emerson fernandes diálogo: natureza, pensamento, linguagem

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Emerson Fernandes Diálogo: natureza, pensamento, linguagem e expressão Tese de doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia Departamento de Filosofia da PUC–Rio. Orientador: Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Setembro de 2018

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Page 1: Emerson Fernandes Diálogo: natureza, pensamento, linguagem

Emerson Fernandes

Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo

Tese de doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Departamento de Filosofia da PUCndashRio

Orientador Prof Danilo Marcondes de Souza Filho

Rio de Janeiro Setembro de 2018

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Emerson Fernandes

Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo

Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciecircncias Humanas da PUC-Rio Aprovada pela Comissatildeo Examinadora abaixo assinada

Prof Danilo Marcondes de Souza Filho Orientador

Departamento de Filosofia - PUC-Rio

Prof Paulo Cesar Duque Estrada

Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio

Prof Renato Matoso Ribeiro Gomes Brandatildeo

Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio

Prof Marcelo Joseacute Derzi Moraes Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash Uerj

Prof Carlos Monteiro Junior

Coleacutegio Pedro II ndash CPII

Profa Monah Winograd Coordenadora Setorial de Poacutes-Graduaccedilatildeo e Pesquisa do Centro de

Teologia e Ciecircncias Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro 28 de setembro de 2018

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Todos os direitos reservados Eacute proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial do trabalho sem autorizaccedilatildeo da universidade do autor e do orientador

Emerson Fernandes

Graduou-se em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 2010 Em 2013 concluiu o curso de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio com a dissertaccedilatildeo intitulada ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Eacute muacutesico poeta educador e professor no curso de especializaccedilatildeo em Filosofia Antiga no CCEPUC-Rio

Ficha Catalograacutefica

CDD 100

Fernandes Emerson Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Emerson Fernandes orientador Danilo Marcondes de Souza Filho ndash 2018 189 f il color 30 cm Tese (doutorado)ndashPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia 2018 Inclui bibliografia 1 Filosofia ndash Teses 2 Natureza 3 Poesia 4 Mito 5 Epos 6 Logos I Souza Filho Danilo Marcondes de II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia III Tiacutetulo

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Em memoacuteria do antigo Museu Nacional

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Agradecimentos

Agradeccedilo aos meus amigos Dado Villa-Lobos Arthur Macias Benito Guidi Pedro

Tambellini Nancy Ribeiro Bruno Wagner e meus familiares que sempre me

apoiaram nessa longa estrada da vida que comeccedilou no Complexo da Mareacute

Ao meu orientador Danilo Marcondes e aos professores Paulo Ceacutesar Duque-

Estrada Renato Matoso Arthur Dapieve Paul Heritage Maura Iglesias Irley

Franco Luisa Buarque Luiacutes Carlos Pereira Marcelo Moraes Eduardo Barbosa

Carlos Monteiro Ricardo Noacutebrega Alexandre Costa Luiacutes Felipe Bellitani pelo

apoio confianccedila e contribuiccedilatildeo na reflexatildeo filosoacutefica

Agrave minha querida Vanessa Clarice pelo amor respeito e paciecircncia

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (Capes)

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Resumo

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

Esta tese tem por objetivo apresentar o percurso geneacutetico do diaacutelogo como uma

praacutetica discursiva oral que se tornou um gecircnero literaacuterio ateacute o momento que foi

utilizado como meio de expressatildeo poeacutetico e filosoacutefico por autores antigos A partir

da obra homeacuterica que foi o pilar eacutetico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico para

a organizaccedilatildeo da cultura grega esse importante gecircnero tornou-se a base para a

elaboraccedilatildeo das primeiras reflexotildees que culminaram no surgimento do Teatro e da

Filosofia na Greacutecia

Palavras-chave

Natureza Poesia Mito Epos Logos

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Abstract

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho (Advisor) Dialogue nature thought language and expression Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

This thesis aims to present the genetic path of dialogue as an oral discursive

practice which has become a literary genre up to the moment that was used as a

way of poetic and philosophical expression by ancient authors From this Homeric

work which was the ethical epistemological political and pedagogical pillar for

the organization of Greek culture this important genre became the basis for the

elaboration of the first reflections that culminated in the emergence of Theater and

Philosophy in Greece

Key-words

Nature Poetry Myth Epos Logos

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Sumaacuterio

1Introduccedilatildeo 9

2 Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento 18

21 A expressatildeo da Phyacutesis 18 22 Phyacutesis e Loacutegos 29 23 Poesia e Loacutegos 36 3 Poesia memoacuteria e verdade 41

31 A palavra entre os homens e deuses 41 32 Entre a oralidade e a escrita 57 4 Mythos Eacutepos e Loacutegos 64

41 Mito e poesia 64 42 Mito e espanto 67 43 Mito accedilatildeo e verdade 73 44 Mito e religiatildeo 78 45 Mito e a voz 81 46 Mito e muacutesica 88 47 Eacutepos 115 48 Loacutegos 122 5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo 127

51 A fala livre 127 52 A palavra e a bela accedilatildeo 133 53 A fala compartilhada 148 6 Consideraccedilotildees finais 164 7 Referecircncias bibliograacuteficas 170 8 Anexos 176

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1 Introduccedilatildeo

A palavra diaacutelogo1 tem originalmente algumas acepccedilotildees na liacutengua grega

Dentro delas eacute possiacutevel encontrarmos o sentido de relaccedilatildeo contato e alteridade que

ocorre em qualquer praacutetica comunicativa social poliacutetica2 e reflexiva3 A

grandiosidade da cultura helecircnica foi forjada atraveacutes do reconhecimento da

necessidade do outro que ocorreu em sua mais tenra idade no periacuteodo preacute-histoacuterico

quando o homem primitivo estabeleceu os primeiros assentamentos na parte

continental grega por volta de 40000 aC 4 Com o passar do tempo os habitantes

desse territoacuterio deixaram uma importante heranccedila cultural que repercutiu no futuro

glorioso da civilizaccedilatildeo helecircnica (VERMEULE 1964) atraveacutes dos avanccedilos

tecnoloacutegicos obtidos na idade do Bronze

Esse legado que foi atestado pela arqueologia5 eacute a prova de ter havido um

processo de continuidade entre essas culturas que ocorreu de modo subterracircneo

1 ∆ιάλογοςdiaacutelogos ὁ (διαλέγοmicroαι ) conversaccedilatildeo diaacutelogo Pl Prt 335d Demetr Eloc 223 δ τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτήν Pl Sph 263 e οἱ Σωκρατικοὶ δ Arist Fr 72 τὰ ἐν τοῖς δ Debater argumentos Id APo 78a12 geralmente conversaccedilatildeo Cic Att 552 II discurso ou seacuterie de discursos debate (cf διάλεξις) IG 31128 al III = διαλογισmicroός 1 PHib 1122 (iii BC) PTeb 5831 (ii BC) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo grego recomendamos a leitura do seguinte livro LIDDELL H G and SCOTT R A Greek-English Lexicon Oxford Clarendon Press 1997 2 Em um regime poliacutetico de caraacuteter monaacuterquico a realeza necessita estabelecer um diaacutelogo mesmo sendo de modo verticalizado com o povo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro MAQUIAVEL Nicolau ldquoO priacutenciperdquo Trad Antonio Caruccio-Caporale Satildeo Paulo LampPM Editores Porto Alegre 2011 3 Basta notar o parentesco semacircntico que eacute apontado pelos dois filoacutelogos na nota sobre o diaacutelogo atraveacutes da palavra dialogismos διαλογ-ισmicroός ὁ ponderaccedilatildeo D 3623 PRevLaws 1717 (pl) IG 5 (1) 14326 (Messene) etc daqui II caacutelculo consideraccedilatildeo Pl Machado 367a δ λαβεῖν περὶ σφῶν αὐτῶν Str 537 ὁ δ οὗτος esta consideraccedilatildeo Phld D 115 III debate argumento discussatildeo Epicur Pe 138 (pl) Metrod 37 Plu 2180c IV circuito τοῦ νοmicroοῦ δ ποιῆσαι PLond 235819 cf BGU 19i13 (ii AD) V inqueacuterito judicial PTeb 2735 (ii BC) PFay 662 (ii AD) 4 Vide a nossa tabela cronoloacutegica no anexo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E FINLEY MI ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Trad WR Vaccari Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 5 Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the twelfth and eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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atraveacutes do amplo desenvolvimento das teacutecnicas naacuteuticas militares agriacutecolas e

artiacutesticas que foram mantidas e modificadas com o passar do tempo entre esses

habitantes do solo grego para suprir as suas necessidades existenciais Dentro desse

contexto um dos elementos que pode ser identificado nesses diversos materiais

provenientes dessas culturas predecessoras eacute a utilizaccedilatildeo da muacutesica agrave serviccedilo da

tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que perdurou6 - mesmo depois da fatiacutedica idade das trevas ndash

na memoacuteria dos sobreviventes da realeza micecircnica e dos pastores e agricultores

que se refugiaram no alto das montanhas Atualmente haacute vaacuterios estudos sobre esse

tema que tentam entender como ocorreu o fenocircmeno musical durante a idade do

bronze7 Essa investigaccedilatildeo despertou o nosso interesse por tambeacutem revelar aspectos

do desenvolvimento intelectual humano que podem ser encontrados na sofisticaccedilatildeo

empregada primeiramente no uso da poesia na tradiccedilatildeo oral e posteriormente no

teatro filosofia e retoacuterica no periacuteodo claacutessico

Atraveacutes dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel identificarmos o resquiacutecio de algumas

praacuteticas culturais que sobreviveram atraveacutes da memoacuteria coletiva que pode ser

encontrada na poesia homeacuterica e hesiodica8 Consequentemente esses fatos

fornecem a base para a hipoacutetese de que os remanescentes micecircnicos contribuiacuteram

na reconstruccedilatildeo cultural que desencadeou posteriormente em um novo processo de

organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico9 no mundo antigo Esse testemunho oferecido pelo

proacuteprio Platatildeo em seu uacuteltimo diaacutelogo inacabado10 e por Heroacutedoto11 Tuciacutedides12 e

Aristoacuteteles13 apresenta para o leitor atencioso algumas pistas imprescindiacuteveis que

revela esse passado mais distante e sombrio dos gregos Consequentemente esses

relatos quando satildeo aproximados dos inuacutemeros materiais analisados pela

6 Haacute diversos estudos que apontam esse processo de continuidade Eacute importante ressaltar que o modo como isso ocorreu ainda eacute motivo de muitas polecircmicas entre os especialistas A nossa intenccedilatildeo secundaacuteria eacute levantar algumas evidecircncias que foram surgindo ao decorrer de nossa pesquisa Uma delas foi apresentada por Jean-Pierre Vernant que se refere ao uso do cavalo que foi inicialmente adotado para diversos usos na civilizaccedilatildeo minoica A importacircncia do cavalo sobretudo no acircmbito mitoloacutegico e militar estaacute extensamente descrita na poesia eacutepica homeacuterica Essa eacute uma das provas do elo de continuidade cultural que falamos anteriormente Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 7 Vide o seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 8 Vide nota 6 9 Vide Platatildeo As Leis (livro III 677) 10 Ibidem 11 Vide Heroacutedoto Histoacuterias 12 Vide Tuciacutedides A histoacuteria da guerra do Peloponeso 13 Vide as seguintes obras de Aristoacuteteles Poliacutetico e a Constituiccedilatildeo dos atenienses

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arqueologia contemporacircnea revela algumas evidecircncias que seratildeo expostas e

estudadas nesse presente trabalho Vale ressaltar que dentro desse contexto a liacutengua

grega foi constituiacuteda e aprimorada acompanhando todas essas influecircncias histoacutericas

e culturais recebidas de outras civilizaccedilotildees afins Para esse estudo a anaacutelise do

Linear A14 e B ainda continua sendo um rico manancial para os historiadores

filoacutelogos e antropoacutelogos O nosso meacutetodo investigativo natildeo se ateve apenas sobre

os registros fornecidos pela literatura escrita mas como foi exposto anteriormente

partirmos de importantes estudos arqueoloacutegicos que analisa materiais

arquitetocircnicos orgacircnicos inorgacircnicos pictoacutericos artesanais e metaluacutergicos A

forma como esses estudos satildeo organizados partem da reuniatildeo de todas as evidecircncias

disponiacuteveis para uma investigaccedilatildeo mais detalhada do comportamento humano E

um dos criteacuterios utilizados pelos pesquisadores eacute a anaacutelise do desenvolvimento

tecnoloacutegico que pode ser alcanccedilado de modo comparativo entre os diferentes

periacuteodos da historiografia grega

Como um verbo transitivo que sempre busca o seu complemento a nossa

capacidade de expressatildeo reflexatildeo e criaccedilatildeo opera por essa mesma loacutegica que revela

a nossa incompletude e que assina a imagem da natureza humana em relaccedilatildeo aos

imortais15 Essa caracteriacutestica foi ressaltada e analisada por Aristoacuteteles no livro I da

Poliacutetica16 no qual eacute exposto que o homem por natureza17tem o poder da palavra

articulada18 que eacute fundamental para o processo de organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo

existencial da comunidade humana19 e que se constitui atraveacutes da praacutetica

dialoacutegica20 De modo discreto o filoacutesofo macedocircnio estabelece uma interessante

14 Jean-Pierre Vernant chama atenccedilatildeo para o fato de haver por volta do seacuteculo XV aC uma fusatildeo de diferentes culturas que foi denominada de chipro-micecircnica na qual podemos identificar elementos da cultura minoica micecircnica e asiaacutetica Durante esse periacuteodo eles disponibilizavam de uma escrita que foi derivada do Linear A Logo o estudo dessa escrita possibilita muitas informaccedilotildees sobre esse processo de mesticcedilagem cultural que ocorreu nesse periacuteodo histoacuterico Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 15 Αθάνατοι athaacutenatoi Os deuses 16 Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) 17 Kατά Φύσιν kata phyacutesin18 Λόγοςloacutegos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse importante termo do vocabulaacuterio grego 19 Πόλιςpoacutelis 20 A partir da exposiccedilatildeo aristoteacutelica no capiacutetulo I do livro da Poliacutetica no qual eacute dito que o homem por natureza ou seja por necessidade precisa viver em comunidade (κοινωνίαkoinonia) subentende-se a importacircncia do desenvolvimento do processo dialoacutegico ndash e aqui nos deparamos com uma evidecircncia que remonta diretamente a fundamentaccedilatildeo de nossa hipoacutetese sobre o uso desse

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ordenaccedilatildeo argumentativa que apresenta em sua obra a relaccedilatildeo entre o pensamento

julgamento expressatildeo sociabilidade e poliacutetica que revela a heranccedila intelectual

herdada das investigaccedilotildees promovida por seu mestre na Academia Aliaacutes foi o

proacuteprio Platatildeo que chamou atenccedilatildeo para esse fato em uma passagem do diaacutelogo

Mecircnon21 Na liacutengua grega eacute possiacutevel observar algumas dessas noccedilotildees atraveacutes da

proximidade semacircntica entre o verbo desejar22 e perguntar23 que assinala esse

caraacuteter de alteridade que abrange a instacircncia epistemoloacutegica poliacutetica e social no

mundo antigo24 Esse traccedilo que eacute perceptiacutevel na maioria das obras gregas expotildee

meio de expressatildeo por Soacutecrates e Platatildeo para buscar a plenitude existencial da poacutelis ndash que eacute essencial dentro desse contexto exposto pelo filoacutesofo macedocircnio (vide in loco a passagem 1252 b 25 ndash 30

ldquoPrimeiro haacute a necessidade de reunir dois seres que natildeo podem fazer nada um sem o outro quero dizer a uniatildeo dos sexos para a reproduccedilatildeo E natildeo haacute nada arbitraacuterio pois no homem assim como em outros animais e plantas eacute um desejo natural querer deixar para traacutes um ser feito agrave sua imagemrdquo) Nesse sentido o contato natural entre os seres da mesma espeacutecie ndash que reside na expressatildeo ldquo ἀνάγκη δὴ πρῶτον συνδυάζεσθαιanacircnke de proacuteton synduazesthai rdquo pressupotildee a atividade comunicativa necessaacuteria no acircmbito da linguagem para a realizaccedilatildeo desse objetivo que tambeacutem tem relaccedilatildeo com a estruturaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica para Aristoacuteteles Atualmente na aacuterea da Educaccedilatildeo haacute diversos estudos que apresentam a importacircncia da praacutetica dialoacutegica no processo pedagoacutegico de jovens e adultos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro FLECHA R ldquoCompartiendo palavras el aprendizaje de las personas adultas a traveacutes del diaacutelogordquo Barcelona Paidoacutes 1997 21 Em Platatildeo Mecircnon (84 c) Nessa passagem Platatildeo estabelece um jogo poeacutetico entre o uso desses verbos que visa destacar a correspondecircncia - e importacircncia - entre eles na investigaccedilatildeo filosoacutefica socraacutetica A atitude de desejar algo estaacute intrinsicamente relacionada com a imagem do filoacutesofo que eacute construiacuteda a partir da busca da verdade Aliaacutes no Banquete essa questatildeo eacute retomada quando Soacutecrates invoca a sacerdotisa Diotima para estabelecer o diaacutelogo que apresenta a imagem do amor agrave sabedoria que soacute pode ser alcanccedilada na relaccedilatildeo de proximidade e harmonia com o proacuteximo 22 Έράωeraacuteo (A) utilizado no Act somente no pres e imp (que na poesia satildeo ἔραmicroαι ἠράmicroην) iacuteon Archρέω Archil 253 impf Hρων Hdt 9108 E Fr 161 Ar Ach 146 - Passar ἀντ-ερᾶται X Smp 83 optar Id Hier 1111 inf ἐρᾶσθαι Plu Brut 29 etc parte ἐρώmicroενος (v infr) - tambeacutem ἐράοmicroαι 3 sg ἐρᾶται Plu 2753b Philostr Academia 48 (vράασθε v Sub ἔραmicroαι) todos os outros tempos seratildeo encontrados em ἔραmicroαι - amor c gen pers da paixatildeo sexual apaixonar-se por (X Cyr 5110) ἤρα τῆσ γυναικός Hdt 9108 etc c acc cogn ἔρᾶν ἔρωτα E Hipp 32 pl Smp 181b abs Aρῶν a lover vl em pi O 180 (pl) S Fr 1498 (pl) opp the ωρωmicroένη o amado Hdt 331 SE P 3196 [ὁ] ἐρώmicroενος X Smp 836 pl Phdr 239a cf Ar Eq 737 (pl) τὸν ἐρώmicroενον αὐτοῦ Lat delicias ejus Arist Pol 1303b23 2 sem referecircncia sexual amar calorosamente opp φιλέω οὐδ ἤρα οὐδ ἐφίλει Pl Ly 222a - ὥστε οὐ microόνον φιλοῖο ἂν ἀλλὰ καὶ ἐρῷο X Hier 1111 cf Plu Brut 29 κινεῖ [τὸ οὗ ἕνεκα] ὡς ἐρώmicroενον Arist Metaf 1072b3 II c gen rei amor ou desejo apaixonadamente τυραννίδος Archil 253 τερπνότατον τοῦ τις ἐρᾷ τὸ τυχεῖν Thgn 256 microάχης ἐρῶν A Th 392 microόνος θεῶν γὰρ Θάνατος οὐ δώρων ἐρᾷ Id Pe 161 Antmicroηχάνων ἐρᾷς S Ant 90 πατρίδος ἐρᾶν E Ph 359 οὗ ἐπιθυmicroεῖ τε καὶ ἐρᾷ Pl Smp 200a e c inf desejo de fazer A Fr 441 θανεῖν ἐρᾷ S Ant 220 Hποθανεῖν ἐρῶντες Hp de Arte 7 Arαγεῖν Ar Ach 146 πληροῦσθαι Pl Phlb 35a 23 Έρέω ereacuteo (A) Ep verbo = ἐρεείνω ἔροmicroαι ἐρωτάω perguntar inquirir c acc rei sobre uma coisa ἐρέων γενεήν τε τόκον τε Il 7128 cf Od 2131 procurar por Aυλαν AR 11354 2 c acc pers questatildeo microάντιν ἐρείοmicroεν (v infr) Il ἱερῆα Il 162 Odλλήλους ἐρέοιmicroεν Od 4192 ὅπως ἐρέοιmicroι ἑκάστην 11229 3 c acc rei pesquisa explorar Nicλυούς Nic ordm 143 (vl ἐρέθοντες) (Prob Ἐρε (ϊ) - cf ρευτής ἐρείοmicroεν perh metri gr para ἐρέ(ϊ) -o-microεν pres subj de radical natildeo-temaacutetico) 24 Vide Platatildeo Teeteto (149 a) Um dos pontos que estaacute impliacutecito nesse diaacutelogo eacute a necessidade do outro para a busca e obtenccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido o diaacutelogo eacute o meacutetodo fundamental para atender esse tipo de objetivo Na nossa dissertaccedilatildeo de mestrado haacute importantes observaccedilotildees

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esse impulso essencial que marca o nosso ponto de diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo

divino Pois ele eacute responsaacutevel por direcionar o homem atraveacutes da busca do

conhecimento que visa suprir os objetivos existenciais mais baacutesicos da nossa

espeacutecie de modo organizado e compartilhado

Nesse contexto eacute possiacutevel detectarmos a importacircncia que desempenhou a

Literatura oral e escrita para o surgimento de um tipo de reflexatildeo mais enxuta que

eclodiu com o surgimento da Filosofia que no seu estado inicial sempre esteve

voltada para auxiliar as accedilotildees humanas (HADOT 1995) na busca da plenitude

existencial Essa tese que foi defendida por Aristoacuteteles no Protreacuteptico25 estabelece

uma argumentaccedilatildeo no qual o estudo teoacuterico deve estar voltado para auxiliar o

mundo praacutetico A siacutentese entre o homo faber e sapiens que foi ressaltada por

pensadores como Mondolfo (MONDOLFO 1969) parece ter sido uma

caracteriacutestica importante da tradiccedilatildeo dos antigos sete saacutebios que teve origem na

expansatildeo cultural promovida na idade do Bronze em diversas civilizaccedilotildees desse

periacuteodo No livro X da Repuacuteblica26 Platatildeo expotildee a junccedilatildeo dessas duas atividades27

que a princiacutepio dialogavam sob o mesmo diapasatildeo exegeacutetico Ou seja o

pensamento reflexivo cultivado entre os iguais28 resulta na construccedilatildeo de um

fundamento que seraacute utilizado como uma buacutessola para encontrar a plenitude

existencial em cada comunidade A dimensatildeo externa ndash e natildeo menos importante -

dessa noccedilatildeo aponta para uma espeacutecie de caraacuteter hiacutebrido que apresenta a

que explicitamos sobre como o processo de composiccedilatildeo dramaacutetica do diaacutelogo estava em total consonacircncia com o questionamento elaborado por Platatildeo em torno da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento Um dos detalhes que chamou a nossa atenccedilatildeo foi o fato do poeta-filoacutesofo apontar a proximidade entre o jovem Teeteto e Soacutecrates atraveacutes da metoniacutemia que eacute construiacuteda na relaccedilatildeo entre o corpo e alma para evidenciar de modo sutil atraveacutes de carateriacutesticas exteriores algumas qualidades (Teeteto 144 a) a priori que satildeo essenciais para o desenvolvimento do processo dialoacutegico entre o jovem Teeteto e Soacutecrates Por outra perspectiva essa descoberta chama atenccedilatildeo para o problema da relaccedilatildeo entra a alma e o corpo (vide Feacutedon) que sempre foi um tema muito caro em sua obra Para Platatildeo essa foi uma forma encontrada para tentar combater o sensualismo defendido por alguns sofiacutestas Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura da seguinte obra F Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo dissertaccedilatildeo de mestrado Puc-Rio 2013 25 Vide Aristoacuteteles Protreacuteptico (Iamblichus Protreacuteptico VI 3627-37 22 Pistelli) 26 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro X 600-a) 27 Εἰς τὰ ἔργα σοφοῦ eis ta erga sophou Essa expressatildeo encontrada no livro X da Repuacuteblica foi ressaltada por Rodolfo Mondolfo em sua obra no qual analisa esse problema Para mais detalhes sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum Factumrdquo Desde antes de Vico hasta Marx Bs As Ed Siglo Veintiuno 1971 28 Como ressaltamos anteriormente na nota 24 essa ideia estaacute exposta no diaacutelogo Teeteto de Platatildeo na proximidade entre a imagem do jovem Teeteto e Soacutecrates

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multiplicidade cultural da essecircncia helecircnica que foi obtida desde o seu passado mais

remoto no contato com vaacuterias culturas na Bacia do Mediterracircneo

A proximidade com outros povos que foi estabelecida atraveacutes do comeacutercio e

da guerra a partir do desenvolvimento das culturas ciclaacutedica minoacuteica e micecircnica

aleacutem de revelar esse processo de relaccedilatildeo cultural29 tambeacutem foi responsaacutevel por

promover um banco extraordinaacuterio de conhecimento das accedilotildees humanas que foi

mantido e repassado atraveacutes da tradiccedilatildeo oral Esse acuacutemulo que foi fruto de

experiecircncias vitoriosas e amargas foram essenciais para a sobrevivecircncia e

manutenccedilatildeo dessas lembranccedilas do passado que serviu como norte para o futuro

atraveacutes da construccedilatildeo de uma das mais belas expressotildees humanas que foi alcanccedilada

a partir do amplo desenvolvimento das teacutecnicas musicais empregadas na

constituiccedilatildeo da poesia homeacuterica Esse feito notaacutevel reuacutene em sua maacutexima

excelecircncia todos os elementos mais importantes de sua histoacuteria30 que serviu para

pavimentar a estrada sinuosa do mundo helecircnico

No caso grego a linguagem eacute fundamentalmente marcada pelo contato e

observaccedilatildeo da Natureza O mito epoacutes loacutegos e o diaacutelogo satildeo imagens oriundas

dessa caracteriacutestica sublime que se iniciou na tradiccedilatildeo oral e que juntas formam a

relaccedilatildeo entre o ato de reflexatildeo e expressatildeo Essa experiecircncia foi essencial cada

uma delas em seu respectivo contexto para o desenvolvimento da religiatildeo arte

filosofia ciecircncia e poliacutetica no mundo antigo A forma como o homem estabeleceu

29 ∆ιάλογοςdiaacutelogos 30 Eacute importante ressaltar que o sentido de historicidade nesse contexto natildeo eacute equivalente ao conceito moderno Haacute uma grande polecircmica entre os historiadores em torno desse assunto Aliaacutes o termo grego em sua origem carrega o sentido de investigaccedilatildeo ἱστορ-ία historiacutea iacuteon -ιη ἡ inqueacuterito στορίῃσι εἰδέναι τι παρά τινος Hdt 2118 cf 119 ἡ περὶ φύσεως ἱ Pl Phd 96a αἱ περὶ τῶν ζῴων ἱ Arist Resp 477a7 al ἡ ἱ Id περὶ τὰ ζῷα Id PA 674b16 ζωικὴ ἱ ib 668b30 περὶ φυτῶν ἱ tiacutetulo do trabalho de Teofrasto observaccedilatildeo sistemaacutetica ou cientiacutefica Epicur Ep 1p29U abs da ciecircncia em geral ὄλβιος ὅστις τῆς ἱ Eσχε microάθησιν E Fr 910 (anap) da geometria Pythag ap Cordeiro VP 1889 na medicina empiacuterica corpo de casos registrados Gal 1144 mitologia ησίοδον πάσης ἤρανον ἱστορίης Hermesiano 722 2 conhecimento assim obtido informaccedilatildeo Hdt 1 Praef Hp VM 20 ἐις ἐmicroὴ καὶ γνώmicroη καὶ ἱ Hdt 299 πρὸς ἱστορίαν τῶν κοινῶν pelo conhecimento de D 18144 ψ τῆς ψυχῆς ἱ Arist reitor 402a4 II relato escrito de suas investigaccedilotildees narrativa histoacuteria prob neste sentido em Hdt 796 αἱ τῶν περὶ τὰς πράξεις γραφόντων ἱ Arist Rh 1360a37 Po 1451b3 Plb 1575 al Oκ τῶν ἱστοριῶν καὶ ἐκ τῶν ἄλλων microαρτυριῶν OGI 1312 (iii BC) αἱ Μαιανδρίου ἱ InscrPrien 37105 κοινὴ ἱ histoacuteria geral DH Ελληνική ρωmicroαϊκή Plu 2191d restringido por alguns agrave histoacuteria contemporacircnea Lat rerum cognitio praesentium VerrFlacc ap Gell 518 geralmente histoacuteria Call Aet 317 para a polecircmica em torno dessa questatildeo na antiguidade recomendamos a leitura dos seguintes livros HARTOG Franccedilois ldquoEvidecircncia da histoacuteria o que os historiadores veemrdquo Trad Guilherme Joatildeo de Freitas com a colaboraccedilatildeo de Jaime A Clasen Belo Horizonte Autecircntica 2011 E ldquoOs Antigos O Passado e o Presenterdquo Ed UnB Brasiacutelia 2003

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comunicaccedilatildeo com essas forccedilas divinas moldou o seu proacuteprio modo de pensar e o

espaccedilo de atuaccedilatildeo no mundo atraveacutes de suas accedilotildees O contato com a natureza

humana e divina somada agrave capacidade de observaccedilatildeo e audiccedilatildeo trouxe um traccedilo

singular no processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega que

proporcionou o encontro da gloacuteria e o respeito entre as maiores civilizaccedilotildees da

antiguidade Um olhar singular que alcanccedilou a imensidatildeo do cosmo divino para

buscar sentido para os meros mortais quando estabelecia proximidade com os

deuses oliacutempicos atraveacutes de seus mais grandiosos feitos A reflexatildeo expressatildeo e

accedilatildeo que operam de modo encadeado criaram os seus mais belos rebentos atraveacutes

da Poesia Teatro Poliacutetica e Filosofia

Sobre a beleza eacute importante ressaltar que no contexto grego o seu sentido estaacute

em total consonacircncia com a noccedilatildeo de verdade que se forma no periacuteodo preacute-

homeacuterico e perdura ateacute o claacutessico31 a partir do criteacuterio do natildeo-esquecimento e da

accedilatildeo eficaz que garante o ecircxito no campo de batalha da vida A partir desses

princiacutepios a proacutepria constituiccedilatildeo do processo preacute-juriacutedico grego tambeacutem se

desenvolve para auxiliaacute-los na sua organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Em um primeiro

momento histoacuterico essas accedilotildees efetivas satildeo imortalizadas pela boca do aedo que

habita entre as duas instacircncias que juntas compotildee o espaccedilo dramaacutetico32 de atuaccedilatildeo

entre homens e deuses Nesse sentido eacute perceptiacutevel a partir do contexto homeacuterico

identificar algumas noccedilotildees que os gregos mantiveram do seu passado mais remoto

com o intuito de utilizaacute-las para garantir a perpetuaccedilatildeo dos valores cultivados pelos

seus ancestrais33 Por outro lado esse legado dispotildee de dispositivos que foram

31 Vide as obras de Homero Platatildeo e Aristoacuteteles Apesar de algumas diferenccedilas entre esses pensadores eacute possiacutevel encontramos essa noccedilatildeo que perpassa por todas as culturas predecessoras dos gregos atraveacutes da mitologia que foi mantida e difundida pela tradiccedilatildeo oral Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 32 Ou seja o mundo eacute formado atraveacutes do princiacutepio da guerra Vide o fragmento de Anaximandro (D-K 12 A 9 Simpliacutecio Fiacutes 24 13-25) Nele o filoacutesofo expotildee em sua sentenccedila mais famosa na antiguidade um questionamento que pode ser tambeacutem encontrado na poesia homeacuterica o sentido de ilimitado (ἄπειρονaacutepeiron) carrega o mesmo alfa privativo que estaacute contido na palavra imortal (ἀθάνατοςathaacutenatos) que para noacutes parece ter uma carga semacircntica similar Esse termo que ganha uma importacircncia fundamental na cosmologia do filoacutesofo estaacute em total consonacircncia com o questionamento que foi primeiramente trazido por poetas mais antigos como Homero e Hesiacuteodo Logo podemos encontrar mais uma evidecircncia de como a poesia oral foi importante para manter esse legado da cultura grega e que serviu de base para a reflexatildeo dos primeiros filoacutesofos 33 Uma das provas de continuidade cultural tambeacutem pode ser obtida nas praacuteticas oraculares que ainda desempenhavam um importante papel na esfera poliacutetica entre os gregos Esse fato traz um grande problema para aqueles que defendem que houve um processo de distanciamento da religiatildeo apoacutes o surgimento da Democracia que teria possibilitado o surgimento da Filosofia Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do IV capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs

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imprescindiacuteveis para o aprimoramento epistemoloacutegico social poliacutetico e juriacutedico

Para o primeiro basta lembrar a importacircncia da poesia homeacuterica e hesioacutedica em

todas as discussotildees cosmogocircnicas e cosmoloacutegicas dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos que

culminou posteriormente no surgimento do debate intelectual no qual o homem

passou a ser o centro de todas as questotildees ou a medida de todas as coisas como

defendia o grande Protaacutegoras de Abdera34 Paralelamente a reflexatildeo juriacutedica e

poliacutetica foram temas de destaque nessas respectivas obras Na Iliacuteada de Homero

por exemplo nos deparamos com uma profunda criacutetica poliacutetica a partir da crise

entre Agamemnon e Aquiles que nos revela a decadecircncia da antiga estrutura

monaacuterquica micecircnica com a figura de um rei fraco e covarde Aleacutem dessa questatildeo

podemos notar a defesa dos valores calcados na honra e na coragem que eacute atribuiacuteda

ao grande heroacutei dos mirmidotildees

Posteriormente em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta campesino ressalta a

necessidade do reconhecimento do papel da Justiccedila35para a organizaccedilatildeo do espaccedilo

social e poliacutetico no mundo humano que deve sempre manter um bom diaacutelogo com

o mundo divino com o objetivo de encontrar a harmonia atraveacutes do valor do

trabalho e respeito agraves leis A sua exposiccedilatildeo vem acompanhada de uma profunda

criacutetica ao modo como a classe aristocraacutetica administrava a comunidade36 Aliaacutes

Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 34 Ibidem 35 ∆ίκη Dikeacute Divindade que representa o conceito de justiccedila no mundo grego Eacute importante ressaltar que que nesse contexto o seu sentido tem proximidade semacircntica com a verdade (ἀλήθειαaleacutetheia) pois satildeo elas as responsaacuteveis por organizar a vida humana Esses dois fundamentos teoloacutegicos que pertence a esfera divina eacute outro legado oriundo de uma tradiccedilatildeo muito antiga Curiosamente do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute o periacuteodo claacutessico essa concepccedilatildeo vigorava no pensamento grego de modo irrevogaacutevel Como exemplo podemos encontraacute-la ainda presente nos livros da Repuacuteblica e as Leis de Platatildeo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros GERNET Louis ldquoDroit et Socieacuteteacute dans la Gregravece Anciennerdquo Paris Recueil Sirey 1955 HESIacuteODO ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo Traduccedilatildeo de Mary de Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1989 36 Hesiacuteodo ldquoTrabalhos e os diasrdquo (v 205 - 285) Sobre essa questatildeo vale ressaltar as consideraccedilotildees que foram apresentadas por Louis Gernet que apontou uma mudanccedila no conceito de justiccedila entre o periacuteodo arcaico e claacutessico ao analisar as duas virtudes que foram oferecidas aos homens por Zeus no mito de Protaacutegoras (Platatildeo Protaacutegoras 322 c) Aleacutem da Justiccedila (∆ίκη Dikeacute) aparece um termo de difiacutecil traduccedilatildeo chamado αἰδώς aidoacutes (Platatildeo Protaacutegoras 322 cαἰδῶ τε καὶ δίκην aido te kai dikeacuten) que segundo o dicionaacuterio de Lidell amp Scott apresenta o sentido de um sentimento moral de respeito aos outros mas aleacutem desse haacute outros a saber αἰδώς όος contr οῦς η (tarde nom pl αἰδοί Sch E Hipp 386) como um sentimento moral reverecircncia admiraccedilatildeo respeito pelo sentimento ou opiniatildeo dos outros ou pela proacutepria consciecircncia e assim vergonha auto-respeito (na ἑαυτοῦ αἰδώς Hierocl em CA 9p433M) sentido de honra αἰδῶ θέσθ ἐνὶ θυmicroῷ Il 15561 ἴσχε γὰρ αἰ καὶ δέος ib 657 cf Sapph 28 democr 179 etc αἰ σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει αἰσχύνης δὲ εὐψυχία Th 184 cf E Supp 911 Arist EN 1108a32 etc αἰδοῖ microειλιχίῃ Od 8172 so ἀλλά microε κωλύει αἴδως Alc 55 (Sapphus est versus) ἅmicroα κιθῶνι ἐκδυοmicroένῳ συνεκδύεται καὶ τὴν αἰδῶ γυνή

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esse fato teve um desdobramento terriacutevel com uma guerra civil de grandes

proporccedilotildees entre a classe dos nobres e dos trabalhadores que levou muitos gregos

agrave morte37 Essa crise foi apaziguada temporariamente atraveacutes da intervenccedilatildeo do

poeta legislador Soacutelon A partir dessas mudanccedilas e das reformas de Clistenes38 a

Greacutecia comeccedila estabelecer uma abertura poliacutetica e social que foi fundamental para

um regime poliacutetico no qual o diaacutelogo e confronto de ideias39datildeo a tocircnica desse novo

momento histoacuterico que culminou no florescimento de grandes personalidades que

influenciam ateacute hoje o nosso mundo ocidental

Hdt 18 δακρύων πένθιmicroον αἰδῶ laacutegrimas de pesar e vergonha A Supp 579 αἰ τίς micro ἔχει Pl Sph 217d αἰ καὶ δίκη Id Prt 322c αἰδοῦς ἐmicroπίπλασθαι X Cyr 144 sobriedade moderaccedilatildeo pi O 13115 αἰδῶ λαβεῖν S Aj 345 2 consideraccedilatildeo pelos outros respeito reverecircncia αἰδοῦς οὐδεmicroιῆς ἔτυχον Thgn 1266 cf E Heracl 460 αἰ τοκέων respeito por eles Pi P 4218 τὴν ἐmicroὴν αἰδῶ respeito por mim A Pers 699 em conta para os amigos ἰχαλκεύτοισιν ἔζευκται πέδαις E Fr 595 esp consideraccedilatildeo pelo desamparado compaixatildeo αἰδοῦς κῦρσαι S OC 247 perdatildeo Antipho 126 Pl Lg 867e (cf αἰδέοmicroαι 112) II aquilo que causa vergonha ou respeito e assim 1 vergonha escacircndalo αἰδώς αργεῖοι κάκ ἐλέγχεα Il 5787 etc αἰδώς ὦ Λύκιοι πόσε φεύγετε 16422 αἰδὼς microὲν νῦν ἥδε 17336 2 = τὰ αἰδοῖα Il 2262 Arat 493 DH 772 3 dignidade majestade αἰ καὶ χάρις hCer 214 III Personδώς personificado Reverecircncia Pi O 744 Misericoacuterdia Ζηνὶ σύνθακος θρόνων Αἰ S OC 1268 cf Paus 1171 παρθένος Αἰδοῦς ∆ίκη λέγεται Pl Lg 943e Logo eacute possiacutevel compreender esse termo como fruto de um contexto soacutecio-poliacutetico democraacutetico no qual era necessaacuterio estabelecer um laccedilo de respeito muacutetuo atraveacutes do diaacutelogo que ainda tem ligaccedilatildeo com a justiccedila divina de Hesiacuteodo Ou seja ela eacute um fundamento que parte de um desdobramento do acircmbito divino para o mundo no qual o homem eacute a medida de todas as coisas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Champs-Flammarion 1982 37 Entre os seacuteculos VII e VI aconteceu uma terriacutevel crise social que produziu uma guerra civil entre a classe dos nobres e dos trabalhadores atenienses Esse problema foi resolvido apoacutes a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon A sua atuaccedilatildeo foi essencial para o estabelecimento da base democraacutetica que foi consolidada com as reformas do legislador Clistenes Para mais informaccedilatildeo sobre esse tema recomendo a leitura do seguinte artigo F Emerson ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj 2015 38 Ibidem 39 Nesse caso o pleonasmo natildeo foi acidental No uacuteltimo capiacutetulo do presente trabalho pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo A forma como a palavra-diaacutelogo apareceu nesse determinado contexto histoacuterico pode responder por exemplo como essa noccedilatildeo foi importante para o desenvolvimento do drama como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

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Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento

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A expressatildeo da Phyacutesis

A Natureza eacute saacutebia e ela natildeo faz nada sem nenhum propoacutesito40 Segundo

Aristoacuteteles no livro da Poliacutetica41 o homem eacute um animal que tem o poder da palavra

articulada 42 que eacute a caracteriacutestica sine qua non que determina a sua diferenccedila entre

todos os outros seres vivos43 Esse poder de expressatildeo que eacute regido atraveacutes da nossa

capacidade de julgar44 eacute o que permite ao homem poder se organizar em uma

comunidade 45 justa e por isso ser considerado por natureza um animal poliacutetico46

40 Aristoacuteteles Poliacutetica (Livro I1253 a -10-14) 41 Ibidem 42 Λόγος (Loacutegos) Vide tambeacutem Eacutetica a Nicoacutemaco (Livro IX 9 1170 b11) onde o filoacutesofo afirma que a diferenccedila entre os homens e os outros animais eacute a faculdade de pensar (νοῦςnous) Os animais soacute possuem apenas a faculdade das sensaccedilotildees (αἴσθησῐςaiacutesthēsis) Eacute importante ressaltar a nossa imensa dificuldade em traduzir esse importante termo da liacutengua grega pois ele carrega diversos sentidos e a sua traduccedilatildeo necessita levar em consideraccedilatildeo o contexto especiacutefico no qual a palavra esteja sendo empregada Nessa passagem de Aristoacuteteles por exemplo ela carrega o sentido de uma palavra articulada pelo poder da razatildeo ndash sendo esse outro significado que o termo abrange como vimos na passagem do livro da Eacutetica a Nicocircmaco ndash que nos diferencia de outros animais No proacuteprio texto do filoacutesofo macedocircnio ele estabelece essa conotaccedilatildeo que nos ajuda a encontrar uma traduccedilatildeo apropriada Vide tambeacutem Xenofonte Memoraacuteveis (IV 3 12) e Isoacutecrates Sobre a mudanccedila de fortuna (253-7) e A Nicoles (50) Provavelmente Aristoacuteteles esteja desenvolvendo a sua teoria a partir dessas obras que foram inspiradas no pensamento de Protaacutegoras que podemos encontrar no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo Posteriormente iremos apresentar algumas hipoacuteteses em torno desse termo e a sua relaccedilatildeo com mais dois outros que expressam o sentido de linguagem e comunicaccedilatildeo para os gregos a saber ἔπος και microῦθος (epos e mythos) 43 Vide o mito de Protaacutegoras 44 Λογισmicroός (Logismoacutes) 45 Κοινωνία (Koinonia) associaccedilatildeo 46 ldquoὁ ἄνθρωπος φύσει ζῷον πολιτικόνrdquo (ho anthropos physei zoon politikon) Essa locuccedilatildeo grega tambeacutem levanta intensos debates em torno de sua interpretaccedilatildeo Infelizmente eacute muito difiacutecil traduzirmos com maacutexima fidelidade o sentido que o filoacutesofo empregou nessa sentenccedila O substantivo zoacuteon ao lado do adjetivo politikon parece formar um neologismo que estabelece um importante conceito na filosofia do pensador macedocircnio mas eis que surge uma questatildeo seraacute que esse conceito foi realmente cunhado por Aristoacuteteles ou pelo seu mestre Platatildeo No livro das Leis (livro III e IV) Poliacutetico e da Repuacuteblica (livro VI 546 a) o filoacutesofo poeta apresenta diversas questotildees que satildeo retomadas pelo seu disciacutepulo Eacute certo que esse era um importante tema dentro das intensas discussotildees que ocorriam na Academia Logo se faz necessaacuterio respeitar o contexto do qual essa expressatildeo foi retirada para evitar qualquer tipo de anacronismo ou distorccedilatildeo

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que busca encontrar a sua plenitude existencial como objetivo final de sua vida47

Nesse sentido o poder de comunicaccedilatildeo e de criaccedilatildeo que eacute fornecido e revelado

pela palavra satildeo determinantes para a construccedilatildeo organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do

mundo humano Semelhante ao deus platocircnico que se inspira nas ideias48 para a

criaccedilatildeo de todo o universo49 o homem mimetiza50 a Natureza51 para a realizaccedilatildeo do

objetivo que eacute ressaltado pelo filoacutesofo macedocircnio como a finalidade primordial que

define a nossa espeacutecie Ou seja ela eacute a medida de todas as coisas52 Estudar a sua

manifestaccedilatildeo eacute o ideal do homem primitivo que ao reconhecer a sua presenccedila eacute

tomado pelo assombro53 que eacute responsaacutevel para o surgimento da busca pela

sabedoria54 Esse importante passo contribui de modo definitivo para o seu mais

amplo desenvolvimento existencial em nossa histoacuteria O trabalho dos primeiros

pensadores parte dessa constataccedilatildeo inicial Ou seja o olhar dirigido para todos os

fenocircmenos naturais que eclodem ao redor do seu espaccedilo de atuaccedilatildeo delineia o

47 Ευδαιmicroονία (Eudaimonia) O ldquoBem-estarrdquo eacute um dos pontos centrais das discussotildees intelectuais no periacuteodo claacutessico No diaacutelogo Eutidemo de Platatildeo (278 e) essa questatildeo aparece como norteadora para a reflexatildeo eacutetica poliacutetica e pedagoacutegica para os gregos de modo geral 48 Platatildeo Timeu (28 a-b) ldquoὅτου microὲν οὖν ἂν ὁ δηmicroιουργὸς πρὸς τὸ κατὰ ταὐτὰ ἔχον βλέπων ἀεί τοιούτῳ τινὶ προσχρώmicroενος παραδείγmicroατι τὴν ἰδέαν καὶ δύναmicroιν αὐτοῦ ἀπεργάζηται καλὸν ἐξ ἀνάγκηςrdquo Destarte o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel que utiliza como arqueacutetipo quando fornece a forma e as propriedades ao que se cria Eacute necessaacuterio que tudo aquilo que se efetiva deste modo seja belo 49 Κόσmicroος (koacutesmos) Ο termo carrega o sentido de ordenamento e harmonia 50 Μίmicroησις (miacutemesis) Esse eacute outro termo dificiacutelimo para traduzir No geral os tradutores utilizam a palavra imitaccedilatildeo mas para o contexto grego o sentido eacute muito mais amplo Um deles pode ser a noccedilatildeo de representaccedilatildeo (Leis livro I 655d II 667d IV 719c VII 815a) que ele aplica ao contexto teatral e das artes de um modo geral Mas haacute ainda um sentido mais conceitual que Platatildeo aplica de modo sub-reptiacutecio no livro X da Repuacuteblica agrave teoria das formas Ao contraacuterio de muitos helenistas e especialistas de esteacutetica que criticaram de modo ofensivo a sua exposiccedilatildeo o filoacutesofo parece associar a esse termo um contraponto ao sentido de ldquocriaccedilatildeordquo (ποιεῖν) que eacute a tarefa do demiurgo e do filoacutesofo Para a defesa da nossa hipoacutetese partimos da passagem que citamos do Timeu na nota anterior e tambeacutem de uma importante obra esquecida do historiador Dionisio de Halicarnaso chamada ldquoSobre a imitaccedilatildeordquo (Περι Μιmicroησεως) Ao aproximaacute-la do livro X e da passagem que expomos do Timeu podemos extrair uma tese bem interessante sobre o ato de criaccedilatildeo para os antigos Posteriormente Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448ordf17-19) vai explorar o sentido desse termo no acircmbito poeacutetico eacutetico e ontoloacutegico a partir de sua doutrina 51 Φύσιςphyacutesis 52 Platatildeo e Aristoacuteteles defendem que o modelo ou medida (microέτρον) para o mundo humano - diferentemente do que defendia Protaacutegoras com a noccedilatildeo do homem como medida de todas as coisas- eacute a Natureza para Aristoacuteteles e Deus Para Platatildeo Apesar de algumas diferenciaccedilotildees entre elas essas satildeo noccedilotildees similares que deveriam ser o criteacuterio de orientaccedilatildeo para as accedilotildees humanas Nesse sentido atraveacutes da ontologia a filosofia teria como objetivo estudar esses primeiros princiacutepios com o intuito de encontrar o caminho necessaacuterio para a plenitude da existecircncia humana Vide Protreacutepticoe a Metafiacutesica de Aristoacuteteles 53 θαῦmicroα 54 Σοφία

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campo de possibilidades para a sua afirmaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo do seu proacuteprio

mundo que se daacute atraveacutes da revelaccedilatildeo dos seus segredos

Em todas as cosmogonias antigas eacute notoacuterio o desejo de entender esses

fenocircmenos que se manifestam em torno de nossa existecircncia que estaacute associado natildeo

apenas ao nosso instinto de autopreservaccedilatildeo mas tambeacutem pela necessidade da

busca de uma vida plena e feliz apoacutes essa constataccedilatildeo inicial em seguida surgem

as seguintes questotildees quem somos De onde viemos Para onde vamos O que eacute

a natureza A partir dessa uacuteltima buscou-se as respostas para as primeiras O largo

campo semacircntico que se estende em torno do termo Phyacutesis no caso grego nos daacute

a dimensatildeo do tamanho do esforccedilo exposto por esses primeiros pensadores na

antiguidade para tentar responder tais questotildees Ao nos debruccedilarmos sobre a

extensa literatura antiga podemos avaliar na antiguidade as mais variadas

manifestaccedilotildees reflexivas para compreendecirc-la Mas o nosso limite racional nos

impede que tenhamos uma posiccedilatildeo definitiva em torno desse grande problema

antigo Todavia essa delimitaccedilatildeo natildeo pode ser vista como algo negativo ou ateacute

mesmo impeditivo pelo contraacuterio ela nos impotildee a tarefa de ampliar e de manter a

discussatildeo viva Logo pretendemos acompanhar na medida do possiacutevel a evoluccedilatildeo

de certas noccedilotildees expostas por esses pensadores atraveacutes dessa fragmentaacuteria literatura

que nos fornece muitas pistas para a nossa presente investigaccedilatildeo O primeiro ponto

que podemos encontrar um certo consenso entre os filoacutesofos antigos eacute que a

indagaccedilatildeo humana comeccedila a estabelecer os seus primeiros passos a partir da relaccedilatildeo

dialoacutegica entre as forccedilas55 que escapam do seu domiacutenio e que se estende

incialmente entre dois niacuteveis do mundo e do homem56 No decorrer histoacuterico essas

reflexotildees desempenharatildeo grandes mudanccedilas dentro e fora57 da cultura grega

55 Nesse presente texto vamos utilizar dois termos que no contexto histoacuterico grego satildeo correlatos a saber (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) Posteriormente vamos apresentar alguns pontos sobre a utilizaccedilotildees desses termos desde do periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico nos estudos sobre a Phyacutesis e o homem 56 Nos referimos ao questionamento dos primeiros poetas e filoacutesofos sobre a phyacutesis (natureza) ateacute a chegada do movimento sofiacutestico e de Soacutecrates que tinha como escopo dos seus estudos o homem no periacuteodo claacutessico De qualquer modo eacute importante ressaltarmos que haacute uma grande divergecircncia entres os helenistas em torno dessa esquematizaccedilatildeo Para o pesquisador canadense Gerard Naddaf por exemplo as obras dos primeiros pensadores natildeo faziam essa distinccedilatildeo entre essas duas esferas Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro NADDAF Gerard The greek concept of nature Albany State University of New York Press 2005 57 Podemos citar dois exemplos para esse caso a influecircncia da cultura grega sobre os romanos e a retomada da tradiccedilatildeo claacutessica durante o periacuteodo do Renascimento por volta do seacuteculo XIV

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Essa transformaccedilatildeo ocorre atraveacutes dessa capacidade que eacute inerente a todos os

animais mas que no homem ganha destaque por ser considerada como a proacutepria

imagem ou emanaccedilatildeo da Natureza58 Esse atributo permite-nos exercer esse poder

de realizaccedilatildeo necessaacuterio para manutenccedilatildeo de nossa existecircncia Logo torna-se

essencial o estudo de todos os fenocircmenos que nos fornecem essa daacutediva divina59

Compreendecirc-la eacute o papel principal desempenhado pelos primeiros pensadores Essa

forccedila se manifesta de modo tatildeo sublime que se confunde com a forma de expressatildeo

do nosso proacuteprio pensamento60 Em Heraacuteclito por exemplo essa questatildeo define o

sentido de Natureza e linguagem apresentado pelo filoacutesofo efeacutesio A Phyacutesis estaacute

para o Loacutegos 61 assim como a noite estaacute para o dia62

ldquoDesse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees63 tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindordquo64

Para os gregos entre o periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico esse termo eacute carregado

de diversos sentidos Mas de uma forma geral podemos resumi-los entre quatro

pontos fundamentais Entre eles estatildeo os seguintes atributos que podemos encontrar

em vaacuterias obras e fragmentos dentro desse contexto histoacuterico substacircncia

58 Φύσις posteriormente vamos nos debruccedilar sobre a intima relaccedilatildeo entre a phyacutesis e a sua expressatildeo (Μύθος Έπος και λόγοςMythos epos e logos) 59 Ou seja que natildeo proveacutem do mundo humano 60 Inicialmente atraveacutes da poesia (ποίησις) e depois do loacutegos (λόγος) que eacute um desdobramento histoacuterico desse importante termo Eacute importante ressaltarmos que esse uacuteltimo abarca natildeo apenas o ato de expressatildeo e a revelaccedilatildeo da Natureza mas tambeacutem o ato de julgar e de agir Se faz necessaacuterio destacar essa diferenccedila sobretudo por causa da confusatildeo semacircntica que ocorre entre os tradutores que ignoram a plasticidade do termo quando retirado do seu contexto especiacutefico 61Φύσις και Λόγος Posteriormente vamos apresentar uma anaacutelise sobre a relaccedilatildeo iacutentima que haacute entre esses dois termos no pensamento antigo 62 Heraacuteclito Fragmento 50 (DK) ldquoοὐκ ἐmicroοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁmicroολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναίrdquo (Ouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo um) Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 63 Importante destacar a relaccedilatildeo entre ldquopalavrasrdquo e ldquoaccedilotildeesrdquo (ἐπέων καὶ ἔργων) exposta pelo pensador efeacutesio Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 64Heraacuteclito Fragmento I ldquoτοῦ δὲ λόγου τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον γινοmicroένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι πειρώmicroενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦmicroαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονταιrdquo Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012

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primordial origem processo e resultado (NADDAF 1992) Eacute importante ressaltar

que todas essas caracteriacutesticas estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de proximidade

semacircntica A primeira apariccedilatildeo na literatura grega desse termo surge de modo

emblemaacutetico no livro X da Odisseacuteia de Homero65 Para fazermos uma anaacutelise

pormenorizada dessa passagem eacute necessaacuterio nos atermos a construccedilatildeo alegoacuterica

promovida pelo poeta em torno das personagens de Odisseu Circe e o deus Hermes

Aleacutem da apariccedilatildeo originaacuteria do uso da palavra phyacutesis podemos extrair dessa

passagem uma das primeiras elaboraccedilotildees da relaccedilatildeo entre a Phyacutesis (Natureza) e

Loacutegos (Linguagem) 66 na histoacuteria do pensamento antigo No proacuteximo paraacutegrafo

vamos apresentar todo o contexto do qual a passagem foi retirada e comentaacute-la em

seguida

Apoacutes suportar diversas peripeacutecias67 com o intuito de retornar agrave sua cidade natal

Iacutetaca o grande heroacutei ardiloso desembarca em Eeia ilha da deusa Circe68 ao lado

dos seus marinheiros Esses homens que estavam completamente famintos

adentram o territoacuterio desconhecido da senhora das drogas e dos venenos69 mas satildeo

surpreendidos por ela em seu esplendoroso palaacutecio

[HOMERO Odisseia] ldquoComo o ordenaste oacute glorioso Odisseu fomos pela floresta onde num vale encontramos um belo palaacutecio construiacutedo todo com pedras polidas num siacutetio ao redor abrigado Dentro se achava no tear meneando-se algueacutem que cantava ou fosse deusa ou mulher eles logo em voz alta a chamaram Sem se fazer esperar veio a deusa e o portatildeo lhes franqueia belo e brilhante os estultos entatildeo para dentro a seguiram com exceccedilatildeo soacute de mim por ter tido suspeita de dolo Todos os outros sumiram sem que um soacute deles voltasse Por muito tempo deixei-me ficar de atalaia ali mesmordquo Isso disse ele passei logo a espada de cravos de prata grande

65 Em Homero Odisseacuteia (Livro X vv 230-340) 66 Vide nota 48 67 Περιπέτεια (peripeteacuteia) Esse eacute um importante conceito que foi estudado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 68 Na mitologia Circe era uma poderosa feiticeira que dominava o poder das drogas e venenos Ela era filha do deus sol Heacutelios e da ninfa Perseis que por sua vez era filha de Oceano e de Teacutetis Em outros registros ela aparece como filha da deusa da necromancia e feiticcedilaria conhecida como Heacutecate Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana Trad V Jabouille Lisboa DIFEL 2ordf ed 1993 69 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Esse eacute outro importante termo que demonstra o poder de plasticidade e riqueza poeacutetica que os gregos cultivavam em relaccedilatildeo agrave cunhagem das palavras A determinaccedilatildeo de sentido desse termo necessita -como em outros termos como logos e phyacutesis que apresentamos anteriormente- fundamentalmente do contexto semacircntico pelo qual ele foi aplicado A ambiguidade que oscila entre veneno ou remeacutedio vai depender da posologia ou seja da medida (microέτρονmeacutetron) que seraacute fornecida atraveacutes da razatildeo Posteriormente veremos como esse tipo de artifiacutecio foi essencial para o desenvolvimento e primazia da arte do bem falar na antiguidade Da poesia ateacute o surgimento da retoacuterica esse tipo de recurso foi amplamente utilizado para ornamentar e impressionar os ouvintes atraveacutes da criaccedilatildeo de diversas figuras de linguagem que tinham por intuito comover ou convencer a sua audiecircncia

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e de bronze por volta dos ombros e de arco muni-me Tendo isso feito ordenei-lhe que mostrasse o caminho seguido Mas os joelhos com ambas as matildeos abraccedilou-me implorante e entre gemidos sentidos me diz as palavras aladas ldquoContra vontade disciacutepulo de Zeus arrastar-me natildeo queiras Tenho certeza que nunca hei de ver-te outra vez e que os soacutecios natildeo mais contigo hatildeo de vir Eacute mais certo fugirmos com estes sem mais demora talvez escapar consigamos da Morterdquo Isso disse ele em resposta lhe digo as seguintes palavras ldquoFica-te Euriacuteloco neste lugar em que te achas sozinho junto da ceacutelere nau de cor negra comendo e bebendo mas quanto a mim seguirei porque forccedila incontida me obriga Tendo isso dito da nave afastei-me e da praia marinha Mas quando estava no vale sagrado e do grande palaacutecio me aproximava de Circe que todas as plantas conhece Hermes me veio encontrar o imortal que o bastatildeo de ouro leva mdash antes de agrave casa chegar mdash na figura de um moccedilo radiante a quem o buccedilo comeccedila a apontar na sazatildeo mais graciosa Da matildeo me toma e falando me disse as seguintes palavras ldquoPor onde vais infeliz atraveacutes desses montes sozinho do siacutetio ignaro Na casa de Circe se encontram teus soacutecios sob a figura de porcos trancados em boas pocilgas Vais ateacute laacute com tenccedilatildeo de trazecirc-los Natildeo creio entretanto que de laacute voltes mas haacutes de ficar onde os outros se encontram Quero poreacutem proteger-te e livrar-te do mal iminente Toma esta droga de muita eficaacutecia e o palaacutecio de Circe entra porque haacute de livrar-te a cabeccedila do dia funesto Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe haacute de bebida oferecer-te e veneno te pocircr na comida Mas impossiacutevel ser-lhe-aacute enfeiticcedilar-te que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo Atende ao que segue logo que Circe com sua varinha tocar-te no corpo saca depressa da espada cortante que ao lado te pende e contra a deusa arremete mostrando intenccedilatildeo de mataacute-la Ela com medo haacute de entatildeo implorar-te que ao leito a acompanhes De forma alguma te negues subir para o leito da deusa para que os soacutecios te queiram livrar e tratar-te benigna O juramento dos deuses poreacutem exigir deves dela de que nenhuma outra insiacutedia de fato planeja em teu dano natildeo aconteccedila fazer-te vileza ao te ver desarmadordquo Tendo isso dito arrancou o correio de luacutecido aspecto da terra a planta e me deu explicando-me suas virtudes Tinha a raiz de cor negra mas branca era a flor como leite Moacuteli chamavam-lhe os deuses difiacutecil aos homens seria de vida curta arrancaacute-la mas tudo os eternos conseguem Hermes depois de isso feito partiu para o Olimpo elevado pela ilha de aacutervores cheia eu me fui para a casa de Circe O coraccedilatildeo nesse instante batia-me forte no peito Diante da porta da deusa de tranccedilas bem-feitas detive-me de onde depois em voz alta chamei tendo a deusa me ouvidordquo70

70 Em Homero Odisseacuteia (livro X vv 250 ndash 310) ldquoἤιοmicroεν ὡς ἐκέλευες ἀνὰ δρυmicroά φαίδιmicro᾽ Ὀδυσσεῦ εὕροmicroεν ἐν βήσσῃσι τετυγmicroένα δώmicroατα καλὰ ξεστοῖσιν λάεσσι περισκέπτῳ ἐνὶ χώρῳ ἔνθα δέ τις microέγαν ἱστὸν ἐποιχοmicroένη λίγ᾽ ἄειδεν (255) ἢ θεὸς ἠὲ γυνή τοὶ δὲ φθέγγοντο καλεῦντεςἡ δ᾽ αἶψ᾽ ἐξελθοῦσα θύρας ὤιξε φαεινὰς καὶ κάλει οἱ δ᾽ ἅmicroα πάντες ἀιδρείῃσιν ἕποντοαὐτὰρ ἐγὼν ὑπέmicroεινα ὀισάmicroενος δόλον εἶναι οἱ δ᾽ ἅmicro᾽ ἀιστώθησαν ἀολλέες οὐδέ τις αὐτῶν 260 ἐξεφάνη δηρὸν δὲ καθήmicroενος ἐσκοπίαζον ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγὼ περὶ microὲν ξίφος ἀργυρόηλον ὤmicroοιιν βαλόmicroην microέγα χάλκεον ἀmicroφὶ δὲ τόξατὸν δ᾽ ἂψ ἠνώγεα αὐτὴν ὁδὸν ἡγήσασθαι αὐτὰρ ὅ γ᾽ ἀmicroφοτέρῃσι λαβὼν ἐλλίσσετο γούνων (265) καί micro᾽ ὀλοφυρόmicroενος ἔπεα πτερόεντα προσηύδα lsquomicroή micro᾽ ἄγε κεῖσ᾽ ἀέκοντα διοτρεφές ἀλλὰ λίπ᾽ αὐτοῦ οἶδα γάρ ὡς οὔτ᾽ αὐτὸς ἐλεύσεαι οὔτε τιν᾽ ἄλλον ἄξεις σῶν ἑτάρων ἀλλὰ ξὺν τοίσδεσι θᾶσσον φεύγωmicroεν ἔτι γάρ κεν ἀλύξαιmicroεν κακὸν ἦmicroαρrsquo(270) ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγώ microιν ἀmicroειβόmicroενος προσέειπον Εὐρύλοχ᾽ ἦ τοι microὲν σὺ microέν᾽ αὐτοῦ τῷδ᾽ ἐνὶ χώρῳ ἔσθων καὶ πίνων κοίλῃ παρὰ νηὶ microελαίνῃαὐτὰρ ἐγὼν εἶmicroι κρατερὴ δέ microοι ἔπλετ᾽ ἀνάγκηrsquoὣς εἰπὼν παρὰ νηὸς ἀνήιον ἠδὲ θαλάσσης (275) ἀλλ᾽ ὅτε δὴ ἄρ᾽ ἔmicroελλον ἰὼν ἱερὰς ἀνὰ βήσσας Κίρκης ἵξεσθαι πολυφαρmicroάκου ἐς microέγα δῶmicroα ἔνθα microοι Ἑρmicroείας χρυσόρραπις ἀντεβόλησεν ἐρχοmicroένῳ πρὸς δῶmicroα νεηνίῃ ἀνδρὶ ἐοικώς πρῶτον ὑπηνήτῃ τοῦ περ χαριεστάτη ἥβη (280) ἔν τ᾽ ἄρα microοι φῦ χειρί ἔπος τ᾽ ἔφατ᾽ ἔκ τ᾽ ὀνόmicroαζε lsquoπῇ δὴ αὖτ᾽ ὦ δύστηνε δι᾽ ἄκριας ἔρχεαι οἶος χώρου ἄιδρις ἐών ἕταροι δέ τοι οἵδ᾽ ἐνὶ Κίρκης ἔρχαται ὥς τε σύες πυκινοὺς κευθmicroῶνας ἔχοντεςἦ τοὺς λυσόmicroενος δεῦρ᾽ ἔρχεαι οὐδέ σέ φηmicroι (285) αὐτὸν νοστήσειν microενέεις δὲ σύ γ᾽ ἔνθα περ ἄλλοι ἀλλ᾽ ἄγε δή σε κακῶν ἐκλύσοmicroαι ἠδὲ σαώσω τῆ τόδε φάρmicroακον ἐσθλὸν ἔχων ἐς δώmicroατα Κίρκης ἔρχευ ὅ κέν τοι κρατὸς ἀλάλκῃσιν κακὸν ἦmicroαρ πάντα

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Apoacutes o desfecho traacutegico que culminou na transformaccedilatildeo dos marinheiros em

porcos Odisseu resolve salvaacute-los com a ajuda divina de Hermes A primeira

apariccedilatildeo do uso do termo phyacutesis aparece exatamente quando o heroacutei de Iacutetaca eacute

interpelado como de praxe por uma divindade com o intuito de auxiliaacute-lo na

missatildeo de resgatar e desfazer o feiticcedilo que foi lanccedilado contra a sua tripulaccedilatildeo Na

passagem do verso 30371 podemos encontrar in loco um dos primeiros momentos

que a palavra eacute aplicada (NADDAF 1992) na literatura homeacuterica Inicialmente o

seu sentido estaacute associado diretamente aos seguintes termos morpheacute eidos e phye 72 Etimologicamente o termo phyacutesis parece ser oriundo do verbo phye (crescer)

que era empregado no geral para expressar o desenvolvimento da forma humana73

e natildeo para designar o aspecto natural de qualquer outro ente por exemplo Para esses

δέ τοι ἐρέω ὀλοφώια δήνεα Κίρκης (290) τεύξει τοι κυκεῶ βαλέει δ᾽ ἐν φάρmicroακα σίτῳ ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς θέλξαι σε δυνήσεται οὐ γὰρ ἐάσει φάρmicroακον ἐσθλόν ὅ τοι δώσω ἐρέω δὲ ἕκαστα ὁππότε κεν Κίρκη σ᾽ ἐλάσῃ περιmicroήκεϊ ῥάβδῳ δὴ τότε σὺ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάmicroενος παρὰ microηροῦ (295) Κίρκῃ ἐπαῖξαι ὥς τε κτάmicroεναι microενεαίνωνἡ δέ σ᾽ ὑποδείσασα κελήσεται εὐνηθῆναι ἔνθα σὺ microηκέτ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπανήνασθαι θεοῦ εὐνήν ὄφρα κέ τοι λύσῃ θ᾽ ἑτάρους αὐτόν τε κοmicroίσσῃ ἀλλὰ κέλεσθαί microιν microακάρων microέγαν ὅρκον ὀmicroόσσαι (300) microή τί τοι αὐτῷ πῆmicroα κακὸν βουλευσέmicroεν ἄλλο microή σ᾽ ἀπογυmicroνωθέντα κακὸν καὶ ἀνήνορα θήῃ ὣς ἄρα φωνήσας πόρε φάρmicroακον ἀργεϊφόντης ἐκ γαίης ἐρύσας καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξε ῥίζῃ microὲν microέλαν ἔσκε γάλακτι δὲ εἴκελον ἄνθος305 microῶλυ δέ microιν καλέουσι θεοί χαλεπὸν δέ τ᾽ ὀρύσσειν ἀνδράσι γε θνητοῖσι θεοὶ δέ τε πάντα δύνανται Ἑρmicroείας microὲν ἔπειτ᾽ ἀπέβη πρὸς microακρὸν Ὄλυmicroπον νῆσον ἀν᾽ ὑλήεσσαν ἐγὼ δ᾽ ἐς δώmicroατα Κίρκης ἤια πολλὰ δέ microοι κραδίη πόρφυρε κιόντιrdquo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 71 καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξεkai moi physin autou eacutedeixe (ldquoE a mim trouxe a luz a sua formardquo) Na traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes acima para natildeo perder a fluecircncia e coerecircncia poeacutetica do texto ele optou traduzir forma por virtude de qualquer modo a sua traduccedilatildeo natildeo estaacute tatildeo distante do original pois como veremos a seguir o termo phyacutesis expressa a noccedilatildeo de qualidade ou caracteriacutestica 72 Μορφή εἶδος και φυή Os trecircs termos carregam o sentido de forma ou figura que apresentam as suas caracteriacutesticas exteriores No caso do verbo φυή (phye) encontramos tambeacutem o sentido de crescimento e estatura Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo Dor φυά ἡ ( φύω ) growth stature esp fine growth noble stature in Hom always (as in Hes) of the human form and only in acc θηήσαντο φυὴν καὶ εἶδος ἀγητόν Il 22370 φυὴν ἐδάην καὶ microήδεα 3208 most freq in adv sense Νέστορι δίῳ εἶδός τε microέγεθός τε φυήν τ ἄγχιστα ἐῴκει in shape and in stature and in size (or growth) 258 cf Od 6152 οὔ ἑθέν ἐστι χερείων οὐ δέmicroας οὐδὲ φυήν οὔτ ἂρ φρένας Il 1115 cf Od 5212 7210 φυήν γε microὲν οὐ κακός ἐστι 8134 χρυσέῳ [γένει] οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόηmicroα Hes Op 129 cf Sc 88 B 5168 later in gen οὔτε φυῆς ἐπιδευέες οὔτε νόοιο Theoc 22160 rare in Trag τὴν τάλαιναν εὔmicroορφον φ A Niob in PSI 1112088 φυὰν Γοργόνος ἴσχειν E El 461 (lyr) 2 after Hom of animals plants or objects ἐmicroβάλλων ἐριπλεύρῳ φυᾷ κέντρον Pi P 4235 κάνθαρος Αἰτναῖος φυήν S Ichn 300 also τερπόmicroεναι ῥοδέῃ φ of roses Mosch 236 of beans Luc VitAuct 6 of things ἀνέβη ἡ φ τοῖς τείχεσιν their original form was restored LXX Ne 47(1) ἐὰν κατὰ φυὰν διαφθαρῇ τις τῶν λίθων IG 7307340 (Lebad ii B C) II poet for φύσις nature genius σοφὸς ὁ πολλὰ εἰδὼς φυᾷ Pi O 286 microάρνασθαι φυᾷ Id N 125 cf I 7(6)22 φυᾷ τὸ γενναῖον ἐπιπρέπει Id P 844 τὸ δὲ φυᾷ κράτιστον ἅπαν Id O 9100 δεινὸς φυήν Cratin 221 III the flower or prime of age εὐάνθεmicroος φυά Pi O 167 IV substance ἀναίmicroων ἐστὶ φυὴ microελέων Opp H 1639 νεφροὶ τὴν φ ἀδενώδεες Aret SD 23 V microερόπων φυή the race of men APl 41837 VI produce of a year harvest φ τοῦ ἐνεστῶτος ἔτους BGU 7084 (ii A D) cf Pland 2612 (i A D) etcmdashPoet and later prose 73 Ibidem

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casos o termo eidos e morpheacute eram mais utilizados Aleacutem disso tambeacutem

encontramos outra palavra que foi importante posteriormente para fenomenologia

no seacuteculo XIX74 que eacute o verbo phaino75(mostrarrevelar) que estaacute no radical de

phainesthai 76 A partir dessas evidecircncias expostas podemos afirmar que o sentido

primaacuterio de phyacutesis estava totalmente atrelado aos seguintes termos crescimento

aparecimento desenvolvimento forma ou estrutura de alguma coisa 77 No

exemplo exposto pelo poeta a sentenccedila deixa claro que a forma78 da planta foi lhe

revelada79 apenas quando o deus Hermes interveacutem para lhe transmitir o

conhecimento necessaacuterio para que o nosso astuto heroacutei pudesse desfazer o feiticcedilo

lanccedilado por Circe e com isso realizar o objetivo de libertar seus amigos80

Um dos pontos que gostariacuteamos de destacar aqui eacute a correlaccedilatildeo que haacute entre

o ato de transmissatildeo e conhecimento dentro desse contexto que toma a proacutepria

phyacutesis como forma e paradigma81 desse viacutenculo fundamental que determina a

existecircncia de todas as coisas Mesmo de modo alegoacuterico e sub-reptiacutecio o poeta

apresenta os pontos substanciais para a discussatildeo nesses versos que seratildeo

norteadores para todos os pensadores que surgiratildeo posteriormente Essa trama que

ocorre no capiacutetulo X expotildee de modo exemplar a nossa condiccedilatildeo82 miseraacutevel de total

ignoracircncia que assinala a naturezaforma(phyacutesis) humana e seu distanciamento do

mundo divino mas tambeacutem abre o horizonte para a formulaccedilatildeo de uma educaccedilatildeo83

que possa orientar e resguardar a comunidade atraveacutes desse contato cauteloso com

74 Corrente filosoacutefica que foi desenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938) - filoacutesofo matemaacutetico e loacutegico austriacuteaco 75 Φαίνω Aparecer 76 Φαινεσθαιphainesthai 77 Essa evidecircncia nos leva a especular a possibilidade da famosa hipoacutetese conhecida na antiguidade como a teoria das formas ter surgido a partir desse conceito de natureza que foi proposto no periacuteodo homeacuterico 78 Φύσιςphyacutesis 79 Esse eacute o sentido do verbo ἔδειξεeacutedeixe que vem de δείκνυmicroιdeiknumi (trazer agrave luz mostrar fazer conhecido) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott Dentro da construccedilatildeo poeacutetica homeacuterica podemos reconhecer a relaccedilatildeo entre esse termo e o da phyacutesis Para nossa hipoacutetese esse ponto eacute de extrema importacircncia como veremos posteriormente 80 Posteriormente faremos uma anaacutelise sobre esse ponto para ressaltar os desdobramentos dessa histoacuteria no pensamento antigo 81 Παράδειγmicroα padratildeo modelo ou base Eacute importante frisar que no pensamento platocircnico esses dois termos satildeo correlatos Aliaacutes no livro X da Leis o filoacutesofo continua ainda utilizando esse mesmo esquema exegeacutetico que encontramos em Homero para apresentar as suas reflexotildees A partir desse fato podemos afirmar que esse eacute mais um indiacutecio que fornece elementos para a validaccedilatildeo de nossa hipoacutetese 82 Esse eacute outro termo correlato para a Φύσιςphyacutesis 83 ΠαιδείαPaideacuteia Posteriormente vamos apresentar algumas caracteriacutesticas sobre a educaccedilatildeo grega

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os deuses pois a uacutenica forma de um mortal como no caso de Odisseu obter sucesso

contra as forccedilas que natildeo pertencem ao mundo humano - que no contexto homeacuterico

eacute sempre retratado com adjetivos que ressaltam a fragilidade e a brevidade de nossa

condiccedilatildeo ndash eacute estabelecer um diaacutelogo84 com alguma divindade 85 Nesse sentido a

poesia homeacuterica afirma que essa relaccedilatildeo com o mundo divino eacute o uacutenico caminho

que pode fornecer ao homem o conhecimento necessaacuterio para manter a sua

sobrevivecircncia em um mundo que eacute controlado por essas forccedilas antagocircnicas Dentro

dessa construccedilatildeo alegoacuterica86 eacute necessaacuterio recorrer ao extenso banco mnemocircnico de

histoacuterias que foram transmitidas e mantidas desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo oral que

possibilitou o surgimento e ecircxito da poesia homeacuterica (VIDAL-NAQUET 2002) no

mundo grego Para adesatildeo coletiva dessas noccedilotildees como veremos no proacuteximo

capiacutetulo eacute necessaacuterio que os gregos compartilhem esses valores que eram

repassados pelos antigos aedos87 de modo unificado atraveacutes de sua liacutengua Um

exemplo desse fato pode ser adquirido na observaccedilatildeo do papel de destaque que

poeta fornece ao deus Hermes dentro do drama sofrido por Odisseu Eacute provaacutevel

como ressalta o socioacutelogo e filoacutelogo francecircs Louis Gernet (GERNET 1968) que

esse coacutedigo de conduta que eram repassados em versos na antiguidade por

intermeacutedio dos mitos fossem utilizados para a construccedilatildeo de arqueacutetipos que eram

uacuteteis natildeo apenas para afirmaccedilatildeo dos valores defendidos pela aristocracia mas para

coesatildeo estrutural da trama narrada pelo poeta pois a total eficaacutecia do primeiro

objetivo vive em funccedilatildeo do desempenho harmocircnico obtido pelo aedo perante o

puacuteblico O reconhecimento dessas figuras facilita a adesatildeo por parte da audiecircncia e

84 ∆ιάλογοςdiaacute-logos Conversaccedilatildeo interaccedilatildeo e relaccedilatildeo e entre duas ou mais pessoas Posteriormente vamos apresentar a importacircncia desse ato natildeo apenas para o desenvolvimento cultural grego mas tambeacutem sob o ponto de vista ontoloacutegico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico Nesse sentido estamos partindo da hipoacutetese de que os fundamentos principais para cada um desses pontos jaacute estatildeo apresentados de modo alegoacuterico nos poemas homeacutericos 85 ἈθάνατοιAthanatoi Os imortais Na mitologia esse fato estaacute presente na maioria dos mitos que chegaram ateacute noacutes Outro exemplo que podemos trazer podem ser obtidas na obra da Iliacuteada Na guerra de Troacuteia ambas os lados aqueus e troinanos receberam apoio divino 86 ὑπόνοιαhyponoacuteia ἡ (ὑπονοέω) suspeita conjectura suposiccedilatildeo Ar Pax 993 (pl anap) τοῦ microὴ συνειληφέναι Sor 254 cf Gal 6663 ὑπόνοιαι τῶν microελλόντων noccedilotildees formadas de eventos futuros Th 587 ἡ ὑ τῶν ἔργων Id 241 cf E Ph 1133 em sentido negativo ὑπόνοιαι πλασταί D 4839 cf Men Mon 732 2 suggestion Phld Mus p71 K imputaccedilatildeo Id D 113 II o verdadeiro significado que estaacute no fundo de uma coisa um sentido mais profundo τὰς ὑ οὐκ ἐπίστανται X Smp 36 esp significado secreto (como eacute transmitido por mitos e alegorias) ὁ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε ὑ καὶ ὃ microή Pl R 378d cf Plu 219e opp αἰσχρολογία Arist EN 1128a24 καθ ὑπόνοιαν por insinuaccedilatildeo secretamente Plb 2845 DH Rh 91 δι ὑπονοιῶν Alciphr 24 87 ἀοιδός aoidos cantor Esse termo eacute oriundo do verbo (ᾄδω aidocirc) cantar

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reforccedila de modo sutil a funccedilatildeo coercitiva que a poesia realiza junto com a religiatildeo

para a manutenccedilatildeo e organizaccedilatildeo juriacutedica no periacuteodo arcaico (GERNET 1968)

Para termos uma noccedilatildeo mais precisa desse fato basta observar o uso intenso

dos epiacutetetos e foacutermulas nas duas obras homeacutericas Segundo Milman Parry que foi

um importante helenista americano que se destacou pelo estudo da tradiccedilatildeo oral

homeacuterica o uso demasiado dos epiacutetetos e foacutermulas tinha uma funccedilatildeo bem

determinada para os antigos aedos permite uma espeacutecie de pausa no fluxo contiacutenuo

da narrativa que lhe fornecia um breve descanso durante as longas apresentaccedilotildees

desses poemas e a possibilidade de estender ou encurtar a sua recitaccedilatildeo (PARRY

1971) conforme a sua vontade Eacute uma espeacutecie de dispositivo extremamente

sofisticado para a cultura oral que oferece ao cantor um domiacutenio maior sobre o

conteuacutedo para o total ecircxito de sua performance em puacuteblico Essa caracteriacutestica

fornecia ao aedo uma possibilidade de assinar a sua singularidade em relaccedilatildeo aos

outros que compartilhavam com ele o mesmo ofiacutecio E isso era algo primordial

dentro de uma cultura tatildeo competitiva como a grega A perfeiccedilatildeo era algo almejado

como maacuteximo valor entre os helenos

Mas haacute ainda uma caracteriacutestica que natildeo foi ressaltada pelo ilustre helenista

E ela reside na funccedilatildeo mnemocircnica e de fixaccedilatildeo do conteuacutedo expresso nas foacutermulas

e epiacutetetos Esse recurso atua como uma espeacutecie de ritornelo88 na muacutesica popular

que desempenha o papel de reforccedilar a mensagem exposta pela canccedilatildeo No caso da

poesia homeacuterica quando nos deparamos com a repeticcedilatildeo de certas foacutermulas e

epiacutetetos nos salta aos olhos - mas sobretudo aos ouvidos89 - o poder de cravar na

memoacuteria coletiva natildeo apenas as qualidades dos heroacuteis mas dos deuses oliacutempicos

Essa estrateacutegia na muacutesica tambeacutem ocorre com o leitmotiv90 que associa a

88 Na muacutesica em geral atua como refratildeo estribilho coro ou ritornelo Esse recurso tem o poder de sintetizar a mensagem geral de uma canccedilatildeo reafirmando o seu principal sentido norteador Ou seja o leitmotiv da canccedilatildeo Essa caracteriacutestica nos fornece alguns elementos para entender o recursoutilizado por esses antigos poetas gregos 89 Esse detalhe natildeo pode ser esquecido por noacutes aacutevidos leitores modernos No mundo antigo a transmissatildeo de conhecimento era dada atraveacutes da oralidade Logo para defender essa hipoacutetese precisamos nos colocar na posiccedilatildeo de ouvinte Nesse sentido a canccedilatildeo popular sobretudo o estilo dos cordelistas em vaacuterias culturas ainda guardam algumas caracteriacutesticas dessa antiga tradiccedilatildeo oral 90 Esse termo vem da liacutengua alematilde e significa ldquomotivo condutorrdquo

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personagem ou algum tema especiacutefico a uma determinada imagem sonora

composta para o intuito de associaccedilatildeo automaacutetica91

Quando analisamos cada uma das divindades que formam o mundo oliacutempico

encontramos natildeo apenas os sentimentos humanos antropomorfizados em figura

divinas mas de qualidades que atuam de modo simboacutelico na construccedilatildeo poeacutetica

sobre a ordem humana92 O exemplo que gostariacuteamos de destacar no proacuteximo

paraacutegrafo para enfatizar e fornecer elementos comprobatoacuterios para a nossa

hipoacutetese eacute a atuaccedilatildeo de Hermes na Odisseia Teremos a oportunidade de analisar

nesse incidente que ocorre no capiacutetulo X a riqueza poeacutetica agrave serviccedilo da educaccedilatildeo

aristocraacutetica helecircnica que foi importante para os estudos dos primeiros filoacutesofos

gregos que surgiram posteriormente

Na mitologia essa divindade carregava inuacutemeros atributos e entre eles estatildeo o

domiacutenio da magia fertilidade dos rebanhos e da adivinhaccedilatildeo Contudo o seu

epiacuteteto mais famoso na antiguidade eacute o de mensageiro dos deuses Ele eacute o

responsaacutevel de estabelecer o diaacutelogo entre o mundo divino e humano Ou seja o

papel da comunicaccedilatildeo e do conhecimento eacute fornecido aos homens a partir da sua

atuaccedilatildeo que ocorre exatamente quando ele estabelece contato com Odisseu Como

vimos anteriormente no fragmento I de Heraacuteclito o Loacutegos93atua na dimensatildeo

humana e divina e estaacute totalmente em consonacircncia com a Phyacutesis Esse dado fornece

a primeira evidecircncia do desenvolvimento da linguagem94 que pode ser fornecido

pelo verbo phyacutee95 que forma o seu radical A frase emblemaacutetica do livro X na qual

Odisseu expressa que Hermes lhe repassou o segredo da planta soacute eacute confirmada a

partir da expressatildeo ldquoe a mim trouxe a luz a sua formardquo96 E eacute exatamente nesse

91 O ponto que gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo na relaccedilatildeo entre o ritornelo e o leitmotiv eacute a repeticcedilatildeo que guarda o mesmo efeito de fixaccedilatildeo e reforccedilo que satildeo fornecidos pelos epiacutetetos e foacutermulas homeacutericas Um estudo interessante seria investigar qual eacute a relaccedilatildeo desse antigo recurso mnemocircnico na influecircncia na composiccedilatildeo da muacutesica moderna 92 O teatro antigo tambeacutem parte desse mesmo pressuposto que foi utilizado pelos primeiros poetas no periacuteodo arcaico 93 Dentro desse contexto especiacutefico vamos atribuir o sentido de linguagem Eacute importante ressaltar como nos lembra o grande professor Danilo Marcondes que entre os gregos antigos esse era um dos problemas mais importantes Todavia haacute uma grande divergecircncia no uso desse termo entre os especialistas sobre o tema Logo esse presente trabalho visa destacar alguns desses pontos sobre o assunto a partir da literatura antiga Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 94 Vide a nota anterior Dito de outro modo sobre o surgimento da questatildeo entre o ser pensar e dizer entre os gregos 95 Φυή Phuacutee formaestatura 96 Traduccedilatildeo literal nossa

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ponto que gostariacuteamos de focar a nossa total atenccedilatildeo O jogo poeacutetico e semacircntico

natildeo eacute de modo algum fortuito pois Hermes eacute aquele deus que faz revelar - por fora

e por dentro - as caracteriacutesticas gerais da planta (exterior) e o efeito do

venenodroga97 que estaacute escondido no seu acircmago (interior) A luz que se associa ao

conhecimento equivale ao poder de trazer a forma a sua presenccedila que estaacute oculta

aos nossos precaacuterios sentidos Entre essas duas esferas instaura-se uma tecircnue linha

vertical que impotildee uma ordem98com as suas leis99 e com a sua oacuterbita especiacutefica que

seraacute composta a partir das seguintes linhas exegeacuteticas teogocircnica cosmogocircnica e

cosmoloacutegica100 no qual seraacute delineado todo o espaccedilo de atuaccedilatildeo humano tendo

como paracircmetro os imortais

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Phyacutesis e Loacutegos

Conforme foi exposto anteriormente o uso e a definiccedilatildeo de linguagem que

podemos encontrar amplamente exposta no periacuteodo claacutessico nas obras de Platatildeo101

e Aristoacuteteles102 por exemplo jaacute estatildeo apresentados dentro dessa imagem pintada

pelo poeta nesse sentido podemos afirmar como os grandes homeridas antigos103

que a poesia de Homero expotildee os elementos mais importantes para uma definiccedilatildeo

natildeo apenas da Natureza mas tambeacutem de sua relaccedilatildeo com o Loacutegos104 ou seja o

diaacutelogo entre a Natureza e Linguagem estaacute totalmente esboccedilado dentro desse

97 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Eacute nesse instante que percebemos a grandiosidade do pensamento grego que estaacute atrelado agrave justa medida (ὀρθὸς λόγοςorthos loacutegos) que soacute pode ser alcanccedilada atraveacutes do conhecimento (ἐπιστήmicroηepistheme) Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o livro II da ldquoEacutetica a Nicomacirccordquo de Aristoacuteteles (EthNic II 1103 ndash 35) No capiacutetulo III voltaremos a dissertar sobre o desdobramento dessa importante questatildeo no acircmbito poliacutetico grego 98 Κόσmicroος 99 Νόmicroοιnomoi 100 Θεογονία κοσmicroογονία και κόσmicroολογία 101 Vide o diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo No proacuteximo paraacutegrafo faremos uma anaacutelise pormenorizada de uma importante passagem desse diaacutelogo que corrobora com nossa hipoacutetese 102 Vide a Poeacutetica e Da Interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles 103 Satildeo os antigos especialistas na interpretaccedilatildeo das obras homeacutericas na antiguidade Platatildeo cita esses especialistas no diaacutelogo Craacutetilo (407 b) Para mais informaccedilotildees sobre assunto vide o seguinte livro PSEUDO-HERAacuteCLITO ldquoAs alegorias de Homerordquo 104 Eacute importante lembrarmos que esse termo soacute aparece duas vezes na obra homeacuterica (Iliacuteada canto 15393 e Odisseia canto 156) e parece que estaacute nesse contexto com o sentido de discurso Dentro do presente capiacutetulo estamos utilizando uma de suas acepccedilotildees que estaacute votado para o ato de expressatildeo Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto vide o nosso anexo

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contexto literaacuterio Mas eacute importante ressaltarmos aqui que o sentido primaacuterio que

encontramos no livro X para phyacutesis precisa levar essa relaccedilatildeo com o loacutegos de modo

bem cuidadoso pois apenas a partir de Heraacuteclito e Platatildeo eacute possiacutevel fazer uma

aproximaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que nos ajuda a fundamentar a nossa

hipoacutetese aqui exposta Atraveacutes dessa via-cruacutecis helecircnica podemos compreender

essa relaccedilatildeo que representa as duas faces da mesma moeda de ouro que foi cunhada

pelas matildeos dos antigos bardos ou seja seguindo a loacutegica vertical subtendida no

poema o loacutegos atua como desdobramento da phyacutesis do niacutevel interior ao exterior

do particular ao universal do imanente ao transcendente Os deuses que tudo criam

possuem a verdade (verum factum) das coisas porque satildeo seus criadores105 logo

somente eles tecircm o poder da linguagem divina106 que homem tem acesso apenas

quando lhe eacute revelado os meandros de algo e isso ocorre quando essa verdade for

realmente conhecidapercebidaconcebida em sua totalidade ou seja quando ela se

torna sensiacutevel para o mundo humano Eis os trecircs eixos temaacuteticos que juntos formam

a equaccedilatildeo do problema da linguagem conhecimento percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Curiosamente esses pontos aparecem na leitura que encontramos no diaacutelogo

Craacutetilo107 que na antiguidade era visto como um dos maiores seguidores de

Heraacuteclito108 Como veremos a seguir essa passagem corrobora de modo imparcial

com a hipoacutetese que defendemos ateacute agora a obra homeacuterica estaacute em total

consonacircncia com as reflexotildees dos primeiros pensadores preacute-socraacuteticos em torno

105 Essa importante hipoacutetese foi levantada pela primeira vez pelo filoacutesofo italiano Giambattista Vico em ldquoDe antiquissima Italorum sapientiardquo no qual o conhecimento de todas as coisas estaacute na matildeo de deus pois ele eacute o uacutenico criador da natureza de todas as coisas existentes como o homem eacute a sua imagem e semelhanccedila atraveacutes do loacutegos o homem poder estabelecer um diaacutelogo unicamente atraveacutes dessa via com essa instacircncia divina De certa forma essa noccedilatildeo aparece no pensamento de Descartes na terceira meditaccedilatildeo Rodolfo Mondolfo chama atenccedilatildeo para essa concepccedilatildeo ativista do conhecimento que podemos encontrar na obra de Vico ateacute Marx que parte da leitura dos antigos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum factum desde antes de Vico hasta Marxrdquo Na antiguidade essa noccedilatildeo aparece de modo mais estruturado na obra ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles (Aris EthNic Livro VI 31138-9b) quando ele estabelece o criteacuterio de verdade a partir de algo que foi realizado e efetivado Posteriormente veremos que essa noccedilatildeo natildeo exclui ou compete com o sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo apresentado pelos antigos poetas Pelo contraacuterio ela aparece como algo complementar a esse sentido primaacuterio 106 Λόγος No sentido tambeacutem do conhecimento das coisas divinas que eacute oriunda da mente ou inteligecircncia divina (θεοῦ νόησιν theou noecircsis) Essa expressatildeo aparece no diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo (407 b) quando Soacutecrates estabelece uma etimologia para o nome da deusa Atenas a partir da seguinte frase ldquoaquela que tem conhecimento das coisas divinasrdquo (ὡς τὰ θεῖα νοούσηςhoacutes taacute theia noouacuteses) 107 Vide a ldquoMetafiacutesicardquo de Aristoacuteteles (livro A 6 988 a26) e tambeacutem em Dioacutegenes Laeacutercio ldquoDa vida e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo (Livro III 4) 108 Em DK (65) Alguns aspectos da vida e obra de Craacutetilo podem ser obtidos na seguinte obra I Presocratici Prima traduzione integrale con testi originali fronte delle testimoniannze e dei frammenti nella raccolta di H Diels e W Kranz Milano 2006

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desse problema da linguagem Nesse famoso diaacutelogo de Platatildeo a personagem de

Soacutecrates apresenta uma etimologia interessante em torno desse deus que nos

fornece muitos elementos para a nossa presente investigaccedilatildeo Vejamos a seguir

