele momento, ou nunca?” Pareciaimpossível que ela pudesse compreender a complicada frase.

— Compreendo — disse ela.

— Que palavra é esta? — perguntou ele, apontando para o nque significava “nunca”.

— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas não é verdade.Levin apagou rapidamente o que tinha escrito, estendeu-lhe o giz elevantou-se. Ela escreveu: N m, n p t r d m.

A sua face resplandeceu: tinha compreendido. A frasesignificava: “Naquele momento, não poderia ter respondido doutramaneira”.

Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p e e p o q s t p. Istoqueria dizer: para que pudesses esquecer e perdoar o que se tinha

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passado.

Ele tomou o giz com mãos tensas e trêmulas, quebrou-o eescreveu as iniciais do seguinte: “Não tenho nada a esquecer e aperdoar. Nunca deixei de te amar”.

— Compreendo — sussurrou ela.

O rapaz sentou-se e escreveu uma longa frase. Elacompreendeu-a integralmente sem lhe perguntar se estava a ir bem,pegou no giz e respondeu-lhe imediatamente. Ele esteve um longointervalo sem compreender o que tinha sido escrito e manteve olharfixo no dela O seu espírito encontrava-se tonto de felicidade.Sentia-se completamente incapaz de deduzir as palavras que elaindicava; mas nos olhos radiantes e felizes da rapariga leu tudo oque precisava de saber. E escreveu três letras. Não tinha aindaacabado de escrever e já Kitty estava lendo por sob a sua mão eescrevia a resposta: “Sim”. Tinham dito tudo na conversação quetinham mantido: que ela o amava e que diria ao pai e à mãe que elehaveria de dirigir-se-lhes na manhã seguinte”. (Anna Karenina,Parte V, Cap. 13).

Este exemplo tem um interesse psicológico extraordinário,porque. tal como todo o episódio entre Kitty e Levin, Tolstoy oextraiu da sua própria vida. Foi precisamente desta maneira queTolstoy comunicou a sua mulher o seu amor por ela. Estesexemplos mostram claramente que quando os pensamentos dosinterlocutores são os mesmos, o papel da fala se reduz ao mínimo.Noutro ponto, Tolstoy assinala que entre pessoas que vivem numestreito contato psicológico, tal comunicação por meio do discursoabreviado se torna a regra, e deixa de ser a exceção.

“Agora, Levin habituara-se a exprimir o seu pensamentointegralmente sem qualquer problema sem se preocupar em vertê-lonas palavras exatas. Ele sabia que a sua mulher, nos momentosplenos de amor como este, compreenderia o que ele queria dizer,bastando-lhe um indício; e ela compreendia, de fato” (AnnaKarenina, parte VI, Cap. 3).

A tendência para a predicação que surge no discurso interiorquando os dois interlocutores sabem do que se trata é caracterizadapor uma sintaxe simplificada, pela condensação e por um númerode palavras extremamente reduzido. As confusões plenas decomicidade que se dão quando os pensamentos das pessoasseguem direções diferentes estão em completo contraste com estetipo de compreensão. A confusão a que isto pode levar é bem dadapor este pequeno poema:

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Dois surdos são julgados por um surdo juiz.“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,

“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!“A culpa não é vossa, é da rapariga”.

A conversação de Kitty com Levin e o julgamento do surdo sãocasos extremos, quer dizer, são na realidade os dois pólos extremosdo discurso exterior. Um deles exemplifica a compreensão mútuaque se pode conseguir através de um discurso completamenteabreviado quando o sujeito que ocupa os dois espíritos é o mesmo;o outro, exemplifica a incompreensão total, mesmo com umdiscurso completo, quando os pensamentos das pessoas vagueiamem diferentes direções. Não são apenas os surdos que nãoconseguem compreender-se; tal acontece também com quaisquerduas pessoas que dão um significado diferente à mesma palavra ouque defendem pontos de vista diferentes. Como Tolstoy notou,aqueles que estão acostumados ao pensamento solitário eindependente não apreendem facilmente os pensamentos de outreme são muito parciais relativamente aos seus próprios: mas aspessoas que mantêm um contato estreito apreendem os significadoscomplicados que transmitem mutuamente por meio de umacomunicação “lógica e clara” levada a cabo com o menor número depalavras.

Depois de termos examinado as abreviaturas no discursoexterior, podemos agora, enriquecidos, debruçar-nos sobre o mesmofenômeno no discurso interior, em que não é a exceção, mas aregra. Será instrutivo comparar as abreviaturas nos discursosorais, interiores e escritos. A comunicação por escrito repousa sobreo significado formal das palavras e, para transmitir a mesma idéia,exige uma quantidade de palavras muito maior do que acomunicação oral. Dirige-se a um interlocutor ausente queraramente tem presente no espírito o mesmo sujeito que quemescreve. Por conseguinte, terá que ser um discurso completamentedesenvolvido; a diferenciação sintática atinge a sua máximaexpressão e utilizam-se expressões que soariam como não naturaisna conversação oral. A expressão de Griboedov “ele fala comoescreve” refere-se ao efeito estranho provocado pelas construçõeselaboradas quando utilizadas na linguagem na fala do dia a dia.