[PLATAtildeO Craacutetilo] ldquoHermoacutegenes - eacute o que eu farei antes poreacutem desejo perguntar-te a respeito de Hermes por haver dito Craacutetilo que eu natildeo sou Hermoacutegenes Investiguemos portanto o verdadeiro significado do nome Hermes para ver se ele tinha razatildeo no que disse Soacutecrates - de todo o jeito Quer parece-me que o nome Hermes se relaciona com o discurso109 eacute inteacuterprete110 ou mensageiro111 tambeacutem trapaceiro feacutertil em discursos e comerciante labioso qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da palavra112 Ora como dissemos antes falar (eirein) eacute fazer uso do discurso aleacutem de haver uma expressatildeo muito empregada por Homero (emecircsato) que significa inventar Da reuniatildeo dessas duas expressotildees ndash falar e inventar ndash formou o legislador o nome do deus como se nos advertisse expressamente homens o deus que inventou o discurso deve ser chamado Eiremes Mas hoje segundo eu penso embelezamos-lhe o nome e lhe chamamos Hermes Iacuteris tambeacutem parece provir do mesmo vocaacutebulo eirein por ser ela mensageira Hermoacutegenes ndash entatildeo parece que Craacutetilo tem razatildeo de dizer que natildeo me chamo Hermoacutegenes pois sou jejuno em mateacuteria de discursos Soacutecrates ndash quanto a Pan camarada filho de Hermes eacute faacutecil compreender que eacute de natureza hiacutebrida Hermoacutegenes ndash como assim Soacutecrates ndash como sabes o discurso indica todas as coisas (pan) e circula e movimenta sem parar aleacutem de ser de natureza hiacutebrida verdadeira e falsa ao mesmo tempo113 Hermoacutegenes ndash desde logo Soacutecrates ndash logo o que nele haacute de verdadeiro eacute macio e divino e reside no alto com os deuses por outro lado o que haacute de falso mora em baixo com a multidatildeo dos homens e eacute aacutespero como o bode da trageacutedia pois em verdade o maior nuacutemero das faacutebulas e das mentiras se encontra justamente no domiacutenio da trageacutedia114rdquo

109 περὶ λόγονperi logon 110 ἑρmicroηνέαhermeneia 111 ἄγγελονaggelon 112 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 113 οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής oistha hoti o loacutegos to pan semainei kai kyklei kai poleia ei kai esti diplous alethes te kai pseudes Essa eacute sem duacutevida alguma uma das expressotildees mais importantes dessa passagem 114 Em Platatildeo Craacutetilo (407 e - 408 a-c) Ἑρmicroογένης - ἀλλὰ ποιήσω ταῦτα ἔτι γε ἓν ἐρόmicroενός σε περὶ Ἑρmicroοῦ ἐπειδή microε καὶ οὔ φησιν Κρατύλος Ἑρmicroογένη εἶναι πειρώmicroεθα οὖν τὸν lsquoἙρmicroῆνrsquo σκέψασθαι τί καὶ νοεῖ τὸ ὄνοmicroα ἵνα καὶ εἰδῶmicroεν εἰ τὶ ὅδε λέγει Σωκράτης - ἀλλὰ microὴν τοῦτό γε ἔοικε περὶ λόγον τι εἶναι ὁ lsquoἙρmicroῆςrsquo καὶ τὸ ἑρmicroηνέα εἶναι καὶ τὸ ἄγγελον καὶ τὸ [408α] κλοπικόν τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοις καὶ τὸ ἀγοραστικόν περὶ λόγου δύναmicroίν ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγmicroατεία ὅπερ οὖν καὶ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγοmicroεν τὸ lsquoεἴρεινrsquo λόγου χρεία ἐστί τὸ δέ οἷον καὶ Ὅmicroηρος πολλαχοῦ λέγει lsquoἐmicroήσατόrsquo φησιν τοῦτο δὲ microηχανήσασθαί ἐστιν ἐξ ἀmicroφοτέρων οὖν τούτων τὸν τὸ λέγειν τε καὶ τὸν λόγον microησάmicroενονmdashτὸ δὲ λέγειν δή ἐστιν εἴρεινmdashτοῦτον τὸν θεὸν ὡσπερεὶ ἐπιτάττει [408β] ἡmicroῖν ὁ νοmicroοθέτης lsquoὦ ἄνθρωποι ὃς τὸ εἴρειν ἐmicroήσατο δικαίως ἂν καλοῖτο ὑπὸ ὑmicroῶν εἰρέmicroηςrsquo νῦν δὲ ἡmicroεῖς ὡς οἰόmicroεθα καλλωπίζοντες τὸ ὄνοmicroα lsquoἙρmicroῆνrsquo καλοῦmicroεν καὶ ἥ γε Ἶρις ἀπὸ τοῦ εἴρειν ἔοικεν κεκληmicroένη ὅτι ἄγγελος ἦν Ἑρmicroογένης - νὴ τὸν ∆ία εὖ ἄρα microοι δοκεῖ Κρατύλος λέγειν τὸ ἐmicroὲ microὴ εἶναι Ἑρmicroογένη οὔκουν εὐmicroήχανός γέ εἰmicroι λόγου Σωκράτης - καὶ τό γε τὸν Πᾶνα τοῦ Ἑρmicroοῦ εἶναι ὑὸν διφυῆ ἔχει τὸ εἰκός ὦ ἑταῖρε Ἑρmicroογένης - πῶς δή Σωκράτης - οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής Ἑρmicroογένης - πάνυ γε Σωκράτης - οὐκοῦν τὸ microὲν ἀληθὲς αὐτοῦ λεῖον καὶ θεῖον καὶ ἄνω οἰκοῦν ἐν τοῖς θεοῖς τὸ δὲ ψεῦδος κάτω ἐν τοῖς πολλοῖς τῶν ἀνθρώπων καὶ τραχὺ καὶ τραγικόν ἐνταῦθα γὰρ πλεῖστοι οἱ microῦθοί τε καὶ τὰ ψεύδη ἐστίν περὶ τὸν τραγικὸν βίον (Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes)

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Essa passagem platocircnica que destacamos do diaacutelogo Craacutetilo sintetiza todos os

pontos que ressaltamos anteriormente nesse presente capiacutetulo Independentemente

do foco que muitos helenistas colocam em torno do problema da criacutetica da teoria

convencionalista e naturalista da linguagem que se refere a uma problemaacutetica

contextual da eacutepoca115 o diaacutelogo nos fornece uma gama de elementos que flutuam

em torno da questatildeo da phyacutesis e do nomos116 ou seja da natureza e da convenccedilatildeo

humana Essa era uma das questotildees cruciais do periacuteodo claacutessico que nos ajuda a

compreender a atmosfera intelectual desse periacuteodo Sendo esse eacute um dos primeiros

aspectos que eacute resultado do desdobramento da alegoria homeacuterica Eacute o que veremos

a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

Um dos traccedilos de destaque do periacuteodo claacutessico foi sem duacutevida alguma a

abertura intelectual e poliacutetica que promoveram a apariccedilatildeo de gecircnios como o escultor

Fiacutedias Tuciacutedides Anaxaacutegoras e Goacutergias O pensamento de Protaacutegoras e de

Soacutecrates117 que tambeacutem pertence a esse famoso grupo por exemplo carrega um

ponto em comum com esse conjunto de intelectuais ele revela o distanciamento da

subordinaccedilatildeo do homem ao mundo divino118 Mas essa independecircncia ocorreu em

direccedilotildees opostas De um lado alimentou o desprezo dos jovens pela tradiccedilatildeo119 que

foi importante para o surgimento de uma postura criacutetica que pocircs em xeque o proacuteprio

passado helecircnico e de outro contribuiu para enfraquecer os laccedilos de fraternidade

que era a principal base do antigo sistema poliacutetico grego A influecircncia sofiacutestica que

se mantinha atraveacutes da forccedila da palavra (loacutegos) foi determinante para cultivar o

agnosticismo120 e o individualismo entre os mais jovens As teacutecnicas retoacutericas eram

cultivadas com o intuito de fornecer um meio eficaz de conquista e poder pessoal

para os mais jovens121 No Craacutetilo eacute possiacutevel percebemos a ironia e o espanto de

115 Vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 116 Φύσις και νόmicroος 117 No proacuteximo capiacutetulo vamos abordar esse ponto 118 De certa forma Platatildeo tentou superar essa crise 119 Cito aqui o processo de Soacutecrates E um dos pontos do processo estava o crime de corrupccedilatildeo dos jovens 120 Refere-se a impossibilidade radical de se conhecer algo que escape da esfera humana Um exemplo o conhecimento dos deuses Vide o caso de Protaacutegoras muito antes de Kant foi um dos primeiros a impor limite ao conhecimento humano Em contrapartida esse gesto acarretou um desprezo pelo estudo da filosofia e tambeacutem alimentou o sentimento egoiacutesta entre os jovens como veremos posteriormente de modo mais detalhado 121 Vide a comeacutedia ldquoAs nuvensrdquo de Aristoacutefanes Posteriormente veremos que o projeto pedagoacutegico oferecido por Platatildeo atraveacutes do diaacutelogo visava reverter esse processo

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Platatildeo em relaccedilatildeo ao interesse pueril sobre a exatidatildeo dos nomes Como pano de

fundo esse diaacutelogo apresenta a decadecircncia intelectual atraveacutes da discussatildeo em

torno da tese convencionalista que eacute defendida pelos seguidores de Protaacutegoras e

os naturalistas que seguem a visatildeo de Heraacuteclito que tem a phyacutesis como a medida

de todas as coisas Essa eacute uma imagem que expotildee em plano aberto o cenaacuterio geral

dos efeitos colaterais promovidos pela pedagogia sofiacutestica122 Mesmo sendo um

diaacutelogo de cunho aporeacutetico Soacutecrates123 tem inicialmente uma tendecircncia de seguir

a orientaccedilatildeo de Craacutetilo que visa refutar a posiccedilatildeo convencionalista defendida por

Protaacutegoras De modo sorrateiro ele utiliza essa hipoacutetese para liquidar todas as

possibilidades de contra argumentaccedilatildeo do pobre Hermoacutegenes Mas no final

percebemos que ele se distacircncia tambeacutem da linha oferecida por Craacutetilo Esse

abandono eacute algo curioso pois natildeo sabemos se isso revela a postura de Platatildeo ou do

proacuteprio Soacutecrates histoacuterico124 Segundo Aristoacuteteles o seu mestre tinha influecircncia da

escola pitagoacuterica e desde de jovem era um seguidor de Craacutetilo e do pensamento do

filoacutesofo efeacutesio para as questotildees que estavam voltadas para o acircmbito do

conhecimento125 A tese muita difundida na eacutepoca que defendia que todas as coisas

sensiacuteveis estatildeo em processo de mudanccedila contiacutenua teria sido o seu ponto de partida

para a filosofia platocircnica Enquanto que para questotildees de cunho moral teria se

servido da influecircncia socraacutetica

O ponto interessante nessa descriccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo dos fatos e o ordenamento

cronoloacutegico126 oferecido pelo filoacutesofo macedocircnio Diferentemente do mestre da

Academia o seu estilo soacutebrio e analiacutetico apresenta de modo claro para o leitor

atencioso muitas questotildees que vatildeo aleacutem da proacutepria informaccedilatildeo transmitida no texto

A primeira delas eacute o processo de formaccedilatildeo intelectual do filoacutesofo poeta esse traccedilo

122 No cinema o plano aberto (long shot) a cacircmera que representa o olhar do cineasta estaacute distante do objeto de modo que ele ocupa uma parte pequena do cenaacuterio Eacute um plano de ambientaccedilatildeo importante para apresentar inicialmente o espaccedilo cecircnico 123 Ou Platatildeo 124 Uma hipoacutetese para esse ldquoabandonordquo poderia ser interpretada pelo distanciamento de Platatildeo em relaccedilatildeo as duas principais correntes intelectuais do seu tempo No Teeteto por exemplo eacute possiacutevel encontramos uma minuciosa criacutetica em relaccedilatildeo agrave validade do conhecimento a partir dessas hipoacuteteses 125 Aristoacuteteles Metafiacutesica (I6 986-30) 126 Para essa questatildeo seguimos a tese de Wener Jaeger que defende que Aristoacuteteles foi o primeiro pensador que construiu paralelo a sua obra um conceito de sua proacutepria posiccedilatildeo na histoacuteria Ele teria sido o primeiro a promover a criaccedilatildeo de um novo gecircnero de consciecircncia filosoacutefica atraveacutes do modo de expressatildeo que corresponde diretamente ao seu desenvolvimento intelectual Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Jaeger W Aristotle Fundamentals of the History of His Development 2nd ed Oxford (1948)

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pode ser constatado a partir do proacuteprio tiacutetulo do diaacutelogo que leva o nome do seu

antigo mestre O segundo detalhe eacute o modo como Aristoacuteteles menciona a figura de

Heraacuteclito no texto A expressatildeo utilizada de modo literal eacute a seguinte ldquotendo

primeiro se familiarizado desde jovem com Craacutetilo e as opiniotildees de Heraacuteclitordquo127

no texto grego a expressatildeo ldquoas opiniotildees de Heraacuteclitordquo (Heracleiteiois doxais)

parece nos dizer com o uso do adjetivo primeiro (proacuteton)128 carregando o sentido

de anterioridade histoacuterica em referecircncia direta a Craacutetilo129 que as opiniotildees do

filoacutesofo efeacutesio teriam sido transmitidas por intermeacutedio dele Ao contrapor essas

informaccedilotildees com a anaacutelise do diaacutelogo homocircnimo nos deparamos com todas essas

evidecircncias que orientam a construccedilatildeo dramaacutetica e filosoacutefica do proacuteprio texto

Atraveacutes de uma espessa neblina pintada com os tons escuros da figura enigmaacutetica

de Soacutecrates ele refuta metodicamente as duas principais vias hipoteacuteticas

apresentadas no diaacutelogo Eacute importante ressaltar que a mesma tese heracliacutetica que

exerceu uma profunda influecircncia sobre o seu pensamento e de seu mestre Craacutetilo

tambeacutem foi importante para a postura relativista e agnoacutestica de Protaacutegoras130 Essa

aporia carrega um sentido mais traacutegico quando percebemos que a inutilidade dessa

discussatildeo promovida no encontro entre Craacutetilo Hermoacutegenes e Soacutecrates revela algo

ainda muito mais tenebroso ao filoacutesofo de que a linguagem eacute um caminho

totalmente incerto e enganoso para a obtenccedilatildeo do conhecimento da realidade131

Essa longa digressatildeo que fizemos natildeo foi sem propoacutesito Ela se fez necessaacuteria

para obtermos mais instrumentos pois temos a plena consciecircncia que o caminho

que estamos percorrendo eacute extremamente espinhoso Por isso que precisamos seguir

rotas alternativas que satildeo pouco frequentadas pelos mais apressados Mesmo

caminhando em ciacuterculos e com algumas pausas durante esse longo percurso como

o proacuteprio Platatildeo nos avisa natildeo devemos desistir diante dos obstaacuteculos Aprender a

127 ldquoἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόmicroενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαιςrdquo Ek neacuteou te gar synesthes genomenos proacuteton Kratylo kai Heracleiteiois doxais (Nossa traduccedilatildeo) 128 πρῶτον Κρατύλῳ proacuteton Kratylo 129 Vide a nota anterior 130 A doxagrafia antiga relata uma influecircncia do pensamento de Demoacutecrito sobre Protaacutegoras Mas a partir de vaacuterias posiccedilotildees defendidas pelo grande sofista como a tese dos dissoi logoi nos leva a crer uma certa aproximaccedilatildeo do pensamento do filoacutesofo efeacutesio Mario Untersteiner foi um dos primeiros helenistas que apontou essa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide UNTERSTEINER Mario Les Sophistes Traduit et precircsenteacute par Alonso Tordesillas Paris Librairie Philosophigue J Vrin 1993 Um ponto tambeacutem que natildeo discutimos em relaccedilatildeo a descriccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre o seu mestre eacute a distinccedilatildeo que ele faz de modo muito sutil entre Craacutetilo e Heraacuteclito Para algumas fontes mais antigas a saber em DL livro (III-4) 131 No diaacutelogo Teeteto o filoacutesofo analisa a natureza do conhecimento a partir dessa questatildeo

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olhar uma paisagem por diferentes perspectivas nos fornece uma visatildeo privilegiada

que habilita o espiacuterito a reatualizar a nossa rota mantendo o ritmo constante em

busca de novos resultados O nosso objetivo anterior seraacute retomado agora Depois

de analisar alguns aspectos discutidos no diaacutelogo de Platatildeo o nosso desvio

estrateacutegico em torno das polecircmicas entre os filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico

nos trouxe algumas evidecircncias para analisar com mais consistecircncia a imagem de

Hermes como a divindade simboacutelica da linguagem para os gregos desde do periacuteodo

homeacuterico

Esses rastros estatildeo contidos na passagem em que Hermoacutegenes pede ao

filoacutesofo Soacutecrates a etimologia do nome do deus Hermes pois segundo o proacuteprio

Hermoacutegenes a partir da linha defendida por Craacutetilo o seu nome natildeo guardava

nenhum parentesco132 com a divindade De forma geral todo o diaacutelogo carrega um

certo tom cocircmico em torno das origens dos nomes mas esse aspecto natildeo empobrece

a relevacircncia que o filoacutesofo impotildee na discussatildeo de outras questotildees que giram em

torno desse centro gravitacional que parte da inutilidade da pedagogia sofiacutestica e

a anaacutelise de algumas teses que surgem do desdobramento do problema entre a

phyacutesis e o nomos Aliaacutes essa problemaacutetica tambeacutem estaacute relacionada com as

reflexotildees que se inicia na obra homeacuterica e que se amplia atraveacutes dos primeiros

filoacutesofos preacute-socraacuteticos e chega finalmente no periacuteodo claacutessico com o diaacutelogo

Craacutetilo Nessa obra Platatildeo expotildee para noacutes os indiacutecios cruciais para a validaccedilatildeo da

interpretaccedilatildeo alegoacuterica que surge do encontro entre Hermes e Odisseu na ilha de

Circe Nesse momento Soacutecrates apresenta todos as caracteriacutesticas desse deus que

estaacute em total sintonia com a tradiccedilatildeo poeacutetica que foi a fonte e a base pedagoacutegica e

intelectual para a cultura helecircnica que o antecedera Atraveacutes da boca irocircnica de

Soacutecrates Platatildeo demonstra a sua erudiccedilatildeo que eacute fruto dessa educaccedilatildeo

aristocraacutetica recitando de cor e salteado a etimologia completa em torno do nome

de Hermes sem hesitar em nenhum momento Sendo essa uma das passagens mais

valiosas da obra que revela a sua capacidade mnemocircnica e o conteuacutedo da educaccedilatildeo

132 A antiga aristocracia fundava o seu poder poliacutetico atraveacutes dessa relaccedilatildeo familiar com os deuses que era fornecida pela teologia homeacuterica Eacute bem provaacutevel que essa praacutetica das correccedilotildees dos nomes pelos sofistas tenha a sua origem na genealogia promovida por essa minoria que detinha o poder na poacutelis Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto noacutes recomendamos o seguinte artigo FACAtildeO Emerson Democracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca - Revista dos alunos de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Novembro (2017)

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mito-poetica que ainda vigorava no seu tempo Nesse momento podemos notar que

o nome da divindade estaacute intimamente em consonacircncia com os seguintes termos

loacutegos133 intepretaccedilatildeo134 e mensagem135 Sendo tambeacutem considerado pela tradiccedilatildeo

como trapaceiro136 feacutertil em discursos137 comerciante labioso Todas essas

qualidades se assentam no poder da palavra138 Em outras fontes antigas139 que

temos sobre a imagem dessa divindade eacute possiacutevel comprovar a precisatildeo da

descriccedilatildeo platocircnica Nesse sentido e mesmo de modo sarcaacutestico o filoacutesofo expotildee

com perfeiccedilatildeo as caracteriacutesticas simboacutelicas que encontramos na obra homeacuterica140

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Poesia e Loacutegos

Quando juntamos essas informaccedilotildees ao lado da passagem que expomos

anteriormente sobre o encontro entre Odisseu e Hermes nos deparamos com a

uniatildeo entre duas esferas que orienta todo o processo de subjetividade helecircnico

daquele periacuteodo O uso do termo phyacutesis aplicado pelo poeta naquele contexto traz

o sentido de segredo revelado por um deus que escapa aos olhos humanos que seraacute

posteriormente retomado por Heraacuteclito ao lado desse loacutegos que se apoia nas mesmas

caracteriacutesticas desse uso semacircntico apresentado por Homero na Odisseia A partir

dessas evidecircncias expostas eacute possiacutevel traccedilar uma linha de continuidade entre

Homero e os filoacutesofos do periacuteodo preacute-socraacutetico141 (NADAFF 2005) O primeiro

desses pensadores foi Heraacuteclito Em alguns dos seus escassos fragmentos ele traz

vaacuterios elementos que coadunam com o sentido de phyacutesis que encontramos na obra

homeacuterica

133 περὶ λόγονperi logon 134 ἑρmicroηνέαhermeneia 135 ἄγγελονaggelon 136 Κλοπικόςklopikoacutes 137 τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοιςte kai to apantelon em loacutegois 138 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 139 Em Homero Iacuteliada (livro XXIV 334-5) no hino homeacuterico a Hermes e Aristoacutefanes A paz (14-5) 140 Esse eacute um dos indiacutecios que prova o diaacutelogo em niacutevel mais profundo que haacute entre Platatildeo e Homero 141 Ou seja uma continuidade e natildeo ruptura entre a Poesia e Filosofia

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ldquoA natureza ama esconder-serdquo142

E

ldquoBem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo143

Eacute importante ressaltar que esses primeiros pensadores se expressavam com

a mesma liberdade poeacutetica de seus antepassados Esse eacute outro importante traccedilo de

continuidade que pode ser encontrado nos fragmentos de vaacuterios desses pensadores

antigos Atraveacutes de suas obras eacute possiacutevel notarmos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo No

caso sobretudo de Heraacuteclito esse ponto eacute evidente a partir dessas passagens

expostas No fragmento I e no 112 ele usa a expressatildeo ldquoKata Physinrdquo (por natureza)

que eacute uma das primeiras apariccedilotildees desse termo entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos na

antiguidade No fragmento I um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo eacute o emprego

de duas conjunccedilotildees a primeira que foi mencionada anteriormente eacute ldquoKata Physinrdquo

(por ou segundo Natureza) e a segunda ldquoKata ton Logonrdquo (segundopor esse

loacutegos) Esse Kata atua como uma preposiccedilatildeo atraveacutes do caso genitivo e acusativo

Ele traz o sentido de ldquocomrdquo e ldquovindo derdquo Liddell amp Scott ainda chamam atenccedilatildeo

para o fato dessa partiacutecula carregar o sentido de ldquomovimento que vem de cima para

baixordquo Ou seja haacute uma alusatildeo do velho esquema de autoridade que os poetas

traziam do mundo divino para o mundo humano No caso de Heraacuteclito essas

conjunccedilotildees estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de reciprocidade que poeticamente

reforccedila o sentido entre essas duas instacircncias que ele expotildee filosoficamente na

sentenccedila A Poesia e a Filosofia assim como a Phyacutesis e o Loacutegos estatildeo intimamente

conectadas dentro desse contexto Ao partir da obra homeacuterica vimos que o nome do

deus Hermes se caracteriza por essa accedilatildeo de comunicaccedilatildeo vertical entre os dois

142 Heraacuteclito fragmento DK (123) φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ phyacutesis kryacuteptesthai philei nossa traduccedilatildeo 143 Ibidem DK (112) σωφρονεῖν ἀρετὴ microεγίστη καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας sophronein areteacute megiste kai sophin aletheacuteia legein kai poieiein kata phyacutesin hepaiontas traduccedilatildeo de Alexandre Costa

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mundos que estaacute presente nessas sentenccedilas que abordam a questatildeo da Phyacutesis e

Loacutegos Essas duas conjunccedilotildees operam de maneira dialoacutegica para acentuar os

diferentes niacuteveis semacircnticos explorados pelo filoacutesofo efeacutesio em torno dos

problemas oriundo da Natureza Como disse anteriormente esses dois termos tem

uma iacutentima afinidade que certamente vem da interpretaccedilatildeo homeacuterica entre a

natureza e linguagem O termo phrazon144(mostrar) que surge no fragmento I por

144 Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo a seguir φράζω S Ph 25 etc poet impf φράζον Pi N 161 fut φράσω [α] A Pr 781 etc aor 1 ἔφρασα hVen 128 hMerc 442 Hdt 2150 etc poet φράσα [α] Od 1122 A Ag 231 (lyr) imper φράσσατε Pi P 4117 pf πέφρακα Isoc 593 Phld Po 523 Ep aor πέφραδον ἐπέφραδον used by Hom mostly in 3 sg Il 14500 al (in Od 1273 8142 πέφραδε is imper) opt πεφράδοι Il 14335 inf πεφραδέειν πεφραδέmicroεν Od 19477 749 1 sg ἐπέφραδον only Il 10127 also aor 1 part gen φράδαντος dub in IG 5(2)26115 (Mantinea vi B C)mdash Med and Pass φράζοmicroαι Ep imper φράζεο φράζευ Il 5440 9251 inf φράζεσθαι Od 1294 Ep 3 sg impf φράζετο φραζέσκετο 11624 hAp 346 fut φράσοmicroαι [α] Il 15234 Ep φράσσοmicroαι Od 16238 aor1 ἐφρασάmicroην 17161 Ep φρασάmicroην 2375 3 sg and pl ἐφράσσατο φράσσαντο 4529 Il 15671 imper φράσαι Od 24331 A Ch 113 Ep 3 sg subj φράσσεται Od 24217 Ep inf φράσσασθαι Orac ap Hdt 357 aor Pass ἐφράσθην Od 19485 Hdt 184 E Hec 546 pf πέφρασmicroαι (in med sense) A Supp 438 (in pass sense) Isoc 15195 part προ-πεφραδmicroένος Hes Op 655 mdashThe aor Med is chiefly Ep also Archil 94 Sol 54 341 A Ch 113 E Med 653 (lyr)mdash point out show (never say tell in Hom acc to Aristarch) ἐς χῶρον ὃν φράσε Κίρκη Od 1122 cf Il 23138 Od 15424 also show the way to show where to find ᾗ οἱ αθήνη πέφραδε δῖον ὑφορβόν 143 cf 868 σήmicroατrsquo τά οἱ ἔmicroπεδα πέφραδ οδυσσεύς showed 19250 microῦθον πέφραδε πᾶσιν show make known the word to all 1273 cf 8142 δεῖξε καὶ ἔφρασε hVen 128 φράσσατέ microοι δόmicroους show me them Pi P 4117 ἔφρασε τὴν ἀτραπόν Hdt 7213 κόποι αὐτόmicroατοι φράζουσι νούσους Hp Aph 25 δmicroώων δή τινα microοι φράσον Theoc 2547 τὸ παράδειγmicroα ὃ ἂν φράζῃ ὁ ἀρχιτέκτων IG 22166896 abs φωνῆσαι microὲν οὐκ εἶχε τῇ δὲ χειρὶ ἔφραζε Hdt 4113 ἀντὶ φωνῆς φράζε χερί A Ag 1061 2 show forth tell declare λόγον ἔπος ὄνοmicroα Pi O 260 A Pers 173 (troch) Supp 320 φ τοῖσι ἥκουσι τὰ πρήγmicroατα Hdt 6100 ἑλοῦ γάρ ἢ πόνωντὰ λοιπά σοι φράσω σαφηνῶς ἢ τὸν ἐκλύσοντ ἐmicroέ A Pr 781 τιπρός τινα Hdt 168 Ar Nu 359 (anap) etc c dupl acc φ τινά τι Isoc 15100 τι Pl Phdr 267b περί τινος Isoc 15117 (v infr) ἐπί τινος Id Ep 68 rarely c gen tell of τῆς microητρὸς ἥκω τῆς ἐmicroῆς φράσων ἐν οἷς νῦν ἐστι S Tr 1122 folld by a relat clause φ ὅτι Lys 123 Pl Phdr 278b etc φ ὡς δεῖ γεωργεῖν X Oec 168 φ οἷ ἐπορσύνθη κακά A Pers 267 cf Pr 995 etc with double constr φ τό τε ὄνοmicroα καὶ ἐν ᾗ κώmicroῃ οἰκοῦσιν PRevLaws 295 (iii B C) rarely c part πεφραδέειν πόσιν ἔνδον ἐόντα Od 19477 οὐκ ἔφραζες σῆς προκείmicroενον νέκυν γυναικός E Alc 1012 later c acc et inf Phld lc explain (opp λέγω which means simply speak say) φράσον ἅπερ γ ἔλεξας declare explain what thou didst say S Ph 559 φράζε δὴ τί φῄς Id OT 655 φράζουσιν ἃ λέγει X An 2418 φράζε λόγῳ S Ph 49 Pl Lg 814c οὐχ ἁπλῶς εἰπεῖν ἀλλὰ σαφῶς φράσαι περὶ αὐτῶν Isoc 15117 cf Ep 12 σαφῶς φ τοῖς βουλοmicroένοις συνιέναι Aeschin 1129 of teachers Antipho 613 Pl Tht 180b of oracles Ar Eq 1048 Pl 46 Pl Lg 923a etc of letters Plu Cic 15 abs τοῦτο φράζει ὅτι this signifies that X Smp 830 b cultivate style or phrasing opp αὐτὸ τὸ γράφειν Duris 1 J 3 c dat pers et inf tell one to do so and so ἵνα γάρ σφιν ἐπέφραδον ἠγερέθεσθαι Il 10127 δὴ γάρ microοι ἐπέφραδε Κίρκη (sc ἰέναι) Od 10549 τοῖς ἀνθρώποισι φ σιγᾶν Ar Pax 98 (anap) τὰ ὅπλα ὑπολαβεῖν Th 658 cf 315 4 abs give counsel advise suggest δόλος ἦν ὁ φράσας S El 197 (lyr) II Med and Pass indicate to oneself ie think or muse upon consider ponder Ep Ion Trag but not in Att Prose εὔκηλος τὰ φράζεαι ἅσς ἐθέλῃσθα Il 1554 φράζεσθαι βουλήν βουλάς 18313 Od 11510 ἐνὶ φρεσὶ microῆτιν ἀmicroείνω Il 9423 πάντα microετὰ φρεσίν Hes Op 688 θυmicroῷ Il 16646 ἐφράσθη καὶ ἐς θυmicroὸν ἐβάλετο Hdt 184 πρὸς ταῦτα φράζου bethink thee S El 383 ἀmicroφὶς φ to think differently Il 214 folld by εἰ c fut indic consider whether 183 Od 10192 2 purpose plan contrive φ τινὶ κακά θάνατον ὄλεθρον 2367 3242 13373 microέγ ὄνειαρ 4444 ἐσθλά Il 12212 φράσσατο Πατρόκλῳ microέγα ἠρίον 23126 φράσσεται ὥς κε νέηται will contrive how Od 1205 φ ὅπως ὄχ ἄριστα γένοιτο 3129 cf S Aj 1041 3 c acc et inf think suppose believe imagine that Od 11624 οὐκ ἐφράζετο δυνατὸς εἶναι Hdt 3154 4 perceive observe οἷον ἐγὼν οἰωνὸν ἐφρασάmicroην Od 17161

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exemplo estabelece a sua ligaccedilatildeo semacircntica com Phreacuten - diafragma coraccedilatildeo como

sede das paixotildees e do espiacuterito do pensar e agir que ocorre na harmonia entre duas

forccedilas contraacuterias que habitam sob a tensatildeo do seu ritmo O focirclego e todo o

movimento de vir a ser mantecircm-se atraveacutes desse fundamento na antiguidade O

Efeacutesio explora a multiplicidade de sentidos para enfatizar a relaccedilatildeo genuiacutena entre

ser pensar e dizer que eacute um e o mesmo145 Ou seja a phyacutesis e loacutegos satildeo termos

equivalentes que expressam o processo total do desenvolvimento da vida desde

Homero a Heraacuteclito

O mais interessante desse processo reflexivo que parte dos fragmentos do

filoacutesofo eacute perceber o fato dele apresentar a sua visatildeo mais profunda da Phyacutesis em

total consonacircncia com a linguagem poeacutetica que desempenhou um lugar de destaque

dentro da cultura grega Ela era a palavra que visava organizar a vida helecircnica e

suprir a curiosidade em torno desses questionamentos mais baacutesicos da existecircncia

humana Como ressaltamos anteriormente a poesia era o meio pelo qual os

helecircnicos conseguiram desenvolver para reorganizar a sua sociedade apoacutes o

tenebroso episoacutedio histoacuterico que culminou no decliacutenio da civilizaccedilatildeo micecircnica146

Esse periacuteodo que eacute conhecido pelos historiadores como a idade das trevas eacute o

momento de uma profunda transformaccedilatildeo social e poliacutetica que teve para muitos

especialistas (SNODGRASS 2000) a sua origem em uma infortuita equaccedilatildeo que

parte de causas humanas e naturais147 Essas importantes transformaccedilotildees foram

τὴν (sc τὴν οὐλὴν ) ἀπονίζουσα φρασάmicroην 2375 with a part τὸν δὲ φράσατο προσιόντα Il 10339 cf 23453 later c gen χειmicroῶνος Arat 745 ποmicroπᾶς Theoc 284 rarely c part ψυχὰν αιδᾳ τελέων οὐ φράζεται marks not that he will die Pi I 168 5 watch guard [ὀρσοθύρην] Od 22129 6 beware of ξύλινον λόχον Orac ap Hdt 357 freq in imper φράζευ κύνα cave canem Ar Eq 1030 (hex) φράσσαι κυναλώπεκα microή σε δολώσῃ ib 1067 (hex) φράζεο δή microὴ microάρψῃ Id Pax 1099 (hex) cf Call LavPall 52 c inf φράζου microὴ πόρσω φωνεῖν S El 213 (lyr) abs φράζου take care A Eu 130 (Perh cf Lith girdziugrave I hear inf girdēti ) 145 Vide os seguintes fragmentos DK (219 50 72) 146 Iniacutecio do periacuteodo preacute-homeacuterico 147 Em torno dessa questatildeo haacute diversos estudos que tentatam entender esse processo de transformaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dessa importante cultura preacute-helecircnica Esses estudos arqueoloacutegicos concentram-se em analisar os seguintes materiais arqueoloacutegicos os registros do Linear A e B os afrescos deixados nas paredes fragmentos de ceracircmica e de objetos de uso cotidiano encontrados nas antigas ruiacutenas que formava o esplendoroso palaacutecio de Micenas Para muitos especialistas a duas principais causas do colapso da civilizaccedilatildeo micecircnica parte de causas naturais como o surgimento de terremoto e maremoto e de causas humanas como a guerra e a superpopulaccedilatildeo que forccedilou o deslocamento (diaacutesporaδιασπορά dispersatildeo) apoacutes a invasatildeo doacuterica que obrigou muitas famiacutelias que residiam na parte continental onde estava localiazada a releza de Micenas a se espalharem para outras localidades da bacia do mar Mediterracircneo Esse fato caracteriza-se por um lado como o fim da Era do Bronze e por outro como o iniacutecio do periacuteodo Preacute-Homerico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo pois acreditamos que o processo do amplo desenvolvimento subjetivo da cultura

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posteriormente essenciais para a construccedilatildeo da mentalidade cultural da civilizaccedilatildeo

helecircnica Um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo apoacutes a fragmentaccedilatildeo e

dispersatildeo da populaccedilatildeo micecircnica pelo Mediterracircneo eacute o processo de total

isolamento cultural que culminou entre outras ocorrecircncias no abandono da

opulecircncia do modo de vida micecircnico e do uso da escrita A guerra a destruiccedilatildeo e

a fome produziram marcas profundas na subjetividade dos sobrevintes da antiga

cultura micecircnica Esses estranhos fatos possibilitaram o desenvolvimento da

tradiccedilatildeo oral atraveacutes do uso da mitologia poesia e do aperfeiccediloamento das teacutecnicas

mnemocircnicas atraveacutes da muacutesica148 Posteriormente pretendemos investigar149 como

esse conhecimento musical foi essencial para conservar e transmitir o legado

cultural desses povos predecessores que ajudaram a construir a mentalidade

helecircnica Mesmo sem utilizar a escrita os gregos conseguiram desenvolver uma

capacidade mnemocircnica tatildeo eficiente que posteriormente eacute possiacutevel identificarmos

a sua utilidade e emprego no desenvolvimento da Retoacuterica Poliacutetica Filosofia e da

Literatura

helecircnica parte desse contexto Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto indicamos a leitura do seguinte livro SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 148Μουσικήmousikeacute ldquoArte das musasrdquo Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto que para noacutes eacute essencial para a compreensatildeo do desenvolvimento do subjetivo da cultura helecircnica 149 Vide o capiacutetulo III

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3 Poesia memoacuteria e verdade

31 A palavra entre os homens e deuses

Como foi exposto anteriormente o homem desde seus primoacuterdios teve a

pretensatildeo de desvendar a linguagem da Natureza 150 para buscar respostas sobre a

sua origem Para Platatildeo (Teeteto 155 d) e Aristoacuteteles (Met A 982 b) por exemplo

a Filosofia nasce nesse momento quando ele experimenta o primeiro espanto 151

que surge do reconhecimento152 da grandiosidade existencial das forccedilas 153 que

compotildee o mundo A partir disso surgiu toda uma tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que teria

como expoentes os poetas Hesiacuteodo e Homero que foram responsaacuteveis por

estabelecer os primeiros pilares da cultura grega Esses homens tinham o poder

divino de traduzir essas forccedilas 154 que ecoavam pela imensidatildeo do mundo antigo

Essa poesia trazia consigo aleacutem da finalidade de responder essas questotildees sobre as

nossas origens o objetivo de ajudar a construir um meio para a orientaccedilatildeo e

organizaccedilatildeo social e poliacutetica do homem grego antigo155 Todo o legado cultural era

conservado e transmitido pela voz dos aedos que eram os uacutenicos instrumentos de

comunicaccedilatildeo responsaacutevel por manter a consciecircncia histoacuterica do seu proacuteprio povo

150 A palavra grega phyacutesis (Φύσις) pode ser traduzida por natureza mas seu significado eacute mais amplo Este termo refere-se tambeacutem agrave realidade natildeo aquela pronta e acabada mas a que se encontra em movimento e transformaccedilatildeo a que nasce e se desenvolve o fundo eterno perene imortal e impereciacutevel de onde tudo brota e para onde tudo retorna Nesse sentido a palavra significa gecircnese origem e manifestaccedilatildeo Saber o que eacute a Physis assim levanta a questatildeo da origem de todas as coisas a sua essecircncia que constitui a realidade e que se manifesta no movimento da vida Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o primeiro capiacutetulo desse presente trabalho 151 θαυmicroάζωthaumazo 152 ἀναγνώρισιςanagnoacuterisis 153 Para GMA Grube satildeo essas forccedilas (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) que ultrapassam a esfera da mortalidade humana que o grego antigo chama deus (θεόςtheos) Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do seguinte livro GRUBE G M A Platorsquos Thought Indianapolis Hackett 1980 154 Vide o iniacutecio do capiacutetulo anterior 155 Sobre essa questatildeo Jean-Pierre Vernant em um beliacutessimo artigo intitulado como ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo(A bela morte e o cadaacutever ultrajado) diz ldquoMas para que a honra heroica permaneccedila viva no coraccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores como que receba a marca de sua chancela eacute necessaacuterio que a funccedilatildeo poeacutetica mais que objeto de divertimento tenha conservado um papel educativo e formador que atraveacutes dela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um esse conjunto de saberescrenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura Somente a poesia eacutepica devido ao seu estatuto e agrave sua funccedilatildeo pode conferir ao desejo de gloacuteria impereciacutevel que domina o heroacutei essa base institucional e essa legitimaccedilatildeo social sem as quais ele natildeo passaria de uma fantasia subjetiva Para mais informaccedilotildees vide VERNANT JP ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo Journal de Psychologie 2-3 (1980) pp 220-221

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Eacute atraveacutes dos versos desses filhos das Musas156 que o homem grego podia

transcender os limites do espaccedilo e do tempo e acessar todo o seu distante passado

que era presentificado atraveacutes de imagens reconstruiacutedas pela audiccedilatildeo que foram

fundamentais para moldar o futuro da cultura helecircnica157 Com isso o poeta passa

a ser uma figura de grande importacircncia e prestiacutegio dentro da sociedade grega antiga

Na primeira obra de Hesiacuteodo por exemplo o conteuacutedo dessa poesia fala sobre

o surgimento dos deuses158 O poeta usa a linguagem miacutetica para declamar de modo

estruturado a genealogia das divindades que pairavam por toda Heacutelade No seu livro

conhecido como a Teogonia Hesiacuteodo desenvolve atraveacutes de sua narrativa a

primeira ideia de causalidade que temos notiacutecia (TORRANO 1991) e que

posteriormente seraacute utilizada como base para os filoacutesofos que surgiratildeo escrevendo

sobre as cosmogonias159 referentes agrave Phyacutesis

A Teogonia narra sobre quatro geraccedilotildees de deuses que satildeo responsaacuteveis por

todas as coisas viventes que satildeo nomeadas pelos seguintes nomes Caos Terra

Taacutertaro e Eros Mesmo sem comprovaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo durante muito tempo

essa era a explicaccedilatildeo utilizada pelos gregos para estruturar todo o seu conhecimento

histoacuterico e poliacutetico-social Como consequecircncia disso a Paideacuteia (educaccedilatildeo) tinha

como obrigaccedilatildeo de repassar esse conhecimento de forma oral para cada jovem

156 ΜοῦσαιMousai 157 Platatildeo (Timeu ndash 20 e) 158 O professor GM A Grube em seu famoso livro ldquoPlatorsquos Thoughtrdquo chama a nossa atenccedilatildeo para uma importante observaccedilatildeo feita pelo filoacutelogo alematildeo Wilamowitz sobre a palavra deus (θεόςtheos) Para o scholar os gregos usavam esse termo como uma noccedilatildeo fundamentalmente predicativa Em comparaccedilatildeo aos cristatildeos e judeus por exemplo quando eles dizem que ldquoDeus eacute amorrdquo ou que ldquoDeus eacute bomrdquo apontam para uma existecircncia de um ser ldquodesconhecidordquo e consequentemente fazem um juiacutezo qualitativo em torno desse termo colocando ldquoamorrdquo ldquobemrdquo e ldquobelordquo como seus atributos Para um grego essa ordem era completamente inversa pois ao dizer por exemplo que o ldquoAmor eacute deusrdquo ou a ldquoBeleza eacute deusrdquo o grego natildeo estaria apenas pressupondo a existecircncia de uma divindade antropomoacuterfica oculta mas tambeacutem falando sobre algo acerca do ldquoAmorrdquo e da ldquoBelezardquo como realidades natildeo antropomorfizadas que natildeo podem ser negadas e nem confundidas com os cultos religiosos E segundo o professor Grube o sujeito do seu juiacutezo a coisa pela qual se fala encontra-se no mundo que conhecemos e o pensamento pagatildeo estava focado nessa ideia Ao dizer que o ldquoAmor eacute deusrdquo os gregos queriam expressar fundamentalmente o caraacuteter sobre humano de algo que natildeo estaacute sujeito agrave morte ou destruiccedilatildeo e que escapa sobretudo do domiacutenio dos homens Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como FERNANDES Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013 159 O pensamento cosmogocircnico eacute definido como uma tentativa de explicaccedilatildeo sobre a origem do mundo atraveacutes de mitos Enquanto que o pensamento cosmoloacutegico que segundo os relatos antigos teria surgido com o filoacutesofo Tales de Mileto eacute caracterizado como uma tentativa hipoteacutetica de formulaccedilotildees conceituais que visa uma explicaccedilatildeo mais clara e objetiva da Phyacutesis

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grego Alguns seacuteculos depois surgiram pensadores que comeccedilaram a colocar em

xeque esse conhecimento tradicional poeacutetico160 A partir de algumas duacutevidas sobre

a origem do conhecimento do poeta grego surgem as seguintes questotildees como

posso ter certeza da veracidade das palavras de Hesiacuteodo Quais satildeo as provas que

servem para sustentar esses argumentos Nossos sentidos 161 Nossa razatildeo162 O

senso comum163 O que eacute a verdaderevelaccedilatildeo164 Tais perguntas foram de extrema

importacircncia para o nascimento de uma postura criacutetica entre os gregos que foi

fundamental para o desenvolvimento do ceticismo165 posteriormente

Marcel Detienne (DETIENNE 1967) sob a influecircncia estruturalista de Leacutevi-

Strauss166 construiu uma interessante pesquisa que visa compreender esse periacuteodo

de rupturatransiccedilatildeo167 entre a tradiccedilatildeo miacutetica e o pensamento racional Essa

postura criacutetica que determina o surgimento de uma forma de pensar mais criacutetica e

elaborada nasce em um contexto social poliacutetico e econocircmico bem especiacutefico a

160 Para John Burnet (BURNET 1930) isso ocorre quando os gregos comeccedilam a se distanciar da visatildeo tradicional mito-poeacutetica Ele parece sugerir no livro algo semelhante ao que antecedeu o periacuteodo Moderno Ou seja esses pensadores provocaram uma crise (κρίσιςkrisis separaccedilatildeodistinccedilatildeo) que possibilitou um questionamento generalizado sobre todos os valores difundidos pela poesia antiga ocasionando uma ruptura radical (tese do milagre grego) que possibilitou diversas mudanccedilas na cultura grega sobretudo no campo eacutetico poliacutetico e pedagoacutegico Nos diaacutelogos de Platatildeo tambeacutem podemos encontrar uma atitude semelhante em relaccedilatildeo aos seus predecessores e coetacircneos Mas esse ponto infelizmente natildeo ganhou a devida atenccedilatildeo do helenista 161 αισθήσειςaisthesis 162 νοῦςnous 163 δόξαdoxa 164 Em nossa abordagem natildeo vamos traduzir o termo aleacutetheia (ἀλήθεια) por ldquoverdaderdquo para natildeo cairmos nas armadilhas que esse termo grego impotildee aos tradutores desavisados pois o sentido que o termo verdade ganha entre os modernos ndash que se contrapotildee agrave mentira ndash natildeo eacute o mesmo que encontramos na literatura antiga No proacutelogo da Teogonia eacute possiacutevel encontrarmos uma formulaccedilatildeo bem interessante apresentada em versos por Hesiacuteodo em torno desse problema ldquoαἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν ἄρνας ποιmicroαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο τόνδε δέ microε πρώτιστα θεαὶ πρὸς microῦθον ἔειπον Μοῦσαι Ὀλυmicroπιάδες κοῦραι ∆ιὸς αἰγιόχοιο ποιmicroένες ἄγραυλοι κάκ᾽ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον ἴδmicroεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύmicroοισιν ὁmicroοῖα ἴδmicroεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωmicroεν ἀληθέα γηρύσασθαιrdquo Elas [as Musas] certa vez a Hesiacuteodo ensinaram belo canto Ovelhas ele apascentando sob o Heacutelicon divino E a mim antes de tudo as deusas estas palavras dirigiram As Musas olimpiacuteades filhas de Zeus que tem a eacutegide Pastores agrestes maus oproacutebios ventres soacute sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autecircnticas e sabemos quando queremos verdades proclamarrdquo Hesiacuteodo Teogonia 22-28 Para mais informaccedilotildees vide a seguinte obra HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo PauloIluminuras 1991 165 Ou como o proacuteprio termo skeacutepsis (Σκῆψις) aponta seraacute que o ceticismo natildeo poderia ter surgido nesse momento de criacutetica agrave tradiccedilatildeo 166 Voltaremos a falar desse grande antropoacutelogo no momento que formos abordar o problema da escrita na sociedade grega 167 Para Burnet houve uma ruptura que possibilitou o surgimento do pensamento racional E no caminho oposto segue o helenista Cornford que defende uma continuidade histoacuterica (transiccedilatildeo) entre o pensamento miacutetico e racional

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partir do desaparecimento (crisetransiccedilatildeo) 168 da figura do deacutespota169 que daacute ensejo

ao surgimento da cidade170 atraveacutes da valorizaccedilatildeo da oralidade como um

instrumento de poder poliacutetico que eacute essencialmente marcado pela forccedila da

persuasatildeo171que determina a partir de um confronto acirrado172 de ideias todas as

decisotildees dentro desse novo espaccedilo social173 (VERNANT 1962)

Eacute nesse ponto que o helenista francecircs tenta buscar o sentido da palavra

aleacutetheia174 a partir das mudanccedilas que ocorreram durante o decorrer da histoacuteria

grega O seu foco primordial eacute rastrear as linhas de forccedilas que formam o leacutexico

desse termo tatildeo complexo para noacutes Para obter ecircxito em sua pesquisa Detienne

aplica o meacutetodo de anaacutelise lexicoloacutegica estrutural no intuito de alcanccedilar as relaccedilotildees

de oposiccedilatildeo e associaccedilatildeo dentro do campo semacircntico entre esses dois periacuteodos

Nessa direccedilatildeo ele percebe uma diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior da sociedade

grega de modo progressivo entre dois tipos de discursos a palavra (loacutegosdiscurso)

do historiador Tuciacutedides e o texto do poeta Hesiacuteodo A diferenccedila que reside entre

ambas eacute que o texto do historiador parece ter sido orientado pelos fatos (realismo)

que satildeo oriundos da sua observaccedilatildeo empiacuterica que fundamenta o meacutetodo cientiacutefico

e simultaneamente marca o seu distanciamento com a tradiccedilatildeo miacutetica 175 Enquanto

168 Esse momento de crisetransiccedilatildeo segundo Vernant acontece no momento em que a Greacutecia rompe as suas ligaccedilotildees comerciais com o Oriente O ldquomarrdquo que outrora era uma fonte de expansatildeo torna-se nesse periacuteodo uma terriacutevel barreira Isolada sobre si mesma o que restou da grande civilizaccedilatildeo micecircnica retorna para uma economia agriacutecola apenas para manter a subsistecircncia do seu povo Esse eacute o mundo homeacuterico Natildeo haacute nesse momento uma divisatildeo de trabalho e nem um corpo vasto de matildeo de obra servil Com isso o grande aacutenax cai e daacute lugar a um grupo de homens conhecidos como basileus (βασιλεύς) Esse grupo passa a ser responsaacutevel por todas as funccedilotildees poliacuteticas e religiosas dentro desse novo espaccedilo social E esse eacute um dos pontos que sustenta a tese do helenista para o surgimento ou desenvolvimento do pensamento racional entre os gregos 169 ἄναξaacutenax 170 πόλιςpoacutelis 171 πειθώpeithoacute 172 ἀγώνagoacuten 173 Posteriormente veremos como essa caracteriacutestica foi importante para a constituiccedilatildeo da polis Essa experiecircncia pode ter exercido uma forte influecircncia na formaccedilatildeo da dialeacutetica a partir do surgimento da agoniacutestica Infelizmente Vernant natildeo fala sobre essa questatildeo mas podemos sugerir essa hipoacutetese a partir dos elementos que o helenista apresenta em seu livro De qualquer modo eacute notoacuterio que essa nova forma de pensar tenha se desenvolvido e se ampliado dentro de um contexto democraacutetico mas para noacutes isso natildeo eacute suficiente para comprovar que a Filosofia teria surgido com a Democracia dentro da Greacutecia pois haacute diversos autores como Plutarco (De Iside et Osiride 9) e Dioacutegenes de Laeacutercio (DL I-X) entres outros antigos que mencionam a existecircncia da Filosofia em um periacuteodo anterior no Antigo Egito Aliaacutes eacute importante ressaltar que no iniacutecio do seu livro (DL I-I) Dioacutegenes faz questatildeo de afirmar que a Filosofia tem origem estrangeira 174 ἀλήθεια 175 Esse rigor na elaboraccedilatildeo da obra eacute visto por muitos especialistas como o iniacutecio da historiografia como uma ciecircncia

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que a loacutegica poeacutetica de Hesiacuteodo176 reside na forccedila da verossimilhanccedila177

ambiguidade e imaginaccedilatildeo No interior do texto hesioacutedico178 parece natildeo haver uma

diferenciaccedilatildeo clara entre verdade e falsidade179 mas entre verdade e memoacuteria 180

Ou seja o discurso poeacutetico parece natildeo ter a pretensatildeo de ser claro e fidedigno aos

fatos como o que ocorre nos textos de Tuciacutedides mas que se coloca como verdade

por ser oriunda do mundo divino A famosa obra do historiador intitulada como ldquoA

Histoacuteria da Guerra do Peloponesordquo eacute marcada por uma ordenaccedilatildeo cronoloacutegica

entre os acontecimentos que datildeo para os leitores um panorama preciso dos fatores

que desencadearam a guerra Enquanto que o tempo poeacutetico estaacute mergulhado em

uma instacircncia que reuacutene em si em um uacutenico instante o presente o futuro181 e o

passado182 Nesse sentido a poesia em seus primoacuterdios atua como uma expressatildeo

imageacutetica183 da eternidade184 que abrange a plenitude do momento da criaccedilatildeo que

escapa da compreensatildeo dos mortais185 Ela eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo

(linguagem) e manutenccedilatildeo (memoacuteria) da proacutepria realidade que se daacute atraveacutes da

revelaccedilatildeo das musas186 Somente o poeta inspirado187 pode acessar esse domiacutenio

pois ele eacute a uacutenica conexatildeo entre o mundo divino 188 e humano

176 Posteriormente veremos que a poesia de Hesiacuteodo jaacute apresenta profundas mudanccedilas em relaccedilatildeo aos seus predecessores que foram importantes para o surgimento do trabalho desenvolvido por Tuciacutedides 177 Platatildeo (Timeu -29 c) Eacute nesse ponto que Platatildeo afirma que o discurso (λόγοςlogos) eacute uma ldquoimagemrdquo que copia o seu modelo (εἰκότας ἀνὰ λόγον τε ἐκείνων ὄνταςeikotas ana logon te ekeinocircn ontas) e nesse sentido ele reconhece a importacircncia do mito para expressatildeo do pensamento 178 Veremos posteriormente que essa comparaccedilatildeo soacute vale para a Teogonia pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta desenvolve um tipo de texto mais claro que seraacute um referencial para todos os escritores que surgiratildeo a partir do seacuteculo V 179 ἀληθεία και ψεύδουςaleacutetheia kai pseudos 180ἀληθεία και microνήmicroηaleacutetheia kai mneme Vide TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Pag 29 181 αἰώνaion Platatildeo (Timeu -37 e) 182 Hesiacuteodo (Teogonia-26-8) ldquopor cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre a cantarrdquo TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 183 Vide o primeiro capiacutetulo 184 Platatildeo (Timeu -37 d) 185 Heraacuteclito (Diels-Kranz fragmento 22 B1) 186 Vide o primeiro capiacutetulo da seguinte monografia ldquoΡεριαδο a poesia como potecircncia de criaccedilatildeo e expressatildeo da vidardquo Uerj 2008 187 Platatildeo (Fedro ndash 245 a) Nesse diaacutelogo Soacutecrates afirma que o verdadeiro poeta eacute aquele que estaacute tomado pelo deliacuterio (microανίαmania) A teacutecnica (τέχνηtechneacute) segundo o filoacutesofo natildeo tem nenhuma serventia para a verdadeira poesia Esse eacute um dos criteacuterios que Platatildeo vai utilizar para criticar e consequentemente expulsar os maus poetas da sua Repuacuteblica 188 E dizei-me agora Musas habitantes do Olimpo ndash pois sedes voacutes deusas presentes por toda parte e conheceis tudo natildeo ouvimos mais que um ruiacutedo e noacutes nada sabemos () A multidatildeo natildeo

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Atraveacutes da etimologia da palavra Poesia 189 podemos estabelecer uma

conexatildeo com essa experiecircncia criadora O verbo poieacuteo190 que forma o radical do

termo traz o sentido de fazer construir e criar Logo a criaccedilatildeo eacute a palavra chave

que daacute sentido e apresenta a accedilatildeo primordial da linguagem que tem por essecircncia

estabelecer a comunicaccedilatildeo que eacute fundamental para a nossa vida em uma sociedade

organizada191 Sem ela a nossa existecircncia natildeo seria possiacutevel Como foi dito por noacutes

anteriormente192 essa experiecircncia singular do sagrado traz consigo a capacidade de

explorar infinitas possibilidades que satildeo construiacutedas pelo pensamento que vatildeo (re)

configurando a cada instante o nosso mundo E eacute por ela que o homem vai tomando

e ampliando a sua consciecircncia de si e de todas as coisas que estatildeo ao seu redor

Nesse sentido a aleacutetheia surge na poesia de Homero e Hesiacuteodo como uma forccedila de

revelaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da proacutepria Phyacutesis193 O natildeo-esquecimento assinala uma

relaccedilatildeo direta com a funccedilatildeo mnemocircnica exercida pela poesia dentro de uma

sociedade oral Ou seja ela eacute a uacutenica responsaacutevel por manter e conservar todos os

coacutedigos eacuteticos morais poliacuteticos e religiosos que satildeo rememorados e repassados em

contos e cantos pelos aedos Portanto o significado de aleacutetheia estaacute implicado nesse

periacuteodo ao desejo coletivo de preservaccedilatildeo desses coacutedigos que formam a base

cultural e que sobrevivem atraveacutes da memoacuteria do poeta194

Mesmo com o advento e a expansatildeo do uso da escrita - que para alguns

especialistas como Eric Havelock (HAVELOCK 1982) teria afetado radicalmente

a praacutetica oral - essa atividade sagrada ainda perdurou por bastante tempo entre os

poderia eu enumeraacute-la nem denominaacute-la mesma que tivesse dez liacutenguas dez bocas e um coraccedilatildeo incansaacutevel um coraccedilatildeo de bronze em meu peito Iliacuteada de Homero apud Detienne 1988 p 15 189 ποίησιςpoiesis No grego esse termo carrega os seguintes significados fabricaccedilatildeo confecccedilatildeo e construccedilatildeo 190 ποιέω 191 Eacute o que diz Aristoacuteteles em seu livro (Pol- 1252 a e 1252 b 13-4) E eacute por causa dessa capacidade natural de comunicaccedilatildeo que o homem eacute considerado pelo filoacutesofo como um animal poliacutetico (άνθρωπος φύσει πολιτικόν ζώον anthropos physei politikon zoon) 192 Vide o primeiro capiacutetulo 193 Eacute importante ressaltar que apenas o livro ldquoTeogoniardquo traz essas caracteriacutesticas mais tradicionais da poesia arcaica pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo encontramos um trabalho mais elaborado que se distancia totalmente da tradiccedilatildeo homeacuterica 194 Diferentemente da modernidade a poesia desempenhava um papel funcional e didaacutetico entre os gregos

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gregos195 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade196

Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano

Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia

no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar197 as

singularidades existentes entre Esparta e outras cidades198 O mais interessante eacute

que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros

e sucessores do poeta Creoacutefilo199 alguns textos contendo diferentes partes das obras

poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses

textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer200 que ele ordenou que essas

obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de

195 No periacuteodo poacutes-micecircnico a escrita ressurge com a funccedilatildeo de publicidade e era compartilhada de forma coletiva O seu uso natildeo seraacute mais restrito a um grupo de escribas que tinha por obrigaccedilatildeo contabilizar e controlar toda a produccedilatildeo de alimentos que eram fornecidas pelos agricultores sob o controle do anaacutex Nesse novo contexto por volta do seacuteculo IX aC ela reaparece como um instrumento de divulgaccedilatildeo das leis Logo o seu uso foi compartilhando de modo coletivo entre os cidadatildeos para o conhecimento e cumprimento das decisotildees que eram tomadas por seus governantes E a partir desse contexto eacute bem provaacutevel que os gregos possam ter evoluiacutedo intelectualmente Aliaacutes Eric Havelock desenvolve a sua tese de que a grande Literatura Grega se expandiu por causa desse novo uso da escrita em cima dessa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 196 Vidas Paralelas (em grego Βίοι Παράλληλοι Bioi paralleloi) eacute uma reuniatildeo de vaacuterias biografias de homens ilustres da Greacutecia e da Roma Antiga que foram escritas pelo historiador e bioacutegrafo Plutarco A obra tal como a conhecemos hoje em dia tem 23 pares de biografias Cada livro possui uma biografia de um homem ilustre grego e outro romano O primeiro par conhecido Epaminondas - Cipiatildeo o Africano infelizmente esse texto foi perdido Haacute uma ediccedilatildeo rara brasileira que foi baseada na traduccedilatildeo de Jacques Amyot (importante tradutor francecircs do seacuteculo XVI que foi grande amigo do filoacutesofo Montaigne) Para mais informaccedilotildees vide Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 197 ldquo assim como um meacutedico que compara corpos saudaacuteveis com corpos doentes ele poderia estudar as diferenccedilas entre seus modos de vida e seus respectivos governosrdquo (Plutarch Lyc ndash 43) 198 Essa praacutetica parece ter sido algo muito comum na educaccedilatildeo de vaacuterias personalidades na antiguidade Importantes figuras como Tales Soacutelon Pitaacutegoras Empeacutedocles Platatildeo entre diversos outros tinham por haacutebito viajar no intuito de estudar outras culturas Essa eacute mais uma prova do intercacircmbio da cultura helecircnica com outros povos A formaccedilatildeo intelectual dos antigos era tambeacutem baseada nessas viagens que possibilitaram uma ampla abertura para o crescimento cultural dos gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro

ROMILLY Jacqueline de ldquoPourquoi la Gregravecerdquo Paris Eacuted de Fallois 1992 199 Creophylus of ChiosSamos ou Ios segundo a doxografia antiga teria sido um importante poeta eacutepico grego que foi amigo de Homero e responsaacutevel por difundir as suas obras para posteridade (Plat Rep 600 c Plut Lyc 4 Heracleid Pont Poet Fragm 2 Iamblich Vit Pythag ii 9 Strab xiv) O poema eacutepico Oichalia ou Oichalias halosis o que eacute atribuiacutedo a ele segundo a tradiccedilatildeo teria sido recebido de Homero como um presente ou como um dote junto com sua esposa (Vide Caliacutemaco Epigrama 6 Proclus ap Hephaest P466 Ed Giasford Schol ad Plat p 421 ed Bakker Suidas sv) 200 No texto grego a expressatildeo (πρὸς ἡδονὴν καὶ ἀκρασίαν proacutes edonen kai akrasian ao prazer e agrave licenccedila) apresenta dois termos distintos (prazer e licenccedila ndash para o segundo muitos tradutores escolheram essa palavra para passar o sentido de akrasia - natildeo ter comando sobre si mesmo ndash que estaacute contido na frase) com o intuito de destacar o efeito de ecircxtase sentido por Licurgo ao ler os textos homeacutericos

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preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco

ainda ressalta que nessa eacutepoca201 os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar

escassos E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o

legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo

entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica

como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica202 E por uacuteltimo eacute importante

ressaltar que essa memoacuteria que foi preservada trazia consigo um dos sentidos do

termo aleacutetheia (natildeo esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os

seacuteculos VIII e V

Todavia esse uacuteltimo testemunho de Plutarco abre para outro grande problema

para noacutes por que seraacute que a obra de Homero estava desaparecendo na eacutepoca de

Licurgo Quais foram os fatores que desencadearam esse processo Haacute diversas

hipoacuteteses que tentam responder essa questatildeo Uma delas eacute apresentada por

Havelock que defende que o ressurgimento da escrita na sociedade grega teria

produzido um efeito radical na antiga praacutetica oral que era a base pedagoacutegica da

cultura grega203 Se de fato isso ocorreu eacute bem provaacutevel que esse foi um processo

progressivo e de simbiose pois como apresentamos anteriormente o proacuteprio

Plutarco nos lembra de que a escrita foi uma ferramenta uacutetil para que Licurgo

pudesse conservar e reunir todas as partes da obra homeacuterica Logo essas

transformaccedilotildees podem ter sido motivadas por outros fatores como a crise religiosa

-sobretudo aquela que era sustentada pela teologia homeacuterica- social204 poliacutetica e a

201 Os relatos sobre essa questatildeo cronoloacutegica satildeo imprecisos O proacuteprio Plutarco (Ac 46 ndash 120 d C) no iniacutecio do seu texto sobre a vida de Licurgo (Plu Lyc13) ressalta que havia diversos relatos contraditoacuterios e o seu trabalho foi reuni-los com o propoacutesito de manter a memoacuteria do ilustre espartano O que podemos supor das informaccedilotildees que foram obtidas eacute que Licurgo pode ter vivido entre os seacuteculos VIII e V O aspecto mais importante na declaraccedilatildeo de Plutarco eacute a constataccedilatildeo do progressivo desaparecimento das obras de Homero nesse periacuteodo Haacute diversas teses que tentam explicar esse fato atraveacutes da transiccedilatildeo entre a oralidade e a escrita (HAVELOCK 1982) De qualquer forma essa eacute uma informaccedilatildeo valiosa para os helenistas que estudam o alcance da obra de Homero e a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita na antiguidade 202 Vide Platatildeo (Rep 599 d) 203 Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 204 Como veremos posteriormente eacute bem provaacutevel que tivesse ocorrido uma crise social entre a classe aristocraacutetica e a dos trabalhadores (artesatildeos e campesinos) O aparecimento do poeta Hesiacuteodo apresenta vaacuterios indiacutecios para essa possiacutevel crise E para essa direccedilatildeo interpretativa encontramos o apoio dos helenistas Werner Jaeger e Jean-Pierre Vernant O historiador Moses Finley afirma que com o aparecimento da polis a populaccedilatildeo agraacuteria natildeo vivia em uma propriedade isolada mas ela tambeacutem fazia parte do espaccedilo da polis De qualquer modo isso talvez tenha sido mais um fator para a instauraccedilatildeo da crise social Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989

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disseminaccedilatildeo do uso da escrita entre as classes mais baixas Aliaacutes essa uacuteltima

hipoacutetese pode ser corroborada com o exemplo do proacuteprio Hesiacuteodo que se apresenta

como um poeta205 de origem modesta que cuidava do seu rebanho na encosta do

monte Heacutelicon206 Atraveacutes de uma de suas obras mais importantes intitulada como

Trabalho e os dias 207 podemos constatar que o foco da sua poesia natildeo eacute o mesmo

que o do seu predecessor Homero Enquanto que esse uacuteltimo estava empenhado em

realccedilar as caracteriacutesticas do nobre aristocraacutetico como um modelo para o homem

grego atraveacutes da imagem do heroacutei (JAEGER 1936) que busca a sua imortalidade

atraveacutes de uma morte gloriosa208 Hesiacuteodo estaacute preocupado em mostrar o valor do

trabalho como um instrumento para formaccedilatildeo humana Essa nova proposta

pedagoacutegica traz consigo grandes mudanccedilas dentro da estrutura social dos gregos

que podem ser localizadas em vaacuterios textos da Literatura grega O comedioacutegrafo

Aristoacutefanes por exemplo em uma de suas peccedilas209 apresenta para o seu puacuteblico

uma breve anaacutelise sobre o conteuacutedo que era ensinado por quatros importantes poetas

da Greacutecia210 e entre eles podemos encontrar esse traccedilo que marca a poesia desse

famoso campesino

205 Para esse ponto irei vamos nos basear em uma comunicaccedilatildeo que foi apresentada em 2011 na Semana dos Alunos de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Puc intitulada ldquoO canto de resistecircncia do Rouxinol sob as garras afiadas do Falcatildeo na idade do Ferro A poesia de Hesiacuteodo e seu desdobramento eacutetico-poliacutetico na Greacuteciardquo Nela eacute possiacutevel notar a diferenccedila entre a poesia homeacuterica e hesioacutedica Enquanto que na poesia de Homero vemos a elevaccedilatildeo de fundamentos de um ideal da classe aristocraacutetica onde seus versos formam a base para uma cultura que contempla a coragem e a determinaccedilatildeo entre os mais fortes com o surgimento de Hesiacuteodo esse paradigma se inverte a poesia se torna uma voz dos menos favorecidos e se faz presente dentro da polis como um importante canal de comunicaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo difundindo assim os preceitos dos camponeses para todos os gregos A partir dessa constataccedilatildeo foi traccedilado um paralelo entre os dois poetas e a suas respectivas influecircncias no campo eacutetico-social na Greacutecia antiga 206 Monte Heacutelicon (Ἑλικών ou Ηλικών transl Helikon [monte] tortuoso de ηλιξ heacutelix espiral em grego moderno Ελικώνας Elikoacutenas) eacute uma montanha na regiatildeo de Teacutespias na Beoacutecia Greacutecia que foi muito cultuada na mitologia grega Com uma altitude de 1749 metros acima do niacutevel do mar localiza-se proacuteximo ao Golfo de Corinto Esse eacute o lugar que Hesiacuteodo teria recebido das musas o canto sobre a origem dos deuses Aliaacutes o poeta Caliacutemaco conta uma histoacuteria similar a de Hesiacuteodo e situa no Heacutelicon o episoacutedio no qual Tireacutesias encontra Atena se banhando e acaba ficando cego poreacutem recebe o dom da profecia Vide hino V de Caliacutemaco em The Greek Anthology With an English Translation by W R Paton In five volumes London William Heinemann New York G P Putnams Sons MCMXVI The Loeb Classical Library 1916 207 Posteriormente veremos que esse trabalho foi um ldquodivisor de aacuteguasrdquo dentro da Literatura grega antiga 208 Vide o exemplo do heroacutei Aquiles na Iliacuteada (Canto XXII ndash 304-5) de Homero 209 Aristoacutefanes (As ratildes 1030-1036) 210 Essa passagem de Aristoacutefanes eacute de extrema importacircncia para os estudiosos da Paideia antiga pois a impressatildeo que temos eacute que no periacuteodo do comedioacutegrafo ndash no seacuteculo IV a C- cada poeta era responsaacutevel por um conteuacutedo especiacutefico dentro da educaccedilatildeo grega Esse programa pedagoacutegico estava divido nos seguintes pontos agricultura guerra religiatildeo sabedoria oracular orientaccedilatildeo moral e o conhecimento da medicina Haacute ainda mais duas outras hipoacuteteses que natildeo podem ser descartadas 1) cada um desses programas poderia estar a serviccedilo apenas da educaccedilatildeo de seus

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[1030] Eacutesquilo211 - Ora aiacute tens o tipo de assuntos com que se devem preocupar os poetas Senatildeo observa bem como desde

o princiacutepio os verdadeiramente bons se mostraram uacuteteis Orfeu ensinou-nos a celebrar os misteacuterios e a evitarmos os sacrifiacutecios Museu a cura das doenccedilas e os oraacuteculos Hesiacuteodo o trabalho da terra as estaccedilotildees das colheitas e as tarefas agriacutecolas e o divino Homero onde foi ele buscar fama e gloacuteria senatildeo agraves coisas uacuteteis que ensinou estrateacutegia coacutedigo militar equipamentos dos guerreiros212

Nesse sentido encontramos uma mudanccedila de paradigma que se opera no

interior da sociedade grega que reflete uma crise na estrutura social helecircnica A sua

poesia ruacutestica de origem campesina exprime o heroiacutesmo de uma classe social mais

humilde que trava uma luta diaacuteria e silenciosa com a terra dura que abastece todos

os nobres que vivem no conforto dos seus palaacutecios Ao olharmos a topologia da

Greacutecia com mais atenccedilatildeo encontramos um terreno muito acidentado com vales

estreitos que satildeo entrecortados por montanhas Esses fatores dificultavam o

cultivo213 e a sobrevivecircncia de uma cultura que era baseada atraveacutes da agricultura

de subsistecircncia e do pastoreio O historiador Heroacutedoto214 relembra esse fato em um

diaacutelogo entre o rei persa Xerxes e o grego Demarato que narra entre outras coisas

sobre a pobreza e as dificuldades enfrentadas pelo povo grego

respectivos membros 2) numa cultura extremamente agoniacutestica eacute bem provaacutevel que esses poetas disputassem entre si o cargo de grande pedagogo da Greacutecia E talvez seja por isso que o comedioacutegrafo apresente todos esses grupos em sua peccedila pois eles formavam a sua plateia como um todo De qualquer modo natildeo temos provas suficientes para validar essa tese apenas algumas pistas Vale ressaltar que a poesia eacute vista no debate entre Eacutesquilo e Euriacutepides como algo utilitaacuterio e didaacutetico Isso eacute algo irrefutaacutevel dentro desse contexto histoacuterico E mais o seu valor precisa ser avaliado a partir desse criteacuterio que visa o aperfeiccediloamento do homem grego Na Repuacuteblica Platatildeo vai utilizar esse mesmo crivo para estabelecer os pilares da sua polis ideal Logo seraacute necessaacuterio o filoacutesofo fazer uma anaacutelise minuciosa de toda a poesia do seu tempo para estabelecer uma nova proposta pedagoacutegica Aliaacutes dentro da peccedila de Aristoacutefanes esse eacute o leitmotiv que conduz a trama no submundo O diaacutelogo entre os dois poetas traacutegicos Esquilo e Euriacutepides eacute observado pelo deus Dioniso que eacute a divindade que representa o teatro Ele eacute o juiz da ldquodisputardquo - agon - entre esses dois importantes poetas traacutegicos Posteriormente voltaremos a falar sobre esse caraacuteter agoniacutestico dentro da educaccedilatildeo grega 211 Eacutesquilo estaacute no inferno junto com Euriacutepides e o deus Dioniso A cataacutebase - do grego κατὰ baixo βαίνω ir - corresponde a qualquer forma de descida no grego Na mitologia o termo eacute usado para se referir agrave descida ao inferno o mundo dos mortos esse eacute o cenaacuterio utilizado por Aristoacutefanes pois na mitologia antiga esse era o lugar onde vaacuterios personagens buscavam conhecimento Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do interessante livro do professor Eudoro de Sousa Vide SOUSA E Cataacutebases estudos sobre viagens aos infernos na Antiguidade Satildeo Paulo Annablume Claacutessica 2013 212 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e comentaacuterio de Maria de Faacutetima Silva ldquoSeacuterie Autores Gregos e Latinosrdquo editora Annablume 2014 213 Vide Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso livro I -II) 214 Heroacutedoto (Hist VII-CII)

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[CII] ldquoPois bem senhor mdash tornou Demarato mdash jaacute que assim o desejais dir-vos-ei a verdade e natildeo duvideis jamais daqui por diante de quem usar da mesma linguagem Os Gregos tecircm sido criados na escola da pobreza e a virtude215 a ela se junta filha da temperanccedila e das leis estaacuteveis dando-nos armas contra a pobreza e a tirania Os Gregos que habitam as regiotildees vizinhas aos Doacuterios mdash para citar apenas esses como exemplo mdash sempre se houveram com dignidade bravura e nobreza drsquoalma sendo por isso dignos de todos os louvores Ouso afirmar senhor que eles natildeo soacute natildeo ouviratildeo as vossas propostas que tecircm por fim submeter a Greacutecia como estaratildeo decididos a ir ao vosso encontro e oferecer-vos batalha mesmo que os outros povos gregos disso se abstenham Quanto ao seu nuacutemero senhor qualquer que ele seja natildeo influiraacute na sua decisatildeo de resistir Tivessem eles um exeacutercito de apenas mil homens e nem por isso deixariam de oferecer-vos combaterdquo

Esse relato apresenta para noacutes um panorama geral da vida do homem do

campo que encontramos na descriccedilatildeo feita por Hesiacuteodo Atraveacutes do texto do poeta

podemos localizar o ponto exato de distanciamento dos ideais aristocraacuteticos que satildeo

defendidos por Homero e o momento em que a poesia passa a ser um veiacuteculo de

contestaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de uma classe de trabalhadores que vive distante do centro 216

Eacute importante ressaltar que essas inovaccedilotildees trazidas por Hesiacuteodo foram feitas

a partir da estrutura tradicional da poesia homeacuterica que era utilizada por diversos

rapsodos como Iacuteon217 O alcance e a aceitaccedilatildeo do seu trabalho dependiam

fundamentalmente do pleno domiacutenio das regras de composiccedilatildeo oral que passam

pelo conhecimento da mitologia das teacutecnicas de construccedilatildeo mnemocircnica e dos

esquemas riacutetmicos como os hexacircmetros dactiacutelicos218 que formam a estrutura da

eacutepica antiga Sem o conhecimento dessas teacutecnicas dificilmente o poeta poderia

obter ecircxito em seu objetivo Para operar a desconstruccedilatildeo ele precisa partir do

215 Excelecircncia (ἀρετή arete) 216 Estamos partindo do pressuposto que nesse periacuteodo jaacute houvesse uma espeacutecie de espaccedilo (preacute-polis) ldquocentralizadordquo que foi passando por diversas modificaccedilotildees ateacute o momento do surgimento da polis Eacute importante ressaltar que natildeo encontramos o termo polis nos escritos de Homero e Hesiacuteodo Todavia isso natildeo nos fornece o direito de afirmar que nesse periacuteodo natildeo existisse uma distinccedilatildeo espacial entre os habitantes que viviam nos campos e aqueles que habitavam em um espaccedilo ldquocomumrdquo perto dos templos religiosos 217 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 218 Hexacircmetro datiacutelico (do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida(s)) ou hexacircmetro heroacuteico eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica tanto grega quanto latina como por exemplo a Iliacuteada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgiacutelio Eacute a mais importante forma meacutetrica usada na poesia eacutepica da Greacutecia Antiga

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interior da tradiccedilatildeo utilizando as mesmas armas do seu oponente219 de modo

metoacutedico Com isso o poeta vai inserindo as suas novas alteraccedilotildees de forma e

conteuacutedo no modelo tradicional poeacutetico para afirmar o seu distanciamento da obra

homeacuterica220 e demarcar a sua posiccedilatildeo como um pretendente ao cargo de educador221

da Greacutecia222 Logo essas mudanccedilas natildeo ocorreram de modo radical mas de forma

sutil e progressiva223 Essa competiccedilatildeo acirrada entre esses dois poetas apresenta

para noacutes outra caracteriacutestica importante que marcou de modo determinante esse

periacuteodo de transiccedilatildeocrise na cultura helecircnica o espiacuterito agonistico

Os gregos descobriram uma forma genuiacutena para superar e elevar ao maacuteximo

os limites da nossa passageira e fraacutegil existecircncia E isso ocorre atraveacutes da poesia

que tem o poder de transformar toda a negatividade e o sofrimento em belas

imagens apoliacuteneas que passam a serem utilizadas como um modelo eacutetico atraveacutes da

arte que atua como um dispositivo necessaacuterio para orientar a vida humana Segundo

Nietzsche (NIETZSCHE 1870) os helenos possuiacuteam uma capacidade singular de

sentir o sofrimento e de saber reconhecer 224 o quatildeo miseraacutevel eacute a vida dos mortais

E com essa triste constataccedilatildeo poderiam facilmente seguir o caminho do pessimismo

e da negaccedilatildeo da vida como outrora seguiu o seu mestre Arthur Schopenhauer Mas

eacute exatamente aiacute que o povo heleno demonstra a sua maior grandeza ao converter

toda a negatividade do mundo em uma potecircncia criadora A arte e a religiatildeo

surgem para os gregos com a funccedilatildeo de tornar a nossa existecircncia suportaacutevel A

poesia de Homero e Hesiacuteodo atua como filtros que decantam a tristeza e a dor obtida

por experiecircncias traacutegicas do passado em imagens profundamente belas e uacuteteis A

religiatildeo apoliacutenea por exemplo eacute um modo eficaz de divinizar todas essas forccedilas

219 Utilizando os mitos e a crenccedila do povo campesino como meio de expressatildeo para alcanccedilar a adesatildeo dos seus pares 220 Algo similar ocorreu com o grande poeta Dante Alighieri na composiccedilatildeo da ldquoDivina comeacutediardquo pois ele natildeo quis escrever a sua obra em latim ndash que era liacutengua dos nobres e intelectuais da sua eacutepoca - mas utilizando o italiano vulgar E com isso Dante e posteriormente Petrarca ao se distanciarem da tradiccedilatildeo culta que vigorava naquele periacuteodo ajudaram a construir os fundamentos da liacutengua italiana atual Curiosamente esse mesmo fato ocorre na poesia de Hesiacuteodo diante da tradiccedilatildeo da sua eacutepoca Pois como veremos a seguir nesse presente trabalho ele foi responsaacutevel por diversas transformaccedilotildees no interior da cultura helecircnica 221 Vide Platatildeo (Rep 607 a) e tambeacutem DK (Xenoacutefanes - frag 10) 222 Vide o primeiro capiacutetulo 223 Vide os seguintes livros ldquoTeogoniardquo e tambeacutem ldquoTrabalhos e os diasrdquo Haacute diversas diferenccedilas que foram registradas por vaacuterios especialistas entre essas duas obras Para noacutes isso demonstra o distanciamento de Hesiacuteodo em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica que estaacute em plena consonacircncia com as mudanccedilas que ocorreram nesse periacuteodo de transiccedilatildeo e crise na Greacutecia 224 Vide o primeiro capiacutetulo

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225 que estatildeo acima do nosso controle em arqueacutetipos que refletem as qualidades e

defeitos inerentes agrave condiccedilatildeo humana Em alguns fragmentos dos filoacutesofos preacute-

socraacuteticos eacute possiacutevel encontrarmos ecos dessa experiecircncia agoniacutestica que foi

profundamente importante para o nascimento da Filosofia e do Teatro Heraacuteclito226

por exemplo foi um dos primeiros filoacutesofos a ldquoreconhecerrdquo a guerra como um

princiacutepio regulador de todas as coisas

ldquoo combate eacute de todas as coisas pai de todas rei e uns revelou deuses outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo227

E ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes nasce a mais bela

harmonia e tudo segundo a discoacuterdiardquo 228

Essa identificaccedilatildeo com um tipo de experiecircncia que afirma a oposiccedilatildeo entre

duas229 ou mais ldquoforccedilasrdquo como algo afirmativo eacute uma qualidade que parece ter

surgido em uma eacutepoca bem remota no pensamento dos gregos pois em Homero e

Hesiacuteodo eacute possiacutevel encontrarmos resquiacutecios dessa ideia230 Na Iliacuteada por exemplo

podemos notar que os cantos eacutepicos exaltam as accedilotildees dos guerreiros que buscam a

imortalidade atraveacutes de uma morte gloriosa Nesse contexto a morte e o sofrimento

ganham caracteriacutesticas positivas que insuflam o desejo de superaccedilatildeo e nobreza na

alma helecircnica Para Homero o homem adquire a sua dignidade e respeito quando

225 Vide o primeiro capiacutetulo 226 Posteriormente veremos como Heraacuteclito tambeacutem foi um grande criacutetico da tradiccedilatildeo homeacuterica Com isso encontramos mais outro exemplo desse caraacuteter agoniacutestico que marcou o pensamento antigo De qualquer modo eacute necessaacuterio ressaltar que essa ideia segundo Nietzsche jaacute poderia ser encontrada na poesia de Homero 227 DK (Heraacuteclito-Frag IX 9) 228 ἔριςeris Aristoacuteteles (Eacutetica Nic VIII 2 1155 b 4) A deusa Eacuteris eacute conhecida na mitologia como a deusa da discoacuterdia Em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo e na ldquoTeogoniardquo o poeta Hesiacuteodo fala da sua importacircncia e da sua origem Esse eacute outro ponto que ele segue a tradiccedilatildeo homeacuterica pois eacute nele que a deusa aparece pela primeira vez citada em um texto escrito 229 Essa experiecircncia agoniacutestica eacute tatildeo marcante que podemos encontraacute-la como uma ferramenta linguiacutestica que foi utilizada na retoacuterica claacutessica com o nome de Oxiacutemoro (do grego ὀξύmicroωρον composto de ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) Ela eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo ou locuccedilatildeo palavras que exprimem conceitos contraacuterios Vide os fragmentos de Heraacuteclito 230 Eacute importante ressaltar que o primeiro a trazer essa ideia a partir das consideraccedilotildees de Nietzsche foi Homero Em seguida veremos que Hesiacuteodo parte dessa tradiccedilatildeo mas com um sentido bem distinto do seu antecessor

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atua com extrema bravura durante os combates 231 Nesse sentido o poeta tem

como dever escrever os seus atos que serviratildeo de modelo para a educaccedilatildeo militar

dos jovens nobres Eacute atraveacutes dessa experiecircncia que o homem pode se aproximar do

Olimpo tornando-se um heroacutei imortal Dentro desse novo contexto o termo

disputa232 passa a pautar todas as experiecircncias e atividades da cultura grega Como

vimos anteriormente a poesia deu um caraacuteter de positividade a uma experiecircncia de

horror que eles conheciam profundamente atraveacutes de inuacutemeras guerras travadas na

antiguidade

ldquoO Terror e o Temor Acorriam (a Discoacuterdia sanha que natildeo cessa irmatilde soacutecia de Ares matador-de-gente desponta diminuta e cresce e entesta com o ceacuteu e calca a terra dor e furor pelas tropas lanccedilando) Quando guerreiros enfim se datildeo de encontro frente agrave frente e os broqueis se entre batem e se entre chocam o vigor das lanccedilas dos homens todo-bronze encouraccedilados contra os escudos bojudos como umbigos ergue-se um tumulto de gritos de dor e de triunfo dos que vatildeo trucidando e dos que estatildeo morrendo e o sangue jorra sobre a terra e a inundardquo233

O impulso de destruiccedilatildeo eacute agora domesticado e desconstruiacutedo em prol da

afirmaccedilatildeo da existecircncia que tem a competiccedilatildeo como o criteacuterio que estimula a

superaccedilatildeo de si a partir do dialogo estabelecido com os outros 234 Em todas as

expressotildees do pensamento antigo encontramos reflexos dessa experiecircncia

agoniacutestica que marca de modo determinante a Educaccedilatildeo (παιδείαpaideia) e o

surgimento da polis Para os gregos esse modelo pedagoacutegico era necessaacuterio para

estimular o aperfeiccediloamento em todos os niacuteveis da sociedade235

Na Paideacuteia Jaeger ressalta que eacute possiacutevel encontramos os rastros de diversos

dialetos antigos nos poemas homeacutericos que apontam que esse patrimocircnio foi

231 Nos proacuteximos paraacutegrafos veremos como essa palavra foi importante para estimular a evoluccedilatildeo do homem dentro da cultura grega 232 ἀγώνaacutegon 233 Homero (Iliacuteada - IV 440-443) Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 234 A alteridade que abrange natildeo apenas os indiviacuteduos mas a proacutepria phyacutesis 235 Os jogos oliacutempicos eacute um exemplo dessa experiecircncia agoniacutestica Os gregos inventaram os agones que eram competiccedilotildees de cunho religioso como o atletismo teatro muacutesica poesia e pintura com o intuito de cultuarem os deuses e os heroacuteis miacuteticos A poesia tambeacutem tinha a responsabilidade de manter essa experiecircncia viva dentro da memoacuteria coletiva helecircnica Essa foi a forma encontrada para superar esse sentimento de relatividade que estava imanente ao processo de transformaccedilatildeo e decadecircncia do tempo (vide Heraacuteclito e Protaacutegoras) Com isso eles conseguiram a imortalidade superando com intensa beleza os limites de nossa existecircncia fraacutegil e mortal

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constituiacutedo com a ajuda de vaacuterios povos Essa contribuiccedilatildeo coletiva na composiccedilatildeo

desses poemas orais pode ter sido uma causa importante para estabelecer uma

unificaccedilatildeo pelo idioma entre essas polis que foram surgindo em vaacuterios pontos do

Mediterracircneo e da Europa236 De qualquer modo eacute praticamente impossiacutevel

sabermos com precisatildeo como isso ocorreu de fato Os escassos relatos que temos

natildeo podem nos passar muitas informaccedilotildees sobre as suas origens Alguns

testemunhos fornecidos por Heroacutedoto Tuciacutedides Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e

Plutarco nos datildeo algumas pistas de como eram constituiacutedas essas cidades-

estados237 Dentro desses relatos conseguimos obter algumas informaccedilotildees preciosas

de cidades como Esparta por exemplo Aliaacutes depois de Atenas ela foi uma das

mais importantes polis do mundo antigo Segundo o depoimento de Xenofonte238

os lacedemocircnios foram homens extremamente virtuosos ateacute o momento da sua ruiacutena

que foi causada pela corrupccedilatildeo dos seus membros239 A sua enorme admiraccedilatildeo pelo

regime poliacutetico espartano demonstra para noacutes uma insatisfaccedilatildeo latente com os

rumos que democracia estava tomando em Atenas Esse descontentamento aliaacutes

era compartilhado por filoacutesofos como Platatildeo e Soacutecrates240 O jornalista americano

236 Pausacircnias (Descda Greacutecia -1041) apresenta alguns pontos determinantes para a constituiccedilatildeo de uma polis condiccedilotildees sociais culturais e poliacuteticas Referente agrave sua arquitetura ela deve conter praccedilas templos e teatro Enquanto que Aristoacuteteles (Pol1330 a34) dizia que a constituiccedilatildeo da polis depende de quatro pontos fundamentais sauacutede defesa beleza e adequaccedilatildeo agrave atividade poliacutetica Segundo Finley o termo polis era utilizado pelos antigos com dois sentidos O primeiro para a cidade em sentido estrito e o segundo no sentido poliacutetico Para Platatildeo e Aristoacuteteles a polis surge devido agrave incapacidade das duas formas de associaccedilatildeo humana (famiacutelia e o agrupamento de parentesco maior) Com o objetivo de alcanccedilar a plenitude existencial de seus cidadatildeos eles constroem um espaccedilo autossuficiente e autaacuterquico O historiador ainda acrescenta que mesmo os agricultores que viviam distante da cidade (centro urbano) fazia parte dessa unidade que forma a polis Todavia isso natildeo isenta o fato de ter havido ndash como apresentamos anteriormente- uma luta de classes - entre ricos e pobres ndash no interior da polis As discussotildees ocorriam em torno da propriedade e posse das terras entre aqueles que eram fazendeiros-fidalgos (que viviam no conforto da cidade) e os lavradores que sobreviviam a duras penas na regiatildeo rural Ou seja entre homens que viviam no oacutecio e outros que trabalhavam para sustentar essa mordomia Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989 237 Dioacutegenes de Laeacutercio (DL V-27) menciona uma obra de Aristoacuteteles conhecida na antiguidade pelo seguinte nome ldquoConstituiccedilotildees de 158 Cidades em geral e em particular das democraacuteticas oligaacuterquicas aristocraacuteticas e tiracircnicasrdquo Atraveacutes desse tiacutetulo podemos tirar duas informaccedilotildees valiosiacutessimas para o estudo dessas cidades-estados A primeira eacute a informaccedilatildeo da existecircncia de 158 polis ateacute o periacuteodo do filoacutesofo A segunda eacute o fato de haver pelo menos quatro formas de governo que eram aplicadas nessas cidades Essa obra poderia fazer parte dos estudos do filoacutesofo sobre a poliacutetica que incluem tambeacutem o livro da Constituiccedilatildeo dos Atenienses que vamos analisar em seguida 238 Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios I-1) em Xeacutenophon Oeuvres complegravetes trad Pierre Chambry Garnier-Flammarion 3 vol 1967 239 Ibidem Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios XIV-3 ) 240 Na Repuacuteblica sobretudo no livro VIII Platatildeo faz diversas criacuteticas ao regime democraacutetico ateniense

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IF Stone (STONE 1988) em seu famoso livro sobre o julgamento de Soacutecrates

investigou esse ponto que foi determinante para o processo que foi levantado contra

o filoacutesofo Nesse momento em Atenas havia ainda uma divergecircncia poliacutetica

antiga241 entre a definiccedilatildeo de cidadania entre os gregos O problema girava em torno

das seguintes questotildees a cidadania deveria ser restrita como na oligarquia ou

aberta como na democracia A polis deve ser governada pela minoria ou maioria

Pelos ricos ou pelos pobres Essas questotildees geravam intensos debates entre

diversos pensadores na antiguidade Podemos ter uma ideia dessa tensatildeo242 nas

paacuteginas dos textos escritos por Aristoacuteteles na Poliacutetica e na Constituiccedilatildeo dos

atenienses Nas obras de Platatildeo e Xenofonte243 eacute possiacutevel constatar que Soacutecrates

era um grande criacutetico dos dois modelos apresentados por seus conterracircneos pois

para ele a cidade natildeo deve ser governada pela maioria ou minoria mas por aquele

que sabe 244 E essa postura criacutetica e o seu envolvimento pessoal com figuras

polecircmicas como Alcibiacuteades e Criacutetias245 foram responsaacuteveis por influenciar a

decisatildeo de vaacuterios atenienses no desfecho do julgamento que culminou na sua

sentenccedila de morte Para muitos helenistas essa histoacuteria apresentou para o mundo

uma grande ironia que teve um desfecho traacutegico pois o projeto pedagoacutegico

socraacutetico que era fundamentado na anaacutelise de todas as opiniotildees (doxa) e que visava

o aperfeiccediloamento dos cidadatildeos fora o que mais causava incocircmodo entre os

atenienses naquele momento Muitos homens e jovens estavam completamente

cegos e surdos por causa do efeito ilusoacuterio provocado pela persuasatildeo sofiacutestica246 A

morte do filoacutesofo eacute um retrato do desequiliacutebrio que se alastrava dentro do sistema

poliacutetico ateniense

241 Vide Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses livro II) 242 Como foi dito por noacutes no primeiro capiacutetulo desse presente trabalho essa tensatildeo social era um fenocircmeno que foi apontado por Hesiacuteodo e posteriormente por Aristoacuteteles 243 Platatildeo (Repuacuteblica e Poliacutetico) e Xenofonte (Memoraacuteveis e a constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios) 244 Vide Platatildeo (Rep V - 473 d) 245 O poliacutetico Alcibiacuteades foi acusado de traiccedilatildeo e o segundo foi responsaacutevel pelo golpe contra Atenas conhecido como a tirania dos trintas tiranos Para mais informaccedilotildees vide Xenofonte (Memoraacuteveis - 111 e 1212-16) Platatildeo (Apol - 33a-b) Dioacutegenes Laeacutercio (DL - 240) 246 Some-se a isso a imagem negativa pintada por Aristoacutefanes que foi um nobre comedioacutegrafo que prezava pela tradiccedilatildeo e rechaccedilava qualquer novidade no acircmbito da Educaccedilatildeo e da Cultura Em uma das suas peccedilas mais famosas conhecida desde a antiguidade sob o nome de ldquoAs nuvensrdquo o escritor mira a sua criacutetica corrosiva em direccedilatildeo da sofiacutestica Curiosamente ele elenca Soacutecrates como um daqueles homens responsaacuteveis pela decadecircncia ateniense Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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32 Entre a oralidade e a escrita

Nesse periacuteodo a praacutetica oral comeccedila a disputar espaccedilo com as inuacutemeras

possibilidades oferecidas por esse importante instrumento de comunicaccedilatildeo Antes

da reintroduccedilatildeo da escrita a oralidade era o uacutenico suporte utilizado para que a

realeza micecircnica pudesse organizar e controlar suas financcedilas (VERNANT 1962)

Para Milman Parry (PARRY 1971) as obras de Homero foram construiacutedas a partir

de uma composiccedilatildeo oral extremamente sofisticada Caso ele esteja certo podemos

supor que a poesia homeacuterica pode ter sido fruto de um tempo onde esse sistema de

comunicaccedilatildeo ainda era desconhecido ou pouco utilizado como suporte mnemocircnico

Todavia eacute notoacuterio que posteriormente a escrita comeccedila a atuar de modo mais amplo

dentro da sociedade grega E graccedilas a ela eacute que hoje podemos ter acesso a diversas

obras do passado Como vimos anteriormente247 Licurgo jaacute aparece em um periacuteodo

no qual a escrita estava sendo utilizada com a funccedilatildeo de salvar as composiccedilotildees orais

que estavam desaparecendo na antiguidade248 Eacute a partir desses indiacutecios eacute que

podemos rastrear o processo revolucionaacuterio que esse instrumento propiciou aos

gregos

Entre os seacuteculos VII e V eacute possiacutevel encontrar os primeiros documentos

escritos249 de cunho privado poliacutetico e religioso A Literatura escrita comeccedila a se

difundir consideravelmente em todas as partes da Greacutecia Em seu livro

Xenofonte250 relata um importante incidente que demonstra para noacutes a raacutepida

difusatildeo de obras escritas na antiguidade Ele narra que em sua eacutepoca ocorreu um

naufraacutegio de um navio que continha uma consideraacutevel carga de livros 251 Essa

suacutebita proliferaccedilatildeo literaacuteria aponta para um novo tempo em que o letramento e a

escrita jaacute natildeo eram apenas restritos ao ciacuterculo da aristocracia Isso reforccedila a nossa

hipoacutetese inicial de que esse fator pode ter desencadeado um processo de

247 Vide o subcapiacutetulo anterior 248 Esse depoimento de Plutarco revela dois fatos a deterioraccedilatildeo da teologia homeacuterica e da tradiccedilatildeo oral 249 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 18-19 250 Vide Xenofonte (Anaacutebase 7514) 251 βίβλοςbiblos

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conscientizaccedilatildeo coletiva que surge a partir do desgaste da antiga tradiccedilatildeo homeacuterica

Aliaacutes o mau uso dessa ferramenta despertou severas criacuteticas de Platatildeo252 Por volta

do seacuteculo IV aC a escrita vinha sendo utilizada intensamente dentro de vaacuterios

setores da sociedade grega inclusive no processo educacional A criacutetica do filoacutesofo

parece revelar uma proliferaccedilatildeo sem controle de inuacutemeros textos que estavam sendo

veiculados sem o rigor criacutetico que o seu mestre tanto prezava Essa propagaccedilatildeo

desmedida de opiniotildees253estava gerando um terriacutevel efeito colateral no sistema

poliacutetico social grego Algo similar ao que ocorre em nossa atual sociedade com o

jornalismo e a imprensa em geral

Contudo eacute importante ressaltar que no periacuteodo claacutessico ainda existia um grande

descompasso entre a atividade de ler e escrever Havia uma desigualdade entre os

nuacutemeros de leitores e escritores254 que era resultado da tensatildeo existente entre a

oralidade e escrita e do processo confuso de alfabetizaccedilatildeo que teria sido iniciado

por Soacutelon em Atenas255 A leitura de algum texto entre os seacuteculos V e IV ainda era

feita por escravos instruiacutedos assim como o trabalho de contabilidade feito pelos

escribas na antiga realeza micecircnica Eacute provaacutevel que o processo de alfabetizaccedilatildeo do

povo seguisse algum padratildeo especiacutefico que permitisse apenas um acesso miacutenimo

atraveacutes da leitura das obrigaccedilotildees e dos direitos256 Eacute notoacuterio que por volta do seacuteculo

V aC o processo de formaccedilatildeo de uma parte dos jovens era privado257 e tinha a

finalidade de formar bons oradores para os debates que ocorriam na Aacutegora258 Esse

era um tipo de conhecimento que natildeo era acessiacutevel para o povo pois aleacutem de caro

era uma poderosa ferramenta de ascensatildeo poliacutetica e social De todo modo essa

instruccedilatildeo estava disponiacutevel ao lado daquela educaccedilatildeo baacutesica oferecida pelo

252 Platatildeo (Fedro - 274c-275b) 253 δόξα doxa 254 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 14 255 Havelock sugere que esse processo de alfabetizaccedilatildeo possa ter ocorrido a partir do seacuteculo VI aC no periacuteodo de atuaccedilatildeo de Soacutelon Mas o mesmo ressalta que isso eacute apenas uma suposiccedilatildeo que se baseia em passagens de alguns diaacutelogos de Platatildeo (Prot 325 e ndash 326c-e e Caacutermides 159 c) em um periacuteodo bem posterior a Soacutelon Contudo baseado nas informaccedilotildees de Xenofonte sobre a Constituiccedilatildeo de Esparta eacute bem provaacutevel que houvesse um ensino oferecido pelo Estado em Atenas Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 pp 213 nota 4 256 Ibidem 257 Ou seja ele era adquirido para todos que pudessem pagar o serviccedilo oferecido pelos sofistas 258 Aacutegora (ἀγορά assembleia lugar de reuniatildeo derivada de ἀγείρω reunir) Espaccedilo comum onde os cidadatildeos se reuniam para discutir sobre questotildees poliacuteticas

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Estado259 Logo os sofistas surgiram com o intuito de suprir uma necessidade social

e poliacutetica que surgiu nesse momento de abertura democraacutetica em Atenas

Para o historiador Rosalind Thomas (THOMAS 1992) os padrotildees que

determinavam a utilizaccedilatildeo da escrita e da oralidade eram totalmente distintos dos

que satildeo empregados por noacutes atualmente A antiga retoacuterica por exemplo ainda se

baseava na forccedila da oralidade que ainda era responsaacutevel por decidir as questotildees

mais importantes no acircmbito juriacutedico poliacutetico social e pedagoacutegico Logo a escrita

parece travar um conflito direto com essa antiga praacutetica260 Aleacutem de Platatildeo o sofista

Alcidamas pupilo de Goacutergias foi um grande expoente da retoacuterica grega que

tambeacutem teceu diversas criacuteticas ao papel desempenhado pela escrita em seu

tempo261 Essa tensatildeo existente entre essas formas de comunicaccedilatildeo sinaliza dois

importantes fatos para noacutes o primeiro eacute a disseminaccedilatildeo do letramento entre as

vaacuterias classes sociais Essa inclusatildeo parece estar a serviccedilo do novo modelo da

constituiccedilatildeo poliacutetica que surgiu apoacutes o decliacutenio da monarquia Ou seja essa praacutetica

eacute empregada apenas para que todos os cidadatildeos possam respeitar a legislaccedilatildeo que

comeccedila a entrar em vigor quando as decisotildees satildeo expostas no Poacutertico Real262

Todavia isso natildeo impede que essa praacutetica posteriormente venha desempenhar

outras funccedilotildees dentro da sociedade grega

O uacuteltimo ponto surge de um argumento ex silentio eacute provaacutevel que o contato

com o letramento pelo acircmbito juriacutedico possa ter despertado nas classes mais

humildes a iniciativa de usar esse novo instrumento como uma ferramenta de

expressatildeo conscientizaccedilatildeo e de denuacutencia263 Essa forccedila silenciosa de resistecircncia

pode ter sido uma das causas para estimular o surgimento de um pensamento mais

criacutetico que foi capaz de efetuar uma grande revoluccedilatildeo dentro da cultura helecircnica

259 Gramaacutetica Aritmeacutetica e Ginaacutestica 260 No caso de Platatildeo o tipo de composiccedilatildeo escrita mimetiza a primazia da oralidade Essa carateriacutestica eacute um fator que natildeo pode ser omitido pelos estudiosos pois Platatildeo eacute um dos que demarca atraveacutes de sua obra a ldquocriserdquo entre esses dois meios de expressatildeo na antiguidade 261 Para mais informaccedilotildees sobre esse interessante sofista recomendamos a leitura do seguinte livro Alcidamas ldquoThe Works and Fragmentsrdquo (Greek Texts) by John Muir 1 edition First published in 2001 262 Στοά ΒασίλειοςStoaacute Basileios 263 Essa nossa hipoacutetese eacute traccedilada a partir da obra de Hesiacuteodo Para mais informaccedilotildees vide o seguinte artigo ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo revista IacutetacaUfrj 2015

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Logo podemos supor que a decadecircncia da teologia homeacuterica possa ter levado o

enfraquecimento dessa tradiccedilatildeo que se sustentava na forccedila da oralidade dos antigos

rapsodos E isso pode ter gerado uma abertura que propiciou o acesso de um nuacutemero

maior de pessoas as teacutecnicas mnemocircnicas e de composiccedilatildeo que foram essenciais

para a elaboraccedilatildeo de uma prosa poeacutetica que marcou determinantemente a cultura

grega264

A expansatildeo dessas artes que antes estavam sob o domiacutenio exclusivo da

aristocracia guerreira desencadeou diversas transformaccedilotildees que afetaram

diretamente a subjetividade coletiva grega Vimos anteriormente265 que o aedo era

o uacutenico responsaacutevel pela funccedilatildeo de comunicaccedilatildeo e memoacuteria na antiga civilizaccedilatildeo

micecircnica Apoacutes o advento do alfabeto o pensamento grego vai se desenvolvendo

simultaneamente com as mudanccedilas trazidas pela crise Essa nova linguagem

atravessa a realidade do indiviacuteduo que comeccedila a expressar seus valores e anseios

que agora natildeo satildeo mais pautados apenas nos deuses mas naquele que passa a ser a

medida de todas as coisas o homem266 Essa eacute a nova realidade que vai orientar a

Poesia e a Filosofia desse tempo Essa criatura mortal adquire o poder de domesticar

o loacutegos (o fogo ndash mito de Prometeu) 267 para atender as necessidades que surgem

dentro desse novo espaccedilo social e poliacutetico Nesse momento a palavra ganha uma

vestimenta mais soacutebria fixa e objetiva E nesse sentido a poesia de Hesiacuteodo foi

uma influecircncia determinante para alavancar essas grandes mudanccedilas dentro da

sociedade grega

264 E que propiciou que a poesia fosse praticada por homens do campo como Hesiacuteodo 265 Vide o primeiro capiacutetulo 266 Vide Protaacutegoras (DK - Fr B I) 267 Esse mito de Hesiacuteodo jaacute traz algumas ideias que refutam a teologia homeacuterica Para o grande Protaacutegoras essa dimensatildeo metafoacuterica engloba entre outras coisas a capacidade de astuacutecia (Μῆτιςmeacutetis) e de adaptaccedilatildeo sob condiccedilotildees hostis que foi importante para a evoluccedilatildeo da humanidade atraveacutes da manipulaccedilatildeo e desenvolvimento do loacutegos E eacute nesse momento que ele retoma o pensamento do grande Heraacuteclito pois o ldquofogordquo (πυράpyraacute) para o efeacutesio eacute a proacutepria imagem do Logos que estaacute presente em todas as coisas a partir de uma ldquomedidardquo (microέτρονmetron) Assim como fizera Heraacuteclito outrora Protaacutegoras opera uma brilhante transposiccedilatildeo entre Loacutegos (λόγος) e Deus (θεόςTheos) como uma convenccedilatildeo (νόmicroοςnomos) que foi criada pelos homens Ou seja o deslocamento feito pelo sofista eacute genial pois a ideia que estaacute subtendida no mito agora eacute atraveacutes da forccedila do loacutegos o homem se torna a medida de todas as coisas (πάντων χρηmicroάτων microέτρον έστιν άνθρωποςpanton chrematon metron estiacuten anthropos) Coincidentemente Heraacuteclito e Hesiacuteodo satildeo dois autores que influenciaram esse sofista Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do primeiro capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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Em Os trabalhos e os dias podemos encontrar um dos primeiros recortes

histoacutericos que foi efetuado pelo poeta Esse texto apresenta a imagem do tempo

presente que marca esse contraste com a tradiccedilatildeo homeacuterica Em seus versos haacute um

retrato quase jornaliacutestico268 das mazelas vivenciadas pelo seu povo Essa

abordagem eacute projetada com um olhar criacutetico e incisivo que denuncia a pressatildeo

exercida pelos nobres sobre o povo mais humilde Diferentemente de Homero o

poeta fala atraveacutes da primeira pessoa269 pois nomeia se a si mesmo no seu canto

que apresenta o nascimento dos deuses 270 Nesse momento ele fala sobre a sua

proacutepria experiecircncia existencial em um tempo e lugar determinados Essa sua

assinatura eacute o que tenta fornecer o tom de veracidade 271 que o seu relato visa passar

Com isso ele inaugura um sentido historiograacutefico que foi essencial para o

desenvolvimento da prosa que vamos encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides

posteriormente Uma tendecircncia individualizadora que natildeo pode ser confundida em

hipoacutetese alguma com a nossa experiecircncia moderna272 Pelo contraacuterio em Hesiacuteodo

esse traccedilo marcante eacute a proacutepria imagem da conquista da autonomia da subjetividade

coletiva dos trabalhadores humildes O poeta reuacutene em si mesmo o grito de dor do

povo e o expressa de modo exemplar em seus versos para que os mesmos

trabalhadores possam encontrar um alento uma voz que clama por justiccedila e

igualdade e que serve de apoio para enfrentar seus opressores com coragem e

prudecircncia Para isso o poeta precisa desenvolver um encadeamento loacutegico

especiacutefico que visa desconstruir o ideal aristocraacutetico homeacuterico e pontuar as accedilotildees

injustas praticadas contra o seu povo e expressaacute-las de um modo coerente E eacute nesse

sentido que o seu trabalho seraacute uma importante referecircncia para o surgimento da

prosa aacutetica

268 Uma abordagem factual 269 Eacute importante ressaltar aqui que o uso da primeira pessoa desempenha uma funccedilatildeo inovadora dentro da antiga poesia Primeiro porque Hesiacuteodo parece ter a intenccedilatildeo de demarcar uma diferenciaccedilatildeo entre o seu trabalho e dos outros poetas Em segundo lugar o poeta utiliza a sua poesia como um instrumento que expressa a exploraccedilatildeo sofrida pelo seu povo 270 Hesiacuteodo (Teogonia ndash v 25) 271 O sentido de verdade aqui eacute de algo que natildeo pode ser esquecido 272 Como o cogito ergo sum de Descartes Essa tendecircncia que vemos em Hesiacuteodo tem o sentido de unificaccedilatildeo de toda uma consciecircncia coletiva de um determinado grupo social que claramente se opotildee como foi exposto anteriormente a classe aristocraacutetica que foi educada pela poesia homeacuterica Ao trazer esse clamor para a primeira pessoa ele impotildee ao seu relato um tom factual que eacute importante para tornar veriacutedico o seu relato

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Com a dessacralizaccedilatildeo do poder poliacutetico a prosa surge como uma expressatildeo

inovadora ao lado da divulgaccedilatildeo das leis escritas273 Para o sucesso de tal objetivo

se faz necessaacuterio um texto que possa transmitir de modo direto os novos ideais e

normas atraveacutes de proposiccedilotildees claras e universalmente vaacutelidas Esse texto tem o

intuito de ser acessiacutevel para todos os membros da polis Eacute nesse ponto que podemos

identificar mais um traccedilo que nos permite ver o distanciamento com a tradiccedilatildeo

poeacutetica anterior Mas eacute importante ressaltar que esse fenocircmeno natildeo ocorreu de

modo radical Pelo contraacuterio ele coexistiu com as outras formas de expressatildeo que

ainda era cultividas pela tradiccedilatildeo popular De qualquer modo essa novidade

promoveu muita polecircmica entre os intelectuais do periacuteodo claacutessico Para

entendermos esse ponto eacute necessaacuterio levarmos em consideraccedilatildeo a crise de valores

que a antiga tradiccedilatildeo homeacuterica sofreu a partir dessas mudanccedilas poliacuteticas Eacute o que

veremos a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

A criacutetica e a investigaccedilatildeo 274satildeo as palavras-chave que contribuiacuteram para a

substituiccedilatildeo da antiga eacutetica da nobreza homeacuterica que utilizava a fama e o prestiacutegio

social dos heroacuteis275 como paracircmetro supremo para julgar as accedilotildees do homem276 O

fracasso dessa experiecircncia fez surgir um espiacuterito criacutetico que age como um vigia 277

permanente de todas as accedilotildees e palavras Ou seja a sua funccedilatildeo eacute impedir os

excessos e as injusticcedilas Um censor 278 Logo o poetafiloacutesofo desempenha o papel

de porta voz desses anseios coletivos e de criacutetico e contraditor da opiniatildeo comum 279 Por fim eacute importante ressaltar que essa caracteriacutestica soacute eacute possiacutevel quando a

escrita surge como um instrumento publicitaacuterio para a divulgaccedilatildeo das leis Essa

nova experiecircncia poeacutetica ronda como uma sombra que age como um espelho que

273 A poesia de Soacutelon jaacute traz essa influecircncia da poesia hesioacutedica Infelizmente essa questatildeo natildeo poderaacute ser abordada nesse presente trabalho mas pretendemos no futuro desenvolver uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo poeacutetica entre Hesiacuteodo e Soacutelon dentro desse contexto de crise social 274 Essas palavras trazem o comeccedilo da experiecircncia ceacutetica O verbo σκέπτοmicroαι (skeacuteptomai) que vem do grego para dar surgimento ao termo ceticismo traz em seu radical o substantivo skeacutepsis que significa ldquopercepccedilatildeo pela vistardquo ldquoobservaccedilatildeordquo e ldquoconsideraccedilatildeordquo O verbo skeacuteptomai eacute tambeacutem ainda empregado com os sentidos figurados de ldquoexaminarrdquo ldquomeditarrdquo e ldquorefletirrdquo Esses termos satildeo como pontos cardeais de grande importacircncia para o surgimento do pensamento filosoacutefico 275 Vide as epopeias homeacutericas 276 Vide o caso de Ciacutelon Curiosamente apoacutes o seu fracassado golpe o povo se rebelou de modo violento contra os nobres 277 Como um catildeo (κυνικός kynikos igual a um catildeo κύων kyocircn) 278 ψόγοςpsoacutegos Esse termo em grego tambeacutem traz o sentido de censura Eacute um termo muito utilizado no acircmbito da retoacuterica antiga Vide Demoacutestenes 279 δόξαdoxa Para esse caso podemos utilizar o papel desempenhado pelo grande Soacutecrates

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reflete as tensotildees e injusticcedilas da sociedade Eacute nesse tempo que tambeacutem vemos surgir

agrave beleza do Teatro antigo pois ele atua nesse mesmo sentido como um poderoso

promotor280 puacuteblico que defende os interesses coletivos da sociedade a partir da

visatildeo panoracircmica do poeta O palco eacute uma espeacutecie de ensaio que antecipa as

reflexotildees que poderatildeo estar presentes nas futuras discussotildees que ocorreratildeo nas

assembleias Sendo assim o Teatro atua como uma espeacutecie de agente regulador

subjetivo281 que expotildee para a cidade os seus pontos mais conflitantes que precisam

ser discutidos julgados e alterados para preservar a harmonia da instituiccedilatildeo

Apoacutes a grande crise social a nova organizaccedilatildeo do Estado foi obrigada a pocircr

em praacutetica um sistema de coacutedigo juriacutedico que respeitasse o direito de todos os seus

membros Essa mudanccedila foi responsaacutevel para o surgimento de um novo tipo de

cidadatildeo ndash no sentido pleno do termo ndash que precisa aprender a respeitar as leis para

manter a organizaccedilatildeo da polis pois a sua realizaccedilatildeo individual dependente

fundamentalmente dessa lei universal (∆ίκηDike) que manteacutem o equiliacutebrio de todas

as partes (classes) que compotildee a cidade

280 Eacute aquele que sempre expotildee para o puacuteblico ldquojulgarrdquo (corte) uma situaccedilatildeo conflitante (drama) 281 Eacute o instrumento disponiacutevel que nos faz pensar sobre as questotildees cruciais para a cidade grega nesse contexto

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4 Mythos Eacutepos e Loacutegos

41 Mito e poesia

A ordem disposta entre esses termos que configura o tiacutetulo desse presente

capiacutetulo natildeo eacute de modo algum casual ou arbitraacuteria282 Essas trecircs importantes

palavras na liacutengua grega referem-se ao ato de criaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo humana283

que abarcam o surgimento da tradiccedilatildeo oral ateacute o advento da escrita284 Como foi

exposto no primeiro capiacutetulo o espanto285 despertado atraveacutes das forccedilas

naturais286 que revela a presenccedila da Phyacutesis apresenta a necessidade287 de

comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo288 para a manutenccedilatildeo da existecircncia humana em todos os

seus aspectos Em detrimento desse fato e a partir dos fragmentaacuterios registros

histoacutericos gregos escritos e do mais variado legado arqueoloacutegico que pode ser

obtido atraveacutes da Arquitetura Escultura e Pintura podemos estabelecer uma fraacutegil

tentativa de esboccedilar um mapeamento289 cronoloacutegico e semacircntico do uso dessas

282 Para Fernand de Saussure a liacutengua pode ser analisada como uma realidade autocircnoma em um determinado contexto histoacuterico sem a necessidade de avaliar o seu processo de desenvolvimento Segundo a sua teoria a realidade linguiacutestica do falante pode ser definida a partir do seu proacuteprio uso (O filoacutesofo britacircnico John Langshaw Austin parte desse mesmo pressuposto para a sua ldquoteoria dos atos de falardquo) Para tal objetivo o filoacutesofo linguista elabora dois importantes conceitos para esse estudo o primeiro eacute o de Sincronia No qual determina certas caracteriacutesticas de uma liacutengua em um recorte temporal especiacutefico (analisa por exemplo as variaccedilotildees sociais regionais e situacionais) que se formula atraveacutes de uma regularidade e homogeneidade pertencente a um contexto histoacuterico definido O segundo eacute o de Diacronia Esse conceito eacute responsaacutevel por apontar as inuacutemeras mudanccedilas que uma liacutengua sofre durante o decorrer histoacuterico de uma cultura Esse processo eacute interessante por rastrear as suas principais variaccedilotildees desde a sua origem ateacute o seu uso atual Ao decorrer desse capiacutetulo vamos utilizar esses dois dispositivos com o intuito de analisar o uso desses termos entre a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita entre os gregos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro SAUSSURE F de ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 283 Sobre esse ponto vide o capiacutetulo I 284 Para noacutes esse ponto eacute essencial para compreender o processo de transformaccedilatildeo do pensamento grego A escrita na realeza micecircnica segundo os estudos arqueoloacutegicos realizados a partir do Linear B que era utilizado para o controle da produccedilatildeo agriacutecola Apoacutes o decliacutenio monaacuterquico e o surgimento das primeiras polis aparece com um sentido totalmente distinto o de publicizaccedilatildeo das leis Sobre esse ponto vide os comentaacuterios do helenista francecircs Jean Pierre Vernant no capiacutetulo II do seguinte livro ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 285 θαῦmicroα 286 ἀθάνατοι 287 Ανάγκη 288 ποιεῖν 289 Ou seja natildeo pretendemos estabelecer nesse presente trabalho uma linha evolutiva entre esses termos O nosso objetivo visa localizar o uso deles em diversos contextos distintos da historiografia

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formas de expressatildeo que antecedem o diaacutelogo como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

Essa constataccedilatildeo eacute do nosso grande interesse por apresentar alguns dos meandros

do desenvolvimento do proacuteprio pensamento grego antigo290 De um modo natildeo

linear 291 veremos que essa segunda premissa eacute o fundamento para a primeira No

longo processo de construccedilatildeo cultural cada uma dessas palavras contribuiacutera para a

formaccedilatildeo da subjetividade coletiva que auxiliou na formaccedilatildeo do espaccedilo social

poliacutetico religioso pedagoacutegico e juriacutedico em cada contexto histoacuterico grego

Para muitos scholars como o britacircnico John Burnet (BURNET 1892) eacute

possiacutevel traccedilar uma linha evolutiva que parte do pensamento miacutetico-poeacutetico ateacute o

momento em que o homem grego alcanccedilou a sua maioridade racional atraveacutes do

Loacutegos292

grega antiga atraveacutes da relaccedilatildeo da tradiccedilatildeo oral e o novo uso dado agrave escrita a partir do surgimento da Democracia 290 No famoso ldquocurso de linguiacutestica geralrdquo Fernand de Saussure aplica essa abordagem que foi nomeada de linguiacutestica histoacuterica para estudar a evoluccedilatildeo de uma determinada liacutengua Para mais informaccedilotildees vide SAUSSURE F de Curso de Linguiacutestica Geral 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 Paacuteg 8 291 Ao contraacuterio de muitos especialistas que seguem a posiccedilatildeo do escolar britacircnico John Burnet natildeo acreditamos que haja um deslocamento evolutivo entre esses termos Para a maioria dos defensores dessa posiccedilatildeo o mito tem origem ldquoreligiosardquo enquanto que o loacutegos eacute o momento que o homem alcanccedila a sua plenitude racional mas isso eacute um ledo engano Infelizmente essa posiccedilatildeo eacute ineficiente para dar conta dessa problemaacutetica Um dos exemplos que essa posiccedilatildeo natildeo explica eacute o uso que Platatildeo e outros pensadores sobretudo no acircmbito da Literatura fazem do mito durante e depois do periacuteodo claacutessico Eacute inegaacutevel que a apariccedilatildeo e o uso de cada um deles passou por consideraacuteveis mudanccedilas semacircnticas que desempenharam uma complexa repercussatildeo na funccedilatildeo cognitiva e na produccedilatildeo subjetividade do homem grego desde do periacuteodo micecircnico ateacute o claacutessico Logo A interpretaccedilatildeo de cada um desses termos necessita ser cautelosamente estudada a partir do seu respectivo contexto histoacuterico Posteriormente veremos que a ortodoxia de muitos helenistas e linguistas acabou impedindo uma visatildeo mais ampla sobre esse problema E isso ocorreu por descartarem algumas contradiccedilotildees que para noacutes eacute salutar para promover um estudo mais abrangente sobre essa questatildeo na antiguidade Uma delas eacute o fato de o mito ter surgido no acircmbito oral enquanto que o uso do loacutegos que muitos helenistas - vide o exemplo do proacuteprio Burnet - aplicam para os primeiros prensadores preacute-socraacuteticos como um discurso mais ldquosoacutebriordquo e ldquocoerenterdquo aparece no choque entre a tradiccedilatildeo oral e a novidade da escrita Esse ponto necessita ser levado em consideraccedilatildeo para um estudo mais aprofundando em torno desse tema A partir disso a nossa pretensatildeo eacute tentar estabelecer uma ordem diacrocircnica de uso desses termos ndash tendo como pano de fundo o momento de transiccedilatildeo entre a oralidade e escrita - sem estabelecer um juiacutezo de valor entre eles dentro do pensamento grego Ainda sobre essa grande celeuma entre os mais diversos especialistas dentro dos estudos sobre a linguiacutestica eacute importante destacar o trabalho desenvolvido por Jacques Derrida em torno desse problema no seu livro chamado Gramatologia Para o filoacutesofo todos os estudos relacionados a esse tema de um modo geral surgem quando o conceito de ciecircncia eacute forjado a partir da fonetizaccedilatildeo da escritura que ocorre com o surgimento do loacutegos Em um momento oportuno voltaremos a essa questatildeo 292 Nesse contexto especiacutefico o termo apresenta o sentido de razatildeo que se distanciou do seu antagonista o mito

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ldquoFoi somente apoacutes se desarticularem a visatildeo tradicional do mundo e as normas costumeiras de vida que os gregos comeccedilaram a sentir as necessidades que as filosofias da natureza e da conduta procuram satisfazer Tais necessidades natildeo se fizeram sentir de imediato As maacuteximas ancestrais de conduta natildeo foram seriamente questionadas ateacute a antiga visatildeo da natureza desaparecer Por isso os primeiros filoacutesofos ocuparam-se principalmente com especulaccedilotildees sobre o mundo ao seu redor No devido tempo criou-se a Loacutegica para atender a uma nova necessidade O empenho na investigaccedilatildeo cosmoloacutegica trouxera agrave luz uma ampla divergecircncia entre a ciecircncia e o senso comum Este problema exigia uma soluccedilatildeo e aleacutem disso obrigava os filoacutesofos a estudar meios de defender seus paradoxos dos preconceitos do natildeo-cientiacutefico Mais tarde o interesse preponderante por problemas loacutegicos levantou a questatildeo da origem e da validade do conhecimento ao passo que mais ou menos na mesma eacutepoca a desarticulaccedilatildeo da moral tradicional deu origem agrave Eacutetica O periacuteodo que antecede a ascensatildeo da Loacutegica e da Eacutetica tem portanto um caraacuteter especiacutefico e eacute adequado trataacute-lo separadamenterdquo293

Mas essa posiccedilatildeo natildeo eacute satisfatoacuteria para explicar a amplitude que o

pensamento miacutetico-poeacutetico desempenhou ateacute o periacuteodo romano294 Como podemos

ver nessa passagem que foi citada anteriormente essa hipoacutetese elaborada pelo

ilustre professor britacircnico sugere um caminho ascensional que se fundamenta no

distanciamento entre esses modos de expressatildeo a partir de uma posiccedilatildeo antagocircnica

e de inferioridade em relaccedilatildeo ao Loacutegos295 Infelizmente essa via mascara o valor do

pensamento miacutetico-poeacutetico como uma forma de saber extremamente relevante que

surgiu durante a tradiccedilatildeo oral para o povo helecircnico Posteriormente296 teremos a

oportunidade de analisar algumas peculiaridades desse fato que foi reconhecido

atraveacutes da manifestaccedilatildeo da Poesia Retoacuterica Teatro e da proacutepria Filosofia que

juntas satildeo expressotildees maacuteximas do valor intelectual que pode ser mensurado atraveacutes

do legado da Literatura297 e de outras expressotildees artiacutesticas que fizeram da Greacutecia

o modelo cultural do nosso mundo Ocidental desde do periacuteodo preacute-homeacuterico Eacute

importante ressaltar que todas as sociedades antigas em algum momento histoacuterico

utilizaram esse tipo peculiar de expressatildeo para reunir e manter as impressotildees mais

importantes sobre as nossas origens298 No caso grego eacute possiacutevel encontrarmos

293 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Pp 21 294 Sobre esse ponto vide a seguinte obra VEYNE Paul ldquoAcreditavam os gregos em seus mitosrdquo Satildeo Paulo Brasiliense 1983 295 Na Gramatologia Jacques Derrida vai tecer durar criacuteticas a esse pressuposto que foi seguido por muitos especialistas que estudam esse tema 296 No capiacutetulo IV 297 Dentro desse contexto incluiacutemos a tradiccedilatildeo oral ateacute o surgimento das primeiras obras escritas 298 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide a leitura do seguinte livro GRIMAL P ldquoA Mitologia Gregardquo Satildeo Paulo Brasiliense 1987

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outras aplicaccedilotildees A antiga realeza micecircnica por exemplo utilizou o recurso miacutetico

para a fundamentaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do poder monaacuterquico atraveacutes de algumas

famiacutelias que tinha uma relaccedilatildeo consanguiacutenea com os deuses Ou seja aleacutem do

caraacuteter histoacuterico que eacute atribuiacutedo por muitos antropoacutelogos o mito nesse caso eacute

utilizado para reivindicar tiacutetulos de nobreza para algumas famiacutelias e cidades Esse

tipo de aplicaccedilatildeo nos demonstra o seu caraacuteter plaacutestico e de utilidade para a

organizaccedilatildeo social como um todo ao lado da Poesia

42 Mito e espanto

A forccedila e beleza do discurso299 foi uma heranccedila que foi obtida a partir da

sofisticaccedilatildeo e primazia da fala que foi ampliada dentro do periacuteodo oral Essa

caracteriacutestica foi tatildeo marcante que se perdurou mesmo depois do seu esgotamento

como instrumento de transmissatildeo e conservaccedilatildeo cultural ateacute o auge da escrita

durante o periacuteodo claacutessico No discurso do estadista ateniense Peacutericles que foi

registrado pelo historiador Tuciacutedides300 por volta do ano 431 aC eacute possiacutevel

notarmos o fasciacutenio que bela fala produzia nos ouvidos dos atenienses

A maioria daqueles que falaram neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso agrave cerimocircnia tradicional considerando justo celebrar com palavras os mortos na guerra em seus funerais A mim todavia ter-me-ia parecido suficiente tratando-se de homens que se mostraram corajosos em atos manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos - honras como as que hoje presenciastes nesta cerimocircnia fuacutenebre do Estado - em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependecircncia do maior ou menor talento oratoacuterio de um soacute homem Eacute realmente difiacutecil falar com propriedade numa ocasiatildeo em que natildeo eacute possiacutevel avaliar a credibilidade das palavras do orador O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensaraacute talvez que natildeo foi feita a devida justiccedila em face de seus proacuteprios 299 Μύθος Έπος και λόγος Dentro dessa perspectiva vide a famosa oraccedilatildeo fuacutenebre de Peacutericles que estaacute registrada no livro II (35-46) sobre a ldquoA guerra do Peloponesordquo do historiador Tuciacutedides Mesmo sendo um discurso oral esse pronunciamento eacute oriundo de uma formulaccedilatildeo escrita Para esse assunto vide o seguinte livro HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Traduzido por Enid Abreu Dubraacutenzsky Campinas SP Papirus 1996 300 Vide nota anterior Esse texto eacute de grande importacircncia histoacuterica por revelar natildeo apenas a sobriedade da fala que foi esculpida pela beleza retoacuterica desse periacuteodo mas a consciecircncia de cidadania que foi elevada pelo auge do regime democraacutetico e imperialista de Atenas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CANFORA Luciano ldquoO mundo de Atenasrdquo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2015

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desejos e de seu conhecimento dos fatos enquanto outro menos informado ouvindo falar de um feito aleacutem de sua proacutepria capacidade seraacute levado pela inveja a pensar em algum exagero De fato elogios a outras pessoas satildeo toleraacuteveis somente ateacute onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menccedilatildeo estaacute ouvindo quando vatildeo aleacutem disto provocam a inveja e com ela a incredulidade Seja como for jaacute que nossos antepassados julgaram boa esta praacutetica tambeacutem devo obedecer agrave lei e farei o possiacutevel para corresponder agrave expectativa e agraves opiniotildees de cada um de voacutesrdquo301

A grande novidade desse momento eacute que a fala soacutebria do estadista eacute fruto da

reinserccedilatildeo da escrita que possibilitou uma imensa transformaccedilatildeo dentro do

contexto soacutecio-poliacutetico grego durante o auge do processo democraacutetico no periacuteodo

claacutessico302 Para avaliarmos algumas caracteriacutesticas desse fato no campo da

subjetividade coletiva podemos destacar a notaacutevel coerecircncia entre as partes desse

precioso discurso fuacutenebre que foi declamado com o intuito de consolar os

atenienses e de buscar apoio poliacutetico para o projeto imperialista de Peacutericles dentro

e fora de Atenas303 A escrita agrave serviccedilo da fala desempenha nesse momento aleacutem

de reforccedilar a publicidade das ideias difundidas no conteuacutedo dessa peccedila oratoacuteria304

tem por objetivo produzir um efeito de comoccedilatildeo e apoio atraveacutes da persuasatildeo

produzida a partir do encadeamento entre vaacuterias ideias que esse discurso propotildee aos

seus respectivos ouvintes de modo grandiloquente305 Essa experiecircncia de domiacutenio

da fala que aparece no periacuteodo oral foi ampliada e refinada dentro do acircmbito

301 Tuciacutedides ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo (livro II ndash 35) 302 Sobre essa questatildeo vide o seguinte livro HAVELOCK ERIC A ldquoA Revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturaisrdquo Trad Ordep Joseacute Serra Satildeo Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 303 Na ldquoGenealogia da Moralrdquo Nietzsche revela na sua primeira dissertaccedilatildeo (cap 11) as intenccedilotildees que estatildeo subtendidas nesse discurso de Peacutericles que foram registradas por Tuciacutedides Para essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NIETZSCHE F ldquoA genealogia da Moralrdquo (traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 304 O helenista Conford vai analisar as intenccedilotildees fictiacutecias e histoacutericas de Tuciacutedides ao escrever o seu livro que conteacutem esse discurso fuacutenebre de Peacutericles Para mais informaccedilotildees vide CORNFORD Francis Macdonald ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Philadelphia University of Pennsylvania 1971 305 Esse discurso pode ser divido em dois niacuteveis o primeiro sentido busca a comoccedilatildeo e o apoio dos atenienses e aliados enquanto que o segundo visa mostrar o poderio beacutelico ateniense para intimidar os inimigos e as outras cidades que ainda natildeo haviam assumido apoio direto ao projeto militar e poliacutetico de Peacutericles Vale lembrar que essa peccedila oratoacuteria carrega os grandes traccedilos da influecircncia sofistica de Protaacutegoras de Abdera e da arte do escultor Fiacutedeas Algumas das suas obras mais famosas na antiguidade se destacaram pelo poder de distorccedilatildeo da realidade com o intuito de fornecer ao espectador um profundo prazer esteacutetico O uso desse tipo de recurso anuncia a intenccedilatildeo do artista que se coaduna com a pedagogia do movimento sofiacutestico de produzir comoccedilatildeo atraveacutes do espanto Nesse sentido ambas seguem o mesmo fundamento da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que pode ser encontrada nas obras homeacutericas Para mais informaccedilotildees vide o segundo ensaio chamado ldquoThe spirit of art of Pheidiasrdquo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 Paacuteg 42

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militar pedagoacutegico teatral e juriacutedico306 A organicidade e clareza eram pontos

essenciais para a desenvoltura e eficiecircncia de todos os rapsodos tragedioacutegrafos e

comedioacutegrafos antigos Logo o uso da teacutecnica da grafia alfabeacutetica possibilitou um

domiacutenio ainda maior na composiccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo puacuteblica desses artesatildeos da

fala 307 Essa novidade oriunda do advento da escrita teria surgido por volta do

seacuteculo VIII aC e durante um determinado periacuteodo dividiu o espaccedilo com a antiga

oralidade que era o instrumento principal para conservaccedilatildeo e transmissatildeo cultural

Mas antes de abordarmos esse ponto vamos rastrear as evidecircncias que antecederam

esse fato no mundo grego

Os dois primeiros termos que expressam o ato de fala estatildeo voltados

diretamente para a tradiccedilatildeo oral que foi determinante para organizaccedilatildeo cultural

helecircnica 308 Dentro desse contexto o pensamento miacutetico e eacutepico foi responsaacutevel

por formular as primeiras concepccedilotildees de linguagem que revelam o profundo

conhecimento e desenvolvimento das teacutecnicas mnemocircnicas essenciais para a

manutenccedilatildeo e sobrevivecircncia cultural na antiguidade Essa caracteriacutestica pode ser

obtida no antigo culto das musas que eram as divindades responsaacuteveis pela

perpetuaccedilatildeo da memoacuteria309 Satildeo elas que no mundo homeacuterico constroem e

estabelecem a compreensatildeo das forccedilas que organizam o nosso mundo (SVENBRO

1976) Essa concepccedilatildeo tem o poder de fundamentar o conhecimento necessaacuterio para

306 Eacute possiacutevel encontramos nesse discurso de Peacutericles todos esses aspectos reunidos Eacute importante ressaltar que antes mesmo da reinserccedilatildeo da escrita o ritmo e a melodia da muacutesica davam ao discurso poeacutetico o sentido e a coesatildeo necessaacuteria para promover a simpatia e prazer aos ouvintes atraveacutes dos seus respectivos metros Posteriormente essas caracteriacutesticas ainda vigoravam na prosa aacutetica que escritores dramaturgos oradores professores e poliacuteticos utilizavam nesse periacuteodo Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista Iacutetacaufrj 2015 307 Vide os apontamentos de Aristoacuteteles sobre esse tema na Poeacutetica e Retoacuterica Eacute importante destacar que houve uma grande polecircmica em torno dessa questatildeo entre os defensores da tradiccedilatildeo oral e daqueles que pautavam os seus trabalhos como os filoacutesofos logoacutegrafos e sofistas atraveacutes do uso de textos escritos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 308 Sobre esse ponto vide as consideraccedilotildees que estatildeo no primeiro e no segundo capiacutetulo desse presente trabalho 309 Μοῦσαι (Moũsai) satildeo divindades responsaacuteveis pela inspiraccedilatildeo simboacutelica no campo da muacutesica arte literatura e ciecircncia na mitologia grega O mais interessante eacute que todas as concepccedilotildees filosoacuteficas antigas sobre a origem da muacutesica satildeo fundamentadas a partir dessa heranccedila da tradiccedilatildeo oral Ora esse detalhe eacute de extrema importacircncia por apresentar a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo miacutetica para o desenvolvimento da muacutesica e filosofia entre os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GRIMAL Pierre ldquoDicionaacuterio da mitologia grega e romanardquo Traduccedilatildeo de Victor Jabouille 3 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 Em um importante artigo chamado ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo o helenista alematildeo Friedrich Solmsen aponta algumas diferenccedilas entre o uso dessas divindades invocadas por esses dois poetas na tradiccedilatildeo antiga Para mais informaccedilatildeo vide o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954

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os gregos dentro desse contexto histoacuterico Ao fornecer aos homens uma

possibilidade de compreensatildeo do mundo as musas datildeo sentido para a existecircncia

humana na organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica da realeza micecircnica (GERNET 1982)

Todas as expressotildees do pensamento nesse momento satildeo pautadas atraveacutes da sua

forccedila persuasiva e expressiva emitidas pela fala divina do aedo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOacute Musas me dizei moradoras do Olimpo divinas todo-presentes todo-sapientes (noacutes nada mais sabendo soacute a fama ouvimos) quais eram hegemocircnicos guiando os Dacircnaos os priacutencipes e os chefes O total de nomes da multidatildeo nem tendo dez bocas dez liacutenguas voz inquebraacutevel peito brocircnzeo eu saberia dizer se as Musas filhas de Zeus porta-escudo oliacutempicas natildeo derem agrave memoacuteria ajuda renomeando-me os nomes Soacute direi o nuacutemero das naves e os navarcas que assediaram Troia Pemeleu Protoeacutenor Lito Arcesilau mais Clocircnio iam agrave testa dos Beoacutecios de Aacuteulide peacutetrea de Hiacuteria de Esqueno Escolo e de Eteono milmontanhosa Teacutespio Graia Micalesso vasta em planiacutecies de Harma de Ileacutessio de Eritras os de Eleona Peteona Hila de Ocaleia Medeona bem-construiacuteda Tisbe columbaacuterio riquiacutessimo e os de Eutreacutessio de Copas e os vindos de Coroneia e de Haliarto verdejante e os de Plateia e Glissa os de Hipotebas poacutelis bem-construiacuteda os de Onquesto veneranda bosque de Posecircidon esplecircndido e os de Arna riquiacutessima em pacircmpanos de Nisa divina e Mideia e os de Anteacutedon extremo ponto na fronteira Cento e cinquenta naves da Beoacutecia e nelas em cada barco cento e vinte homens de guerraOs nativos de Aspleacutedon de Orcocircmeno Miacutenias Ascaacutelafos e Iaacutelmeno comandam filhos de Astiacuteoque com Ares (o deus alcanccedilara a virgem casta no alto do palaacutecio de Aacutector o Azeide onde agraves ocultas no leito a possuiacutera esses em fila enchiam trinta naves cocircncavas310rdquo

310 HOMERO Iliacuteada canto II v 484-515 ἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαιὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν πληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνω οὐδ᾽ εἴ microοι δέκα microὲν γλῶσσαι δέκα δὲ στόmicroατ᾽ εἶεν φωνὴ δ᾽ ἄρρηκτος χάλκεον δέ microοι ἦτορ ἐνείη εἰ microὴ Ὀλυmicroπιάδες Μοῦσαι ∆ιὸς αἰγιόχοιο θυγατέρες microνησαίαθ᾽ ὅσοι ὑπὸ Ἴλιον ἦλθον ἀρχοὺς αὖ νηῶν ἐρέω νῆάς τε προπάσας Βοιωτῶν microὲν Πηνέλεως καὶ Λήϊτος ἦρχον Ἀρκεσίλαός τε Προθοήνωρ τε

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A partir dessa passagem que se encontra no segundo livro da Iliacuteada de

Homero podemos compreender a importacircncia dessas divindades para o

desenvolvimento do processo de subjetividade coletiva grega No iniacutecio dos versos

o poeta ressalta que elas satildeo as responsaacuteveis por guiar os gregos atraveacutes do

conhecimento que eacute fornecido atraveacutes da memoacuteria311 Sendo assim nos deparamos

com a uacutenica via possiacutevel para ultrapassar o limite que separa o mundo divino e

humano A manifestaccedilatildeo dessa verdade ocorre entre o movimento freneacutetico da

melodia da voz e do corpo312 que materializa em um uacutenico instante313 a presenccedila

dessas forccedilas que organizam o mundo atraveacutes dessas imagens glorificadas no

tempo

ldquoQuando Aquiles por exemplo presta um grande juramento sua palavra eacute inseparaacutevel de um gesto e de um comportamento solidaacuteria agrave virtude do cetro que a confunde com a afirmaccedilatildeo oracular A todo momento a linguagem verbal se entrelaccedila com a linguagem gesticular quando Althaiacutea amaldiccediloa o seu filho sua maldiccedilatildeo eacute palavra e postura toda encolhida ela bate com forccedila no chatildeo para suscitar a Eriacutenia vingadora Eacute a atitude do corpo que confere sua potecircncia agrave palavra uma palavra que aliaacutes se identifica com a obscura figura de Eriacutenia Na suacuteplica a palavra se faz silecircncio eacute o corpo que fala sozinho atraveacutes de uma espeacutecie de prostraccedilatildeo cujas significaccedilotildees satildeo muacuteltiplas estado de luto atitude do morto nos infernos do condenado do candidato agrave purificaccedilatildeo ou agrave iniciaccedilatildeo Quando brota a voz tira sua forccedila do comportamento gesticular Todos estes comportamentos sociais satildeo siacutembolos eficazes que agem diretamente em virtude de sua potecircncia proacutepria o gesto da matildee o cetro a oliveira guarnecida com latilde satildeo o espaccedilo central de uma potecircncia religiosa A palavra eacute da mesma ordem como a matildeo que daacute que recebe que toma como o bastatildeo que Κλονίος τε οἵ θ᾽ Ὑρίην ἐνέmicroοντο καὶ Αὐλίδα πετρήεσσαν Σχοῖνόν τε Σκῶλόν τε πολύκνηmicroόν τ᾽ Ἐτεωνόν Θέσπειαν Γραῖάν τε καὶ εὐρύχορον Μυκαλησσόν οἵ τ᾽ ἀmicroφ᾽ Ἅρmicro᾽ ἐνέmicroοντο καὶ Εἰλέσιον καὶ Ἐρυθράς οἵ τ᾽ Ἐλεῶν᾽ εἶχον ἠδ᾽ Ὕλην καὶ Πετεῶνα Ὠκαλέην Μεδεῶνά τ᾽ ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Κώπας Εὔτρησίν τε πολυτρήρωνά τε Θίσβην οἵ τε Κορώνειαν καὶ ποιήενθ᾽ Ἁλίαρτον οἵ τε Πλάταιαν ἔχον ἠδ᾽ οἳ Γλισᾶντ᾽ ἐνέmicroοντο οἵ θ᾽ Ὑποθήβας εἶχον ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Ὀγχηστόν θ᾽ ἱερὸν Ποσιδήϊον ἀγλαὸν ἄλσος οἵ τε πολυστάφυλον Ἄρνην ἔχον οἵ τε Μίδειαν Νῖσάν τε ζαθέην Ἀνθηδόνα τ᾽ ἐσχατόωσαν τῶν microὲν πεντήκοντα νέες κίον ἐν δὲ ἑκάστῃ κοῦροι Βοιωτῶν ἑκατὸν καὶ εἴκοσι βαῖνον οἳ δ᾽ Ἀσπληδόνα ναῖον ἰδ᾽ Ὀρχοmicroενὸν Μινύειον τῶν ἦρχ᾽ Ἀσκάλαφος καὶ Ἰάλmicroενος υἷες Ἄρηος οὓς τέκεν Ἀστυόχη δόmicroῳ Ἄκτορος Ἀζεΐδαο παρθένος αἰδοίη ὑπερώϊον εἰσαναβᾶσα Ἄρηϊ κρατερῷ ὃ δέ οἱ παρελέξατο λάθρῃ τοῖς δὲ τριήκοντα γλαφυραὶ νέες ἐστιχόωντο Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 311 No grego o jogo entres esses termos eacute bem perceptiacutevel ldquoἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαι ὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανrdquo 312 Atraveacutes do canto e danccedila ou seja entre a voz (focirclegoalma) e o movimento do corpo (mundo sensiacutevel) Na sequecircncia veremos que esse importante detalhe tambeacutem natildeo passou despercebido aos olhos de Marcel Detienne em ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo No quarto capiacutetulo (A ambiguidade da palavra) ele expotildee uma anaacutelise que reforccedila o que foi dito por noacutes anteriormente 313 Νῦν (nun) significa ldquoagorardquo (adveacuterbio temporal) e o ldquotempo presenterdquo

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afirma o poder como os gestos de imprecaccedilatildeo ela eacute uma forccedila religiosa que age em virtude de sua proacutepria eficaacutecia A palavra que o adivinho o poeta e o rei de justiccedila pronunciam natildeo consiste em algo fundamentalmente diferente da proclamaccedilatildeo do vingador ou das imprecaccedilotildees de um moribundo dirigidas a seus assassinos Eacute o mesmo tipo de palavra maacutegico-religiosa314rdquo

Homero deixa o frenesi guiar as suas palavras que antes mesmo de descrever

o incidente que indica o nuacutemero de naus que atacaram Troacuteia apresenta quase

visualmente para noacutes uma evocaccedilatildeo315 uma prece que parece ser algo de praxe

entre os antigos aedos316 que tem o poder de materializar essas forccedilas divinas no

mundo humano Esse ritual indica a relaccedilatildeo religiosa que pode ter nascido apoacutes o

primeiro espanto diante da grandiosidade da phyacutesis que lhe trouxe a primeira

verdade aos homens a inteligiacutevel fronteira entre o mundo dos mortais e imortais

O conteuacutedo dessa experiecircncia eacute transmitido de modo equacircnime que passa a ser

reconhecido entre todos os membros da comunidade pelo encantamento dos versos

do poeta que era considerado entre seus pares como um artiacutefice divino Como foi

exposto por Marcel Detienne anteriormente essa palavra ganha consistecircncia no

diaacutelogo estabelecido com o corpo que eacute o receptaacuteculo sensiacutevel para a manifestaccedilatildeo

de toda ordem divina sobre o mundo humano317 Toda beleza harmocircnica da voz seraacute

simultaneamente manifesta no ritmo do gestual corporal da danccedila ambas atividades

formam o primor do mais alto valor da cultura helecircnica que se manteve ativa mesmo

depois do decliacutenio do teatro na antiguidade

314 Vide DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap IV (Ambiguidade da Palavra) pag 33 315 Significa literalmente chamar para fora Enquanto que invocaccedilatildeo eacute o contraacuterio ou seja chamar os deuses para dentro Ambos os termos vecircm do termo latino ldquovocarerdquo (chamar) 316 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo v 22-34 e o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954 317 Mais um ponto de convergecircncia ndash ou mera coincidecircncia - entre o pensamento miacutetico-poeacutetico e filosoacutefico A relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias pode ser encontrada nos fragmentos de pitagoacutericos como Alcmeacuteon (DK 24 B4) Empeacutedocles (DK 31B17) e no Timeu de Platatildeo (34 c) aos poucos vamos coletando e expondo esses indiacutecios que demostram o diaacutelogo profiacutecuo entre a filosofia e a poesia na antiguidade

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43 Mito accedilatildeo e verdade

A arte do bem falar era algo essencial na formaccedilatildeo dos homens responsaacuteveis

pela atividade poliacutetica A excelecircncia entre o falar e o fazer era respaldada no modelo

heroico fornecido pela poesia homeacuterica O valor de verdade e honestidade do

orador era forjado pelos seus grandes feitos que eram imortalizados pelos aedos e

reconhecidos por todos os membros da comunidade Nesse caso a guerra318 era o

espaccedilo que fornecia ao homem da realeza o direito de falar e ser respeitado por

todos os gregos Mas esse direito soacute era concedido atraveacutes das conquistas oriunda

dos campos de batalhas no qual cada vitoacuteria era a ratificaccedilatildeo do seu parentesco

divino319 e que fornecia ao mesmo tempo a justificaccedilatildeo necessaacuteria para manter a

sua respectiva soberania poliacutetica Nesse sentido eacute possiacutevel encontrarmos o embriatildeo

para a noccedilatildeo que o filoacutesofo italiano Giambattista Vico vai nomear de verum

factum320 e que de modo conceitual foi aplicada na antiguidade por pensadores de

diferentes correntes como Xenoacutefanes321 e Aristoacuteteles322 Ambos cada um ao seu

318 No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 319 Atraveacutes das vitoacuterias e dos belos feitos Os jogos oliacutempicos por exemplo eacute uma praacutetica que manteacutem acesa essa moral heroica que podemos encontrar na pedagogia homeacuterica Todos os esportes carregam a essecircncia agoniacutestica que sempre foi exaltada como maacuteximo valor pela cultura grega na antiguidade Nesse sentido as Oliacutempiadas tambeacutem desempenhavam uma funccedilatildeo pedagoacutegica que servia para incutir essa moral guerreira Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo neste presente capiacutetulo 320 Essa importante expressatildeo viquiana surgiu a partir do estudo do desenvolvimento de algumas culturas da antiguidade Para Vico a accedilatildeo eacute uma parte da razatildeo e portanto depende essencialmente da certeza da manifestaccedilatildeo do seu agente Ou seja a verdade eacute uma conversatildeo entre razatildeo accedilatildeo e efetivaccedilatildeo Esse eacute o seu criteacuterio de verdade O seu objetivo epistemoloacutegico e hermenecircutico eacute deslocar a esfera da accedilatildeo para o acircmbito conceitual Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros ldquoDe Antiquiacutessima Italorum Sapientiardquo (A Antiga Sabedoria dos Italianos) e ldquoScienza Nuovardquo (Ciecircncia Nova) 321 Xenoacutefanes de Coacutefon elegias (DK 21 B1 Ateneu X 462 c) (ldquoἀλλ᾿ εἰκῆι microάλα τοῦτο νοmicroίζεται οὐδὲ δίκαιον προκρίνειν ώmicroην τῆς ἀγαθῆς σοφίης οὔτε γὰρ εἰ πύκτης ἀγαθὸς λαοῖσι microετείη οὔτ᾿ εἰ πενταθλεῖν οὔτε παλαισmicroοσύνην οὐδὲ microὲν εἰ ταχυτῆτι ποδῶν τόπερ ἐστὶ πρότιmicroον ῥώmicroης ὅσσ᾿ ἀνδρῶν ἔργ᾿ ἐν ἀγῶνι πέλει τοὔνεκεν ἂν δὴ microᾶλλον ἐν εὐνοmicroίηι πόλις εἴη) ldquoLogo nem havendo entre o povo um bom pugilista nem havendo um bom no pentatlo nem no pugilato ou pela velocidade dos peacutes que mais pelo vigor fiacutesico merece honra entre as accedilotildees dos homens nos jogos natildeo eacute por isso que a cidade viveria em uma bela ordemrdquo nossa traduccedilatildeo 322 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro VI 1139) (ldquoἕν τι microέρος τοῦ λόγον ἔχοντος ληπτέον ἄρ᾽ ἑκατέρου τούτων τίς ἡ βελτίστη ἕξις αὕτη γὰρ ἀρετὴ ἑκατέρου ἡ δ᾽ ἀρετὴ πρὸς τὸ ἔργον τὸ οἰκεῖον τρία δή ἐστιν ἐν τῇ ψυχῇ τὰ κύρια πράξεως καὶ ἀληθείας αἴσθησις νοῦς ὄρεξις τούτων δ᾽ ἡ αἴσθησις οὐδεmicroιᾶς ἀρχὴ πράξεως δῆλον δὲ τῷ τὰ θηρία αἴσθησιν microὲν ἔχειν πράξεως δὲ microὴ κοινωνεῖν ἔστι δ᾽ ὅπερ ἐν διανοίᾳ κατάφασις καὶ ἀπόφασις τοῦτ᾽ ἐν ὀρέξει δίωξις καὶ φυγή ὥστ᾽ ἐπειδὴ ἡ ἠθικὴ ἀρετὴ ἕξις προαιρετική ἡ δὲ προαίρεσις ὄρεξις βουλευτική δεῖ διὰ ταῦτα microὲν τόν τε λόγον ἀληθῆ εἶναι καὶ τὴν ὄρεξιν ὀρθήν εἴπερ ἡ προαίρεσις σπουδαία καὶ τὰ αὐτὰ τὸν microὲν φάναι τὴν δὲ διώκειν αὕτη microὲν οὖν ἡ διάνοια καὶ ἡ ἀλήθεια πρακτική τῆς δὲ θεωρητικῆς διανοίας καὶ microὴ πρακτικῆς microηδὲ ποιητικῆς τὸ εὖ καὶ κακῶς τἀληθές ἐστι καὶ ψεῦδος τοῦτο γάρ ἐστι παντὸς

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modo refletem esse importante traccedilo do ideal de formaccedilatildeo do homem antigo que

se faz na efetivaccedilatildeo de suas accedilotildees no mundo323 atraveacutes da linguagem

O termo que eacute utilizado pelo poeta para descrever esse processo comunicativo

entre os antigos estaacute contido nessa passagem que pertence ao segundo livro da

Iliacuteada Nela o poeta emprega o verbo mytheacuteomai324 para o ato de fala325 que conduz

essa experiecircncia original da linguagem no qual se fundamenta toda a tradiccedilatildeo oral

Dentro dessa mesma passagem podemos tambeacutem notar que essa accedilatildeo estaacute associada

de modo reciacuteproco agrave audiccedilatildeo326 nomenclatura327 conhecimento328 e gloacuteria329 A

proximidade relacional entre esses termos sugere que esse conjunto terminoloacutegico

forma a imagem da faculdade de criaccedilatildeo330 e expressatildeo que eacute amparada pela forccedila

divina de Mnemosyne a deusa da memoacuteria331 responsaacutevel por guardar o

διανοητικοῦ ἔργον τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁmicroολόγως ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ πράξεως microὲν οὖν ἀρχὴ προαίρεσιςmdashὅθεν ἡ κίνησις ἀλλ᾽ οὐχ οὗ ἕνεκαmdashπροαιρέσεως δὲ ὄρεξις καὶ λόγος ὁ ἕνεκά τινοςrdquo) ldquoSatildeo trecircs os itens na alma que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo inteligecircncia e desejo Entre eles a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio de accedilatildeo alguma como eacute evidente pelo fato de que os animais tecircm sensaccedilatildeo mas natildeo tecircm parte na accedilatildeo Aquilo que no pensamento eacute afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo no desejo eacute procurar ou evitar Consequentemente dado que a virtude do caraacuteter eacute uma habilitaccedilatildeo relativa ao propoacutesito e dado que o propoacutesito eacute um desejo deliberado eacute preciso por isso que o raciociacutenio seja verdadeiro e que o desejo seja correto ndash se o propoacutesito for virtuoso ndash e que o raciociacutenio afirme as mesmas coisas que o desejo procura Eacute nisso pois que consiste o pensamento realizador de accedilatildeo e a verdade realizadora de accedilatildeo Do pensamento teoacuterico isto eacute que natildeo leva nem agrave accedilatildeo nem agrave produccedilatildeo a boa e a maacute condiccedilatildeo consistem no verdadeiro e no falso (pois eacute essa a funccedilatildeo de toda a parte pensante) Mas da parte pensante que produz accedilatildeo a boa condiccedilatildeo consiste na verdade em acordo com o desejo corretordquo) Traduccedilatildeo de Lucas Angioni 323 No discurso fuacutenebre de Peacutericles que se encontra na histoacuteria da guerra do Peloponeso de Tuciacutedides (II 41 1-2) o grande estadista ateniense afirma que a ldquoverdade estaacute na accedilatildeotrabalhordquo (ἔργων ἐστὶν ἀλήθειαergon estiacuten aleacutetheia) Nessa expressatildeo podemos destacar a relaccedilatildeo entre aleacutetheia (natildeo esquecimentoverdade) e ergon (accedilatildeotrabalhofazer) que vem do projeto pedagoacutegico homeacuterico e hesiodico Nesse sentido a retoacuterica polida de Peacutericles - que se projeta como uma fala universal- estava bem atenta aos diferentes perfis soacutecio-poliacuteticos que ela deveria abranger No proacuteximo capiacutetulo vamos analisar o choque entre esses dois projetos pedagoacutegicos que revela a crise poliacutetica que se instaurou em Atenas apoacutes a queda da realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista IacutetacaUfrj 2015 324 Vide Homero Iliacuteada livro II (v 489) ldquoπληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνωrdquo ldquoPlethyn d ouk an ego mythesomai oud onomenordquo posteriormente voltaremos a analisar essa importante evidecircncia da tradiccedilatildeo oral na literatura antiga 325 Vide o emprego do termo (γλῶσσαιglossai) liacutenguas no verso 489 326 No emprego do verbo ἀκούοmicroενakouacutemen para o ato de ouvir 327 Para o ato de nomear (ὀνοmicroήνωonomeacuteno) Dentro desse ato como vimos nas consideraccedilotildees sobre o Craacutetilo de Platatildeo subtende-se que o poeta tambeacutem eacute uma figura responsaacutevel pela nominaccedilatildeo das coisas dentro desse contexto histoacuterico 328 No emprego do verbo (ἴστέisteacute) que eacute oriundo do verbo (οἶδαoida) para o ato de conhecer 329 O termo (κλέοςkleacuteos) gloacuteria que nesse contexto oral carrega tambeacutem o sentido de ouvir e de transmitir algum relato (mito) Vide Lidell amp Scott Posteriormente falaremos mais sobre esse ponto 330 ΠοίησιςPoieacutesis 331 ΜνηmicroοσύνηMnemosyne a divindade que personifica a memoacuteria e matildee das nove musas

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conhecimento de todas as coisas Dentro dessa tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que apresenta

a genealogia dos deuses332 eacute possiacutevel encontrarmos a configuraccedilatildeo natildeo apenas da

ordem divina mas da proacutepria estruturaccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem e da

racionalidade humana que se expressa atraveacutes da oralidade

Nesse contexto o mito que estaacute contido no radical desse verbo eacute algo

essencial para a organizaccedilatildeo cultural helecircnica sob as leis natildeo escritas333 dos deuses

que se comunicam com os mortais atraveacutes da fala inspirada334 Em seu livro sobre

o conceito de Phyacutesis para os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Gerard Naddaff (NADAFF

1992) apresenta uma hipoacutetese muito interessante sobre a utilidade dos mitos para

os gregos Aleacutem de todos os aspectos mnemocircnicos que ressaltamos na nossa tese

ele acrescenta mais trecircs caracteriacutesticas que aceitamos como razoaacuteveis para a

importacircncia do uso desse meio de expressatildeo para os gregos vejamos a seguir

anthropogocircnico335 sociogocircnico336 e politogocircnico337 Esses trecircs pontos satildeo oriundos

das cosmogonias miacuteticas que foram a base conceitual para os primeiros filoacutesofos

Para o professor lusitano Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) essa experiecircncia da

linguagem eacute algo excepcional que evidencia o entrelaccedilamento do homem com a

Natureza Ela assinala o exato instante que a observaccedilatildeo desses fenocircmenos naturais

passa a ocupar o seu pensamento de modo integrado e reflexivo Logo o ato de

criaccedilatildeo e expressatildeo ganham forma simultaneamente quando o mundo humano se

expande atraveacutes das inuacutemeras faces da poesia E eacute nesse interstiacutecio que ele se depara

332 Ou Teogonia Vide o livro homocircnimo de Hesiodo 333 Vide a seguir passagem de Antiacutegona de Soacutefocles onde eacute empregada essa expressatildeo que revela uma crise entre as leis humanas e divinas entre phyacutesis e nomos a partir do verso 455 (ὥστ᾽ ἄγραπτα κἀσφαλῆ θεῶν νόmicroιmicroα δύνασθαι θνητὸν ὄνθ᾽ ὑπερδραmicroεῖνoacutest agrapta kasphaleacute teon noema dynasthai) 334 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo (533d534e) nessa obra eacute exposta a imagem do poeta inspirado que vem dessa tradiccedilatildeo oral mais antiga Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo claacutessico a funccedilatildeo poeacutetica foi passando por diversas transformaccedilotildees A criacutetica de Platatildeo eacute direcionada agrave poesia que eacute construiacuteda atraveacutes de uma techneacute Essa corrente teria sido iniciada com o poeta liacuterico Simocircnides de Ceos que cobrava por seus versos e defendia o caraacuteter artificial da palavra poacuteetica Diante de uma concepccedilatildeo que foi muito difundida no periacuteodo claacutessico atraveacutes das obras de Phiacutedias a pintura era considerada como uma ilusatildeo ou coacutepia da realidade Para ele a pintura eacute poesia silenciosa enquanto que a poesia eacute a pintura que fala Notem que haacute uma aproximaccedilatildeo intencional entre os olhos e ouvidos Dois importantes sentidos que representam por um lado a tradiccedilatildeo oral e por outro o momento da reinserccedilatildeo da escrita e do auge das artes plaacutesticas Simocircnides pode tambeacutem ter contribuiacutedo para o surgimento do movimento sofiacutestico em Atenas pois para muitos autores antigos como Plutarco ele teria influenciado Goacutergias Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Sofistas ldquoTestimonios y fragmentosrdquo Trad Antonio Melero Bellido Madrid Gredos 1996 335 Relativo agraves criaccedilotildees humanas 336 Relativo agrave organizaccedilatildeo das sociedades humanas 337 Relativo agraves praacuteticas soacutecio-poliacuteticas

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com o drama original que obriga a agir de modo incisivo para poder afirmar a sua

proacutepria existecircncia nesse mundo

Como foi exposto no iniacutecio desse capiacutetulo eacute inegaacutevel que a maioria das

culturas antigas levantaram inuacutemeras questotildees que se expressam de diferentes

formas nessa importante praacutetica coletiva oral pois o homem eacute um ser movido por

esse anseio de conhecer o mundo que lhe abarca Esse fenocircmeno investigativo natildeo

eacute um privileacutegio exclusivo do advento da escrita E esses registros natildeo podem ser

interpretados unicamente como expressotildees de praacuteticas ritualiacutesticas no acircmbito da

religiatildeo Aliaacutes o professor Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) ressalta que a

mitologia natildeo deve ser compreendida como algo encerrada em si mesma Logo a

religiatildeo natildeo pode ser concebida como a sua essecircncia mas com um dos seus

inuacutemeros acidentes338 Dentro da tradiccedilatildeo oral o aedo por um lado eacute o

instrumento vivo que estabelece a conexatildeo com as forccedilas divinas e por outro atua

como um legislador e pedagogo agrave serviccedilo da realeza Ou seja ele pertence agrave classe

aristocraacutetica que utiliza os mitos entoados natildeo apenas para o acircmbito religioso mas

para a fundamentaccedilatildeo poliacutetica juriacutedica pedagoacutegica e social do seu povo Tendo

em vista esse fato o conteuacutedo miacutetico desempenha uma ampla gama de funccedilotildees de

acordo com cada contexto histoacuterico Portanto essa eacute a conclusatildeo que chegamos

apoacutes o levantamento desses estudos Dentro de toda tradiccedilatildeo oral o mito aparece

como uma expressatildeo central na construccedilatildeo cultural nos primoacuterdios da formaccedilatildeo da

mentalidade helecircnica

Em geral todas as civilizaccedilotildees antigas utilizavam esse recurso com o mesmo

objetivo339 de estruturaccedilatildeo cultural As primeiras cosmogonias por exemplo

carregavam essas caracteriacutesticas apresentadas que datildeo o fundamento necessaacuterio

para a tese defendida pelo helenista americano Naddaff Como apresentamos

anteriormente o mito tambeacutem desempenhava a funccedilatildeo de atender as demandas

soacutecio-poliacuteticas de cada comunidade helecircnica A organizaccedilatildeo e o equiliacutebrio da

antiga sociedade micecircnica por exemplo estava respaldada nos conteuacutedos que eram

338 Parafraseando Aristoacuteteles que diz ldquoo ser se diz de muitas maneirasrdquo podemos afirmar ldquoo mito se diz de muitas maneirasrdquo Para esse caso a conceituaccedilatildeo de substacircncia aristoteacutelica nos ajuda a compreender esse ponto que o professor Eudoro de Sousa estaacute destacando nessa passagem Para mais informaccedilotildees indicamos a leitura do seguinte livro SOUSA E ldquoMitologiardquo Lisboa Guimaratildees 1984 339 Vide o iniacutecio desse presente capiacutetulo e os relatos de Heroacutedoto sobre a sociedade egiacutepcia no seu livro chamado ldquoHistoacuteriasrdquo (Ἰστορἴαι historiai)

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repassados e mantidos em versos nos movimentos da danccedila dos ritos e nas

inuacutemeras obras esculpidas em maacutermore e pedra que serviam para facilitar a

memorizaccedilatildeo e efetivaccedilatildeo do controle poliacutetico pelo apelo auditivo e visual e que

culminava na heranccedila cultural de mais alto valor que deveria ser transmitida agraves

proacuteximas geraccedilotildees340 Logo todas as narrativas miacuteticas forneciam a mateacuteria prima

da poesia e da arte tradicional que era difundida e protegida atraveacutes dos ritos e

obrigaccedilotildees controladas pela aristocracia real E mesmo com a queda da realeza

micecircnica (VERNANT 1962) e as inuacutemeras transformaccedilotildees que ocorreram durante

esse momento de transiccedilatildeo algumas dessas praacuteticas lituacutergicas341 se mantiveram

durante o periacuteodo homeacuterico ateacute depois do claacutessico342

340 Para essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 341 Λειτουργίαleitourgia O vocaacutebulo Liturgia em grego formado pelas raiacutezes (leit- que vem de laoacutes povo) e - urgia (trabalho ofiacutecio) significa serviccedilo ou trabalho puacuteblico Para mais informaccedilotildees sobre esse vocaacutebulo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott λειτουργ-ία ἡ anterior Att λητ- IG 22114014 (386 BC) - em Atenas e em outros lugares (por exemplo Siphnos Isoc 1936 Mitylene Antipho 577) serviccedilo puacuteblico executado por cidadatildeos particulares agraves suas proacuteprias custas E 442 Lys 2119 etc λ ἐγκύκλιοι ordinaacuterias isto eacute anuais liturgias D 2021 λειτουργίαι microετοίκων opp πολιτικαἰ ib 18 II qualquer serviccedilo puacuteblico ou trabalho Phib 1784 (iii BC) etc in ἐπὶ τῶν λειτουργιῶν τεταγmicroένος em um exeacutercito o oficial que superintendia os operaacuterios carpinteiros etc Plb 3934 οἱ ἐπί τινα λ Idπεσταλmicroένοι Id 10165 geralmente dever militar UPZ 1525 (pl Ii BC) 2 geralmente qualquer serviccedilo ou funccedilatildeo ἡ πρώτη φανερὰ τοῖς ζῴοις λ διὰ τοῦ στόmicroατος οὖσα Arist PA 650a9 cf 674b9 20 IA 711b30 φιλικὴν ταύτην λ Luc Sal 6 3 serviccedilo ministraccedilatildeo ajuda 2 EpCor 912 Ep Phil 230 III serviccedilo puacuteblico dos deuses αἱ πρὸς τοὺς θεοὺς λ Arist Pol 1330a13 αἱ τῶν θεῶν θεραπεῖαι καὶ λ DS 121 cf UPZ 1717 (ii BC) PTeb 30230 (i AD) etc o serviccedilo ou ministeacuterio dos sacerdotes LXX Nu 825 Ev Luc 123 342 Para Vernant apoacutes a decadecircncia micecircnica ocorreram inuacutemeras transformaccedilotildees no modo de vida grego Entre elas estaacute a recusa da opulecircncia dos antigos funerais dos membros da antiga aristocracia real pois essa praacutetica produzia uma sensaccedilatildeo de diferenccedila social entre as pessoas ao fomentar inveja e desavenccedilas desnecessaacuterias que ameaccedilavam a harmonia social Logo esse indiacutecio pode ter sido um dos fatores para um novo tipo de organizaccedilatildeo poliacutetica que estimula a agoniacutestica ateacute mesmo no campo verbal De qualquer modo o poder da palavra como algumas praacuteticas sobretudo religiosas se mantiveram mesmo depois da queda da monarquia micecircnica Para mais informaccedilotildees vide o IV capiacutetulo (O universo espiritual da polis) do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000

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44 Mito e religiatildeo

Segundo o cientista poliacutetico francecircs Durkheim (DURKHEIM1912) as mais

elementares construccedilotildees mitoloacutegicas satildeo produtos que recobrem um fundo de

crenccedilas que constitui a base que auxiliou a edificaccedilatildeo dos mais diversos sistemas

religiosos na antiguidade No caso grego haacute uma enorme dificuldade de

entendermos essa questatildeo com o nosso olhar que eacute marcado pela nossa tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde Eacute inegaacutevel que a experiecircncia mito-poeacutetica esteja intimamente

relacionada com a religiatildeo mas o nosso grande problema eacute aceitar uma ordem de

valor na qual o mito estaria subordinado a ele com esse uacutenico propoacutesito O primeiro

ldquoespantordquo que todos os antigos apontam para o despertar humano e que culminou

no nascimento da proacutepria Filosofia tambeacutem pode ter sido a origem dessa separaccedilatildeo

entre duas instacircncias que teria sido responsaacutevel pela origem da Religiatildeo Nesse

caso a linha entre Religiatildeo e Filosofia eacute mais tecircnue do que podemos imaginar De

qualquer modo um ponto que todos os helenistas - independentemente de suas

teorias - estatildeo de acordo eacute no caso grego a experiecircncia mito-poeacutetica estaacute totalmente

relacionada com essas criaccedilotildees do pensamento humano que surgiram frente agrave

complexidade e grandiosidade da Phyacutesis Desse modo nos deparamos com mais

uma evidecircncia que reforccedila a tese apresentada por Naddaff anteriormente Pois o

domiacutenio do sagrado como um segredo insondaacutevel foi o objeto de desejo tanto dos

aedos e quanto dos primeiros filoacutesofos Cada um a seu modo se colocaram como os

responsaacuteveis por determinar esse limite entre o mundo dos mortais e imortais

Logo a tradiccedilatildeo miacutetica natildeo pode ser interpretada apenas associada agraves praacuteticas

religiosas primitivas Por tanto se faz necessaacuteria uma abordagem que possa

contemplar esse outro aspecto que apresentamos a partir de uma nova perspectiva

que estabeleccedila o seu lugar de valor como uma consistente praacutetica sapiencial343 que

343 Vide os fragmentos da poesia cosmoloacutegica mais antiga de Orfeu Museo e Epimecircnides curiosamente esses trecircs satildeo considerados na antiguidade como filoacutesofos e poetas Para os dois primeiros em alguns fragmentos encontramos o termo aedos (ἀοιδός) para classificaacute-los Esse eacute um importante indiacutecio que aponta a relaccedilatildeo entre a praacutetica sapiencial primitiva e a poesia oral O ponto em comum entre esses aspectos que podemos provisoriamente destacar eacute o papel desempenhado pela muacutesica que flutua entre o caraacuteter miacutestico e filosoacutefico Posteriormente pretendemos expor algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto No caso de Epimecircnides que fecha essa

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foi responsaacutevel por ampliar o processo de subjetividade coletiva helecircnica durante

esse momento histoacuterico Mesmo com essas ressalvas temos a consciecircncia de que

haacute ainda uma forte resistecircncia pela tradiccedilatildeo de especialistas que estudam essa

questatildeo pois muitos pesquisadores hesitam em aceitar uma nova abordagem que

tente encontrar a razatildeo do uso do conteuacutedo mito-poeacutetico em outras esferas da

sociedade grega A nossa intenccedilatildeo eacute de explorar essa via que foi esquecida para

uma atualizaccedilatildeo exegeacutetica em torno dessas questotildees que ainda carecem de razoaacuteveis

esclarecimentos

No caso da religiatildeo esse problema ainda eacute mais complexo pois mesmo com

a queda da realeza micecircnica e do periacuteodo de laicizaccedilatildeo344 que ganhou espaccedilo na

constituiccedilatildeo das primeiras polis com o advento da Democracia na Greacutecia o

fenocircmeno religioso ainda exercia uma profunda influecircncia na mentalidade coletiva

helecircnica345 Contudo haacute uma pergunta que precisa ser respondida como esse fato

foi possiacutevel A uacutenica teoria que poderiacuteamos utilizar para nos aproximar de uma

hipoacutetese aceitaacutevel seria uma concepccedilatildeo de religiatildeo que natildeo fosse imutaacutevel e

acompanhasse as diversas transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que ocorreram na Greacutecia

E nessa direccedilatildeo temos uma importante pista que talvez possa nos ajudar a

compreender esse problema Para Louis Gernet (GERNET 1968) por exemplo o

culto dionisiacuteaco346 parece ter sido uma praacutetica que natildeo pertencia a religiatildeo oficial e

triacuteade de filoacutesofos poetas miacutesticos vale lembrar uma impressionante histoacuteria que se encontra no livro de Dioacutegenes de Laeacutercio sobre a vida de Soacutelon (DL livro I) no qual narra que o poeta miacutestico foi chamado para extirpar uma terriacutevel praga em solo ateniense Independentemente do grau de veracidade o detalhe que destacamos eacute a sua atuaccedilatildeo desses saacutebios no campo social que se coaduna com o papel desempenhado pelos antigos aedos na antiga realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro DIELS Hermann e KRANZ Walther ldquoI Presocraticirdquo 3a ed Trad Giovanni Reale et al Milano Bompiani 2006 344 Ou processo de desconstruccedilatildeo da religiatildeo vigente Eacute notoacuterio que mesmo com o surgimento do regime democraacutetico houve uma abertura e transformaccedilatildeo dos antigos ritos pois eles nunca deixaram de existir na mentalidade grega Talvez fosse necessaacuterio reformular essa questatildeo a partir do sincretismo que eacute um traccedilo marcante da proacutepria formaccedilatildeo cultural grega que dialoga com a esfera poliacutetica eacutetica educativa e juriacutedica helecircnica 345 Haja vista os inuacutemeros processos de impiedade que foi noticiado em diversos relatos antigos Os filoacutesofos sofistas e poliacuteticos eram as figuras que mais sofriam em decorrecircncia desse problema Curiosamente o periacuteodo que esses intelectuais foram mais perseguidos foi o democraacutetico Logo eacute importante levar esse detalhe em consideraccedilatildeo na interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo sobretudo quando o filoacutesofo-poeta tece as suas duras criacuteticas ao regime democraacutetico (Vide a Repuacuteblica e as Leis) que foi responsaacutevel por condenar agrave morte o seu mestre Soacutecrates A necessidade de uma grande reforma poliacutetica e pedagoacutegica em Atenas surgiu da anaacutelise histoacuterica das organizaccedilotildees poliacuteticas gregas 346 E aqui poderiacuteamos citar o exemplo da religiatildeo oacuterfica e da confraria pitagoacuterica

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tradicional da antiga aristocracia grega347 Sendo de origem oriental e campesina

posteriormente foi absorvido para o seio dos rituais tradicionais controlados pela

aristocracia para fins administrativos Esse detalhe natildeo pode ser ignorado pois

revela o caraacuteter plaacutestico das praacuteticas religiosas helecircnicas Eacute provaacutevel que esse tipo

de fenocircmeno fosse moldado a partir de fortes pressotildees sociais e poliacuteticas de origem

interna e externa por toda extensatildeo territorial grega348 Curiosamente a experiecircncia

miacutetica tambeacutem parece ter sofrido diversas transformaccedilotildees para atender outras

demandas que surgiram no interior da vida helecircnica Por conseguinte eacute possiacutevel

que haja relaccedilatildeo entre esses indiacutecios mas essa pesquisa nos faria tomar um caminho

que nos distanciaria demais do presente objetivo349

De qualquer modo eacute importante ressaltar que para alguns antropoacutelogos como

Leacutevi-Strauss (STRAUSS 1964) o mito eacute um termocircmetro que podemos utilizar para

medir essas mudanccedilas que acompanharam a histoacuteria e o processo subjetivo coletivo

de qualquer povo Eacute notoacuterio que a formaccedilatildeo cultural helecircnica foi marcada por outros

povos egressos mais antigos como os grupos eacutetnicos da Europa e da Aacutesia que

ficaram conhecidos como indo-europeus Logo para se fazer um estudo minucioso

347 Segundo Louis Gernet o ritual dionisiacuteaco natildeo estaacute em hipoacutetese alguma relacionado com a realeza e nem com o antepassado das famiacutelias nobres ou com a formaccedilatildeo das cidades apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica Essa praacutetica religiosa teve origem entre os primeiros agricultores que viviam distante do palaacutecio e da parte territorial mais nobre da Greacutecia A Anthesteria (Ἀνθεστήρια Anthestếria de ἄνθος anthos flor portanto a festa das flores) eacute uma antiga festividade grega celebrada em honra do deus Dioniacutesio Esse evento de origem camponesa estaacute entre as mais tiacutepicas que foram preservadas na antiguidade e que aparece no calendaacuterio de Atenas e vaacuterias outras cidades Elas acontecem do deacutecimo primeiro ao deacutecimo terceiro dia do mecircs de anestesia o oitavo mecircs do calendaacuterio aacutetico (o uacuteltimo mecircs do ano antes de 1ordm de marccedilo comeccedilando o ano novo e o periacuteodo de guerra) correspondendo no calendaacuterio gregoriano no final de fevereiro e no iniacutecio de marccedilo Essas caracteriacutesticas alimentam a hipoacutetese da influecircncia estrangeira que foi essencial para o sincretismo grego desde o periacuteodo arcaico Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro LOUIS Gernet et ANDREacute Boulanger ldquoLe Geacutenie grec dans la religionrdquo Paris Albin Michel 1970 348 De modo anacrocircnico podemos pensar como ocorreu essa mudanccedila A expansatildeo do cristianismo que aconteceu entre o seacuteculo I e III em Roma que antes era uma cultura pagatilde foi posteriormente aceita como uma religiatildeo oficial atraveacutes de um decreto assinado pelo imperador Constantino Talvez algo similar possa ter acontecido entre os gregos antes da intervenccedilatildeo de Soacutelon Nesse sentido eacute bem provaacutevel que a religiatildeo dionisiacuteaca tenha sido assimilada como uma expressatildeo legiacutetima do estado Mesmo sendo uma divindade antagonista de Apolo Dioniacutesio representa uma forccedila de purificaccedilatildeo que era benfazeja para o cultivo agraacuterio das classes mais baixas Assim podemos concluir que a antiga organizaccedilatildeo poliacutetica administrada pela classe aristocraacutetica sentiu a necessidade de promover essa abertura por algum tipo de crise ou pressatildeo social Eacute importante ressalta por uacuteltimo que por causa do abastecimento agriacutecola oferecido por esses trabalhadores mais humildes a nobreza tenha recuado Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoAnthropologie de la Gregravece antiquerdquo preacuteface de Jean-Pierre Vernant Paris Flammarion 1982 349 Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo vide os seguintes livros DETIENNE Marcel ldquoA invenccedilatildeo da mitologiardquo Brasiacutelia EDUNB Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1992 E VERNANT J P ldquoMito e sociedade na Greacutecia Antigardquo 2ordf ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1999

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sobre esse problema seria necessaacuterio analisar esses aspectos em outras culturas orais

antigas a partir de suas respectivas praacuteticas linguiacutesticas350 poliacuteticas religiosas e

artiacutesticas que estejam relacionadas ao uso da mitologia para esses fins Como foi

ressaltado por noacutes anteriormente no iniacutecio desse presente capiacutetulo a tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica natildeo pode ser considerada como uma instacircncia independente ou estanque

(GRIMAL 1987) pois ela acompanha todo o processo de desenvolvimento

humano nos seus mais diferentes contextos de atuaccedilatildeo que atravessa desde da

origem da Religiatildeo ateacute as primeiras praacuteticas sapienciais que foram importantes para

o desenvolvimento da Linguagem Educaccedilatildeo Direito Literatura Arte e Filosofia

no mundo antigo

45 Mito e a voz

Haacute vaacuterios sentidos para esse termo o emprego mais antigo que encontramos

estaacute na poesia homeacuterica como expusemos anteriormente351 e ele estaacute associado ao

nosso ato de fala O mito eacute a palavra que designa o pensamento que se exprime

atraveacutes da liacutengua de modo literal e natural352 Como uma histoacuteria espontacircnea e

350 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro BENVENISTE E ldquoLe vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes 1 Eacuteconomie parenteacute socieacuteteacute 2 Pouvoir droit religionrdquo Paris Eacuteditions de Minuit 1969 351 Vide Homero Iliacuteada (livro II v 489) 352 Esse eacute o seu sentido originaacuterio que encontramos no dicionaacuterio Lydell amp Scott microῦθος ὁ palavra fala freq em Hom e outros Poetas em sg e pl πος καὶ microῦθος Od 11561 opp ἔργον microύθων τε ῥητῆρ ἔmicroεναι πρηκτῆρά τε ἔργων Il 9443 cf 19242 esp mera palavra microύθοισιν opp ἔγχεϊ 18252 ἔργῳ κοὐκέτι microύθῳ A Pr 1080 (anap) Etc - em relaccedilotildees especiais 2 discurso puacuteblico micro Odνδρεσσι microελήσει Od 1358 microύθοισιν σκολιοῖς Hes Op 194 microύθου ἐπισχεσίη a apresentaccedilatildeo de um fundamento Od 2171 πρὶν ἂν ἀmicroφοῖν micro ἀκούσῃς οὐκ ἂν δικάσαις Ar V 725 microύθοισι κεκάσθαι para ter habilidade na fala Od 7157 3 conversa principalmente em pl 4214 239 etc 4 coisa disse fato mateacuteria microῦθον δέ τοι οὐκ ἐπικεύσω ib 744 τὸν ὄντα micro Enguia 346 ameaccedila comando ἠπείλησεν microῦθον Il 1388 cf 25 1683 cobrar missatildeo 9625 conselho conselho 7358 5 coisa pensamento palavra natildeo dita propoacutesito design 1545 (pl) microύθων οὓς microνηστῆρες ἐνὶ φρεσὶ βυσσοδόmicroευον Od 4676 cf 777 ἔχετ ἐν φρεσὶ microῦθον 15445 5χε σιγῇ micro ἐπίτρεψον δὲ θεοῖσι 19502 cf 11442 mateacuteria θεοῖσι microῦθον ἐπιτρέψαι 22289 microῦθον microυθείσθην τοῦ εἵνεκα λαὸν ἄγειραν o motivo 3140 6 dizendo κατὰ τὸν ἡmicroέτερον micro Pl Epin 980a οὐκ ἐmicroὸς ὁ micro ἀλλ E Fr 484 cf Pl Smp 177a Ligue Lav 56 Ph 1601 Plu 2661a viu proveacuterbio τριγέρων micro τάδε φωνεῖ A Ch 314 (anap) 7 conversa de homens boato ἀγγελίαν τὰν ὁ microέγας micro Sέξει S Aj 226 (lyr) Cf 188 (lyr Pl) E IA 72 relatoacuterio mensagem S Tr 67 (pl) E Ion 1340 II conto histoacuteria narrativa Od 394 4324 S Ant 11 etc em Hom como o λόγος posterior sem distinccedilatildeo de verdadeiro ou falso micro παιδός ou sobre ele Od 11492 na Trageacutedia Ἀκούσει microῦθον ἐν βραχεῖ λόγῳ(χρόνῳ cod M) A Pers 713 microύθων τῶν Λιβυστικῶν Id Pe 1391 em Prosa τὸν εἰκότα micro a mesma histoacuteria como lihood pl Ti 29d prov Μ πώλετο seja de uma histoacuteria que nunca chega ao fim ou de um contado para aqueles que natildeo ouvem Cratin 59 Crates Com 21 pl Th 164d cf R 621b Lg 645b Phlb 14a micro ἐσώθη esse eacute o fim da histoacuteria Phot 2 ficccedilatildeo (opp Λόγος verdade histoacuterica) Pi O 129 (pl) N 723 (pl) Pl Phd 61b Prt 320c 324d etc 3 geralmente ficccedilatildeo micro

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orgacircnica que natildeo tem a necessidade de verificaccedilatildeo factual353 pois dentro dessa

especiacutefica conjuntura oral o criteacuterio de verdade estava totalmente subordinado agrave

memoacuteria que era validada atraveacutes do desempenho persuasivo do aedo ao revelar

para o mundo a palavra ambiacutegua dos deuses e a accedilatildeo do homem nobre que tinha

alcanccedilado o seu respeito atraveacutes de suas conquistas no campo de batalha atraveacutes da

eacutepica homeacuterica354 Dentro desse contexto esses dois traccedilos eram relacionaacuteveis a

partir do horizonte divino que era o paracircmetro fundamental para a construccedilatildeo

mimeacutetica do horizonte humano355 A expressatildeo dessa ldquoverdaderdquo pode ser obtida

atraveacutes de vaacuterias perspectivas Uma delas que gostariacuteamos de salientar pode ser

fornecida atraveacutes dos jogos Oliacutempicos que nasceu a partir do mito de Heacuteracles356

Phδιοι Phld Po 55 lenda mito Hdt 245 pl R 330d Lg 636c etc ὶ περὶ θεῶν micro Epicur Ep 3p65 U τοὺς micro τοὺς ἐπιχωρίους γέγραφεν SIG 3827 (Delos iii aC) 4 professada obra de ficccedilatildeo histoacuteria infantil faacutebula Pl R 377a das faacutebulas de Esopo Arist Mete 356 b11 5 enredo de uma comeacutedia ou trageacutedia Id Po 1449b5 1450a4 1451a16 III = στάσις Panyas em CollAlex p249 vl em Batr 135 cf microυθιήτης 353 Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo preacute-homeacuterico o poeta ou aedo era o paracircmetro para a noccedilatildeo de verdade que estava associada ao sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo Para mais informaccedilotildees vide o segundo capiacutetulo do seguinte livro DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap II (A memoacuteria do Poeta) pag 15 354 Vide Iliacuteada (Livro IX 443 ndash 455) ldquoOacute luminoso Aquiles se de fato tens o retorno na mente se das naus velozes natildeo queres afastar o fogo vorador possuiacutedo de ira como poderei quedar-me sem ti abandonado Peleu domador-de-corceacuteis quando haacute tempo da Ftia te mandou a Agamecircmnon enviou-me contigo eras muito jovem inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da aacutegora onde os nobres formam-se Por isso me mandou para que te fizesse na oratoacuteria eminente eficiente nas obras Sem ti natildeo ficaria filho mesmo que um deus desvestir do meu corpo a senescecircncia prometesse e a flor dos anos restituir-me quando deixei - mulheres lindas - a Heacutelade fugindo de meu pai o Ormeniacuteade Amintor com o qual brigara disputando-lhe a platino loura pulcra amante por ele em desfavor da esposa preferida Rogara-me minha matildee que a outra eu possuiacutesse insuflando oacutedio ao velho Coisa que fiz obedecendo Deu-se conta o pairdquo Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 355 Nas Leis (livro IV 716 c) Platatildeo parte dessa mesma constataccedilatildeo que tambeacutem pode ser encontrada em outras obras como Timeu no qual apresenta uma relaccedilatildeo proporcional entre o homem cidade e cosmos A figura do demiurgo eacute um espelho para o homem pois nessa idealizaccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer a construccedilatildeo de um caminho seguro para encontrar a plenitude existencial tatildeo almejada Curiosamente eacute possiacutevel perceber que esse artificie divino carrega traccedilos humanos (Timeu - 37 c7) que fazem jus aquela passagem biacuteblica encontrada no livro do Gecircnesis (126) que afirma que o homem eacute feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus Nesse sentido o filoacutesofo poeta parece retomar e reformular esse ideal da sua linhagem nobre que surgiu antes mesmo do periacuteodo preacute-homeacuterico De um modo geral o seu pensamento sempre dialogou com a tradiccedilatildeo Eacute importante ressaltar que mesmo em sua uacuteltima fase de vida Platatildeo nunca deixou de demonstrar o seu profundo respeito pela tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica As suas criacuteticas agrave poesia satildeo formuladas a partir do efeito colateral que ela produziu durante o surgimento da Democracia atraveacutes de Simocircnides de Ceos e do surgimento do movimento pedagoacutegico sofiacutestico 356 Eacute importante salientar que para muitos estudiosos havia uma atividade na civilizaccedilatildeo minoica que eacute muito similar aos jogos oliacutempicos pois ela combinava esporte danccedila e atletismo como parte de suas cerimocircnias religiosas puacuteblicas Aleacutem de outros elementos que pretendemos apresentar em momento oportuno como a proacutepria origem mito de Heacuteracles e da sua importacircncia no periacuteodo eacutepico eacute provaacutevel que essas atividades se perpetuaram atraveacutes da tradiccedilatildeo oral apoacutes a queda da civilizaccedilatildeo micecircnica durante o periacuteodo das trevas dos povos remanescentes que ajudaram a formar posteriormente a cultura grega Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto gostariacuteamos de recomendar