A natureza multifuncional da linguagem, que tem atraído aatenção aturada dos lingüistas, já tinha sido assinalada porHumboldt no tocante à poesia e à prosa — duas formas muitodiferentes pela sua função e também pelos meios que mobilizam.Segundo Humboldt, a poesia é inseparável da música, ao passo que

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a prosa depende inteiramente da linguagem e é dominada pelopensamento. Consequentemente, cada uma destas formas tem asua própria dicção, a sua própria gramática, a sua própria sintaxe.Esta concepção é de primeiríssima importância, embora nemHumboldt, nem os que desenvolveram o seu pensamento tenhamcompreendido completamente todas as suas implicações.Limitavam-se a estabelecer a distinção entre poesia e prosa e, nestaúltima, entre a troca de idéias e a conversação vulgar, isto é, asimples troca de informações ou a cavaqueira convencional. Háoutras importantes distinções funcionais no discurso. Uma delas ea distinção entre monólogo e diálogo. O discurso interior e odiscurso escrito representam o monólogo; o discurso oral, namaioria dos casos, representa o diálogo.

O diálogo pressupõe sempre, da parte dos interlocutores, umconhecimento do assunto suficiente para permitir o discursoabreviado e, em certas condições, as frases puramente predicativas.Também pressupõe que todas as pessoas estão em condições se veros seus interlocutores, as suas expressões faciais e os gestos quefazem e de ouvir o tom de voz. Já discutimos as abreviaturas epassaremos a considerar neste ponto apenas o aspecto auditivo,utilizando um exemplo clássico, extraído do “Diário de um Escritor”,de Dostoyevski, para mostrar o quanto a entoação ajuda acompreender as diferenciações sutis dos significados das palavras.

Dostoyevski relata uma conversação de bêbados inteiramenteconstituída por uma palavra irreproduzível por escrito:

Uma noite de domingo aconteceu ter-me abeirado de umgrupo de seis jovens trabalhadores bêbados, tendo ficado a unsquinze passos deles. Subitamente apercebi-me de que conseguiamexprimir todos os seus pensamentos, sentimentos e até todo umencadeado de raciocínios por meio dessa única palavra, que, aindapor cima, é extremamente breve. Um dos jovens disse-a de umaforma rude e enérgica para exprimir o seu completo desacordo comalgo de que todos tinham estado a falar. Outro responde com omesmo nome, mas num tom e num sentido totalmente diferentes —exprimindo as suas dúvidas sobre os fundamentos da atitudenegativa do primeiro. Eis senão quando um terceiro se exalta contrao primeiro, irrompendo abruptamente na conversação e gritandoexcitadamente a mesma palavra, mas desta vez como se fora umapraga ou uma obscenidade. Aqui o segundo parceiro voltou ainterferir, zangado com o terceiro, o agressor, retendo-o, comoquerendo dizer: “Tens alguma coisa que te pôr às marradas?Estávamos a discutir os assuntos calmamente e logo vens tu,metes-te, e começas logo a praguejar!” E disse todo estepensamento numa só palavra, a mesma venerável palavra; só que

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desta vez também levantou a mão, pondo-a sobre o ombro docompanheiro. Subitamente, um quarto, o mais novo do grupo, queaté àquele momento se tinha mantido silencioso, comoprovavelmente tivesse encontrado repentinamente uma soluçãopara a dificuldade inicial donde partira a discussão, levantou a mãonum transporte de alegria e gritou ... Eureka, será isto? Tereiencontrado a solução? Não, nem “Eureka”, nem “encontrei asolução”, repetiu a mesma palavra irreproduzível, uma palavra,uma simples palavra, mas com êxtase, numa explosão decomprazimento — manifestação essa provavelmente um poucoexagerada, porque o sexto membro do grupo, o mais velho deles,sujeito de aparência soturna, não gostou da coisa e cortou cerce aalegria infantil do outro, dirigindo-se-lhe num tom de baixo solene eexortativo e repetindo ... sim, repetindo exatamente a mesmapalavra, a mesma palavra proibida em presença de senhoras masque naquele momento queria dizer claramente “Para que são essesberros sem sentido?”. Assim, sem terem proferido mais nenhumapalavra, nem uma sequer, repetiram aquela elocução querida seisvezes de enfiada, seis vezes sucessivas e entenderam-seperfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de 1873).