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Esse festival foi criado para prestigiar os deuses atraveacutes do ritual que exalta a

lembranccedila dos grandes heroacuteis miacuteticos357 e manter acesa a beleza das accedilotildees desses

homens superiores em astuacutecia inteligecircncia forccedila e coragem Os poetas tinham o

dever de imortalizaacute-los atraveacutes dessas virtudes cardeais Enquanto Homero canta

os feitos de seus heroacuteis a poesia de Piacutendaro de Tebas homenageava a vitoacuteria dos

grandes competidores358 Assim como a poesia esse certame era responsaacutevel por

delimitar a fronteira entre o espaccedilo humano e divino e o espanto359 primordial que

elevou o espiacuterito humano atraveacutes da accedilatildeo bela que construiu uma forma de

afirmaccedilatildeo existencial a partir do reconhecimento da nossa mortalidade A

excelecircncia360 e a sabedoria praacutetica361 eram os traccedilos de uma pedagogia362 que tinha

como objetivo fornecer ao indiviacuteduo os meios para alcanccedilar a sua plenitude

existencial363 atraveacutes do respeito e desenvolvimento de suas aptidotildees que deveriam

estar agrave serviccedilo do bem maacuteximo da comunidade364 Essa bela accedilatildeo deveria ser

alcanccedilada no acircmbito da guerra poliacutetica assembleias e nos jogos O ideal de beleza 365 e coragem366 estavam inseridos em todas essas expressotildees da cultura helecircnica

Foi a partir dessa noccedilatildeo que surgiu a possibilidade da construccedilatildeo de uma moral que

pudesse realizar em grau maacuteximo a harmonia entre o mundo humano e o cosmos

divino E para a execuccedilatildeo desse objetivo encontramos uma coleccedilatildeo de mitos em

torno da figura de Heacuteracles367 As narrativas que envolvem o seu nome eacute sem duacutevida

alguma um dos legados da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica de maior repercussatildeo e atuaccedilatildeo

no mundo antigo Basta lembrar que aventuras protagonizadas pelo heroacutei perdurou

a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 357 Nesse ponto podemos sublinhar a importacircncia do mito para o nascimento da competiccedilatildeo oliacutempica 358 Vide as odes oliacutempicas de Piacutendaro 359 Θαύmicroα thaacuteuma 360 Αρετές areteacutes 361 Φρόνησις phroacutenesis Vide a Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1214- a33-b35) 362 Παιδεία paideacuteia 363 Eὐδαιmicroονία eudaimonia 364 Κοινωνία koinonia 365 Kαλός καγαθός kaloacutes kagathoacutes 366 Ανδρείαandreia 367 Vide a obra de Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 8 Nesse livro haacute uma compilaccedilatildeo sobre os principais mitos desse importante heroacutei grego que no periacuteodo latino ficou conhecido sob a alcunha de Heacutercules No item sobre a relaccedilatildeo entre mito e epos pretendemos apresentar mais algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia dessa temaacutetica para a cultura helecircnica na antiguidade

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do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute ser importado para ser utilizado como figura lendaacuteria

dentro da mitologia romana368

Na obra do historiador grego Diodoro de Siciacutelia que se chama ldquoBiblioteca

histoacutericardquo que foi escrita por volta do seacuteculo I aC nos deparamos com diversas

passagens no qual o proacuteprio autor chama a nossa atenccedilatildeo para as vaacuterias incoerecircncias

entre esses relatos miacuteticos mas essa objeccedilatildeo natildeo ofusca o valor dessa tradiccedilatildeo oral

pois ela ainda exercia uma grande relevacircncia para a educaccedilatildeo dos antigos Diodoro

chega a justificar para seus leitores que no teatro nos deparamos com vaacuterias

histoacuterias fantasiosas de centauros e de outros seres maacutegicos e nem por isso

deixamos de aplaudir e de honrar as divindades Nesse sentido podemos claramente

perceber o seu esforccedilo de conciliar a tradiccedilatildeo miacutetica com o rigor histoacuterico que

comeccedilou a ser cobrado a princiacutepio com a obra a ldquoHistoacuteria da guerra de

Peloponesordquo de Tuciacutedides369 Esse detalhe natildeo pode passar despercebido entre noacutes

pois revela que mesmo no periacuteodo romano a mitologia ainda vigorava com muita

forccedila entre o mundo grego e romano No caso de Heraacutecles os seus doze trabalhos

foram utilizados para incutir os ideais de coragem e persistecircncia na pedagogia

helecircnica e latina Esses valores idealizados eram projetados em todas as atividades

que perpassava o aspecto militar da educaccedilatildeo homeacuterica ateacute a importacircncia do

trabalho fomentado pela poesia hesiodica Eacute sob essa perspectiva que podemos

encontrar o caraacuteter plaacutestico da mitologia que pocircde ser explorado infinitamente por

diversos poetas e aedos para vaacuterios fins No caso do mito de Heacuteracles por exemplo

um desses usos mais antigos culminou na fundaccedilatildeo dos jogos Oliacutempicos na

Greacutecia370 E como foi exposto por noacutes anteriormente esse festival puacuteblico tinha o

objetivo de estimular em todos os homens essa afirmaccedilatildeo de excelecircncia atraveacutes da

accedilatildeo efetiva que tem o objetivo de zelar o equiliacutebrio social e poliacutetico da civilizaccedilatildeo

368 E nesse momento nos deparamos in loco com a prova do uso da tradiccedilatildeo mito poeacutetica que perdurou ateacute o periacuteodo heleniacutestico 369 O helenista britacircnico Francis Cornford natildeo pensa desse modo Ele afirma que a nossa historiografia moderna projetou de modo anacrocircnico e equivocado os nossos criteacuterios de cientificidade sobre a obra do ilustre grego pois Tuciacutedides natildeo conhecia o conceito de causalidade histoacuterica E nesse sentido temos que estudar a sua obra a partir do seu respectivo contexto histoacuterico que estava vinculada diretamente a mentalidade traacutegica das peccedilas de Eacutesquilo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro CORNFORD F M ldquoThucydides Mythistoricusrdquo London 1907 370 Vide Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 14

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helecircnica Esse foi o caminho construiacutedo para a manutenccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses

povos

Nesse sentido o atletismo371 foi a atividade que materializou esse ensejo

coletivo Ele se tornou o siacutembolo maacuteximo da cultura grega que foi responsaacutevel por

carregar esse legado da educaccedilatildeo aristocraacutetica mais antiga A competiccedilatildeo372 foi um

traccedilo tatildeo marcante que essa experiecircncia ficou eternizada em um ritual ciacutevico para

lembrar a importacircncia dessa atividade na formaccedilatildeo humana atraveacutes da Paideacuteia

(Educaccedilatildeo)373 Em cada prova esse contato com o mundo divino eacute rememorado e

reafirmado entre seus inuacutemeros competidores O homem atraveacutes do seu esforccedilo

fiacutesico e mental pode alcanccedilar o seu valor quando ultrapassa os seus proacuteprios

limites que foram impostos a priori pela natureza Esse gesto magnifico - que eacute

atualmente compartilhado entre diversas culturas em nosso mundo ndash tem o poder

de aproximar o homem dos deuses em cada recorde alcanccedilado Um degrau de

ascensatildeo que eleva o atleta e lhe fornece as devidas honras e gloacuterias que eacute obtida

pela accedilatildeo vitoriosa que abrange do campo individual ao coletivo374 Ou seja

somente atraveacutes da bela accedilatildeo no terreno da disputa o competidor ndash e o guerreiro -

pode estabelecer um diaacutelogo no qual resulta o seu reconhecimento e valor dentro

371 Esse termo traz em seu radical o sentido de combate competiccedilatildeo e disputa Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott ἀθλ-έω athleacuteo Ion impf ἀέθλεον Hdt 167 7212 aor ἤθλησα (v infr) pf ἤθληκα Plu Demetr 5mdash Med aor ἐνηθλησάmicroην AP 7117 (Zenod)mdash Pass pf κατήθληmicroαι Suid (ἆθλος ἆθλον)mdashforma comum dos estrangeiros usado por Homero somente no aoristo Particiacutepio Λαοmicroέδοντι ἀθλήσαντε tendo contenda com ele Il 7453 πολλάπερ ἀθλήσαντα tendo paacutessdo por muitas lutas 1530 contenda em batalha Hdt 7212 πρός τινα 167 ἀ ἄθλους ἀ κατὰ τὴν ἀγωνίαν Pl Ti 19c and b cf Lg 830a ἤθλησα κινδυνεύmicroατα have engaged in perilous struggles S OC 564 φαῦλον ἀθλήσας πόνον E Supp 317 ἀ τῷ σώmicroατι Aeschin 2147 II Para ser um atleta e disputar nos jogos Simon 149 CIG 2810b (Aphrodisias) III Realizar jogos ἐπ αρχεmicroόρῳ B 812 372 Αγώνεςagones 373 Para mais informaccedilotildees vide os seguintes livros ROCHA PEREIRA MARIA H ldquoEstudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Irdquo Cultura Grega Lisboa 2006 E ANDRONICOS E (e outros) ldquoJogos Oliacutempicos na Greacutecia Antigardquo Ed Odysseus 2004 374 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo Ou seja ela eacute (ενέργεια τισ εστιν eneacutergeia tis estiacuten) uma atividade e natildeo uma possessatildeo Eacute importante ressaltar que para o filoacutesofo macedocircnio essa conquista eacute algo que abrange do campo coletivo ao individual A diferenccedila que encontramos sobre essa questatildeo entre o periacuteodo homeacuterico e claacutessico eacute o fato de que para Homero a moral natildeo eacute autocircnoma pois ainda estaacute subserviente da vontade dos deuses No caso de Aristoacuteteles ela eacute imanente ao homem e surge como decorrecircncia da atividade poliacutetica que visa estabelecer a harmonia na polis Somente nela o indiviacuteduo pode realizar as suas competecircncias em maacuteximo grau para encontraacute-la e compartilhaacute-la para o equiliacutebrio total da cidade e consequentemente encontrar a sua plenitude existencial Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SNELL Bruno ldquoA descoberta do espiacuteritordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 E ARISTOTLE ldquoNicomachean Ethicsrdquo Loeb Classical Library Trans H Rackham Rev ed Cambridge Mass 1934

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da imortalidade que foi recebida como uma daacutediva dos deuses pelo canto dos

poetas no mundo humano Exatamente como ocorreu no mito de Heacuteracles Atraveacutes

dessa perspectiva podemos reconhecer a eficaacutecia do poder materializador da

mitologia ao transformar homens em seres quase divinos que ganharatildeo a sua

imortalidade375 e fama atraveacutes de suas accedilotildees que seratildeo expostas e cantadas como

modelo para as geraccedilotildees vindouras Eacute unicamente nesse contexto que a tradiccedilatildeo

mito-poeacutetica revela o seu maacuteximo valor e alcance na vida dos mortais

Mas antes desse momento de gloacuteria coletiva a accedilatildeo criadora eacute soprada da

alma para os laacutebios do aedo Esse som produzido por esse gesto poeacutetico estaacute no

termo myacutetha376 que eacute o uso mais antigo para phoneacute377 o som da voz responsaacutevel

375 E natildeo-esquecimento na histoacuteria humana 376 Μύθα myacutetha Som da voz 377 Para mais informaccedilotildees obre esse termo vide o dicionaacuterio do Lidell amp Scott φων-ή ἡ som tom prop o som da voz seja de homens ou animais com pulmotildees e garganta (ἡ φωνὴ ψόφος τίς ἐστιν ἐmicroψύχου Arist de An 420b5 cf 29 HA 535a27 PA 664b1) opp φθόγγος (v φθόγγος 11) I principalmente de seres humanos fala voz enunciaccedilatildeo φ Ilρρηκτος Il 2490 ἀτειρέα φ 17555 φ δέ οἱ αἰθέρ ἵκανεν do grito de guerra de Ajax 15686 do grito de guerra de um exeacutercito Τρώων καὶ αχαιῶν φ δεινὸν ἀϋσάντων 14400 pl dos gritos de pessoas do mercado X Cyr 123 τόνος τῆς φ Identidade Cyn 620 D 18280 Aeschin 3209 ὀξεῖα βαρυτέρα λεία τραχεῖα φ Pl Ti 67b φ microαλακή Nu 979 (anap) microιαρά ἀναιδής Id Eq 218 638 com Verbos φωνὴν ῥῆξαι Hdt 185 Ar Nu 357 (anap) φ Hέναι Hdt 22 423 Pl Phdr 259d etc φ Eσει E HF 1295 προίεσθαι Aeschin 223 Xρθροῦν X Mem 1412 διαρθρώσασθαι Pl Prt 322a Aντείνασθαι Aeschin 2157 φ ῖπαρεῖ D 19336 ῇωνῇ com a voz em voz alta Il 3161 Pi P 929 εἶπε τῇ φωνῇ τὰ ἀπόρρητα Lys 651 διὰ ζώσης φωνῆς Anon GeogEpit 1p488M microιᾷ φ com uma voz Luc Nigr 14 ἀπὸ φωνῆς c gen ditado por Choerob em Thd 1103 tit Marin em EucDat p234 M Olymp em Grg p 1 N Pall no Hp 21 D pl Αἱ φ as notas da voz Pl Grg 474e σχήmicroασι καὶ φωναῖς Arist Rh 1306a32 prov ῇωνῇ ὁρᾶν de um homem cego S OC 138 (anap) πᾶσαν τὸ λεγόmicroενον φ ἱέντα ou seja usando todos os esforccedilos Pl Lg 890d cf Euthd 293a πάσας ἀφιέναι φωνάς Id R 475a D 18195 ἀωνὰς ἀπρεπεῖς προίεντο PTeb 80215 (ii B C) 2 o grito de animais como de suiacutenos catildees bois Od 10239 1286 396 de jumentos Hdt 4129 do rouxinol canccedilatildeo Od 19521 νθρωπος πολλὰς φωνὰς ἀφίησι τὰ δὲ ἄλλα microίαν Arist Pr 895a4 3 qualquer som articulado opp ruiacutedo inarticulado (ψόφος) κωκυmicroάτων S Ant 1206 ὥσπερ φωνῆς οὔσης κατὰ τὸν ἀέρα πολλάκις καὶ λόγου ἐν τῇ φωνῇ Trama 6412 στοιχεῖόν ἐστι φ ἀδιαίρετος Arist Po 1456b22 tambeacutem especialmente de vogal op para de consoantes Pl Tht 203b Arist HA 535a32 na criacutetica literaacuteria de som opp significados Ph Po 520 (pl) 21 4 de sons feitos por objetos inanimados principalmente Poeta κερκίδος S S Fr 595 συρίγγων E Tr 127 (lyr) αὐλῶν Mnesim 456 (anap) raro no iniacutecio da prosa φργάνων φωναί Pl R 397a LXX Ex 2018 ροντῆς ib Ps 103 (104) 7 ὐ φ αὐτοῦ ὡς φ ὑδάτων πολλῶν Apoc 115 5 geralmente som definido como ἀὴρ πεπληγmicroένος πληγὴ ἀε ρος Zeno Stoic 121 Chrysippib 243 II faculdade de fala discurso εἰ φωνὴν λάβοι S El 548 παρέσχε φωνὴν τοῖς ἀφωνήτοις τινά Id OC 1283 2 linguagem hdt 4114 117 ἀνθρωπηίη Id 255 ἀγνῶτα φ βάρβαρον A Ag 1051 φωνὴν ἥσοmicroεν Παρνησίδα Id CH 563 cf E Or 1397 (lyr) Th 65 757 X Cyn 23 pl Ap 17d etc τῶν βαρβάρων πρὶν microαθεῖν τὴν φ Identidade Th 163b κατὰ τὴν αττικὴν τὴν παλαιὰν φ Identidade Cra 398d cf 409e III frase dizendo τὴν Σιmicroωνίδου φ Identidade Prt 341b ἡ τοῦ Σωκράτους φ Plu 2106b cf 330f etc de foacutermulas στοιχειώmicroατα καὶ φ Epicur Ep 1p4U cf SentVat 41 (= Metrod Fr 59) αἱ σκεπτικαὶ φ SE P 114 cf jul Ou 5162b etc IV relatoacuterio rumor LXX Ge 4516 b mensagem Sammelb 725221 (iii iv A D) V fala alta se gabando Epicur SentVat 45

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pela comunicaccedilatildeo entre homens e deuses O vocaacutebulo My378 no dicionaacuterio Liacutedell amp

Scott que estaacute presente na raiz da palavra mito musa379 e no verbo myacutetheomai380

corresponde em sua forma mais elementar na literatura helecircnica ao murmuacuterio feito

pelos laacutebios Esse som primaacuterio eacute o ponto inaugural que assinala o comeccedilo dessa

experiecircncia expressiva e criativa do homem do periacuteodo preacute-homeacuterico381 na

linguagem A voz antes mesmo de formular uma palavra expressa a forccedila da vida382

que ecoa no corpo como uma espeacutecie de possessatildeo divina atraveacutes do espanto Esse

ruiacutedo confuso antes mesmo de encontrar a melodia e o ritmo da muacutesica em nosso

batimento cardiacuteaco que ampliou o desenvolvimento cultural grego apoacutes essa

descoberta talvez tenha se originado como uma resposta ao momento em que o som

do trovatildeo383 mar384 e o do vento385 tenham despertado os sentidos desse homem

para esses fenocircmenos naturais Aos poucos ele vai percebendo que o ritmo que se

impotildee ao seu redor e no seu proacuteprio corpo lhe revela o pulsar majestoso da vida386

378 Μῦ τό nome da letra micro IG 2432124 (iv B C) Epigr ap Ath 10454f Hellad ap Phot Bibl p530 B etc 2 microῦ ou microὺ microῦ para representar um som de murmuacuterio feito com os laacutebios microῦ λαλεῖν para murmurar Hippon 80 (dubl l) para imitar o som de soluccedilos microὺ microῦ microὺ microῦ Ar Eq 10 379 Natildeo eacute fortuita a relaccedilatildeo entre esses termos Como foi visto anteriormente as musas satildeo as entidades divinas fundamentais para o processo de conhecimento comunicaccedilatildeo memoacuteria e educaccedilatildeo grega Eacute importante ressaltar que o verbo ldquoiniciarrdquo tambeacutem eacute oriundo desse mesmo radical (Vide o dicionaacuterio Lidell amp Scott para esse termo microύησις [υ] myacuteesis εως ἡ iniciaccedilatildeo Androt 34 OGI 7647 (Pergam Ii B C) Herm em Phdr p158 A etc em pl Ph 1156 Plu 2169d SIG 126727 (Ios iii A D) Iamb VP 1774) 380 Homero Iliacuteada (livro II v 489) Como foi exposto anteriormente essas divindades satildeo responsaacuteveis por ldquoiniciarrdquo ou ldquoensinarrdquo aos homens as coisas mais belas e uacuteteis para a sua sobrevivecircncia Nesse sentido a arte das musas que no grego corresponde ao termo mousikeacute (microουσικὴ) refere-se aos conjuntos de atividades que o homem precisava praticar para encontrar a sua plenitude existencial 381 Segundo os arqueoacutelogos e historiadores que tratam dessa questatildeo da formaccedilatildeo cultural grega durante o periacuteodo preacute-homeacuterico os primeiros habitantes indo-europeus que eram formados por tribos de origem ariana (aqueus jocircnios eoacutelios e por uacuteltimo os doacuterios) apareceram por volta de 1200 aC a 1100 aC e atraveacutes do processo de mesticcedilagem formaram as primeiras civilizaccedilotildees neoliacuteticas gregas que foram responsaacuteveis por inaugurar a civilizaccedilatildeo helecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E KIRK G S ldquoHomer and the Oral Traditionrdquo Cambridge 1976 382 Para a fonoaudiologia a voz eacute o som produzido utilizando as cordas vocais O pulmatildeo eacute o oacutergatildeo responsaacutevel por gerar a corrente de ar necessaacuteria para esse processo Curiosamente o elemento primordial para o filoacutesofo preacute-socraacutetico Anaxiacutemenes era o focirclego (πνεῦmicroαpneuma) que era considerado ateacute pelos estoicos como a forccedila criadora da vida 383 Ζεύς Zeus eacute o pai dos deuses (πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε pater andron te theon te) O soberano uacutenico do Olimpo que reina sobre as demais divindades na mitologia grega Eacute o deus dos ceacuteus raios relacircmpago que mantecircm a ordem e justiccedila do mundo 384 Ποσειδῶν Poseidōn eacute o deus do mar 385 Αίολος Aiacuteolos eacute o senhor dos ventos 386 Atraveacutes do reconhecimento da existecircncia da alma Para Erwin Rohde o culto das almas foi a forma mais antiga de religiatildeo em diversos povos antigos No caso dos gregos o helenista alematildeo vai estudar esse fenocircmeno a partir dos poemas homeacutericos e de Piacutendaro e dos fragmentos doxograacuteficos sobre o orfismo e o pitagorismo antigo Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura

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e de sua conexatildeo com o mundo que parte de uma forccedila invisiacutevel que ordena e

estabelece a ordem entre todas as coisas387 A partir desses indiacutecios apresentados

natildeo podemos em hipoacutetese alguma subestimar o papel desempenhado pela mitologia

na tradiccedilatildeo oral Dentro desse contexto o mito foi essencial para efetivaccedilatildeo

existencial da cultura helecircnica Mesmo com o advento da escrita posteriormente e

a expansatildeo da ciecircncia e da filosofia que se fundamenta atraveacutes do seu rigor factual

o recurso miacutetico ainda era utilizado por diversos intelectuais em suas obras durante

e depois do periacuteodo claacutessico (VEYNE 1984) Por conseguinte essa evidecircncia natildeo

pode ser ignorada nos estudos que abordam o desenvolvimento da mentalidade

grega na antiguidade

46 Mito e muacutesica

O primeiro som ouvido e posteriormente exprimido pela voz humana e das

musas estaacute contido no radical da palavra mito Como foi exposto por noacutes

anteriormente388 a tradiccedilatildeo oral se desenvolveu atraveacutes do domiacutenio da arte sonora

que foi essencial para o processo de comunicaccedilatildeo e conhecimento da tradiccedilatildeo preacute-

homeacuterica389 Dentro desse contexto a muacutesica sem duacutevida alguma eacute um dos eixos

do seguinte livro ROHDE Erwin ldquoPsyche The Cult of Souls and the Belief in Immortality among the Greeksrdquo trans from the 8th edn by W B Hillis London Routledge amp Kegan Paul 1925 387 Vide a poesia ldquoRerum naturardquo de Lucreacutecio que expressa esse cosmo em versos O helenista britacircnico James Adam ao avaliar a dimensatildeo do pensamento platocircnico na antiguidade cita um poema beliacutessimo chamado ldquoOde Intimations of Immortality from Recollections of early childhoodrdquo do grande poeta romacircntico escocecircs William Wordsworth que expressa de modo sublime o espanto da natureza sobre o homem primitivo que teria dado o iniacutecio para a elevaccedilatildeo da cultura grega em seus primoacuterdios Vide ADAM James ldquoThe Vitality of Platonismrdquo Cambridge University Press 1911 paacuteg 8 388 Vide 33 389 Eacute importante ressaltar que dentro desse contexto oral esses dois termos satildeo praticamente sinocircnimos Nesse presente capiacutetulo podemos constatar que o criteacuterio de verdade e conhecimento estava associado ao grau de utilidade que um determinando tipo de conteuacutedo desempenhava na antiga sociedade grega Logo o mito que foi em muitos casos utilizados para a justificaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do poder real em outros contextos era utilizado para educaccedilatildeo dos jovens e propagaccedilatildeo dos valores da realeza Nessa raacutepida anaacutelise podemos apontar pelo menos quatro tipos de aplicaccedilatildeo Posteriormente veremos que a arte sonora jaacute fazia parte da preacute-histoacuteria grega atraveacutes das culturas ciclaacutedicas minoica e micecircnica Mesmo depois da idade das trevas apoacutes a invasatildeo doacuterica esse tipo de conhecimento natildeo desapareceu da mentalidade dos grupos remanescentes que posteriormente ajudaram a constituir a cultura helecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto indicamos a leitura do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998

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de relaccedilatildeo entre o mundo divino e humano Ou seja ela eacute o viacutenculo390 entre o

homem e a phyacutesis Em todos os mitos relacionados agrave muacutesica391 na antiguidade eacute

possiacutevel detectar a presenccedila da conexatildeo entre a comunicaccedilatildeo memoacuteria criaccedilatildeo e

o conhecimento de modo sub-reptiacutecio em suas mais diversas apariccedilotildees na literatura

e nas artes plaacutesticas Como foi exposto anteriormente392 as musas satildeo as principais

divindades que representam essas funccedilotildees cognitiva dentro da tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica A presenccedila desses arqueacutetipos nesse contexto revela uma estrutura muito

bem organizada que apresenta natildeo apenas o fasciacutenio mas o valor dessa atividade

na vida cotidiana grega desde a sua origem

De um modo geral na mitologia esse fenocircmeno de caracteriacutesticas muacuteltiplas

carrega um poder de unidade como acontece com a alma humana393 Esse poder de

coesatildeo eacute algo inerente agrave proacutepria Natureza que foi explorado posteriormente pela

maioria dos pensadores conhecidos como preacute-socraacuteticos Para Aristoacuteteles394 por

exemplo a muacutesica eacute o som da vida que se origina na voz humana395 e todos os

instrumentos que foram criados para imitar a voz cantando satildeo meios artificiais para

copiaacute-la Os padrotildees meloacutedicos da liacutengua grega eram utilizados para acentuar

significado agraves palavras (LEVIN 2009) Esse importante recurso foi criado durante

o periacuteodo de desenvolvimento do pensamento miacutetico-poeacutetico que possibilitou o

fundamento da cultura oral A partir dessa descoberta o filoacutesofo muacutesico

peripateacutetico Aristoxeno396 afirmava em seus estudos sobre a muacutesica e a harmonia

que havia uma espeacutecie de melodia no discurso cotidiano397 Essa caracteriacutestica

390 Para o grande filoacutesofo italiano Giordano Bruno o viacutenculo eacute pensado como a ordem de articulaccedilotildees de afecccedilotildees entre noacutes e o mundo e vice-versa E esse exerciacutecio de reconhecimento impotildee ao homem um novo olhar sobre a proacutepria natureza Ou seja ele apreende que ele eacute um microcosmo dentro de um macrocosmo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro BRUNO Giordano ldquoTratado da Magiardquo Satildeo Paulo Editora Martins Fontes 2008 391 Μουσικήmousikeacute a ldquoarte das musasrdquo 392 Vide 32 393 Na antiguidade os pitagoacutericos acreditavam que havia uma harmonia entre a alma e o corpo Vide os argumentos de Siacutemias e Cebes apresentados para Soacutecrates na prisatildeo sobre esse ponto Vide Platatildeo Feacutedon (84c-88b) 394 Vide Aristoacuteteles (De anima 420 b 5 -6) 395 Eis o viacutenculo exposto por Giordano Bruno 396 Aristoxeno Elementa harmocircnica (Livro I 2) 397 λογωδές τι microέλος logodeacutes ti melos Curiosamente em uma obra pouco conhecida chamada ldquoDo universo ou do mundordquo (Περὶ κοσmicroου peri kosmou 396 b-20) que eacute atribuiacuteda a Aristoacuteteles mas para muitos especialistas ela foi escrita por algum disciacutepulo peripateacutetico haacute uma passagem que vemos uma niacutetida aproximaccedilatildeo entre a muacutesica e o ato de fala vejamos a seguir ldquo a muacutesica mistura notas agudas e graves longas e curtas fazendo de diferentes sons uma uacutenica harmonia A gramaacutetica mistura vogais e consoantes como consequecircncia disso ela cria a sua arte O mesmo eacute falado pelo obscuro Heraacuteclito conjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente

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remonta direto a uma praacutetica discursiva que se baseava na linguagem musical

Nesse sentido para os falantes da liacutengua grega antiga distorcer algum acento tocircnico

era o mesmo que cometer um terriacutevel erro gramatical que implicaria em um ato

falho398 na praacutetica discursiva Um exemplo disso pode ser percebido quando

comeccedilamos a estudar o koineacute399 e o grego aacutetico400 e nos deparamos com duas

palavras que possuem a mesma grafia401 como vida e arco mas seus respectivos

significados satildeo totalmente distintos a partir da pronunciaccedilatildeo e tonicidade Logo

esse indiacutecio eacute a prova que confirma a sofisticaccedilatildeo e o amplo desenvolvimento

racional helecircnico que jaacute existia durante esse momento histoacuterico402 Aliaacutes a nossa

hipoacutetese eacute que esse passo ocorreu atraveacutes do aperfeiccediloamento de suas praacuteticas

discursivas

No caso do idioma grego nota-se que a praacutetica oral foi importante natildeo

apenas para o amplo desenvolvimento da muacutesica403 mas da proacutepria formulaccedilatildeo de

sua gramaacutetica404 Pois como relata Aristoxeno a muacutesica estava agrave serviccedilo da

consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo esse registro revela que os estudos referentes ao ato de comunicaccedilatildeo estavam em total sintonia com as teorias mais antigas sobre o fenocircmeno musical entre os gregos Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo nesse presente capiacutetulo 398 Eacute um deslize na fala na memoacuteria ou na escrita Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro FREUD Sigmund ldquoSobre a psicopatologia da vida cotidianardquo Em Ediccedilatildeo Standard Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud Vol VI Rio de Janeiro Imago 1970 399 Ελληνιστική ΚοινήHellenistikeacute Koineacute Esse idioma antecedeu o grego moderno e desenvolveu-se a partir do dialeto aacutetico e era praticado na regiatildeo da Aacutetica (onde se encontra Atenas) embora tenha grande influecircncia de elementos do antigo jocircnico 400 O aacutetico eacute o dialeto utilizado pela maioria dos grandes escritores do periacuteodo claacutessico como Tuciacutedides e Aristoacuteteles Posteriormente ele foi a base para a formaccedilatildeo de um dialeto mais popular que foi chamado de koineacute Vide a nota anterior 401 βίος και Βιός biacuteos kai bioacutes vide o fragmento 48 de Heraacuteclito no qual o filoacutesofo poeta brinca com essa semelhanccedila para apontar a relaccedilatildeo dos contraacuterios que se se aproximam como a morte e a vida O arco que eacute um instrumento de caccedila para subsistecircncia humana tambeacutem eacute utilizado em outro contexto para tirar vidas na guerra ou seja para produzir a morte Simultaneamente o arco e a vida carregam uma linha esticada que vive sempre em tensatildeo como a noccedilatildeo de harmonia que foi explorada por Pitaacutegoras No caso de Heraacuteclito essa tensatildeo eacute resultado da harmonia das forccedilas contraacuterias Essa proximidade sonora quanto semacircntica eacute explorada pelo filoacutesofo poeta para demonstrar a riqueza da linguagem grega que estaacute na poesia e no iniacutecio da filosofia grega 402 Ao contraacuterio do que afirmam alguns helenistas esse periacuteodo foi essencial para o desenvolvimento da racionalidade grega O nosso grande equiacutevoco talvez seja desconsideraacute-lo no processo que foi importante para o surgimento da Filosofia 403 Ou vice-versa Vide os comentaacuterios de Sexto Empiacuterico em ldquoContra os professoresrdquo (livro VI 1) sobre esses pontos Como foi ressaltado pelo filoacutesofo ceacutetico esse termo tem pelo menos trecircs sentidos que satildeo utilizados entre os gregos na antiguidade 404 Arte de ler e escrever Eacute importante ressaltar que na antiguidade havia uma grande polecircmica sobre a definiccedilatildeo de gramaacutetica que nesse periacuteodo se confundia com a filologia No livro ldquoContras os professoresrdquo (livro I 42) Sexto Empiacuterico esboccedila em termos gerais os meandros desse problema para os antigos Curiosamente quando ele inicia a sua investigaccedilatildeo ldquocontra os gramaacuteticosrdquo no capiacutetulo 42 ele questiona o ar de superioridade que essa ciecircncia possui em relaccedilatildeo as outras A partir

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poesia405 O uso da tonicidade nos indica que a marcaccedilatildeo silaacutebica foi aplicada para

a metrificaccedilatildeo e versificaccedilatildeo poeacutetica visando a excelecircncia expressiva Logo

podemos pressupor que o estudo da harmonia natildeo era algo de cunho meramente

teoacuterico406 mas estava voltado para a necessidade da praacutetica comunicativa que

desempenhou uma ampla gama de funccedilotildees durante o periacuteodo homeacuterico ateacute o

claacutessico407

Ao nos depararmos com essas evidecircncias expostas anteriormente chegamos a

uma conclusatildeo a natureza semacircntica das palavras dos poetas e dos primeiros

filoacutesofos estavam voltadas para a audiccedilatildeo atraveacutes desses acentos tocircnicos que eram

oriundos de uma sofisticada teacutecnica oral Os ouvidos dos antigos gregos estavam

altamente treinados para perceber as mais sutis nuances tocircnicas que eram essenciais

para a perfeita compreensatildeo do conteuacutedo sonoro da canccedilatildeo como da fala

ordinaacuteria408 Nesse sentido eacute possiacutevel aferir a importacircncia vital da muacutesica no

processo de comunicaccedilatildeo durante e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico Os recursos

que foram desenvolvidos para alcanccedilar a eficiecircncia comunicativa certamente eram

voltados para a estruturaccedilatildeo meloacutedica e riacutetmica em torno da tonalidade que

possibilitaram agrave poesia o uso como instrumento primordial de organizaccedilatildeo cultural

atraveacutes da oralidade e esse atributo revela o imenso desenvolvimento cognitivo

coletivo Como foi exposto anteriormente a tradiccedilatildeo mito-poeacutetica participou

da leitura do seu texto podemos extrair algumas evidecircncias 1) A superestimaccedilatildeo da gramaacutetica revela a importacircncia que a retoacuterica desempenhava ateacute o periacuteodo de Sexto Esse ponto pode ser subtendido quando o filoacutesofo ceacutetico menciona a passagem das Sirenes no livro da Odisseia de Homero (Odisseia canto XII 184-91) Esse mito remonta direto ao periacuteodo oral no qual o poder do canto era um phaacutermakon (remeacutedio e veneno) pois pode ser usado de modo beneacutefico ao apontar o limite humano ou tambeacutem levar os navegantes imprudentes agrave morte quando utilizado de modo equivocado Graccedilas aos conselhos (conhecimento) de Circe (divindade) o astuto heroacutei utiliza com prudecircncia um artifiacutecio(techneacute) para superar esse poder da natureza Logo o poder da techneacute humana eacute fornecida pelos deuses como no mito de Protaacutegoras Eacute possiacutevel tambeacutem interpretar esse mito como uma criacutetica do poder desmedido desempenhado pela antiga poesia atraveacutes da fala persuasiva que estava atrelada agrave vontade do rei que era representaccedilatildeo do mundo divino e posteriormente com o surgimento da atividade retoacuterica durante o periacuteodo democraacutetico Talvez apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica esse tipo de autoridade teria sido colocado em xeque Basta notar a criacutetica que Homero faz ao rei ilegiacutetimo na Iliacuteada (vide o proacuteximo capiacutetulo desse presente trabalho) De qualquer modo esse eacute mais um indiacutecio que nos apresenta o valor que a muacutesica desempenhou para os antigos 2) no capiacutetulo 43 Sexto Empiacuterico destaca que os gramaacuteticos atraveacutes dos mitos e histoacuterias ostentam a sua habilidade no tratamento dos dialetos e nas regras de recitaccedilatildeo Ou seja tenta excitar os ouvintes para a sua importacircncia Esse eacute o ponto que chama atenccedilatildeo para a investigaccedilatildeo do filoacutesofo ceacutetico 405 Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18) 406 Essa era a criacutetica que Aristoxeno fazia aos platocircnicos por estudar a muacutesica atraveacutes da teoria Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro II 30) 407 Vide os inuacutemeros estudos sobre a muacutesica na antiguidade a partir das listas apresentadas por Dioacutegenes de Laecircrtios 408 Vide os comentaacuterios de Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18)

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ativamente desse processo durante todo periacuteodo monaacuterquico ateacute o arcaico409 O

caraacuteter elementar das narrativas miacuteticas sugere um encadeamento loacutegico que

deveria ser correspondente ao modo e arranjo musical mais simplificado para

cumprir de modo eficaz o seu objetivo pedagoacutegico e lituacutergico410 Todas as funccedilotildees

da vida grega eram acompanhadas pela muacutesica (LEVIN 2009) Do casamento agrave

guerra o ritmo e a melodia ditavam o comportamento em cada ocasiatildeo especiacutefica

seja em momentos de paz entre rituais e festividades ciacutevicas ou de guerra Entre

todas as classes pertencentes a estrutura do corpo social grego esse fenocircmeno

ocorria tanto de maneira deliberada ou involuntaacuteria nas diferentes cidades que

formavam o territoacuterio helecircnico411

[TUCIacuteDIDES Histoacuteria da guerra do Peloponeso] ainda no mesmo inverno os atenienses purificaram Delos em obediecircncia a algum oraacuteculo Jaacute houvera anteriormente uma purificaccedilatildeo feita pelo tirano Pisiacutestratos mas apenas na parte da cidade visiacutevel do santuaacuterio e natildeo em toda a ilha desta vez a purificaccedilatildeo foi total e feita da seguinte maneira os tuacutemulos sitiados em Delos foram todos removidos e foi expressamente proibido deixar que algueacutem morresse na ilha ou laacute tivesse filhos a partir dessa ocasiatildeo em tais casos ter-se-ia de passar para Recircneia A distacircncia entre Delos e Recircneia eacute tatildeo curta que

409 Os periacuteodos da Greacutecia antiga satildeo divididos de um modo feral entre as seguintes fases Preacute-homeacuterico (seacuteculos XX - XII aC) homeacuterico (seacuteculos XII - VIII aC) arcaico (seacuteculos VIII - VI aC) e claacutessico (seacuteculos V - IV aC) 410 Em relaccedilatildeo as obrigaccedilotildees ritos e festividades de cada sociedade Segundo Louis Gernet essas atividades foram importantes para manter o equiliacutebrio da sociedade E no caso grego o direito sacro precedeu o direito civil no periacuteodo preacute-homeacuterico E como foi exposto por noacutes anteriormente a poesia desempenhava a tarefa de manter viva essas praacuteticas que visavam a soberania da realeza e manutenccedilatildeo do equiliacutebrio social Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Paris Flammarion 2007 411 Sobre esse aspecto podemos citar as celebraccedilotildees dos rituais dionisiacuteacos que segundo os antigos tinha o poder de levar os participantes ao deliacuterio Na guerra os militares iam para o campo de batalha acompanhados de muacutesicos para essa referecircncia vide os comentaacuterios do jurista romano Aulius-Gellius em ldquoNoites aacuteticasrdquo (Livro I cap 11 1-4) no qual ressalta que os antigos aqueus combatiam em silecircncio (Homero Iliacuteada canto III 1-10) enquanto que os troianos entravam em campo de batalha de modo estridente como os paacutessaros Aliaacutes nessa passagem da Iliacuteada sob a bela imagem poeacutetica pintada por Homero podemos pressupor que nesse tempo os troianos jaacute utilizavam esse recurso musical na guerra Eacute provaacutevel que no caso dos aqueus esse haacutebito tenha sido inserido posteriormente por influecircncia dos troianos ou de outros povos da Aacutesia Menor como os liacutedios e egiacutepcios na Aacutefrica (vide a passagem de grande importacircncia para noacutes relatada por Heroacutedoto em Histoacuterias livro II LX Dentro desse contexto citado pelo historiador eacute possiacutevel que o conhecimento teoacuterico desenvolvido por Pitaacutegoras sobre a harmonia possa ter sido trazido do Egito) Desde dos primoacuterdios os gregos foram fascinados por esse fenocircmeno que abrangia a instacircncia fiacutesica e espiritual pois era considerado uma manifestaccedilatildeo divina que exercia efeito sobre o caraacuteter humano Diferentemente de noacutes os gregos natildeo utilizavam a muacutesica como uma mera atividade de lazer (vide Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso livro V 70) Pelo contraacuterio ela fazia parte de todos os fenocircmenos culturais militares e ateacute mesmo epistemoloacutegicos Sendo tratada como uma expressatildeo divina responsaacutevel pela criaccedilatildeo da natureza humana atraveacutes da cosmologia matemaacutetica e filosofia Dentro da mitologia haacute vaacuterias ocorrecircncias que abordam esses aspectos Anteriormente citamos uma passagem de Odisseu com as Sirenes no livro da Odisseia (canto XII 184-91) de Homero Haacute ainda o mito de Orfeu e das musas que tratam dessa experiecircncia essencial para a vida helecircnica que se iniciou na sua preacute-histoacuteria e que perdurou ateacute o periacuteodo claacutessico

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Poliacutecrates tirano de Samos durante algum tempo muito poderoso no mar e senhor de todas as ilhas inclusive Recircneia pocircde ligaacute-la a Delos por uma corrente apoacutes havecirc-la consagrado a Apolo Deacutelio Pela primeira vez apoacutes a purificaccedilatildeo os atenienses celebraram laacute as Deacutelias um festival quinquenal No passado jaacute houvera em Delos uma grande reuniatildeo perioacutedica de iocircnios e dos ilheacuteus vizinhos eles compareciam agrave reuniatildeo com as mulheres e filhos como fazem os iocircnios de hoje nas cerimocircnias de Eacutefesos nela jaacute se realizavam competiccedilotildees de ginaacutestica e muacutesica e as cidades enviavam coros Homero mostra claramente que as reuniotildees eram assim nos versos seguintes de seu Hino a Apolo

Teu coraccedilatildeo encontra mais encanto em Delos Febo quando os iocircnios de rasantes tuacutenicas se juntam

em tua rua com seus filhos e suas esposas no pugilismo eles competem e no canto e danccedila dizendo o teu sagrado nome antes de comeccedilar

Homero mostra igualmente nos versos seguintes tirados do mesmo hino que tambeacutem havia concursos musicais e que os interessados iam competir em Delos apoacutes mencionar o coro das mulheres de Delos ele termina o seu elogio com estes versos onde faz menccedilatildeo a si mesmo

Vamos Que Apolo esteja a meu favor junto com Aacutertemis A todas voacutes estou rendendo as minhas homenagens

mas peccedilo-vos que logo mais penseis em mim de novo quando outro vate natural tambeacutem de nossa terra e tatildeo sofrido quanto eu sou vier e perguntar-vos Qual dos poetas em competiccedilatildeo aqui donzelas vos traz cantos mais doces e de vosso agrado

Dizei-lhe entatildeo com o pensamento em noacutes e todas juntas Eacute o homem cego morador em Quios escarpada

Este eacute o testemunho de Homero quanto agrave existecircncia em Delos desde os tempos antigos de uma grande reuniatildeo e festa os ilheacuteus e os atenienses continuaram a enviar seus coros com oferendas mas as competiccedilotildees e a maior parte das cerimocircnias foram suspensas como costuma acontecer nos tempos de calamidades ateacute que finalmente na ocasiatildeo mencionada acima os atenienses restabeleceram os concursos e introduziram uma competiccedilatildeo hiacutepica esta antes inexistente412

Esse relato do historiador Tuciacutedides eacute uma das provas mais contundentes para

analisar o grau de relevacircncia que a muacutesica desempenhou desde o periacuteodo homeacuterico

O ponto mais notaacutevel eacute o fato dessa experiecircncia ter afetado de maneira irreversiacutevel

o processo de subjetividade coletiva que foi responsaacutevel pelas grandes mudanccedilas e

avanccedilos culturais dentro da histoacuteria grega Eacute bem provaacutevel como sugere a

professora Flora (LEVIN 2009) que os gregos possuiacutessem por causa dessa

412 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (livro III capiacutetulo 104) Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

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caracteriacutestica o ouvido absoluto413 que era estimulado desde a infacircncia para captar

as mais sutis variaccedilotildees tonais414 Essa capacidade pode ter sido conquistada atraveacutes

de uma incessante praacutetica auditiva que deveria ser iniciada na infacircncia Eacute importante

ressaltar que este tipo de educaccedilatildeo dos sentidos natildeo tinha apenas o objetivo voltado

para o acircmbito da comunicaccedilatildeo mas tambeacutem era essencial para a caccedila e a guerra

Podemos pressupor essa hipoacutetese atraveacutes das evidecircncias que encontramos em vaacuterias

tribos de nativos americanos (BROWN1999) Percebe-se que em muitas dessas

culturas aacutegrafas os seus respectivos membros eram conhecedores da arte de

rastreamento415que consistia no niacutevel inicial em um profundo (re) conhecimento

dos vestiacutegios inorgacircnicos e orgacircnicos de animais plantas e do proacuteprio meio

ambiente que eacute considerado como um cosmo organizado416 Para o aprimoramento

dessa arte eacute essencial que se pratique desde cedo o estiacutemulo de todos os sentidos

A eficiecircncia desses rastreadores residia basicamente em dois eixos o primeiro

estava voltado para a capacidade de identificar os mais sutis sons sabores e rastros

para poder recriar o que aconteceu em determinado ambiente observado Esse tipo

de conhecimento em um niacutevel bem mais avanccedilado fornecia ao homem antigo a

capacidade de previsatildeo417 ou seja a habilidade de prever acontecimentos

413 Eacute a capacidade de identificaccedilatildeo das notas musicais sem a necessidade de uma referecircncia tonal Segundo os estudos apresentados por Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo podemos notar o interesse pelos estudos musicais por causa da relaccedilatildeo da muacutesica com a fala cotidiana Esse detalhe deixa evidente que a questatildeo gira em torno do aperfeiccediloamento comunicativo que foi algo almejado desde o periacuteodo oral 414 Haacute uma passagem de Heraacuteclito que pode ser encontrada na obra de Clemente de Alexandria que se chama ldquoStromatardquo (livro II 24) no qual o filoacutesofo preacute-socraacutetico diz ldquoNatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo Esse fragmento do pensador efeacutesio aponta para a importacircncia do aprimoramento dos sentidos para a ampliaccedilatildeo do nosso ato de comunicaccedilatildeo Como aponta o professor e helenista Alexandre Costa a intenccedilatildeo dessa passagem seria de subordinar o conhecimento da fala a capacidade de percepccedilatildeo que para Heraacuteclito parece ser tatildeo importante como a nossa faculdade racional Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro HERAacuteCLITO ldquoHeraacuteclito fragmentos contextualizadosrdquo Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 Paacuteg 53 415 Esse tipo de habilidade foi desenvolvido por necessidade no homem primitivo para coletar alimentos sobretudo em situaccedilotildees totalmente desfavoraacuteveis A geografia do territoacuterio grego demonstra que os primeiros grupos humanos que se instalaram na regiatildeo tiveram que lutar duramente para manter a sua subsistecircncia Esse fato por si soacute jaacute indica a busca de um aprimoramento teacutecnico dos sentidos para a defesa e a caccedila 416 O estudo e observaccedilatildeo da Natureza Ou seja essa caracteriacutestica natildeo estaacute presente apenas nos gregos Ela pode ser encontrada em muitas tribos ateacute os dias de hoje Esse fato eacute de extrema importacircncia para os estudos antropoloacutegicos e sociais para entendermos o processo de desenvolvimento da subjetividade dessas culturas antigas 417 Para Francis Cornford o filoacutesofo eacute herdeiro do poeta e vidente O nosso grande problema eacute entender o que significa o termo filoacutesofo pois as palavras saacutebio e sofista como poeta eram amplamente utilizadas na antiguidade para as atividades sapienciais Outra hipoacutetese defendida eacute o grau de proximidade que haacute entre a religiatildeo e ciecircncia Para o helenista natildeo haacute separaccedilatildeo entre elas A imaginaccedilatildeo poeacutetica eacute vista como um importante recurso hipoteacutetico que tem o poder de transcender

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futuros418 atraveacutes da leitura dos rastros dispostos no meio ambiente419 Para o

filoacutesofo britacircnico-americano Peter Carruthers (CARRUTHERS 2006) essas

capacidades cognitivas empregadas na arte do rastreamento satildeo as mesmas

utilizadas na pesquisa cientiacutefica Independentemente de qual seja o ambiente o

laboratoacuterio ou o campo em ambas atividades a reflexatildeo420 eacute algo imprescindiacutevel

para resoluccedilatildeo de problemas O cientista ou iacutendio emprega a observaccedilatildeo dessas

evidecircncias na natureza para estabelecer um caminho seguro para a compreensatildeo e

atuaccedilatildeo sobre ela Nesse caso a analogia proposta pelo professor Carruthers eacute

muito benvinda para o nosso presente trabalho pois revela os meandros de uma

atividade sapiencial de caraacuteter pragmaacutetico421 que se aproxima do meacutetodo cientiacutefico

moderno

o campo individual para o universal e que pode ser encontrada em ambas atividades Em divergecircncia com a teoria platocircnica da reminiscecircncia (vide Platatildeo Meacutenon 81a5 ndash 86c3) a teoria empiacuterica do conhecimento defende todas as noccedilotildees gerais como construccedilotildees do indiviacuteduo que partem de outras impressotildees sensoriais semelhantes Esse eacute o caminho que foi seguido por Aristoacuteteles (vide Aristoacuteteles Metafiacutesica IV 5-6) pois a generalizaccedilatildeo eacute oriunda da experiecircncia para encontrar o conhecimento com a apreensatildeo decorrente da razatildeo ou causa Neste estudo tambeacutem aparece o embate entre o vidente e o filoacutesofo O ponto central dessa discussatildeo parte do processo que culminou na condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cornford apresenta as bases para a formulaccedilatildeo de sua hipoacutetese atraveacutes do diaacutelogo de Platatildeo chamado Eutifron e algumas passagens que podem ser obtidas no diaacutelogo Poliacutetico para trazer algumas hipoacuteteses sobre o processo e da atuaccedilatildeo da religiatildeo na organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do Estado Segundo a sua posiccedilatildeo o filoacutesofo grego natildeo era totalmente ceacutetico pois acreditava em um poder de previsatildeo (πρόληψις (proleacutepsis preconcepccedilatildeo e antecipaccedilatildeo que vem de προλαmicroβάνωprolambaacuteno pegar antecipadamente) que era fornecido por seu daimon Nesse sentido ele expotildee a contradiccedilatildeo de seus acusadores que afirmavam sobre o seu ateiacutesmo O ponto desse embate apresenta algumas caracteriacutesticas importantes o primeiro eacute o fato de a religiatildeo ter uma grande influecircncia sobre a organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica do estado ainda no periacuteodo claacutessico A partir desse contexto eacute possiacutevel entendermos o processo movido contra o filoacutesofo pois o posicionamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo aos deuses oliacutempicos nos parece ser exatamente igual a de Protaacutegoras e Epicuro Apesar disso segundo a imagem esculpida por Platatildeo ele admitia esse poder visionaacuterio do daimon como uma intuiccedilatildeo necessaacuteria para as tomadas de decisatildeo Essa posiccedilatildeo foi retirada do diaacutelogo Eutifron De qualquer modo natildeo sabemos ateacute que ponto Soacutecrates estava usando a sua famosa ironia sobre esse ponto Seja como for a sua postura sapiencial eacute muito similar ao pajeacute entre os iacutendios Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do capiacutetulo V do seguinte livro CORNFORD F M ldquoPrincipium Sapientiaerdquo As origens do pensamento filosoacutefico grego Traduccedilatildeo Maria Manuela Rocheta dos Santos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1952 418 Dentro desse contexto podemos destacar a classe sapiencial do poetas oraacuteculos e sacerdotes que atuaram em todas as culturas na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NK CHADWICK ldquoPoetry and Prophecyrdquo Cambridge 1942 419 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros BROWN T ldquoThe Science and Art of Trackingrdquo New York Berkley Books 1999 E o quarto capiacutetulo intitulado The roots of scientific reasoning infancy modularity and the art of trackingrdquo em CARRUTHERS P STICH S SIEGAL M ldquoThe Cognitive Basis of Science Cambridge University Press 2002 420 E a especulaccedilatildeo 421 Haacute muitas obras que destacam esse fato na antiguidade Na biblioteca histoacuterica (livro I ndash 12) por exemplo Diodoro de Siciacutelia afirma que o trabalho dos autores antigos merece reconhecimento entre todos os homens porque suas obras oferecem sem perigo o ensinamento do conveniente que

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A inferecircncia a partir desses elementos observaacuteveis visa suprir uma demanda

que surge de acordo com cada circunstacircncia O acuacutemulo dessa experiecircncia obtida

no contato diaacuterio com o meio ambiente eacute mantido e transmitido entre seus pares em

qualquer cultura pois ela eacute responsaacutevel por estabelecer uma profunda intimidade

entre o homem e a natureza atraveacutes da praacutetica adquirida na experiecircncia que visa

manter o bem-estar coletivo Como foi exposto anteriormente por noacutes422 o sentido

de verdade no periacuteodo claacutessico para pensadores como Aristoacuteteles estava voltado

para a efetividade A eficaacutecia de qualquer meacutetodo empregado423 estaacute amplamente

afinada com o sucesso e a sua aplicabilidade deveria estar agrave disposiccedilatildeo do bem da

comunidade de um modo geral A luta pela sobrevivecircncia nos primoacuterdios

impulsionou o homem primitivo a desenvolver as suas capacidades de percepccedilatildeo e

reflexatildeo para assegurar a proacutepria estabilidade do seu povo Logo as antigas praacuteticas

sapienciais estavam apontando o caminho que a ciecircncia iria tomar posteriormente

pois satildeo oriundas do criteacuterio de observaccedilatildeo experimentaccedilatildeo e anaacutelise de dados

que eram praticados por diversas culturas na antiguidade No caso grego esse fato

natildeo foi diferente sabe-se que ateacute o periacuteodo claacutessico424 o conhecimento

desenvolvido pela intelectualidade antiga apresentava um caraacuteter pragmaacutetico que

seguia esses mesmos preceitos que podem ser encontrados em muitas civilizaccedilotildees

antigas

A miscigenaccedilatildeo cultural eacute uma caracteriacutestica que eacute ressaltada por muitos

intelectuais do mundo antigo e contemporacircneo como um fator marcante na

constituiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo helecircnica e de outros povos na antiguidade425 Essa

oferece a mais bela experiecircncia aos seus leitores e o aprendizado pela experimentaccedilatildeo (ἡ microὲν γὰρ ἐκ τῆς πείρας ἑκάστου microάθησις microετὰ πολλῶν πόνων καὶ κινδύνων ποιεῖ τῶν χρησίmicroων ἕκαστα διαγινώσκειν καὶ διὰ τοῦτο τῶν ἡρώων ὁ πολυπειρότατος microετὰ microεγάλων ἀτυχηmicroάτων πολλῶν ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω ἡ δὲ διὰ τῆς ἱστορίας περιγινοmicroένη σύνεσις τῶν ἀλλοτρίων ἀποτευγmicroάτων τε καὶ κατορθωmicroάτων ἀπείρατον κακῶν ἔχει τήν διδασκαλίαν) essa caracteriacutestica foi algo marcante ateacute o periacuteodo heleniacutestico 422 Em 33 423 No acircmbito militar e poliacutetico 424 Durante esse periacuteodo comeccedila a surgir entre os intelectuais uma grande discussatildeo em torno da importacircncia praacutetica da Filosofia para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ARISTOacuteTELES ldquoProteacutepticordquo Em Aristotelis fragmenta selecta (ed por W D Ross) Oxford 1955 425 Vide o primeiro capiacutetulo chamado The rise of Mycenae do seguinte livro KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E Heroacutedoto Histoacuteria capiacutetulo XLII mdash ldquoTodos aqueles que erigiram templos a Juacutepiter Tebano ou que satildeo de Tebas natildeo imolam absolutamente carneiros nem sacrificam outros animais senatildeo cabras Realmente nem todos os Egiacutepcios adoram os mesmos deuses natildeo rendem todos o mesmo culto a Iacutesis e a Osiacuteris que na opiniatildeo deles satildeo o mesmo que Baco Contrariamente os que possuem um templo em Mecircndis e satildeo conhecidos pela designaccedilatildeo de

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capacidade de adaptaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de haacutebitos de outras culturas sempre esteve

entre os gregos mesmo antes de sua formaccedilatildeo atraveacutes das civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica426 Posteriormente esse traccedilo tornou-se uma regra para o

desenvolvimento espiritual na antiguidade atraveacutes do comeacutercio e da diplomacia no

mundo mediterracircneo antigo427 A maioria dos grandes intelectuais gregos trazem

esse ponto em comum com outras culturas Heroacutedoto por exemplo com o intuito

de construir a sua narrativa alega ter viajado para muitas cidades428 Esse

conhecimento empiacuterico foi essencial para a expansatildeo cultural grega e ampliaccedilatildeo do

criteacuterio criacutetico sobre a origem e a validade do conhecimento429 que apareceu

durante o periacuteodo claacutessico430 Logo podemos supor que o conhecimento musical

adquirido durante a tradiccedilatildeo oral possa ter vindo de outros povos que estabelecia

relaccedilatildeo com os gregos antes e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico431 Em seguida

Mendeacutesios imolam ovelhas e poupam as cabras Os Tebanos e todos os que como eles se abstecircm de sacrificar ovelhas assim procedem em virtude de uma lei motivada pelo seguinte fato Heacutercules segundo contam desejava ardentemente ver Juacutepiter mas esse deus natildeo queria ser visto Por fim como Heacutercules natildeo deixava de fazer solicitaccedilotildees nesse sentido Juacutepiter recorreu a um artifiacutecio matou um cordeiro cortou-lhe a cabeccedila e colocando-a agrave frente da sua revestiu-se da latilde apresentando-se assim a Heacutercules Eacute por essa razatildeo que as estaacutetuas de Juacutepiter no Egito representam o deus com uma cabeccedila de cordeiro O referido costume passou dos Egiacutepcios aos Amocircnios Estes constituem uma colocircnia de Egiacutepcios e Etiacuteopes e a liacutengua que falam eacute uma mistura dos idiomas dos dois povos Creio mesmo que se chamam Amocircnios pelo fato de os Egiacutepcios darem o nome de Aacutemon a Juacutepiter Eacute portanto por esse motivo que os Tebanos consideram os cordeiros animais sagrados e natildeo os sacrificam absolutamente exceto no dia da festa de Juacutepiter sendo essa a uacutenica ocasiatildeo em que eles imolam um dos aludidos animais e da mesma maneira pela qual Juacutepiter procedera revestem com a pele do cordeiro a estaacutetua do deus aproximando-a da de Heacutercules Feito isso todos os que se encontram em torno do templo batem no peito deplorando a morte do animal sepultando-o em seguida numa urna sagrada Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 426 Essas trecircs culturas satildeo consideradas pelos especialistas como precursoras da civilizaccedilatildeo helecircnica na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E CASTLEDEN Rodney ldquoMycenaeans life in bronze age Greecerdquo Routledge Press London 2005 427 Vide o mapa do mundo mediterracircneo nos anexos 428 Vide a seguinte obra PLUTARCO ldquoPlutarch livesrdquo Traduccedilatildeo de Bernadotte Perrin Cambridge Massachusetts e London England Harvard University Press Loeb Classical Library 1948 429 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Paacuteg 21 430 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ROMILLY Jacqueline de ldquoLa construction de la veacuteriteacute chez Thucydiderdquo Paris Julliard 1990 431 Segundo Diacuteogenes de Laeacutercio o estudo da filosofia por exemplo comeccedilou entre os baacuterbaros Independentemente da imensa polecircmica que ateacute hoje essa passagem levanta o que gostariacuteamos de destacar dentro desse contexto eacute o aspecto de assimilaccedilatildeo de outras culturas que muitos intelectuais associam agrave cultura grega E isso aconteceu de vaacuterios modos viagens comerciais e diplomaacutetica Eacute notoacuterio que essa atividade era muito comum O filoacutesofo Tales de Mileto - entre outros como o grande Pitaacutegoras ndash eacute mencionado pelo bioacutegrafo como tendo feito vaacuterias viagens na antiguidade Mas a nossa hipoacutetese caminha na direccedilatildeo de que a muacutesica foi uma atividade que veio atraveacutes da influecircncia ainda mais antiga dessas culturas que antecederam os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse

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teremos a oportunidade de encontrar um desses contatos descritos de modo

minucioso por um grego sobre algumas caracteriacutesticas da vida dos egiacutepcios que foi

uma cultura que exerceu bastante influecircncia sobre o povo helecircnico

[Heroacutedoto Histoacuterias II LX] A vida em Bubaacutestis por ocasiatildeo das festividades transforma-se por completo Tudo eacute alegria buliacutecio e confusatildeo Nos barcos engalanados singrando o rio em todas as direccedilotildees homens mulheres e crianccedilas munidos em sua maioria de instrumentos musicais predominantemente a flauta enchem o ar de vibraccedilotildees sonoras do ruiacutedo de palmas de cantos de vozes de ditos humoriacutesticos e agraves vezes injuriosos e de exclamaccedilotildees sem conta Das outras localidades ribeirinhas afluem constantemente novos barcos igualmente enfeitados e igualmente pejados de pessoas de todas as classes e de todos os tipos ansiosas por tomar parte nos folguedos homenagear a deusa e imolar em sua honra grande nuacutemero de viacutetimas que trazem consigo e previamente escolhidas Enquanto dura a festa natildeo cessam as expansotildees de alegria as danccedilas e as libaccedilotildees No curto periacuteodo das festividades consome-se mais vinho do que em todo o resto do ano pois para ali se dirigem segundo afirmam os habitantes cerca de setecentas mil pessoas de ambos os sexos sem contar as crianccedilas432 A partir desse relato de Heroacutedoto podemos notar natildeo apenas o seu olhar de

admiraccedilatildeo sobre outra cultura estrangeira mas como a muacutesica tambeacutem fazia parte

do cotidiano da vida dos egiacutepcios Para o professor alematildeo Geoffrey Stephen Kirk

(KIRK 1962) ao analisar os vestiacutegios da arquitetura e da ceracircmica da antiga

civilizaccedilatildeo minoica433 que antecedeu a sociedade micecircnica apoacutes a invasatildeo doacuterica

ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro LAEcircRTIOS Dioacutegenes ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury Brasiacutelia UNB 1988 432 Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 433 A civilizaccedilatildeo minoica eacute apontada pelo britacircnico Arthur Evans como uma cultura matriarcal pois a mulher desempenhava uma posiccedilatildeo de destaque na sociedade e desenvolvia vaacuterias funccedilotildees no acircmbito religioso administrativo e poliacutetico atraveacutes da classe sacerdotal que fazia parte da realeza Ateacute um determinado periacuteodo histoacuterico foi um povo considerado paciacutefico e politeiacutesta A ideia mais importante dessa cultura residia no fato que a mulher era um componente fundamental para a harmonia soacutecio-poliacutetica da sociedade Eacute provaacutevel que essa caracteriacutestica tenha sido absorvida dos remanescentes da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica que foi a sua predecessora Um traccedilo marcante desse fenocircmeno que pode ser encontrada em ambas as culturas eacute o fato do mais importante siacutembolo religioso de culto era uma deusa que se chamava Potnia (Πότνια θηρώνPotnia theron ndash ldquoa senhora dos animaisrdquo) Curiosamente esse epiacuteteto pode ser localizado no canto XXI vv 470 da Iliacuteada de Homero no qual percebe-se que eacute atribuiacutedo agrave deusa Aacutertemis Posteriormente esse mito parece ter sido a influecircncia para a construccedilatildeo arquetiacutepica de Perseacutefone (Kore) a divindade relativa aos misteacuterios de Elecircusis A partir dessas evidecircncias apresentadas podemos encontrar como a mitologia dessas culturas predecessoras dos gregos ainda foram utilizadas para a religiatildeo grega a muacutesica e a construccedilatildeo da literatura homeacuterica Aliaacutes em muitos momentos da obra platocircnica (vide Timeu 108 d) eacute possiacutevel identificarmos a presenccedila dessa influecircncia cultural ciclaacutedica e minoica no que tange sobretudo agrave mousikeacute (arte das musas) que se conservou mesmo depois do periacuteodo das trevas atraveacutes da mitologia Para mais informaccedilatildeo sobre essas questotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first

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eacute possiacutevel detectar a influecircncia de outras culturas que estabeleceram contato direto

atraveacutes do comeacutercio exterior com esse povo Segundo Kirk a influecircncia egiacutepcia foi

a mais marcante E ela pode ser reconhecida atraveacutes da arquitetura metalurgia e

do artesanato minoico434 Esse encontro teria ocorrido por volta do ano 2000 e 1600

aC aleacutem da arte a escrita435 e modo de organizaccedilatildeo palaciana centralizada trazia

diversas semelhanccedilas com as culturas hitita e egiacutepcia Em algumas tumbas grandes

e monumentais que foram descobertas pelos arqueoacutelogos satildeo indicativos de um

povo que tinha um conceito bem articulado de vida apoacutes a morte436 Todavia natildeo

haacute documentos que revelem com precisatildeo o cacircnone da teologia minoica Todas as

hipoacuteteses apresentadas sobre esse ponto se baseiam em evidecircncias que podem ser

encontradas no Egito437 e em alguns afrescos e ceracircmicas que foram retiradas das

developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 434 Essas caracteriacutesticas podem ser observadas nos mais variados vestiacutegios de ceracircmicas metalurgia e da arquitetura minoica que demonstram natildeo apenas o intercacircmbio cultural mas a influecircncia da cultura egiacutepcia que se iniciou durante o desenvolvimento da cultura ciclaacutedica Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 435 O grande arqueoacutelogo inglecircs Arthus Evans encontrou algumas inscriccedilotildees em pedras que chamou a sua atenccedilatildeo pela similaridade com os hieroacuteglifos egiacutepcios Aleacutem de apontar essa semelhanccedila eacute bem provaacutevel que a escrita chamada de Linear A tenha sido desenvolvida sob a influecircncia egiacutepcia O uso de sinais lineares como marcas de pedreiros artesatildeos ou de proprietaacuterios foi difundido em todo o Mediterracircneo Oriental na antiguidade e haacute exemplos disso no iniacutecio da Creta minoica O uso mais especial de tais sinais lineares como marcas de artesatildeos estaacute bem estabelecido no periacuteodo de construccedilatildeo do palaacutecio denominado meacutedio minoico I e apresenta semelhanccedilas aos signos lineares e alfabetiformes de obras de artesatildeos egiacutepcios sob a XII dinastia A liacutengua que tem sido chamada Linear A foi encontrada em muitos dos tabletes inscritos desenterrados em todo o mundo minoico A segunda liacutengua usada pelos minoicos a Linear B foi decifrada por Michael Ventris que descobriu em 1952 que a linguagem era uma versatildeo inicial do grego Os textos dos tabletes Linear B revelam muitos detalhes da vida minoica mas sem conseguir decifrar Linear A alguns aspectos da vida minoica permanecem na mais total obscuridade Esses textos ainda confundem os estudiosos em mais um aspecto pois eles nos deram uma imagem clara do sistema numeacuterico minoico Era um sistema decimal simples que natildeo conhecia o uso do zero curiosamente esse mesmo sistema era empregado pelos antigos egiacutepcios Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 E CHADWICK John ldquoThe Decipherment of Linear Brdquo Cambridge University Press first printed 1958 reprinted 2000 436 Mais um aspecto que podemos encontrar na mitologia sobretudo atraveacutes do mito de Orfeu 437 As descobertas em tuacutemulos egiacutepcios incluem representaccedilotildees de embarcaccedilotildees minoicas particularmente uma foca que era um animal muito representado na arte minoica aparece em algumas pinturas de tuacutemulos egiacutepcios Os navios minoicos variavam em tamanho de embarcaccedilotildees costeiras bastante modestas a navios maiores com um mastro no meio sustentando por uma vela Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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ruiacutenas do palaacutecio minoico que foi localizado apoacutes as escavaccedilotildees na cidade de Creta

A nossa grande questatildeo eacute saber como e quando a muacutesica comeccedilou a desempenhar

um papel determinante na vida helecircnica Para esse estudo eacute necessaacuterio voltarmos o

nosso olhar investigativo para as trecircs culturas que ajudaram a construir a

mentalidade helecircnica antes da idade das trevas438 que satildeo as civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica O grande legado dessas culturas apoacutes o fim da idade do

bronze de alguma forma sobreviveu atraveacutes do imaginaacuterio coletivo desses

membros remanescentes da civilizaccedilatildeo micecircnica que foi drasticamente dizimada

com a invasatildeo doacuterica A hipoacutetese aceita por muitos historiadores e arqueoacutelogos eacute

de que esses habitantes que se assentavam com as suas respectivas famiacutelias sob o

domiacutenio da realeza micecircnica que era localizada na parte que hoje eacute conhecida como

a Greacutecia continental439 foram obrigados a se deslocarem para outras imediaccedilotildees da

bacia do Mediterracircneo440 Para o professor Anthony Snodgrass (SNODGRASS

2000) o aumento populacional nessa regiatildeo pode ter sido um dos fatores que

acarretou a dispersatildeo desses habitantes para aacutereas mais escassas de recursos Seja

como for esse episoacutedio que ficou conhecido como a primeira diaacutespora grega441 e

foi responsaacutevel por uma profunda transformaccedilatildeo na estrutura soacutecio-poliacutetica da

antiga civilizaccedilatildeo micecircnica

Antes dessa grande mudanccedila ocorrida apoacutes esse deslocamento populacional

que culminou na aproximaccedilatildeo dos quatros principais grupos eacutetnicos442 que

formaram a base inicial da cultura helecircnica a idade de bronze443 destacou-se por

ser um periacuteodo de grande opulecircncia que pode ser constatado atraveacutes das suntuosas

438 A Idade das trevas na Greacutecia (1200 ndash 800 aC) eacute um periacuteodo posterior ao da invasatildeo dos doacutericos no qual toda a rica estrutura comercial e urbana que tinham sido construiacutedas durante o periacuteodo micecircnico A Idade das Trevas eacute caracterizada pela inutilizaccedilatildeo da escrita durante trecircs seacuteculos aproximadamente e pela reconstruccedilatildeo da sociedade grega posteriormente Para alguns especialistas que seguem a linha evemerista (Evecircmero foi um escritor e hermeneuta grego da eacutepoca heleniacutestica que foi considerado como o pai da corrente hermenecircutica conhecida como evemerismo que defendia que os deuses da mitologia satildeo representaccedilotildees de personagens histoacutericas) o pouco que se sabe desse periacuteodo pode ser obtido nas obras de Homero 439 Vide o mapa da regiatildeo no anexo 440 Ibidem 441 ∆ιασπορά diaacutespora Deslocamento Para as ocorrecircncias desse termo na liacutengua grega vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott διασπορ-ά ἡ (διασπείρω) scattering dispersion Plu 21105 a LXX Je 157 δ ψυχική Ph 2426 2 collectively = οἱ διεσπαρmicroένοι LXX De 2825 EvJo 735 pl LXX Ps 146(147)2 442 A saber Aqueus Jocircnios Eoacutelios e Doacutericos Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the Twelfth and Eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 443 A idade do Bronze entre os anos de 3000 ndash 1200 a C

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construccedilotildees arquitetocircnicas e o aprimoramento da metalurgia Esse fato revela que

durante um determinado periacuteodo essas culturas predecessoras dos gregos

alcanccedilaram um amplo desenvolvimento econocircmico tecnoloacutegico e cultural

A primeira grande cultura de destaque dessa eacutepoca foi a chamada cultura

ciclaacutedica O pouco que sabemos sobre ela aponta para um tipo de sociedade que

passou por diversas transformaccedilotildees ao longo de sua histoacuteria444 A elegacircncia das

esculturas de maacutermores foi sem duacutevida alguma um dos seus maiores destaques

durante o seu florescimento cultural que ocorreu aproximadamente entre o ano de

2700 e de 2400 antes de Cristo Eacute notoacuterio entres todos os historiadores que essa

civilizaccedilatildeo promoveu uma profunda sofisticaccedilatildeo artiacutestica que pode ser captada

atraveacutes das representaccedilotildees em pinturas que revelam a vida cotidiana que nos ajudam

a compreender um pouco dos aspectos da organizaccedilatildeo social religiosa e poliacutetica

desse periacuteodo Para a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule alguns desses

materiais encontrados indicam a influecircncia estrangeira que certamente se deu

atraveacutes do comeacutercio445 A sua localizaccedilatildeo geograacutefica446 permitia estabelecer contato

com a Aacutefrica e a Anatoacutelia que pode ser mensurado atraveacutes de objetos que foram

encontrados por arqueoacutelogos no Egito e Mesopotacircmia que confirma essa influecircncia

estrangeira (VERMEULE 1964) Algumas dessas esculturas nos revela que os seus

artesatildeos jaacute utilizavam meacutetodos elaborados com a utilizaccedilatildeo de riscadores e

compassos para dividir os segmentos no maacutermore com maacutexima precisatildeo para

produzir o efeito de bi dimensionalidade em suas obras447 Esse detalhe revela a

sofisticaccedilatildeo da arte ciclaacutedica que acompanhou a expansatildeo cultural dessa regiatildeo Em

1840 os arqueoacutelogos encontraram na ilha de Santorini atual Itaacutelia uma escultura

datada do segundo periacuteodo ciclaacutedico que foi nomeada como ldquoO tocador de

444 Periacuteodos da cultura ciclaacutedica Antigo I 31003000 ndash 2650 aC Grota-Pelos Ciclaacutedico Antigo II 2650 - 24502 400 aC Ceros-Siros Ciclaacutedico Antigo III 24502400 - 22002 150 aC Kastri Ciclaacutedico Antigo III BCiclaacutedico Meacutedio I 20502000 - 19001 850 aC Filaacutecopi Ciclaacutedico Meacutedio II 19001850 - 1700 aC (Influecircncia minoica) ciclaacutedica Meacutedio III 1700 - 1 675 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente I 1675 - 1 500 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente II 1500 - 1 450 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente III 1450 - 1100 aC (Influecircncia micecircnica) 445 A configuraccedilatildeo fiacutesica dessa regiatildeo facilitava a navegaccedilatildeo para distribuiccedilatildeo e recepccedilatildeo dos produtos manufaturados atraveacutes do comeacutercio Eacute obvio que essa caracteriacutestica permitiu o intercacircmbio cultural que possibilitou uma expansatildeo sociocultural desses povos na antiguidade Vide o mapa no anexo 446 Na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas na bacia do Mediterrecircno 447 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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harpardquo448 que prova a aplicaccedilatildeo da praacutetica musical449 de um instrumento de cordas

Nesse sentido podemos supor que esse conhecimento foi um legado que certamente

foi transmitido para a cultura minoica e depois para a micecircnica que surgiu

primeiramente na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas450

A civilizaccedilatildeo minoica foi denominada com esse nome apoacutes as descobertas

efetuadas a partir das expediccedilotildees arqueoloacutegicas da equipe de pesquisa do professor

britacircnico Arthur Evans na regiatildeo de Creta451 Segundo Tuciacutedides452 no primeiro

livro sobre a ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo e de acordo com a tradiccedilatildeo

oral453 Minos foi o primeiro a ter se estabelecido na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas

atraveacutes de um poder naval454 sendo o primeiro a conquistar todos os pontos da

regiatildeo que no seu tempo ficou conhecida como o mar helecircnico455 A denominaccedilatildeo

dessa nova formaccedilatildeo que se destacou nessa regiatildeo eacute uma cultura que dominou e

absorveu a antiga cultura ciclaacutedica A fama de sua conquista pode ser reconhecida

atraveacutes dos mitos mais antigos que relatam as suas faccedilanhas na antiguidade

448 Vide os anexos 449 Posteriormente pretendemos desenvolver esse ponto para analisar a consequecircncia do conhecimento musical para o desenvolvimento da tradiccedilatildeo oral e do processo subjetivo helecircnico na antiguidade 450 E mais uma vez nos deparamos com as seguintes questotildees 1) como esse conhecimento foi adquirido em uma eacutepoca tatildeo remota do passado grego 2) como essa atividade permaneceu entre os gregos mesmo depois da queda da realeza micecircnica A nossa hipoacutetese comeccedila aqui a ganhar mais forccedila com esses achados arqueoloacutegicos pois eacute bem provaacutevel que as teacutecnicas musicais foram essenciais para o aprimoramento mnemocircnico da tradiccedilatildeo oral que facilitou a difusatildeo da mitologia e da poesia no mundo helecircnico 451 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 452 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (1-4) 453 No grego ele utiliza dois verbos ldquoconhecerrdquo( ἴσmicroεν ismen que vem de οἶδαoida) eldquoouvirrdquo (ἀκοήakoeacute) que se aproxima dessa noccedilatildeo ldquoΜίνως γὰρ παλαίτατος ὧν ἀκοῇ ἴσmicroεν ναυτικὸν ἐκτήσατο καὶ τῆς νῦν Ἑλληνικῆς θαλάσσης ἐπὶ πλεῖστον ἐκράτησε καὶ τῶν Κυκλάδων νήσων ἦρξέ τε καὶ οἰκιστὴς πρῶτος τῶν πλείστων ἐγένετο Κᾶρας ἐξελάσας καὶ τοὺς ἑαυτοῦ παῖδας ἡγεmicroόνας ἐγκαταστήσας τό τε λῃστικόν ὡς εἰκός καθῄρει ἐκ τῆς θαλάσσης ἐφ᾽ ὅσον ἐδύνατο τοῦ τὰς προσόδους microᾶλλον ἰέναι αὐτῷrdquo ldquoMinos foi o mais antigo de todos os personagens tradicionalmente conhecidos a ter uma frota e a conquistar grande parte do hoje chamado mar helecircnico tornando-se o senhor das ilhas Ciacutecladas e primeiro colonizador da maior parte delas expulsando os caacuteries e estabelecendo nelas os seus proacuteprios filhos como governantes Ele tambeacutem tentou numa sequecircncia natural livrar os mares tanto quanto possiacutevel da pirataria para receber com maior seguranccedila os tributos que lhe eram devidosrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury 454 ΘάλασσακρατίαThalassacracia 455 Bacia do Mediterracircneo

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[Homero Odisseacuteia XI] ldquoProle de Zeus avisto Minos Cetro de ouro na matildeo Prerrogativa sua era sentado fazer valei a lei aos mortos que sentados indagam-lhe a sentenccedila no Hades largos-poacuterticos456

Essa passagem que estaacute localizada no deacutecimo primeiro canto da Odisseia

parece fazer jus a imagem de grande rei que foi apresentada por Tuciacutedides em seu

relato sobre a guerra do Peloponeso Como foi exposto por noacutes anteriormente457

para os gregos do periacuteodo heroico ateacute o claacutessico a verdade eacute construiacuteda atraveacutes das

accedilotildees vitoriosas458 Nesse sentido o soacutebrio discurso de Tuciacutedides e a poesia

encantadora de Homero parecem carregar esse ponto em comum Mesmo com

todas as suas diferenciaccedilotildees de forma e conteuacutedo ambas satildeo expressotildees oriundas

da tradiccedilatildeo oral que imortalizou certos fatos histoacutericos que foram essenciais para o

futuro desdobramento da formaccedilatildeo cultural helecircnica Entre a distacircncia da realidade

promovida pela beleza da linguagem mito poeacutetica mais antiga e a proximidade

factual do relato da novidade da prosa aacutetica reside o interesse de buscar e preservar

a tradiccedilatildeo gloriosa de um passado que eacute aceita com muito orgulho como modelo

que deve ser seguido e difundido para as geraccedilotildees vindouras459 Dentro da tensatildeo

existente entre esses dois meios de expressatildeo do pensamento humano eacute possiacutevel

456 Homero Odisseia canto XI (568-71) ldquoἔνθ᾽ ἦ τοι Μίνωα ἴδον ∆ιὸς ἀγλαὸν υἱόν χρύσεον σκῆπτρον ἔχοντα θεmicroιστεύοντα νέκυσσιν ἥmicroενον οἱ δέ microιν ἀmicroφὶ δίκας εἴροντο ἄνακτα ἥmicroενοι ἑσταότες τε κατ᾽ εὐρυπυλὲς Ἄϊδος δῶrdquo Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Eacute importante ressaltar que a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule evita utilizar a obra homeacuterica como uma fonte histoacuterica para estudar as civilizaccedilotildees na Idade de Bronze pois segundo a sua visatildeo o trabalho oral do poeta estaacute pelo menos um seacuteculo de distacircncia da cultura micecircnica Seja como for para o presente trabalho partirmos da hipoacutetese de que a obra homeacuterica mesmo sendo de cunho poeacutetico e sem pretensatildeo de ser um relato histoacuterico nos moldes de uma ciecircncia moderna nos apresenta inuacutemeros indiacutecios para nos aproximar da atmosfera contextual desse determinado periacuteodo Logo ela eacute uma fonte indispensaacutevel Para o presente trabalho aleacutem de sua obra estamos recorrendo haacute outras escassas fontes disponiacuteveis atraveacutes de estudos comparativos sobre os siacutetios arqueoloacutegicos afrescos e de peccedilas de maacutermore bronze e ouro Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 457 Em 33 Mito accedilatildeo e verdade 458 Verum factum Vide as nossas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo no capiacutetulo 33 459 Esse tipo de intenccedilatildeo eacute a base que fundamenta a tese apresentada por Conford no qual afirma que o trabalho de Tuciacutedides ao contraacuterio do que dizem muitos historiadores ainda estaacute totalmente subordinado ao contexto mito-poeacutetico atraveacutes de alguns paradigmas que podem ser encontrados nos dramas de Eacutesquilo Para o helenista o historiador grego nutre um discurso tendencioso a partir da perspectiva ateniense e haacute diversas discrepacircncias em seu relato Logo a sua concepccedilatildeo histoacuterica que foi muito apreciada por historiadores modernos precisa ser revista agrave luz de outras evidecircncias de fontes contemporacircneas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CORNFORD F M 1907 ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Ed London Arnold 1907

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extrairmos importantes informaccedilotildees sobre esse obscuro momento da histoacuteria grega

Como foi visto anteriormente nesse presente capiacutetulo o proacuteprio Tuciacutedides que eacute

destacado por muitos helenistas e historiadores como modelo de um pensamento

criacutetico refinado460 ainda recorre a essas fontes oriundas da mitologia e da tradiccedilatildeo

oral para compreender esse turvo passado dos gregos Logo o nosso trabalho

investigativo precisa atuar com o mesmo cuidado criacutetico dos ceacuteticos antigos Nesse

sentido vale ressaltar os resquiacutecios desse importante meio de expressatildeo ainda em

vigor no pensamento grego do periacuteodo claacutessico

Eacute sabido que historicamente o primeiro filoacutesofo a desenvolver um estudo

especiacutefico sobre a teoria acuacutestica por volta do seacuteculo 6 aC teria sido Pitaacutegoras de

Samos461 A sua concepccedilatildeo surgiu duzentos anos depois das epopeias homeacutericas

que jaacute apresentavam um imenso aprimoramento riacutetmico e meloacutedico na metrificaccedilatildeo

poeacutetica Contudo nos deparamos com uma dificuldade imensa em nomeaacute-lo como

o responsaacutevel por essa importante atividade na antiguidade Podemos supor a partir

desses indiacutecios apresentados atraveacutes da eacutepica homeacuterica que jaacute houvesse uma ampla

gama de estudos que deveriam estar voltados para o aprimoramento praacutetico das

teacutecnicas de composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em puacuteblico Aleacutem disso tambeacutem havia

como defende Milman Parry (PARRY1971) vaacuterias foacutermulas mnemocircnicas como o

uso de epiacutetetos que fornecia aos aedos e rapsodos mais liberdade nas performances

460 Uma contraposiccedilatildeo agrave tese apresentada por Conrford pode ser encontrada na seguinte obra ROMILLY Jacqueline de ldquoHistoacuteria e razatildeo em Tuciacutedidesrdquo Brasiacutelia UNB 1998 461 Eacute importante ressaltar que a figura de Pitaacutegoras estaacute rodeada de muitas polecircmicas A sua fama reputaccedilatildeo entre os antigos no entanto se baseia em algumas ideias muito influentes que ateacute hoje natildeo foram totalmente compreendidas Essas ideias de um modo geral incluem as seguintes caracteriacutesticas (1) as da metafiacutesica do nuacutemero e da concepccedilatildeo de que a realidade incluindo a muacutesica e a astronomia eacute em seu niacutevel mais profundo de natureza matemaacutetica (2) o uso da filosofia como um meio de purificaccedilatildeo espiritual (3) o destino celestial da alma e a possibilidade de sua ascensatildeo agrave uniatildeo com o divino (4) o apelo a certos siacutembolos agraves vezes miacutesticos como os tetraktys a seccedilatildeo aacuteurea e a harmonia das esferas (5) o teorema de Pitaacutegoras e (6) a exigecircncia de que os membros da seita pitagoacuterica mantenha sigilo sobre os seus estudos Colocando ecircnfase em certas experiecircncias internas e verdades intuitivas reveladas apenas aos iniciados o pitagorismo parece ter desenvolvido um subjetivismo dirigido pela alma alheio agrave corrente principal do pensamento grego preacute-socraacutetico centralizado na costa jocircnica da Aacutesia Menor que estava preocupado em determinar qual eacute o elemento essencial de todas as coisas Em contraste com esse naturalismo jocircnico o pitagorismo era semelhante agraves tendecircncias vistas em religiotildees de misteacuterio como o orfismo que muitas vezes alegava alcanccedilar atraveacutes do ecircxtase induzido uma percepccedilatildeo espiritual da origem e natureza divinas da alma Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro RIEDWEG C ldquoPythagoras His life teaching and influencerdquo Translated by Steven Rendall with Christoph Riedweg and Andreas Schatzmann Ithaca NY Cornell University Press 2005

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ao vivo462 Logo nos deparamos com indiacutecios dessa atividade bem antes da

apariccedilatildeo do filoacutesofo grego

Os estudos histoacutericos indicam que esse fenocircmeno surgiu durante o

desenvolvimento da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica463 Haacute diversos mateacuterias arqueoloacutegicos

desse periacuteodo que foram encontrados que revelam que a praacutetica musical que

inicialmente se deu atraveacutes do uso da voz464 para o canto Posteriormente eacute notaacutevel

o emprego de instrumentos de sopro cordas e percussatildeo para acompanhaacute-la Aliaacutes

em Tebas foi encontrado uma tabuinha em Linear B que apresenta uma lista de

vaacuterios tocadores de lira (YOUNGER 1998) que certamente trabalhavam para

realeza com o intuito de auxiliar diversos rituais fuacutenebres e ciacutevicos Segundo o

professor americano John Younger as descobertas de instrumentos musicais

similares em outros siacutetios arqueoloacutegicos demonstram que a lira pode ter sido

introduzida pelos egiacutepcios pois ela foi encontrada durante o reino de Akhenaton

entre os anos de 1367 ndash 1350 aC Logo nos deparamos com mais uma prova que

demonstra o processo de intercacircmbio cultural que houve entre esses povos na

antiguidade Como foi ressaltado anteriormente465 por Heroacutedoto466 a muacutesica

acompanhava os egiacutepcios em inuacutemeras atividades Na descriccedilatildeo de sua viagem ele

ressalta o uso de vaacuterios instrumentos musicais entre as pessoas das classes mais

baixas A uacutenica diferenccedila que pode ser detectada entre essas culturas que

dialogavam com os predecessores dos gregos em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical pode

ser medida atraveacutes da tonalidade atraveacutes da divisatildeo sonora em tetracordes467 de

uma quarta ou de um intervalo proacuteximo dele como uma oitava Eacute provaacutevel que no

Egito usasse a muacutesica egeia mais baixa com tons mais espaccedilados com o intervalo

de uma quarta O som de um modo geral para os ouvintes eacute considerado pelos

462 Esse ponto seraacute analisado por noacutes posteriormente nesse presente trabalho 463 Vide a nossa tabela cronoloacutegica em nossos anexos 464 Vide Aristoacuteteles De anima (420 b 5-20) Uma questatildeo que o filoacutesofo destaca nessa passagem eacute a relaccedilatildeo da voz (φωνήphoneacute) e a alma (ψυχῆςpsycheacute) A alma representa o movimento da vida que eacute notado atraveacutes do uso da voz Todos os instrumentos inventados nasceram com o intuito de imitar esse poder inato do homem A muacutesica eacute um fenocircmeno fiacutesico que depende de vibraccedilotildees que se propagam no ar como a voz e que segundo o filoacutesofo serve para expressar o pensamento de modo perfeito 465 Vide o capiacutetulo 36 466 Heroacutedoto Histoacuterias ( livro II cap LX) 467 Tetracordes em geral eacute uma seacuterie de quatro tons que preenchem um intervalo de quarta justa numa frequecircncia de proporccedilatildeo 43 Na muacutesica moderna o termo eacute usado para qualquer segmento de escala ou seacuterie tonal que composto a partir de quatro notas Esse termo eacute de origem grega e refere-se literalmente as quatro cordas Ou seja tem relaccedilatildeo com os instrumentos musicais como a lira harpa ou a ciacutetara que eram utilizados pelos antigos

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especialistas como robusto com uma qualidade melismaacutetica468 de caraacuteter penta

tocircnico Esse estilo tinha a caracteriacutestica de ser uma muacutesica hipnoacutetica que era

utilizada em diversos rituais para levar os seus ouvintes ao estado de ecstasy469 e

esse tipo de som pode ser encontrado na regiatildeo do Oriente Proacuteximo Segundo o

professor Younger470 a muacutesica produzida durante a idade do bronze pelas culturas

que habitavam na bacia do mar Egeu desperta o interesse de vaacuterios especialistas

que entre eles estaacute o musicoacutelogo britacircnico Martin L West que escreveu uma obra

sobre o iniacutecio da muacutesica claacutessica ocidental a partir da origem egeia471

Eacute importante ressaltar que nenhuma composiccedilatildeo antiga dessas culturas

sobreviveu pois o Linear B natildeo era utilizado para esse fim Como foi exposto

anteriormente esse tipo de escrita tinha a finalidade de registrar e controlar toda a

produccedilatildeo agraacuteria Mas o Linear A parece ter sido utilizado para outros fins

(YOUNGER 1998) durante o seu uso pela civilizaccedilatildeo minoica O fato desse tipo

de escrita ter sido encontrado em outros suportes eacute possiacutevel especularmos que tenha

sido usado para escrever muacutesicas O disco de argila chamado Phaistos472 no qual

ambos os lados carregam uma inscriccedilatildeo em espiral de pictogramas aparentemente

natildeo relacionado com o Linear A pode ter sido uma gravaccedilatildeo de um poema de algum

tipo riacutetmico que carregava a repeticcedilatildeo de refrotildees O professor grego-britacircnico

Gareth Owens a partir dos estudos de traduccedilatildeo desses idiomas pictoacutericos mais

antigos que ele desenvolveu junto com o especialista britacircnico John Coleman em

foneacutetica da universidade de Oxford diz ter solucionado esse enigma Segundo

Owens o disco circular de argila conteacutem uma oraccedilatildeo para a deusa matildee da

civilizaccedilatildeo minoica que segundo a sua traduccedilatildeo de um lado conteacutem a histoacuteria de

uma mulher graacutevida e do outro apresenta a histoacuteria de uma mulher que estaacute prestes

a dar agrave luz A prece deve ser lida seguindo a espiral pois caminha na direccedilatildeo circular

468 Eacute a teacutecnica de transformar a siacutelaba de um texto que sempre representa uma nota durante a execuccedilatildeo sonora durante o canto Esse tipo de teacutecnica pode ser encontrado no canto gregoriano e na muacutesica hindu e muccedilulmana 469 Certamente esse tipo de muacutesica tem relaccedilatildeo direta com os misteacuterios eleusianos orfismo e o ritual dionisiacuteaco 470 Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 471 Sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra WEST ML ldquoAncient Greek Musicrdquo Oxford Clarendon Press 1992 472 O famoso disco de Phaistos foi encontrado em 1908 e foi descoberto pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier desde entatildeo os especialistas tentam desvendar o seu conteuacutedo O disco eacute datado do ano 1700 aC e foi encontrado nas ruiacutenas do palaacutecio minoico de Phaistos na costa sul de Creta

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do disco de fora para o centro Como se o poeta ou escriba estabelecesse um

ritmo constante com suas marcaccedilotildees de tempo e tonalidade numa espeacutecie de

partitura primitiva que deveria guiar os muacutesicos a reproduzirem de modo fidedigno

a canccedilatildeo original que foi estabelecida pelo compositor divino Se ele estiver correto

em sua traduccedilatildeo essa eacute a prova cabal de um dispositivo utilizado para o registro de

uma informaccedilatildeo que deveria ser mantida para a posteridade e que foi encontrado

no palaacutecio minoico de Creta473 durante a idade do bronze como um protoacutetipo de

um disco de vinil A partir dessas evidecircncias podemos postular a possibilidade da

existecircncia de uma praacutetica literaacuteria altamente evoluiacuteda e que foi encontrada antes

do periacuteodo homeacuterico

As imagens que estatildeo descritas em cada lado formariam uma mensagem

sagrada que condiz com a religiatildeo desse periacuteodo no qual a mulher desempenhava

uma alta importacircncia dentro da cultura minoica na regiatildeo de Creta474 O artefato em

si pode ser dividido de modo ordenado em duas partes complementares que

podemos nomeaacute-las para fins exegeacuteticos de A e B pois cada lado apresenta um dos

estaacutegios do processo de florescimento da vida que estava associado com as

divindades femininas nesse contexto histoacuterico (CASTLEDEN 1990) Essa eacute uma

beliacutessima imagem que poderia ser contemplada como uma uacutenica peccedila sonora que

se realizava entre esses dois momentos quando estabelecemos um encadeamento

serial que tem a capacidade de espacializar essa experiecircncia religiosa que ocorre

na relaccedilatildeo entre os dois lados e nela podemos encontrar atraveacutes da coacutepula475 o

equiliacutebrio da vida que se manifesta com a sua mais bela dinacircmica e fluidez

representada atraveacutes do fenocircmeno fiacutesico da muacutesica Esse disco representaria a

proacutepria imagem do tempo e a relaccedilatildeo entre o plano inteligiacutevel e sensiacutevel que pode

ser encontrada na religiatildeo minoica e que posteriormente ecoou atraveacutes da tradiccedilatildeo

oral na mitologia para os gregos do periacuteodo homeacuterico A grande matildee era

473 Vide a tabela cronoloacutegica em nossos anexos 474 Uma reminiscecircncia dessa concepccedilatildeo pode ser encontrada nas odes do poeta tebano Piacutendaro (Odes nemeacuteia VI) ldquo ἓν ἀνδρῶν ἓν θεῶν γένος ἐκ microιᾶς δὲ πνέοmicroεν microατρὸς ἀmicroφότεροι διείργει δὲ πᾶσα κεκριmicroένα δύναmicroις ὡς τὸ microὲν οὐδέν ὁ δὲ χάλκεος ἀσφαλὲς αἰὲν ἕδος microένει οὐρανόςrdquo ldquoUma soacute de homens uma soacute raccedila de deuses de uma soacute matildee respiramos ambos distantes todavia todo o poder que as difere de forma que uma eacute nada mas sede sempre intreacutepido permanece brocircnzeo o ceacuteurdquo Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros CASTLEDEN Rodney ldquoMinoans Life in Bronze Age Creterdquo Routledge Press London 1990 E ldquoMycenaeans Life in Bronze Age Greecerdquo Routledge Press London 2005 475Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo

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considerada a divindade mais importante entre eles pois ela simbolizava vida

fertilidade e abundacircncia da Natureza Nos afrescos e ceracircmicas que essa deusa

aparece eacute possiacutevel notar a sua imponecircncia e espirito acolhedor diante dos seus

suacuteditos que em muitas representaccedilotildees satildeo de figuras animalescas e humanas

(MARINATOS 2010) A sua imagem maternal revela a natureza provedora que eacute

responsaacutevel pelo equiliacutebrio e prosperidade da comunidade Em outras apariccedilotildees o

machado duplo e o sol estatildeo ao seu lado O primeiro como o instrumento uacutetil para

manter a subsistecircncia atraveacutes da caccedila e a construccedilatildeo de utensiacutelios domeacutesticos De

outro uma arma de defesa e combate Enquanto que o sol representa o

florescimento da vida e do tempo Essas caracteriacutesticas revelam o poder dualista

da deusa que estaacute de um lado entre a fertilidade e a guerra e de outro entre o

mundo humano e divino Ou seja todos esses atributos inerentes agrave proacutepria Natureza

Em vaacuterios afrescos encontrados vemos que esse ritual em sua homenagem eacute

acompanhado por muacutesicos476 Esse fato revela o seu grau de importacircncia dentro da

civilizaccedilatildeo minoica

Eacute importante ressaltar que esses dois siacutembolos477 satildeo pertencentes a escrita

pictoacuterica minoica que eacute similar aos hieroacuteglifos egiacutepcios (EVANS 1952) Em todas

essas culturas antigas que utilizavam essa forma de expressatildeo os ideogramas

possuiacuteam um valor conceitual que eacute associado ao seu valor foneacutetico Ou seja os

sinais expostos no disco de argila de Phaistos por exemplo auxilia o leitor a

compreender imediatamente o conceito atraacutes de cada imagem exposta de modo

organizado O formato solar desse artefato tambeacutem remete diretamente aos

atributos da deusa que foram mencionados anteriormente Essa peccedila como um todo

representa o aacutepice que a civilizaccedilatildeo minoica alcanccedilou antes de seu total decliacutenio O

arqueoacutelogo britacircnico Arthur Evans identificou atraveacutes das escavaccedilotildees no siacutetio de

Creta que diversos ideogramas minoicos foram utilizados em trabalhos artiacutesticos no

interior do palaacutecio e em outros objetos de uso domeacutestico Ele notou que muitos

deles eram empregados com o mesmo valor simboacutelico que era utilizado na escrita

egiacutepcia478 Ora esse fato apresenta mais um ponto de conexatildeo entre essas duas

476 Vide os nossos anexos 477 Vide a escrita minoica no disco de argila de Phaistos nos anexos 478 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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culturas Nas fontes analisadas de modo comparativo pode-se averiguar que a

figura do sol desempenhou uma funccedilatildeo crucial na religiatildeo egiacutepcia atraveacutes do deus

Raacute Supreendentemente esse mesmo siacutembolo entre os minoicos ficou associado agrave

divina grande matildee que foi nomeada posteriormente de Potnia Theron479 a rainha

das feras Nesse sentido podemos acompanhar como uma importante divindade

minoica se manteve pelo menos em sua essecircncia arquetiacutepica incoacutelume na

mitologia grega mesmo depois do retrocesso cultural que foi produzido durante a

idade das trevas As divindades femininas de Atenas Reia Hera e Aacutertemis satildeo

exemplos de como essa antiga deusa solar sobreviveu no inconsciente coletivo

desses remanescentes que foram importantes para a formaccedilatildeo da base cultural

helecircnica (CHADWICK 1976)

Ao analisarmos algumas pinturas desse periacuteodo podemos supor que o mito

das musas e de Orfeu possa ter partido desse contexto cultural mais antigo das

civilizaccedilotildees ciclaacutedica e minoica que utilizavam esse meio artiacutestico totalmente

vinculado com o acircmbito religioso soacutecio-poliacutetico pedagoacutegico e juriacutedico Eacute notoacuterio

que essas culturas apresentavam o fenocircmeno da muacutesica como uma manifestaccedilatildeo

divina que era fundamento para outras atividades que tinha por objetivo manter o

equiliacutebrio soacutecio-poliacutetico entre todas as camadas que formavam a sociedade O poeta

que obtivesse a sua gloacuteria era considerado como aquele que pode transitar como

Orfeu entre o mundo humano e divino Uma prova desse encantamento que

ultrapassa a esfera humana e que marcou profundamente o processo de

subjetividade coletivo grego pode ser encontrado como tema central no diaacutelogo Iacuteon

de Platatildeo no qual o filoacutesofo apresenta uma interessante discussatildeo para saber se a

poesia eacute fruto do conhecimento humano ou da inspiraccedilatildeo divina480 Dentro desse

contexto histoacuterico poacutes homeacuterico em que a trama se baseia eacute possiacutevel detectar o

aparecimento da figura do rapsodo que apresentava poemas que natildeo era de sua

autoria e sem o acompanhamento musical481 Desde os primoacuterdios a figura de

479 Πότνια ΘηρῶνPotnia Theron 480 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo Eacute importante ressaltar que o pano de fundo desse cenaacuterio no qual o diaacutelogo se desenvolve estaacute tambeacutem a questatildeo entre a relaccedilatildeo entre a phyacutesis e nomos (φύσις και νόmicroος) ou seja o debate entre a lei da natureza e a lei da convenccedilatildeo humana Essa era uma polecircmica que despertou o interesse dos pensadores entre os seacuteculos 4 e 5 na Greacutecia a partir das reflexotildees que tinha a figura do homem como tema central 481 Essa eacute uma diferenccedila crucial em relaccedilatildeo a atividade poeacutetica que podemos encontrar na maioria do material arqueoloacutegico analisado dessas antigas civilizaccedilotildees que foram predecessoras dos gregos O acompanhamento instrumental fazia parte do trabalho desses artistas De um lado temos a

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destaque era o aedo482 que declamava seus proacuteprios versos eacutepicos em diversos

cantos da Greacutecia As caracteriacutesticas que satildeo apresentadas entre esses dois ourives

da palavra demonstram o processo de transformaccedilatildeo que a proacutepria poesia estava

atravessando com a expansatildeo da reinserccedilatildeo do uso da escrita (HAVELOCK 1996)

que deu a possibilidade para a reconfiguraccedilatildeo do processo de subjetividade coletivo

grego Nesse sentido o ofiacutecio do aedo representa o primeiro estaacutegio do

desenvolvimento racional e cultural grego pois ele eacute responsaacutevel por manter todo

o legado mais importante de seu povo atraveacutes do amplo desenvolvimento musical

que estava agrave serviccedilo do processo de memorizaccedilatildeo e encantamento utilizando como

conteuacutedo todos os acontecimentos mais marcantes do passado O segundo

momento que ocorreu o aparecimento da figura do rapsodo entre os seacuteculos V e

IV aC apresenta uma mudanccedila em que a literatura escrita passa influenciar as

praacuteticas de recitaccedilatildeo que acompanham esse novo contexto soacutecio-poliacutetico e cultural

grego Ou seja a tecnologia escrita foi interpretada por muitos pensadores como

Platatildeo483 e Alcidamas484 como um meio artificial e mimeacutetico que se chocou com

essa tradiccedilatildeo oral mais antiga que era focada na inspiraccedilatildeo divina que foi ampliada

pelo poder magnifico das leis musicais Eacute importante ressaltar que esse modelo mais

antigo estabelece relaccedilatildeo direta com a capacidade de memorizaccedilatildeo e raciociacutenio

que foi essencial para desenvolvimento da geometria e matemaacutetica dessas

sociedades

No diaacutelogo Fedro de Platatildeo essa novidade era concebida por Soacutecrates como

uma espeacutecie de ilusatildeo de conhecimento que parte do distanciamento entre os

manifestaccedilatildeo divina que surge pela capacidade de memorizaccedilatildeo e encantamento coletivo e pelo outro a capacidade humana de criaccedilatildeo atraveacutes da tecnologia que eacute representada na construccedilatildeo desses instrumentos que tinham desde a sua origem apresentar o diaacutelogo entre o mundo humano e divino Como ressaltamos anteriormente esse legado pode ser encontrado na mitologia que auxiliou os gregos na construccedilatildeo de sua sociedade apoacutes a idade das trevas atraveacutes da tradiccedilatildeo oral 482 Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott Αἰδώς aidoacutes ἀοιδός [α] ὁ ( ἀείδω ) cantor menestrel bardo Il 24720 Od 3270 al Hes Th 95 Op 26 Sapph 92 etc ἀ ἀνήρ Od 3267 θεῖος ἀ 417 887 al τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀ Hdt 124 πολλὰ ψεύδονται ἀ Arist Metaph 983a4 cgen γόων χρησmicroῶν ἀοιδός E HF 110 Heracl 403 πρᾶτος ἀ of the cock Theoc 1856 2 fem songstress πολύϊδρις ἀ Id 1597 of the nightingale Hes Op 208 of the Sphinx S OT 36 E Ph 1507 (lyr) ἀοιδὸς Μοῦσα Id Rh 386 (lyr) 3 encantador S Tr 1000 II as Adj melodioso musical ἀοιδοτάταν ὄρνιθα E Hel 1109 (lyr) cf Theoc 127 Call Del 252 IG 12(2)443 2 Pass = ἀοίδιmicroος famous πολλὸν ἀοιδοτέρη Arcesil ap DL 430 III = εὐνοῦχος Hsch cf δοῖδος 483 Vide Platatildeo Fedro (275 a ) 484 Vide Alcidamas sobre os sofistas

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interlocutores485 Logo o meacutetodo maiecircutico socraacutetico dentre desse novo contexto

estava completamente ameaccedilado Por essa perspectiva eacute possiacutevel compreendermos

o fato de o filoacutesofo nunca ter escrito uma uacutenica linha A filosofia para ele eacute

fundamentalmente calcada no processo dialoacutegico que necessita do contato entre

duas almas de modo ativo como uma praacutetica existencial de cunho eacutetico epistecircmico

poliacutetico e pedagoacutegico O seu grande disciacutepulo Platatildeo carrega essa marca de modo

paradoxal ao escrever seus diaacutelogos A escrita platocircnica eacute a imagem do diaacutelogo oral

que eacute o meacutetodo deixado pelo seu mestre para a busca de conhecimento que soacute pode

ocorrer no encontro entre duas almas Dentro dessa concepccedilatildeo eacute importante

ressaltar que o processo subjetivo eacute atravessado pela troca incessante e essencial

com o outro pois o diaacutelogo natildeo repassa para o indiviacuteduo um conhecimento acabado

Pelo contraacuterio ele eacute resultado de um esforccedilo e colaboraccedilatildeo muacutetuo que parte da

duacutevida e da busca compartilhada Nesse sentido eacute possiacutevel como ressalta o

helenista francecircs Pierre Hadot (HADOT 1995) compreendermos o motivo pelo

qual Platatildeo jamais escreveu utilizando a primeira pessoa do singular Ao contraacuterio

de outros pensadores do seu periacuteodo o filoacutesofo sempre afirmou atraveacutes da premissa

socraacutetica do natildeo saber a nossa incapacidade de realizar qualquer atividade sem o

auxiacutelio do outro Como ressaltamos em nossa introduccedilatildeo esse caminho filosoacutefico

eacute baseado na constataccedilatildeo da necessidade do outro que atravessa essencialmente a

natureza humana desde a sua origem Dentro desse debate produzido durante o

periacuteodo claacutessico nos deparamos com o choque entre a antiga tradiccedilatildeo oral que era

fundamentada atraveacutes do conhecimento musical da poesia e com o novo uso da

teacutecnica escrita que comeccedila a atuar como o principal instrumento de armazenamento

informacional Essa transformaccedilatildeo modificou de modo irreversiacutevel o processo de

subjetividade grego Uma nova mentalidade comeccedila a ser desenhada no qual essa

tradiccedilatildeo oral de um modo geral comeccedila a ser colocada em xeque pelos seus

detratores O efeito desse desgaste resultou no discurso em prosa que podemos

encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides No iniacutecio da Poeacutetica486 haacute uma passagem

interessante em que Aristoacuteteles demarca esse distanciamento entre esses dois

485 Ou seja o diaacutelogo presencial natildeo pode acontecer dentro desse novo contexto Esse ponto eacute importante para apresentar o caraacuteter pragmaacutetico que o meacutetodo dialoacutegico representava em uma cultura que foi criada a partir da tradiccedilatildeo oral 486 Vide Aristoacuteteles Poeacutetica (1447 b)

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importantes meios expressivos do pensamento grego487 A sua abordagem

sistematizadora e perspicaz eacute de grande ajuda para detectarmos algumas

caracteriacutesticas dessa nova forma de expressatildeo que eacute derivada da antiga arte das

musas488

Em todas as culturas que antecederam esse momento encontramos inuacutemeras

provas de atividades artiacutesticas que comprovam o grande desenvolvimento do

processo de subjetividade preacute-grego atraveacutes da muacutesica A nossa hipoacutetese busca o

seu fundamento na concepccedilatildeo musical que parte da afinaccedilatildeo489 que surge da tensatildeo

dos instrumentos de cordas e que opera de modo relacional e comparativo Ou

seja duas importantes atribuiccedilotildees de nossa capacidade cognitiva que aponta para

um amplo desenvolvimento intelectual A noccedilatildeo de harmonia490 que na liacutengua

grega apresenta o sentido de ajuste e concoacuterdia antes mesmo de Pitaacutegoras e

Heraacuteclito essas importantes noccedilotildees jaacute estavam sendo estudadas e utilizadas por

todos os poetas e muacutesicos da idade do bronze com o intuito de alcanccedilar a excelecircncia

487 O termo empregado no texto grego eacute λόγοςloacutegos Posteriormente apresentaremos algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto

488 Μουσικήmousikeacute 489 Ato de ajustar aumentando ou diminuindo a tensatildeo das cordas Natildeo sabemos ao certo quando isso ocorreu na antiguidade mas uma coisa eacute certa natildeo foi Pitaacutegoras o primeiro a ter feito isso A natildeo ser que a cronologia que muitos historiadores apresentam ao seu respeito esteja equivocada Seja como for a sua teoria pode ter sido aprimorada a partir dessas descobertas musicais que ele certamente adquiriu com os sacerdotes egiacutepcios 490 Ἁρmicroονίαharmonia Na mitologia eacute uma divindade responsaacutevel pela concoacuterdia Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott ἁρmicroονία ἡ ( ἁρmicroόζω ) meios de uniatildeo fixaccedilatildeo γόmicroφοις microιν καὶ ἁρmicroονίῃσιν ἄρηρεν Od 5248 ὄφρ ἂν ἐν ἁρmicroονίῃσιν ἀρήρῃ ib 361 2 articulaccedilatildeo como entre as pranchas de um navio τὰς ἁ ἐν ὦν ἐπάκτωσαν τῇ βύβλῳ vedar as junccedilotildees com papiros Hdt 296 τῶν ἁρmicroονιῶν διαχασκουσῶν Ar Eq 533 tambeacutem em alvenaria αἱ τῶν λίθων ἁ DS 28 cf Paus 888 9337 3 Em anatomia sutura Hp Off 25 Oss 12 uniatildeo de dois ossos por mera justaposiccedilatildeo Gal 2737 tambeacutem no plural ajustes πόρων Epicur Fr 250 4 Estrutura ῥηγνὺς ἁρmicroονίαν λύρας S Fr 244 βοός Philostr Im 116 esp do quadro humano ἁρmicroονίην ἀναλυέmicroεν ἀνθρώποιο Ps-Phoc 102 νεύρων καὶ κώλων ἔκλυτος ἁ AP 7383 ( Phil ) τὰς ἁ διαχαλᾷ τοῦ σώmicroατος Epicr 219 b da mente δύστροπος γυναικῶν ἁdo temperamento perverso das mulheres E Hipp 162 (lyr) c estrutura do universo CorpHerm 114 II Convecircnio acordo in pl microάρτυροι καὶ ἐπίσκοποι ἁρmicroονιάων Il 22255 III governo estabelecido ordem τὰν ∆ιὸς ἁ A Pr 551 (lyr) IV Na muacutesica afinar ἁ τόξου καὶ λύρας Heraclit 51 cf Pl Smp 187a daiacute meacutetodo de afinaccedilatildeo musical escala Philol 6 etc Nicom Harm 9 esp oitava ἐκ πασῶν ὀκτὼ οὐσῶν [φωνῶν] microίαν ἁ συmicroφωνεῖν Pl R 617b ἑπτὰ χορδαὶ ἡ ἁ Arist Metaph 1093a14 cf Pr 919b21 of the planetary spheres in Pythag theory Cael 290b13 Mu 399a12 etc 2 Geralmente muacutesica αὐτῷ δὲ τῷ ῥυθmicroῷ microιmicroοῦνται χωρὶς ἁ Id Po 1447a26 3 especial tipo de escala modo ἁ Λυδία Pi N 446 Αἰολίς or -ηις PratinLyr 5 Lasus I cf Pl R 398e al Arist Pol 1276b8 1341b35 etc b esp Escala enarmocircnica Aristox Harm pI M Plu 21135a al 4 ἁρmicroονίαν λόγων λαβών um devido arranjo das palavras fit to be set to music Pl Tht 175e 5 intonation or pitch of the voice Arist Rh 1403b31 6 metaph De pessoas coisas harmonia concoacuterdia Pl R 431e etc V personificado como uma figura miacutetica hAp 195 Hes Th 937 etc Philos like φιλότης princiacutepio de uniatildeo opp Νεῖκος Emp 1222 cf 273 VI Pythag Nome para trecircs Theol Ar 16 VII Nome de um remeacutedio Gal 1361 nome de um gesso Paul Aeg 362

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expressiva Logo podemos concluir que essa atividade que foi explorada por esses

pensadores gregos posteriormente tambeacutem foi uma heranccedila oriunda da tradiccedilatildeo

oral

A teoria mais importante da muacutesica grega antiga que foi reconhecida entre os

especialistas parte da teoria harmocircnica de Pitaacutegoras que seguia uma concepccedilatildeo

geomeacutetrica491 Em resposta direta a esse pressuposto a formulaccedilatildeo de Aristoxeno

que foi desenvolvida posteriormente era fundamentalmente empiacuterica ou seja o

criteacuterio de seu estudo estava voltado para o surgimento desse fenocircmeno fiacutesico em

nossos sentidos E segundo a professora Flora (LEVIN 2009) foram essas duas

concepccedilotildees que estabeleceram o paracircmetro para a ciecircncia da melodia em nosso

mundo Ocidental Desde a antiguidade a muacutesica estabelece uma espeacutecie de imagem

que apresenta o universo em movimento que sintetiza o proacuteprio processo da vida

Eacute importante ressaltar que para o pitagorismo a descoberta dessas leis natildeo

escritas que governam a nossa realidade tem uma dimensatildeo idecircntica agrave constituiccedilatildeo

do processo musical e da arte como um todo492 Desse modo podemos encontrar

mais um elemento de afinidade com o desenvolvimento racional que foi essencial

para o surgimento da ciecircncia e filosofia ateacute o periacuteodo renascentista Ao intuir a

essecircncia da muacutesica como nos apresenta as doxografia pitagoacuterica493 como uma lei

superior invisiacutevel que ordena o mundo sensiacutevel estamos aptos para reconhecer uma

lei universal que governa essa estrutura composta de vaacuterias partes mas natildeo como

uma realidade autocircnoma e isolada e sim como algo pertencente agrave um todo orgacircnico

estruturado A descoberta dessa ordem musical da Natureza reflete-se na religiatildeo

matemaacutetica geometria arte poliacutetica educaccedilatildeo e na filosofia Dentro desse

contexto o mito expande a sua atuaccedilatildeo nos mais variados campos Do encanto da

fala ou a fala cantada em um dos seus muacuteltiplos usos surge para ampliar o

horizonte da criaccedilatildeo helecircnica agrave serviccedilo da poesia eacutepica e a formaccedilatildeo das crianccedilas494

491 Sobre esse ponto recomendamos leitura do seguinte livro LEVIN RF ldquoGreek Reflections on the nature of musicrdquo Cambridge University Press 2014 492 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GHYKA Matila ldquoEstheacutetique des proportions dans la nature et dans les artsrdquo Editeacute par Paris Editions Gallimard 1927 493 Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros HUFFMAN C ldquoPhilolaus of Croton Pythagorean and Presocraticrdquo Cambridge University Press 1993 e IAMBLICHUS ldquoOn the Pythagorean Way of Liferdquo The translation by J Dillon and J Hershbell Atlanta Scholars Press 1991 494 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro II e III) e Aristoacuteteles Poliacutetica (livro VIII) Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo

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com as dramatizaccedilotildees que facilitavam o processo pedagoacutegico Esse recurso trazia

em seu bojo os elementos necessaacuterios para o amplo desenvolvimento individual que

era alcanccedilado atraveacutes da ampliaccedilatildeo da percepccedilatildeo visual auditiva mnemocircnica

criativa emocional e afetiva495 que eram necessaacuterios para a construccedilatildeo e equiliacutebrio

do homem grego na vida poliacutetica e militar496 o desenvolvimento desse processo de

formaccedilatildeo psicoloacutegica foi tatildeo importante que posteriormente alcanccedilou a sua

plenitude maacutexima atraveacutes da sofisticaccedilatildeo pedagoacutegica apresentada pelo Teatro497

Na antiguidade haacute um consenso que apresenta Pitaacutegoras como o primeiro

pensador a elaborar uma teoria sobre a muacutesica Mas posteriormente muitos

estudiosos da escola platocircnica e aristoteacutelica se interessaram por esse assunto

durante e apoacutes o periacuteodo claacutessico498 Esse interesse pode ser considerado como

mais uma evidecircncia para a importacircncia desses estudos no acircmbito da epistemologia

antiga Natildeo podemos esquecer que em seus uacuteltimos momentos na prisatildeo Soacutecrates

menciona a relaccedilatildeo entre a muacutesica e a filosofia499 Em algumas horas antes do

filoacutesofo tomar a cicuta revela aos seus companheiros que devido a um sonho

recorrente ele foi impulsionado a cultivar a arte das musas A partir disso ele

compocircs algumas poesias inspirado nas faacutebulas de Esopo500 que foi um poeta

495 Παθηmicroαpathema No tratado intitulado ldquoDa interpretaccedilatildeordquo (livro I 16 a) Aristoacuteteles destaca o papel das afecccedilotildees no processo da linguagem humana Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega παθ-ηmicroα ατος τό dat pl παθηmicroάτοις com Adesp 283 (Aetol De acordo com Eust 27942 176136) - o que acontece com um sofrimento infortuacutenio S Tr 142 Th 448 etc τὸ π τοῦ Χριστοῦ a paixatildeo de Cristo 2 EpCor 15 de boa fortuna χαῖρε παθὼν τὸ π (deificaccedilatildeo) Orph Pe 32f principalmente em pl Hdt 8136 etc παθήmicroαθ ἅπαθον S OC 361 ἀκούσια π opp ἑκούσια καὶ ἐκ προνοίας ἀδικήmicroατα Antipho 127 τὰ δέ microοι π microαθήmicroατα γέγονε meus sofrimentos foram minhas liccedilotildees (cf πάθος 12) Hdt 1207 cf Ar ordm 199 pl Smp 222b II emoccedilatildeo ou condiccedilatildeo afeto π τῆς ψυχῆς εἶναι τὴν σωφροσύνην οὐ microάθηmicroα X Cyr 3117 cf Pl Phd 79d opp ποίηmicroα Id Sph 248b τὸ τῆς ἑτέρας χειρὸς π Enredo 492 mas nos primeiros escritores principalmente em pl afeiccedilotildees sentimentos opp ποιήmicroατα Pl R 437b τὰ περὶ τὸ σῶmicroα π Identidade Phlb 33d σα διὰ τοῦ σώmicroατος π ἐπὶ τὴν ψυχὴν τείνει Id Th 186c π ν τῇ ψυχῇ γιγνόmicroενα Id R 511d παθήmicroασιν ὑπηρετεῖν obedeccedilam aos sentimentos Arist Pol 1254b24 opp ἤθη ἕξεις Id Rh 1396b33 cf Po 1449b28 2 Medic Pl Problemas sintomas Hp VM 2 Epid 2224 π καὶ νοσήmicroατα Pl R 439d cf 389c III em pl incidentes acontecimentos τὰ ἐν ∆οδυσσείᾳ π ib 393b πάντα εἴδη καὶ π πολιτειῶν Id Lg 681d 2 incidentes ou mudanccedilas de corpos materiais τὰ οὐράνια π Identidade Ion 531c cf Phd 98a τὰ τῆς σελήνης π Arist Metaf 982b16 cf Mete 363a24 365a12 3 em Loacutegica incidentes propriedades ou acidentes Pl Phdr 271b Prm 141d 157b Arist APo 76b13 Cael 310a20 τὰ π τὰ αἰσθητά de cor etc Id Sens 445b4 496 No proacuteximo capitulo veremos que a atuaccedilatildeo militar estava inteiramente vinculada a vida poliacutetica entre os gregos 497 Vide a Poacuteetica de Aristoacuteteles (1447 a 10025) 498 Vide De institutione musica de Boeacutecio 499 Vide Platatildeo Feacutedon (57 a - 65 c ) 500 Escritor grego (620 aC ndash 564 aC ) de origem africana () que teria sido o inventor da faacutebula Segundo Heroacutedoto (Histoacuterias II 134) Esopo foi escravo do filoacutesofo Xanto e foi condenado agrave morte

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escravo que teria sido condenado agrave morte injustamente501 As suas faacutebulas que

tinha uma caracteriacutestica eacutetico-moral foram um importante trabalho de expressatildeo

poeacutetico que era utilizado para fins pedagoacutegicos Esse dado curioso fornece vaacuterias

pistas que apontam para a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo antiquiacutessima grega que sempre

esteve voltada para o desenvolvimento do processo subjetivo coletivo grego que

podemos encontrar algumas evidecircncias na mitologia e nas obras de Platatildeo502

47 Eacutepos 503

Como foi exposto anteriormente no primeiro capiacutetulo esse eacute o segundo

importante termo encontrado na liacutengua grega que se refere ao ato de expressatildeo

humano504 De um modo geral a poesia eacutepica ganhou notoriedade a partir da obra

injustamente Talvez seja por isso que Soacutecrates de maneira irocircnica tenha mencionado o poeta escravo por causa desse julgamento equivocado e pelo teor eacutetico-moral e alegoacuterico de suas obras na antiguidade 501 Ibidem 502 Vide o diaacutelogo Feacutedon e a Repuacuteblica de Platatildeo 503 Em outros capiacutetulos desse presente trabalho vamos apresentar algumas caracteriacutesticas que tem relaccedilatildeo direta com esse meio de expressatildeo A partir disso o presente subcapiacutetulo focaraacute em alguns aspectos formais e histoacuterico que visam expor a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral 504 Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega Ἔπος mais antigo ϊέπος SIG 9 (v infr) etc εος τό (Skt vaacutecas palavra hino cf εἶπον) I palavra παύρῳ ἔπει em poucas palavras Pi O 1398 ἐπέων κόσmicroος Parm 852 Democr 21 ἔπους σmicroικροῦ χάριν S OC 443 λόγοι ἔπεσι κοσmicroηθέντες Th 367 geralmente aquilo que eacute pronunciado em palavras fala conto ἔπος ἐρέειν Il 383 etc φάσθαι Xenoph 73 Parm 123 etc ao lado de microῦθος Od 4597 11561mdashUsos especiais 1 Canccedilatildeo acompanhada de muacutesica 891 17519 2 Palavra prometida promessa Il 88 τελέσαι ἔπος fulfil keep ones word 1444 cf A Pr 1033 3 Palavra na eacutepoca conselho Il 1216 2807 Od 18166 etc freq in Trag E Hel 513 etc 4 Palavra de uma divindade oraacuteculo Od 12266 Hdt 113 etc 5 Falar proveacuterbio τὸ παλαιὸν ἔπος Id 751 cf Ar Av 507 6 palavra opp ato ἔπε ἀκράαντα palavras sem efeito opp ἔτυmicroα Od 19565 cf E HF 111 (lyr) opp ἔργον Il 15234 Od 2272 etc cf 111 αἴτε ϊέπος αἴτε ϊάργον SIG 9 (Elis vi BC) opp βίη Il 15106 opp χεῖρες 177 (pl) 7 Assunto de uma fala menssagem 11652 17701 S OT 1144 etc II Uso posteriores 1 Juntou-se com ἔργον or πρᾶγmicroα Heraclit 1 A Pers 174 (troch) Ar Eq 39 etc ἔργῳ τε καὶ ἔπει Pl Lg 879 c ἅmicroα ἔπος τε καὶ ἔργον ἐποίεε Hdt 3134 χρηστὰ ἔργα καὶ ἔπεα ποιέειν Id 190 2 κατ ἔπος palavra por palavra κατ ἔ βασανιεῖν φησι τὰς τραγῳδίας Ar Ra 802 3 πρὸς ἔπος para a primeira palavra Luc Ep Sat 37 b palavra em troca de palavra ἀmicroείβεσθαι ἀποκρίνεσθαι of an oracle Id Alex 19 Philops 38 ἔ δ ἀmicroείβου πρὸς ἔ A Eu 586 cf Ar Nu 1375 Pl Sph 217d c οὐδὲν πρὸς ἔ to no purpose Ar Ec 751 tambeacutem nada a proacutesito ἐὰν microηδὲν πρὸς ἔ ἀποκρίνωmicroαι Pl Euthd 295c cf Luc Herm 36 τί πρὸς ἔπος Pl Phlb 18d 4 ὡς ἔπος εἰπεῖν quase praticamente qualificando uma expressatildeo muito absoluta esp com πᾶς and οὐδείς (sem metaacuteforas) Pl Ap 17a Phd 78e Grg 456a al Arist Metaph 1009 b16 Pol 1252 b29 D 947 etc opp ὄντως or ἀκριβεῖ λόγῳ Pl Lg 656e R 341b posteriormente ὡς ἔ ἐστὶν εἰπεῖν POxy 6714 (iv AD) in Trag ὡς εἰπεῖν ἔ A Pers 714 (troch) E Heracl 167 Hipp 1162 once in Pl Lg 967b (svl) 5 ἑνὶ ἔπει em uma palavra brevemente ἑνὶ ἔπεϊ πάντα συλλαβόντα λέγειν Hdt 382 III De palavras isoladas esp com ref para etimologia ou uso Id 230 Ar Nu 638 Pl Prt 339 a etc ὀρθότης ἐπῶν = ὀρθοέπεια (qv) Ar Ra 1181 ἄριστ ἐπῶν ἔχον ib 1161 IV in pl epic poetry opp microέλη (lyric poetry) ἰαmicroβεῖα διθύραmicroβοι etc ῥαπτῶν ἐπέων ἀοιδοί Pi N 22 τὰ Κύπρια ἔπεα Hdt 2117 cf Th 13

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homeacuterica505 e hesioacutedica506 se focircssemos atribuir uma uacutenica caracteriacutestica agrave epopeia

poderiacuteamos afirmar que ela estaacute voltada para registrar a excelecircncia da accedilatildeo

humana507 diante das dificuldades para manter a sobrevivecircncia em um mundo

completamente hostil marcado essencialmente pela guerra Todas as experiecircncias

satildeo reunidas com o intuito de organizar um banco mnemocircnico que pode ser

utilizado para a sua orientaccedilatildeo social e poliacutetica Eacute importante ressaltar que esse tipo

de gecircnero natildeo era de uso exclusivo dos gregos (KIRK 1962) Em outras

civilizaccedilotildees muito mais antigas como o povo hitita por exemplo eacute possiacutevel

encontramos esse gecircnero sendo utilizado para fins religiosos e militares508

As obras dos dois poetas gregos mais famosos Homero e Hesiacuteodo se apoiam

em uma tradiccedilatildeo oral extremamente antiga para a construccedilatildeo de suas narrativas

poeacuteticas que seguem agrave risca uma estruturaccedilatildeo meloacutedica e meacutetrica que foi

desenvolvida atraveacutes do aperfeiccediloamento das teacutecnicas musicais que foram essecircncias

para a sua longevidade e efetividade na cultura grega509 Como foi exposto por noacutes

anteriormente510 esses poetas deram continuidade a uma atividade mnemocircnica que

tinha uma funccedilatildeo determinante na estruturaccedilatildeo social poliacutetica e pedagoacutegica dos

gregos Dentro do estudo desenvolvido na Poeacutetica o filoacutesofo macedocircnio expotildee que

todas as composiccedilotildees poeacuteticas independentemente do gecircnero se caracterizavam

por meio do ritmo das palavras511 e da harmonia de modo separado ou

combinado512 E elas tem por dever imitar as accedilotildees excelentes513 atraveacutes da palavra

X Mem 143 Pl R 379 a etc ἔπεά τε ποιεῖν πρὸς λύραν τ ἀείδειν Theoc Ep 216 νικήσας ἔπος IG 31020 ποητὴς ἐπῶν ib 731979 (Orchom Boeot) cf OGI 5137 (Egypt iii BC) b geralmente poesia ateacute letras Alcm 25 (prob) Pi O 38 etc c linhas versos esp de linhas faladas no drama Ar Ra 862 956 etc sg verso linha de poesia Hdt 429 Pl Min 319 d conjunto de versos Id R 386 c Hdt 7143 d linhas escritas microυρίων ἐπῶν microῆκος Isoc 12136 ἐν ὅλοις ἑπτὰ ἔπεσι παραδραmicroεῖν de um histoririador Luc HistConscr 28 505 Eacute importante ressaltar que as duas epopeias da Iliacuteada e Odisseia representam dois momentos distintos dentro da histoacuteria da poesia heroica grega No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essas diferenccedilas que encontramos nessas duas obras 506 Ibidem 507 Na Poeacutetica (1448 a ndash 26) Aristoacuteteles afirma que a epopeia eacute a imitaccedilatildeo de homens que se destacam por sua excelecircncia (ἀρετή aretecirc) Logo podemos encontrar a partir dessa passagem o caraacuteter pedagoacutegico e axioloacutegico da antiga poesia eacutepica 508 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros GEORGE A RldquoThe Babylonian Gilgamesh Epicrdquo Oxford 2003 E BOWRA Cecil Maurice ldquoHeroic Poetryrdquo London Macmillan 1952 509 Vide o subcapiacutetulo anterior 510 Ibidem 511 No texto grego observamos que o filoacutesofo natildeo utiliza o termo ἔπος eacutepos mas λόγος loacutegos No proacuteximo subcapiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 512 Aristoacuteteles Poeacutetica (livro I 1447 a 20 ndash 25) 513 Excelecircncia ἀρετή aretecirc

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e melodia514 Nesse sentido nos deparamos com o caraacuteter de interdependecircncia

reciacuteproco entre a palavra e a muacutesica Em outro livro chamado Problemas515 ele

deixa subtendido que o diaacutelogo entre esses dois termos estaacute totalmente voltado para

a proacutepria estruturaccedilatildeo do idioma grego Todas as formas literaacuterias criadas

acompanham indissociavelmente esse processo de desenvolvimento musical Ou

seja a melodia estaacute voltada para o aspecto foneacutetico que visa encontrar a excelecircncia

expressiva nos olhos516 e ouvidos dos gregos

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees de como era a formaccedilatildeo desses

primeiros aedos Para o helenista britacircnico Geoffrey Stephen Kirk (KIRK 1962)

esses primeiros poetas tinha uma plena aceitaccedilatildeo entre todas as camadas sociais

dos membros da realeza ateacute a populaccedilatildeo mais humilde A sua hipoacutetese eacute

fundamentada pela anaacutelise da poesia heroica iugoslava517 e algumas partes da

Odisseia que apresentam o profundo respeito que figuras como Phemius518 e

Demoacutedoco519 exerciam naquele periacuteodo Uma caracteriacutestica desse tipo de

composiccedilatildeo era o uso dos epiacutetetos atraveacutes do uso de substantivos de modo repetitivo

que tinha a finalidade de realccedilar alguma qualidade de algum personagem

importante como eacute o caso de figuras como Aquiles520 e Odisseu521 na Iliacuteada Vale

ressaltar que esse recurso tambeacutem era utilizado para destacar lugares objetos e

certas situaccedilotildees que deveriam ser mantidas para facilitar o processo mnemocircnico do

aedo que tinha que recordar milhares de versos sem a ajuda da teacutecnica escrita

durantes as suas apresentaccedilotildees puacuteblicas522 Natildeo haacute duacutevida de que esse tipo de

capacidade para alcanccedilar a sua maacutexima excelecircncia necessitava ser praticada

514 Μελοποι-ια ἡ melopoia Fazer poemas liacutericos ou muacutesica geralmente muacutesica Arist Po 1450b16 Pol 1341b24 Aristox Harm p38 M Phld Mus p31 K Ocell 48 Cleonid Harm 14 AristidQuint 112 II Composiccedilatildeo musical ao contraacuterio de sua praacutetica Pl Smp 187d cf R 404 d para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott 515 Vide Aristoacuteteles Problemas (livro XIX 20) 516 Com a encenaccedilatildeo teatral e dos grandes oradores como Goacutergias 517 Esse trabalho foi analisado de modo primoroso no seguinte livro CHADWICK H Munro and Nora ldquoThe Growth of Literaturerdquo In 3 vols Cambridge 1932 518 Vide Homero Odisseia (Canto I 325 ndash 345) 519 Ibidem (Canto VIII 62-68) Essa passagem eacute importante pois revela que a funccedilatildeo do aedo era sempre acompanhada pelo som da ciacutetara E como foi exposto no subcapiacutetulo anterior essa praacutetica eacute extremamente antiga na preacute-histoacuteria grega 520 O melhor dos aqueus 521 O muito astuto 522 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro Barnabeacute Pajares A ldquoFragmentos de Eacutepica Griega Arcaicardquo Madrid Editorial Gredos1979

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exaustivamente desde a infacircncia e eacute bem provaacutevel que houvesse uma espeacutecie de

confraria do tipo sacerdotal que era muito comum nessas culturas do periacuteodo de

bronze523 para organizar e preparar os jovens mais aptos para exercer essa

atividade divina dentro do palaacutecio Todavia eacute importante ressaltar que natildeo haacute

muitas fontes disponiacuteveis que possam afirmar com seguranccedila como e quando esse

tipo de atividade surgiu no mundo antigo

Essa tradiccedilatildeo milenar a partir do seacuteculo VIII e VII comeccedila a receber outros

traccedilos para atender de modo exemplar as novas configuraccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que

se expande com a reinserccedilatildeo do uso da escrita524 Consequentemente esse

importante meio de expressatildeo se reconfigurou atraveacutes da criaccedilatildeo de novos gecircneros

ateacute desparecer completamente da literatura grega (KIRK 1962) por causas sociais

e histoacutericas Mas eacute importante ressaltar que essas transformaccedilotildees natildeo ocorreram

de modo uniforme em todas as partes da Greacutecia pois em cada cidade havia um

legado eacutepico especiacutefico para suprir a demanda soacutecio-poliacutetica e pedagoacutegica local525

Esse fato demonstra natildeo apenas o poder de plasticidade mas tambeacutem o alcance e

vigor da poesia homeacuterica que persistiu durante um longo periacuteodo em territoacuterio grego

e romano526 Na parte formal desse gecircnero podemos destacar o uso recorrente do

verso em hexacircmetro dactiacutelico e a fraseologia tradicional que lhe impocircs sentido e

beleza O conteuacutedo abrangia uma temaacutetica bem variada a partir da assinatura de

523 Vide nossos anexos 524 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar as singularidades existentes entre Esparta e outras cidades O mais interessante eacute que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros e sucessores do poeta Creoacutefilo alguns textos contendo diferentes partes das obras poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer que ele ordenou que essas obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco ainda ressalta que nessa eacutepoca os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar escassos Eacute bem provaacutevel que essa tradiccedilatildeo estivesse comeccedilando a cair em desuso E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica E por uacuteltimo vale mencionar que essa memoacuteria preservada trazia consigo um dos sentidos do termo aleacutetheia (natildeo-esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os seacuteculos VIII e V Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 525 Ibidem 526 Vide a Eneida que foi um poema eacutepico latino escrito por Virgiacutelio no seacuteculo I aC que foi altamente influenciada pela epopeia homeacuterica

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cada poeta e regiatildeo527 Por um lado haacute o legado deixado do ciclo eacutepico que eacute uma

reuniatildeo de diversas epopeias que se caracterizou por manter algum elo de

continuidade e com a inserccedilatildeo proposital de alguns hiatos que fornecia ao rapsodo

um espaccedilo de liberdade criativa no qual fornecia a oportunidade de preenchecirc-los a

partir do seu interesse ou motivaccedilatildeo especiacutefica528 Dentro desse contexto haacute ainda

a poesia eacutepica de cunho genealoacutegico que apresentava uma espeacutecie de

sistematizaccedilatildeo do mito que expotildee as transformaccedilotildees e ateacute a configuraccedilatildeo atual do

mundo529 um exemplo claro pode ser encontrado no mito das cinco raccedilas de

Hesiacuteodo530 no qual eacute possiacutevel identificar uma espeacutecie de ordenamento cronoloacutegico

que certamente foi baseado nas antigas narrativas orais que estavam disponiacuteveis em

seu tempo Diante disso surge as seguintes questotildees que geram debates

interminaacuteveis entre os especialistas 1) o que de fato constituiu a idade heroica531

mencionada pelo poeta 2) podemos compreendecirc-la a partir de certas condiccedilotildees

soacutecio-poliacuteticas que podem ter ocorrido entre a idade do bronze e das trevas 3) o

elemento histoacuterico factual eacute essencial para o desenvolvimento da narrativa heroica

dos antigos aedos A disposiccedilatildeo metoacutedica que o poeta organizou entre cada fase do

seu mito nos leva a tendecircncia de aceitarmos a sua exposiccedilatildeo como uma histoacuteria

vaacutelida pois dentro desse contexto a palavra do poeta natildeo poderia ser de forma

alguma colocada em duacutevida

Logo esse tipo de narrativa pocircde ser utilizado para diferentes fins

Posteriormente a palavra do poeta comeccedilou a ser utilizada como justificaccedilatildeo de

algum parentesco divino para fornecer privileacutegios poliacuteticos532 ou ateacute mesmo

construir a imagem negativa de alguma personalidade ou cidade Certamente esse

era um dos pontos que levou Platatildeo533 a condenar a poesia em seu tempo com todas

527 Ibidem 528 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 529 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo 530 Vide o Trabalho e os dias de Hesiacuteodo 531 Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (versos 156) 532 Eacute criacutevel que esse tipo de atitude tambeacutem ocorresse em seus primoacuterdios para a fundamentaccedilatildeo divina durante as teocracias em vaacuterias outras civilizaccedilotildees Mas com a abertura poliacutetica ocorrida na Greacutecia apoacutes o periacuteodo arcaico No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro DETIENNE M ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 533 Vide Platatildeo Goacutergias (501 d ndash 502 c) Nessa passagem podemos encontrar uma criacutetica do filoacutesofo sobre o uso do acompanhamento musical que estava sendo utilizado para agradar a plateia Esse fato indica essas transformaccedilotildees que indicamos anteriormente

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as suas forccedilas pois o efeito colateral desse tipo de distorccedilatildeo que aparece apoacutes a

perda do seu caraacuteter sagrado produziu um terriacutevel efeito 534 em todo territoacuterio grego

A condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte eacute um exemplo claro de como a funccedilatildeo poeacutetica

tornou-se uma arma perigosa nas matildeos ou bocas erradas Logo o filoacutesofo teve que

passar pelo seu crivo criacutetico toda a obra de Homero pois todos os artiacutefices da

palavra buscavam no primeiro pedagogo grego a sua inspiraccedilatildeo e apoio

Consequentemente todo o aspecto solene da poesia que era voltado para uma

praacutetica de cunho sagrado e milenar comeccedila a perder a sua roupagem divina e

adquiriu uma forma mais humanizada a partir das transformaccedilotildees poliacuteticas que

comeccedilaram a ocorrer apoacutes a idade das trevas Durante o periacuteodo claacutessico por

exemplo essa atividade jaacute trazia em seu bojo diversas inovaccedilotildees que estavam

modificando o seu antigo caraacuteter pedagoacutegico para um instrumento de mera

publicidade nas matildeos de oradores profissionais que cobravam pelas apresentaccedilotildees

em puacuteblico O surgimento do movimento sofista que eacute um reflexo da abertura

democraacutetica que ocorreu em algumas cidades como Atenas tambeacutem foi um fator

relevante para a remodelaccedilatildeo de sua forma e uso A proacutepria atividade dos rapsodos

que jaacute natildeo utilizavam acompanhamento musical em suas apresentaccedilotildees eacute fruto

dessas novas transformaccedilotildees culturais e econocircmicas E essa eacute sem duacutevida uma das

caracteriacutesticas mais importantes que podemos detectar desse processo de

distanciamento da praacutetica dos antigos aedos535 desde a sua origem

Outra temaacutetica que estava associada nesse tipo de expressatildeo poeacutetica satildeo as

viagens como a epopeia da Odisseia de Homero que foi protagonizada pelo grande

heroacutei de Iacutetaca o astuto Odisseu Aliaacutes esse tipo de gecircnero eacute sem duacutevida o primeiro

road movie536 que teve origem nos contos populares que desempenhou tambeacutem uma

importante funccedilatildeo didaacutetica entre os gregos Dentro desse contexto o ordenamento

serial eacute estabelecido com uma precisatildeo topograacutefica e histoacuterica537 tatildeo

impressionante que no ano de 1870 o arqueoacutelogo alematildeo Heinrich Schliemann a

534 Vide a comeacutedia As nuvens de Aristoacutefanes Nessa obra o comedioacutegrafo pintou uma imagem negativa da figura de Soacutecrates que para o proacuteprio foi determinante para a sua condenaccedilatildeo agrave morte Nesse sentido Platatildeo como grande pensador criacutetico que era sentiu a necessidade de analisar esse efeito colateral da poesia de modo minucioso em seu tempo em diaacutelogos como o Iacuteon Goacutergias e a Repuacuteblica 535 Vide Homero Odisseia (Canto VIII 62-68) 536 No cinema eacute um gecircnero no qual um filme se desenvolve a partir de alguma viagem 537 Como uma narrativa popular

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partir da descriccedilatildeo minuciosa oferecida pelos versos de Homero conseguiu

localizar um siacutetio arqueoloacutegico na regiatildeo da Turquia que teria sido o cenaacuterio onde

ocorreu a guerra de Micenas contra Troacuteia Esse tipo de descoberta levou o

arqueoacutelogo alematildeo a defender a tese do valor histoacuterico da obra homeacuterica538

Independentemente das inuacutemeras polecircmicas em torno dessas questotildees que

foram levantadas a poesia eacutepica originalmente foi aprimorada para atender uma

demanda coletiva539 ateacute o momento de se tornar uma referecircncia para o surgimento

de outros gecircneros na literatura grega Na sua origem essa narrativa tinha como

espelho a experiecircncia da violecircncia que foi obtida nos campos de batalha A accedilatildeo

vitoriosa era contrastada com as inuacutemeras derrotas E a partir dessa constataccedilatildeo a

poesia vai pavimentando todo um horizonte possiacutevel para a instauraccedilatildeo de uma

sociedade forte e proacutespera atraveacutes das cinzas do passado A coragem e a nobreza

eram fomentadas no caso homeacuterico para incutir nas almas uma disposiccedilatildeo afetiva

que deveria guiar a moral da cultura helecircnica com o intuito de encontrar a harmonia

necessaacuteria para encontrar o equiliacutebrio social e poliacutetico A poesia heroica estabelece

o seu imperativo categoacuterico para apresentar essas virtudes cardeais que satildeo

esculpidas por cada aedo em suas respectivas sociedades Mas para o seu alcance

efetivo o poeta precisa estar afinado com o seu contexto histoacuterico de origem O

conhecimento do passado ou pelo menos dos fatos mais marcantes apontam as

suas diretrizes fundamentais O encantamento e o vigor de cada obra composta satildeo

o resultado das lembranccedilas amargas e vitoriosas que repousam nas almas de cada

homem que compartilham o desejo de superaccedilatildeo em prol de um futuro promissor

Nesse sentido o poeta eacute o termocircmetro das tensotildees sociais e poliacuteticas O seu ofiacutecio

eacute intermediar todos os conflitos e devolver para o povo uma obra que possa se

538 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SCHLIEMANN H ldquoIacutetaca o Peloponeso e Troia pesquisas arqueoloacutegicasrdquo Traduccedilatildeo Cyntia Baumgart Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1992 Nesse sentido para quem defende o valor factual da narrativa homeacuterica poderaacute aceitar a narrativa de Hesiacuteodo como veriacutedica 539 Ou atender uma determinada classe ou famiacutelia poliacutetica E esse eacute tambeacutem um traccedilo que vem desde a realeza minoica e micecircnica Com as inuacutemeras transformaccedilotildees sociopoliacuteticas na Greacutecia houve uma abertura cultural que promoveu o acesso dessa atividade para as classes emergentes que podemos encontrar por exemplo no valor vinculado ao trabalho que foi desenvolvido por Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias Haacute ainda uma grande polecircmica em saber como esses antigos aedos eram preparados para exercer esse ofiacutecio Eacute bem provaacutevel que houvesse uma formaccedilatildeo bem riacutegida para a escolha desses mestres da verdade Seja como for posteriormente essa atividade vai perdendo aos poucos o seu caraacuteter sagrado para se tornar uma profissatildeo de uso particularizado que promovia genealogias em troca de dinheiro Logo para avaliarmos essa atividade poeacutetica eacute muito importante estabelecer o recorte do contexto histoacuterico

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utilizada para educar os homens de modo eficiente e belo no caminho da virtude

Com o passar do tempo essa forccedila propulsora da accedilatildeo humana vai se

transformando em um novo tipo de discurso540 que seraacute a marca dos novos

pedagogos que vatildeo disputar de modo feroz a coroa do grande aedo Homero na

Greacutecia arcaica

48 Loacutegos 541

Apoacutes as turbulentas mudanccedilas oriundas da idade das trevas os remanescentes

da antiga civilizaccedilatildeo micecircnica experimentaram a mesma sensaccedilatildeo que um dia o

grande Priacuteamo sentiu quando viu todo o seu legado que foi construiacutedo pelos seus

antepassados ser consumido pelo fogo O espanto produzido nesse instante antes

da morte natildeo passou despercebido pelo olhar perspicaz de Aristoacuteteles542 Esse

mesmo elemento divino que segundo o mito de Protaacutegoras543 o grande titatilde

Prometeu roubou para oferecer aos homens que eram desprovidos de habilidades

em relaccedilatildeo aos outros animais544 Sem esse tipo de instrumento a humanidade natildeo

teria nenhuma chance na luta por sua sobrevivecircncia no mundo De modo alegoacuterico

esse mito fornece uma explicaccedilatildeo da origem humana de modo amplamente

estruturado O ponto interessante eacute que o fogo reuacutene em si o poder de criaccedilatildeo e

destruiccedilatildeo que satildeo caracteriacutesticas inerentes da proacutepria Natureza545 linguagem546 e

da razatildeo547 Aliaacutes um pouco antes do sofista o filoacutesofo Heraacuteclito afirmara548 a

relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que satildeo aspectos desse elemento primordial549

540 Λόγοςloacutegos 541 Nos primeiros capiacutetulos do presente trabalho esse termo tambeacutem foi abordado pois era impossiacutevel analisar determinados ponto da histoacuteria do pensamento grego sem mencionaacute-lo 542 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1100 a ndash 5) 543 Vide Platatildeo Protaacutegoras (320 c) 544 Ibidem 545 Φύσις phyacutesis 546 Vide Sexto Empiacuterico Contra os professores ( livro I 42) 547 Λόγοςloacutegos 548 Vide Diels-Krans Heraacuteclito fragmento 30 549 Aρχή archeacute ndash origem comeccedilo Para os antigos filoacutesofos preacute-socraacuteticos a archeacute eacute o elemento primordial que deveria participar de todos os processos da existecircncia no mundo Para Heraacuteclito por exemplo o fogo era um elemento puro que deveria fazer parte de todas as coisas Enquanto que para o filoacutesofo Tales de Mileto esse elemento essencial era a aacutegua Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do nosso presente trabalho

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que originou todas as coisas A forccedila que eacute utilizada na guerra550 em grandes escalas

para gerar a morte eacute em contrapartida a mesma que fornece a vida atraveacutes do calor

do sol e quando bem dominada para o uso da metalurgia Ao domesticaacute-la o

homem pocircde utilizaacute-la para inuacutemeros fins atraveacutes do desenvolvimento da

tecnologia551 no mundo antigo Desde do primeiro espanto que despertou no

homem primitivo uma capacidade de reflexatildeo sobre a sua fraacutegil condiccedilatildeo mortal552

a sua forma de olhar a natureza natildeo foi a mesma Desde entatildeo a sua trajetoacuteria foi

construiacuteda a partir do bom uso dessa daacutediva divina que abrange o nosso modo de

expressatildeo e accedilatildeo que deve sempre buscar a excelecircncia553atraveacutes da vida em

comunidade

Mas essa foi uma conquista que foi adquirida com o passar de inuacutemeras

experiecircncias amargas e vitoriosas desde a sua preacute-histoacuteria que marcou

profundamente o processo de subjetividade coletivo (FINLEY 1990) Para os

gregos do periacuteodo homeacuterico por exemplo todos os barcos os utensiacutelios de

ceracircmica instrumentos musicais e as ferramentas que foram deixadas por seus

predecessores eram como fotogramas deixados por seus ancestrais de grandes

gloacuterias As enormes paredes das fortalezas preacute-histoacutericas foram explicadas pelos

gregos como um trabalho realizado pelo engenho dos Ciclopes554(WEDEKING

1968) e a duacutevida que paira sobre esse ponto eacute saber qual seria a real motivaccedilatildeo para

a construccedilatildeo desse tipo de relato555 Seja como for as imagens esculpidas parecem

visar uma forma de expressatildeo espantosa556 que certamente foram uacuteteis para

repassaacute-las de modo eficiente atraveacutes da memoacuteria das crianccedilas557 O mais

550 Os militares gregos utilizavam armas incendiaacuterias no campo de batalha no acircmbito terrestre e naval Para mais informaccedilotildees vide Tuciacutedides ldquoA guerra do Peloponesordquo (livro IV cap 100) Esse tipo de ambiente marcado pela guerra que encontramos na epopeia homeacuterica certamente influenciou o pensamento de muitos pensadores antigos como Anaximandro de Mileto Vide Diels-Krans Anaximandro fragmento 1 551 Τέχνες techneacute 552 Vide os nossos apontamentos no primeiro capiacutetulo 553 Ἀρετή aretecirc 554 Vide Homero Odisseia (Canto IX) 555 A nossa hipoacutetese eacute que esse tipo de relato poderia ser utilizado para facilitar o processo mnemocircnico entre as crianccedilas Posteriormente veremos uma importante passagem de Platatildeo na Repuacuteblica no qual o filoacutesofo revela a utilidade desse meio de expressatildeo no processo educativo 556 O mesmo efeito que as faacutebulas de Esopo despertam nas crianccedilas 557 Esse tipo de procedimento estaacute descrito de modo minucioso no livro II da Repuacuteblica (377 a ndash e) por Platatildeo Para o filoacutesofo essa eacute uma forma eficiente de moldar o caraacuteter das crianccedilas Nesse sentido a poesia ou educaccedilatildeo musical eacute apresentada como um instrumento uacutetil para atender essa finalidade Independentemente da sua criacutetica agrave poesia que aparece nesse contexto ele natildeo descarta o uso das faacutebulas para fins pedagoacutegicos E esse certamente eacute um traccedilo que vem da pedagogia da

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interessante eacute poder notar a riqueza de rastros histoacutericos que posteriormente

tornaram-se a mateacuteria prima de uma remodelaccedilatildeo que apresenta o poder da razatildeo

criadora helecircnica para a construccedilatildeo de um novo horizonte

A arquitetura dos grandes palaacutecios multicoloridos onde restos visiacuteveis de sua

antiga imponecircncia estavam ainda preservados foi uma heranccedila inspiradora para a

narrativa da poesia homeacuterica que reuniu todas essas lembranccedilas materiais e que

sem sombra de duacutevida foi essencial para a reconfiguraccedilatildeo cultural helecircnica tendo

o conflito como o pano de fundo desse cenaacuterio558 Nesse sentido eacute possiacutevel detectar

o esforccedilo para a conservaccedilatildeo dessa memoacuteria viva559 que engloba natildeo apenas o

espaccedilo fiacutesico mas as inuacutemeras guerras vivenciadas que foram uacuteteis na elevaccedilatildeo de

uma nova forma de organizaccedilatildeo social que partiu do olhar atencioso sobre o seu

rico passado para a pavimentaccedilatildeo do presente e do futuro Logo era necessaacuterio

revisitar continuamente essas lembranccedilas pois ameaccedila de uma nova cataacutestrofe era

algo permanente entre os remanescentes da cultura micecircnica

A precauccedilatildeo depois de uma terriacutevel experiecircncia oriunda da guerra ou de

ordem natural promoveu um choque que deixou profundas marcas no corpo social

sobrevivente E a partir disso era necessaacuterio estabelecer uma forma narrativa mais

enxuta que trouxesse a economia e a frieza da loacutegica militar para o seio da sociedade

como um todo No qual a precisatildeo factual e a objetividade agissem juntas como um

criteacuterio essencial para a construccedilatildeo soacutelida de todo legado cultural necessaacuterio para

manter a sobrevivecircncia do povo Como foi exposto por noacutes anteriormente560 a

literatura grega em seus primoacuterdios foi marcada por um tipo de transmissatildeo verbal

que natildeo impedia nem facilitava561 a transmissatildeo de informaccedilotildees emoccedilotildees ou ideias

(COLE 1991) Posteriormente com a reconfiguraccedilatildeo poliacutetica durante o periacuteodo

arcaico comeccedilou a surgir entre os gregos uma preocupaccedilatildeo mais riacutegida em relaccedilatildeo

tradiccedilatildeo oral Ou seja nos deparamos com mais um elemento que prova um elo de continuidade a partir da tradiccedilatildeo antiga durante o periacuteodo claacutessico [Rep 377α] ldquoπαιδευτέον δ᾽ ἐν ἀmicroφοτέροις πρότερον δ᾽ ἐν τοῖς ψευδέσιν οὐ microανθάνω ἔφη πῶς λέγεις οὐ microανθάνεις ἦν δ᾽ ἐγώ ὅτι πρῶτον τοῖς παιδίοις microύθους λέγοmicroεν τοῦτο δέ που ὡς τὸ ὅλον εἰπεῖν ψεῦδος ἔνι δὲ καὶ ἀληθῆ πρότερον δὲ microύθοις πρὸς τὰ παιδία ἢ γυmicroνασίοις χρώmicroεθα ἔστι ταῦτα τοῦτο δὴ ἔλεγον ὅτι microουσικῆς πρότερον ἁπτέον ἢ γυmicroναστικῆς ὀρθῶς ἔφηrdquo Por uacuteltimo eacute importante ressaltar que no texto grego eacute possiacutevel notarmos que o filoacutesofo considera essa ferramenta pedagoacutegica utilizando as faacutebulas (παιδίοις microύθους) como a primeira parte da educaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica (microουσικῆς) 558 Vide o subcapiacutetulo anterior 559 Os materiais arqueoloacutegicos 560 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 561 Vide o caraacuteter hermeacutetico dos antigos oraacuteculos

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ao controle do meio de transmissatildeo da informaccedilatildeo que pudesse evitar interpretaccedilotildees

equivocadas e superar o choque contraditoacuterio de ideologias562 Como explicitou

Jean-Pierre Vernant (VERNANT 1962) com o surgimento da polis entre os

seacuteculos VIII e VII o homem grego se depara com uma extraordinaacuteria valorizaccedilatildeo

da palavra em relaccedilatildeo aos outros instrumentos de poder Ou seja ela ganha uma

roupagem nova para impor o seu controle das principais funccedilotildees do Estado Nesse

momento o poder de comunicaccedilatildeo foi exaltado mais uma vez apresentando

algumas carateriacutesticas que contribui fielmente ao seu novo contexto

O mito e o eacutepos que antes representavam em sua mais distante origem uma

forma de accedilatildeo e expressatildeo que estava calcada na forccedila da memoacuteria presente na

tradiccedilatildeo oral comeccedila apresentar sinais de desgaste a partir da nova remodelaccedilatildeo

poliacutetica e cultural que ocorreu no periacuteodo arcaico Dentro desse novo contexto

surge o terceiro termo irmatildeo que possibilitou aos gregos uma capacidade de

expressatildeo mais metoacutedica e soacutebria chamada loacutegos563 que adiciona mais um

importante capiacutetulo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo helecircnica Antes desse momento a

palavra do aedo estava envolvida em uma ritualidade compatiacutevel com o caraacuteter

sagrado e fechado que era vinculado ao poder teocraacutetico das antigas realezas Com

a sua decadecircncia ela reaparece afirmando o confronto de ideias que necessita seguir

os criteacuterios da argumentaccedilatildeo e persuasatildeo564 O puacuteblico tornou-se o soberano que

vai decidir entre os dois argumentos conflitantes na praccedila puacuteblica A verdade seraacute

o fruto doce saboreado pelo vencedor Nesse novo espaccedilo o termo loacutegos vai

coexistir de modo ambiacuteguo em um primeiro momento com o mito e o eacutepos565 e

no discurso dos primeiros filoacutesofos e retoacutericos

562 Vide a obra de Tuciacutedides 563 Para mais informaccedilotildees sobre a ocorrecircncia de uso desse termo na liacutengua grega vide o nosso anexo Na obra homeacuterica soacute haacute apenas duas ocorrecircncias do uso desse termo A primeira aparece na Iliacuteada (canto XV vv 393) e na Odisseia (canto I vv 56) Dentro desses dois contextos o poeta parece utilizar esse substantivo com o sentido de discurso Para o ato de fala ele utiliza eacutepos e mito A partir de Hesiacuteodo eacute que o termo loacutegos parece ganhar uma carga semacircntica similar aos outros termos Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (vv 106-107) Nesse contexto o poeta campesino utiliza o termo de modo diferenciado Aliaacutes dentro das suas obras disponiacuteveis encontramos a recorrecircncia do uso desse termo em cinco momentos na Teogonia (vv 229 890) e Os trabalhos e os dias (vv 78 106 789) De modo comparativo eacute perceptiacutevel que entre as obras dos dois poetas haacute um aumento gradativo do uso e o deslocamento semacircntico 564 Nesse sentido ela ainda guarda importantes caracteriacutesticas da antiga tradiccedilatildeo oral Sobre esse assunto gostariacuteamos de indicar a leitura do seguinte livro COLE Thomas ldquoThe Origins of Rhetoric in Ancient Greecerdquo Baltimore Johns Hopkins UP 1991 565 Vide os nossos apontamentos nas notas anteriores

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Eacute importante ressaltar que a origem desse termo na liacutengua grega ainda

fomenta inuacutemeros debates pois o sentido atribuiacutedo na antiguidade eacute extensamente

amplo 566 Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1992) o limite semacircntico entre

esses termos na antiguidade eacute muito controverso mas pode ser localizado com um

novo sentido pela primeira vez na doxografia preacute-socraacutetica em um fragmento do

poeta filoacutesofo Xenoacutefanes de Coacutelofon567 que parece estabelecer uma sutil

diferenciaccedilatildeo para delimitar a fronteira entre o mundo humano e divino568 A partir

do seu estudo sobre a Natureza ele tornou-se um criacutetico contumaz da religiatildeo

tradicional e popular Talvez tenha sido junto com Heraacuteclito um dos primeiros

pensadores a agir de modo contundente contra o senso comum da eacutepoca569 Eacute

importante ressaltar que esse fenocircmeno entre os primeiros filoacutesofos natildeo ocorreu de

modo uniforme Em Empeacutedocles570 por exemplo nota-se que o filoacutesofo de

Agrigento ainda continua estabelecendo o diaacutelogo entre todos esses termos em sua

obra Para Jean Bollack (BOLLACK 1965) os deuses satildeo utilizados de modo

simboacutelico para caracterizar os elementos primordiais da Natureza De qualquer

modo o filoacutesofo poeta italiano em seus fragmentos ainda ecoa o encantamento

solene das antigas musas que eram autoridades invocadas para validar esse tipo de

discurso na esfera religiosa Mesmo que possamos identificar como afirma Jean

Bollack o rigor e a estruturaccedilatildeo encadeada entre suas ideias natildeo podemos deixar

de verificar o uso da mesma linguagem poeacutetica homeacuterica para expressar a sua visatildeo

sobre a Natureza571

566 Ibidem 567 Vide Diels-Krans Xenoacutefanes fragmento I 13- 4 568 A expressatildeo in loco eacute ldquoευφηmicroοις microυθοιζ και καθαροισι λογοιςrdquo 569 Esse tipo de postura posteriormente influenciou a escola socraacutetica e epicurista 570 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra BOLLACK J ldquoEmpeacutedoclerdquo (Volumes 1ndash4) Paris Les Editions Minuit 1965ndash1969 571 Vide as nossas consideraccedilotildees no primeiro capiacutetulo

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5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo

51 A fala livre

A liberdade de fala foi um dos pontos cruciais no surgimento e

desenvolvimento da polis na Greacutecia entre os seacuteculos VII e VI Nesse momento a

palavra572 que antes era o instrumento que atuava na esfera religiosa para o

controle e organizaccedilatildeo da realeza micecircnica apoacutes a sua queda passa a ser o

fundamento que vai orientar a vida poliacutetica dessa nova sociedade que surge das suas

ruiacutenas O seu poder miacutestico encantatoacuterio e curador de outrora vai sugerir um

discurso mais soacutebrio que ainda traz em seu bojo algumas dessas caracteriacutesticas que

se somam a uma poderosa capacidade de conexatildeo entre as almas que seraacute utilizada

com o objetivo de fundar o pilar da Democracia em Atenas573 Sem esse poder de

adesatildeo a base dessa nova organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica estaria totalmente

comprometida

Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1967) apoacutes a queda do impeacuterio

micecircnico essa palavra maacutegico-religiosa foi sendo substituiacuteda gradativamente pela

palavra-diaacutelogo A diferenccedila fundamental que existe entre esses dois tipos de

experiecircncia da fala (eposmythos e logos) eacute que enquanto a primeira estava

vinculada a uma esfera religiosa que expressava valores simboacutelicos onde a sua

eficaacutecia era atemporal como uma daacutediva oriunda do mundo divino concedida para

alguns poucos mortais a palavra-diaacutelogo que eacute diametralmente oposta assinala o

processo de laicizaccedilatildeo ou distanciamento que marca esse periacuteodo de transiccedilatildeo entre

duas formas de organizaccedilatildeo poliacutetica que ocorreu entre o periacuteodo micecircnico e o iniacutecio

572 Havia trecircs termos para expressar o ato de falar na antiguidade Epos Mythos e Logos (Μύθος έπος και λόγος) Os dois primeiros satildeo utilizados no periacuteodo homeacuterico enquanto que o segundo surge no periacuteodo que a Filosofia comeccedila a dar os seus primeiros passos 573 A retoacuterica surgiraacute nesse momento para desempenhar a funccedilatildeo de coesatildeo e adesatildeo poliacutetica Para Pierre Vidal-Naquet a relaccedilatildeo entre a assembleia e o povo comeccedila em 650 em Esparta a partir dos relatos de Plutarco vida de Licurco cap 6 e tambeacutem do poeta Tirteu fragmento 4 Vide Pierre Vidal Naquet ldquoOs gregos os historiadores a democraciardquo pp 173 Todavia o nosso presente recorte contextual baseia-se em sua maior parte sobre a experiecircncia ateniense

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das primeiras polis Esse tipo de logos se inscreve agora no tempo histoacuterico574 que

estaacute vinculado diretamente agrave accedilatildeo que constitui a organizaccedilatildeo do mundo humano

sem a interferecircncia divina Apoacutes a retirada de todas as suas caracteriacutesticas maacutegico-

religiosas essa palavra torna-se um bem puacuteblico e ganha uma autonomia que visa

atender aos interesses desse novo grupo social que foi formado por uma casta de

homens especialistas na arte da guerra575 que passa a atuar de modo efetivo nas

deliberaccedilotildees das questotildees poliacuteticas nesse novo espaccedilo social Esses guerreiros

desempenhavam desde a antiga monarquia micecircnica a funccedilatildeo de proteger e

defender os interesses da realeza Antes essa funccedilatildeo estava concentrada apenas nas

matildeos do rei576 pois ele era o uacutenico que detinha o total comando do exeacutercito real

Posteriormente essa responsabilidade passa a ser designada para as matildeos de um

general577 e a partir dessa transferecircncia ocorre uma profunda transformaccedilatildeo no

574 Sobre esse ponto o exemplo mais notaacutevel eacute o surgimento da obra de Tuciacutedides Diferentemente do seu predecessor Heroacutedoto o seu livro ldquoA histoacuteria da guerra do Peloponesordquo inaugura uma visatildeo mais soacutebria sobre o passado e um distanciamento do pensamento miacutetico Para Vernant (Origens do pensamento grego cap III) eacute nesse momento que o homem toma consciecircncia da distinccedilatildeo entre o passado e o presente Ou seja haacute uma mudanccedila no aspecto psicoloacutegico Esse tambeacutem eacute o periacuteodo que desaparece o rei divino e surge uma diferenccedila intransponiacutevel entre a esfera humana e divina E satildeo esses os aspectos que apontam para uma nova configuraccedilatildeo soacutecio-poliacutetica que se distacircncia dos antigos misteacuterios e que possibilita o surgimento do loacutegos e da polis Vale lembrar que esse distanciamento natildeo foi integral A classe aristocraacutetica ainda utilizava a teologia homeacuterica para garantir o funcionamento da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Posteriormente essa conduta vai gerar uma terriacutevel crise social entre os gregos 575 Para os gregos a guerra eacute um fenocircmeno natural (Φύσιςphyacutesis) do mundo As suas cidades-estados (polis) eram organizadas em pequenos grupos que brigavam entre si para manter a sua independecircncia e afirmar a sua supremacia Logo a guerra torna-se uma expressatildeo normal de rivalidade que era importante para modular a relaccedilotildees poliacuteticas (interna e externa) entre os gregos O espiacuterito de luta eacute o paracircmetro primordial para os mais diversos aspectos da civilizaccedilatildeo helecircnica entre eles os principais satildeo 1) na relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos 2) entre as famiacutelias 3) os estados 4) nos jogos oliacutempicos 5) no tribunal 6) nos debates da assembleia 7) na Educaccedilatildeo 8) no campo de batalha No proacuteprio idioma podemos encontrar indiacutecios de como os gregos reconhecem esse importante fenocircmeno da guerra (poacutelemos πόλεmicroος eacuteris Ἔρις e neikos Νεῖκος) Aliaacutes o confronto entre duas forccedilas eacute apresentado por Anaximandro e tambeacutem o poeta Hesiacuteodo apresenta a guerra como as raiacutezes do mundo (Os trabalhos e os dias v15 e 20) e que o grande Heraacuteclito celebra como pai e rei de todo o universo (fragmento 53) Para mais informaccedilotildees sobre esses pontos recomendamos a leitura do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 576 Haacute dois termos utilizados para rei e eles satildeo Anaacutex (ἄναξ) e Basileus (βασιλεύς) O primeiro que eacute mais arcaico refere-se ao periacuteodo micecircnico onde o rei tinha o total poder poliacutetico militar e religioso nas suas matildeos Ele tinha natildeo apenas o controle do poder poliacutetico mas tambeacutem o poder agriacutecola e de todo o rebanho Esse termo foi encontrado por um grupo de arqueoacutelogos pela primeira vez nas pequenas tabuinhas chamadas ldquoLinear Brdquo Esses achados continham registros contaacutebeis da produccedilatildeo agriacutecola da civilizaccedilatildeo micecircnica Em Homero esses dois termos satildeo utilizados em diversos momentos do poema Curiosamente anaacutex que eacute o termo mais arcaico eacute utilizado para referir-se ao rei dos reis- ou chefe de homens-Agamecircmnon (Vide Iliacuteada canto I v 5) E a partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer uma hierarquia entre o emprego semacircntico desses dois termos O primeiro como mais antigo e mais poderoso eacute o soberano que estaacute acima de todos os outros basileus 577 Polemarkhos (πολεmicroαρχος)

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interior da organizaccedilatildeo da antiga monarquia micecircnica Na Iliacuteada de Homero578

que parece retratar um periacuteodo histoacuterico posterior579 eacute possiacutevel encontrar ecos

dessa crise de poder que ocorreu na realeza e que perdurou ateacute o iniacutecio do

surgimento das primeiras polis Esse fato natildeo passou despercebido aos olhos atentos

da poesia homeacuterica No canto I por exemplo podemos encontrar logo no iniacutecio

dos primeiros versos do poema uma terriacutevel desavenccedila entre o rei dos reis (anaacutex)

Agamecircmnon que lidera o povo aqueu contra os troianos e o chefe dos mirmidotildees

o famoso guerreiro Aquiles Essa contenda que chama a nossa atenccedilatildeo ao iniciar a

leitura da obra descreve de modo claro o enfraquecimento do poder do antigo rei

(anaacutex) Em alguns desses memoraacuteveis versos podemos detectar tambeacutem que a

virtude580 para governar outros homens natildeo poder ser fundada apenas no sangue

(genos) como ocorria nos primoacuterdios do periacuteodo arcaico mas em virtudes581 como

a coragem e honra A seguir veremos uma passagem onde a poesia de Homero

utiliza a personagem de Aquiles para demonstrar a covardia e a vileza de um rei

ilegiacutetimo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOlho de catildeo e coraccedilatildeo de cervo Bronco de vinho Nunca ousaste armado com teu povo enfrentar um combate nem seguiste os bravos na luta de emboscadas Tens pavor agrave morte

Mais faacutecil eacute no vasto campo dos Aqueus

esbulhar do seu bem a quem te contradiz

Devora-Povo Rei do Dacircnaos Rei de nada582

O modo ofensivo como Aquiles se dirige a Agamecircmnon nesses versos jaacute

apresenta o natildeo reconhecimento dele como o seu rei Eacute notoacuterio aqui a total falta de

competecircncia do soberano para comandar um de seus subordinados Aleacutem disso

nem mesmo atuando atraveacutes da opressatildeo despoacutetica ele consegue subjugar a vontade

578 HOMERO ldquoIliacuteada canto I 579 Essa eacute a hipoacutetese defendida por Pierre Vidal- Naquet no primeiro capiacutetulo do seguinte livro Le monde drsquoHomegravere Ed Perrin 2002 580 Aretecirc (ἀρετή) 581 Ibidem Aretecirc (ἀρετή) eacute excelecircncia e virtude Ao decorrer da histoacuteria grega esse termo foi assimilando outros sentidos Na sua origem essa palavra estaacute associada a raiz do mesmo termo que originou a palavra aristocracia que carrega consigo os seguintes sentidos superioridade competecircncia e habilidade 582 HOMERO ldquoIliacuteada canto I v 225 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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do nobre guerreiro E isso eacute um erro graviacutessimo que foi exposto de modo alusivo

em diversos pontos do poema homeacuterico Sobretudo em momentos de crise o

governante precisa demonstrar a sua bravura e honra para seus aliados e seus

inimigos pois esses satildeo dois pressupostos sine qua non para o ato de governar e

garantir o bem-estar dos seus suacuteditos O fato de um rei como acontece no caso de

Menelau e de Agamecircmnon depender da forccedila de outro homem para recuperar a

esposa que foi roubada pelo jovem Paacuteris jaacute denota na Iliacuteada uma anomalia que

levou a uma crise institucional que pode ter sido um dos fatores que corroborou

para a dissoluccedilatildeo da realeza micecircnica De qualquer modo eacute importante ressaltar

que esse periacuteodo onde encontramos diversos reis disputando a posse da bela Helena

eacute um momento em que as monarquias - pelo menos no contexto grego - jaacute eram

auxiliadas por conselhos583 que foram formados por outros reis ou chefes de

governo com o intuito de deliberar sobre diversas questotildees estrateacutegicas do acircmbito

poliacutetico e militar Aliaacutes eacute dentro desse contexto que o proacuteprio Agamecircmnon eacute

escolhido para liderar os aqueus na guerra contra Troacuteia que tinha como soberano o

nobre Priacuteamo Ou seja nesse momento natildeo haacute mais a figura de um rei supremo que

toma as decisotildees sozinho Esse talvez seja um dos pontos mais difiacuteceis para a

compreensatildeo desse periacuteodo entre os historiadores pois natildeo temos nenhum registro

contundente que demonstre os motivos pelos quais esse antigo regime entrou em

processo de colapso ou os fatores que deram o ensejo para o surgimento desses

conselhos Aleacutem das obras homeacutericas que mencionamos anteriormente as outras

poucas referecircncias que temos sobre esse momento obscuro da histoacuteria grega satildeo de

autores posteriores oriundos do seacuteculo IV e III aC de qualquer forma esses relatos

satildeo de extrema importacircncia para estabelecermos algumas hipoacuteteses plausiacuteveis No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um dos uacutenicos documentos que temos escritos sobre a

transiccedilatildeo entre esses dois momentos histoacutericos da poliacutetica grega

Aristoacuteteles na Constituiccedilatildeo dos atenienses584 apresenta em detalhes uma

estrutura poliacutetica - anterior ao tempo de Draacutecon ndash que nos ajuda a compreender esse

momento posterior ao absolutismo monaacuterquico e de transiccedilatildeo para a era arcaica

Essa constituiccedilatildeo poliacutetica era organizada em magistraturas que eram fundamentadas

583 Bouleacute (Βουλή) Vide nota 54 584 ARISTOacuteTELES Const dos atenienses 31

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a partir de dois criteacuterios o primeiro era o de ldquonobreza de nascimentordquo (genos)585

e o segundo era o da ldquoboa condiccedilatildeo econocircmicardquo586 Esses mandatos eram vitaliacutecios

mas depois passaram a durar por um periacuteodo de dez anos Os magistrados mais

importantes eram o rei (basileu)587 o general (polemarkhos)588e o arconte589

Atraveacutes dessa descriccedilatildeo de Aristoacuteteles - como noacutes jaacute haviacuteamos anunciado no

paraacutegrafo anterior ndash pode-se verificar que o governo jaacute natildeo estava mais centralizado

na figura de um uacutenico homem O que encontramos nesse momento eacute uma triparticcedilatildeo

do poder poliacutetico Ou seja uma diluiccedilatildeo da estrutura absolutista que era

fundamentada em bases religiosas desde o periacuteodo preacute-homeacuterico Segundo o

585 Esse criteacuterio era determinado por laccedilos de sangue que estavam ligados as principais famiacutelias (genos) que se assentaram nessa regiatildeo no periacuteodo preacute-helecircnico Fustel de Coulanges defende que a formaccedilatildeo familiar surge no acircmbito religioso Ou seja ela eacute mais uma associaccedilatildeo religiosa do que natural (tese de Aristoacuteteles) Para o historiador positivista francecircs a religiatildeo fez com que a famiacutelia formasse um uacutenico corpo nessa e na outra vida Enquanto que o helenista Hammond afirma que a organizaccedilatildeo social da comunidade no periacuteodo arcaico estava fundamentada em uma estrutura racial Logo cada ateniense que tivesse algum grau de parentesco com o rei Iacuteon pertencia ao grupo de philetai (membros dos quatros genos originais conhecidos como philai) phratores (membros das trecircs phratriai que eram divididas cada tribo) gennetai (membros dos genes que eram formadas cada fratria) e por uacuteltimo o oikeioi (membros das famiacutelias associadas por parentescos que formavam os genos que eram estruturadas a partir do oikos ou oikia) Enfim esse era um dos criteacuterios para a formaccedilatildeo da aristocracia que tinha o ldquodireitordquo de participar do conselho do areoacutepago Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros HAMMOND N G L ldquoStudies in greek historyrdquo Oxford1973 paacutegs 105-115 e tambeacutem FUSTEL DE COULANGES ldquoA Cidade Antigardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 paacuteg 44 586 Para esse segundo criteacuterio apontado por Aristoacuteteles haacute duas importantes pistas a primeira estaacute em Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso I -II) que afirma que desde os seus primoacuterdios Atenas sempre foi um lugar extremamente receptivo com os estrangeiros (metecosΜέτοικος) sobretudo com os refugiados que vinham de outras localidades pois eles tambeacutem pagavam altos tributos para permanecerem em Atenas Aliaacutes essa foi uma caracteriacutestica importante para o desenvolvimento econocircmico e social da cidade A segunda estaacute em um fragmento de Filoacutecoro (um antigo atidoacutegrafo) que foi citado por Foacutecio (Suda FGr Hist 328 F 35a) que diz o seguinte em relaccedilatildeo aos orgeones escreveu tambeacutem Filoacutecoro ldquoaos phratores cabe a obrigaccedilatildeo de acolher tanto os orgeones como os homogalaktes aos quais chamamos gennetairdquo Isso prova que havia algumas formas de afiliaccedilatildeo em Atenas que estava baseada em uma hierarquia social para o alcance da plena cidadania O mais interessante nesse fragmento eacute que Filoacutecoro parece nos sugerir que havia um tipo de mecanismo ndash e aqui eacute o ponto que estabelece a relaccedilatildeo com a passagem de Aristoacuteteles - que permitia integrar outras pessoas sem o parentesco sanguiacuteneo Esses homens eram conhecidos por gennetai homogalaktes (pessoas que foram amamentadas como o mesmo leitealimento) Ou seja essa expressatildeo idiomaacutetica indica o fato de haver pessoas que conviviam dentro da sociedade grega com alguns prestiacutegios sociais Certamente esse grupo gozava de vaacuterios privileacutegios em relaccedilatildeo aos outros estrangeiros Suspeitamos que essa filiaccedilatildeo fosse concedida tendo como um dos criteacuterios a condiccedilatildeo econocircmica do meteco 587 Em Homero e Hesiacuteodo tambeacutem eacute possiacutevel encontrar a utilizaccedilatildeo de um termo similar e mais arcaico para rei que eacute anax (ἄναξsenhor) 588 General o senhor da guerra 589 O arconte (arkhonαρχων) chefe era responsaacutevel pela organizaccedilatildeo juriacutedica na antiga Greacutecia Ele era uma espeacutecie de juiz que era ldquoencarregadordquo de estabelecer algumas leis importantes para manter o bom funcionamento dos principais oacutergatildeos do Estado em Atenas Ele tambeacutem participava nas decisotildees nos conselhos (bouleacute) e ao lado do rei conduzia o governo

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filoacutesofo o surgimento da figura do general (polemarkhos)590 marca o primeiro

movimento de transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo da antiga realeza Por uma falta de

ldquovocaccedilatildeordquo o rei ldquotransfererdquo 591 uma parte da sua autoridade para um general592 que

passa a cuidar dos assuntos militares Para ele o surgimento da figura de Iacuteon foi

responsaacutevel pela primeira grande transformaccedilatildeo da constituiccedilatildeo original Deste

modo esse incidente desencadeou um processo de mudanccedila poliacutetica que foi

importante para o surgimento de um governo que fosse organizado a partir de uma

base coletiva que foi constituiacuteda atraveacutes do emprego da palavra-diaacutelogo Mas antes

de falarmos dessa importante inovaccedilatildeo no campo da linguagem que possibilitou

590 Haacute ainda outro termo no grego para chefe do exeacutercito que a palavra estrategos (στρατηγός) No caso do polemarkhos (πολέmicroαρχος) era uma espeacutecie de comandante geral de diversas tropas O termo eacute uma junccedilatildeo de poacutelemos (πόλεmicroος) guerra + arkhon (αρχων) chefe = chefe ou senhor da guerra 591 A nossa hipoacutetese eacute de que essa ldquotransferecircnciardquo de poder possa ter ocorrido em um contexto muito difiacutecil e violento Essa posiccedilatildeo pode ser corroborada a partir das evidecircncias que encontramos nos relatos dos historiadores Heroacutedoto e Tuciacutedides e principalmente na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo de Aristoacuteteles que apresentam essas causas para a crise poliacutetica que surgiu depois desse periacuteodo Eacute possiacutevel que essa antiga realeza sofresse fortes pressotildees internas e externas E esses dois fatores podem ter gerado esse processo que levou o enfraquecimento da antiga monarquia Infelizmente natildeo temos registros doxograacuteficos que forneccedilam informaccedilotildees mais precisas de como e quando isso exatamente ocorreu 592 Esse eacute um ponto de extrema polecircmica entre os historiadores e helenistas pois segundo Aristoacuteteles o primeiro polemarkhos (senhor da guerra) teria sido Iacuteon (rei e fundador da Jocircnia) O nosso maior problema eacute que haacute diversas histoacuterias em torno dessa figura lendaacuteria Ou seja mais uma vez nos deparamos com a antiga confusatildeo existente entre a mitologia e histoacuteria pois ambas se misturam nesse ponto quando tentamos buscar informaccedilotildees mais precisas sobre a sua existecircncia Segundo o texto aristoteacutelico (Cons dos atenienses 32) os atenienses forccedilados pela ldquonecessidaderdquo chamaram o destemido Iacuteon para desempenhar uma funccedilatildeo que antes estava na matildeo do rei A polecircmica surge exatamente nesse momento pois natildeo sabemos em que contexto essa ldquotransiccedilatildeordquo aconteceu e nem as causas que obrigaram o rei abrir matildeo dessa importante funccedilatildeo militar (vide a nota anterior para essa questatildeo) e nem dados adicionais sobre a vida de Iacuteon De qualquer modo o que podemos inferir a partir das informaccedilotildees de Aristoacuteteles eacute que ele possa ter sido um dos atores que ajuda a promover a queda da antiga realeza As nossas maiores duacutevidas satildeo 1) quem foi Iacuteon 2) quem satildeo esses atenienses que clamam sua ajuda 3) seraacute que ele foi um grande guerreiro que saiu do povo A nossa suspeita caminha em direccedilatildeo desse uacuteltimo ponto pois o grande poeta Euriacutepides ndash que eacute conhecido na antiguidade por ter sido um dos primeiros a dessacralizar os mitos - escreveu uma peccedila sobre a sua vida que conta que ele era filho de Apolo mas foi abandonado quando crianccedila por sua matildee que se chamava Creusa Essa mulher era filha de Erecteu que segundo a mitologia foi um antigo rei de Atenas Aliaacutes existe ateacute hoje em Atenas um templo chamado Erecteion que foi feito em sua homenagem O mais curioso eacute que esse templo foi construiacutedo em estilo jocircnico que foi um povo que segundo os antigos historiadores teria sido criado pelo seu neto Iacuteon E mais uma vez a histoacuteria e o mito se confundem aqui De qualquer modo o relato mais concreto que temos sobre a sua vida encontramos em Aristoacuteteles que afirma (Cons dos atenienses ndash 422) que a primeira mudanccedila na constituiccedilatildeo original ocorreu atraveacutes de Iacuteon e de seus companheiros Ou seja eacute bem provaacutevel que esse general fosse originaacuterio de outra classe social que se opusesse ao governo e para essa hipoacutetese temos que nos basear nos textos fornecidos por Euriacutepides e sobretudo Aristoacuteteles Haacute alguns pontos nesses relatos que se coadunam de modo muito estranho Aliaacutes o filoacutesofo ainda acrescenta que o grande polemarco teria reunido as ldquoquatro tribosrdquo que escolheram os seus respectivos representantes De qualquer modo essa eacute uma questatildeo bem interessante para os historiadores pois aborda a distinccedilatildeo entre o mito e histoacuteria para os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro A ANDREWES ldquoThe Greek Tyrantsrdquo London Hutchinson 1956

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uma grande revoluccedilatildeo poliacutetica na Greacutecia eacute preciso apresentar um curioso aspecto

ocorrido nesse periacuteodo que corroborou para essa transformaccedilatildeo que deu a

possibilidade para o surgimento desse novo tipo de logos e ele reside na mudanccedila

de atuaccedilatildeo da casta dos nobres guerreiros nos campos de batalhas

52 A palavra e a bela accedilatildeo

Na poesia homeacuterica podemos encontrar vestiacutegios de uma eacutetica heroica que

ainda estava vinculada aos valores individuais que eram adquiridas em duelos

singulares onde cada participante deveria provar as suas competecircncias militares

para governar e ser respeitado pelos seus pares e suacuteditos (VERNANT 1962) Na

Iliacuteada essas disputas representavam natildeo apenas a sorte dos guerreiros mas o destino

de toda uma naccedilatildeo A habilidade coragem e astuacutecia593 eram qualidades exigidas

entres os homens e observadas e controladas pelos deuses oliacutempicos Aleacutem do poder

mnemocircnico que conserva em si as caracteriacutesticas essenciais para a formaccedilatildeo do

homem antigo (JAEGER 1936) A poesia homeacuterica traz em seu bojo todo o

imaginaacuterio desse pensamento mais arcaico594 que destaca algumas qualidades

morais e espirituais que ganham forma na accedilatildeo e no ethos595 do guerreiro grego de

modo integrado Independentemente da a-historicidade que muitos helenistas596

impotildee a poesia homeacuterica eacute notoacuterio que durante a passagem entre os periacuteodos

593 Techneacute andreas e meacutetis (Tέχνη Ἀνδρέας και Μῆτις) 594 No sentido de mais ldquoantigordquo e natildeo no sentido de periacuteodo histoacuterico 595 Ethos (ἔθος) caraacuteter moral 596 Para o helenista Geoffrey S Kirk (KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92) A eacutepica homeacuterica eacute uma construccedilatildeo ficcional que contecircm contribuiccedilotildees de diferentes periacuteodos histoacutericos que provavelmente pode estar situada entre um periacuteodo de 500 anos ou mais Para ele esse mundo fascinante apresentado pelo poeta natildeo tem semelhanccedila exata com qualquer cenaacuterio histoacuterico (sic) Poreacutem o proacuteprio helenista reconhece que eacute possiacutevel encontrar na literatura homeacuterica vaacuterios elementos que satildeo baseados em fatos histoacutericos que foram comprovados por alguns arqueoacutelogos atraveacutes de um estudo cuidadoso da Iliacuteada e da Odisseia que levaram a encontrar os vestiacutegios da cidade de Troacuteia e Micenas entre outros artefatos de guerra que comprovam alguns aspectos historiograacuteficos que podem ser obtidos atraveacutes dos poemas Logo para noacutes independentemente dessa polecircmica entre especialistas o mais importante eacute analisar uma forma de existir e pensar da cultura grega que pode ser constatada na literatura homeacuterica que pode nos ajudar na compreensatildeo entre a transiccedilatildeo do periacuteodo homeacuterico e arcaico no qual aparece o iniacutecio das primeiras polis

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homeacuterico arcaico e o claacutessico esses valores foram agregando outros contornos e

matizes Um exemplo desse fato pode ser constatado na poesia hesioacutedica que via o

trabalho como o valor mais importante para educaccedilatildeo dos trabalhadores

campesinos597 De qualquer modo desde Homero a Platatildeo podemos encontrar um

ponto em comum que perpassa por todo pensamento poeacutetico e filosoacutefico antigo e

ele reside na eacutetica pedagoacutegica que percorre vaacuterios momentos histoacutericos da cultura

grega que tinha como fundamento a busca pela excelecircncia de todos os seus

concidadatildeos

Desde os primoacuterdios da cultura helecircnica a negaccedilatildeo desse princiacutepio era o

sintoma da total decadecircncia humana No caso homeacuterico todos os valores

apresentados satildeo fortemente marcados pelo o sentido da guerra598 O desejo pela

conquista da honra era algo vital para todos os membros da aristocracia599 Esse

prestiacutegio soacute podia ser obtido atraveacutes do ldquoreconhecimentordquo de uma memoacuteria

coletiva que transmitia aos poetas os nomes de alguns poucos mortais que poderiam

ganhar a imortalidade atraveacutes do elogio ou censura600 A gloacuteria ou desgraccedila era

unicamente alcanccediladas pelas accedilotildees de alguns mortais que posteriormente se

tornariam versos que seriam cantados e declamados entre rapsodos e aedos por toda

a eternidade helecircnica Esses poemas traziam consigo o intuito de serem utilizados

como modelos (paradigmas) para educaccedilatildeo dos jovens aristocratas Curiosamente

esse traccedilo mais antigo da poesia ainda seraacute uma importante referecircncia para os

filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico601 O elogio e a censura se tornaratildeo palavras

chave para a eacutetica filosoacutefica que surge com o objetivo de nortear a vida social dos

atenienses na polis entre o seacuteculo IV e III A seguir veremos in loco uma passagem

no qual o filoacutesofo Aristoacuteteles emprega essas duas noccedilotildees com o intuito de avaliar

as accedilotildees humanas com o objetivo de encontrar o caminho da justa medida602 para

o bem agir

597 HESIacuteODO ldquoOs trabalhos e os diasrdquo (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι Erga kaiacute Hemeacuterai) 598 Πόλεmicroος (poacutelemos) 599 Aristokratiacutea (ἀριστοκρατία) literalmente significa o ldquopoder dos melhoresrdquo o termo vem de ἄριστος (aristos que significa excelente + κράτος (kratos) poder) eacute uma forma de governo na qual o poder poliacutetico eacute exercido por membros da nobreza 600 Έπαινος ή ψόγος (epainos e psoacutegos) elogio e censura 601 Vide as obras de Platatildeo Aristoacuteteles e Isoacutecrates 602 O caminho da ldquojusta medidardquo (microεσοτεσmesotes) ou ldquomeio termordquo que implica numa espeacutecie de sabedoria praacutetica que Aristoacuteteles chama de phronēsis (φρόνησις) Vide Aristoacuteteles (EN II 6 1106