A inflexão revela o contexto psicológico em que se devecompreender determinada palavra. Na história de Dostoyevsky,tratava-se de uma negação de desafio, num dos casos, de umadúvida, noutro, de ira, no terceiro. Quando o contexto é tão clarocomo neste exemplo, torna-se realmente possível transmitir todos ospensamentos, todos os sentimentos e até toda uma cadeia deraciocínios com uma só palavra.

No discurso escrito, como o tom de voz e o conhecimento doassunto não são possíveis, somos obrigados a utilizar muitaspalavras e a utilizarmos essas palavras mais exatamente. Odiscurso escrito é a forma de discurso mais elaborada. Algunslingüistas consideram que o diálogo é a forma natural do discursoora!, a forma em que a linguagem patenteia completamente toda asua natureza, e que o monólogo é em grande medida artificial. Ainvestigação psicológica não nos deixa grandes dúvidas de que, narealidade, o monólogo é a forma mais elevada, mais complexa, aforma que historicamente se desenvolve mais tarde. No momentopresente, contudo, só nos interessa estabelecer qualquercomparação no tocante à tendência para a elipse.

A velocidade do discurso oral não se propicia a um processocomplicado de formulação — e não deixa tempo para deliberações eopções. O diálogo implica a expressão imediata nãopré-determinada. É constituído por respostas e réplicas: é umacadeia de reações. Em comparação com isto, o monólogo é uma

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formação complexa dando ao seu autor tempo e vagar para umacuidada e consciente elaboração lingüística.

No discurso escrito, ao qual faltam os apoios situacionais,tem que se conseguir a comunicação por recurso exclusivo àspalavras e suas combinações. Isto exige que a atividade discursivaassuma formas complicadas — e daí o emprego dos rascunhos. Aevolução dos rascunhos para a versão final reproduz o nossoprocesso mental. O planeamento tem uma função importante nodiscurso escrito, mesmo quando não nos socorremos dumverdadeiro rascunho. Habitualmente, dizemos a nós próprios o quevamos escrever; trata-se também de um rascunho, embora apenasem pensamento. Como tentamos mostrar no capítulo precedente,este rascunho mental é um discurso interior. Como o discursointerior funciona como rascunho não só para o discurso escrito mastambém para o discurso oral, passaremos agora a comparar ambasestas formas com o discurso interior, no tocante à tendência para aelipse e para a predicação.

Esta tendência, que não existe no discurso escrito e só muitoraramente surge no discurso oral, aparece sempre no discursointerior. A predicação é a forma usual do discurso interior;psicologicamente, este é exclusivamente constituído por predicados.A omissão dos sujeitos é uma lei do discurso interior, exatamentena mesma medida em que a obrigatoriedade da presença do sujeitoe do predicado constitui uma lei do discurso escrito.

Este fato experimentalmente estabelecido tem umaexplicação: é que os fatores que facilitam a pura predicaçãoencontram-se invariável e obrigatoriamente presentes no discursointerior. Sabemos aquilo em que estamos a pensar — isto é,sabemos já sempre quais são o sujeito e a situação.Psicologicamente, o contato entre os interlocutores numaconversação pode estabelecer uma percepção mútua que conduz àcompreensão do discurso elíptico. No discurso interior, a percepção“mútua” está sempre presente, numa forma absoluta; porconseguinte, dá-se, regra geral, uma comunicação praticamentesem palavras mesmo quando se trata dos pensamentos maiscomplicados.

A predominância da predicação é um produto dodesenvolvimento. De início, o discurso egocêntrico é, pela suaestrutura, idêntico ao discurso social, mas no seu processo detransformação em discurso interior vai-se tornando menos completoe coerente, à medida a que passa a ser regido por uma sintaxetotalmente predicativa. As experiências mostram-nos claramentecomo e porque razão a sintaxe predicativa vai começando a dominar

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As crianças falam das coisas que vêem, ouvem ou fazem emdeterminado momento. Em resultado disto, tendem a deixar de ladoo sujeito e todas as palavras que com ele se relacionam,condensando progressivamente o seu discurso até que só ficam ospredicados. Quanto mais diferenciada se torna a função específicado discurso egocêntrico, mais pronunciadas se tornam as suaspeculiaridades sintáticas — a simplificação e a predicação. Avocalização corre a par com esta modificação. Quando conversamosde nós para nós precisamos ainda de menos palavras do que Kitty eLevin. O discurso interior é um discurso quase sem palavras.

Reduzida a sintaxe e o som ao mínimo, o significado passa aocupar um lugar mais do que nunca proeminente. O discursointerior opera com a semântica e não com a fonética. A estruturasemântica específica do discurso interior também contribui para aelipse. A sintaxe dos significados no discurso interior não é menosoriginal do que a sua sintaxe gramatical. A nossa investigaçãoestabeleceu três peculiaridades semânticas do discurso interior.