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[ARIST EN] natildeo se censura contudo o homem que se desvia um pouco da bondade quer no sentido do menos quer do mais soacute merece reproche o homem cujo desvio eacute maior pois esse nunca passa despercebido Mas ateacute que ponto um homem pode desviar-se sem merecer censura Isso natildeo eacute faacutecil determinar pelo raciociacutenio como tudo que seja percebido pelos sentidos tais coisas dependem de circunstacircncias particulares e quem decide eacute a percepccedilatildeo Fica bem claro pois que em todas as coisas o meio-termo603 eacute digno louvado mas que agraves vezes devemos inclinar-nos para o excesso e outras vezes para a deficiecircncia Efetivamente essa eacute a maneira mais faacutecil de atingir o meio termo e o que eacute certo604

De qualquer modo a vida honrada e feliz605 eacute uma conquista que soacute pode ser

mensurada depois da morte Na Eacutetica Nicocircmaco por exemplo o filoacutesofo

macedocircnio afirma tambeacutem que soacute eacute possiacutevel analisar se algueacutem foi ou natildeo feliz apoacutes

o teacutermino do seu ciclo de vida Para ele o que torna um homem realmente feliz ndash e

a felicidade606 (eudaimonia) dentro desse contexto cultural eacute sinocircnimo de

nobreza607 - natildeo satildeo as accedilotildees empregadas em determinadas situaccedilotildees da vida mas

em todo o seu conjunto que podem ser avaliadas apenas no post mortem608 O

proacuteprio filoacutesofo reconhece o quatildeo paradoxal eacute essa afirmaccedilatildeo mas para demonstrar

a sua tese Aristoacuteteles cita o exemplo do rei Priacuteamo que depois de uma vida repleta

de belos feitos teve que experimentar na velhice os infortuacutenios que coincidiram com

a morte do seu filho e sucessor ao trono o priacutencipe Heitor e a total destruiccedilatildeo da

a 26) Esse ponto seraacute de extrema importacircncia para Aristoacuteteles no campo eacutetico e poliacutetico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 603 Posteriormente veremos como esse termo eacute central nos estudos sobre poliacutetica em Aristoacuteteles 604 Em ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicomacircco (1109 b 30) Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de W D Ross In Os Pensadores Satildeo Paulo Nova Cultural 1973 v4 Um ponto muito curioso nessa passagem eacute que o filoacutesofo defende categoricamente que o criteacuterio para a avaliaccedilatildeo das accedilotildees depende das circunstacircncias particulares Ou seja se um menino estiver com muita fome o seu ato pode ser justificado pela necessidade de sobrevivecircncia Eacute uma posiccedilatildeo que estaacute muito proacutexima dos grandes sofistas como Protaacutegoras Mas eacute importante ressaltar que para o pensamento socraacutetico-platocircnico as circunstacircncias particulares natildeo podem serem utilizadas como criteacuterio mas sim o ideal de ldquoBemrdquo Dentro dessa concepccedilatildeo mesmo com fome a atitude de roubar seria ainda algo reprovaacutevel Logo a partir dessa constataccedilatildeo percebemos uma importante diferenccedila entre o pensamento socraacutetico-platocircnico e aristoteacutelico 605 A redundacircncia aqui eacute proposital como veremos a seguir 606 Eudaimonia (εὐδαιmicroονία) Plenitude existencial 607 Kalos kai agathos (καλός καi αγαθός) que significa belo e bom ou belo e virtuoso 608 ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicocircmaco (Livro VII 1098 a- 18)

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cidade de Troacuteia609 Consequentemente todas essas tristes ocorrecircncias no final de

sua vida produziram uma mudanccedila610 que levou o rei troiano a um fim miseraacutevel

Mas quais foram os erros611 cometidos por Priacuteamo que teriam o conduzido a

esse triste fim612 Essa fascinante questatildeo poderia nos levar a tomar outros

caminhos que fugiriam do nosso presente objetivo Todavia eu natildeo poderia deixar

de assinalar aqui que a eacutetica antiga demonstra que mesmo o menor dos deslizes ndash

como aceitar que seu filho Paacuteris roubasse a esposa do rei espartano Menelau613 ndash

pode se transformar em terriacuteveis cataacutestrofes no futuro A loacutegica da causa e

consequecircncia que posteriormente foi desenvolvida com mais rigor por filoacutesofos

como Platatildeo e Aristoacuteteles parece estar em total consonacircncia com esse princiacutepio

eacutetico fundamentado na guerra que encontramos nos antigos poemas homeacutericos e

nos primeiros filoacutesofos gregos Em Anaximandro por exemplo o embate entre

forccedilas eacute uma das caracteriacutesticas que compotildee uma lei universal que ordena todas as

coisas no mundo sensiacutevel

[Simpl In Phys 24 17] uma outra natureza apeiron de que provecircm todos os ceacuteus e mundos neles contidos E a fonte de geraccedilatildeo das coisas que existem eacute aquela em que a destruiccedilatildeo tambeacutem se verifica segundo a necessidade pois pagam castigo e retribuiccedilatildeo umas agraves outras pela sua injusticcedila de acordo com o decreto do tempo614

Segundo essa sentenccedila o mundo eacute composto de contraacuterios que guerreiam entre

si em todos os instantes A origem e o fim de todas as coisas estatildeo subordinados agrave

lei da necessidade615 e julgadas pelo poder ordenador do tempo que sempre atua no

609 Ibidem (livro IX 1100 a-5) 610 Peripeteia (περιπέτεια) eacute um conceito importantiacutessimo encontrado na Poeacutetica que apresenta o sentido de reviravolta 611 Ibidem Harmaacutertia (άmicroαρτία) erro ou falha 612 Natildeo eacute mera coincidecircncia a relaccedilatildeo entre a Poeacutetica e a Eacutetica a Nicocircmaco pois ambas as obras estudam as accedilotildees (praacutexis πράξις) humanas 613 Eacute importante destacar que esse ato de sequestrar a rainha Helena eacute uma violaccedilatildeo da lei de hospitalidade que havia entre as naccedilotildees no mundo antigo 614 ANAXIMANDRO ( Fragmento 101) Esse fragmento foi retirado do capiacutetulo III do seguinte livro KIRK G S ndash RAVEN JC Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos traduccedilatildeo de C A Louro Fonseca e outros Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 2a ediccedilatildeo 1982 615 Kata ton chreon (κατὰ τὸ χρεών) como podemos notar na sentenccedila o filoacutesofo parece expressar que o mundo sensiacutevel e do vir a ser estatildeo totalmente marcados por essa falta original que eacute a caracteriacutestica de tudo aquilo que eacute mortal e pereciacutevel A relaccedilatildeo entre o ilimitado (apeironἄπειρον) e o limitado (perasπέρας) eacute a mesma entre o mundo divino e o humano nos poemas homeacutericos

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sentido de reparar uma injusticcedila616ou falta617 A maioria dos helenistas que

interpretam essa passagem cosmoloacutegica618 deixam escapar o aspecto antropoloacutegico

que parece ter sido profundamente influenciado pela antiga eacutetica homeacuterica que via

as accedilotildees dos guerreiros dentro da relaccedilatildeo loacutegica do seguinte trinocircmio causa efeito

e consequecircncia Todos os nossos atos estatildeo sob a estrutura riacutegida dessa equaccedilatildeo

Nas duas obras homeacutericas podemos notar que a dinacircmica das accedilotildees eacute regulada pela

ordem da guerra - o conflito entre duas forccedilas619 - que potildee a prova o caraacuteter e a

bravura de cada guerreiro com o intuito de buscar a excelecircncia moral que satildeo

atributos essenciais para a composiccedilatildeo do verdadeiro heroacutei da nobreza grega No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um exemplo de como esses duelos individuais estavam

marcados por uma determinada forma de disputa que estava associada como uma

eacutetica guerreira que posteriormente foi alterada para uma forma de combate coletivo

que foi essencial para o surgimento da palavra-diaacutelogo

No Canto III da Iliacuteada podemos encontrar a descriccedilatildeo do combate corpo a

corpo entre Paacuteris e Menelau que o poeta narra em detalhes Mas antes de apresentaacute-

lo eacute importante ressaltar que a guerra nesse periacuteodo tinha que respeitar um coacutedigo

juriacutedico militar bem especiacutefico Havia uma espeacutecie de constituiccedilatildeo internacional

entre as naccedilotildees que estabeleciam determinadas regras e rituais que deveriam ser

seguidas rigorosamente pelas duas partes da contenda No duelo que ocorre no

Canto III essas caracteriacutesticas ritualiacutesticas satildeo destacadas em vaacuterios versos pois

elas compotildeem todo o cenaacuterio para o combate que seraacute deflagrado entre o

representante dos Aqueus o rei Menelau e do outro lado o priacutencipe troiano Paacuteris

Esse duelo tinha o intuito de encerrar a querela em torno da guarda de Helena e

evitar a guerra entre os aqueus e troianos Mas no meio do combate a covardia de

Paacuteris sobressai aos olhos de todos os aqueus e troianos E essa fraqueza abre espaccedilo

para a demonstraccedilatildeo da superioridade de Menelau que parte com toda a sua fuacuteria

na direccedilatildeo do jovem mancebo mas a deusa Afrodite interveacutem620 para o nosso

616 Adikia (Ἀδικία)injusticcedila 617 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta erro ou falha Ela eacute uma caracteriacutestica que marca a mortalidade humana Todas as coisas que tem uma geraccedilatildeo estatildeo sob o domiacutenio dessa ldquolei natildeo escritardquo (agraphos nomos Άγραφος νόmicroος) Vide Soacutefocles Antiacutegona 450-59 618 Eacute importante ressaltar que o modo de expressatildeo desses primeiros filoacutesofos estaacute ainda conectado com a tradiccedilatildeo poeacutetica que tinha uma visatildeo holiacutestica do mundo 619 Conceito que posteriormente seraacute a base para o surgimento do drama como gecircnero literaacuterio 620 Essa intervenccedilatildeo divina eacute vista com muita desconfianccedila por muitos especialistas modernos Por que os deuses intervecircm nas questotildees humanas Posteriormente veremos como esse mundo da

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espanto e faz com que Paacuteris possa escapar ileso do duelo Segundo agraves palavras de

Helena que podem ser encontradas no verso 400 o rei Menelau teria saiacutedo vitorioso

do combate Aliaacutes a proacutepria princesa espartana621 humilha Paacuteris por sua covardia e

culpa a deusa Afrodite por ter intervindo de modo indevido na contenda Helena

reconhece que essa intervenccedilatildeo custaraacute muito caro agrave nobreza troiana

A relaccedilatildeo com o mundo divino eacute outra caracteriacutestica que salta aos nossos olhos

na leitura da Iiacuteada pois todas as personagens da aristocracia tecircm um parentesco

com os deuses622 Isso fica claro na resposta que Paacuteris fornece agrave Helena Segundo

ele o rei Menelau tambeacutem teve o auxiacutelio da deusa Atena Enquanto isso os aqueus

liderados por Agamecircmnon clamam pela vitoacuteria e a devoluccedilatildeo imediata de Helena

nos uacuteltimos versos No iniacutecio do Canto IV encontramos uma espeacutecie de digressatildeo

que apresenta uma reuniatildeo divina623 que tem o intuito de avaliar os pormenores da

contenda entre as duas naccedilotildees E Zeus nesse momento interpela os seus pares com

a seguinte questatildeo ldquoqual curso daremos as coisas Incitar a guerra atroz ou a paz

entre os dois povosrdquo essa indagaccedilatildeo confirma as palavras ditas anteriormente por

nobreza homeacuterica ainda era amparado por essas divindades oliacutempicas que era um traccedilo dessa tradiccedilatildeo oriunda do periacuteodo preacute-homeacuterico Para alguns inteacuterpretes esse fato pode ser compreendido como um eufemismo inserido por Homero para esconder a covardia ou total despreparo de Paacuteris para o duelo com Menelau Haacute ainda a hipoacutetese de que Homero estaria do lado dos troianos De qualquer modo essa instacircncia divina eacute uma questatildeo presente de modo decisivo nas obras homeacutericas Poreacutem ao comparar as duas obras podemos detectar na Odisseacuteia um certo distanciamento entre homens e deuses Esse fato pode ser constatado claramente na postura de Odisseu ao trocar a imortalidade ao lado da deusa Calipso pela vida simples como mortal em Iacutetaca ao lado de sua esposa Peneacutelope 621 Essa passagem mostra que Helena foi uma das primeiras mulheres a levantar a voz em um mundo guerreiro totalmente masculino Isso demonstra que ela natildeo estava vinculada ao papel tradicional que as mulheres desempenhavam nesse periacuteodo na Greacutecia 622 Esse eacute outro aspecto que tem origem no periacuteodo preacute-homeacuterico A relaccedilatildeo da realeza com o mundo divino que ocorre tambeacutem nas culturas egiacutepcia e persa apresenta uma base para a justificaccedilatildeo e validaccedilatildeo do poder poliacutetico Mesmo com a queda da antiga monarquia a Greacutecia de um modo geral continuou utilizando a esfera religiosa para manter e organizar a sua constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Nesse sentido a poesia em seu iniacutecio desempenhou um importante papel de imprimir essa noccedilatildeo no inconsciente coletivo grego atraveacutes dos ritos e foacutermulas que eram entoados maciccedilamente entre a populaccedilatildeo Um dos seus objetivos nesse periacuteodo era impor de modo sutil a adesatildeo dessa noccedilatildeo no espiacuterito das classes mais humildes para facilitar o papel da governabilidade do soberano o rei divino Vale ressaltar por uacuteltimo que na poesia homeacuterica jaacute eacute possiacutevel rastrear o decliacutenio dessa concepccedilatildeo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro GERNET Louis Anthropologie de La Gregravece antique Paris Flammarion 1977 Cap I e II 623 A forma como Zeus se dirige aos seus pares nos leva a crer que jaacute havia o emprego das assembleias (Bouleacute Βουλή) - que eacute um traccedilo caracteriacutestico da formaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da polis - no periacuteodo que esse poema foi composto por Homero Curiosamente essa forma de expressatildeo utilizada por Zeus no Canto IV eacute muito similar ao que filoacutesofo Platatildeo costumava a utilizar em seus diaacutelogos e nas suas aulas (vide Aristoacuteteles Eacutetica Nicocircmaco I IV 5) Essa caracteriacutestica demonstra para noacutes a total sintonia de Platatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica O termo aacutegora (ἀγορά) assembleia lugar de reuniatildeo eacute derivado do verbo agueiro (ἀγείρω) reunir e posteriormente torna-se um espaccedilo de grande importacircncia para a resoluccedilatildeo dos mais diversos problemas dos gregos Podemos encontrar o uso in loco desse verbo no iniacutecio do Canto XX

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Paacuteris sobre a intervenccedilatildeo divina Enquanto que Hera Poseidon Hefesto Teacutetis e

Atenas estavam protegendo Menelau e os aqueus a Deusa Afrodite Apolo Ares

Leto e Aacutertemis formavam o time divino que davam apoio aos troianos Todavia a

intervenccedilatildeo de Afrodite a favor de Paacuteris no ponto mais culminante do duelo eacute tida

como uma manobra repugnante ateacute mesmo no mundo dos mortais Para os aqueus

essa atitude eacute interpretada como uma quebra contratual que foi estabelecida em

comum acordo entre as partes envolvidas624 O duelo deveria ser definido a partir

das habilidades individuais de cada um Mas como vimos anteriormente o

combate contava tambeacutem com a simpatia dos deuses Para muitos leitores esse

uacuteltimo quesito pode ser interpretado como algo do acircmbito casual e do inesperado

que ocorre de modo totalmente acidental Eacute importante ressaltar que os deuses no

mundo homeacuterico natildeo parecem atuar como meras hipoacutestases625 dos sentimentos

humanos Pelo contraacuterio elas satildeo a expressatildeo do mundo dos imortais atraveacutes dessas

forccedilas sobre-humanas como o destino626 e a sorte627 que atuam independentemente

da nossa vontade mas que podem ou natildeo serem decisivas ateacute mesmo no campo de

batalha De qualquer modo essa forma de disputa individual era uma prova no qual

as accedilotildees de cada guerreiro necessitavam levar esse ponto em extrema

consideraccedilatildeo628 O melhor guerreiro natildeo eacute aquele considerado mais forte ou fraco

natildeo apenas do ponto de vista fiacutesico ou mental mas aquele que sabe melhor agir sob

qualquer tipo de circunstacircncia ao saber equilibrar os dois mais importantes traccedilos

624 Os ritos descritos no canto III deixam claro que o duelo natildeo deveria ter a intervenccedilatildeo divina Todas as oferendas destinadas aos deuses trazem esse propoacutesito bem expliacutecito a vitoacuteria deveria ser decidida no fio das espadas mas a deusa Afrodite interveacutem e muda o rumo do combate Haacute ainda outro aspecto importantiacutessimo que o poeta parece sugerir sub-repticiamente em seus versos por um lado ele apresenta mesmo de modo tiacutemido o distanciamento entre o mundo humano e divino nessa elaboraccedilatildeo ritualiacutestica e por outro que esse distanciamento natildeo eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo humana Essa uacuteltima hipoacutetese pode ser confirmada com a assembleia divina que ocorre no iniacutecio do canto IV 625Hipostatizar eacute interpretar como uma existecircncia real algo oriundo da abstraccedilatildeo Ou seja afirmar algo abstrato como algo material Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos o seguinte artigo KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 93 626 As moiras (Μοῖραι) na mitologia grega satildeo as trecircs irmatildes responsaacuteveis pelo destino humano e divino Eram trecircs mulheres com um aspecto fuacutenebre que tinham a funccedilatildeo de fabricar tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos deuses e homens Durante esse importante ofiacutecio as moiras utilizavam uma espeacutecie de Roda da Fortuna que era um tear utilizado para se tecer os fios As voltas da roda posicionam o fio de cada indiviacuteduo em sua parte mais alta ou em sua parte menos desejaacutevel que era o fundo que representavam os momentos de boa ou maacute sorte dos homens e dos deuses 627 Tykhe (Τύχη) sorte Na mitologia grega ainda havia uma divindade chamada Moros que era responsaacutevel pela sorte e destino dos deuses e homens Ele eacute um daimon filho de Nix (noite) na Teogonia de Hesiacuteodo 628 Essa separaccedilatildeo entre o mundo mortal e dos imortais pode ser configurada dentro desse contexto que deu ensejo para o nascimento do traacutegico

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da alma humana a emoccedilatildeo e a razatildeo629 que para o poeta ambas tecircm a sua sede no

coraccedilatildeo (SNELL 2001) O resultado desse caacutelculo apresentaraacute escolhas que podem

levar agraves accedilotildees que daratildeo o sentido da vitoacuteria ou fracasso em qualquer disputa O

exemplo desse pressuposto eacutetico homeacuterico pode ser encontrado na histoacuteria do

proacuteprio Aquiles que teve uma vida curta mas ganhou a imortalidade e gloacuteria

atraveacutes das suas atitudes Em nenhum momento da sua histoacuteria ele agiu motivado

pelo descontrole ou desmedida630 Mesmo sendo um mortal ele pocircde se destacar

entre todos os homens justamente por saber refrear os seus impulsos631 Mesmo a

sua tatildeo famosa ldquoirardquo 632 que eacute cantada no iniacutecio da Iliacuteada pelas musas natildeo eacute de

modo algum fortuita Pelo contraacuterio dentro da construccedilatildeo da eacutepica homeacuterica esse

sentimento de revolta estaacute condicionado a uma espeacutecie de lei divina - como foi visto

anteriormente em nossa anaacutelise sobre o aspecto eacutetico do fragmento de Anaximandro

- que age contra qualquer tipo de atitude que viole ou ameace o equiliacutebrio da

sociedade humana (MUELLNER 1996) Nesse sentido a ira de Aquiles quando

aplicada na medida exata torna-se uma forccedila benfazeja pois ela visa reparar uma

injusticcedila ocorrida anteriormente com a morte de seu querido amigo Paacutetroclo Esse

aspecto de respeito ao outro que marca a eacutetica no periacuteodo claacutessico fica ainda mais

evidente para noacutes quando comparamos as atitudes desse nobre guerreiro com a de

outros personagens como o rei Agamecircmnon e o priacutencipe Paacuteris pois esses dois satildeo

retratados por Homero como homens egoiacutestas que satildeo movidos por suas paixotildees

mais baixas

No caso do priacutencipe troiano mesmo com o auxiacutelio divino o jovem Paacuteris natildeo

pocircde evitar o triste legado de um covarde que alcanccedilou a sua maacute reputaccedilatildeo quando

ajudou a levar a cidade dos seus pais agraves cinzas Haacute ainda mais um agravante que eacute

o fato de ter assassinado o melhor dos homens o grande guerreiro Aquiles com

629 Em Homero os dois termos correspondentes em grego satildeo Thymoacutes (θυmicroός) e nous (νοῦς) O primeiro carrega diversos sentidos no periacuteodo homeacuterico mas no geral ele estaacute voltado para as emoccedilotildees na acepccedilatildeo mais recorrente do termo Enquanto que nous desempenha a capacidade de abstraccedilatildeo atraveacutes das ldquoimagensrdquo 630 Hybris (ὕϐρις) 631 Vide Iliacuteada canto I 632 Mecircnis (Μῆνις) No dicionaacuterio Liddel amp Scott esse termo aparece com o sentido de indignaccedilatildeo Para noacutes essa interpretaccedilatildeo sobretudo no contexto da eacutepica homeacuterica eacute mais coerente com a construccedilatildeo moral proposta pelo poeta Esse sentimento de revolta que eacute provocado por uma circunstacircncia injusta indigna ou revoltante traz em seu bojo a importacircncia da amizade para a construccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da cultura helecircnica que seraacute de extrema importacircncia para a construccedilatildeo eacutetica da falange hoplita no qual o guerreiro corajoso eacute aquele que daria a vida para proteger o seu companheiro de armas Posteriormente voltaremos a essa questatildeo

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uma flecha e natildeo com uma espada em punho firme Esses exemplos satildeo mais que

suficientes para a sua condenaccedilatildeo no tribunal do poeta que expotildee graciosamente o

preccedilo que deve ser pago por aqueles que satildeo controlados por suas emoccedilotildees de modo

desmedido Eacute essa a imagem que o poema homeacuterico imortalizou para a posteridade

grega a de um rei incompetente que eacute guiado por sua vilania e de um jovem

impulsivo e fraco que natildeo foi adequadamente educado Um rei e um priacutencipe Essas

duas figuras simbolizam dois importantes aspectos da vida humana e poliacutetica no

mundo da aristocracia Em relaccedilatildeo a Paacuteris que representa a juventude que eacute uma

fase intermediaacuteria entre a infacircncia e a vida adulta a criacutetica do poeta parece atuar de

modo mais incisivo Pois o jovem mesmo com a sorte divina que herdou dos seus

antepassados natildeo foi suficientemente prudente e por conta das suas paixotildees pocircs

em decliacutenio toda a estrutura soacutecio-poliacutetica de sua cidade natal Portanto a educaccedilatildeo

homeacuterica tinha como pressuposto as seguintes liccedilotildees para todos os gregos

primeiramente formar os melhores homens com o intuito de garantir a felicidade

(eudaimonia) plena da cidade que soacute pode ser adquirida atraveacutes de uma boa

conduta Em um segundo momento a poesia atuaria como um instrumento um

espelho retrovisor que visava evitar que os jovens seguissem o mesmo destino do

priacutencipe Paacuteris ou do rei Agamecircmnon que satildeo cada um ao seu modo os dois

exemplos paradigmaacuteticos de desmedida que geram todas as injusticcedilas naquele

contexto soacutecio-poliacutetico Ou seja um jovem nobre mal-educado no passado poderaacute

ser no futuro um peacutessimo governante Para termos uma noccedilatildeo da importacircncia que

os gregos davam para o processo de formaccedilatildeo dos poliacuteticos o bioacutegrafo e historiador

Plutarco no livro X da Moralia633 afirma que sem educaccedilatildeo634 jamais um homem

poderaacute se tornar um bom governante Aliaacutes ele eacute o mesmo que afirma a importacircncia

da poesia antes mesmo do estudo da filosofia para a formaccedilatildeo dos jovens da

aristocracia do seu tempo635 O objetivo de ambas deve auxiliar os jovens a alcanccedilar

a sua maturidade para o alcance de uma vida plena636 em conformidade com os

633 Em PLUTARCO Moralia livro X (728 a) ldquoPara os governantes mal-educadosrdquo (Πρὸς ἡγεmicroόνα ἀπαίδευτον) 634 Apaideutos (απαίδευτος) 635 Em PLUTARCO Moralia livro I 636 Philosophia biou kybernetes (Φιλοσοφία Βίου Κυβερνήτης) o amor pela sabedoria eacute o guia da vida Eacute atraveacutes desse famoso epiacuteteto que Pierre Hadot vai defender a tese de que as escolas filosoacuteficas na antiguidade tinham o objetivo de buscar a melhor alternativa para o homem alcanccedilar a sua plenitude existencial

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princiacutepios que regem a harmonia da cidade637 Logo os exemplos retirados das

eacutepicas homeacutericas ateacute o periacuteodo heleniacutestico deveriam seguir essa orientaccedilatildeo

pedagoacutegica Mas eis que surge mais uma questatildeo como a poesia homeacuterica poderia

ser tatildeo eficiente na educaccedilatildeo dos jovens nobres Como vimos anteriormente o

olhar arguto da poeacutetica homeacuterica apresenta a junccedilatildeo de dois ciclos da formaccedilatildeo

humana a saber a juventude e a maturidade pois ambas satildeo complementares no

processo de construccedilatildeo do homem poliacutetico na aristocracia grega de um modo geral

e que tem como ideal comparativo a imagem do nobre Aquiles que serve como um

paradigma eacutetico entre as personagens do rei Agamecircmnon e do priacutencipe Paacuteris Para

o sucesso de tal objetivo o poeta tinha que contrapor em seus versos os viacutecios e

virtudes que se expressavam nas accedilotildees de cada um desses personagens que

representam a nobreza que tem o poder sobre o destino de cada cidade E satildeo essas

caracteriacutesticas que fazem jus ao seu famoso epiacuteteto que podemos encontrar na

Repuacuteblica de Platatildeo638 que diz que poeta eacute o primeiro educador dos gregos Antes

mesmo do grande filoacutesofo ateniense ele jaacute expunha em versos os efeitos das accedilotildees

que natildeo foram devidamente refletidas Ao apresentar esse desvio atraveacutes do seu

espelho literaacuterio ele tambeacutem aponta uma direccedilatildeo que deveraacute ser seguida para

encontrar o alcance da gloacuteria eterna dos mortais639 Talvez seja esse o maior legado

que a poesia homeacuterica forneceraacute aos poetas traacutegicos posteriormente demonstrar o

637 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica (livro III 1288 a-b) O filoacutesofo afirma nessa passagem que um dos seus interesses visa encontrar qual eacute o melhor tipo de constituiccedilatildeo poliacutetica Na primeira parte do estudo ele observa que a virtude do homem do cidadatildeo e da cidade satildeo totalmente equivalentes entre si E ele parte a sua afirmaccedilatildeo da seguinte premissa eacute evidente que do mesmo modo o homem e pelos mesmos meios que homem se torna bom tambeacutem se pode constituir uma cidade aristocraacutetica ou monaacuterquica de modo que a educaccedilatildeo e os costumes que fazem um homem bom seratildeo mais ou menos as mesmas que satildeo utilizadas para um homem tornam-se apto para ser um homem de Estado ou rei A partir disso podemos notar como a eacutetica e poliacutetica estatildeo sob o mesmo diapasatildeo 638 PLATAtildeO Repuacuteblica livro X 606 C 639 A busca pela gloacuteria (κλέος kleacuteos) ou notoriedade era algo tatildeo importante para os gregos que haacute um fragmento de Heraacuteclito que expressava essa caracteriacutestica do mundo antigo ldquoas musas jocircnicas dizem expressamente que a massa e os aparentemente saacutebios seguem os aedos do povo e baseiam-se em seus costumes mesmo cientes de que muitos satildeo os maus poucos os bons e que soacute os melhores a gloacuteria perseguem Uma soacute coisa contra todas as outras escolhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzinada como o gadordquo (Frag XXIX ndash Clemente de Alexandria Stromata V 59) retirado do seguinte livro HERAacuteCLITO Fragmentos Contextualizados Ed Biliacutengue trad e comentaacuterios Alexandre Costa Rio de Janeiro Difel 2002 Eacute importante lembrar que o radical dessa palavra segundo Lidell amp Scott estaacute associado ao ato de ouvir Ou seja esse termo carrega implicitamente o significado de ldquoouvir algo ao seu respeitordquo A partir disso eacute possiacutevel constatar a profunda importacircncia da tradiccedilatildeo oral Sobretudo nesse contexto em que Heraacuteclito faz menccedilatildeo a esse fato em sua sentenccedila Pois como vimos anteriormente a uacutenica forma de alcance dessa gloacuteria eacute atraveacutes do canto dos aedos e rapsodos Neste sentido o fragmento de Heraacuteclito eacute de extrema importacircncia para compreendermos o sentido que carrega a gloacuteria para os antigos gregos

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encadeamento dos fatos e as motivaccedilotildees que movem cada uma das personagens na

trama construiacuteda pelos deuses E consequentemente obter uma espeacutecie de cosmo

visatildeo sobre as falhas no sentido da incapacidade dos homens em reconhecer o que

eacute realmente certo atraveacutes de uma orientaccedilatildeo precisa atraveacutes desse espelho poeacutetico

Aliaacutes Aristoacuteteles afirma na Poeacutetica640que a falha641 na trageacutedia natildeo eacute oriunda de

um desvio moral mas de uma deficiecircncia da proacutepria natureza humana642 No

capiacutetulo seis ele acrescenta ainda que a definiccedilatildeo traacutegica ocorre atraveacutes da accedilatildeo

Dito de outro modo eacute atraveacutes da accedilatildeo que unicamente o homem pode se reconhecer

como tal De qualquer modo a sua posiccedilatildeo estaacute em consonacircncia com uma ideia

que podemos encontrar na eacutepica homeacuterica que afirma que os homens satildeo apenas

meros joguetes nas matildeos das forccedilas divinas Logo se faz necessaacuterio desenvolver

uma cartografia para navegar no mar tempestuoso da vida Sem ela o homem

estaria totalmente agrave deriva e desprotegido como uma crianccedila perdida na selva O

famoso preceito deacutelfico que dizia ldquoconhece-te a ti mesmordquo que influenciou

posteriormente o pensamento socraacutetico jaacute apontava um imperativo eacutetico que

mostrava que o homem deveria voltar-se unicamente para uma reflexatildeo sobre as

suas proacuteprias accedilotildees com o objetivo de alcanccedilar a sua plenitude existencial Esse eacute

o caminho que os gregos antigos construiacuteram para natildeo mergulharem numa vida

totalmente niilista Aliaacutes essa preocupaccedilatildeo pode tambeacutem ser encontrada nas mais

diversas obras da literatura antiga Logo foi importante que o homem grego

descobrisse uma forma de afirmar a sua existecircncia mediante uma das uacutenicas

verdades que de fato podemos conhecer nesse mundo a natureza humana eacute mortal

Nesse sentido ao expor os problemas da relaccedilatildeo entre homens e deuses Homero

torna-se a mais importante referecircncia para a construccedilatildeo da mentalidade grega e ateacute

mesmo para o pensamento eacutetico que seraacute desenvolvido pelos tragedioacutegrafos

comedioacutegrafos sofistas e filoacutesofos no periacuteodo claacutessico

640 ARISTOacuteTELES Poeacutetica cap XIII 641 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta ou erro 642 A partir dessa afirmaccedilatildeo eacute possiacutevel extrair uma concepccedilatildeo de traacutegico do pensamento do filoacutesofo Essa eacute uma posiccedilatildeo muito discutiacutevel mas natildeo eacute em hipoacutetese alguma descartaacutevel Natildeo eacute porque natildeo encontramos nenhuma teoria sobre essa questatildeo ndash strictu sensu - nas obras de Aristoacuteteles que poderemos afirmar categoricamente como querem alguns alematildees como Albin Lesky que natildeo haja uma teoria sobre o pensamento traacutegico na antiguidade Em nosso proacuteprio trabalho apresentamos alguns elementos que vatildeo desde a obra homeacuterica que podem nos ajudar a encontrar uma teoria para defender uma posiccedilatildeo contraacuteria A seguir apresentaremos mais alguns importantes indiacutecios para essa hipoacutetese

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O autocontrole das emoccedilotildees643 era outro aspecto evidenciado por Homero ao

se referir a nobreza dos grandes heroacuteis na sua eacutepica pedagoacutegica Em diversos pontos

da Iliacuteada o poeta ressalta essa atitude como uma virtude que ajudava a compor a

beleza do melhor dos aqueus o valente Aquiles644 Essa disposiccedilatildeo espiritual estava

reciprocamente em conexatildeo com as habilidades645 de combate necessaacuterias para

qualquer guerreiro atraveacutes do manuseio de armas como a espada escudo e a lanccedila

Mas dentro desse contexto da eacutepica homeacuterica uma das qualidades de maior

destaque para a classe dos nobres que satildeo apresentadas pelo poeta inclui o domiacutenio

da arte de equitaccedilatildeo Para termos uma noccedilatildeo da dimensatildeo dessa importacircncia basta

constatar que dois dos termos mais recorrentes na Iliacuteada eacute o uso do verbo domar646

que eacute empregado justamente para ressaltar a capacidade humana de domesticar um

dos animais essenciais para a vida dos gregos - e que eacute outro termo de maior

destaque no poema - o cavalo647 Em quase todos os cantos o poeta ressalta a

relevacircncia do emprego desse mamiacutefero em vaacuterios aspectos da cultura helecircnica A

sua maior influecircncia foi no acircmbito econocircmico e militar Os altos custos para manter

e domesticar esses animais restringia a arte de equitaccedilatildeo para os poucos

proprietaacuterios de terras que pertenciam agrave classe dos nobres648 E esse fato eacute mais um

indiacutecio que corrobora a hipoacutetese que apresentamos anteriormente de que a epopeia

homeacuterica era um projeto pedagoacutegico que estava voltado essencialmente para uma

elite aristocraacutetica que estava no controle do poder econocircmico e que de certa forma

ainda guardava laccedilos sanguiacuteneos e afetivos com a constituiccedilatildeo poliacutetica anterior ao

643 Sophrosyne (Σωφροσύνη) era considerada por muitos gregos como uma espeacutecie de daimon que estimulava o autocontrole Enquanto que deusa Afrodite ficou conhecida na antiguidade como uma divindade responsaacutevel por fomentar as paixotildees desenfreadas Vide o caso do sequestro de Helena por Paacuteris que culminou com a destruiccedilatildeo da cidade de Troacuteia na Iliacuteada 644 Vide Iliacuteada (canto I v 340) Homero nesses versos apresenta a ponderaccedilatildeo do bravo Aquiles mediante a covardia de Agamecircmnon que envia um grupo de soldados agrave sua tenda para sequestrar a sua companheira a jovem Briseida que foi conquistada pelo nosso heroacutei em um butim 645 Teacutecnica (τέχνη) teacutechne Esse termo remete para qualquer procedimento que busca um determinado resultado 646 Damazo (δαmicroαζω) submeter ao julgo domar amansar e domesticar No caso passivo haacute tambeacutem o significado de forccedilado ou seduzido 647 Hippos (Ἵππος) cavalo 648 Vide a obra de Xenofonte ldquoDa equitaccedilatildeo ou arte da cavalariardquo (22-3) Nesse livro o escritor grego ressalta que a arte da equitaccedilatildeo era uma atividade praticada apenas pelos membros da elite ateniense que pertenciam a uma minoria que detinha o poder poliacutetico militar e econocircmico da polis Esse traccedilo eacute de extrema importacircncia para noacutes pois isso prova que mesmo com a queda da realeza micecircnica um pequeno grupo de guerreiros que certamente eram oriundos da antiga realeza micecircnica distribuiu o poder atraveacutes de uma divisatildeo que levava em consideraccedilatildeo a condiccedilatildeo econocircmica de seus membros pois esse aspecto eacute essencial sobretudo nesse periacuteodo para o cidadatildeo poder desempenhar a atividade militar que era o fundamento do controle poliacutetico vide o caso de Peacutericles que era liacuteder poliacutetico e estratego (general) de Atenas Posteriormente voltaremos a comentar esse ponto

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surgimento da Democracia na Greacutecia A arte de equitaccedilatildeo eacute uma heranccedila que une

esses dois momentos poliacuteticos na histoacuteria grega e esse fato pode ser verificado em

diversos exemplos da mitologia helecircnica que abrange do periacuteodo arcaico ateacute o

claacutessico no qual podemos verificar a relaccedilatildeo de vaacuterias divindades oliacutempicas com

esse precioso animal Eacute oacutebvio que os antigos aedos ajudaram a propagar admiraccedilatildeo

do cavalo no imaginaacuterio popular grego com o intuito de imprimir respeito aos que

detinham o controle dessa daacutediva divina649 Em vaacuterios mitos650 eacute possiacutevel detectaacute-

lo numa posiccedilatildeo privilegiada que concomitantemente revelava natildeo apenas o seu

valor mas tambeacutem o prestiacutegio e a destreza do seu condutor o nobre cavaleiro que

carregava a habilidade de domesticaacute-lo e de tecirc-lo como um aliado na frente de

batalha O caso mais emblemaacutetico que os gregos criaram para imortalizar essa

imagem idealizada estaacute contido no mito do centauro Quiacuteron651 Essa figura lendaacuteria

que eacute metade homem e outra metade cavalo eacute a siacutentese perfeita que simboliza o

prestiacutegio que a arte da equitaccedilatildeo exercia entre a nobreza grega Essa criatura era

tida como uma das mais famosas e saacutebias entre a classe dos centauros na mitologia

Em detrimento disso a sua filiaccedilatildeo estaacute associada ao panteatildeo dos deuses oliacutempicos

que formam a religiatildeo difundida pela nobreza A sua sabedoria lhe conferiu o ofiacutecio

de ser o maior educador entre os seres mitoloacutegicos gregos Xenofonte que eacute

conhecido por ter sido mercenaacuterio e disciacutepulo de Soacutecrates ndash e pertencente a uma

das famiacutelias mais influentes em Atenas652 - escreveu um livro intitulado Sobre a

649 Podemos encontrar em vaacuterios mitos a imagem do cavalo relacionado com o mundo divino e dotados de poderes especiais a seguir apresentaremos alguns exemplos 1) Quiacuteron um centauro filho de Cronos que atuou como tutor de Aquiles 2) Pegasus o cavalo alado filhos de Poseidon e Medusa Mais tarde ele foi transformado por Zeus na constelaccedilatildeo de Peacutegaso O cavalo desempenhou um papel central nos grandes festivais ciacutevicos no mundo antigo como os jogos de Panathenaicos em Atenas e os Jogos Oliacutempicos em Olympus onde participava de corridas de carros e corridas individuais No quinto seacuteculo em Tebas o poeta liacuterico Piacutendaro imortaliza as vitoacuterias dos cavalos e cavaleiros nos jogos Iacutestmicos Olimpo Piacuteticos O entusiasmo ateniense para o cavalo tambeacutem foi ressaltado em muitos edifiacutecios civis e religiosos que estavam cobertos com pinturas e esculturas de cavaleiros e cenas de batalha Todos esses indiacutecios coletados na arte e arquitetura satildeo importantes para noacutes pois apresentam as proezas dos guerreiros gregos na batalha natildeo apenas durante o periacuteodo arcaico mas tambeacutem no periacuteodo claacutessico e heleniacutestico Eacute possiacutevel encontrar vaacuterias obras que relatam essa faceta por exemplo a sepultura estela de Dexileos (3943 BC) que mostra o jovem cavaleiro em batalha em um cavalo de elevaccedilatildeo com o inimigo debaixo dele encolhido Da mesma forma satildeo famosas as representaccedilotildees de Alexandre o Grande e seu famoso cavalo Bucephalos como a do par montando para a batalha no Alexander Mosaico na Casa do Fauno Pompeacuteia Essas diversas representaccedilotildees do cavalo tem o intuito de demonstrar sua importacircncia na guerra e a centralidade desta criatura na vida ciacutevica religiosa e econocircmica da cidade 650 Vide nota anterior 651 Quiacuteron foi um centauro que atuou como o educador de Aquiles Neste sentido a mitologia grega foi muito eficiente para imprimir os valores da aristocracia atraveacutes dos aedos e rapsodos 652 Em ESTREBAtildeO Geografia Livro IX Capiacutetulo 2 7 Nessa passagem o geografo relata a batalha de Deacutelio que ocorreu por volta de 424 aC no qual os atenienses satildeo derrotados pelas tropas tebanas

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caccedila no qual enumera vinte e uma figuras lendaacuterias que foram educadas por esse

centauro No capiacutetulo I aleacutem dele nomear todos os heroacuteis que tiveram Quiacuteron como

pedagogo ele tambeacutem fornece uma preciosa informaccedilatildeo ao apresentar o conteuacutedo

programaacutetico e pedagoacutegico para a classe dos cavaleiros em Atenas Para se tornar

um bom heroacutei o jovem nobre deveria estudar as seguintes especialidades artes de

caccedila combate equitaccedilatildeo e muacutesica Podemos notar que todas essas disciplinas

estavam vinculadas agrave formaccedilatildeo militar e poliacutetica Ambas essenciais para o domiacutenio

poliacutetico do acircmbito interno e externo da poliacutetica grega

Na listagem apresentada por Xenofonte sobre os alunos ilustres de Quiacuteron eacute

possiacutevel encontrarmos o nome do guerreiro Aquiles Essa relaccedilatildeo pedagoacutegica e

poeacutetica natildeo eacute de modo algum fortuita Vimos anteriormente como Aquiles

representava o modelo de heroacutei na eacutepica homeacuterica Logo era de extrema

importacircncia para fundamentar esse projeto pedagoacutegico voltado para a nobreza que

esse mito de Quiacuteron fosse esculpido de modo que estivesse associado intimamente

agrave imagem de Aquiles para surtir o efeito esperado de persuasatildeo e respeito por um

lado no imaginaacuterio dos jovens nobres e por outro na populaccedilatildeo com o intuito de

imprimir submissatildeo agrave classe dominante A partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel

compreendermos a utilizaccedilatildeo da mitologia para controle e produccedilatildeo de

subjetividade653 Uma das funccedilotildees da poesia desde o periacuteodo preacute-homeacuterico era de

publicizar atraveacutes de teacutecnicas mnemocircnicas e meloacutedicas esses ideais difundidos

pela aristocracia que sempre esteve presente na antiga realeza Logo a estrutura do

poder vigente durante esse periacuteodo que abrange da monarquia micecircnica ateacute o iniacutecio

do surgimento da Democracia pode ser representada e inserida no inconsciente

coletivo grego atraveacutes da poesia na reuniatildeo de apenas duas imagens a do homem

nobre e do cavalo Satildeo esses dois iacutecones654 unidos que simbolizam o poder militar

poliacutetico e econocircmico de mais alto valor da cultura helecircnica

Apoacutes uma retirada em massa dos sobreviventes atenienses o filoacutesofo Soacutecrates teria socorrido Xenofonte que teria caiacutedo do seu cavalo 653 Para Guattari cada indiviacuteduo ou grupo social cria o seu proacuteprio sistema de modelizaccedilatildeo da subjetividade Ou seja uma espeacutecie de cartografia que eacute desenvolvida a partir de inscriccedilotildees cognitivas miacuteticas ritualiacutesticas sintomatoloacutegicas a partir da qual ele demarca a sua posiccedilatildeo como homem no mundo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide GUATTARI F ldquoCaosmose um novo paradigma esteacuteticordquo Satildeo Paulo Editora 34 1992 654 Esse termo vem de eikon (εἰκών) e significa uma representaccedilatildeo imageacutetica Para a semiologia e a semioacutetica o iacutecone eacute um signo que representa outro objeto por semelhanccedila

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A faccedilanha em torno desse lendaacuterio animal marca uma forma de combate que

foi imortalizada por Homero e que tambeacutem fez parte da construccedilatildeo imageacutetica

efetuada pela casta guerreira que assumiu o lugar do rei (aacutenax) com a queda da

antiga realeza micecircnica Esses haacutebeis condutores de carros que satildeo conhecidos

como os primeiros cavaleiros (hippeis)655 de combate na Greacutecia era uma

importante heranccedila de uma estrateacutegia militar que marcou a construccedilatildeo da eacutepica e

da consciecircncia coletiva grega pelo menos dentro do acircmbito da aristocracia que

eram responsaacuteveis por imprimir seus valores para o resto da populaccedilatildeo Segundo o

helenista britacircnico Geoffrey Kirk (KIRK 1962) esses primeiros carros de

combates surgiram no contexto preacute-helecircnico a partir do contato comercial com

algumas culturas da Aacutesia Menor como a civilizaccedilatildeo Hitita por volta do seacuteculo XVI

aC esses povos teriam sido os primeiros a utilizar esses animais nos campos de

batalha Devido aos altos custos na criaccedilatildeo desses animais a arte da equitaccedilatildeo ficou

restrita agrave nobreza

Como vimos anteriormente a construccedilatildeo do heroacutei homeacuterico era baseada em

habilidades individuais que eram decisivas natildeo apenas no campo de batalha mas

para a formaccedilatildeo do homem poliacutetico656 No livro IV da Poliacutetica Aristoacuteteles afirma

que as primeiras constituiccedilotildees baseavam o seu poder militar na cavalaria que era

mantida por uma oligarquia formada por poucos nobres E a partir dessa constataccedilatildeo

podemos encontrar mais um elemento que comprova a relaccedilatildeo dessa classe com o

poder poliacutetico657 Posteriormente com a necessidade de utilizaccedilatildeo da infantaria658

a base estrutural que formava o poder do Estado foi ampliada Natildeo sabemos de fato

como essa transformaccedilatildeo ocorreu mas encontramos alguns indiacutecios fornecidos pelo

proacuteprio filoacutesofo659 que indica que a pressatildeo popular pode ter sido um dos fatores

655 Hippeis (ἱππεύς) cavaleiros que formavam a cavalaria militar grega 656 Para o cientista poliacutetico inglecircs Ernest Barker o sentido do valor do indiviacuteduo foi uma caracteriacutestica do desenvolvimento do pensamento poliacutetico grego antigo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 2 657 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica livro IV 1289 b 658 Ibidem livro III 1280 a nessa passagem o filoacutesofo afirma categoricamente que o desequiliacutebrio entre ricos (minoria) e pobres (maioria) eacute o que vai gerar o deslocamento de poder entre a oligarquia e a democracia A maioria massacrada pela opressatildeo de poucos estimula o processo de disputa de poder poliacutetico com a classe de nobres E com a necessidade de regimentos para o pronto emprego na guerra com outros povos eacute oacutebvio que a aristocracia teve que ceder agraves pressotildees populares Em contrapartida a classe aristocraacutetica abre esse espaccedilo poliacutetico com a prerrogativa de que esses novos membros pudessem participar ativamente na formaccedilatildeo de regimentos para a atuaccedilatildeo na guerra 659 As inuacutemeras derrotas sofridas pelos gregos podem ter sido um dos motivos para ceder agraves pressotildees populares

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que corroborou para essa abertura poliacutetica atraveacutes da necessidade do proacuteprio

governo depender do auxiacutelio cada vez maior de combatentes de outras classes

sociais para compor as fileiras para o emprego na guerra

53 A fala compartilhada

A mudanccedila para essa nova forma de combate ocorre a partir do iniacutecio de VII

a C (ANDREWES 1956) quando os gregos comeccedilaram a utilizar formaccedilatildeo em

falange660 com o uso de armaduras mais pesadas na infantaria e esse poderoso

agrupamento militar era conhecido na antiguidade como a formaccedilatildeo de combate

hoplita As caracteriacutesticas de maior destaque dessa mudanccedila de atuaccedilatildeo no campo

de batalha estatildeo nos seguintes quesitos novo tipo de lanccedila transformaccedilatildeo no

formato do escudo e na formaccedilatildeo de combate em grupo Ao inveacutes de basear a forccedila

da estrateacutegia militar em lutadores individuais como podemos verificar em algumas

partes da Iliacuteada esses guerreiros operavam de modo coletivo atraveacutes da formaccedilatildeo

de um bloco uacutenico Na forma de combate antiga o guerreiro carregava lanccedilas

sobressalentes que eram lanccediladas agrave uma certa distacircncia na direccedilatildeo do seu oponente

A espada soacute era utilizada em um combate mais proacuteximo se por acaso essa teacutecnica

natildeo surtisse o efeito esperado E por esse motivo a armadura para a sua defesa nesse

periacuteodo natildeo era tatildeo elaborada como na forma de combate hoplita Apenas o seu

escudo era a sua maior proteccedilatildeo e ele tinha na parte interna um uacutenico suporte para

apoiar a matildeo que estava conectada a uma espeacutecie de correia que estava amarrada

no pescoccedilo do guerreiro e que ligava ateacute a parte interna do escudo Se fosse

necessaacuterio o combatente poderia deixar a proteccedilatildeo do escudo para penduraacute-lo pela

sua cinta e ter as suas matildeos livres ou se porventura decidir fugir ele poderia

tambeacutem utilizaacute-lo apoiado no cinto para proteger as suas costas durante o

deslocamento A seguir veremos uma descriccedilatildeo da forma de combate antiga que foi

apresentada por Homero no canto XXIII da Iliacuteada Esse duelo entre Diomedes e

660 Phaacutelax (φάλαγξ) Essa eacute uma importante e antiga taacutetica militar de guerreiros que formam um bloco retangular que caminha em direccedilatildeo dos seus inimigos com o intuito de esmaga-los com as lanccedilas e escudos

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Ajax eacute uma simulaccedilatildeo de combate que faz parte dos ritos fuacutenebres dedicados agrave

memoacuteria de Paacutetroclo que foi morto pelas matildeos de Heitor

[HOMERO Iliacuteada] ldquoConvido dois guerreiros dos melhores ambos revestido de arnecircs portando armas de bronze pontiagudo a provar-se um ao outro perante o povo Aquele que primeiro a pele do outro esflorar atraveacutes da couraccedila tirando lhe sangue escuro este a traacutecia espada ganharaacute cravejada de prata por mim conquistada a Asteropeu beliacutessima ambos pugnaratildeo pelo arnecircs de Sapeacuterdon com banquete esplecircndido na tenda honrarei Disse O Telamocircnio Aacutejax se apresenta um gigante Diomedes Tideide fortiacutessimo tambeacutem Os dois em armas saem cada um do lado para o centro convergindo aacutevidos de lutar com mirada veloz De espanto os Aqueus todos pasmam Um contra o outro avanccedilam se acometem trecircs vezes trecircs vezes se entrechocam No escudo panequilibrado Aacutejax golpeia e natildeo chega a atingir a pele encouraccedilada do Tideide este por cima da mega-adarga estava por ferir a gorja do outro com a fulgente lanccedila Ciosos de Aacutejax os Dacircnaos clamam pela suspensa da lide pedindo precircmio igual a ambos Mas ao Tideide Aquiles deu a megaespada com o talim e bainha bem-lavrados Aquiles na arena potildee como disco massa de ferreiro grosseiro lanccedilando-a Eeciatildeo provava a sua forccedila O Peleide depois de ter matado enviou agraves naus o disco mais outros bens Ereto diz para os Argivos apresentem-se aqueles agrave prova concorrer Se o que venccedila possuir feacuterteis fartas glebas mas afastadas ferro por um lustro natildeo vai faltar Pastor ou lavrador agrave polis natildeo teraacute de compra-lo haacute de sobrardquo661

O caraacuteter ritualiacutestico desse duelo revela uma forma de combate que estava

totalmente centrada nas aptidotildees de cada indiviacuteduo No caso da nova formaccedilatildeo em

falange a armadura utilizada para defesa era muito mais elaborada e

consequentemente tambeacutem mais pesada E isso tirava a agilidade do combatente

em um combate de plano mais aberto A peccedila principal nessa nova indumentaacuteria

para guerra era uma couraccedila de metal - ou tiras de metal- que eram totalmente presas

661 HOMERO Iliacuteada canto XXIII v 800-835 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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entre si e que cobriam o peito e a maior parte da barriga A grande novidade estava

na constituiccedilatildeo e no uso do escudo Nesse novo emprego o escudo natildeo tinha um

suporte de ligaccedilatildeo que era conectado no pescoccedilo como vimos anteriormente Na

posiccedilatildeo normal ele apenas cobria o lado esquerdo do corpo do guerreiro pois a

outra parte era utilizada para proteger o lado direito do outro companheiro de armas

que permanecia ao seu lado em uma perfeita linha defensiva O sucesso dessa

estrateacutegia consistia em manter a linha unida a todo custo

Com essa nova taacutetica os guerreiros hoplitas precisavam trabalhar

harmoniosamente em grupo para formar uma espeacutecie de muro intransponiacutevel

durante as incursotildees na frente de batalha Outra caracteriacutestica desse novo escudo

era o fato de ele natildeo proteger totalmente o corpo do usuaacuterio Ou seja ele era um

fardo que precisava ser carregado para manter a proteccedilatildeo do seu companheiro e a

formaccedilatildeo firme na linha de frente Se porventura um dos hoplitas tivesse a triste

ideia de fugir ou fraquejar em algum momento ele seria responsaacutevel por colocar

em risco toda a formaccedilatildeo da falange662 A lanccedila que antes era utilizada como um

projeacutetil durante as incursotildees em campo aberto nessa nova taacutetica de combate eacute

utilizada de forma firme na altura que possa atingir o pescoccedilo do oponente na linha

de frente dessa formaccedilatildeo Se por acaso a lanccedila falhar o guerreiro ainda tem a sua

disposiccedilatildeo uma espada curta que pode ser empregada numa circunstacircncia em que o

inimigo esteja mais proacuteximo para um combate corpo-a-corpo

A diferenccedila mais notaacutevel entre as duas formas de combate eacute que o hoplita soacute

pode combater dentro dessa linha de formaccedilatildeo Logo para o sucesso dessa taacutetica eacute

fundamental o perfeito entrosamento entre os membros dessa nova formaccedilatildeo de

combate Outro detalhe notaacutevel eacute que a seguranccedila de cada guerreiro reside na

responsabilidade de todos os membros componentes da linha Essa caracteriacutestica

que se fundamenta na confianccedila e o respeito pelo outro inaugura uma nova

concepccedilatildeo de coragem que seraacute exaltada por poetas como Tirteu e Platatildeo663 O

662 Vide em HEROacuteDOTO ldquoHistoacuteriasrdquo livro IX cap 70 o relato do historiador sobre o que acontecia com um combatente que agia de modo covarde em Esparta 663 Vide PLATAtildeO ldquoLaquesrdquo (181e-183d) Nesse diaacutelogo aleacutem do filoacutesofo apresentar o conceito de coragem (andreiaανδρεια) ele tambeacutem fala sobre a importacircncia desse tipo de treinamento militar (hoplomakhiacuteaὁπλοmicroαχία) na formaccedilatildeo dos jovens atenienses Esse registro eacute de extrema relevacircncia para noacutes pois apresenta alguns pontos sobre essa forma de combate militar Na ldquoRepuacuteblicardquo Livro IV (429 a) o filoacutesofo discorre sobre o conceito de coragem Em DL ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo livro II cap V 2 podemos encontrar a famosa histoacuteria de bravura de Soacutecrates que foi

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homem corajoso dentro desse novo contexto natildeo eacute aquele antigo heroacutei homeacuterico

que prova as suas capacidades singulares no campo de batalha mas naquele que

natildeo recua e que se manteacutem firme na sua posiccedilatildeo protegendo o seu companheiro a

todo custo664 O objetivo dessa nova taacutetica era desarticular as fileiras inimigas mas

para isso ocorrer com maacutexima eficiecircncia era necessaacuteria muita praacutetica de trabalho

em equipe E essa caracteriacutestica eacute responsaacutevel por propiciar uma grande

transformaccedilatildeo nas praacuteticas sociais dos helenos

O antigo meacutetodo de combate que vimos anteriormente nas exposiccedilotildees sobre a

eacutepica homeacuterica estava marcado pela habilidade individual de cada guerreiro665

Mesmo dentro de um combate em massa algum bravo militar como Aquiles por

exemplo poderia atirar a sua lanccedila na direccedilatildeo de um uacutenico inimigo e apoacutes essa

investida e caso esse primeiro ataque natildeo obtivesse ecircxito o duelo era definido

corpo-a-corpo atraveacutes de uma luta entre espadas Dentro desse contexto a

indumentaacuteria para combate tinha que ser mais leve para dar flexibilidade e

velocidade no campo de batalha Eacute importante ressaltar que esse artifiacutecio descrito

nos poemas homeacutericos natildeo apresenta apenas uma construccedilatildeo poeacutetica para dar

destaque aos seus heroacuteis mas ela revela uma forma de combate que antecede ao

periacuteodo de surgimento da formaccedilatildeo em falange da infantaria hoplita A questatildeo que

surge para noacutes eacute quando esse tipo de combate apareceu entre os gregos

Para o historiador inglecircs Antony Andrewes (ANDREWES1956) esse tipo de

formaccedilatildeo taacutetica teria sido utilizado pela primeira vez no iniacutecio do seacuteculo VII no sul

da Greacutecia na regiatildeo do Peloponeso O helenista apoia a sua hipoacutetese em algumas

pinturas antigas e nos fragmentos escritos de Arquiacuteloco e Tirteu666 Esses dois

poetas descrevem algumas cenas em seus versos que fornecem algumas evidecircncias

sobre o emprego da indumentaacuteria hoplita As mudanccedilas ocorridas nessas duas

formas de combate tambeacutem trazem no seu bojo profundas mudanccedilas no contexto

tambeacutem citada por Estrebatildeo Para os fragmentos de Tirteu vide TIRTEU fr 5 que estaacute no seguinte livro BARNSTONE WILLIS ldquoGreek Lyric Poetryrdquo Introduction by William McCulloh New York Bantam Classics 1962 paacuteg 18 664 Ibidem 665 Vide o subcapiacutetulo anterior 666 Sobre esses dois poetas haacute dois livros que apresentam de modo cuidadoso os seus respectivos fragmentos O primeiro eacute BRUNHARA R ldquoAs Elegias de Tirteurdquo Satildeo Paulo Editora Humanitas 2014 E o segundo CORREcircA Paula da Cunha ldquoArmas e Varotildees a guerra na liacuterica de Arquiacutelocordquo Satildeo Paulo Editora Unesp 1998

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soacutecio-poliacutetico grego Como foi visto anteriormente o meacutetodo individual de

combate estaacute inteiramente voltado para o meacutetodo militar da aristocracia no qual a

massa do povo eacute de pouca importacircncia e a responsabilidade dos combates eacute

efetuada unicamente por uma classe de especialistas militares oriundos da nobreza

que podem arcar com as despesas dos equipamentos necessaacuterios para a guerra

Enquanto que o meacutetodo taacutetico da falange precisa de uma base mais ampla um maior

nuacutemero de combatentes treinados e acostumados a atuar de modo coletivo E nesse

contexto natildeo haacute mais espaccedilo para as proezas individuais que antes representava o

ideal de coragem para a nobreza A relaccedilatildeo hieraacuterquica que antes era totalmente

verticalizada nessa nova forma de combate necessita do diaacutelogo e do muacutetuo

respeito entre os irmatildeos de armas Caso contraacuterio seria impossiacutevel estabelecer uma

uniatildeo entre todos os membros da falange

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem

dessa taacutetica entre os gregos mas no periacuteodo claacutessico os hoplitas eram oriundos de

uma espeacutecie de classe meacutedia667 que foi sendo formada por pequenos produtores Haacute

muitas divergecircncias sobre essa questatildeo entres os especialistas de Histoacuteria Antiga668

Eacute notoacuterio que em algumas partes da Iliacuteada669 eacute possiacutevel encontrarmos indicaccedilotildees

sobre o emprego de alguns combates em grupos mas natildeo haacute menccedilatildeo do emprego

dessa estrateacutegia nas obras homeacutericas A partir desses indiacutecios o que podemos

afirmar eacute que esses combates em massas relatados pelo poeta podem ter sido o

embriatildeo para a formaccedilatildeo mais robusta e equipada da famosa falange hoplita

posteriormente De qualquer modo o uacutenico relato que temos mais consistente sobre

essa questatildeo pode ser encontrado em detalhes no livro IV da Poliacutetica de

667 Esse indiacutecio nos leva a hipoacutetese de que o lendaacuterio ldquoreirdquo Iacuteon possa ter sido um guerreiro pertencente a esse grupo 668 Para o antropoacutelogo escocecircs Andrew Lang eacute possiacutevel encontramos combates em massas na Iliacuteada (XII 105 XII 145-52 XIII 126-33 XVI 212-17 e XVII 354-5) mas a questatildeo eacute saber se essa massa empregada era a famosa falange hopliacutetica Infelizmente natildeo eacute possiacutevel encontrarmos nenhum termo em grego nas epopeias homeacutericas que contribua para afirmar categoricamente que havia esse tipo de taacutetica militar durante o periacuteodo homeacuterico A outra hipoacutetese defendida por Helenistas como GS Kirk eacute que os poemas homeacutericos satildeo camadas de vaacuterios periacuteodos histoacutericos Logo essa formaccedilatildeo hopliacutetica pode ter servido como material poeacutetico Vide KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92 Para os helenistas Murray (1934) e TBL Webster (1958) as descriccedilotildees de combates em grupos teriam sido interpolaccedilotildees feitas posteriormente pelos escribas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro LANG A ldquoThe world of Homerrdquo London 1910 669 Ibidem

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Aristoacuteteles670 A nossa hipoacutetese caminha na seguinte direccedilatildeo a ascensatildeo econocircmica

pode ter sido um dos fatores que desencadearam essa mudanccedila junto com a

necessidade de criar regimentos de combatentes cada vez maiores para as

campanhas militares e consequentemente surge a demanda de mais homens

treinados na arte da guerra Com as novas taacuteticas militares empregadas por outros

povos nos campos de batalha e as crescentes baixas entre os membros da

aristocracia a antiga forma de combate torna-se obsoleta Logo surge a

necessidade de utilizar uma nova taacutetica mais eficiente que possa agregar mais

combatentes

Nesse sentido as pressotildees internas ndash e externas - somada aos altos custos

humanos e materiais para defender a soberania grega podem ter propiciado essa

fissura na antiga constituiccedilatildeo possibilitando uma organizaccedilatildeo poliacutetica mais aberta e

numerosa Eacute importante ressaltar que os equipamentos utilizados para a guerra natildeo

eram fornecidos pelo estado Logo soacute poderiam participar de qualquer atividade

militar apenas aqueles indiviacuteduos que podiam custear as armaduras e armas para o

combate671 Sobre essa questatildeo o helenista francecircs Jean-Pierre Vernant

(VERNANT 1962) acrescenta que a inclusatildeo desse grupo de produtores na esfera

militar possibilitava automaticamente uma ampla atuaccedilatildeo na esfera poliacutetica como

cidadatildeo Eacute bom lembrar que dentro desse contexto histoacuterico grego as palavras

guerreiro e cidadatildeo satildeo sinocircnimas de poliacutetico672 A partir dessas mudanccedilas jaacute era

possiacutevel prever uma grande transformaccedilatildeo dentro da estrutura sociopoliacutetica da

cidade Pois com a sua necessidade de participaccedilatildeo cada vez mais frequente na

guerra essa classe meacutedia emergente comeccedila agora a reivindicar o seu espaccedilo

poliacutetico dentro das decisotildees do estado E consequentemente essa atitude comeccedila a

desconstruir o monopoacutelio poliacutetico mantido anteriormente pela classe dos

aristocratas que fundamentavam o seu status atraveacutes do parentesco sanguiacuteneo com

a religiatildeo tradicional e que por sua vez mantinha laccedilos com a estrutura da antiga

realeza micecircnica

670 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV 671 Eacute importante notar que o estatuto do cidadatildeo tanto no acircmbito militar e poliacutetico estaacute sempre associado com a emancipaccedilatildeo econocircmica 672 Politeacutes (πολιτης) e politikoacutes (πολιτικός) Notem que ambas as palavras satildeo originadas do mesmo radical

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No capiacutetulo IV do livro da Poliacutetica673 Aristoacuteteles afirma que os homens que

pertenciam a essa classe de aristocratas eram soberbos674 A riqueza desmedida

desse pequeno grupo os tornava cegos e totalmente indiferentes agrave pobreza da

maioria da populaccedilatildeo formada por diversos trabalhadores manuais Muito antes de

Marx o filoacutesofo jaacute diagnosticava que essa caracteriacutestica negativa que demonstra

pretensatildeo de superioridade sobre os outros homens era o ponto que gerava

desequiliacutebrio dentro da estrutura sociopoliacutetica grega Para uma classe que detinha

o controle econocircmico e poliacutetico total da cidade isso era um grave erro Some-se a

isso o fato do total desrespeito ndash e despreparo para os mais diversos encargos

poliacuteticos e juriacutedicos - que gerava os mais diversos abusos propiciados pelas regalias

desfrutadas agraves custas do suor do povo A partir dessa constataccedilatildeo Aristoacuteteles no

livro da Retoacuterica675 estabelece uma importante distinccedilatildeo sobre o conceito de

nobreza Para ele haacute uma diferenccedila essencial entre a nobreza de estirpe e a de

caraacuteter A primeira eacute uma espeacutecie de heranccedila convencional (nomos) repassada

pelos antepassados aos seus familiares e que segundo ele tem o poder de

enfraquecer o espiacuterito gerando ambiccedilatildeo e desprezo pelos seus proacuteprios semelhantes

Ou seja esse eacute um tipo de status que natildeo deveria ser herdado por ningueacutem A

verdadeira nobreza eacute aquela oriunda de qualidades naturais (phyacutesis) dispostas em

cada indiviacuteduo e que se expressa atraveacutes de uma boa conduta Infelizmente natildeo era

isso o que o ocorria no passado pois a maioria dos nobres de estirpe eram pessoas

totalmente despreziacuteveis676 Esse orgulho desmedido acabava alimentando a

ambiccedilatildeo desenfreada nos espiacuteritos desses jovens Pois eles ao herdarem o nome e

os bens de suas respectivas famiacutelias tornavam-se pessoas totalmente egoiacutestas e

indiferentes ao sofrimento alheio E mais o acuacutemulo de riquezas comeccedila a atuar

como um paracircmetro valorativo para as demais questotildees da sociedade como por

exemplo o direito de participar como membro da forccedila militar Pois tudo parece

ser comprado atraveacutes da forccedila do dinheiro inclusive a fama e o poder Logo a

luxuacuteria e a ostentaccedilatildeo de poucos afetavam diretamente o senso eacutetico da maioria dos

miseraacuteveis que se amontoavam em diversas partes da cidade Por volta do seacuteculo

673 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV (1289 b e 1295b) 674 Sobre a soberba dos ricos vide PLATAtildeO Leis cap V (742 e) ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 16 (1390 b35) 675 Ibidem 676 ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 15 Vide o nosso comentaacuterio sobre as personagens de Agamecircmnon e Paacuteris

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VII e VI essa crise vai eclodir em uma terriacutevel guerra civil que soacute poderaacute ser

atenuada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon677

Vimos anteriormente que essa criacutetica agrave nobreza de sangue jaacute estava contida

de modo sutil nas obras homeacutericas atraveacutes da relaccedilatildeo entre as personagens de

Aquiles Agamecircmnon e Paacuteris O filoacutesofo macedocircnio parece seguir essa mesma

orientaccedilatildeo sobretudo quando avalia os diversos tipos de constituiccedilotildees poliacuteticas

gregas Eacute importante notarmos que desde Homero ateacute Aristoacuteteles a organizaccedilatildeo

poliacutetica da cidade representa um modo de vida que tem a excelecircncia como um ideal

Logo o cuidado com os outros membros passa a ser algo vital para o bom

funcionamento do estado grego que eacute a expressatildeo de um todo orgacircnico678 A

plenitude existencial de cada indiviacuteduo depende fundamentalmente do equiliacutebrio

pleno da cidade Por isso que filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles tratam a ciecircncia

poliacutetica da sua eacutepoca a partir de uma perspectiva eacutetica679 Por esse prisma eacute possiacutevel

compreendermos a importacircncia do legado homeacuterico para o Teatro e a Filosofia

pois nele podemos encontrar uma visatildeo do homem na plenitude de suas accedilotildees e

relaccedilotildees no meio ambiente em que vive Quando esses pequenos produtores

comeccedilam a ascender economicamente uma nova etapa da histoacuteria poliacutetica grega

comeccedila a ser escrita e declamada Na obra Os trabalhos e os dias do poeta Hesiacuteodo

podemos acompanhar os pormenores dessas transformaccedilotildees que ocorreram no

interior da sociedade helecircnica que impulsionaram esse processo de distanciamento

dos valores da aristocracia Esses trabalhadores que eram explorados comeccedilam a se

organizar em grupos com o intuito de romper os grilhotildees Nesse sentido a poesia

hesioacutedica desempenha dois papeacuteis importantiacutessimos o primeiro eacute de expor a

exploraccedilatildeo sofrida pelos nobres e o segundo estabelecer uma espeacutecie de adesatildeo

entre todas as viacutetimas que sofriam com a exploraccedilatildeo e a escravidatildeo Eacute bem provaacutevel

que esses pequenos produtores que ascenderam economicamente tivessem uma

677 Sobre essa questatildeo vide o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 678 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro I 2 (1253 a 2) III 6 (1278 b 20) Para o filoacutesofo a organizaccedilatildeo da polis eacute uma criaccedilatildeo natural Logo o homem eacute por natureza um animal poliacutetico (zoon politikon ζῷον πολιτικόν) 679 Esse ponto eacute mais um indiacutecio que corrobora a tese de Pierre Hadot que afirma que a praacutetica filosoacutefica atual eacute totalmente distorcida em relaccedilatildeo ao periacuteodo antigo Para essa questatildeo vide o seguinte livro HADOT P ldquoQuest-ce que la philosophie antiquerdquo Paris Gallimard 1995 E tambeacutem BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 6

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relaccedilatildeo de proximidade muito maior com esses outros trabalhadores manuais do

que com os oligarcas Nesse sentido eacute bem provaacutevel que esse pequeno grupo

tomasse a frente nas reivindicaccedilotildees e no diaacutelogo com os bem-nascidos

Na visatildeo de Aristoacuteteles680 a sociedade helecircnica era composta basicamente

entre ricos pobres e outras pessoas que viviam em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria681

Os primeiros estatildeo armados enquanto que a maioria que pertence ao segundo grupo

natildeo possui armas e consequentemente natildeo tem acesso ao poder militar Essa

camada da populaccedilatildeo era formada basicamente por trabalhadores manuais

campesinos artesatildeos e pequenos comerciantes O mais espantoso eacute que essa

multidatildeo natildeo tinha acesso agrave cidadania Logo natildeo tinha o direito de utilizar a

palavra682 para reivindicar as suas demandas Pois como o proacuteprio Aristoacuteteles

apresenta no livro IV da Poliacutetica683 ser cidadatildeo eacute todo aquele que pode participar

ativamente do processo de manutenccedilatildeo do governo Mas o que esses trabalhadores

representavam para a sociedade grega Eacute o que vamos investigar no proacuteximo

paraacutegrafo

No livro III ele formula essa questatildeo de modo retoacuterico ao indagar se os

trabalhadores manuais poderiam ser considerados como cidadatildeos684 ldquoComo esses

trabalhadores natildeo satildeo escravos ou estrangeiros em que categoria poderiacuteamos

classificaacute-losrdquo Na sequecircncia desse capiacutetulo ele tenta encontrar um meio termo

para encontrar uma resposta loacutegica atraveacutes de uma formulaccedilatildeo que visa apresentar

vaacuterias categorias de cidadatildeo De qualquer modo a sua argumentaccedilatildeo natildeo soluciona

o problema exposto O que podemos extrair das suas reflexotildees eacute que o criteacuterio

econocircmico utilizado pela oligarquia685 no lugar da virtude686 eacute o que vai determinar

o acesso dessa minoria ao poder militar que simultaneamente vai aplicar essa

prerrogativa para justificar o controle poliacutetico da cidade Essa distorccedilatildeo vai gerar

uma tensatildeo entre uma minoria que defende esse tipo de constituiccedilatildeo e uma maioria

680 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV 681 Meacuteson (microέσον) E mais uma vez nessa passagem surge a nossa hipoacutetese eacute bem possiacutevel que a figura de Iacuteon tenha surgido dentro desse contexto Mesmo sem Aristoacuteteles citaacute-lo a partir das informaccedilotildees que ele fornece nas suas duas obras (Poliacutetica e a Constituiccedilatildeo dos atenienses) indiacutecios que alimentam a nossa teoria 682 Loacutegos (λόγος) 683 Ibidem livro IV (1283 b) 684 Ibidem livro III (1277 b) 685 Uma plutocracia 686 ἀρετήaretecirc

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de pobres que vai reagir de modo violento apoacutes um longo periacuteodo de escravidatildeo

por diacutevidas ateacute resultar em um novo modelo poliacutetico denominado democracia que

alcanccedilou a sua plenitude apoacutes as reformas do legislador Clistenes Na argumentaccedilatildeo

aristoteacutelica essa nova forma de constituiccedilatildeo eacute um efeito colateral da primeira Ou

seja ela surge de um erro provocado pelos oligarcas Logo ambas natildeo expressam

em sua totalidade a justiccedila suprema em que uma constituiccedilatildeo ideal deveria se pautar

Ele reconhece que nos dois sistemas poliacuteticos o criteacuterio de justiccedila eacute parcial pois

natildeo funciona para todos mas apenas para aqueles que satildeo considerados iguais687

A sua anaacutelise epistemoloacutegica parece estar em total consonacircncia com as criacuteticas que

o seu mestre Platatildeo apresenta sobre esses modelos poliacuteticos no livro VI VII e IV

da Repuacuteblica688 Para o mestre da academia todas as constituiccedilotildees689 poliacuteticas tem

um ciclo vital como qualquer ser vivo690 Ou seja um comeccedilo meio e fim Um

momento de pleno vigor e outro de decadecircncia A oligarquia e a democracia satildeo

degeneraccedilotildees oriundas da aristocracia Utilizando uma formulaccedilatildeo apresentada por

Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias691 ele declara que essa discoacuterdia entre os

nobres e o povo que ele denomina em termos assaz poeacuteticos como uma batalha

entre a raccedila de ferro e de bronze satildeo motivadas pela ganacircncia e o lucro692 Para

Platatildeo assim como Aristoacuteteles a constituiccedilatildeo ideal deveria ser norteada693 pela

virtude As indagaccedilotildees que o filoacutesofo-poeta apresenta na sua Repuacuteblica por

exemplo tentam buscar uma nova forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que respeite esse

princiacutepio para formaccedilatildeo harmocircnica da cidade Eacute notoacuterio que a sua tentativa de

instalar esse governo em Siracusa foi um tremendo fracasso694 Ateacute o periacuteodo

claacutessico a constituiccedilatildeo poliacutetica grega sobretudo em Atenas que mais vigorou foi o

regime democraacutetico que possibilitou a participaccedilatildeo da maioria excluiacuteda na

constituiccedilatildeo oligaacuterquica Eacute importante ressaltar que esse tipo de constituiccedilatildeo

687 ἴσοςisos esse radical vai gerar o termo isonomia (ἰσονοmicroία) Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo ἰσονοmicro-ία Ion -ιη ἡ equal distribution equilibrium balance δυνάmicroεων Alcmaeon 4 cf Ti Locr 99b Epicur Fr 352 II equality of political rights Hdt 380 142 ἰ ποιεῖν Id 537 opp δυναστεία Th 478 ἰ πολιτική Id 382 ἰ ἐν γυναιξὶ πρὸς ἄνδρας καὶ ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας Pl R 563b 688 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo livro VI (488 a-489 a) VIII (544 c ndash 562 a) e IX 689 Seguindo a ordem estabelecida por Platatildeo no livro VIII Aristocracia Timocracia oligarquia democracia e tirania 690 Eacute a partir dessa constataccedilatildeo que Aristoacuteteles vai desenvolver a sua tese da polis como algo natural e tambeacutem do homem como um animal poliacutetico 691 Erga kaiacute Hemeacuterai (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι) 692 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo VIII (547 b) 693 Ibidem livro VIII (556 a-b) 694 PLATAtildeO ldquoCarta VIIrdquo

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tambeacutem sofreu diversas modificaccedilotildees que satildeo expostas e analisadas no livro da

Poliacutetica por Aristoacuteteles

Para o filoacutesofo macedocircnio essa classe meacutedia formada por pequenos

produtores que estava em uma zona intermediaacuteria entre nobres e pobres seraacute em

sua visatildeo695 a mais apta a estabelecer um governo justo para todos os indiviacuteduos na

cidade Mas o ponto central para a nossa presente anaacutelise eacute que ele reconhece que

a durabilidade do regime democraacutetico eacute totalmente dependente da intervenccedilatildeo da

classe meacutedia696 pois esse elemento intermediaacuterio eacute muito mais numeroso e

consistente ao estabelecer a uniatildeo entre ambos os lados - os ricos e pobres - com o

objetivo de evitar que se produzam excessos contraacuterios Para justificar a sua tese o

estagirita tem em mente o terriacutevel incidente que levou Atenas a uma das mais

sangrentas guerras civis que ocorreu entre os seacuteculos VII e VI Por isso que ele

destaca que os melhores legisladores gregos satildeo Soacutelon Licurgo e Carondas697 pois

todos esses homens citados aleacutem de possuiacuterem uma nobreza genuiacutena de caraacuteter

eles tambeacutem se destacaram por atuar com extrema eficiecircncia e coragem em

momentos de crise698 O detalhe mais importante eacute que todos esses poliacuteticos eram

oriundos dessa bendita classe intermediaacuteria Essa explanaccedilatildeo a favor desse regime

poliacutetico a partir do auxiacutelio desses homens do centro ndash que eacute embasada na cuidadosa

anaacutelise histoacuterica efetuada pelo filoacutesofo - indica para noacutes que a grande revoluccedilatildeo699

que ocorreu atraveacutes da reforma hopliacutetica por volta dos seacuteculos VIII e VII pode estar

relacionada com o surgimento do proacuteprio processo democraacutetico A nossa hipoacutetese

695 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV (1295 b) 696 Ibidem livro IV (1296 a) 697 Soacutelon foi um poeta legislador responsaacutevel por estabelecer a primeira base para a fundaccedilatildeo do regime democraacutetico em Atenas Carondas foi um legislador da cidade de Catacircnia na Siacutecilia sul da Itaacutelia por volta do seacuteculo VII aC Licurgo foi um dos espartanos mais famosos na antiguidade Aleacutem de estabelecer o coacutedigo juriacutedico e educacional de Esparta ele tambeacutem foi responsaacutevel por resgatar as obras de Homero que estavam desaparecendo em sua eacutepoca Para mais informaccedilatildeo vide o livro de Plutarco sobre a sua vida 698 Eacute estranho notar que Aristoacuteteles natildeo menciona o legislador Clistenes dentro desse contexto As reformas de Clistenes satildeo mencionadas de modo sucinto na primeira parte da Constituiccedilatildeo dos atenienses 699 Sobre esse ponto haacute duas teses que seguem em direccedilotildees opostas a primeira eacute a que defende que esse processo ocorreu de forma lenta e gradual Para essa linha exegeacutetica vide o seguinte livro M Finley ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 Enquanto que a segunda interpretaccedilatildeo defende que houve de fato uma revoluccedilatildeo a partir do desenvolvimento da tecnologia na aacuterea militar Para essa interpretaccedilatildeo vide as contribuiccedilotildees de Claude Mosseacute no seguinte livro C Mosseacute ldquoA Greacutecia Arcaica de Homero a Eacutesquilordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo M Detienne ldquoLa phalange problegravemes et controversiesrdquo in JP Vernant (Ed) Problegravemes de la guerre en Gregravece Ancienne Paris Eacuteditions EHESS 1985 pp 119-142

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fundamenta-se em dois importantes detalhes fornecidos pelo proacuteprio Aristoacuteteles O

primeiro eacute que a conduta desses grandes homens estava em total consonacircncia com

o ideal de respeito e confianccedila pelo outro que torna um paradigma valorativo e

normativo para todos os gregos ateacute o periacuteodo claacutessico e que tem origem nessa nova

forma de combate hoplita O segundo aspecto e natildeo menos importante eacute o fato de

esses homens serem extremamente respeitados pelos oligarcas e o povo Caso

contraacuterio seria praticamente impossiacutevel solucionar a crise existente entre esses dois

grupos sociais que representavam os pontos mais extremos da cidade Essa

intermediaccedilatildeo foi importante para formaccedilatildeo de uma forccedila militar mais consistente

e numerosa700 Esse aspecto foi responsaacutevel por promover uma abertura poliacutetica que

pode ter sido condicionada como apontamos anteriormente por fatores de ordem

interna e externa Para o primeiro que foi amplamente exposto nos paraacutegrafos

anteriores refere-se ao fato de essa minoria explorar de forma vil a maioria dos

trabalhadores humildes que sustentavam a estrutura econocircmica da cidade Segundo

as fontes fornecidas por Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo701 e

Dioacutegenes de Laeacutercio702 os trabalhadores do campo viviam nas terras desses nobres

de modo muito precaacuterio Em contrapartida esses campesinos tinham que pagar

altiacutessimas taxas para poderem trabalhar no campo Com a dificuldade de plantio

essas famiacutelias criavam altiacutessimas diacutevidas para manter o cultivo e a sua proacutepria

subsistecircncia E para piorar os nobres obrigavam esses trabalhadores a assinarem

um pacto no qual a garantia desse acordo era selada com a proacutepria vida Ou seja

todos aqueles que natildeo pudessem pagar as suas diacutevidas tornavam-se escravos dos

seus credores que os mantinham como um servo permanente em seus lares ou

entatildeo eram postos agrave venda como mercadorias para outras cidades Muitos desses

trabalhadores eram obrigados a entregarem os seus proacuteprios filhos e esposas para

quitarem as suas diacutevidas Essa situaccedilatildeo ficou insustentaacutevel e gerou uma terriacutevel

guerra civil que soacute pocircde ser solucionada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador

Soacutelon

700 E mais uma vez nos vem agrave lembranccedila do lendaacuterio rei general Iacuteon que eacute mencionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo com um dos responsaacuteveis por modificar a constituiccedilatildeo original 701 ARISTOacuteTELES ldquoConstituiccedilatildeo dos Ateniensesrdquo (63) Sobre essa questatildeo vide tambeacutem o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 702 DIOacuteGENES DE LAEacuteRCIO ldquoVida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustresrdquo livro I (53)

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[PLUTARCO Vida de Soacutelon cap IV] ldquoEnquanto maus existem que enriquecem Haacute muitos bons que pobres permanecem Todavia trocar a nossa bondade natildeo desejamos pela vil maldade Pois a virtude eacute firme e perduraacutevel Mas a riqueza incerta e transmudaacutevel703rdquo

Os fatores de ordem externa referem-se agraves constantes guerras entre as

cidades704 vizinhas e as inuacutemeras tentativas de invasotildees de diversos povos como

os persas O mais interessante nesses uacuteltimos aspectos apresentados eacute que essas

cidades que constantemente brigavam entre si em determinado momento se

juntaram para formar um exeacutercito de coalizatildeo contra um inimigo comum705 E esse

fator eacute tambeacutem apontado por vaacuterios helenistas (EHRENBERGER 1968) como um

dos responsaacuteveis para o surgimento do tipo singular de formaccedilatildeo sociopoliacutetica da

polis A partir dessas uacuteltimas consideraccedilotildees eacute possiacutevel nos aproximar na medida

do possiacutevel da mentalidade voltada especificamente para o acircmbito da guerra que

teve as suas maiores mudanccedilas entre o periacuteodo homeacuterico e arcaico

A grande novidade que surge entre essas duas etapas histoacutericas eacute a criaccedilatildeo da

falange hopliacutetica A nova formaccedilatildeo que estabelece uma formaccedilatildeo em linha de

escudos inaugura uma nova concepccedilatildeo de coragem que estaacute totalmente em

consonacircncia com a postura dos homens do meio que foram essenciais para

estabelecer uma uniatildeo poliacutetica na Greacutecia Vimos anteriormente que no periacuteodo

homeacuterico o valor do guerreiro aristocraacutetico estava totalmente voltado para as

faccedilanhas de cunho individual A coacutelera guerreira706 que era inspirada por alguma

703 PLUTARCO ldquoVida dos Homens Ilustresrdquo Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 704 Eacute importante ressaltar que estamos utilizando o sentido de ldquocidaderdquo na sua forma mais ampla que corresponde a um conglomerado de pessoas que habitam no mesmo espaccedilo 705 EHRENBERG Victor ldquoFrom Solon to Socratesrdquo London Methuen 1968 Cap III 706 Lyssa (λύσσα) eacute uma espeacutecie de fuacuteria guerreira Vide Liddel amp Scott λύσσ-α Att λύττα ἡ raiva fuacuteria em Hom sempre de raiva marcial κρατερὴ δέ ἑ λ δέδυκεν Il 9239 λ ἔχων ὀλοήν ib 305 λ δέ οἱ κῆρ αἰὲν ἔχε κρατερή 21542 2 apoacutes Hom furiosa loucura frenesi como foi causada pelos deuses como a de 10 λύσσης πνεύmicroατι microάργῳ A Pr 883 (ANAP) de Orestes Id CH 287 E Ou 254 etc dos Proetides B 10102 de frenesi Baco ἐλαφρὰ λ E Ba 851 θοαὶ Λύσσας κύνες das Fuacuterias ib 977 (LYR) λύσσῃ παράκοπος Ar ordm 680 Strengthd λ microανιάς S Fr 9414 λύττα ἐρωτική Pl Lg 839a λ sozinho de fuacuteria amor Theoc 347 simplesmente raiva Phld IR p77 W fanatismo περὶ τὰς αἱρέσεις Gal 8148 (pl) 3 personificada Λύσσα a deusa da loucura E HF 823 II a raiva em catildees X Uma 5726 Arist HA 604a5 Gal 1296 em cavalos Porph Abst 37 2 o verme sob a liacutengua dos catildees removido da crenccedila de que ela produz raiva Plin HN 29100

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divindade oliacutempica era o leitmotiv para realizaccedilatildeo de atitudes heroicas no campo

de batalha Esse furor despertava uma espeacutecie de ecstasy707 no espiacuterito do

combatente que se lanccedilava de modo totalmente impulsivo e insano em direccedilatildeo do

inimigo Por isso que nesse contexto a coragem estava totalmente centrada no

destaque das accedilotildees individuais Sob outra perspectiva totalmente distinta a falange

hoplita operava na guerra Para eles a coragem natildeo estava mais focada no destaque

pessoal mas na forccedila coletiva A coacutelera beacutelica eacute substituiacuteda pela prudecircncia708 e o

autocontrole Dentro desse novo contexto o domiacutenio dos impulsos709 passa a ser

algo essencial para o estabelecimento de uma moral no qual o sentido de coragem

seraacute pautado no ideal de respeito e solidariedade O primeiro registro histoacuterico

escrito dessa mudanccedila que temos notiacutecia pode ser localizado na obra de

Heroacutedoto710 que foi escrita por volta do seacuteculo IV ac No livro IX o historiador

relata a famosa batalha entre os 300 espartanos contra o exeacutercito persa Nessa

ocasiatildeo o exeacutercito espartano mesmo estando em menor nuacutemero se manteve

totalmente unido e firme na sua posiccedilatildeo como um bloco monoliacutetico formado por

homens e escudos sem recuar da sua posiccedilatildeo no combate Segundo Heroacutedoto

houve apenas um guerreiro espartano chamado Aristodemo que foi humilhado por

seus pares por ter abandonado a formaccedilatildeo durante o combate nas Termoacutepilas Apoacutes

essa censura e com o intuito de reparar a sua falta ele acaba cometendo outro erro

707 Vide Lidell amp Scott Ekstasis (ἔκστασις) εως ἡ (ἐξίστηmicroι) deslocamento ἄρθρων Hp Arte 56 πᾶσα κίνησις ἔ ἐστι τοῦ κινουmicroένου Arist reitor 406b13 mudanccedila εἰς ἀντικείmicroενα Id GA 768a27 αἱ κακίαι ἐ Identidade Ph 247a3 ἔ ἐστιν ἐν τῇ γενέσει τὸ παρὰ φύσιν τοῦ κατὰ φύσιν Id Cael 286a19 ἔ τῆς φύσεως degenerescecircncia Thphr CP 316 opp στάσις Plot 632 o movimento para o exterior ἔ ἀπὸ τοῦ παράγοντος Dam Pr 97 bis ἔ εἰς τὸ ἔξω ib 401 [Σῶmicroα] ἐν ἐκστάσει λαβὸν τὴν ὑπόστασιν Porph Enviei 36 diferenciaccedilatildeo ἔ καὶ πιῆθος Plot 6717 αἱ εἰς πλῆθος ἐ Procl em Ti 2203 D II ficando de lado Arist Rh 1361a37 (pl) b = Lat cessio bonorum 20ii9 CPR (iii dC) ἔ χρηmicroάτων Porph Abst 153 um imposto sobre as cessotildees BGU 9146 (AD ii) PLond 23052 (PTeb P184 ii) 2 distraccedilatildeo da mente de terror espanto raiva etc Hp APH 75 Prorrh 29 ἔ σιγῶσα Id Coac 65 ἔ microανική Arist Gato 10A1 ἔ τῶν λογισmicroῶν Plu Sol 8 Plot νοῦ 537 τὰ microηδὲ προσδοκώmicroεν ἔκστασιν φέρει Men 149 cf Epit 472 Epicur Fr 113 εἰς ἔ ἄγειν Longin 14 3 entrancement espanto Ev Luc 526 EvMarc 542 4 trance ActAp 1010 2217 ecstasy Plot 6911 ἔ καὶ microανία Herm Em PhDr p103A b excitaccedilatildeo de embriaguez Corn ND 30 708 Sophosyne (σωφροσύνη) Vide Lidell amp Scott σωφροσύνη [υ] Dor σωφρον-ύνα Ep e poeta σαοφροσύνη (como em Hom e na poesia depois IG 22363211 3753) ἡ bom juiacutezo prudecircncia discriccedilatildeo Od 2313 em pl ib 30 a forma comum pela primeira vez em Thgn 379 701 1138 Epich 101 αἰδὼς σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει Th 184 σ λαβεῖν Id 864 sanidade opp microανία X Mem 1116 cf ActAp 2625 2 moderaccedilatildeo nos desejos sensuais autocontrole a temperanccedila Democr 210 AR Nu 962 (ANAP) Pl 563 (ANAP) E 1131 Pl PhDr 237e etc σ τὸ κρατεῖν ἡδονῶν καὶ ἐπιθυmicroιῶν Id Smp 196C σ τὸ περὶ τὰς γυναῖκας (sc ἔργον) Arist Pol 1263b9 cf PT 1117b23 Pl Phd 68c R 430E sq 1 EpTi 29 3 em um sentido poliacutetico uma forma moderada de governo Th 864 709 Eacute importante ressaltar que essas caracteriacutesticas podem ser encontradas em Homero 710 Heroacutedoto ldquoHistoacuteriasrdquo IX 70

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ainda mais grave lanccedila-se na direccedilatildeo do inimigo de modo totalmente impulsivo e

egoiacutesta Em detrimento dessa sua impostura ele natildeo obteve as honras fuacutenebres que

os outros guerreiros espartanos receberam apoacutes a morte711 Esse importante registro

revela uma profunda mudanccedila na eacutetica guerreira que ocorreu entre o periacuteodo

homeacuterico e arcaico que vai modular o comportamento sociopoliacutetica dos gregos

Essa nova concepccedilatildeo de coragem revela que o valor de cada indiviacuteduo soacute pode ser

manifestado dentro da reuniatildeo do seu respectivo grupo O desejo de vitoacuteria sobre o

inimigo soacute pode ser obtido atraveacutes da forccedila da amizade712 e do espiacuterito de

comunidade713 A partir dessa perspectiva nos deparamos com a total rejeiccedilatildeo dos

antigos valores aristocraacuteticos Esse indiacutecio indica que a pressatildeo para ocorrer essas

mudanccedilas possam ter sido impulsionadas pelo povo com o auxiacutelio desses homens

do meio A ostentaccedilatildeo e a soberba tornam-se praacuteticas odiosas porque podem

provocar a inveja que levaraacute ao desequiliacutebrio dentro da proacutepria estrutura

sociopoliacutetica da cidade

Essa nova mentalidade inaugura na historiografia grega uma nova forma de

comunicaccedilatildeo que se distanciaraacute da palavra maacutegico-religiosa714oriunda do periacuteodo

micecircnico O processo de laicizaccedilatildeo que ocorre simultaneamente ao lado dessa nova

concepccedilatildeo de combate em grupo torna possiacutevel o surgimento da palavra-diaacutelogo

pois ela eacute diametralmente oposta agrave forma verticalizada e fechada da palavra

maacutegico-religiosa Natildeo havia reciprocidade no ato de comunicaccedilatildeo no periacuteodo da

realeza micecircnica mesmo com a mudanccedila da organizaccedilatildeo poliacutetica esse pequeno

grupo que chegou ao controle da cidade ainda se apoiava nas antigas tradiccedilotildees da

nobreza palaciana Com as draacutesticas mudanccedilas que o ocorreram na mentalidade

grega o processo de comunicaccedilatildeo foi tornando-se mais aberto e plural715 Nesse

sentido a concepccedilatildeo de combate hoplita foi responsaacutevel por promover uma

proximidade entre os homens que soacute pocircde ser alcanccedilada a partir do momento em

que a cidade rompe os laccedilos com os valores da classe aristocraacutetica E essa mudanccedila