A primeira, que é essencial, é a preponderância do sentidodas palavras sobre o seu significado — distinção que devemos aPaulhan. Segundo este autor, o sentido de uma palavra é a soma detodos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta nanossa consciência. É um todo complexo, fluido, dinâmico que temvárias zonas de estabilidade desigual. O significado mais não é doque uma das zonas do sentido, a zona mais estável e precisa. Umapalavra extrai o seu sentido do contexto em que surge; quando ocontexto muda o seu sentido muda também. O significadomantém-se estável através de todas as mudanças de sentido. Osignificado de uma palavra tal como surge no dicionário não passade uma pedra do edifício do sentido, não é mais do que umapotencialidade que tem diversas realizações no discurso.

As últimas palavras da já mencionada fábula de Krylov “ACigarra e a Formiga” constituem uma boa ilustração da diferençaentre sentido e significado. As palavras: “Pois agora dança'” têm umsignificado fixo e definido, mas no contexto da fábula adquirem umsentido intelectual e afetivo mais vasto. Passam a significarsimultaneamente: “Diverte-te” e “Perece!”. Este enriquecimento daspalavras pelo sentido que adquirem nos diferentes contextos é a leifundamental da dinâmica dos significados das palavras. Numdeterminado contexto, uma palavra significa simultaneamente maisou menos do que a mesma palavra tomada isoladamente; significamais, porque adquire um novo contexto; significa menos, porque oseu significado é limitado e estreitado pelo mesmo contexto. Osentido de uma palavra, diz Paulhan, é um fenômeno complexo,móvel, protéico; modifica-se com as situações e consoante os

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espíritos e é praticamente ilimitado. As palavras extraem o seusentido da frase em que estão inseridas, e esta, por seu turno, colheo seu sentido do parágrafo, o qual, por sua vez, o colhe do livro eeste das obras todas do autor.

Paulhan prestou ainda outro serviço à psicologia, analisandoa relação entre a palavra e o sentido e mostrando que aindependência entre um e outra é muito maior do que a que existeentre a palavra e o significado. Há muito já se sabe que as palavraspodem mudar de sentido. Recentemente, houve quem assinalasseque o sentido pode modificar as palavras, ou melhor, que as idéiaspor vezes mudam de nome. Tal como o sentido duma palavra seencontra relacionada com o conjunto da palavra na sua totalidade,e não apenas com os seus sons isolados, também o sentido dumafrase se relaciona com a globalidade da frase e não com as suaspalavras tomadas isoladamente. Por conseguinte, uma palavra podemuitas vezes ser substituída por outra sem se dar nenhumamodificação do sentido. As palavras e os seus sentidos sãorelativamente independentes uns dos outros.

No discurso interior, a predominância do sentido sobre osignificado, da frase sobre a palavra e do contexto sobre a fraseconstitui a regra.

Isto conduz-nos a outras peculiaridades do discurso interior.Ambas dizem respeito à combinação das palavras entre si. Umdesses tipos de combinação será antes como que uma aglutinação— uma forma de combinar as palavras bastante freqüente emmuitas línguas e relativamente rara noutras. A língua alemã formafreqüentemente um substantivo a partir de diversas palavras ou defrases. Em certas línguas primitivas, tal edição de palavras constituiregra geral. Quando diversas palavras se fundem numa única, anova palavra não se limita a exprimir uma idéia bastante complexa,designa também todos os elementos separados contidos nessa idéia.Como a tônica recai sempre no radical ou na idéia principal, taislínguas são de fácil compreensão. O discurso egocêntrico da criançapatenteia um fenômeno semelhante. À medida que o discursoegocêntrico se vai aproximando da forma do discurso interior, acriança começa a utilizar a aglutinação cada vez mais como modode formar palavras compostas que exprimem idéias complexas.

A terceira peculiaridade semântica fundamental do discursointerior é a forma como os sentidos das palavras se combinam econgregam — processo que é regido por leis diferentes das queregem as combinações de significados. Na altura em queobservamos esta forma singular de unir palavras no discursoegocêntrico, chamamos-lhe “influxo de sentido”. Os sentidos de

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diferentes palavras confluem numa outra — “influenciam-se”literalmente - de forma que as primeiras estão contidas nas últimase as influenciam. Da mesma forma, uma palavra quecontinuamente se repete num livro ou num poema absorve porvezes todas as variantes de sentido neles contidas e se torna decerta maneira equivalente à própria obra. O título de uma obraliterária exprime o seu conteúdo e completa o seu sentido num graumuito mais elevado do que o título de um quadro ou de uma peçade música. Títulos como Dom Quixote, Hamlet ou Anna Kareninailustram isto com toda a clareza; todo o sentido da obra se encontracontido numa palavra, num nome. Outro excelente exemplo é aobra Almas Mortas, de Gogol. Originalmente, o título referia-se aosservos mortos cujo nome não fora removido das listas oficiais e quepodiam continuar a ser comprados e vendidos como se estivessemvivos. É neste sentido que as palavras são utilizadas durante todo olivro, que é construído em torno deste tráfico com os mortos. Mas,pela sua íntima relação com o conjunto da obra, estas duaspalavras adquirem uma nova significação e um sentidoinfinitamente mais vasto. Quando chegamos ao fim do livro, aexpressão “Almas mortas” significa para nós não só os servosdefuntos, mas também todos os personagens da história que estãofisicamente vivos, mas espiritualmente mortos.

No discurso interior, o fenômeno atinge a sua máximaincidência. Cada palavra isolada encontra-se tão saturada desentido, que, para a explicar no discurso exterior seriamnecessárias muitas palavras. Não é pois de surpreender que odiscurso egocêntrico seja incompreensível para os outros. Watsondiz que o discurso interior seria incompreensível, mesmo que fossepossível gravá-lo. A sua opacidade acentua-se devido a umfenômeno que, diga-se de passagem, Tolstoy notou no discursoexterior: no seu livro, Infância, Adolescência e Juventude, descrevecomo, em pessoas que se encontram em contato psicológico muitoíntimo, as palavras adquirem significados especiais que só sãoentendidos pelos iniciados. No discurso interior, desenvolve-se omesmo tipo de idioma — o tipo de idioma que é difícil de traduzirpara a fala oral.

Com isto, concluímos o nosso relance sobre as peculiaridadesdo discurso interior, com que nos defrontamos pela primeira vez aoinvestigarmos o discurso egocêntrico. Quando fomos procurarcomparações no discurso externo, descobrimos que este último jácontém, pelo menos potencialmente, os traços característicos dodiscurso interno: a predicação, o declínio da oralidade, apredominância do sentido sobre o significado, a aglutinação, etc.,aparecem também em certas condições já no discurso externo.Estamos em crer que isto é a melhor confirmação da nossa

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hipótese, segundo a qual o discurso interior tem origem nadiferenciação do primitivo discurso das crianças.

Todas as nossas observações indicam que o discurso interioré uma função autônoma da linguagem. Podemos confiantementeencará-lo como um plano distinto do pensamento verbal. É evidenteque a transição do discurso interior para o discurso externo não éuma simples tradução duma linguagem para outra. Não pode serconseguida apenas pela simples oralização do discurso silencioso. Éum processo complexo, dinâmico que envolve a transformação daestrutura predicativa, idiomática do discurso interior em discursosintaticamente articulado, inteligível para os outros.

V

Podemos agora voltar a debruçar-nos sobre a definição dodiscurso interior que propusemos antes de iniciarmos a nossaanálise. O discurso interior não é o aspecto interior do discursoexterno — é uma função em si próprio. Continua a ser discurso,isto é, pensamento ligado por palavras. Mas enquanto opensamento externo se encontra encarnado em palavras, nodiscurso interior é, em grande medida, um pensamento feito designificados puros. É uma coisa dinâmica, instável, e derivante, queflutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentes maisou menos estáveis, mais ou menos solidamente delineados dopensamento verbal. Só se pode compreender a sua verdadeiranatureza e o seu verdadeiro lugar, após se ter examinado o planoseguinte do pensamento verbal, o plano ainda mais profundo doque o discurso interior.

Esse plano é o próprio pensamento. Como dissemos, todos ospensamentos criam uma conexão, preenchem uma função,resolvem um problema. A corrente de pensamento não éacompanhada por um desabrochar simultâneo do discurso. Os doisprocessos não são idênticos e não há correspondência rígida entreas unidades de pensamento e de discurso. Isto é particularmenteverdade quando um pensamento aborta — quando comoDostoyevski diz, um “pensamento não entra nas palavras”. Opensamento tem a sua própria estrutura e a transição entre ele e alinguagem não é coisa fácil. O teatro defrontou-se, antes dapsicologia, com o problema dos pensamentos ocultos por detrás daspalavras. Ao ensinar o seu sistema de representação, Stanislawskyexigia dos autores que descobrissem o “subtexto” das suas réplicasna peça. Na comédia de Griboedov “O Espírito traz a Infelicidade”, àheroína que afirma nunca o ter esquecido, o herói, Chatsky, diz:“Três vezes abençoado quem tal acreditar. A fé aquece o coração”.Stanislawsky interpretou esta passagem como querendo dizer:

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“Acabemos com esta conversa”, mas poderia também serinterpretada como querendo dizer: “Não acredito em si. Diz issopara me reconfortar”, ou: “Não vê que me está a atormentar? Eubem queria acreditar em si. Seria uma benção...”. Todas estasfrases que proferimos na vida real possuem uma espécie desub-texto, um pensamento oculto por detrás delas. Nos exemplosque atrás demos da ausência de concordância entre o sujeito e opredicado, não levamos a nossa análise até ao fim. Tal como umafrase pode exprimir muitos pensamentos, um mesmo pensamentopode ser expresso por meio de diferentes frases. Por exemplo, afrase “O relógio caiu”, como resposta à pergunta: “Porque é que orelógio parou?” poderia significar: “Não tive culpa de o relógio se terestragado; caiu”. O mesmo pensamento, que é umaauto-justificação, poderia assumir a forma seguinte: “Não é meuhábito mexer nas coisas das outras pessoas. Só estava a limpar opó aqui”, ou muitas outras frases.