711 Ibidem 712 Philia (φιλiacuteα) 713 Koinonia (κοινωνία) 714 Vide o capiacutetulo 1 715 Vide o subcapiacutetulo 37

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vem atraveacutes da nova concepccedilatildeo de coragem que eacute regida pela forccedila da solidariedade

e do diaacutelogo

O ato de compartilhar os despojos de guerra que podemos ver em detalhes na

Iliacuteada de Homero716 eacute uma antiga praacutetica que contribui para o estabelecimento de

viacutenculos de proximidade e respeito muacutetuo entre os guerreiros Essa experiecircncia na

cultura grega foi tatildeo marcante que o surgimento da assembleia717 que surgiu nas

discussotildees entre os guerreiros no campo de batalha acompanharaacute o

desenvolvimento espacial da proacutepria cidade Diferentemente da organizaccedilatildeo

poliacutetica palaciana a nova organizaccedilatildeo arquitetocircnica vai estabelecer uma praccedila no

centro que seraacute aberta a todos os cidadatildeos Essa caracteriacutestica revela a importacircncia

que a palavra compartilhada e discutida ganha na vida do povo helecircnico A praccedila

de reuniatildeo torna-se um centro essencial que nortearaacute os rumos da vida poliacutetica da

polis atraveacutes do diaacutelogo da argumentaccedilatildeo e confronto de ideias No qual a

palavra718 compartilhada atuaraacute como um instrumento poliacutetico Ela seraacute a expressatildeo

da proacutepria soberania grega atraveacutes da democracia e da filosofia socraacutetico-platocircnica

716 Vide Canto I 717 Ekklesia (Εκκλησία) e Aacutegora (ἀγορά) 718 Λόγος Loacutegos Vide os nossos anexos

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Consideraccedilotildees finais

O fim uacuteltimo de toda investigaccedilatildeo filosoacutefica deve contribuir para o

desenvolvimento progressivo de formas melhores para a existecircncia humana719 A

eudaimonia para um autecircntico filoacutesofo grego antigo720 como Platatildeo consiste

exatamente em olhar para o mundo como um imenso espelho721 que reflete a sua

proacutepria imagem que se forma na multiplicidade de cores e texturas que estatildeo

escondidas na beleza invisiacutevel que talvez tenhamos a chance de encontraacute-la quando

estabelecemos uma relaccedilatildeo harmocircnica com o outro atraveacutes do diaacutelogo722 A partir

do acircmbito individual nos deparamos com o movimento que nos impulsiona agrave busca

do conhecimento que em um primeiro momento ocorre de modo solitaacuterio a partir

do reconhecimento de nossa ignoracircncia e que posteriormente mostra ao indiviacuteduo

a sua pobreza e incompletude Essa atitude eacute essencial por um lado para o homem

reconhecer a importacircncia do seu semelhante que segundo Aristoacuteteles723 eacute uma lei

natural que nos obriga a viver em comunidade de modo justo e equilibrado E por

outro essa busca abre o campo de possibilidades que demarca o proacuteprio horizonte

que estabelece a divisatildeo entre o mundo divino e humano

Segundo o filoacutesofo macedocircnio o nosso caraacuteter724 se revela em nossas

accedilotildees725 Logo o nosso senso moral precisa estar afinado com a razatildeo para que

possamos escolher o melhor caminho existencial possiacutevel Nesse sentido a

educaccedilatildeo desempenha uma das mais importantes funccedilotildees na construccedilatildeo de

qualquer sociedade pois eacute ela que fornece ao indiviacuteduo o conhecimento

fundamental para a realizaccedilatildeo de tal objetivo atraveacutes da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica

Para os gregos a sua pedagogia partiu de todas as experiecircncias que se formaram a

partir das inuacutemeras trageacutedias humanas e naturais Elas formam a mateacuteria prima

719 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 720 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo 721 Razatildeoreflexatildeo 722 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e) 723 Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro II 1103b ndash 10 e 25) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo 724 ἔθοςeacutethos 725 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (livro I 10 94 a)

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para a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prezasse pelo fundamento da Beleza que

atuou como um criteacuterio existencial As grandes conquistas e dissabores dos povos

predecessores em seu passado mais remoto foram determinantes para a reuniatildeo de

um imenso banco mnemocircnico que foi uacutetil para a reconfiguraccedilatildeo da cultura helecircnica

apoacutes o longo - e traacutegico - periacuteodo conhecido como a idade das trevas Antes

surgiram trecircs importantes culturas que participaram de modo ativo na reuniatildeo

dessas lembranccedilas que foram empregues na estruturaccedilatildeo cultural grega a saber a

civilizaccedilatildeo ciclaacutedica minoica e micecircnica

Com o amplo trabalho efetuado pelos arqueoacutelogos antropoacutelogos e

historiadores foi possiacutevel encontrarmos uma vasta gama de materiais orgacircnicos e

inorgacircnicos que nos permitiram analisar de perto algumas caracteriacutesticas dessas

sociedades que foram catalogadas e registradas em diversas obras Infelizmente

algumas dessas importantiacutessimas fontes que foram inspiradoras para o iniacutecio dessa

presente pesquisa estavam no antigo Museu Nacional que deveria ser protegido

como um tesouro de maacuteximo valor pelo ministeacuterio da educaccedilatildeo e cultura De modo

inexplicaacutevel todo o nosso vastiacutessimo legado histoacuterico que abrangia objetos de

importantes civilizaccedilotildees antigas que foram reunidas pela famiacutelia imperial foram

consumidos pelo fogo O mesmo poder divino que outrora destruiu a cidade de

Troacuteia veio para nos mostrar que estamos agindo de modo imprudente e desmedido

Diante de tal trageacutedia foi possiacutevel nos aproximar da mesma sensaccedilatildeo de vazio que

outrora devastou Priacuteamo e que nos faz repensar toda a nossa vida em um uacutenico

instante Esse espanto que surge diante do noacutes eacute o mesmo responsaacutevel pelo

nascimento da filosofia726

Segundo Platatildeo e Aristoacuteteles o processo produzido pelo thaacuteuma faz

reconhecer a nossa ignoracircncia que estaacute atrelada diretamente com a nossa fraacutegil

condiccedilatildeo de seres mortais diante das forccedilas dos imortais A filosofia para esses

pensadores eacute fundamentalmente marcada por esse processo social e dialoacutegico que

necessita do contato entre duas almas727 de modo ativo como uma praacutetica

existencial que estaacute conectada com a esfera eacutetica epistecircmica poliacutetica juriacutedica e

pedagoacutegica Diante das consideraccedilotildees apresentadas no segundo capiacutetulo728

726 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 727 Esse mesmo processo pode ser aplicado ao processo de intercacircmbio cultural 728 Vide o subcapiacutetulo 2 1 intitulado A palavra entre os homens e deuses

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pudemos avaliar como o processo reflexivo estava em total sintonia com a luta pela

sobrevivecircncia humana Logo nos deparamos que esse importante processo

intelectual natildeo surgiu como um passe de maacutegica durante o periacuteodo arcaico na

Greacutecia729 E a partir dessas evidecircncias que esses autores antigos fornecem em suas

respectivas obras formamos o nosso itineraacuterio investigativo que nos levou para um

territoacuterio temporal que ainda eacute desconhecido entre muitos estudantes da aacuterea da

filosofia antiga

Durante o desenvolvimento desse presente trabalho foi necessaacuterio questionar

por exemplo como ocorreu esse processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva

helecircnica E como foi exposto por noacutes anteriormente a nossa cartografia precisou

criar um caminho metodoloacutegico e estrateacutegico que nos levou diretamente para o

periacuteodo preacute-histoacuterico grego Atraveacutes do meacutetodo comparativo pudemos avaliar a

imensa riqueza dos materiais arqueoloacutegicos disponiacuteveis que foram descobertos

inicialmente pelos estudos do alematildeo Heinrich Schliemann e o britacircnico Arthur

Evans Consequentemente essas provas foram cotejadas ao lado da extensa

tradiccedilatildeo mito-poeacutetico que construiu um legado importante que reuacutene em suas

narrativas os traccedilos mais essecircncias dessas culturas predecessoras que foram

selecionadas com precisatildeo para a elevaccedilatildeo de sua proacutepria identidade cultural que

foi mantida pela poesia E nesse sentido a obra de Homero e Hesiacuteodo foram

basilares para avaliar a importacircncia desse legado que foi construiacutedo atraveacutes da

tradiccedilatildeo oral

A primeira evidecircncia que encontramos no meio desse caminho foi o caraacuteter

de mesticcedilagem730 que eacute um traccedilo diga-se de passagem detectaacutevel em todas as

culturas que antecederam os gregos Outro ponto interessante que encontramos no

decorrer desse estudo foi a descoberta que nos mostrou que a mitologia helecircnica

foi constituiacuteda durante um longo processo que se iniciou na preacute-histoacuteria grega

(NILSSON 1973) ou seja um periacuteodo muito mais recuado do que aquele

denominado por alguns historiadores como a fase preacute-homeacuterica A partir dessa

constataccedilatildeo eis que surge a seguinte questatildeo como foi possiacutevel diante de vaacuterios

processos de transiccedilatildeo e decliacutenio algumas carateriacutesticas culturais desses povos mais

antigos sobreviverem atraveacutes da mitologia ateacute depois do periacuteodo claacutessico E esse

729 Vide a tese do milagre grego defendida pelo classicista escocecircs John Burnet 730 Cruzamento eacutetnico

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problema foi um dos pontos centrais e mais interessantes que foi exposto em nossa

tese Primeiramente porque atraveacutes dele podemos compreender a grandiosidade e

a singularidade do processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega O mito

eacutepos loacutegos e o diaacutelogo satildeo os principais aspectos do longo e complexo processo de

expressatildeo e reflexatildeo que passa por diversas transformaccedilotildees para corresponder

eficientemente a cada um dos seus respectivos contextos histoacutericos Ao analisarmos

esses modos foi possiacutevel delinear a grandiosidade e a riqueza desse imenso legado

que estaacute reunido na obra homeacuterica e hesiodica

A figura responsaacutevel por manter e proteger esse tesouro humano era o aedo

A sua fama e gloacuteria ao contraacuterio dos nossos poetas modernos que se destacam

atraveacutes de suas criaccedilotildees que tentam buscar algo novo era construiacuteda na utilizaccedilatildeo

desse material tradicional mais antigo de modo original e encantador A assinatura

dos grandes aedos como Homero surgia a partir de uma releitura minuciosa de todo

esse banco mnemocircnico que permitia uma identificaccedilatildeo imediata entre todos os seus

respectivos ouvintes Nesse sentido o pleno domiacutenio das regras musicais foi

essencial para o alcance desse objetivo de manter todo o precioso legado cultural

vivo entre seus pares Esse fenocircmeno de origem divina731 para os gregos surgiu na

remota civilizaccedilatildeo ciclaacutedica e foi expandida na civilizaccedilatildeo minoica e micecircnica e

exerceu uma profunda influecircncia no processo de subjetividade grego

O uso de instrumentos musicais revela o domiacutenio de um profundo

conhecimento da harmonia que eacute uma lei necessaacuteria para ordenar o encadeamento

dos acordes que ocorre na relaccedilatildeo ou seja no diaacutelogo entre o uso da voz e dos

instrumentos musicais732 Nesse sentido nos deparamos com mais uma evidecircncia

que prova que esse tipo de estudo eacute bem anterior ao surgimento da teoria harmocircnica

de Pitaacutegoras733 E eis que surge a questatildeo como poderiacuteamos avaliar o valor desse

antigo conhecimento na cultura grega O valor dessa heranccedila pode ser mensurado

atraveacutes da estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica que acompanhou todo o processo de

731 Ou seja natildeo humana 732 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (108 b) 733 A nossa hipoacutetese eacute de que o grandes Pitaacutegoras e outros importantes pensadores desse fenocircmeno fiacutesico como Aristoxeno partiram desse imenso legado para o desenvolvimento dos seus respectivos estudos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o nosso terceiro capiacutetulo

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florescimento literaacuterio grego O hexacircmetro dactiacutelico734 por exemplo aleacutem de

fornecer um mecanismo eficiente para as apresentaccedilotildees puacuteblicas dos aedos

tambeacutem estabelecia o proacuteprio sentido da poesia heroica A muacutesica como o

diaacutelogo735 opera por esse jogo de contraste 736 entre a tensatildeo e o ajuste entre o

ritmo e a melodia Essas satildeo as mesmas leis do pensamento que estatildeo na concepccedilatildeo

original do diaacutelogo que encontramos nas obras de Platatildeo737

Dentro desse contexto podemos nos aproximar desse magniacutefico mecanismo

que revela o processo de construccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem grega que

foi aprimorada atraveacutes da muacutesica Como foi exposto em diversas partes desse

presente trabalho a fala extraordinaacuteria inspirada pelos deuses foi o criteacuterio inicial

para a organizaccedilatildeo do mundo ordinaacuterio humano Vale ressaltar que essa capacidade

foi esculpida e ampliada em seu mais extenso uso dentro da tradiccedilatildeo oral que

exerceu a sua posiccedilatildeo de destaque ateacute o ressurgimento da escrita no periacuteodo arcaico

Como ressaltou a professora Flora em sua pesquisa sobre a muacutesica helecircnica

(LEVIN 2014) os gregos podem ter desenvolvido desde a infacircncia uma capacidade

extraordinaacuteria que foram encontradas em outras culturas aacutegrafas738 do ouvido

absoluto e relativo Pois para o alcance da excelecircncia e efetividade739 dessa

atividade se faz necessaacuterio uma educaccedilatildeo que fosse voltada para expandir a

capacidade dos sentidos que foi responsaacutevel por ampliar o processo subjetivo

coletivo grego E essa faceta tambeacutem era empregada natildeo apenas no processo

comunicativo mas sobretudo para a formaccedilatildeo militar

Uma importante referecircncia que corrobora com essa hipoacutetese pode ser

encontrada no segundo livro da Repuacuteblica740 no qual o filoacutesofo afirma que a poesia

fazia parte do primeiro processo musical que se iniciava na infacircncia antes da

734 Hexacircmetro dactiacutelico do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida Eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico utilizado na cultura oral Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica grega e latina 735 A muacutesica assim como o diaacutelogo necessita estabelecer esse contato entre duas almas para encontrarem o seu proacuteprio sentido expressivo 736 O uso do Oxiacutemoro (ὀξύmicroωρον esse termo que eacute formado por ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) ou paradoxismo eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo palavras que exprimem ideias contraacuterias Ela eacute considerada uma figura de linguagem que eacute um traccedilo que encontramos na muacutesica que marcou - como foi ressaltado por noacutes anteriormente - profundamente o processo de subjetividade grego Vide os fragmentos de Heraacuteclito 737 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e 146 a 190 a) 738 Vide as nossas consideraccedilotildees no subcapiacutetulo 36 739 Vide as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto em nosso primeiro capiacutetulo 740 Vide Platatildeo Repuacuteblica (377 a) e as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto no subcapiacutetulo 37

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ginaacutestica741 Nesse sentido ele acompanhou todos os meandros dessa antiga

tradiccedilatildeo pedagoacutegica para desenvolver criticamente o seu meio de expressatildeo

filosoacutefico atraveacutes do diaacutelogo que por outro lado eacute a imagem de sua proacutepria

pedagogia Esse meio de expressatildeo ganha a sua plenitude apoacutes a abertura

democraacutetica742 que possibilitou entre os cidadatildeos o uso de um importante

instrumento linguiacutestico que visava manter a sua proacutepria soberania poliacutetica atraveacutes

do ideal de igualdade

741 Na antiguidade era os dois principais toacutepicos da formaccedilatildeo pedagoacutegica grega 742 A partir da intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon e das reformas de Clistenes

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9 Anexos

Mapa Grego ndash Idade do Bronze

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Tabela Cronoloacutegica

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O tocador de harpa

O tocador de harpa (Badisches Landesmuseum Karlsruhe Alemanha inventaacuterio B 864 maacutermore H 135 cm L 57 cm D 109 cm) essa eacute uma figura da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica idade do bronze do iniacutecio do periacuteodo ciacuteclico II que foi encontrada no iniacutecio do seacuteculo 19 em uma sepultura na ilha grega de Santorini e posteriormente foi comprada em 1840 por F Maler na Itaacutelia e desde 1853 estaacute na coleccedilatildeo do Badisches Landesmuseum

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Disco de Phaistos

Esse artefato foi encontrado no palaacutecio minoico de Phaistos pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier em 1908 Essa peccedila pertence ao meio ou final do periacuteodo de Bronze

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Sacerdotiza minoica

Figura de um ritual (idade do Bronze) que foi encontrada Sarcoacutefago de Hagia Triada que pertencia a realeza minoica A foacuterminx era um instrumento similar agrave ciacutetara Poreacutem esse instrumento aleacutem de menor tinha um som menos robusto do que a ciacutetara O usos desses dois instrumentos aparecem nos poemas homeacutericos

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As ocorrecircncias do termo loacutegos na liacutengua grega

Λόγος ὁ verbal noun of λέγω (B) with senses corresponding to λέγω (B) II and III (on the various senses of the word v Theo Sm pp7273 H AnOx 4327 ) common in all periods in Prose and Verse exc Epic in which it is found in signf derived from λέγω (B) 111 cfinfr VI 1 a I computation reckoning (cf λέγω (B) II) 1 account of money handled σανίδες εἰς ἃς τὸν λ ἀναγράφοmicroεν IG 12374191 ἐδίδοσαν τὸν λ ib 2322 λ δώσεις τῶν microετεχείρισας χρηmicroάτων Hdt 3142 cf 143 οὔτε χρήmicroατα διαχειρίσας τῆς πόλεως δίδωmicroι λ αὐτῶν οὔτε ἀρχὴν ἄρξας οὐδεmicroίαν εὐθύνας ὑπέχω νῦν αὐτῆς Lys 2426 λ ἀπενεγκεῖν Arist Ath 541 ἐν ταῖς εὐθύναις τοῦ τοιούτου λ ὑπεχέτω Pl Lg 774b τὸν τῶν χρηmicroάτων λ παρὰ τούτων λαmicroβάνειν D 847 ἀδικήmicroατα εἰς ἀργυρίου λ ἀνήκοντα Din 160 συνᾶραι λόγον microετά τινος settle accounts with EvMatt 1823 etc δεύτεροι λ a second audit CodJust 14261 ὁ τραπεζιτικὸς λ banking account Theo Sm p73 H metaph οὐκ ἂν πριαίmicroην οὐδενὸς λ βροτόν S Aj 477 b public accounts i e branch of treasury ἴδιος λ in Egypt OGI 1882 1893 66938 also as title of treasurer ib 4084 Str 17112 ὁ ἐπὶ τῶν λ IPE 229 A ( Panticapaeum ) δηmicroόσιος λ = Lat fiscus OGI 66921 (Egypt i AD ) etc (but later = aerarium CodJust 1515 ) also Καίσαρος λ OGI 66930 κυριακὸς λ ib 18 2 generally account reckoning microὴ φῦναι τὸν ἅπαντα νικᾷ λ excels the whole account ie is best of all S OC 1225 (lyr) δόντας λ τῶν ἐποίησαν accounting for ie paying the penalty for their doings Hdt 8100 λ αἰτεῖν Pl Plt 285e λ δοῦναι καὶ δέξασθαι Id Prt 336c al λαmicroβάνειν λ καὶ ἐλέγχειν Id Men 75d παρασχεῖν τῶν εἰρηmicroένων λ Id R 344d λ ἀπαιτεῖν D 3015 cf Arist EN 1104a3 λ ὑπέχειν δοῦναι D 1995 λ ἐγγράψαι Id 24199 al λ ἀποφέρειν τῇ πόλει Aeschin 322 cf Eu Luc 162 EpHebr 1317 τὸ παράδοξον τῶν συmicroβεβηκότων ὑπὸ λόγον ἄγειν Plb 15342 λ ἡ ἐπιστήmicroη πολλὰ δὲ ὁ λ the account is manifold Plot 694 ἔχων λόγον τοῦ διὰ τί an account of the cause Arist APo 74b27 ἐς λ τινός on account of ἐς χρηmicroάτων λ Th 346 cf Plb 5896 LXX 2 Ma 114 JRS 18152 ( Jerash ) λόγῳ c gen by way of CodJust 325 al κατὰ λόγον τοῦ microεγέθους if we take into account his size Arist HA 517b27 πρὸς ὃν ἡmicroῖν ὁ λ EpHebr 413 cf DChr 31123 3 measure tale (cf infr 111 ) θάλασσα microετρέεται ἐς τὸν αὐτὸν λ ὁκοῖος πρόσθεν Heraclit 31 ψυχῆς ἐστι λ ἑαυτὸν αὔξων Id 115 ἐς τούτου (sc γήραος ) λ οὐ πολλοί τινες ἀπικνέονται to the point of old age Hdt 399 cf 79 β ὁ ξύmicroπας λ the full tale Th 756 cf EpPhil 415 κοινῷ λ νοmicroίσαντα common measure Pl Lg 746e sum total of expenditure IG 42(1)103151 (Epid iv BC ) ὁ τῆς οὐσίας λ = Lat patrimonii modus CodJust 151220 4 esteem consideration value put on a person or thing (cf infr VI 2 d) οὗ πλείων λ ἢ τῶν ἄλλων who is of more worth than all the rest Heraclit 39 βροτῶν λ οὐκ ἔσχεν οὐδέν A Pr 233 ου σmicroικροῦ λ S OC 1163 freq in Hdt Μαρδονίου λ οὐδεὶς γίνεται 8102 τῶν ἦν ἐλάχιστος ἀπολλυmicroένων λ 4135 cf E Fr 94 περὶ ἐmicroοῦ οὐδεὶς λ Ar Ra 87 λόγου οὐδενὸς γίνεσθαι πρός τινος to be of no account repute with Hdt 1120 cf 4138 λόγου ποιήσασθαί τινα make one of account Id 133 ἐλαχίστου πλείστου λ εἶναι to be highly lowly esteemed Id 1143 3146 but also λόγον τινὸς ποιεῖσθαι like Lat rationem habere alicujus make account of set a value on Democr 187 etc usu in neg statements οὐδένα λ ποιήσασθαί τινος Hdt 14

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cf 13 Plb 21149 etc λ ἔχειν Hdt 162 115 λ ἴσχειν περί τινος Pl Ti 87c λ ἔχειν περὶ τοὺς ποιητάς Lycurg 107 λ ἔχειν τινός D 18199 Arist EN 1102b32 Plu Phil 18 (but also have the reputation of v infr VI 2 e) ἐν οὐδενὶ λ ποιήσασθαί τι Hdt 350 ἐν οὐδενὶ λ ἀπώλοντο without regard Id 970 ἐν σmicroικρῷ λ εἶναι Pl R 550a ὑmicroεῖς οὔτ ἐν λ οὔτ ἐν ἀριθmicroῷ Orac ap Sch Theoc 1448 ἐν ἀνδρῶν λ [εἶναι] to be reckoned count as a man Hdt 3120 ἐν ἰδιώτεω λόγῳ καὶ ἀτίmicroου reckoned as EusMynd Fr 59 σεmicroνὸς εἰς ἀρετῆς λ καὶ δόξης D 19142 II relation correspondence proportion 1 generally ὑπερτερίης λ relation (of gold to lead) Thgn 418 = 1164 πρὸς λόγον τοῦ σήmicroατος A Th 519 κατὰ λόγον προβαίνοντες τιmicroῶσι in inverse ratio Hdt 1134 cf 736 κατὰ λ τῆς ἀποφορῆς Id 2109 τἄλλα κατὰ λ in like fashion Hp VM 16 Prog 17 c gen κατὰ λ τῶν πρόσθεν ib 24 κατὰ λ τῶν ἡmicroερῶν Ar Nu 619 κατὰ λ τῆς δυνάmicroεως X Cyr 8611 ἐλάττω ἢ κατὰ λ Arist HA 508a2 cf PA 671a18 ἐκ ταύτης ἐγένετο ἐκείνη κατὰ λ Id Pol 1257a31 cf εὔλογος sts with ὁ αὐτός added κατὰ τὸν αὐτὸν λ τῷ τείχεϊ in fashion like to Hdt 1186 περὶ τῶν νόσων ὁ αὐτὸς λ analogously Pl Tht 158d cf Prm 136b al εἰς τὸν αὐτὸν λ similarly Id R 353d κατὰ τὸν αὐτὸν λ in the same ratio IG 12768 by parity of reasoning Pl Cra 393c R 610a al ἀνὰ λόγον τινός τινί Id Ti 29c Alc 2145d τοῦτον ἔχει τὸν λ πρὸς ὃν ἡ παιδεία πρὸς τὴν ἀρετήν is related to as Procl in Euc p20 F al 2 Math ratio proportion ( ὁ κατ ἀνάλογον λ λ τῆς ἀναλογίας Theo Sm p73 H) Pythag 2 ἰσότης λόγων Arist EN 113a31 λ ἐστὶ δύο microεγεθω ν ἡ κατὰ πηλικότητα ποιὰ σχέσις Euc 5 Def 3 τῶν ἁρmicroονιῶν τοὺς λ Arist Metaph 985b32 cf 1092b14 λόγοι ἀριθmicroῶν numerical ratios Aristox Harm p32 M τοὺς φθόγγους ἀναγκαῖον ἐν ἀριθmicroοῦ λ λέγεσθαι πρὸς ἀλλήλους to be expressed in numerical ratios Euc SectCan Proeumlm in Metre ratio between arsis and thesis by which the rhythm is defined Aristox Harm p34 M ἐὰν ᾖ ἰσχυροτέρα τοῦ αἰσθητηρίου ἡ κίνησις λύεται ὁ λ Arist de An 424a31 ἀνὰ λόγον analogically Archyt 2 ἀνὰ λ microερισθεῖσα [ἡ ψυχή] proportionally Pl Ti 37a so κατὰ λ Men 3196 πρὸς λόγον in proportion Plb 6303 9153 (but πρὸς λόγον ἐπὶ στενὸν συνάγεται narrows uniformly Sor 19 cf DioclFr 171 ) ἐπὶ λόγον IG 5(1)1428 ( Messene ) 3 Gramm analogy rule τῷ λ τῶν microετοχικῶν τῆς συγκοπῆς by the rule of the participles of syncope Choerob in Theod 175 Gaisf 1377 H εἰπέ microοι τὸν λ τοῦ Αἴας Αἴαντος τουτέστι τον κανόνα AnOx 4328 III explanation 1 plea pretext ground ἐκ τίνος λ A Ch 515 ἐξ οὐδενὸς λ S Ph 731 ἀπὸ παντὸς λ Id OC 762 χὠ λ καλὸς προσῆν Id Ph 352 σὺν ἀφανεῖ λ Id OT 657 (lyr vl λόγων ) ἐν ἀφανει λ Antipho 559 ἐπὶ τοιούτῳ λ Hdt 6124 κατὰ τίνα λ on what ground Pl R 366b οὐδὲ πρὸς ἕνα λ to no purpose Id Prt 343d ἐπὶ τίνι λ for what reason X HG 2219 τὸν λ τοῦτον this ground of complaint Aeschin 3228 τίνι δικαίῳ λ what just cause is there Pl Grg 512c τίνι λ on what account ActAp 1029 κατὰ λόγον ἂν ἠνεσχόmicroην ὑmicroῶν reason would that ib 1814 λ ἔχειν with personal subject εἶχον ἄν τινα λ I (ie my conduct) would have admitted of an explanation Pl Ap 31b τὸν ὀρθὸν λ the true explanation ib 34b b plea case in Law or argument (cf VIII I) τὸν ἥττω λ κρείττω ποιεῖν to make the weaker case prevail ib 18b al Arist Rh 1402a24 cf Ar Nu 1042 (pl) personified ib 886 al ἀmicroύνεις τῷ τῆς ἡδονῆς λ Pl Phlb 38a ἀνοίσεις τοὺς λ αὐτῶν πρὸς τὸν θεόν LXX Ex 1819 ἐχειν λ πρός τινα to have a case ground of action against ActAp 1938 2 statement of a theory argument οὐκ ἐmicroεῦ ἀλλὰ τοῦ λ ἀκούσαντας prob in Heraclit 50 λόγον ἠδὲ νόηmicroα ἀmicroφὶς ἀληθείης discourse and reflection on reality Parm 850 δηλοῖ οὗτος ὁ λ ὅτι Democr 7 οὐκ ἔχει λόγον

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it is not arguable ie reasonable S El 466 Pl Phd 62d etc ἔχει λ D 4432 οὐδεὶς αὐτὰ καταβαλεῖ λ E Ba 202 δίκασον τὸν λ ἀκούσας Pl Lg 696b personified φησὶ οὗτος ὁ λ ib 714d cf Sph 238b Phlb 50a ὡς ὁ λ (sc λέγει ) Arist EN 1115b12 ὡς ὁ λ ὁ ὀρθὸς λέγει ib 1138b20 cf 29 ὁ λ θέλει προσβιβάζειν Phld Rh 141 cf 119 S οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου ἀποτρέποντος Arist EN 1179b27 λ καθαίρων Aristo Stoic 188 λόγου τυγχάνειν to be explained Phld Mus p77 K ὁ τὸν λ microου ἀκούων my teaching EvJo 524 ὁ προφητικὸς λ collect of VT prophecy 2 EpPet 119 pl ὁκόσων λόγους ἤκουσα Heraclit 108 οὐκ ἐπίθετο τοῖς ἐmicroοῖς λ Ar Nu 73 of arguments leading to a conclusion ( ὁ λ ) Pl Cri 46b τὰ αναξαγόρου βιβλία γέmicroει τούτων τῶν λ Id Ap 26d λ ἀπὸ τῶν ἀρχῶν ἐπὶ τὰς ἀρχάς Arist EN 1095a31 συλλογισmicroός ἐστι λ ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν κτλ Id APr 24b18 λ ἀντίτυπός τε καὶ ἄπορος of a self-contradictory theory Plot 687 b ὁ περὶ θεῶν λ title of a discourse by Protagoras DL 954 ὁ αχιλλεὺς λ name of an argument ib 23 ὁ αὐξόmicroενος λ Plu 2559b καταβάλλοντες (sc λόγοι ) title of work by Protagoras SE M 760 λ σοφιστικοί Arist SE 165a34 al οἱ microαθηmicroατικοὶ λ Id Rh 1417a19 etc οἱ ἐξωτερικοὶ λ current outside the Lyceum Id Ph 217b31 al ∆ισσοὶ λ title of a philosophical treatise (= Dialex ) Λ καὶ Λογίνα name of play of Epicharmus quibble argument personified Ath 8338d c in Logic proposition whether as premiss or conclusion πρότασίς ἐστι λ καταφατικὸς ἢ ἀποφατικός τινος κατά τινος Arist APr 24a16 d rule principle law as embodying the result of λογισmicroός Pi O 222 P 135 N 431 πείθεσθαι τῷ λ ὃς ἄν microοι λογιζοmicroένῳ βέλτιστος φαίνηται Pl Cri 46b cf c ἡδονὰς τοῖς ὀρθοῖς λ ἑποmicroένας obeying right principles Id Lg 696c προαιρέσεως [ἀρχὴ] ὄρεξις καὶ λ ὁ ἕνεκά τινος principle directed to an end Arist EN 1139a32 of the final cause ἀρχὴ ὁ λ ἔν τε τοῖς κατὰ τέχνην καὶ ἐν τοῖς φύσει συνεστηκόσιν Id PA 639b15 ἀποδιδόασι τοὺς λ και τὰς αἰτίας οὗ ποιοῦσι ἑκάστου ib 18 [ τέχνη] ἕξις microετὰ λ ἀληθοῦς ποιητική Id EN 1140a10 ὀρθὸς λ true principle right rule ib 1144b27 1147b3 al κατὰ λόγον by rule consistently ὁ κατὰ λ ζῶν Pl Lg 689d cf Ti 89d τὸ κατὰ λ ζῆν opp κατὰ πάθος Arist EN 1169a5 κατὰ λ προχωρεῖν according to plan Plb 1203 3 law rule of conduct ᾧ microάλιστα διηνεκῶς ὁmicroιλοῦσι λόγῳ Heraclit 72 πολλοὶ λόγον microὴ microαθόντες ζῶσι κατὰ λόγον Democr 53 δεῖ ὑπάρχειν τὸν λ τὸν καθόλου τοῖς ἄρχουσιν universal principle Arist Pol 1286a17 ὁ νόmicroος λ ὢν ἀπό τινος φρονήσεως καὶ νοῦ Id EN 1180a21 ὁ νόmicroος ἔmicroψυχος ὢν ἑαυτῷ λ conscience Plu 2780c τὸν λ πρόχειρον ἔχειν precept Phld Piet 30 cf 102 ὁ προστακτικὸς τῶν ποιητέων ἢ microὴ λ κοινός MAnt 44 4 thesis hypothesis provisional ground ὡς ἂν εἰ λέγοι λόγον maintain a thesis Pl Prt 344b ὑποθέmicroενος ἑκάστοτε λ provisionally assuming a proposition Id Phd 100a τὸν τῆς ὁmicroοιότητος λ hypothesis of equivalence Arist Cael 296a20 5 reason ground πάντων γινοmicroένων κατὰ τὸν λ τόνδε Heraclit 1 οὕτω βαθὺν λ ἔχει Id 45 ἐκ λόγου opp microάτην Leucipp 2 microέγιστον σηmicroεῖον οὗτος ὁ λ Meliss 8 [ἐmicroπειρία] οὐκ ἔχει λ οὐδένα ὧν προσφέρει has no grounds for Pl Grg 465a microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης θείας Id Sph 265c ἡ microετα λόγου ἀληθὴς δόξα ( ἐπιστήμη ) Id Tht 201c λόγον ζητοῦσιν ὧν οὐκ ἔστι λ proof Arist Metaph 1011a12 οἱ ἁπάντων ζητοῦντες λ ἀναιροῦσι λ Thphr Metaph 26 6 formula (wider than definition but freq equivalent thereto) term expressing reason λ τῆς πολιτείας Pl R 497c ψυχῆς οὐσία τε καὶ λ essential definition Id Phdr 245e ὁ τοῦ δικαίου λ Id R 343a τὸν λ τῆς οὐσίας ib 534b cf Phd 78d τὰς πολλὰς ἐπιστήmicroας ἑνὶ λ προσειπεῖν Id Tht 148d ὁ τῆς οἰκοδοmicroήσεως λ ἔχει τὸν

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τῆς οἰκίας Arist PA 646b3 τεθείη ἂν ἴδιον ὄνοmicroα καθ ἕκαστον τῶν λ Id Metaph 1006b5 cf 1035b4 πᾶς ὁρισmicroὸς λ τίς ἐστι Id Top 102a5 ἐπὶ τῶν σχηmicroάτων λ κοινός generic definition Id de An 414b23 ἀκριβέστατος λ specific definition Id Pol 1276b24 πηγῆς λ ἔχον Ph 2477 τὸ ᾠὸν οὔτε ἀρχῆς ἔχει λ fulfils the function of Plu 2637d λ τῆς microίξεως formula i e ratio (cf supr II) of combination Arist PA 642a22 cf Metaph 993a17 7 reason law exhibited in the world-process κατὰ λόγον by law κόσmicroῳ πάντα καὶ κατὰ λ ἔχοντα Pl R 500c κατ τὸν ampλταὐτὸν αὖampγτ λ by the same law Epich 17018 ψυχῆς τὸ πᾶν τόδε διοικούσης κατὰ λ Plot 2313 esp in Stoic Philos the divine order τὸν τοῦ παντὸς λ ὃν ἔνιοι εἱmicroαρmicroένην καλοῦσιν Zeno Stoic 124 τὸ ποιοῦν τὸν ἐν [τῇ ὕλῃ] λ τὸν θεόν ibid cf 42 ὁ τοῦ κόσmicroου λ ChrysippStoic 2264 λόγος = φύσει νόmicroος Stoic 2169 κατὰ τὸν κοινὸν θεοῖς καὶ ἀνθρώποις λ MAnt 753 ὁ ὀρθὸς λ διὰ πάντων ἐρχόmicroενος ChrysippStoic 34 so in Plot τὴν φύσιν εἶναι λόγον ὃς ποιεῖ λ ἄλλον γέννηmicroα αὑτοῦ 382 b σπερmicroατικὸς λ generative principle in organisms ὁ θεὸς σπ λ τοῦ κόσmicroου Zeno Stoic 128 usu in pl Stoic 2205 314 al γίνεται τὰ ἐν τῷ παντὶ οὐ κατὰ σπερmicroατικούς ἀλλὰ κατὰ λ περιληπτικούς Plot 317 cf 4439 so without σπερmicroατικός ὥσπερ τινὲς λ τῶν microερῶν CleanthStoic 1111 οἱ λ τῶν ὅλων Ph 19 c in Neo-Platonic Philos of regulative and formative forces derived from the intelligible and operative in the sensible universe ὄντων microειζόνων λ καὶ θεωρούντων αὑτοὺς ἐγὼ γεγέννηmicroαι Plot 384 οἱ ἐν σπέρmicroατι λ πλάττουσι τὰ ζῷα οἷον microικρούς τινας κόσmicroους Id 4310 cf 3216 357 opp ὅρος Id 674 ἀφανεῖς λ τῆς φύσεως Procl in R 118 K τεχνικοὶ λ ib 142 K al IV inward debate of the soul (cf λ ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ διεξέρχεται Pl Tht 189e ( διάλογος in Sph 263e ) ὁ ἐν τῇ ψυχῇ ὁ ἔσω λ (opp ὁ ἔξω λ ) Arist APo 76b25 27 ὁ ἐνδιάθετος opp ὁ προφορικὸς λ Stoic 243 Ph 2154 ) 1 thinking reasoning τοῦ λ ἐόντος ξυνοῦ opp ἰδία φρόνησις Heraclit 2 κρῖναι δὲ λόγῳ ἔλεγχον test by reflection Parm 136 reflection deliberation (cf VI 3 ) ἐδίδου λόγον ἑωυτῷ περὶ τῆς ὄψιος Hdt 1209 cf 34 S OT 583 D 457 microὴ εἰδέναι microήτε λόγῳ microήτε ἔργῳ neither by reasoning nor by experience Anaxag 7 ἃ δὴ λόγῳ microὲν καὶ διανοίᾳ ληπτά ὄψει δ οὔ Pl R 529d cf Prm 135e ὁ λ ἢ ἡ αἴσθησις Arist EN 1149a35 al αὐτῷ microόνον τῷ λ πιστεύειν (opp αἰσθήσεις ) of Parmenides and his school Aristocl ap Eus PE 1417 hence λόγῳ or τῷ λ in idea in thought τῷ λ τέmicroνειν Pl R 525e τῷ λ δύο ἐστίν ἀχώριστα πεφυκότα two in idea though indistinguishable in fact Arist EN 1102a30 cf GC 320b14 al λόγῳ θεωρητά mentally conceived opp sensibly perceived Placit 135 cf DemetrLac Herc 105520 τοὺς λ θεωρητοὺς χρόνους Epicur Ep 1p19U διὰ λόγου θ χ ib p10 U λόγῳ καταληπτός Phld Po 520 etc ὁ λ οὕτω αἱρέει analogy proves Hdt 233 ὁ λ or λ αἱρέει reasoning convinces Id 345 6124 cf Pl Cri 48c (but our argument shows Lg 663d ) also c acc pers χρᾶται ο τι microιν λ αἱρέει as the whim took him Hdt 1132 ἢν microὴ ἡmicroέας λ αἱρῇ unless we see fit Id 4127 cf Pl R 607b later ὁ αἱρῶν λ ordaining reason Zeno Stoic 150 MAnt 25 cf 424 Arr Epict 2220 etc coupled or contrasted with other functions καθ ὕπνον ἐπειδὴ λόγου καὶ φρονήσεως οὐ microετεῖχε since reason and understanding are in abeyance Pl Ti 71d microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης opp αἰτία αὐτοmicroάτη of Natures processes of production Id Sph 265c τὸ microὲν δὴ νοήσει microετὰ λόγου περιληπτόν embraced by thought with reflection opp microετ αἰσθήσεως ἀλόγου Id Ti 28a τὸ microὲν ἀεὶ microετ ἀληθοῦς λ opp τὸ δὲ ἄλογον ib 51e cf 70d al λ ἔχων ἑπόmicroενον τῷ νοεῖν Id Phlb 62a ἐπιστήmicroη ἐνοῦσα καὶ ὀρθὸς λ scientific knowledge and right process of thought Id Phd 73a πᾶς λ καὶ πᾶσα ἐπιστήmicroη τῶν καθόλου

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Arist Metaph 1059b26 τὸ λόγον ἔχον Id EN 1102b15 1138b9 al in sg and pl contrasted by Pl and Arist as theory abstract reasoning with outward experience sts with depreciatory emphasis on the former εἰς τοὺς λ καταφυγόντα Pl Phd 99e τὸν ἐν λόγοις σκοπούmicroενον τὰ ὄντα opp τὸν ἐν ἔργοις (realities) ib 100a τῇ αἰσθήσει microᾶλλον τῶν λ πιστευτέον Arist GA 760b31 γνωριmicroώτερα κατὰ τὸν λ opp κατὰ τὴν αἴσθησιν Id Ph 189a4 ἐκ τῶν λ δῆλον opp ἐκ τῆς ἐπαγωγῆς Id Mete 378b20 ἡ τῶν λ πίστις opp ἐκ τῶν ἔργων φανερόν Id Pol 1326a29 ἡ πίστις οὐ microόνον ἐπὶ τῆς αἰσθήσεως ἀλλὰ καὶ ἐπὶ τοῦ λ Id Ph 262a19 microαρτυρεῖ τὰ γιγνόmicroενα τοῖς λ Id Pol 1334a6 ὁ microὲν λ τοῦ καθόλου ἡ δὲ αἴσθησις τοῦ κατὰ microέρος explanation opp perception Id Ph 189a7 ἔσονται τοῖς λ αἱ πράξεις ἀκόλουθοι theory opp practice Epicur Sent 25 in Logic of discursive reasoning opp intuition Arist EN 1142a26 1143b1 reasoning in general ib 1149a26 πᾶς λ καὶ πᾶσα ἀπόδειξις all reasoning and demonstration Id Metaph 1063b10 λ καὶ φρόνησιν Phld Mus p105 K ὁ λ ἢ λογισmicroός ibid τὸ ἰδεῖν οὐκέτι λ ἀλλὰ microεῖζον λόγου καὶ πρὸ λόγου of mystical vision opp reasoning Plot 6910 mdashPhrases κατὰ λ τὸν εἰκότα by probable reasoning Pl Ti 30b οὔκουν τόν γ εἰκότα λ ἂν ἔχοι Id Lg 647d παρὰ λόγον opp κατὰ λ Arist RhAl 1429a29 cf EN 1167b19 cf παράλογος (but παρὰ λ unexpectedly E Ba 940 ) 2 reason as a faculty ὁ λ ἀνθρώπους κυβερνᾷ [ Epich ] 256 [ θυmicroοειδὲς] τοῦ λ κατήκοον Pl Ti 70a [ θυmicroὸς] ὑπὸ τοῦ λ ἀνακληθείς Id R 440d σύmicromicroαχον τῷ λ τὸν θυmicroόν ib b πειθαρχεῖ τῷ λ τὸ τοῦ ἐγκρατοῦς Arist EN 1102b26 ἄλλο τι παρὰ τὸν λ πεφυκός ὃ microάχεται τῷ λ ib 17 ἐναντίωσις λόγου πρὸς ἐπιθυmicroίας Plot 4713(8) οὐ θυmicroός οὐκ ἐπιθυmicroία οὐδὲ λ οὐδέ τις νόησις Id 6911 freq in Stoic Philos of human Reason opp φαντασία Zeno Stoic 139 opp φύσις Stoic 2206 οὐ σοφία οὐδὲ λ ἐστὶν ἐν [τοῖς ζῴοις ] ibid τοῖς ἀλόγοις ζῴοις ὡς λ ἔχων λ microὴ ἔχουσι χρῶ MAnt 623 ὁ λ κοινὸν πρὸς τοὺς θεούς Arr Epict 133 οἷον [εἰκὼν] λ ὁ ἐν προφορᾷ λόγου τοῦ ἐν ψυχῇ οὕτω καὶ αὐτὴ λ νοῦ Plot 513 τὸ τὸν λ σχεῖν τὴν οἰκείαν ἀρετήν (sc εὐδαιmicroονίαν ) Procl in Ti 3334 D also of the reason which pervades the universe θεῖος λ [ Epich ] 257 τὸν θεῖον λ καθ ηράκλειτον δι ἀναπνοῆς σπάσαντες νοεροὶ γινόmicroεθα SE M 7129 (cf infr x) b creative reason ἀδύνατον ἦν λόγον microὴ οὐκ ἐπὶ πάντα ἐλθεῖν Plot 3214 ἀρχὴ οὖν λ καὶ πάντα λ καὶ τὰ γινόmicroενα κατ αὐτόν Id 3215 οἱ λ πάντες ψυχαί Id 3218 V continuous statement narrative (whether fact or fiction) oration etc (cf λέγω (B) 112 ) 1 fable Hdt 1141 Αἰσώπου λόγοι Pl Phd 60d cf Arist Rh 1393b8 ὁ τοῦ κυνὸς λ X Mem 2713 2 legend ἱρὸς λ Hdt 262 cf 47 Pi P 380 (pl) συνθέντες λ E Ba 297 λ θεῖος Pl Phd 85d ἱεροὶ λ of Orphic rhapsodies Suid SV ορφεύς 3 tale story ἄλλον ἔπειmicroι λ Xenoph 71 cf Th 197 etc συνθέτους λ A Pr 686 σπουδην λόγου urgent tidings E Ba 663 ἄλλος λ another story Pl Ap 34e ὁmicroολογούmicroενος ὁ λ ἐστίν the story is consistent Isoc 327 pl histories ἐν τοῖσι ασσυρίοισι λ Hdt 1184 cf 106 299 so in sg a historical work Id 2123 619 7152 also in sg one section of such a work (like later βίβλος ) Id 238 639 cf VI 3d so in pl ἐν τοῖσι Λιβυκοῖσι λ Id 2161 cf 175 522 793 213 ἐν τῷ πρώτῳ τῶν λ Id 536 ὁ πρῶτος λ of St Lukes gospel ActAp 11 in Pl opp microῦθος as history to legend Ti 26e ποιεῖν microύθους ἀλλ οὐ λόγους Phd 61b cf Grg 523a (but microῦθον λέγειν opp λόγῳ ( argument ) διεξελθεῖν Prt 320c cf 324d ) περὶ λόγων καὶ microύθων Arist Pol 1336a30 ὁ λ microῦθός ἐστι Ael NA 434 4 speech delivered in court assembly etc χρήσοmicroαι τῇ τοῦ λ τάξει ταύτῃ Aeschin 357 cf Arist Rh 1358a38 δικανικοὶ λ Id EN 1181a4

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τρία γένη τῶν λ τῶν ῥητορικῶν συμβουλευτικόν δικανικόν ἐπιδεικτικόν Id Rh 1358b7 τῷ γράψαντι τὸν λ Thphr Char 178 cf λογογράφος 11 ἐπιτάφιος λ funeral oration Pl Mx 236b esp of the body of a speech opp ἐπίλογος Arist Rh 1420b3 opp προοίmicroιον ib 1415a12 body of a law opp proem Pl Lg 723b spoken opp written word τὸν τοῦ εἰδότος λ ζῶντα καὶ ἔmicroψυχον οὗ ὁ γεγραmicromicroένος εἴδωλόν τι Id Phdr 276a ὁ ἐκ τοῦ βιβλίου ῥηθεὶς [λ ] speech read from a roll ib 243c published speech DC 4054 rarely of the speeches in Tragedy ( ῥήσεις ) Arist Po 1450b6 9 VI verbal expression or utterance (cf λέγω (B) 111 ) rarely a single word v infr b never in Gramm signf of vocable ( ἔπος λέξις ὄνοmicroα ῥῆmicroα ) usu of a phrase cf I X 3 (the only sense found in Ep ) a pl without Art talk τὸν ἔτερπε λόγοις Il 15393 αἱmicroύλιοι λ Od 156 hMerc 317 Hes Th 890 Op 78 789 Thgn 704 AR 31141 ψευδεῖς Λ personified Hes Th 229 ἀφροδίσιοι λ Semon 791 ἀγανοῖσι λ Pi P 4101 ὄψον δὲ λ φθονεροῖσιν tales Id N 821 σmicroικροὶ λ brief words S Aj 1268 (svl) El 415 δόκησις ἀγνὼς λόγων bred of talk Id OT 681 (lyr) also in sg λέγ εἴ σοι τῷ λ τις ἡδονή speak if thou delightest in talking Id El 891 b sg expression phrase πρὶν εἰπεῖν ἐσθλὸν ἢ κακὸν λ Id Ant 1245 cf E Hipp 514 microυρίας ὡς εἰπεῖν λόγῳ Hdt 237 microακρὸς λ rigmarole Simon 189 Arist Metaph 1091a8 λ ἠρέmicroα λεχθεὶς διέθηκε τὸ πόρρω a whispered message Plot 493 ἑνὶ λόγῳ to sum up in brief phrase Pl Phdr 241e Phd 65d concisely Arist EN 1103b21 (but also = ἁπλῶς περὶ πάντων ἑνὶ λ Id GC 325a1 ) pl λ θελκτήριοι magic words E Hipp 478 rarely of single words λ εὐσύνθετος οἷον τὸ χρονοτριβεῖν Arist Rh 1406a36 οὐκ ἀπεκρίθη αὐτῇ λ answered her not a word EvMatt 1523 c coupled or contrasted with words expressed or understood signifying act fact truth etc mostly in a depreciatory sense λ ἔργου σκιή Democr 145 ὥσπερ microικρὸν παῖδα λόγοις micro ἀπατᾷς Thgn 254 λόγῳ opp ἔργῳ Democr 82 etc νηπίοισι οὐ λ ἀλλὰ ξυmicroφορὴ διδάσκαλος Id 76 ἔργῳ κοὐ λόγῳ τεκmicroαίροmicroαι A Pr 338 cf S El 59 OC 782 λόγῳ microὲν λέγουσι ἔργῳ δὲ οὐκ ἀποδεικνῦσι Hdt 48 οὐ λόγων φασίν ἡ ἀγορὴ δεῖται χαλκῶν δέ Herod 749 οὔτε λ οὔτε ἔργῳ Lys 914 λόγοις opp ψήφῳ Aeschin 233 opp νόῳ Hdt 2100 οὐ λόγῳ microαθών E Heracl 5 ἐκ λόγων κούφου πράγmicroατος Pl Lg 935a λόγοισι εἰς τὸ πιθανὸν περιπεπεmicromicroένα ib 886e cf Luc Anach 19 ἵνα microὴ λ οἴησθε εἶναι ἀλλ εἰδῆτε τὴν ἀλήθειαν Lycurg 23 cf D 3034 opp πρᾶγmicroα Arist Top 146a4 opp βία Id EN 1179b29 cf 1180a5 opp ὄντα Pl Phd 100a opp γνῶσις 2 EpCor 116 λόγῳ in pretence Hdt 1205 Pl R 361b 376d Ti 27a al λόγου ἕνεκα merely as a matter of words ἄλλως ἕνεκα λ ἐλέγετο Id Cri 46d λόγου χάριν opp ὡς ἀληθῶς Arist Pol 1280b8 but also let us say for instance Id EN 1144a33 Plb 10464 Phld Sign 29 MAnt 432 λόγου ἕνεκα let us suppose Pl Tht 191c ἕως λόγου microέχρι λ = Lat verbo tenus Plb 10247 Epict Ench 16 sts without depreciatory force the antithesis or parallelism being verbal (cf word and deed) λόγῳ τε καὶ σθένει S OC 68 ἔν τε ἔργῳ καὶ λ Pl R 382e cf DS 13101 EvLuc 2419 ActAp 722 Paus 2162 ὅσα microὲν λόγῳ εἶπον opp τὰ ἔργα τῶν πραχθέντων Th 122 2 common talk report tradition ὡς λ ἐν θνητοῖσιν ἔην Batr 8 λ ἐκ πατέρων Alc 71 οὐκ ἔστ ἔτυmicroος λ οὗτος Stesich 32 διξὸς λέγεται λ Hdt 332 λ ὑπ Αἰγυπτίων λεγόmicroενος Id 247 νέον [λ ] tidings S Ant 1289 (lyr) τὰ microὲν αὐτοὶ ὡρῶmicroεν τὰ δὲ λόγοισι ἐπυνθανόmicroεθα by hearsay Hdt 2148 also in pl ἐν γράmicromicroασιν λόγοι κείmicroενοι traditions Pl Lg 886b b rumour ἐπὶ παντὶ λ ἐπτοῆσθαι Heraclit 87 αὐδάεις λ voice of rumour B 1444 περὶ θεῶν διῆλθεν ὁ λ ὅτι Th 646 λ παρεῖχεν ὡς Plb 3893 ἐξῆλθεν ὁ λ οὗτος εῖς τινας ὅτι EvJo 2123 cf

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ActAp 1122 fiction EvMatt 2815 c mention notice description οὐκ ὕει λόγου ἄξιον οὐδέν worth mentioning Hdt 428 cf Plb 1248 etc ἔργα λόγου microέζω beyond expression Hdt 235 κρεῖσσον λόγου τὸ εἶδος τῆς νόσου beyond description Th 250 microείζω ἔργα ἢ ὡς τῷ λ τις ἂν εἴποι D 611 d the talk one occasions repute mostly in good sense good report praise honour (cf supr 14 ) πολλὰ φέρειν εἴωθε λ πταίσmicroατα Thgn 1221 λ ἐσλὸν ἀκοῦσαι Pi I 5(4)13 πλέονα λ οδυσσέος ἢ πάθαν Id N 721 ἵνα λ σε ἔχῃ πρὸς ἀνθρώπων ἀγαθός Hdt 75 cf 978 Τροίαν ἧς ἁπανταχοῦ λ whose fame story fills the world E IT 517 οὐκ ἂν ἦν λ σέθεν Id Med 541 less freq in bad sense evil report λ κακόθρους κακός S Aj 138 (anap) E Heracl 165 pl λόγους ψιθύρους πλάσσων slanders S Aj 148 (anap) e λ ἐστί ἔχει κατέχει the story goes c acc et inf ἔστ τις λ τὰν αρετὰν ναίειν Simon 581 cf S El 417 λ microὲν ἔστ ἀρχαῖος ὡς Id Tr 1 λ alone E Heracl 35 ὡς λ A Supp 230 Pl Phlb 65c etc λ ἐστί Hdt 7129 926 al λ αἰὲν ἔχει S OC 1573 (lyr) ὅσον ὁ λ κατέχει tradition prevails Th 110 also with a personal subject in the reverse construction Κλεισθένης λ ἔχει τὴν Πυθίην ἀναπεῖσαι has the credit of Hdt 566 cf Pl Epin 987b 988b λ ἔχοντα σοφίας EpCol 223 vsupr 14 3 discussion debate deliberation πολλὸς ἦν ἐν τοῖσι λ Hdt 859 συνελέχθησαν οἱ Μῆδοι ἐς τὠυτὸ καὶ ἐδίδοσαν σφίσι λόγον λέγοντες περὶ τῶν κατηκόντων Id 197 οἱ Πελασγοὶ ἑωυτοῖσι λόγους ἐδίδοσαν Id 6138 πολέmicroῳ microᾶλλον ἢ λόγοις τὰ ἐγκλήmicroατα διαλύεσθαι Th 1140 οἱ περὶ τῆς εἰρήνης λ Aeschin 274 τοῖς ἔξωθεν λ πεπλήρωκε τὸν λ [Plato] has filled his dialogue with extraneous discussions Arist Pol 1264b39 τὸ microῆκος τῶν λ DChr 7131 microεταβαίνων ὁ λ εἰς ταὐτὸν ἀφῖκται our debate Arist EN 1097a24 ὁ παρὼν λ ib 1104a11 θεῶν ὧν νῦν ὁ λ ἐστί discussion Pl Ap 26b cf Tht 184a MAnt 832 τῷ λ διελθεῖν διϊέναι Pl Prt 329c Grg 506a etc τὸν λ διεξελθεῖν conduct the debate Id Lg 893a ξυνελθεῖν ἐς λόγον confer Ar Eq 1300 freq in pl ἐς λόγους συνελθόντες parley Hdt 182 ἐς λ ἐλθεῖν τινι have speech with ib 86 ἐς λ ἀπικέσθαι τινί Id 232 διὰ λόγων ἰέναι E Tr 916 ἐmicroαυτῇ διὰ λ ἀφικόmicroην Id Med 872 ἐς λ ἄγειν τινά X HG 412 κοινωνεῖν λόγων καὶ διανοίας Arist EN 1170b12 b right of discussion or speech ἢ πὶ τῷ πλήθει λ S OC 66 λ αἰτήσασθαι ask leave to speak Th 353 λ διδόναι X HG 5220 οὐ προυτέθη σφίσιν λ κατὰ τὸν νόmicroον ib 175 λόγου τυχεῖν D 1813 cf Arist EN 1095b21 Plb 18521 οἱ λόγου τοὺς δούλους ἀποστεροῦντες Arist Pol 1260b5 δοῦλος πέφυκας οὐ microέτεστί σοι λόγου TragAdesp 304 διδόντας λ καὶ δεχοmicroένους ἐν τῷ microέρει Luc Pisc 8 hence time allowed for a speech ἐν τῷ ἐmicroῷ λ And 126 al ἐν τῷ ἑαυτοῦ λ Pl Ap 34a οὐκ ἐλάττω λ ἀνήλωκε D 189 c dialogue as a form of philosophical debate ἵνα microὴ microαχώmicroεθα ἐν τοῖς λ ἐγώ τε καὶ σύ Pl Cra 430d πρὸς ἀλλήλους τοὺς λ ποιεῖσθαι Id Prt 348a hence dialogue as a form of literature οἱ Σωκρατικοὶ λ Arist Po 1447b11 Rh 1417a20 cf διάλογος d section division of a dialogue or treatise (cf v 3 ) ὁ πρῶτος λ Pl Prm 127d ὁ πρόσθεν ὁ παρελθὼν λ Id Phlb 18e 19b ἐν τοῖς πρώτοις λ Arist PA 682a3 ἐν τοῖς περὶ κινήσεως λ in the discussion of motion (i e Ph bk 8 ) Id GC 318a4 ἐν τῷ περὶ ἐπαίνου λ Phld Rh 1219 branch department division of a system of philosophy τὴν φρόνησιν ἐκ τριῶν συνεστηκέναι λ τῶν φυσικῶν καὶ τῶν ἠθικῶν καὶ τῶν λογικῶν ChrysippStoic 2258 e in pl literature letters Pl Ax 365b Epin 975d DH Comp 1 21 (but also in pl treatises Plu 216c ) οἱ ἐπὶ λόγοις εὐδοκιmicroώτατοι Hdn 614 Λόγοι personified AP 9171 ( Pall ) VII a particular utterance saying 1 divine utterance oracle Pi P 459 λ microαντικοί Pl Phdr 275b οὐ γὰρ ἐmicroὸν ἐρῶ τὸν λ Pl Ap 20e ὁ λ τοῦ θεοῦ Apoc 12 9 2 proverb

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maxim saying Pi N 96 A Th 218 ὧδ ἔχει λ ib 225 τόνδ ἐκαίνισεν λ ὡς Critias 21 cf Pl R 330a EvJo 437 ὁ παλαιὸς λ Pl Phdr 240c cf Smp 195b Grg 499c Lg 757a 1 EpTi 115 Plu 21082e Luc Alex 9 etc τὸ τοῦ λόγου δὴ τοῦτο Herod 245 cf DChr 6624 Luc JTr 3 Alciphr 356 etc pl Arist EN 1147a21 3 assertion opp oath S OC 651 ψιλῷ λ bare word opp microαρτυρία D 2754 4 express resolution κοινῷ λ by common consent Hdt 1141 al ἐπὶ λ τοιῷδε ἐπ ᾧ τε on the following terms Id 7158 cf 926 ἐνδέξασθαι τὸν λ Id 160 cf 95 λ ἔχοντες πλεονέκτην a greedy proposal Id 7158 freq in pl terms conditions Id 933 etc 5 word of command behest A Pr 17 40 (both pl) Pers 363 ἀνθρώπους πιθανωτέρους ποιεῖν λόγῳ X Oec 139 ἐξέβαλε τὰ πνεύmicroατα λόγῳ EvMatt 816 οἱ δέκα λ the ten Commandments LXX Ex 3428 Ph 1496 VIII thing spoken of subject-matter (cf 1111 b and 2 ) λ τοῦτον ἐάσοmicroεν Thgn 1055 προπεπυσmicroένος πάντα λ the whole matter Hdt 121 cf 111 τὸν ἐόντα λ the truth of the matter ib 95 116 microετασχεῖν τοῦ λ to be in the secret ib 127 microηδενὶ ἄλλῳ τὸν λ τοῦτον ειπῃς Id 865 τίς ἦν λ S OT 684 ( = πρᾶγmicroα 699 ) περί τινος λ διελεγόmicroεθα subject question Pl Prt 314c [ τὸ προοίmicroιον] δεῖγmicroα τοῦ λ case Arist Rh 1415a12 cf 1111b τέλος δὲ παντὸς τοῦ λ ψηφίζονται the end of the matter was that Aeschin 3124 οὐκ ἔστεξε τὸν λ Plb 8125 οὐκ ἔστι σοι microερὶς οὐδὲ κλῆρος ἐν τῷ λ τούτῳ ActAp 821 ἱκανὸς αὐτῷ ὁ λ Pl Grg 512c οὐχ ὑπολείπει [Γοργίαν] ὁ λ matter for talk Arist Rh 1418a35 microηδένα λ ὑπολιπεῖν Isoc 4146 πρὸς λόγον to the point apposite οὐδὲν πρὸς λ Pl Phlb 42e cf Prt 344a ἐὰν πρὸς λ τι ᾖ Id Phlb 33c also πρὸς λόγου Id Grg 459c (s vl) 2 plot of a narrative or dramatic poem = microῦθος Arist Po 1455b17 al b in Art subject of a painting ζωγραφίας λόγοι Philostr VA 610 λ τῆς γραφῆς Id Im 125 3 thing talked of event microετὰ τοὺς λ τούτους LXX 1 Ma 733 cf ActAp 156 IX expression utterance speech regarded formally τὸ ἀπὸ [ψυχῆς] ῥεῦmicroα διὰ τοῦ στόmicroατος ἰὸν microετὰ φθόγγου λ opp διάνοια Pl Sph 263e intelligent utterance opp φωνή Arist Pol 1253a14 λ ἐστὶ φωνὴ σηmicroαντικὴ κατὰ συνθήκην Id Int 16b26 cf DiogBabStoic 3213 ὅθεν (from the heart) ὁ λ ἀναπέmicroπεται Stoic 2228 cf 244 Protagoras was nicknamed λόγος Hsch ap Sch Pl R 600c Suid λόγου πειθοῖ Democr 181 in pl eloquence Isoc 33 911 τὴν ἐν λόγοις εὐρυθmicroίαν Epicur SentPal 5p69 v d M λ ἀκριβής precise language Ar Nu 130 (pl) cf Arist Rh 1418b1 τοῦ microὴ ᾀδοmicroένου λ Pl R 398d ἡδυσmicroένος λ of rhythmical language set to music Arist Po 1449b25 ἐν παντὶ λ in all manner of utterance 1 EpCor 15 ἐν λόγοις in orations Arist Po 1459a13 λ γελοῖοι ἀσχήmicroονες ludicrous improper speech Id SE 182b15 Pol 1336b14 2 of various modes of expression esp artistic and literary ἔν τε ᾠδαῖς καὶ microύθοις καὶ λόγοις Pl Lg 664a ἐν λόγῳ καὶ ἐν ᾠδαῖς X Cyr 1425 cf Pl Lg 835b prose opp ποίησις Id R 390a opp ψιλοmicroετρία Arist Po 1448a11 opp ἔmicromicroετρα ib 1450b15 (pl) τῷ λ τοῦτο τῶν microέτρων (sc τὸ ἰαmicroβεῖον ) ὁmicroοιότατον εἶναι Id Rh 1404a31 in full ψιλοὶ λ prose ib b33 (but ψιλοὶ λ = arguments without diagrams Pl Tht 165a ) λ πεζοί opp ποιητική DH Comp 6 opp ποιήmicroατα ib 15 κοινὰ καὶ ποιηmicroάτων καὶ λόγων Phld Po 57 πεζος λ ib 27 al b of the constituents of lyric or dramatic poetry words τὸ microέλος ἐκ τριῶν λόγου τε καὶ ἁρmicroονίας καὶ ῥυθmicroοῦ Pl R 398d opp πρᾶξις Arist Po 1454a18 dramatic dialogue opp τὰ τοῦ χοροῦ ib 1449a17 3 Gramm phrase complex term opp ὄνοmicroα Id SE 165a13 λ ὀνοmicroατώδης noun- phrase Id APo 93b30 cf Rh 1407b27 expression DH Th 2 Demetr Eloc 92 b sentence complete statement ἄνθρωπος microανθάνει λόγον εἶναί φῃς ἐλάχιστόν τε καὶ πρῶτον Pl Sph 262c λ αὐτοτελής AD Synt

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36 DT 6341 ῥηθῆναι λόγῳ to be expressed in a sentence Pl Tht 202b λ ἔχειν to be capable of being so expressed ib 201e cf Arist Rh 1404b26 c language τὰ τοῦ λ microέρη parts of speech ChrysippStoic 231 SE M 9350 etc τὰ microόρια τοῦ λ DH Comp 6 microέρος λ DT 63326 AD Pron 46 al (but ἓν microέρος ampλττοῦ codgt λόγου one word Id Synt 34010 cf 33422 ) περὶ τῶν στοιχείων τοῦ λ title of work by Chrysippus X the Word or Wisdom of God personified as his agent in creation and world-government ὁ παντοδύναmicroός σου λ LXX Wi 1815 ὁ ἐκ νοὸς φωτεινὸς λ υἱὸς θεοῦ CorpHerm 16 cf Plu 2376c λ θεου δι οὗ κατεσκευάσθη [ὁ κόσmicroος ] Ph 1162 τῆς τοῦ θεοῦ σοφίας ἡ δέ ἐστιν ὁ θεοῦ λ ib 56 λ θεῖος εἰκὼν θεοῦ ib 561 cf 501 τὸν τοmicroέα τῶν συmicroπάντων [θεοῦ] λ ib 492 τὸν ἄγγελον ὅς ἐστι λ ib 122 in NT identified with the person of Christ ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λ EvJo 11 cf 14 1 EpJo 27 Apoc 1913 ὁ λ τῆς ζωῆς 1 EpJo 11

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Page 2: Emerson Fernandes Diálogo: natureza, pensamento, linguagem

Emerson Fernandes

Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo

Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciecircncias Humanas da PUC-Rio Aprovada pela Comissatildeo Examinadora abaixo assinada

Prof Danilo Marcondes de Souza Filho Orientador

Departamento de Filosofia - PUC-Rio

Prof Paulo Cesar Duque Estrada

Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio

Prof Renato Matoso Ribeiro Gomes Brandatildeo

Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio

Prof Marcelo Joseacute Derzi Moraes Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash Uerj

Prof Carlos Monteiro Junior

Coleacutegio Pedro II ndash CPII

Profa Monah Winograd Coordenadora Setorial de Poacutes-Graduaccedilatildeo e Pesquisa do Centro de

Teologia e Ciecircncias Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro 28 de setembro de 2018

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Todos os direitos reservados Eacute proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial do trabalho sem autorizaccedilatildeo da universidade do autor e do orientador

Emerson Fernandes

Graduou-se em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 2010 Em 2013 concluiu o curso de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio com a dissertaccedilatildeo intitulada ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Eacute muacutesico poeta educador e professor no curso de especializaccedilatildeo em Filosofia Antiga no CCEPUC-Rio

Ficha Catalograacutefica

CDD 100

Fernandes Emerson Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Emerson Fernandes orientador Danilo Marcondes de Souza Filho ndash 2018 189 f il color 30 cm Tese (doutorado)ndashPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia 2018 Inclui bibliografia 1 Filosofia ndash Teses 2 Natureza 3 Poesia 4 Mito 5 Epos 6 Logos I Souza Filho Danilo Marcondes de II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia III Tiacutetulo

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Em memoacuteria do antigo Museu Nacional

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Agradecimentos

Agradeccedilo aos meus amigos Dado Villa-Lobos Arthur Macias Benito Guidi Pedro

Tambellini Nancy Ribeiro Bruno Wagner e meus familiares que sempre me

apoiaram nessa longa estrada da vida que comeccedilou no Complexo da Mareacute

Ao meu orientador Danilo Marcondes e aos professores Paulo Ceacutesar Duque-

Estrada Renato Matoso Arthur Dapieve Paul Heritage Maura Iglesias Irley

Franco Luisa Buarque Luiacutes Carlos Pereira Marcelo Moraes Eduardo Barbosa

Carlos Monteiro Ricardo Noacutebrega Alexandre Costa Luiacutes Felipe Bellitani pelo

apoio confianccedila e contribuiccedilatildeo na reflexatildeo filosoacutefica

Agrave minha querida Vanessa Clarice pelo amor respeito e paciecircncia

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (Capes)

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Resumo

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

Esta tese tem por objetivo apresentar o percurso geneacutetico do diaacutelogo como uma

praacutetica discursiva oral que se tornou um gecircnero literaacuterio ateacute o momento que foi

utilizado como meio de expressatildeo poeacutetico e filosoacutefico por autores antigos A partir

da obra homeacuterica que foi o pilar eacutetico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico para

a organizaccedilatildeo da cultura grega esse importante gecircnero tornou-se a base para a

elaboraccedilatildeo das primeiras reflexotildees que culminaram no surgimento do Teatro e da

Filosofia na Greacutecia

Palavras-chave

Natureza Poesia Mito Epos Logos

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Abstract

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho (Advisor) Dialogue nature thought language and expression Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

This thesis aims to present the genetic path of dialogue as an oral discursive

practice which has become a literary genre up to the moment that was used as a

way of poetic and philosophical expression by ancient authors From this Homeric

work which was the ethical epistemological political and pedagogical pillar for

the organization of Greek culture this important genre became the basis for the

elaboration of the first reflections that culminated in the emergence of Theater and

Philosophy in Greece

Key-words

Nature Poetry Myth Epos Logos

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Sumaacuterio

1Introduccedilatildeo 9

2 Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento 18

21 A expressatildeo da Phyacutesis 18 22 Phyacutesis e Loacutegos 29 23 Poesia e Loacutegos 36 3 Poesia memoacuteria e verdade 41

31 A palavra entre os homens e deuses 41 32 Entre a oralidade e a escrita 57 4 Mythos Eacutepos e Loacutegos 64

41 Mito e poesia 64 42 Mito e espanto 67 43 Mito accedilatildeo e verdade 73 44 Mito e religiatildeo 78 45 Mito e a voz 81 46 Mito e muacutesica 88 47 Eacutepos 115 48 Loacutegos 122 5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo 127

51 A fala livre 127 52 A palavra e a bela accedilatildeo 133 53 A fala compartilhada 148 6 Consideraccedilotildees finais 164 7 Referecircncias bibliograacuteficas 170 8 Anexos 176

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1 Introduccedilatildeo

A palavra diaacutelogo1 tem originalmente algumas acepccedilotildees na liacutengua grega

Dentro delas eacute possiacutevel encontrarmos o sentido de relaccedilatildeo contato e alteridade que

ocorre em qualquer praacutetica comunicativa social poliacutetica2 e reflexiva3 A

grandiosidade da cultura helecircnica foi forjada atraveacutes do reconhecimento da

necessidade do outro que ocorreu em sua mais tenra idade no periacuteodo preacute-histoacuterico

quando o homem primitivo estabeleceu os primeiros assentamentos na parte

continental grega por volta de 40000 aC 4 Com o passar do tempo os habitantes

desse territoacuterio deixaram uma importante heranccedila cultural que repercutiu no futuro

glorioso da civilizaccedilatildeo helecircnica (VERMEULE 1964) atraveacutes dos avanccedilos

tecnoloacutegicos obtidos na idade do Bronze

Esse legado que foi atestado pela arqueologia5 eacute a prova de ter havido um

processo de continuidade entre essas culturas que ocorreu de modo subterracircneo

1 ∆ιάλογοςdiaacutelogos ὁ (διαλέγοmicroαι ) conversaccedilatildeo diaacutelogo Pl Prt 335d Demetr Eloc 223 δ τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτήν Pl Sph 263 e οἱ Σωκρατικοὶ δ Arist Fr 72 τὰ ἐν τοῖς δ Debater argumentos Id APo 78a12 geralmente conversaccedilatildeo Cic Att 552 II discurso ou seacuterie de discursos debate (cf διάλεξις) IG 31128 al III = διαλογισmicroός 1 PHib 1122 (iii BC) PTeb 5831 (ii BC) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo grego recomendamos a leitura do seguinte livro LIDDELL H G and SCOTT R A Greek-English Lexicon Oxford Clarendon Press 1997 2 Em um regime poliacutetico de caraacuteter monaacuterquico a realeza necessita estabelecer um diaacutelogo mesmo sendo de modo verticalizado com o povo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro MAQUIAVEL Nicolau ldquoO priacutenciperdquo Trad Antonio Caruccio-Caporale Satildeo Paulo LampPM Editores Porto Alegre 2011 3 Basta notar o parentesco semacircntico que eacute apontado pelos dois filoacutelogos na nota sobre o diaacutelogo atraveacutes da palavra dialogismos διαλογ-ισmicroός ὁ ponderaccedilatildeo D 3623 PRevLaws 1717 (pl) IG 5 (1) 14326 (Messene) etc daqui II caacutelculo consideraccedilatildeo Pl Machado 367a δ λαβεῖν περὶ σφῶν αὐτῶν Str 537 ὁ δ οὗτος esta consideraccedilatildeo Phld D 115 III debate argumento discussatildeo Epicur Pe 138 (pl) Metrod 37 Plu 2180c IV circuito τοῦ νοmicroοῦ δ ποιῆσαι PLond 235819 cf BGU 19i13 (ii AD) V inqueacuterito judicial PTeb 2735 (ii BC) PFay 662 (ii AD) 4 Vide a nossa tabela cronoloacutegica no anexo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E FINLEY MI ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Trad WR Vaccari Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 5 Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the twelfth and eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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atraveacutes do amplo desenvolvimento das teacutecnicas naacuteuticas militares agriacutecolas e

artiacutesticas que foram mantidas e modificadas com o passar do tempo entre esses

habitantes do solo grego para suprir as suas necessidades existenciais Dentro desse

contexto um dos elementos que pode ser identificado nesses diversos materiais

provenientes dessas culturas predecessoras eacute a utilizaccedilatildeo da muacutesica agrave serviccedilo da

tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que perdurou6 - mesmo depois da fatiacutedica idade das trevas ndash

na memoacuteria dos sobreviventes da realeza micecircnica e dos pastores e agricultores

que se refugiaram no alto das montanhas Atualmente haacute vaacuterios estudos sobre esse

tema que tentam entender como ocorreu o fenocircmeno musical durante a idade do

bronze7 Essa investigaccedilatildeo despertou o nosso interesse por tambeacutem revelar aspectos

do desenvolvimento intelectual humano que podem ser encontrados na sofisticaccedilatildeo

empregada primeiramente no uso da poesia na tradiccedilatildeo oral e posteriormente no

teatro filosofia e retoacuterica no periacuteodo claacutessico

Atraveacutes dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel identificarmos o resquiacutecio de algumas

praacuteticas culturais que sobreviveram atraveacutes da memoacuteria coletiva que pode ser

encontrada na poesia homeacuterica e hesiodica8 Consequentemente esses fatos

fornecem a base para a hipoacutetese de que os remanescentes micecircnicos contribuiacuteram

na reconstruccedilatildeo cultural que desencadeou posteriormente em um novo processo de

organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico9 no mundo antigo Esse testemunho oferecido pelo

proacuteprio Platatildeo em seu uacuteltimo diaacutelogo inacabado10 e por Heroacutedoto11 Tuciacutedides12 e

Aristoacuteteles13 apresenta para o leitor atencioso algumas pistas imprescindiacuteveis que

revela esse passado mais distante e sombrio dos gregos Consequentemente esses

relatos quando satildeo aproximados dos inuacutemeros materiais analisados pela

6 Haacute diversos estudos que apontam esse processo de continuidade Eacute importante ressaltar que o modo como isso ocorreu ainda eacute motivo de muitas polecircmicas entre os especialistas A nossa intenccedilatildeo secundaacuteria eacute levantar algumas evidecircncias que foram surgindo ao decorrer de nossa pesquisa Uma delas foi apresentada por Jean-Pierre Vernant que se refere ao uso do cavalo que foi inicialmente adotado para diversos usos na civilizaccedilatildeo minoica A importacircncia do cavalo sobretudo no acircmbito mitoloacutegico e militar estaacute extensamente descrita na poesia eacutepica homeacuterica Essa eacute uma das provas do elo de continuidade cultural que falamos anteriormente Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 7 Vide o seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 8 Vide nota 6 9 Vide Platatildeo As Leis (livro III 677) 10 Ibidem 11 Vide Heroacutedoto Histoacuterias 12 Vide Tuciacutedides A histoacuteria da guerra do Peloponeso 13 Vide as seguintes obras de Aristoacuteteles Poliacutetico e a Constituiccedilatildeo dos atenienses

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arqueologia contemporacircnea revela algumas evidecircncias que seratildeo expostas e

estudadas nesse presente trabalho Vale ressaltar que dentro desse contexto a liacutengua

grega foi constituiacuteda e aprimorada acompanhando todas essas influecircncias histoacutericas

e culturais recebidas de outras civilizaccedilotildees afins Para esse estudo a anaacutelise do

Linear A14 e B ainda continua sendo um rico manancial para os historiadores

filoacutelogos e antropoacutelogos O nosso meacutetodo investigativo natildeo se ateve apenas sobre

os registros fornecidos pela literatura escrita mas como foi exposto anteriormente

partirmos de importantes estudos arqueoloacutegicos que analisa materiais

arquitetocircnicos orgacircnicos inorgacircnicos pictoacutericos artesanais e metaluacutergicos A

forma como esses estudos satildeo organizados partem da reuniatildeo de todas as evidecircncias

disponiacuteveis para uma investigaccedilatildeo mais detalhada do comportamento humano E

um dos criteacuterios utilizados pelos pesquisadores eacute a anaacutelise do desenvolvimento

tecnoloacutegico que pode ser alcanccedilado de modo comparativo entre os diferentes

periacuteodos da historiografia grega

Como um verbo transitivo que sempre busca o seu complemento a nossa

capacidade de expressatildeo reflexatildeo e criaccedilatildeo opera por essa mesma loacutegica que revela

a nossa incompletude e que assina a imagem da natureza humana em relaccedilatildeo aos

imortais15 Essa caracteriacutestica foi ressaltada e analisada por Aristoacuteteles no livro I da

Poliacutetica16 no qual eacute exposto que o homem por natureza17tem o poder da palavra

articulada18 que eacute fundamental para o processo de organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo

existencial da comunidade humana19 e que se constitui atraveacutes da praacutetica

dialoacutegica20 De modo discreto o filoacutesofo macedocircnio estabelece uma interessante

14 Jean-Pierre Vernant chama atenccedilatildeo para o fato de haver por volta do seacuteculo XV aC uma fusatildeo de diferentes culturas que foi denominada de chipro-micecircnica na qual podemos identificar elementos da cultura minoica micecircnica e asiaacutetica Durante esse periacuteodo eles disponibilizavam de uma escrita que foi derivada do Linear A Logo o estudo dessa escrita possibilita muitas informaccedilotildees sobre esse processo de mesticcedilagem cultural que ocorreu nesse periacuteodo histoacuterico Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 15 Αθάνατοι athaacutenatoi Os deuses 16 Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) 17 Kατά Φύσιν kata phyacutesin18 Λόγοςloacutegos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse importante termo do vocabulaacuterio grego 19 Πόλιςpoacutelis 20 A partir da exposiccedilatildeo aristoteacutelica no capiacutetulo I do livro da Poliacutetica no qual eacute dito que o homem por natureza ou seja por necessidade precisa viver em comunidade (κοινωνίαkoinonia) subentende-se a importacircncia do desenvolvimento do processo dialoacutegico ndash e aqui nos deparamos com uma evidecircncia que remonta diretamente a fundamentaccedilatildeo de nossa hipoacutetese sobre o uso desse

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ordenaccedilatildeo argumentativa que apresenta em sua obra a relaccedilatildeo entre o pensamento

julgamento expressatildeo sociabilidade e poliacutetica que revela a heranccedila intelectual

herdada das investigaccedilotildees promovida por seu mestre na Academia Aliaacutes foi o

proacuteprio Platatildeo que chamou atenccedilatildeo para esse fato em uma passagem do diaacutelogo

Mecircnon21 Na liacutengua grega eacute possiacutevel observar algumas dessas noccedilotildees atraveacutes da

proximidade semacircntica entre o verbo desejar22 e perguntar23 que assinala esse

caraacuteter de alteridade que abrange a instacircncia epistemoloacutegica poliacutetica e social no

mundo antigo24 Esse traccedilo que eacute perceptiacutevel na maioria das obras gregas expotildee

meio de expressatildeo por Soacutecrates e Platatildeo para buscar a plenitude existencial da poacutelis ndash que eacute essencial dentro desse contexto exposto pelo filoacutesofo macedocircnio (vide in loco a passagem 1252 b 25 ndash 30

ldquoPrimeiro haacute a necessidade de reunir dois seres que natildeo podem fazer nada um sem o outro quero dizer a uniatildeo dos sexos para a reproduccedilatildeo E natildeo haacute nada arbitraacuterio pois no homem assim como em outros animais e plantas eacute um desejo natural querer deixar para traacutes um ser feito agrave sua imagemrdquo) Nesse sentido o contato natural entre os seres da mesma espeacutecie ndash que reside na expressatildeo ldquo ἀνάγκη δὴ πρῶτον συνδυάζεσθαιanacircnke de proacuteton synduazesthai rdquo pressupotildee a atividade comunicativa necessaacuteria no acircmbito da linguagem para a realizaccedilatildeo desse objetivo que tambeacutem tem relaccedilatildeo com a estruturaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica para Aristoacuteteles Atualmente na aacuterea da Educaccedilatildeo haacute diversos estudos que apresentam a importacircncia da praacutetica dialoacutegica no processo pedagoacutegico de jovens e adultos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro FLECHA R ldquoCompartiendo palavras el aprendizaje de las personas adultas a traveacutes del diaacutelogordquo Barcelona Paidoacutes 1997 21 Em Platatildeo Mecircnon (84 c) Nessa passagem Platatildeo estabelece um jogo poeacutetico entre o uso desses verbos que visa destacar a correspondecircncia - e importacircncia - entre eles na investigaccedilatildeo filosoacutefica socraacutetica A atitude de desejar algo estaacute intrinsicamente relacionada com a imagem do filoacutesofo que eacute construiacuteda a partir da busca da verdade Aliaacutes no Banquete essa questatildeo eacute retomada quando Soacutecrates invoca a sacerdotisa Diotima para estabelecer o diaacutelogo que apresenta a imagem do amor agrave sabedoria que soacute pode ser alcanccedilada na relaccedilatildeo de proximidade e harmonia com o proacuteximo 22 Έράωeraacuteo (A) utilizado no Act somente no pres e imp (que na poesia satildeo ἔραmicroαι ἠράmicroην) iacuteon Archρέω Archil 253 impf Hρων Hdt 9108 E Fr 161 Ar Ach 146 - Passar ἀντ-ερᾶται X Smp 83 optar Id Hier 1111 inf ἐρᾶσθαι Plu Brut 29 etc parte ἐρώmicroενος (v infr) - tambeacutem ἐράοmicroαι 3 sg ἐρᾶται Plu 2753b Philostr Academia 48 (vράασθε v Sub ἔραmicroαι) todos os outros tempos seratildeo encontrados em ἔραmicroαι - amor c gen pers da paixatildeo sexual apaixonar-se por (X Cyr 5110) ἤρα τῆσ γυναικός Hdt 9108 etc c acc cogn ἔρᾶν ἔρωτα E Hipp 32 pl Smp 181b abs Aρῶν a lover vl em pi O 180 (pl) S Fr 1498 (pl) opp the ωρωmicroένη o amado Hdt 331 SE P 3196 [ὁ] ἐρώmicroενος X Smp 836 pl Phdr 239a cf Ar Eq 737 (pl) τὸν ἐρώmicroενον αὐτοῦ Lat delicias ejus Arist Pol 1303b23 2 sem referecircncia sexual amar calorosamente opp φιλέω οὐδ ἤρα οὐδ ἐφίλει Pl Ly 222a - ὥστε οὐ microόνον φιλοῖο ἂν ἀλλὰ καὶ ἐρῷο X Hier 1111 cf Plu Brut 29 κινεῖ [τὸ οὗ ἕνεκα] ὡς ἐρώmicroενον Arist Metaf 1072b3 II c gen rei amor ou desejo apaixonadamente τυραννίδος Archil 253 τερπνότατον τοῦ τις ἐρᾷ τὸ τυχεῖν Thgn 256 microάχης ἐρῶν A Th 392 microόνος θεῶν γὰρ Θάνατος οὐ δώρων ἐρᾷ Id Pe 161 Antmicroηχάνων ἐρᾷς S Ant 90 πατρίδος ἐρᾶν E Ph 359 οὗ ἐπιθυmicroεῖ τε καὶ ἐρᾷ Pl Smp 200a e c inf desejo de fazer A Fr 441 θανεῖν ἐρᾷ S Ant 220 Hποθανεῖν ἐρῶντες Hp de Arte 7 Arαγεῖν Ar Ach 146 πληροῦσθαι Pl Phlb 35a 23 Έρέω ereacuteo (A) Ep verbo = ἐρεείνω ἔροmicroαι ἐρωτάω perguntar inquirir c acc rei sobre uma coisa ἐρέων γενεήν τε τόκον τε Il 7128 cf Od 2131 procurar por Aυλαν AR 11354 2 c acc pers questatildeo microάντιν ἐρείοmicroεν (v infr) Il ἱερῆα Il 162 Odλλήλους ἐρέοιmicroεν Od 4192 ὅπως ἐρέοιmicroι ἑκάστην 11229 3 c acc rei pesquisa explorar Nicλυούς Nic ordm 143 (vl ἐρέθοντες) (Prob Ἐρε (ϊ) - cf ρευτής ἐρείοmicroεν perh metri gr para ἐρέ(ϊ) -o-microεν pres subj de radical natildeo-temaacutetico) 24 Vide Platatildeo Teeteto (149 a) Um dos pontos que estaacute impliacutecito nesse diaacutelogo eacute a necessidade do outro para a busca e obtenccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido o diaacutelogo eacute o meacutetodo fundamental para atender esse tipo de objetivo Na nossa dissertaccedilatildeo de mestrado haacute importantes observaccedilotildees

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esse impulso essencial que marca o nosso ponto de diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo

divino Pois ele eacute responsaacutevel por direcionar o homem atraveacutes da busca do

conhecimento que visa suprir os objetivos existenciais mais baacutesicos da nossa

espeacutecie de modo organizado e compartilhado

Nesse contexto eacute possiacutevel detectarmos a importacircncia que desempenhou a

Literatura oral e escrita para o surgimento de um tipo de reflexatildeo mais enxuta que

eclodiu com o surgimento da Filosofia que no seu estado inicial sempre esteve

voltada para auxiliar as accedilotildees humanas (HADOT 1995) na busca da plenitude

existencial Essa tese que foi defendida por Aristoacuteteles no Protreacuteptico25 estabelece

uma argumentaccedilatildeo no qual o estudo teoacuterico deve estar voltado para auxiliar o

mundo praacutetico A siacutentese entre o homo faber e sapiens que foi ressaltada por

pensadores como Mondolfo (MONDOLFO 1969) parece ter sido uma

caracteriacutestica importante da tradiccedilatildeo dos antigos sete saacutebios que teve origem na

expansatildeo cultural promovida na idade do Bronze em diversas civilizaccedilotildees desse

periacuteodo No livro X da Repuacuteblica26 Platatildeo expotildee a junccedilatildeo dessas duas atividades27

que a princiacutepio dialogavam sob o mesmo diapasatildeo exegeacutetico Ou seja o

pensamento reflexivo cultivado entre os iguais28 resulta na construccedilatildeo de um

fundamento que seraacute utilizado como uma buacutessola para encontrar a plenitude

existencial em cada comunidade A dimensatildeo externa ndash e natildeo menos importante -

dessa noccedilatildeo aponta para uma espeacutecie de caraacuteter hiacutebrido que apresenta a

que explicitamos sobre como o processo de composiccedilatildeo dramaacutetica do diaacutelogo estava em total consonacircncia com o questionamento elaborado por Platatildeo em torno da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento Um dos detalhes que chamou a nossa atenccedilatildeo foi o fato do poeta-filoacutesofo apontar a proximidade entre o jovem Teeteto e Soacutecrates atraveacutes da metoniacutemia que eacute construiacuteda na relaccedilatildeo entre o corpo e alma para evidenciar de modo sutil atraveacutes de carateriacutesticas exteriores algumas qualidades (Teeteto 144 a) a priori que satildeo essenciais para o desenvolvimento do processo dialoacutegico entre o jovem Teeteto e Soacutecrates Por outra perspectiva essa descoberta chama atenccedilatildeo para o problema da relaccedilatildeo entra a alma e o corpo (vide Feacutedon) que sempre foi um tema muito caro em sua obra Para Platatildeo essa foi uma forma encontrada para tentar combater o sensualismo defendido por alguns sofiacutestas Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura da seguinte obra F Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo dissertaccedilatildeo de mestrado Puc-Rio 2013 25 Vide Aristoacuteteles Protreacuteptico (Iamblichus Protreacuteptico VI 3627-37 22 Pistelli) 26 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro X 600-a) 27 Εἰς τὰ ἔργα σοφοῦ eis ta erga sophou Essa expressatildeo encontrada no livro X da Repuacuteblica foi ressaltada por Rodolfo Mondolfo em sua obra no qual analisa esse problema Para mais detalhes sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum Factumrdquo Desde antes de Vico hasta Marx Bs As Ed Siglo Veintiuno 1971 28 Como ressaltamos anteriormente na nota 24 essa ideia estaacute exposta no diaacutelogo Teeteto de Platatildeo na proximidade entre a imagem do jovem Teeteto e Soacutecrates

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multiplicidade cultural da essecircncia helecircnica que foi obtida desde o seu passado mais

remoto no contato com vaacuterias culturas na Bacia do Mediterracircneo

A proximidade com outros povos que foi estabelecida atraveacutes do comeacutercio e

da guerra a partir do desenvolvimento das culturas ciclaacutedica minoacuteica e micecircnica

aleacutem de revelar esse processo de relaccedilatildeo cultural29 tambeacutem foi responsaacutevel por

promover um banco extraordinaacuterio de conhecimento das accedilotildees humanas que foi

mantido e repassado atraveacutes da tradiccedilatildeo oral Esse acuacutemulo que foi fruto de

experiecircncias vitoriosas e amargas foram essenciais para a sobrevivecircncia e

manutenccedilatildeo dessas lembranccedilas do passado que serviu como norte para o futuro

atraveacutes da construccedilatildeo de uma das mais belas expressotildees humanas que foi alcanccedilada

a partir do amplo desenvolvimento das teacutecnicas musicais empregadas na

constituiccedilatildeo da poesia homeacuterica Esse feito notaacutevel reuacutene em sua maacutexima

excelecircncia todos os elementos mais importantes de sua histoacuteria30 que serviu para

pavimentar a estrada sinuosa do mundo helecircnico

No caso grego a linguagem eacute fundamentalmente marcada pelo contato e

observaccedilatildeo da Natureza O mito epoacutes loacutegos e o diaacutelogo satildeo imagens oriundas

dessa caracteriacutestica sublime que se iniciou na tradiccedilatildeo oral e que juntas formam a

relaccedilatildeo entre o ato de reflexatildeo e expressatildeo Essa experiecircncia foi essencial cada

uma delas em seu respectivo contexto para o desenvolvimento da religiatildeo arte

filosofia ciecircncia e poliacutetica no mundo antigo A forma como o homem estabeleceu

29 ∆ιάλογοςdiaacutelogos 30 Eacute importante ressaltar que o sentido de historicidade nesse contexto natildeo eacute equivalente ao conceito moderno Haacute uma grande polecircmica entre os historiadores em torno desse assunto Aliaacutes o termo grego em sua origem carrega o sentido de investigaccedilatildeo ἱστορ-ία historiacutea iacuteon -ιη ἡ inqueacuterito στορίῃσι εἰδέναι τι παρά τινος Hdt 2118 cf 119 ἡ περὶ φύσεως ἱ Pl Phd 96a αἱ περὶ τῶν ζῴων ἱ Arist Resp 477a7 al ἡ ἱ Id περὶ τὰ ζῷα Id PA 674b16 ζωικὴ ἱ ib 668b30 περὶ φυτῶν ἱ tiacutetulo do trabalho de Teofrasto observaccedilatildeo sistemaacutetica ou cientiacutefica Epicur Ep 1p29U abs da ciecircncia em geral ὄλβιος ὅστις τῆς ἱ Eσχε microάθησιν E Fr 910 (anap) da geometria Pythag ap Cordeiro VP 1889 na medicina empiacuterica corpo de casos registrados Gal 1144 mitologia ησίοδον πάσης ἤρανον ἱστορίης Hermesiano 722 2 conhecimento assim obtido informaccedilatildeo Hdt 1 Praef Hp VM 20 ἐις ἐmicroὴ καὶ γνώmicroη καὶ ἱ Hdt 299 πρὸς ἱστορίαν τῶν κοινῶν pelo conhecimento de D 18144 ψ τῆς ψυχῆς ἱ Arist reitor 402a4 II relato escrito de suas investigaccedilotildees narrativa histoacuteria prob neste sentido em Hdt 796 αἱ τῶν περὶ τὰς πράξεις γραφόντων ἱ Arist Rh 1360a37 Po 1451b3 Plb 1575 al Oκ τῶν ἱστοριῶν καὶ ἐκ τῶν ἄλλων microαρτυριῶν OGI 1312 (iii BC) αἱ Μαιανδρίου ἱ InscrPrien 37105 κοινὴ ἱ histoacuteria geral DH Ελληνική ρωmicroαϊκή Plu 2191d restringido por alguns agrave histoacuteria contemporacircnea Lat rerum cognitio praesentium VerrFlacc ap Gell 518 geralmente histoacuteria Call Aet 317 para a polecircmica em torno dessa questatildeo na antiguidade recomendamos a leitura dos seguintes livros HARTOG Franccedilois ldquoEvidecircncia da histoacuteria o que os historiadores veemrdquo Trad Guilherme Joatildeo de Freitas com a colaboraccedilatildeo de Jaime A Clasen Belo Horizonte Autecircntica 2011 E ldquoOs Antigos O Passado e o Presenterdquo Ed UnB Brasiacutelia 2003