Ao contrário do discurso, o pensamento não é constituído porunidades separadas. Quando desejo comunicar o pensamento deque hoje vi um rapaz descalço de camisa azul a correr pela ruaabaixo, não vejo cada elemento em separado: o rapaz, a camisa, acor desta última, a corrida do rapaz, a ausência de sapatos.Concebo tudo isto num só pensamento, mas exprimo o pensamentoem palavras separadas. Um interlocutor leva por vezes váriosminutos a expor um só pensamento. No seu espírito o pensamentoencontra-se presente na sua globalidade num só momento, mas nodiscurso tem que ser desenvolvido por fases sucessivas. Podemoscomparar um pensamento com uma nuvem que faz cair uma chuvade palavras. Como, precisamente, um pensamento não temcorrespondência imediata em palavras, a transição entre opensamento e as palavras passa pelo significado Na nossa fala, hásempre o pensamento oculto, há sempre o sub-texto. Houve semprelamentos acerca da inexpressibilidade do pensamento devido aofato de ser impossível uma transição direta do pensamento para apalavra:

Como poderá o coração exprimir-se?Como poderá outro compreendê-lo?

(F. Tjutchev)

A comunicação direta entre os espíritos é impossível, não sófisicamente mas também psicologicamente. A comunicação só épossível de uma forma indireta. O pensamento tem que passarprimeiro pelos significados e depois pelas palavras.

Chegamos assim ao último passo da nossa análise dopensamento verbal. O pensamento propriamente dito é gerado pela

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motivação, isto é, pelos nossos desejos e necessidades, os nossosinteresses e emoções. Por detrás de todos os pensamentos há umatendência volitiva-afetiva, que detém a resposta ao derradeiroporquê da análise do pensamento. Uma verdadeira e exaustivacompreensão do pensamento de outrem só é possível quandotivermos compreendido a sua base afetiva-volitiva. Ilustraremos istopor meio de um exemplo que já tem sido utilizado: a interpretaçõesdos papéis de uma peça. Nas suas instruções para os atores,Stanislawsky enumerava os motivos subjacentes nas palavras dosseus personagens. Por exemplo:

TEXTO DA PEÇA

MOTIVOS SUBJACENTESSofia:Ah, Chatsky, como estou contente por teres vindo!Tente ocultar a atrapalhação.Chatsky:Estás tão contente! Que simpático! Mas alegrias dessas não entendobem! Pois antes me parece que ao fim e ao cabo. Ao vir por aí àchuva mais o meu cavalo. A mim me contentei e a mais ninguém.Tenta fazê-la sentir-se culpada.“Não tens vergonha?!”Tenta forçá-la a ser franca!Liza:Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar. Há uns cincominutos, não, nem há tanto, não. Vosso nome ouviríeis bem altosoar!Ah Menina! Dizei-lhe que tenho razão!Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar Sofia numa situação difícil.Sofia:Assim é, nem mais, nem menos!Que quanto a isso, sei que não tendes nada que me censurar!Tenta serenar Chatsky.Não sou culpada de nada.Chatsky:Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!Três vezes louvado quem tiver fé!Pois a fé o coração aquece!Acabemos com esta conversa, etc..

Para compreendermos o discurso de outrem, não bastacompreender as suas palavras — temos que compreender o seupensamento. Mas também isto não basta — temos que conhecertambém as suas motivações. Nenhuma análise psicológica de umafrase proferida se encontra completa antes de se ter atingido esseplano.

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Chegamos ao fim da nossa análise; passemos os seusresultados em revista. O pensamento verbal surge-nos como umaentidade dinâmica e complexa e a relação entre o pensamento e apalavra no seu interior aparece-nos como um movimento queabarca uma série de planos. A nossa análise seguiu o processodesde o seu plano mais externo até ao seu plano mais interno. Narealidade, o desenvolvimento do pensamento verbal segue umatrajetória oposta: do motivo que gera um pensamento à modelaçãodo pensamento, primeiro no discurso interior, depois nossignificados das palavras e finalmente nas palavras. Seria noentanto errado imaginar que este é o único caminho do pensamentopara a palavra. O desenvolvimento pode deter-se num pontoqualquer da sua complexa trajetória; é possível uma infinidade demovimentos progressivos e recessivos, uma grande variedade deevoluções que desconhecemos ainda. O estudo destasmultifacetadas variações não cabe no âmbito da nossa tarefapresente.

A nossa investigação seguiu um percurso bastante invulgar.Desejávamos estudar a forma como internamente operam opensamento e a linguagem, formas essas que se encontram ocultasà observação direta. O significado e todo o aspecto interior dalinguagem, a sua faceta que se encontra voltada para a pessoa enão para o mundo exterior tem constituído até hoje um territóriodesconhecido. Sejam quais forem as interpretações que lhes sejamdadas, as relações entre o pensamento e a palavra foram sempreconsideradas como algo constante e imutável, estabelecido parasempre. A nossa investigação mostrou que tais relações são, pelocontrário, relações mutáveis entre processos, que surgem durante odesenvolvimento do pensamento verbal. Não queríamos nempodíamos esgotar o assunto do pensamento verbal. Tentamosapenas dar uma concepção geral da infinita complexidade destaestrutura dinâmica — concepção que parte dos fatosexperimentalmente documentados.

Para a psicologia associacionista, o pensamento e a palavraencontram-se unidos por laços externos, semelhantes aos laçosexistentes entre duas sílabas sem sentido. A psicologia gestaltistaintroduziu o conceito dos nexos estruturais, mas, tal como a velhateoria, não entrou em linha de conta com as relações específicasentre o pensamento e a palavra. Quanto às outras teorias,agrupavam-se em torno de dois pólos — quer o pólo do conceitobehaviourista segundo o qual o pensamento é linguagem sem oponto de vista idealista, defendido pela escola de Wuerzburg, eBergson, segundo o qual o pensamento poderia ser “puro”, isto é,pensamento sem qualquer relação com a linguagem, pensamentoque seria distorcido pelas palavras. A frase de Tjutchev “Uma vez

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dito um pensamento torna-se mentira”, poderia muito bem servir deepitáfio para o último grupo. Quer se inclinem para o puronaturalismo quer se inclinem para o idealismo mais extremo, todasestas teorias comungam dum mesmo traço — o seu pendoranti-histórico. Estudam o pensamento e a palavra sem fazeremqualquer referência à sua História genética.

Só uma teoria histórica do discurso interior poderá tratarcabalmente este complexo e imenso problema. A relação entre opensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasceatravés das palavras. Uma palavra vazia de pensamento é umacoisa morta, e um pensamento despido de palavras permanece umasombra. A conexão entre ambos não é, no entanto, algo deconstante e já formado: emerge no decurso do desenvolvimento emodifica-se também ela própria. À expressão bíblica “No princípioera o Verbo”, Goethe faz Fausto responder: “No princípio era aação”. A intenção desta frase é a de diminuir o valor da palavra,mas podemos aceitar esta versão se lhe dermos outra acentuação:no princípio era a ação. A palavra não é o ponto de partida — aação já existia antes dela; a palavra é o termo do desenvolvimento,o coroamento da ação.

Não podemos encerrar o nosso relance sem mencionarmos asperspectivas abertas pela nossa investigação. Estudamos osaspectos internos da linguagem que eram tão desconhecidos para aCiência como o outro lado da Lua. Mostramos que as palavras têmpor característica fundamental serem um reflexo generalizado domundo. Este aspecto da palavra conduz-nos ao limiar de um temamuito mais profundo e mais vasto — o problema geral daconsciência. As palavras desempenham um papel fundamental, nãosó no desenvolvimento do pensamento mas também nodesenvolvimento histórico da consciência como um todo. Cadapalavra é um microcosmos da consciência humana.

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Notas(i) — Por “percepção quase ao mesmo tempo” Koehler entende

situações em que instrumento e objetivo foram vistos juntos poucotempo antes, ou quando foram usados conjuntamente tantas vezesnuma situação idêntica que são, para todos os fins,psicologicamente apreendidos simultaneamente (18)(18, p. 39).

(ii) — Vygotsky não descreve o teste em pormenor. A seguintedescrição é extraída de Conceptual Thinking in Schizophrenia, deE. Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 9-10).

O material utilizado nos testes de formação dos conceitosconsiste em 22 blocos de madeira de várias cores, formas, alturas elarguras. Existem 5 cores diferentes, 6 formas diferentes, 2 alturas(os blocos altos e os blocos baixos), e 2 larguras da superfíciehorizontal (larga e estreita). Na face inferior de cada figura, que nãoé vista pelo sujeito, está escrita uma das quatro palavras semsentido: lag, bik, mur, cev. Desprezando a cor ou a forma, lag estáescrita em todas as figuras largas e altas, bik em todas as figuraslargas e baixas, mur em todas as altas e estreitas, e cev nas baixase estreitas. No inicio da experiência todos os blocos, misturadosquer nas cores, tamanhos e formas, são espalhados numa mesadefronte do sujeito ... O examinador vira um dos blocos (a“amostra”), mostra e lê o seu nome ao sujeito, e pede-lhe que retiretodos os blocos que pensar puderem pertencer ao mesmo tipo. Apóso sujeito o ter feito ... o examinador vira um doa blocos“erradamente” selecionado, mostra que é um bloco de um tipodiferente e encoraja o sujeito a prosseguir nas tentativas. Após cadanova tentativa, outro bloco erradamente retirado é virado. À medidaque o número de blocos virados aumenta, o sujeito obtémgradualmente uma base para descobrir a que características dosblocos se referem as palavras sem sentido. Mal faça estadescoberta, as ... palavras ... começam a fixar-se em tipos definidosde objetos (ou seja, lag para blocos largos e altos, bik para largos ebaixos), e novos conceitos, para os quais a linguagem não fornecenenhum nome, são então formados. O sujeito encontra-se entãopreparado para completar a tarefa de separação dos quatro tipos deblocos indicados pelas palavras sem sentido. Então, o uso dosconceitos tem um valor funcional definido para o fim requerido poreste teste. Se o sujeito utilizar realmente o pensamento conceptualna tentativa de resolução do problema ... poder-se-á inferir danatureza dos grupos que constrói e do seu procedimento na suaconstrução que aproximadamente cada etapa do seu raciocínio é

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refletida na sua manipulação dos blocos. A primeira abordagem doproblema, o manuseamento da amostra, a resposta à correção, adescoberta da solução, todos estes estádios da experimentaçãopodem fornecer dados que podem servir como indicadores do nívelde pensamento do sujeito.

(iii) — A seguinte análise das observações experimentais étirada do estudo de E. Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 30-31):

Em muitos casos o grupo, ou grupos, criados pelo sujeito têmquase o mesmo aspecto que numa classificação coerente, e acarência de uma verdadeira fundamentação conceptual sótransparece quando o sujeito se vê na contingência de pôr à provaas idéias que consubstanciam o seu agrupamento. Isto acontece nomomento da correção quando o examinador vira um dos blocoserradamente selecionados e mostra que a palavra nele escrita édiferente da do bloco de amostra, por exemplo, que não é mur. Esteé um dos pontos críticos da experiência...

Sujeitos que abordaram a tarefa como um problema declassificação respondem imediatamente à correção de uma formaperfeitamente específica. Esta resposta é adequadamente expressana afirmação: “Ah! Então não se trata da cor” (ou forma, etc.)... Osujeito retira todos os blocos que tinha colocado junto à amostra ecomeça à procura de outra possível classificação.

Por outro lado, o comportamento exterior do sujeito no inícioda experiência pode ter sido o de tentar conseguir umaclassificação. Pode ter colocado todos os blocos vermelhos junto àamostra, procedendo com bastante segurança... e declarar quepensa que aqueles blocos vermelhos são os murs. Então oexaminador vira um dos blocos escolhidos e mostra que tem umnome diferente... O sujeito vê-o retirado, ou mesmo retira-o elepróprio obedientemente, mas é tudo quanto faz: não faz nenhumatentativa para retirar os outros blocos vermelhos de junto daamostra mur. À questão do examinador se é que ainda pensa queaqueles blocos devem estar juntos, e são mur, respondeperemptoriamente. “Sim, devem manter-se juntos porque sãovermelhos”. Esta réplica demolidora revela uma atitude totalmenteincompatível com uma verdadeira tentativa de classificação e provaque os grupos que ele tinha formado eram na realidade pseudo-classes.

(iv) — Deve ficar bem claro neste capítulo que as palavrastambém desempenham uma importante, embora diferente, funçãonos vários estádios do pensamento por complexos. Contudo,consideramos o pensamento complexo um estádio no

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desenvolvimento do pensamento verbal, à diferença de muitosoutros autores (21, 53,55) que alargam o termo complexo paraincluir o pensamento pré-verbal e mesmo o instinto primitivo dosanimais.

(v) — Idênticos desenhos foram mostrados a dois grupos decrianças em idade pré-escolar de idades e nível de desenvolvimentosemelhantes. Pediu-se a um grupo para representar o desenho — oque indicaria o grau da imediata apreensão do seu conteúdo; aooutro grupo pediu-se para o narrar por palavras, tarefa requerendouma capacidade de compreensão conceptualmente mediada.Verificou-se que os “atores” forneceram o significado da situaçãorepresentada, ao passo que os narradores enumeraram objetosseparados.

(vi) — “A cigarra e a formiga”. Em francês no original.

(vii) — O exemplo dado por Vygotsky perde parte do seuimpacto em português, devido às diferentes relações entre osgêneros na língua portuguesa e na língua russa.

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Setembro 2001

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