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comunicaccedilatildeo com essas forccedilas divinas moldou o seu proacuteprio modo de pensar e o

espaccedilo de atuaccedilatildeo no mundo atraveacutes de suas accedilotildees O contato com a natureza

humana e divina somada agrave capacidade de observaccedilatildeo e audiccedilatildeo trouxe um traccedilo

singular no processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega que

proporcionou o encontro da gloacuteria e o respeito entre as maiores civilizaccedilotildees da

antiguidade Um olhar singular que alcanccedilou a imensidatildeo do cosmo divino para

buscar sentido para os meros mortais quando estabelecia proximidade com os

deuses oliacutempicos atraveacutes de seus mais grandiosos feitos A reflexatildeo expressatildeo e

accedilatildeo que operam de modo encadeado criaram os seus mais belos rebentos atraveacutes

da Poesia Teatro Poliacutetica e Filosofia

Sobre a beleza eacute importante ressaltar que no contexto grego o seu sentido estaacute

em total consonacircncia com a noccedilatildeo de verdade que se forma no periacuteodo preacute-

homeacuterico e perdura ateacute o claacutessico31 a partir do criteacuterio do natildeo-esquecimento e da

accedilatildeo eficaz que garante o ecircxito no campo de batalha da vida A partir desses

princiacutepios a proacutepria constituiccedilatildeo do processo preacute-juriacutedico grego tambeacutem se

desenvolve para auxiliaacute-los na sua organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Em um primeiro

momento histoacuterico essas accedilotildees efetivas satildeo imortalizadas pela boca do aedo que

habita entre as duas instacircncias que juntas compotildee o espaccedilo dramaacutetico32 de atuaccedilatildeo

entre homens e deuses Nesse sentido eacute perceptiacutevel a partir do contexto homeacuterico

identificar algumas noccedilotildees que os gregos mantiveram do seu passado mais remoto

com o intuito de utilizaacute-las para garantir a perpetuaccedilatildeo dos valores cultivados pelos

seus ancestrais33 Por outro lado esse legado dispotildee de dispositivos que foram

31 Vide as obras de Homero Platatildeo e Aristoacuteteles Apesar de algumas diferenccedilas entre esses pensadores eacute possiacutevel encontramos essa noccedilatildeo que perpassa por todas as culturas predecessoras dos gregos atraveacutes da mitologia que foi mantida e difundida pela tradiccedilatildeo oral Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 32 Ou seja o mundo eacute formado atraveacutes do princiacutepio da guerra Vide o fragmento de Anaximandro (D-K 12 A 9 Simpliacutecio Fiacutes 24 13-25) Nele o filoacutesofo expotildee em sua sentenccedila mais famosa na antiguidade um questionamento que pode ser tambeacutem encontrado na poesia homeacuterica o sentido de ilimitado (ἄπειρονaacutepeiron) carrega o mesmo alfa privativo que estaacute contido na palavra imortal (ἀθάνατοςathaacutenatos) que para noacutes parece ter uma carga semacircntica similar Esse termo que ganha uma importacircncia fundamental na cosmologia do filoacutesofo estaacute em total consonacircncia com o questionamento que foi primeiramente trazido por poetas mais antigos como Homero e Hesiacuteodo Logo podemos encontrar mais uma evidecircncia de como a poesia oral foi importante para manter esse legado da cultura grega e que serviu de base para a reflexatildeo dos primeiros filoacutesofos 33 Uma das provas de continuidade cultural tambeacutem pode ser obtida nas praacuteticas oraculares que ainda desempenhavam um importante papel na esfera poliacutetica entre os gregos Esse fato traz um grande problema para aqueles que defendem que houve um processo de distanciamento da religiatildeo apoacutes o surgimento da Democracia que teria possibilitado o surgimento da Filosofia Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do IV capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs

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imprescindiacuteveis para o aprimoramento epistemoloacutegico social poliacutetico e juriacutedico

Para o primeiro basta lembrar a importacircncia da poesia homeacuterica e hesioacutedica em

todas as discussotildees cosmogocircnicas e cosmoloacutegicas dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos que

culminou posteriormente no surgimento do debate intelectual no qual o homem

passou a ser o centro de todas as questotildees ou a medida de todas as coisas como

defendia o grande Protaacutegoras de Abdera34 Paralelamente a reflexatildeo juriacutedica e

poliacutetica foram temas de destaque nessas respectivas obras Na Iliacuteada de Homero

por exemplo nos deparamos com uma profunda criacutetica poliacutetica a partir da crise

entre Agamemnon e Aquiles que nos revela a decadecircncia da antiga estrutura

monaacuterquica micecircnica com a figura de um rei fraco e covarde Aleacutem dessa questatildeo

podemos notar a defesa dos valores calcados na honra e na coragem que eacute atribuiacuteda

ao grande heroacutei dos mirmidotildees

Posteriormente em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta campesino ressalta a

necessidade do reconhecimento do papel da Justiccedila35para a organizaccedilatildeo do espaccedilo

social e poliacutetico no mundo humano que deve sempre manter um bom diaacutelogo com

o mundo divino com o objetivo de encontrar a harmonia atraveacutes do valor do

trabalho e respeito agraves leis A sua exposiccedilatildeo vem acompanhada de uma profunda

criacutetica ao modo como a classe aristocraacutetica administrava a comunidade36 Aliaacutes

Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 34 Ibidem 35 ∆ίκη Dikeacute Divindade que representa o conceito de justiccedila no mundo grego Eacute importante ressaltar que que nesse contexto o seu sentido tem proximidade semacircntica com a verdade (ἀλήθειαaleacutetheia) pois satildeo elas as responsaacuteveis por organizar a vida humana Esses dois fundamentos teoloacutegicos que pertence a esfera divina eacute outro legado oriundo de uma tradiccedilatildeo muito antiga Curiosamente do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute o periacuteodo claacutessico essa concepccedilatildeo vigorava no pensamento grego de modo irrevogaacutevel Como exemplo podemos encontraacute-la ainda presente nos livros da Repuacuteblica e as Leis de Platatildeo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros GERNET Louis ldquoDroit et Socieacuteteacute dans la Gregravece Anciennerdquo Paris Recueil Sirey 1955 HESIacuteODO ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo Traduccedilatildeo de Mary de Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1989 36 Hesiacuteodo ldquoTrabalhos e os diasrdquo (v 205 - 285) Sobre essa questatildeo vale ressaltar as consideraccedilotildees que foram apresentadas por Louis Gernet que apontou uma mudanccedila no conceito de justiccedila entre o periacuteodo arcaico e claacutessico ao analisar as duas virtudes que foram oferecidas aos homens por Zeus no mito de Protaacutegoras (Platatildeo Protaacutegoras 322 c) Aleacutem da Justiccedila (∆ίκη Dikeacute) aparece um termo de difiacutecil traduccedilatildeo chamado αἰδώς aidoacutes (Platatildeo Protaacutegoras 322 cαἰδῶ τε καὶ δίκην aido te kai dikeacuten) que segundo o dicionaacuterio de Lidell amp Scott apresenta o sentido de um sentimento moral de respeito aos outros mas aleacutem desse haacute outros a saber αἰδώς όος contr οῦς η (tarde nom pl αἰδοί Sch E Hipp 386) como um sentimento moral reverecircncia admiraccedilatildeo respeito pelo sentimento ou opiniatildeo dos outros ou pela proacutepria consciecircncia e assim vergonha auto-respeito (na ἑαυτοῦ αἰδώς Hierocl em CA 9p433M) sentido de honra αἰδῶ θέσθ ἐνὶ θυmicroῷ Il 15561 ἴσχε γὰρ αἰ καὶ δέος ib 657 cf Sapph 28 democr 179 etc αἰ σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει αἰσχύνης δὲ εὐψυχία Th 184 cf E Supp 911 Arist EN 1108a32 etc αἰδοῖ microειλιχίῃ Od 8172 so ἀλλά microε κωλύει αἴδως Alc 55 (Sapphus est versus) ἅmicroα κιθῶνι ἐκδυοmicroένῳ συνεκδύεται καὶ τὴν αἰδῶ γυνή

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esse fato teve um desdobramento terriacutevel com uma guerra civil de grandes

proporccedilotildees entre a classe dos nobres e dos trabalhadores que levou muitos gregos

agrave morte37 Essa crise foi apaziguada temporariamente atraveacutes da intervenccedilatildeo do

poeta legislador Soacutelon A partir dessas mudanccedilas e das reformas de Clistenes38 a

Greacutecia comeccedila estabelecer uma abertura poliacutetica e social que foi fundamental para

um regime poliacutetico no qual o diaacutelogo e confronto de ideias39datildeo a tocircnica desse novo

momento histoacuterico que culminou no florescimento de grandes personalidades que

influenciam ateacute hoje o nosso mundo ocidental

Hdt 18 δακρύων πένθιmicroον αἰδῶ laacutegrimas de pesar e vergonha A Supp 579 αἰ τίς micro ἔχει Pl Sph 217d αἰ καὶ δίκη Id Prt 322c αἰδοῦς ἐmicroπίπλασθαι X Cyr 144 sobriedade moderaccedilatildeo pi O 13115 αἰδῶ λαβεῖν S Aj 345 2 consideraccedilatildeo pelos outros respeito reverecircncia αἰδοῦς οὐδεmicroιῆς ἔτυχον Thgn 1266 cf E Heracl 460 αἰ τοκέων respeito por eles Pi P 4218 τὴν ἐmicroὴν αἰδῶ respeito por mim A Pers 699 em conta para os amigos ἰχαλκεύτοισιν ἔζευκται πέδαις E Fr 595 esp consideraccedilatildeo pelo desamparado compaixatildeo αἰδοῦς κῦρσαι S OC 247 perdatildeo Antipho 126 Pl Lg 867e (cf αἰδέοmicroαι 112) II aquilo que causa vergonha ou respeito e assim 1 vergonha escacircndalo αἰδώς αργεῖοι κάκ ἐλέγχεα Il 5787 etc αἰδώς ὦ Λύκιοι πόσε φεύγετε 16422 αἰδὼς microὲν νῦν ἥδε 17336 2 = τὰ αἰδοῖα Il 2262 Arat 493 DH 772 3 dignidade majestade αἰ καὶ χάρις hCer 214 III Personδώς personificado Reverecircncia Pi O 744 Misericoacuterdia Ζηνὶ σύνθακος θρόνων Αἰ S OC 1268 cf Paus 1171 παρθένος Αἰδοῦς ∆ίκη λέγεται Pl Lg 943e Logo eacute possiacutevel compreender esse termo como fruto de um contexto soacutecio-poliacutetico democraacutetico no qual era necessaacuterio estabelecer um laccedilo de respeito muacutetuo atraveacutes do diaacutelogo que ainda tem ligaccedilatildeo com a justiccedila divina de Hesiacuteodo Ou seja ela eacute um fundamento que parte de um desdobramento do acircmbito divino para o mundo no qual o homem eacute a medida de todas as coisas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Champs-Flammarion 1982 37 Entre os seacuteculos VII e VI aconteceu uma terriacutevel crise social que produziu uma guerra civil entre a classe dos nobres e dos trabalhadores atenienses Esse problema foi resolvido apoacutes a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon A sua atuaccedilatildeo foi essencial para o estabelecimento da base democraacutetica que foi consolidada com as reformas do legislador Clistenes Para mais informaccedilatildeo sobre esse tema recomendo a leitura do seguinte artigo F Emerson ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj 2015 38 Ibidem 39 Nesse caso o pleonasmo natildeo foi acidental No uacuteltimo capiacutetulo do presente trabalho pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo A forma como a palavra-diaacutelogo apareceu nesse determinado contexto histoacuterico pode responder por exemplo como essa noccedilatildeo foi importante para o desenvolvimento do drama como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

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Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento

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A expressatildeo da Phyacutesis

A Natureza eacute saacutebia e ela natildeo faz nada sem nenhum propoacutesito40 Segundo

Aristoacuteteles no livro da Poliacutetica41 o homem eacute um animal que tem o poder da palavra

articulada 42 que eacute a caracteriacutestica sine qua non que determina a sua diferenccedila entre

todos os outros seres vivos43 Esse poder de expressatildeo que eacute regido atraveacutes da nossa

capacidade de julgar44 eacute o que permite ao homem poder se organizar em uma

comunidade 45 justa e por isso ser considerado por natureza um animal poliacutetico46

40 Aristoacuteteles Poliacutetica (Livro I1253 a -10-14) 41 Ibidem 42 Λόγος (Loacutegos) Vide tambeacutem Eacutetica a Nicoacutemaco (Livro IX 9 1170 b11) onde o filoacutesofo afirma que a diferenccedila entre os homens e os outros animais eacute a faculdade de pensar (νοῦςnous) Os animais soacute possuem apenas a faculdade das sensaccedilotildees (αἴσθησῐςaiacutesthēsis) Eacute importante ressaltar a nossa imensa dificuldade em traduzir esse importante termo da liacutengua grega pois ele carrega diversos sentidos e a sua traduccedilatildeo necessita levar em consideraccedilatildeo o contexto especiacutefico no qual a palavra esteja sendo empregada Nessa passagem de Aristoacuteteles por exemplo ela carrega o sentido de uma palavra articulada pelo poder da razatildeo ndash sendo esse outro significado que o termo abrange como vimos na passagem do livro da Eacutetica a Nicocircmaco ndash que nos diferencia de outros animais No proacuteprio texto do filoacutesofo macedocircnio ele estabelece essa conotaccedilatildeo que nos ajuda a encontrar uma traduccedilatildeo apropriada Vide tambeacutem Xenofonte Memoraacuteveis (IV 3 12) e Isoacutecrates Sobre a mudanccedila de fortuna (253-7) e A Nicoles (50) Provavelmente Aristoacuteteles esteja desenvolvendo a sua teoria a partir dessas obras que foram inspiradas no pensamento de Protaacutegoras que podemos encontrar no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo Posteriormente iremos apresentar algumas hipoacuteteses em torno desse termo e a sua relaccedilatildeo com mais dois outros que expressam o sentido de linguagem e comunicaccedilatildeo para os gregos a saber ἔπος και microῦθος (epos e mythos) 43 Vide o mito de Protaacutegoras 44 Λογισmicroός (Logismoacutes) 45 Κοινωνία (Koinonia) associaccedilatildeo 46 ldquoὁ ἄνθρωπος φύσει ζῷον πολιτικόνrdquo (ho anthropos physei zoon politikon) Essa locuccedilatildeo grega tambeacutem levanta intensos debates em torno de sua interpretaccedilatildeo Infelizmente eacute muito difiacutecil traduzirmos com maacutexima fidelidade o sentido que o filoacutesofo empregou nessa sentenccedila O substantivo zoacuteon ao lado do adjetivo politikon parece formar um neologismo que estabelece um importante conceito na filosofia do pensador macedocircnio mas eis que surge uma questatildeo seraacute que esse conceito foi realmente cunhado por Aristoacuteteles ou pelo seu mestre Platatildeo No livro das Leis (livro III e IV) Poliacutetico e da Repuacuteblica (livro VI 546 a) o filoacutesofo poeta apresenta diversas questotildees que satildeo retomadas pelo seu disciacutepulo Eacute certo que esse era um importante tema dentro das intensas discussotildees que ocorriam na Academia Logo se faz necessaacuterio respeitar o contexto do qual essa expressatildeo foi retirada para evitar qualquer tipo de anacronismo ou distorccedilatildeo

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que busca encontrar a sua plenitude existencial como objetivo final de sua vida47

Nesse sentido o poder de comunicaccedilatildeo e de criaccedilatildeo que eacute fornecido e revelado

pela palavra satildeo determinantes para a construccedilatildeo organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do

mundo humano Semelhante ao deus platocircnico que se inspira nas ideias48 para a

criaccedilatildeo de todo o universo49 o homem mimetiza50 a Natureza51 para a realizaccedilatildeo do

objetivo que eacute ressaltado pelo filoacutesofo macedocircnio como a finalidade primordial que

define a nossa espeacutecie Ou seja ela eacute a medida de todas as coisas52 Estudar a sua

manifestaccedilatildeo eacute o ideal do homem primitivo que ao reconhecer a sua presenccedila eacute

tomado pelo assombro53 que eacute responsaacutevel para o surgimento da busca pela

sabedoria54 Esse importante passo contribui de modo definitivo para o seu mais

amplo desenvolvimento existencial em nossa histoacuteria O trabalho dos primeiros

pensadores parte dessa constataccedilatildeo inicial Ou seja o olhar dirigido para todos os

fenocircmenos naturais que eclodem ao redor do seu espaccedilo de atuaccedilatildeo delineia o

47 Ευδαιmicroονία (Eudaimonia) O ldquoBem-estarrdquo eacute um dos pontos centrais das discussotildees intelectuais no periacuteodo claacutessico No diaacutelogo Eutidemo de Platatildeo (278 e) essa questatildeo aparece como norteadora para a reflexatildeo eacutetica poliacutetica e pedagoacutegica para os gregos de modo geral 48 Platatildeo Timeu (28 a-b) ldquoὅτου microὲν οὖν ἂν ὁ δηmicroιουργὸς πρὸς τὸ κατὰ ταὐτὰ ἔχον βλέπων ἀεί τοιούτῳ τινὶ προσχρώmicroενος παραδείγmicroατι τὴν ἰδέαν καὶ δύναmicroιν αὐτοῦ ἀπεργάζηται καλὸν ἐξ ἀνάγκηςrdquo Destarte o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel que utiliza como arqueacutetipo quando fornece a forma e as propriedades ao que se cria Eacute necessaacuterio que tudo aquilo que se efetiva deste modo seja belo 49 Κόσmicroος (koacutesmos) Ο termo carrega o sentido de ordenamento e harmonia 50 Μίmicroησις (miacutemesis) Esse eacute outro termo dificiacutelimo para traduzir No geral os tradutores utilizam a palavra imitaccedilatildeo mas para o contexto grego o sentido eacute muito mais amplo Um deles pode ser a noccedilatildeo de representaccedilatildeo (Leis livro I 655d II 667d IV 719c VII 815a) que ele aplica ao contexto teatral e das artes de um modo geral Mas haacute ainda um sentido mais conceitual que Platatildeo aplica de modo sub-reptiacutecio no livro X da Repuacuteblica agrave teoria das formas Ao contraacuterio de muitos helenistas e especialistas de esteacutetica que criticaram de modo ofensivo a sua exposiccedilatildeo o filoacutesofo parece associar a esse termo um contraponto ao sentido de ldquocriaccedilatildeordquo (ποιεῖν) que eacute a tarefa do demiurgo e do filoacutesofo Para a defesa da nossa hipoacutetese partimos da passagem que citamos do Timeu na nota anterior e tambeacutem de uma importante obra esquecida do historiador Dionisio de Halicarnaso chamada ldquoSobre a imitaccedilatildeordquo (Περι Μιmicroησεως) Ao aproximaacute-la do livro X e da passagem que expomos do Timeu podemos extrair uma tese bem interessante sobre o ato de criaccedilatildeo para os antigos Posteriormente Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448ordf17-19) vai explorar o sentido desse termo no acircmbito poeacutetico eacutetico e ontoloacutegico a partir de sua doutrina 51 Φύσιςphyacutesis 52 Platatildeo e Aristoacuteteles defendem que o modelo ou medida (microέτρον) para o mundo humano - diferentemente do que defendia Protaacutegoras com a noccedilatildeo do homem como medida de todas as coisas- eacute a Natureza para Aristoacuteteles e Deus Para Platatildeo Apesar de algumas diferenciaccedilotildees entre elas essas satildeo noccedilotildees similares que deveriam ser o criteacuterio de orientaccedilatildeo para as accedilotildees humanas Nesse sentido atraveacutes da ontologia a filosofia teria como objetivo estudar esses primeiros princiacutepios com o intuito de encontrar o caminho necessaacuterio para a plenitude da existecircncia humana Vide Protreacutepticoe a Metafiacutesica de Aristoacuteteles 53 θαῦmicroα 54 Σοφία

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campo de possibilidades para a sua afirmaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo do seu proacuteprio

mundo que se daacute atraveacutes da revelaccedilatildeo dos seus segredos

Em todas as cosmogonias antigas eacute notoacuterio o desejo de entender esses

fenocircmenos que se manifestam em torno de nossa existecircncia que estaacute associado natildeo

apenas ao nosso instinto de autopreservaccedilatildeo mas tambeacutem pela necessidade da

busca de uma vida plena e feliz apoacutes essa constataccedilatildeo inicial em seguida surgem

as seguintes questotildees quem somos De onde viemos Para onde vamos O que eacute

a natureza A partir dessa uacuteltima buscou-se as respostas para as primeiras O largo

campo semacircntico que se estende em torno do termo Phyacutesis no caso grego nos daacute

a dimensatildeo do tamanho do esforccedilo exposto por esses primeiros pensadores na

antiguidade para tentar responder tais questotildees Ao nos debruccedilarmos sobre a

extensa literatura antiga podemos avaliar na antiguidade as mais variadas

manifestaccedilotildees reflexivas para compreendecirc-la Mas o nosso limite racional nos

impede que tenhamos uma posiccedilatildeo definitiva em torno desse grande problema

antigo Todavia essa delimitaccedilatildeo natildeo pode ser vista como algo negativo ou ateacute

mesmo impeditivo pelo contraacuterio ela nos impotildee a tarefa de ampliar e de manter a

discussatildeo viva Logo pretendemos acompanhar na medida do possiacutevel a evoluccedilatildeo

de certas noccedilotildees expostas por esses pensadores atraveacutes dessa fragmentaacuteria literatura

que nos fornece muitas pistas para a nossa presente investigaccedilatildeo O primeiro ponto

que podemos encontrar um certo consenso entre os filoacutesofos antigos eacute que a

indagaccedilatildeo humana comeccedila a estabelecer os seus primeiros passos a partir da relaccedilatildeo

dialoacutegica entre as forccedilas55 que escapam do seu domiacutenio e que se estende

incialmente entre dois niacuteveis do mundo e do homem56 No decorrer histoacuterico essas

reflexotildees desempenharatildeo grandes mudanccedilas dentro e fora57 da cultura grega

55 Nesse presente texto vamos utilizar dois termos que no contexto histoacuterico grego satildeo correlatos a saber (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) Posteriormente vamos apresentar alguns pontos sobre a utilizaccedilotildees desses termos desde do periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico nos estudos sobre a Phyacutesis e o homem 56 Nos referimos ao questionamento dos primeiros poetas e filoacutesofos sobre a phyacutesis (natureza) ateacute a chegada do movimento sofiacutestico e de Soacutecrates que tinha como escopo dos seus estudos o homem no periacuteodo claacutessico De qualquer modo eacute importante ressaltarmos que haacute uma grande divergecircncia entres os helenistas em torno dessa esquematizaccedilatildeo Para o pesquisador canadense Gerard Naddaf por exemplo as obras dos primeiros pensadores natildeo faziam essa distinccedilatildeo entre essas duas esferas Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro NADDAF Gerard The greek concept of nature Albany State University of New York Press 2005 57 Podemos citar dois exemplos para esse caso a influecircncia da cultura grega sobre os romanos e a retomada da tradiccedilatildeo claacutessica durante o periacuteodo do Renascimento por volta do seacuteculo XIV

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Essa transformaccedilatildeo ocorre atraveacutes dessa capacidade que eacute inerente a todos os

animais mas que no homem ganha destaque por ser considerada como a proacutepria

imagem ou emanaccedilatildeo da Natureza58 Esse atributo permite-nos exercer esse poder

de realizaccedilatildeo necessaacuterio para manutenccedilatildeo de nossa existecircncia Logo torna-se

essencial o estudo de todos os fenocircmenos que nos fornecem essa daacutediva divina59

Compreendecirc-la eacute o papel principal desempenhado pelos primeiros pensadores Essa

forccedila se manifesta de modo tatildeo sublime que se confunde com a forma de expressatildeo

do nosso proacuteprio pensamento60 Em Heraacuteclito por exemplo essa questatildeo define o

sentido de Natureza e linguagem apresentado pelo filoacutesofo efeacutesio A Phyacutesis estaacute

para o Loacutegos 61 assim como a noite estaacute para o dia62

ldquoDesse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees63 tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindordquo64

Para os gregos entre o periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico esse termo eacute carregado

de diversos sentidos Mas de uma forma geral podemos resumi-los entre quatro

pontos fundamentais Entre eles estatildeo os seguintes atributos que podemos encontrar

em vaacuterias obras e fragmentos dentro desse contexto histoacuterico substacircncia

58 Φύσις posteriormente vamos nos debruccedilar sobre a intima relaccedilatildeo entre a phyacutesis e a sua expressatildeo (Μύθος Έπος και λόγοςMythos epos e logos) 59 Ou seja que natildeo proveacutem do mundo humano 60 Inicialmente atraveacutes da poesia (ποίησις) e depois do loacutegos (λόγος) que eacute um desdobramento histoacuterico desse importante termo Eacute importante ressaltarmos que esse uacuteltimo abarca natildeo apenas o ato de expressatildeo e a revelaccedilatildeo da Natureza mas tambeacutem o ato de julgar e de agir Se faz necessaacuterio destacar essa diferenccedila sobretudo por causa da confusatildeo semacircntica que ocorre entre os tradutores que ignoram a plasticidade do termo quando retirado do seu contexto especiacutefico 61Φύσις και Λόγος Posteriormente vamos apresentar uma anaacutelise sobre a relaccedilatildeo iacutentima que haacute entre esses dois termos no pensamento antigo 62 Heraacuteclito Fragmento 50 (DK) ldquoοὐκ ἐmicroοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁmicroολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναίrdquo (Ouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo um) Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 63 Importante destacar a relaccedilatildeo entre ldquopalavrasrdquo e ldquoaccedilotildeesrdquo (ἐπέων καὶ ἔργων) exposta pelo pensador efeacutesio Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 64Heraacuteclito Fragmento I ldquoτοῦ δὲ λόγου τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον γινοmicroένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι πειρώmicroενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦmicroαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονταιrdquo Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012

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primordial origem processo e resultado (NADDAF 1992) Eacute importante ressaltar

que todas essas caracteriacutesticas estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de proximidade

semacircntica A primeira apariccedilatildeo na literatura grega desse termo surge de modo

emblemaacutetico no livro X da Odisseacuteia de Homero65 Para fazermos uma anaacutelise

pormenorizada dessa passagem eacute necessaacuterio nos atermos a construccedilatildeo alegoacuterica

promovida pelo poeta em torno das personagens de Odisseu Circe e o deus Hermes

Aleacutem da apariccedilatildeo originaacuteria do uso da palavra phyacutesis podemos extrair dessa

passagem uma das primeiras elaboraccedilotildees da relaccedilatildeo entre a Phyacutesis (Natureza) e

Loacutegos (Linguagem) 66 na histoacuteria do pensamento antigo No proacuteximo paraacutegrafo

vamos apresentar todo o contexto do qual a passagem foi retirada e comentaacute-la em

seguida

Apoacutes suportar diversas peripeacutecias67 com o intuito de retornar agrave sua cidade natal

Iacutetaca o grande heroacutei ardiloso desembarca em Eeia ilha da deusa Circe68 ao lado

dos seus marinheiros Esses homens que estavam completamente famintos

adentram o territoacuterio desconhecido da senhora das drogas e dos venenos69 mas satildeo

surpreendidos por ela em seu esplendoroso palaacutecio

[HOMERO Odisseia] ldquoComo o ordenaste oacute glorioso Odisseu fomos pela floresta onde num vale encontramos um belo palaacutecio construiacutedo todo com pedras polidas num siacutetio ao redor abrigado Dentro se achava no tear meneando-se algueacutem que cantava ou fosse deusa ou mulher eles logo em voz alta a chamaram Sem se fazer esperar veio a deusa e o portatildeo lhes franqueia belo e brilhante os estultos entatildeo para dentro a seguiram com exceccedilatildeo soacute de mim por ter tido suspeita de dolo Todos os outros sumiram sem que um soacute deles voltasse Por muito tempo deixei-me ficar de atalaia ali mesmordquo Isso disse ele passei logo a espada de cravos de prata grande

65 Em Homero Odisseacuteia (Livro X vv 230-340) 66 Vide nota 48 67 Περιπέτεια (peripeteacuteia) Esse eacute um importante conceito que foi estudado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 68 Na mitologia Circe era uma poderosa feiticeira que dominava o poder das drogas e venenos Ela era filha do deus sol Heacutelios e da ninfa Perseis que por sua vez era filha de Oceano e de Teacutetis Em outros registros ela aparece como filha da deusa da necromancia e feiticcedilaria conhecida como Heacutecate Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana Trad V Jabouille Lisboa DIFEL 2ordf ed 1993 69 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Esse eacute outro importante termo que demonstra o poder de plasticidade e riqueza poeacutetica que os gregos cultivavam em relaccedilatildeo agrave cunhagem das palavras A determinaccedilatildeo de sentido desse termo necessita -como em outros termos como logos e phyacutesis que apresentamos anteriormente- fundamentalmente do contexto semacircntico pelo qual ele foi aplicado A ambiguidade que oscila entre veneno ou remeacutedio vai depender da posologia ou seja da medida (microέτρονmeacutetron) que seraacute fornecida atraveacutes da razatildeo Posteriormente veremos como esse tipo de artifiacutecio foi essencial para o desenvolvimento e primazia da arte do bem falar na antiguidade Da poesia ateacute o surgimento da retoacuterica esse tipo de recurso foi amplamente utilizado para ornamentar e impressionar os ouvintes atraveacutes da criaccedilatildeo de diversas figuras de linguagem que tinham por intuito comover ou convencer a sua audiecircncia

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e de bronze por volta dos ombros e de arco muni-me Tendo isso feito ordenei-lhe que mostrasse o caminho seguido Mas os joelhos com ambas as matildeos abraccedilou-me implorante e entre gemidos sentidos me diz as palavras aladas ldquoContra vontade disciacutepulo de Zeus arrastar-me natildeo queiras Tenho certeza que nunca hei de ver-te outra vez e que os soacutecios natildeo mais contigo hatildeo de vir Eacute mais certo fugirmos com estes sem mais demora talvez escapar consigamos da Morterdquo Isso disse ele em resposta lhe digo as seguintes palavras ldquoFica-te Euriacuteloco neste lugar em que te achas sozinho junto da ceacutelere nau de cor negra comendo e bebendo mas quanto a mim seguirei porque forccedila incontida me obriga Tendo isso dito da nave afastei-me e da praia marinha Mas quando estava no vale sagrado e do grande palaacutecio me aproximava de Circe que todas as plantas conhece Hermes me veio encontrar o imortal que o bastatildeo de ouro leva mdash antes de agrave casa chegar mdash na figura de um moccedilo radiante a quem o buccedilo comeccedila a apontar na sazatildeo mais graciosa Da matildeo me toma e falando me disse as seguintes palavras ldquoPor onde vais infeliz atraveacutes desses montes sozinho do siacutetio ignaro Na casa de Circe se encontram teus soacutecios sob a figura de porcos trancados em boas pocilgas Vais ateacute laacute com tenccedilatildeo de trazecirc-los Natildeo creio entretanto que de laacute voltes mas haacutes de ficar onde os outros se encontram Quero poreacutem proteger-te e livrar-te do mal iminente Toma esta droga de muita eficaacutecia e o palaacutecio de Circe entra porque haacute de livrar-te a cabeccedila do dia funesto Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe haacute de bebida oferecer-te e veneno te pocircr na comida Mas impossiacutevel ser-lhe-aacute enfeiticcedilar-te que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo Atende ao que segue logo que Circe com sua varinha tocar-te no corpo saca depressa da espada cortante que ao lado te pende e contra a deusa arremete mostrando intenccedilatildeo de mataacute-la Ela com medo haacute de entatildeo implorar-te que ao leito a acompanhes De forma alguma te negues subir para o leito da deusa para que os soacutecios te queiram livrar e tratar-te benigna O juramento dos deuses poreacutem exigir deves dela de que nenhuma outra insiacutedia de fato planeja em teu dano natildeo aconteccedila fazer-te vileza ao te ver desarmadordquo Tendo isso dito arrancou o correio de luacutecido aspecto da terra a planta e me deu explicando-me suas virtudes Tinha a raiz de cor negra mas branca era a flor como leite Moacuteli chamavam-lhe os deuses difiacutecil aos homens seria de vida curta arrancaacute-la mas tudo os eternos conseguem Hermes depois de isso feito partiu para o Olimpo elevado pela ilha de aacutervores cheia eu me fui para a casa de Circe O coraccedilatildeo nesse instante batia-me forte no peito Diante da porta da deusa de tranccedilas bem-feitas detive-me de onde depois em voz alta chamei tendo a deusa me ouvidordquo70

70 Em Homero Odisseacuteia (livro X vv 250 ndash 310) ldquoἤιοmicroεν ὡς ἐκέλευες ἀνὰ δρυmicroά φαίδιmicro᾽ Ὀδυσσεῦ εὕροmicroεν ἐν βήσσῃσι τετυγmicroένα δώmicroατα καλὰ ξεστοῖσιν λάεσσι περισκέπτῳ ἐνὶ χώρῳ ἔνθα δέ τις microέγαν ἱστὸν ἐποιχοmicroένη λίγ᾽ ἄειδεν (255) ἢ θεὸς ἠὲ γυνή τοὶ δὲ φθέγγοντο καλεῦντεςἡ δ᾽ αἶψ᾽ ἐξελθοῦσα θύρας ὤιξε φαεινὰς καὶ κάλει οἱ δ᾽ ἅmicroα πάντες ἀιδρείῃσιν ἕποντοαὐτὰρ ἐγὼν ὑπέmicroεινα ὀισάmicroενος δόλον εἶναι οἱ δ᾽ ἅmicro᾽ ἀιστώθησαν ἀολλέες οὐδέ τις αὐτῶν 260 ἐξεφάνη δηρὸν δὲ καθήmicroενος ἐσκοπίαζον ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγὼ περὶ microὲν ξίφος ἀργυρόηλον ὤmicroοιιν βαλόmicroην microέγα χάλκεον ἀmicroφὶ δὲ τόξατὸν δ᾽ ἂψ ἠνώγεα αὐτὴν ὁδὸν ἡγήσασθαι αὐτὰρ ὅ γ᾽ ἀmicroφοτέρῃσι λαβὼν ἐλλίσσετο γούνων (265) καί micro᾽ ὀλοφυρόmicroενος ἔπεα πτερόεντα προσηύδα lsquomicroή micro᾽ ἄγε κεῖσ᾽ ἀέκοντα διοτρεφές ἀλλὰ λίπ᾽ αὐτοῦ οἶδα γάρ ὡς οὔτ᾽ αὐτὸς ἐλεύσεαι οὔτε τιν᾽ ἄλλον ἄξεις σῶν ἑτάρων ἀλλὰ ξὺν τοίσδεσι θᾶσσον φεύγωmicroεν ἔτι γάρ κεν ἀλύξαιmicroεν κακὸν ἦmicroαρrsquo(270) ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγώ microιν ἀmicroειβόmicroενος προσέειπον Εὐρύλοχ᾽ ἦ τοι microὲν σὺ microέν᾽ αὐτοῦ τῷδ᾽ ἐνὶ χώρῳ ἔσθων καὶ πίνων κοίλῃ παρὰ νηὶ microελαίνῃαὐτὰρ ἐγὼν εἶmicroι κρατερὴ δέ microοι ἔπλετ᾽ ἀνάγκηrsquoὣς εἰπὼν παρὰ νηὸς ἀνήιον ἠδὲ θαλάσσης (275) ἀλλ᾽ ὅτε δὴ ἄρ᾽ ἔmicroελλον ἰὼν ἱερὰς ἀνὰ βήσσας Κίρκης ἵξεσθαι πολυφαρmicroάκου ἐς microέγα δῶmicroα ἔνθα microοι Ἑρmicroείας χρυσόρραπις ἀντεβόλησεν ἐρχοmicroένῳ πρὸς δῶmicroα νεηνίῃ ἀνδρὶ ἐοικώς πρῶτον ὑπηνήτῃ τοῦ περ χαριεστάτη ἥβη (280) ἔν τ᾽ ἄρα microοι φῦ χειρί ἔπος τ᾽ ἔφατ᾽ ἔκ τ᾽ ὀνόmicroαζε lsquoπῇ δὴ αὖτ᾽ ὦ δύστηνε δι᾽ ἄκριας ἔρχεαι οἶος χώρου ἄιδρις ἐών ἕταροι δέ τοι οἵδ᾽ ἐνὶ Κίρκης ἔρχαται ὥς τε σύες πυκινοὺς κευθmicroῶνας ἔχοντεςἦ τοὺς λυσόmicroενος δεῦρ᾽ ἔρχεαι οὐδέ σέ φηmicroι (285) αὐτὸν νοστήσειν microενέεις δὲ σύ γ᾽ ἔνθα περ ἄλλοι ἀλλ᾽ ἄγε δή σε κακῶν ἐκλύσοmicroαι ἠδὲ σαώσω τῆ τόδε φάρmicroακον ἐσθλὸν ἔχων ἐς δώmicroατα Κίρκης ἔρχευ ὅ κέν τοι κρατὸς ἀλάλκῃσιν κακὸν ἦmicroαρ πάντα

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Apoacutes o desfecho traacutegico que culminou na transformaccedilatildeo dos marinheiros em

porcos Odisseu resolve salvaacute-los com a ajuda divina de Hermes A primeira

apariccedilatildeo do uso do termo phyacutesis aparece exatamente quando o heroacutei de Iacutetaca eacute

interpelado como de praxe por uma divindade com o intuito de auxiliaacute-lo na

missatildeo de resgatar e desfazer o feiticcedilo que foi lanccedilado contra a sua tripulaccedilatildeo Na

passagem do verso 30371 podemos encontrar in loco um dos primeiros momentos

que a palavra eacute aplicada (NADDAF 1992) na literatura homeacuterica Inicialmente o

seu sentido estaacute associado diretamente aos seguintes termos morpheacute eidos e phye 72 Etimologicamente o termo phyacutesis parece ser oriundo do verbo phye (crescer)

que era empregado no geral para expressar o desenvolvimento da forma humana73

e natildeo para designar o aspecto natural de qualquer outro ente por exemplo Para esses

δέ τοι ἐρέω ὀλοφώια δήνεα Κίρκης (290) τεύξει τοι κυκεῶ βαλέει δ᾽ ἐν φάρmicroακα σίτῳ ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς θέλξαι σε δυνήσεται οὐ γὰρ ἐάσει φάρmicroακον ἐσθλόν ὅ τοι δώσω ἐρέω δὲ ἕκαστα ὁππότε κεν Κίρκη σ᾽ ἐλάσῃ περιmicroήκεϊ ῥάβδῳ δὴ τότε σὺ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάmicroενος παρὰ microηροῦ (295) Κίρκῃ ἐπαῖξαι ὥς τε κτάmicroεναι microενεαίνωνἡ δέ σ᾽ ὑποδείσασα κελήσεται εὐνηθῆναι ἔνθα σὺ microηκέτ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπανήνασθαι θεοῦ εὐνήν ὄφρα κέ τοι λύσῃ θ᾽ ἑτάρους αὐτόν τε κοmicroίσσῃ ἀλλὰ κέλεσθαί microιν microακάρων microέγαν ὅρκον ὀmicroόσσαι (300) microή τί τοι αὐτῷ πῆmicroα κακὸν βουλευσέmicroεν ἄλλο microή σ᾽ ἀπογυmicroνωθέντα κακὸν καὶ ἀνήνορα θήῃ ὣς ἄρα φωνήσας πόρε φάρmicroακον ἀργεϊφόντης ἐκ γαίης ἐρύσας καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξε ῥίζῃ microὲν microέλαν ἔσκε γάλακτι δὲ εἴκελον ἄνθος305 microῶλυ δέ microιν καλέουσι θεοί χαλεπὸν δέ τ᾽ ὀρύσσειν ἀνδράσι γε θνητοῖσι θεοὶ δέ τε πάντα δύνανται Ἑρmicroείας microὲν ἔπειτ᾽ ἀπέβη πρὸς microακρὸν Ὄλυmicroπον νῆσον ἀν᾽ ὑλήεσσαν ἐγὼ δ᾽ ἐς δώmicroατα Κίρκης ἤια πολλὰ δέ microοι κραδίη πόρφυρε κιόντιrdquo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 71 καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξεkai moi physin autou eacutedeixe (ldquoE a mim trouxe a luz a sua formardquo) Na traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes acima para natildeo perder a fluecircncia e coerecircncia poeacutetica do texto ele optou traduzir forma por virtude de qualquer modo a sua traduccedilatildeo natildeo estaacute tatildeo distante do original pois como veremos a seguir o termo phyacutesis expressa a noccedilatildeo de qualidade ou caracteriacutestica 72 Μορφή εἶδος και φυή Os trecircs termos carregam o sentido de forma ou figura que apresentam as suas caracteriacutesticas exteriores No caso do verbo φυή (phye) encontramos tambeacutem o sentido de crescimento e estatura Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo Dor φυά ἡ ( φύω ) growth stature esp fine growth noble stature in Hom always (as in Hes) of the human form and only in acc θηήσαντο φυὴν καὶ εἶδος ἀγητόν Il 22370 φυὴν ἐδάην καὶ microήδεα 3208 most freq in adv sense Νέστορι δίῳ εἶδός τε microέγεθός τε φυήν τ ἄγχιστα ἐῴκει in shape and in stature and in size (or growth) 258 cf Od 6152 οὔ ἑθέν ἐστι χερείων οὐ δέmicroας οὐδὲ φυήν οὔτ ἂρ φρένας Il 1115 cf Od 5212 7210 φυήν γε microὲν οὐ κακός ἐστι 8134 χρυσέῳ [γένει] οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόηmicroα Hes Op 129 cf Sc 88 B 5168 later in gen οὔτε φυῆς ἐπιδευέες οὔτε νόοιο Theoc 22160 rare in Trag τὴν τάλαιναν εὔmicroορφον φ A Niob in PSI 1112088 φυὰν Γοργόνος ἴσχειν E El 461 (lyr) 2 after Hom of animals plants or objects ἐmicroβάλλων ἐριπλεύρῳ φυᾷ κέντρον Pi P 4235 κάνθαρος Αἰτναῖος φυήν S Ichn 300 also τερπόmicroεναι ῥοδέῃ φ of roses Mosch 236 of beans Luc VitAuct 6 of things ἀνέβη ἡ φ τοῖς τείχεσιν their original form was restored LXX Ne 47(1) ἐὰν κατὰ φυὰν διαφθαρῇ τις τῶν λίθων IG 7307340 (Lebad ii B C) II poet for φύσις nature genius σοφὸς ὁ πολλὰ εἰδὼς φυᾷ Pi O 286 microάρνασθαι φυᾷ Id N 125 cf I 7(6)22 φυᾷ τὸ γενναῖον ἐπιπρέπει Id P 844 τὸ δὲ φυᾷ κράτιστον ἅπαν Id O 9100 δεινὸς φυήν Cratin 221 III the flower or prime of age εὐάνθεmicroος φυά Pi O 167 IV substance ἀναίmicroων ἐστὶ φυὴ microελέων Opp H 1639 νεφροὶ τὴν φ ἀδενώδεες Aret SD 23 V microερόπων φυή the race of men APl 41837 VI produce of a year harvest φ τοῦ ἐνεστῶτος ἔτους BGU 7084 (ii A D) cf Pland 2612 (i A D) etcmdashPoet and later prose 73 Ibidem

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casos o termo eidos e morpheacute eram mais utilizados Aleacutem disso tambeacutem

encontramos outra palavra que foi importante posteriormente para fenomenologia

no seacuteculo XIX74 que eacute o verbo phaino75(mostrarrevelar) que estaacute no radical de

phainesthai 76 A partir dessas evidecircncias expostas podemos afirmar que o sentido

primaacuterio de phyacutesis estava totalmente atrelado aos seguintes termos crescimento

aparecimento desenvolvimento forma ou estrutura de alguma coisa 77 No

exemplo exposto pelo poeta a sentenccedila deixa claro que a forma78 da planta foi lhe

revelada79 apenas quando o deus Hermes interveacutem para lhe transmitir o

conhecimento necessaacuterio para que o nosso astuto heroacutei pudesse desfazer o feiticcedilo

lanccedilado por Circe e com isso realizar o objetivo de libertar seus amigos80

Um dos pontos que gostariacuteamos de destacar aqui eacute a correlaccedilatildeo que haacute entre

o ato de transmissatildeo e conhecimento dentro desse contexto que toma a proacutepria

phyacutesis como forma e paradigma81 desse viacutenculo fundamental que determina a

existecircncia de todas as coisas Mesmo de modo alegoacuterico e sub-reptiacutecio o poeta

apresenta os pontos substanciais para a discussatildeo nesses versos que seratildeo

norteadores para todos os pensadores que surgiratildeo posteriormente Essa trama que

ocorre no capiacutetulo X expotildee de modo exemplar a nossa condiccedilatildeo82 miseraacutevel de total

ignoracircncia que assinala a naturezaforma(phyacutesis) humana e seu distanciamento do

mundo divino mas tambeacutem abre o horizonte para a formulaccedilatildeo de uma educaccedilatildeo83

que possa orientar e resguardar a comunidade atraveacutes desse contato cauteloso com

74 Corrente filosoacutefica que foi desenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938) - filoacutesofo matemaacutetico e loacutegico austriacuteaco 75 Φαίνω Aparecer 76 Φαινεσθαιphainesthai 77 Essa evidecircncia nos leva a especular a possibilidade da famosa hipoacutetese conhecida na antiguidade como a teoria das formas ter surgido a partir desse conceito de natureza que foi proposto no periacuteodo homeacuterico 78 Φύσιςphyacutesis 79 Esse eacute o sentido do verbo ἔδειξεeacutedeixe que vem de δείκνυmicroιdeiknumi (trazer agrave luz mostrar fazer conhecido) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott Dentro da construccedilatildeo poeacutetica homeacuterica podemos reconhecer a relaccedilatildeo entre esse termo e o da phyacutesis Para nossa hipoacutetese esse ponto eacute de extrema importacircncia como veremos posteriormente 80 Posteriormente faremos uma anaacutelise sobre esse ponto para ressaltar os desdobramentos dessa histoacuteria no pensamento antigo 81 Παράδειγmicroα padratildeo modelo ou base Eacute importante frisar que no pensamento platocircnico esses dois termos satildeo correlatos Aliaacutes no livro X da Leis o filoacutesofo continua ainda utilizando esse mesmo esquema exegeacutetico que encontramos em Homero para apresentar as suas reflexotildees A partir desse fato podemos afirmar que esse eacute mais um indiacutecio que fornece elementos para a validaccedilatildeo de nossa hipoacutetese 82 Esse eacute outro termo correlato para a Φύσιςphyacutesis 83 ΠαιδείαPaideacuteia Posteriormente vamos apresentar algumas caracteriacutesticas sobre a educaccedilatildeo grega

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os deuses pois a uacutenica forma de um mortal como no caso de Odisseu obter sucesso

contra as forccedilas que natildeo pertencem ao mundo humano - que no contexto homeacuterico

eacute sempre retratado com adjetivos que ressaltam a fragilidade e a brevidade de nossa

condiccedilatildeo ndash eacute estabelecer um diaacutelogo84 com alguma divindade 85 Nesse sentido a

poesia homeacuterica afirma que essa relaccedilatildeo com o mundo divino eacute o uacutenico caminho

que pode fornecer ao homem o conhecimento necessaacuterio para manter a sua

sobrevivecircncia em um mundo que eacute controlado por essas forccedilas antagocircnicas Dentro

dessa construccedilatildeo alegoacuterica86 eacute necessaacuterio recorrer ao extenso banco mnemocircnico de

histoacuterias que foram transmitidas e mantidas desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo oral que

possibilitou o surgimento e ecircxito da poesia homeacuterica (VIDAL-NAQUET 2002) no

mundo grego Para adesatildeo coletiva dessas noccedilotildees como veremos no proacuteximo

capiacutetulo eacute necessaacuterio que os gregos compartilhem esses valores que eram

repassados pelos antigos aedos87 de modo unificado atraveacutes de sua liacutengua Um

exemplo desse fato pode ser adquirido na observaccedilatildeo do papel de destaque que

poeta fornece ao deus Hermes dentro do drama sofrido por Odisseu Eacute provaacutevel

como ressalta o socioacutelogo e filoacutelogo francecircs Louis Gernet (GERNET 1968) que

esse coacutedigo de conduta que eram repassados em versos na antiguidade por

intermeacutedio dos mitos fossem utilizados para a construccedilatildeo de arqueacutetipos que eram

uacuteteis natildeo apenas para afirmaccedilatildeo dos valores defendidos pela aristocracia mas para

coesatildeo estrutural da trama narrada pelo poeta pois a total eficaacutecia do primeiro

objetivo vive em funccedilatildeo do desempenho harmocircnico obtido pelo aedo perante o

puacuteblico O reconhecimento dessas figuras facilita a adesatildeo por parte da audiecircncia e

84 ∆ιάλογοςdiaacute-logos Conversaccedilatildeo interaccedilatildeo e relaccedilatildeo e entre duas ou mais pessoas Posteriormente vamos apresentar a importacircncia desse ato natildeo apenas para o desenvolvimento cultural grego mas tambeacutem sob o ponto de vista ontoloacutegico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico Nesse sentido estamos partindo da hipoacutetese de que os fundamentos principais para cada um desses pontos jaacute estatildeo apresentados de modo alegoacuterico nos poemas homeacutericos 85 ἈθάνατοιAthanatoi Os imortais Na mitologia esse fato estaacute presente na maioria dos mitos que chegaram ateacute noacutes Outro exemplo que podemos trazer podem ser obtidas na obra da Iliacuteada Na guerra de Troacuteia ambas os lados aqueus e troinanos receberam apoio divino 86 ὑπόνοιαhyponoacuteia ἡ (ὑπονοέω) suspeita conjectura suposiccedilatildeo Ar Pax 993 (pl anap) τοῦ microὴ συνειληφέναι Sor 254 cf Gal 6663 ὑπόνοιαι τῶν microελλόντων noccedilotildees formadas de eventos futuros Th 587 ἡ ὑ τῶν ἔργων Id 241 cf E Ph 1133 em sentido negativo ὑπόνοιαι πλασταί D 4839 cf Men Mon 732 2 suggestion Phld Mus p71 K imputaccedilatildeo Id D 113 II o verdadeiro significado que estaacute no fundo de uma coisa um sentido mais profundo τὰς ὑ οὐκ ἐπίστανται X Smp 36 esp significado secreto (como eacute transmitido por mitos e alegorias) ὁ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε ὑ καὶ ὃ microή Pl R 378d cf Plu 219e opp αἰσχρολογία Arist EN 1128a24 καθ ὑπόνοιαν por insinuaccedilatildeo secretamente Plb 2845 DH Rh 91 δι ὑπονοιῶν Alciphr 24 87 ἀοιδός aoidos cantor Esse termo eacute oriundo do verbo (ᾄδω aidocirc) cantar

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reforccedila de modo sutil a funccedilatildeo coercitiva que a poesia realiza junto com a religiatildeo

para a manutenccedilatildeo e organizaccedilatildeo juriacutedica no periacuteodo arcaico (GERNET 1968)

Para termos uma noccedilatildeo mais precisa desse fato basta observar o uso intenso

dos epiacutetetos e foacutermulas nas duas obras homeacutericas Segundo Milman Parry que foi

um importante helenista americano que se destacou pelo estudo da tradiccedilatildeo oral

homeacuterica o uso demasiado dos epiacutetetos e foacutermulas tinha uma funccedilatildeo bem

determinada para os antigos aedos permite uma espeacutecie de pausa no fluxo contiacutenuo

da narrativa que lhe fornecia um breve descanso durante as longas apresentaccedilotildees

desses poemas e a possibilidade de estender ou encurtar a sua recitaccedilatildeo (PARRY

1971) conforme a sua vontade Eacute uma espeacutecie de dispositivo extremamente

sofisticado para a cultura oral que oferece ao cantor um domiacutenio maior sobre o

conteuacutedo para o total ecircxito de sua performance em puacuteblico Essa caracteriacutestica

fornecia ao aedo uma possibilidade de assinar a sua singularidade em relaccedilatildeo aos

outros que compartilhavam com ele o mesmo ofiacutecio E isso era algo primordial

dentro de uma cultura tatildeo competitiva como a grega A perfeiccedilatildeo era algo almejado

como maacuteximo valor entre os helenos

Mas haacute ainda uma caracteriacutestica que natildeo foi ressaltada pelo ilustre helenista

E ela reside na funccedilatildeo mnemocircnica e de fixaccedilatildeo do conteuacutedo expresso nas foacutermulas

e epiacutetetos Esse recurso atua como uma espeacutecie de ritornelo88 na muacutesica popular

que desempenha o papel de reforccedilar a mensagem exposta pela canccedilatildeo No caso da

poesia homeacuterica quando nos deparamos com a repeticcedilatildeo de certas foacutermulas e

epiacutetetos nos salta aos olhos - mas sobretudo aos ouvidos89 - o poder de cravar na

memoacuteria coletiva natildeo apenas as qualidades dos heroacuteis mas dos deuses oliacutempicos

Essa estrateacutegia na muacutesica tambeacutem ocorre com o leitmotiv90 que associa a

88 Na muacutesica em geral atua como refratildeo estribilho coro ou ritornelo Esse recurso tem o poder de sintetizar a mensagem geral de uma canccedilatildeo reafirmando o seu principal sentido norteador Ou seja o leitmotiv da canccedilatildeo Essa caracteriacutestica nos fornece alguns elementos para entender o recursoutilizado por esses antigos poetas gregos 89 Esse detalhe natildeo pode ser esquecido por noacutes aacutevidos leitores modernos No mundo antigo a transmissatildeo de conhecimento era dada atraveacutes da oralidade Logo para defender essa hipoacutetese precisamos nos colocar na posiccedilatildeo de ouvinte Nesse sentido a canccedilatildeo popular sobretudo o estilo dos cordelistas em vaacuterias culturas ainda guardam algumas caracteriacutesticas dessa antiga tradiccedilatildeo oral 90 Esse termo vem da liacutengua alematilde e significa ldquomotivo condutorrdquo

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personagem ou algum tema especiacutefico a uma determinada imagem sonora

composta para o intuito de associaccedilatildeo automaacutetica91

Quando analisamos cada uma das divindades que formam o mundo oliacutempico

encontramos natildeo apenas os sentimentos humanos antropomorfizados em figura

divinas mas de qualidades que atuam de modo simboacutelico na construccedilatildeo poeacutetica

sobre a ordem humana92 O exemplo que gostariacuteamos de destacar no proacuteximo

paraacutegrafo para enfatizar e fornecer elementos comprobatoacuterios para a nossa

hipoacutetese eacute a atuaccedilatildeo de Hermes na Odisseia Teremos a oportunidade de analisar

nesse incidente que ocorre no capiacutetulo X a riqueza poeacutetica agrave serviccedilo da educaccedilatildeo

aristocraacutetica helecircnica que foi importante para os estudos dos primeiros filoacutesofos

gregos que surgiram posteriormente

Na mitologia essa divindade carregava inuacutemeros atributos e entre eles estatildeo o

domiacutenio da magia fertilidade dos rebanhos e da adivinhaccedilatildeo Contudo o seu

epiacuteteto mais famoso na antiguidade eacute o de mensageiro dos deuses Ele eacute o

responsaacutevel de estabelecer o diaacutelogo entre o mundo divino e humano Ou seja o

papel da comunicaccedilatildeo e do conhecimento eacute fornecido aos homens a partir da sua

atuaccedilatildeo que ocorre exatamente quando ele estabelece contato com Odisseu Como

vimos anteriormente no fragmento I de Heraacuteclito o Loacutegos93atua na dimensatildeo

humana e divina e estaacute totalmente em consonacircncia com a Phyacutesis Esse dado fornece

a primeira evidecircncia do desenvolvimento da linguagem94 que pode ser fornecido

pelo verbo phyacutee95 que forma o seu radical A frase emblemaacutetica do livro X na qual

Odisseu expressa que Hermes lhe repassou o segredo da planta soacute eacute confirmada a

partir da expressatildeo ldquoe a mim trouxe a luz a sua formardquo96 E eacute exatamente nesse

91 O ponto que gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo na relaccedilatildeo entre o ritornelo e o leitmotiv eacute a repeticcedilatildeo que guarda o mesmo efeito de fixaccedilatildeo e reforccedilo que satildeo fornecidos pelos epiacutetetos e foacutermulas homeacutericas Um estudo interessante seria investigar qual eacute a relaccedilatildeo desse antigo recurso mnemocircnico na influecircncia na composiccedilatildeo da muacutesica moderna 92 O teatro antigo tambeacutem parte desse mesmo pressuposto que foi utilizado pelos primeiros poetas no periacuteodo arcaico 93 Dentro desse contexto especiacutefico vamos atribuir o sentido de linguagem Eacute importante ressaltar como nos lembra o grande professor Danilo Marcondes que entre os gregos antigos esse era um dos problemas mais importantes Todavia haacute uma grande divergecircncia no uso desse termo entre os especialistas sobre o tema Logo esse presente trabalho visa destacar alguns desses pontos sobre o assunto a partir da literatura antiga Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 94 Vide a nota anterior Dito de outro modo sobre o surgimento da questatildeo entre o ser pensar e dizer entre os gregos 95 Φυή Phuacutee formaestatura 96 Traduccedilatildeo literal nossa

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ponto que gostariacuteamos de focar a nossa total atenccedilatildeo O jogo poeacutetico e semacircntico

natildeo eacute de modo algum fortuito pois Hermes eacute aquele deus que faz revelar - por fora

e por dentro - as caracteriacutesticas gerais da planta (exterior) e o efeito do

venenodroga97 que estaacute escondido no seu acircmago (interior) A luz que se associa ao

conhecimento equivale ao poder de trazer a forma a sua presenccedila que estaacute oculta

aos nossos precaacuterios sentidos Entre essas duas esferas instaura-se uma tecircnue linha

vertical que impotildee uma ordem98com as suas leis99 e com a sua oacuterbita especiacutefica que

seraacute composta a partir das seguintes linhas exegeacuteticas teogocircnica cosmogocircnica e

cosmoloacutegica100 no qual seraacute delineado todo o espaccedilo de atuaccedilatildeo humano tendo

como paracircmetro os imortais

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Phyacutesis e Loacutegos

Conforme foi exposto anteriormente o uso e a definiccedilatildeo de linguagem que

podemos encontrar amplamente exposta no periacuteodo claacutessico nas obras de Platatildeo101

e Aristoacuteteles102 por exemplo jaacute estatildeo apresentados dentro dessa imagem pintada

pelo poeta nesse sentido podemos afirmar como os grandes homeridas antigos103

que a poesia de Homero expotildee os elementos mais importantes para uma definiccedilatildeo

natildeo apenas da Natureza mas tambeacutem de sua relaccedilatildeo com o Loacutegos104 ou seja o

diaacutelogo entre a Natureza e Linguagem estaacute totalmente esboccedilado dentro desse

97 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Eacute nesse instante que percebemos a grandiosidade do pensamento grego que estaacute atrelado agrave justa medida (ὀρθὸς λόγοςorthos loacutegos) que soacute pode ser alcanccedilada atraveacutes do conhecimento (ἐπιστήmicroηepistheme) Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o livro II da ldquoEacutetica a Nicomacirccordquo de Aristoacuteteles (EthNic II 1103 ndash 35) No capiacutetulo III voltaremos a dissertar sobre o desdobramento dessa importante questatildeo no acircmbito poliacutetico grego 98 Κόσmicroος 99 Νόmicroοιnomoi 100 Θεογονία κοσmicroογονία και κόσmicroολογία 101 Vide o diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo No proacuteximo paraacutegrafo faremos uma anaacutelise pormenorizada de uma importante passagem desse diaacutelogo que corrobora com nossa hipoacutetese 102 Vide a Poeacutetica e Da Interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles 103 Satildeo os antigos especialistas na interpretaccedilatildeo das obras homeacutericas na antiguidade Platatildeo cita esses especialistas no diaacutelogo Craacutetilo (407 b) Para mais informaccedilotildees sobre assunto vide o seguinte livro PSEUDO-HERAacuteCLITO ldquoAs alegorias de Homerordquo 104 Eacute importante lembrarmos que esse termo soacute aparece duas vezes na obra homeacuterica (Iliacuteada canto 15393 e Odisseia canto 156) e parece que estaacute nesse contexto com o sentido de discurso Dentro do presente capiacutetulo estamos utilizando uma de suas acepccedilotildees que estaacute votado para o ato de expressatildeo Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto vide o nosso anexo

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contexto literaacuterio Mas eacute importante ressaltarmos aqui que o sentido primaacuterio que

encontramos no livro X para phyacutesis precisa levar essa relaccedilatildeo com o loacutegos de modo

bem cuidadoso pois apenas a partir de Heraacuteclito e Platatildeo eacute possiacutevel fazer uma

aproximaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que nos ajuda a fundamentar a nossa

hipoacutetese aqui exposta Atraveacutes dessa via-cruacutecis helecircnica podemos compreender

essa relaccedilatildeo que representa as duas faces da mesma moeda de ouro que foi cunhada

pelas matildeos dos antigos bardos ou seja seguindo a loacutegica vertical subtendida no

poema o loacutegos atua como desdobramento da phyacutesis do niacutevel interior ao exterior

do particular ao universal do imanente ao transcendente Os deuses que tudo criam

possuem a verdade (verum factum) das coisas porque satildeo seus criadores105 logo

somente eles tecircm o poder da linguagem divina106 que homem tem acesso apenas

quando lhe eacute revelado os meandros de algo e isso ocorre quando essa verdade for

realmente conhecidapercebidaconcebida em sua totalidade ou seja quando ela se

torna sensiacutevel para o mundo humano Eis os trecircs eixos temaacuteticos que juntos formam

a equaccedilatildeo do problema da linguagem conhecimento percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Curiosamente esses pontos aparecem na leitura que encontramos no diaacutelogo

Craacutetilo107 que na antiguidade era visto como um dos maiores seguidores de

Heraacuteclito108 Como veremos a seguir essa passagem corrobora de modo imparcial

com a hipoacutetese que defendemos ateacute agora a obra homeacuterica estaacute em total

consonacircncia com as reflexotildees dos primeiros pensadores preacute-socraacuteticos em torno

105 Essa importante hipoacutetese foi levantada pela primeira vez pelo filoacutesofo italiano Giambattista Vico em ldquoDe antiquissima Italorum sapientiardquo no qual o conhecimento de todas as coisas estaacute na matildeo de deus pois ele eacute o uacutenico criador da natureza de todas as coisas existentes como o homem eacute a sua imagem e semelhanccedila atraveacutes do loacutegos o homem poder estabelecer um diaacutelogo unicamente atraveacutes dessa via com essa instacircncia divina De certa forma essa noccedilatildeo aparece no pensamento de Descartes na terceira meditaccedilatildeo Rodolfo Mondolfo chama atenccedilatildeo para essa concepccedilatildeo ativista do conhecimento que podemos encontrar na obra de Vico ateacute Marx que parte da leitura dos antigos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum factum desde antes de Vico hasta Marxrdquo Na antiguidade essa noccedilatildeo aparece de modo mais estruturado na obra ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles (Aris EthNic Livro VI 31138-9b) quando ele estabelece o criteacuterio de verdade a partir de algo que foi realizado e efetivado Posteriormente veremos que essa noccedilatildeo natildeo exclui ou compete com o sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo apresentado pelos antigos poetas Pelo contraacuterio ela aparece como algo complementar a esse sentido primaacuterio 106 Λόγος No sentido tambeacutem do conhecimento das coisas divinas que eacute oriunda da mente ou inteligecircncia divina (θεοῦ νόησιν theou noecircsis) Essa expressatildeo aparece no diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo (407 b) quando Soacutecrates estabelece uma etimologia para o nome da deusa Atenas a partir da seguinte frase ldquoaquela que tem conhecimento das coisas divinasrdquo (ὡς τὰ θεῖα νοούσηςhoacutes taacute theia noouacuteses) 107 Vide a ldquoMetafiacutesicardquo de Aristoacuteteles (livro A 6 988 a26) e tambeacutem em Dioacutegenes Laeacutercio ldquoDa vida e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo (Livro III 4) 108 Em DK (65) Alguns aspectos da vida e obra de Craacutetilo podem ser obtidos na seguinte obra I Presocratici Prima traduzione integrale con testi originali fronte delle testimoniannze e dei frammenti nella raccolta di H Diels e W Kranz Milano 2006

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desse problema da linguagem Nesse famoso diaacutelogo de Platatildeo a personagem de

Soacutecrates apresenta uma etimologia interessante em torno desse deus que nos

fornece muitos elementos para a nossa presente investigaccedilatildeo Vejamos a seguir

[PLATAtildeO Craacutetilo] ldquoHermoacutegenes - eacute o que eu farei antes poreacutem desejo perguntar-te a respeito de Hermes por haver dito Craacutetilo que eu natildeo sou Hermoacutegenes Investiguemos portanto o verdadeiro significado do nome Hermes para ver se ele tinha razatildeo no que disse Soacutecrates - de todo o jeito Quer parece-me que o nome Hermes se relaciona com o discurso109 eacute inteacuterprete110 ou mensageiro111 tambeacutem trapaceiro feacutertil em discursos e comerciante labioso qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da palavra112 Ora como dissemos antes falar (eirein) eacute fazer uso do discurso aleacutem de haver uma expressatildeo muito empregada por Homero (emecircsato) que significa inventar Da reuniatildeo dessas duas expressotildees ndash falar e inventar ndash formou o legislador o nome do deus como se nos advertisse expressamente homens o deus que inventou o discurso deve ser chamado Eiremes Mas hoje segundo eu penso embelezamos-lhe o nome e lhe chamamos Hermes Iacuteris tambeacutem parece provir do mesmo vocaacutebulo eirein por ser ela mensageira Hermoacutegenes ndash entatildeo parece que Craacutetilo tem razatildeo de dizer que natildeo me chamo Hermoacutegenes pois sou jejuno em mateacuteria de discursos Soacutecrates ndash quanto a Pan camarada filho de Hermes eacute faacutecil compreender que eacute de natureza hiacutebrida Hermoacutegenes ndash como assim Soacutecrates ndash como sabes o discurso indica todas as coisas (pan) e circula e movimenta sem parar aleacutem de ser de natureza hiacutebrida verdadeira e falsa ao mesmo tempo113 Hermoacutegenes ndash desde logo Soacutecrates ndash logo o que nele haacute de verdadeiro eacute macio e divino e reside no alto com os deuses por outro lado o que haacute de falso mora em baixo com a multidatildeo dos homens e eacute aacutespero como o bode da trageacutedia pois em verdade o maior nuacutemero das faacutebulas e das mentiras se encontra justamente no domiacutenio da trageacutedia114rdquo

109 περὶ λόγονperi logon 110 ἑρmicroηνέαhermeneia 111 ἄγγελονaggelon 112 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 113 οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής oistha hoti o loacutegos to pan semainei kai kyklei kai poleia ei kai esti diplous alethes te kai pseudes Essa eacute sem duacutevida alguma uma das expressotildees mais importantes dessa passagem 114 Em Platatildeo Craacutetilo (407 e - 408 a-c) Ἑρmicroογένης - ἀλλὰ ποιήσω ταῦτα ἔτι γε ἓν ἐρόmicroενός σε περὶ Ἑρmicroοῦ ἐπειδή microε καὶ οὔ φησιν Κρατύλος Ἑρmicroογένη εἶναι πειρώmicroεθα οὖν τὸν lsquoἙρmicroῆνrsquo σκέψασθαι τί καὶ νοεῖ τὸ ὄνοmicroα ἵνα καὶ εἰδῶmicroεν εἰ τὶ ὅδε λέγει Σωκράτης - ἀλλὰ microὴν τοῦτό γε ἔοικε περὶ λόγον τι εἶναι ὁ lsquoἙρmicroῆςrsquo καὶ τὸ ἑρmicroηνέα εἶναι καὶ τὸ ἄγγελον καὶ τὸ [408α] κλοπικόν τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοις καὶ τὸ ἀγοραστικόν περὶ λόγου δύναmicroίν ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγmicroατεία ὅπερ οὖν καὶ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγοmicroεν τὸ lsquoεἴρεινrsquo λόγου χρεία ἐστί τὸ δέ οἷον καὶ Ὅmicroηρος πολλαχοῦ λέγει lsquoἐmicroήσατόrsquo φησιν τοῦτο δὲ microηχανήσασθαί ἐστιν ἐξ ἀmicroφοτέρων οὖν τούτων τὸν τὸ λέγειν τε καὶ τὸν λόγον microησάmicroενονmdashτὸ δὲ λέγειν δή ἐστιν εἴρεινmdashτοῦτον τὸν θεὸν ὡσπερεὶ ἐπιτάττει [408β] ἡmicroῖν ὁ νοmicroοθέτης lsquoὦ ἄνθρωποι ὃς τὸ εἴρειν ἐmicroήσατο δικαίως ἂν καλοῖτο ὑπὸ ὑmicroῶν εἰρέmicroηςrsquo νῦν δὲ ἡmicroεῖς ὡς οἰόmicroεθα καλλωπίζοντες τὸ ὄνοmicroα lsquoἙρmicroῆνrsquo καλοῦmicroεν καὶ ἥ γε Ἶρις ἀπὸ τοῦ εἴρειν ἔοικεν κεκληmicroένη ὅτι ἄγγελος ἦν Ἑρmicroογένης - νὴ τὸν ∆ία εὖ ἄρα microοι δοκεῖ Κρατύλος λέγειν τὸ ἐmicroὲ microὴ εἶναι Ἑρmicroογένη οὔκουν εὐmicroήχανός γέ εἰmicroι λόγου Σωκράτης - καὶ τό γε τὸν Πᾶνα τοῦ Ἑρmicroοῦ εἶναι ὑὸν διφυῆ ἔχει τὸ εἰκός ὦ ἑταῖρε Ἑρmicroογένης - πῶς δή Σωκράτης - οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής Ἑρmicroογένης - πάνυ γε Σωκράτης - οὐκοῦν τὸ microὲν ἀληθὲς αὐτοῦ λεῖον καὶ θεῖον καὶ ἄνω οἰκοῦν ἐν τοῖς θεοῖς τὸ δὲ ψεῦδος κάτω ἐν τοῖς πολλοῖς τῶν ἀνθρώπων καὶ τραχὺ καὶ τραγικόν ἐνταῦθα γὰρ πλεῖστοι οἱ microῦθοί τε καὶ τὰ ψεύδη ἐστίν περὶ τὸν τραγικὸν βίον (Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes)

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Essa passagem platocircnica que destacamos do diaacutelogo Craacutetilo sintetiza todos os

pontos que ressaltamos anteriormente nesse presente capiacutetulo Independentemente

do foco que muitos helenistas colocam em torno do problema da criacutetica da teoria

convencionalista e naturalista da linguagem que se refere a uma problemaacutetica

contextual da eacutepoca115 o diaacutelogo nos fornece uma gama de elementos que flutuam

em torno da questatildeo da phyacutesis e do nomos116 ou seja da natureza e da convenccedilatildeo

humana Essa era uma das questotildees cruciais do periacuteodo claacutessico que nos ajuda a

compreender a atmosfera intelectual desse periacuteodo Sendo esse eacute um dos primeiros

aspectos que eacute resultado do desdobramento da alegoria homeacuterica Eacute o que veremos

a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

Um dos traccedilos de destaque do periacuteodo claacutessico foi sem duacutevida alguma a

abertura intelectual e poliacutetica que promoveram a apariccedilatildeo de gecircnios como o escultor

Fiacutedias Tuciacutedides Anaxaacutegoras e Goacutergias O pensamento de Protaacutegoras e de

Soacutecrates117 que tambeacutem pertence a esse famoso grupo por exemplo carrega um

ponto em comum com esse conjunto de intelectuais ele revela o distanciamento da

subordinaccedilatildeo do homem ao mundo divino118 Mas essa independecircncia ocorreu em

direccedilotildees opostas De um lado alimentou o desprezo dos jovens pela tradiccedilatildeo119 que

foi importante para o surgimento de uma postura criacutetica que pocircs em xeque o proacuteprio

passado helecircnico e de outro contribuiu para enfraquecer os laccedilos de fraternidade

que era a principal base do antigo sistema poliacutetico grego A influecircncia sofiacutestica que

se mantinha atraveacutes da forccedila da palavra (loacutegos) foi determinante para cultivar o

agnosticismo120 e o individualismo entre os mais jovens As teacutecnicas retoacutericas eram

cultivadas com o intuito de fornecer um meio eficaz de conquista e poder pessoal

para os mais jovens121 No Craacutetilo eacute possiacutevel percebemos a ironia e o espanto de

115 Vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 116 Φύσις και νόmicroος 117 No proacuteximo capiacutetulo vamos abordar esse ponto 118 De certa forma Platatildeo tentou superar essa crise 119 Cito aqui o processo de Soacutecrates E um dos pontos do processo estava o crime de corrupccedilatildeo dos jovens 120 Refere-se a impossibilidade radical de se conhecer algo que escape da esfera humana Um exemplo o conhecimento dos deuses Vide o caso de Protaacutegoras muito antes de Kant foi um dos primeiros a impor limite ao conhecimento humano Em contrapartida esse gesto acarretou um desprezo pelo estudo da filosofia e tambeacutem alimentou o sentimento egoiacutesta entre os jovens como veremos posteriormente de modo mais detalhado 121 Vide a comeacutedia ldquoAs nuvensrdquo de Aristoacutefanes Posteriormente veremos que o projeto pedagoacutegico oferecido por Platatildeo atraveacutes do diaacutelogo visava reverter esse processo

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Platatildeo em relaccedilatildeo ao interesse pueril sobre a exatidatildeo dos nomes Como pano de

fundo esse diaacutelogo apresenta a decadecircncia intelectual atraveacutes da discussatildeo em

torno da tese convencionalista que eacute defendida pelos seguidores de Protaacutegoras e

os naturalistas que seguem a visatildeo de Heraacuteclito que tem a phyacutesis como a medida

de todas as coisas Essa eacute uma imagem que expotildee em plano aberto o cenaacuterio geral

dos efeitos colaterais promovidos pela pedagogia sofiacutestica122 Mesmo sendo um

diaacutelogo de cunho aporeacutetico Soacutecrates123 tem inicialmente uma tendecircncia de seguir

a orientaccedilatildeo de Craacutetilo que visa refutar a posiccedilatildeo convencionalista defendida por

Protaacutegoras De modo sorrateiro ele utiliza essa hipoacutetese para liquidar todas as

possibilidades de contra argumentaccedilatildeo do pobre Hermoacutegenes Mas no final

percebemos que ele se distacircncia tambeacutem da linha oferecida por Craacutetilo Esse

abandono eacute algo curioso pois natildeo sabemos se isso revela a postura de Platatildeo ou do

proacuteprio Soacutecrates histoacuterico124 Segundo Aristoacuteteles o seu mestre tinha influecircncia da

escola pitagoacuterica e desde de jovem era um seguidor de Craacutetilo e do pensamento do

filoacutesofo efeacutesio para as questotildees que estavam voltadas para o acircmbito do

conhecimento125 A tese muita difundida na eacutepoca que defendia que todas as coisas

sensiacuteveis estatildeo em processo de mudanccedila contiacutenua teria sido o seu ponto de partida

para a filosofia platocircnica Enquanto que para questotildees de cunho moral teria se

servido da influecircncia socraacutetica

O ponto interessante nessa descriccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo dos fatos e o ordenamento

cronoloacutegico126 oferecido pelo filoacutesofo macedocircnio Diferentemente do mestre da

Academia o seu estilo soacutebrio e analiacutetico apresenta de modo claro para o leitor

atencioso muitas questotildees que vatildeo aleacutem da proacutepria informaccedilatildeo transmitida no texto

A primeira delas eacute o processo de formaccedilatildeo intelectual do filoacutesofo poeta esse traccedilo

122 No cinema o plano aberto (long shot) a cacircmera que representa o olhar do cineasta estaacute distante do objeto de modo que ele ocupa uma parte pequena do cenaacuterio Eacute um plano de ambientaccedilatildeo importante para apresentar inicialmente o espaccedilo cecircnico 123 Ou Platatildeo 124 Uma hipoacutetese para esse ldquoabandonordquo poderia ser interpretada pelo distanciamento de Platatildeo em relaccedilatildeo as duas principais correntes intelectuais do seu tempo No Teeteto por exemplo eacute possiacutevel encontramos uma minuciosa criacutetica em relaccedilatildeo agrave validade do conhecimento a partir dessas hipoacuteteses 125 Aristoacuteteles Metafiacutesica (I6 986-30) 126 Para essa questatildeo seguimos a tese de Wener Jaeger que defende que Aristoacuteteles foi o primeiro pensador que construiu paralelo a sua obra um conceito de sua proacutepria posiccedilatildeo na histoacuteria Ele teria sido o primeiro a promover a criaccedilatildeo de um novo gecircnero de consciecircncia filosoacutefica atraveacutes do modo de expressatildeo que corresponde diretamente ao seu desenvolvimento intelectual Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Jaeger W Aristotle Fundamentals of the History of His Development 2nd ed Oxford (1948)

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pode ser constatado a partir do proacuteprio tiacutetulo do diaacutelogo que leva o nome do seu

antigo mestre O segundo detalhe eacute o modo como Aristoacuteteles menciona a figura de

Heraacuteclito no texto A expressatildeo utilizada de modo literal eacute a seguinte ldquotendo

primeiro se familiarizado desde jovem com Craacutetilo e as opiniotildees de Heraacuteclitordquo127

no texto grego a expressatildeo ldquoas opiniotildees de Heraacuteclitordquo (Heracleiteiois doxais)

parece nos dizer com o uso do adjetivo primeiro (proacuteton)128 carregando o sentido

de anterioridade histoacuterica em referecircncia direta a Craacutetilo129 que as opiniotildees do

filoacutesofo efeacutesio teriam sido transmitidas por intermeacutedio dele Ao contrapor essas

informaccedilotildees com a anaacutelise do diaacutelogo homocircnimo nos deparamos com todas essas

evidecircncias que orientam a construccedilatildeo dramaacutetica e filosoacutefica do proacuteprio texto

Atraveacutes de uma espessa neblina pintada com os tons escuros da figura enigmaacutetica

de Soacutecrates ele refuta metodicamente as duas principais vias hipoteacuteticas

apresentadas no diaacutelogo Eacute importante ressaltar que a mesma tese heracliacutetica que

exerceu uma profunda influecircncia sobre o seu pensamento e de seu mestre Craacutetilo

tambeacutem foi importante para a postura relativista e agnoacutestica de Protaacutegoras130 Essa

aporia carrega um sentido mais traacutegico quando percebemos que a inutilidade dessa

discussatildeo promovida no encontro entre Craacutetilo Hermoacutegenes e Soacutecrates revela algo

ainda muito mais tenebroso ao filoacutesofo de que a linguagem eacute um caminho

totalmente incerto e enganoso para a obtenccedilatildeo do conhecimento da realidade131

Essa longa digressatildeo que fizemos natildeo foi sem propoacutesito Ela se fez necessaacuteria

para obtermos mais instrumentos pois temos a plena consciecircncia que o caminho

que estamos percorrendo eacute extremamente espinhoso Por isso que precisamos seguir

rotas alternativas que satildeo pouco frequentadas pelos mais apressados Mesmo

caminhando em ciacuterculos e com algumas pausas durante esse longo percurso como

o proacuteprio Platatildeo nos avisa natildeo devemos desistir diante dos obstaacuteculos Aprender a

127 ldquoἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόmicroενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαιςrdquo Ek neacuteou te gar synesthes genomenos proacuteton Kratylo kai Heracleiteiois doxais (Nossa traduccedilatildeo) 128 πρῶτον Κρατύλῳ proacuteton Kratylo 129 Vide a nota anterior 130 A doxagrafia antiga relata uma influecircncia do pensamento de Demoacutecrito sobre Protaacutegoras Mas a partir de vaacuterias posiccedilotildees defendidas pelo grande sofista como a tese dos dissoi logoi nos leva a crer uma certa aproximaccedilatildeo do pensamento do filoacutesofo efeacutesio Mario Untersteiner foi um dos primeiros helenistas que apontou essa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide UNTERSTEINER Mario Les Sophistes Traduit et precircsenteacute par Alonso Tordesillas Paris Librairie Philosophigue J Vrin 1993 Um ponto tambeacutem que natildeo discutimos em relaccedilatildeo a descriccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre o seu mestre eacute a distinccedilatildeo que ele faz de modo muito sutil entre Craacutetilo e Heraacuteclito Para algumas fontes mais antigas a saber em DL livro (III-4) 131 No diaacutelogo Teeteto o filoacutesofo analisa a natureza do conhecimento a partir dessa questatildeo

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olhar uma paisagem por diferentes perspectivas nos fornece uma visatildeo privilegiada

que habilita o espiacuterito a reatualizar a nossa rota mantendo o ritmo constante em

busca de novos resultados O nosso objetivo anterior seraacute retomado agora Depois

de analisar alguns aspectos discutidos no diaacutelogo de Platatildeo o nosso desvio

estrateacutegico em torno das polecircmicas entre os filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico

nos trouxe algumas evidecircncias para analisar com mais consistecircncia a imagem de

Hermes como a divindade simboacutelica da linguagem para os gregos desde do periacuteodo

homeacuterico

Esses rastros estatildeo contidos na passagem em que Hermoacutegenes pede ao

filoacutesofo Soacutecrates a etimologia do nome do deus Hermes pois segundo o proacuteprio

Hermoacutegenes a partir da linha defendida por Craacutetilo o seu nome natildeo guardava

nenhum parentesco132 com a divindade De forma geral todo o diaacutelogo carrega um

certo tom cocircmico em torno das origens dos nomes mas esse aspecto natildeo empobrece

a relevacircncia que o filoacutesofo impotildee na discussatildeo de outras questotildees que giram em

torno desse centro gravitacional que parte da inutilidade da pedagogia sofiacutestica e

a anaacutelise de algumas teses que surgem do desdobramento do problema entre a

phyacutesis e o nomos Aliaacutes essa problemaacutetica tambeacutem estaacute relacionada com as

reflexotildees que se inicia na obra homeacuterica e que se amplia atraveacutes dos primeiros

filoacutesofos preacute-socraacuteticos e chega finalmente no periacuteodo claacutessico com o diaacutelogo

Craacutetilo Nessa obra Platatildeo expotildee para noacutes os indiacutecios cruciais para a validaccedilatildeo da

interpretaccedilatildeo alegoacuterica que surge do encontro entre Hermes e Odisseu na ilha de

Circe Nesse momento Soacutecrates apresenta todos as caracteriacutesticas desse deus que

estaacute em total sintonia com a tradiccedilatildeo poeacutetica que foi a fonte e a base pedagoacutegica e

intelectual para a cultura helecircnica que o antecedera Atraveacutes da boca irocircnica de

Soacutecrates Platatildeo demonstra a sua erudiccedilatildeo que eacute fruto dessa educaccedilatildeo

aristocraacutetica recitando de cor e salteado a etimologia completa em torno do nome

de Hermes sem hesitar em nenhum momento Sendo essa uma das passagens mais

valiosas da obra que revela a sua capacidade mnemocircnica e o conteuacutedo da educaccedilatildeo

132 A antiga aristocracia fundava o seu poder poliacutetico atraveacutes dessa relaccedilatildeo familiar com os deuses que era fornecida pela teologia homeacuterica Eacute bem provaacutevel que essa praacutetica das correccedilotildees dos nomes pelos sofistas tenha a sua origem na genealogia promovida por essa minoria que detinha o poder na poacutelis Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto noacutes recomendamos o seguinte artigo FACAtildeO Emerson Democracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca - Revista dos alunos de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Novembro (2017)

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mito-poetica que ainda vigorava no seu tempo Nesse momento podemos notar que

o nome da divindade estaacute intimamente em consonacircncia com os seguintes termos

loacutegos133 intepretaccedilatildeo134 e mensagem135 Sendo tambeacutem considerado pela tradiccedilatildeo

como trapaceiro136 feacutertil em discursos137 comerciante labioso Todas essas

qualidades se assentam no poder da palavra138 Em outras fontes antigas139 que

temos sobre a imagem dessa divindade eacute possiacutevel comprovar a precisatildeo da

descriccedilatildeo platocircnica Nesse sentido e mesmo de modo sarcaacutestico o filoacutesofo expotildee

com perfeiccedilatildeo as caracteriacutesticas simboacutelicas que encontramos na obra homeacuterica140

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Poesia e Loacutegos

Quando juntamos essas informaccedilotildees ao lado da passagem que expomos

anteriormente sobre o encontro entre Odisseu e Hermes nos deparamos com a

uniatildeo entre duas esferas que orienta todo o processo de subjetividade helecircnico

daquele periacuteodo O uso do termo phyacutesis aplicado pelo poeta naquele contexto traz

o sentido de segredo revelado por um deus que escapa aos olhos humanos que seraacute

posteriormente retomado por Heraacuteclito ao lado desse loacutegos que se apoia nas mesmas

caracteriacutesticas desse uso semacircntico apresentado por Homero na Odisseia A partir

dessas evidecircncias expostas eacute possiacutevel traccedilar uma linha de continuidade entre

Homero e os filoacutesofos do periacuteodo preacute-socraacutetico141 (NADAFF 2005) O primeiro

desses pensadores foi Heraacuteclito Em alguns dos seus escassos fragmentos ele traz

vaacuterios elementos que coadunam com o sentido de phyacutesis que encontramos na obra

homeacuterica

133 περὶ λόγονperi logon 134 ἑρmicroηνέαhermeneia 135 ἄγγελονaggelon 136 Κλοπικόςklopikoacutes 137 τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοιςte kai to apantelon em loacutegois 138 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 139 Em Homero Iacuteliada (livro XXIV 334-5) no hino homeacuterico a Hermes e Aristoacutefanes A paz (14-5) 140 Esse eacute um dos indiacutecios que prova o diaacutelogo em niacutevel mais profundo que haacute entre Platatildeo e Homero 141 Ou seja uma continuidade e natildeo ruptura entre a Poesia e Filosofia

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ldquoA natureza ama esconder-serdquo142

E

ldquoBem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo143

Eacute importante ressaltar que esses primeiros pensadores se expressavam com

a mesma liberdade poeacutetica de seus antepassados Esse eacute outro importante traccedilo de

continuidade que pode ser encontrado nos fragmentos de vaacuterios desses pensadores

antigos Atraveacutes de suas obras eacute possiacutevel notarmos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo No

caso sobretudo de Heraacuteclito esse ponto eacute evidente a partir dessas passagens

expostas No fragmento I e no 112 ele usa a expressatildeo ldquoKata Physinrdquo (por natureza)

que eacute uma das primeiras apariccedilotildees desse termo entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos na

antiguidade No fragmento I um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo eacute o emprego

de duas conjunccedilotildees a primeira que foi mencionada anteriormente eacute ldquoKata Physinrdquo

(por ou segundo Natureza) e a segunda ldquoKata ton Logonrdquo (segundopor esse

loacutegos) Esse Kata atua como uma preposiccedilatildeo atraveacutes do caso genitivo e acusativo

Ele traz o sentido de ldquocomrdquo e ldquovindo derdquo Liddell amp Scott ainda chamam atenccedilatildeo

para o fato dessa partiacutecula carregar o sentido de ldquomovimento que vem de cima para

baixordquo Ou seja haacute uma alusatildeo do velho esquema de autoridade que os poetas

traziam do mundo divino para o mundo humano No caso de Heraacuteclito essas

conjunccedilotildees estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de reciprocidade que poeticamente

reforccedila o sentido entre essas duas instacircncias que ele expotildee filosoficamente na

sentenccedila A Poesia e a Filosofia assim como a Phyacutesis e o Loacutegos estatildeo intimamente

conectadas dentro desse contexto Ao partir da obra homeacuterica vimos que o nome do

deus Hermes se caracteriza por essa accedilatildeo de comunicaccedilatildeo vertical entre os dois

142 Heraacuteclito fragmento DK (123) φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ phyacutesis kryacuteptesthai philei nossa traduccedilatildeo 143 Ibidem DK (112) σωφρονεῖν ἀρετὴ microεγίστη καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας sophronein areteacute megiste kai sophin aletheacuteia legein kai poieiein kata phyacutesin hepaiontas traduccedilatildeo de Alexandre Costa

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mundos que estaacute presente nessas sentenccedilas que abordam a questatildeo da Phyacutesis e

Loacutegos Essas duas conjunccedilotildees operam de maneira dialoacutegica para acentuar os

diferentes niacuteveis semacircnticos explorados pelo filoacutesofo efeacutesio em torno dos

problemas oriundo da Natureza Como disse anteriormente esses dois termos tem

uma iacutentima afinidade que certamente vem da interpretaccedilatildeo homeacuterica entre a

natureza e linguagem O termo phrazon144(mostrar) que surge no fragmento I por

144 Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo a seguir φράζω S Ph 25 etc poet impf φράζον Pi N 161 fut φράσω [α] A Pr 781 etc aor 1 ἔφρασα hVen 128 hMerc 442 Hdt 2150 etc poet φράσα [α] Od 1122 A Ag 231 (lyr) imper φράσσατε Pi P 4117 pf πέφρακα Isoc 593 Phld Po 523 Ep aor πέφραδον ἐπέφραδον used by Hom mostly in 3 sg Il 14500 al (in Od 1273 8142 πέφραδε is imper) opt πεφράδοι Il 14335 inf πεφραδέειν πεφραδέmicroεν Od 19477 749 1 sg ἐπέφραδον only Il 10127 also aor 1 part gen φράδαντος dub in IG 5(2)26115 (Mantinea vi B C)mdash Med and Pass φράζοmicroαι Ep imper φράζεο φράζευ Il 5440 9251 inf φράζεσθαι Od 1294 Ep 3 sg impf φράζετο φραζέσκετο 11624 hAp 346 fut φράσοmicroαι [α] Il 15234 Ep φράσσοmicroαι Od 16238 aor1 ἐφρασάmicroην 17161 Ep φρασάmicroην 2375 3 sg and pl ἐφράσσατο φράσσαντο 4529 Il 15671 imper φράσαι Od 24331 A Ch 113 Ep 3 sg subj φράσσεται Od 24217 Ep inf φράσσασθαι Orac ap Hdt 357 aor Pass ἐφράσθην Od 19485 Hdt 184 E Hec 546 pf πέφρασmicroαι (in med sense) A Supp 438 (in pass sense) Isoc 15195 part προ-πεφραδmicroένος Hes Op 655 mdashThe aor Med is chiefly Ep also Archil 94 Sol 54 341 A Ch 113 E Med 653 (lyr)mdash point out show (never say tell in Hom acc to Aristarch) ἐς χῶρον ὃν φράσε Κίρκη Od 1122 cf Il 23138 Od 15424 also show the way to show where to find ᾗ οἱ αθήνη πέφραδε δῖον ὑφορβόν 143 cf 868 σήmicroατrsquo τά οἱ ἔmicroπεδα πέφραδ οδυσσεύς showed 19250 microῦθον πέφραδε πᾶσιν show make known the word to all 1273 cf 8142 δεῖξε καὶ ἔφρασε hVen 128 φράσσατέ microοι δόmicroους show me them Pi P 4117 ἔφρασε τὴν ἀτραπόν Hdt 7213 κόποι αὐτόmicroατοι φράζουσι νούσους Hp Aph 25 δmicroώων δή τινα microοι φράσον Theoc 2547 τὸ παράδειγmicroα ὃ ἂν φράζῃ ὁ ἀρχιτέκτων IG 22166896 abs φωνῆσαι microὲν οὐκ εἶχε τῇ δὲ χειρὶ ἔφραζε Hdt 4113 ἀντὶ φωνῆς φράζε χερί A Ag 1061 2 show forth tell declare λόγον ἔπος ὄνοmicroα Pi O 260 A Pers 173 (troch) Supp 320 φ τοῖσι ἥκουσι τὰ πρήγmicroατα Hdt 6100 ἑλοῦ γάρ ἢ πόνωντὰ λοιπά σοι φράσω σαφηνῶς ἢ τὸν ἐκλύσοντ ἐmicroέ A Pr 781 τιπρός τινα Hdt 168 Ar Nu 359 (anap) etc c dupl acc φ τινά τι Isoc 15100 τι Pl Phdr 267b περί τινος Isoc 15117 (v infr) ἐπί τινος Id Ep 68 rarely c gen tell of τῆς microητρὸς ἥκω τῆς ἐmicroῆς φράσων ἐν οἷς νῦν ἐστι S Tr 1122 folld by a relat clause φ ὅτι Lys 123 Pl Phdr 278b etc φ ὡς δεῖ γεωργεῖν X Oec 168 φ οἷ ἐπορσύνθη κακά A Pers 267 cf Pr 995 etc with double constr φ τό τε ὄνοmicroα καὶ ἐν ᾗ κώmicroῃ οἰκοῦσιν PRevLaws 295 (iii B C) rarely c part πεφραδέειν πόσιν ἔνδον ἐόντα Od 19477 οὐκ ἔφραζες σῆς προκείmicroενον νέκυν γυναικός E Alc 1012 later c acc et inf Phld lc explain (opp λέγω which means simply speak say) φράσον ἅπερ γ ἔλεξας declare explain what thou didst say S Ph 559 φράζε δὴ τί φῄς Id OT 655 φράζουσιν ἃ λέγει X An 2418 φράζε λόγῳ S Ph 49 Pl Lg 814c οὐχ ἁπλῶς εἰπεῖν ἀλλὰ σαφῶς φράσαι περὶ αὐτῶν Isoc 15117 cf Ep 12 σαφῶς φ τοῖς βουλοmicroένοις συνιέναι Aeschin 1129 of teachers Antipho 613 Pl Tht 180b of oracles Ar Eq 1048 Pl 46 Pl Lg 923a etc of letters Plu Cic 15 abs τοῦτο φράζει ὅτι this signifies that X Smp 830 b cultivate style or phrasing opp αὐτὸ τὸ γράφειν Duris 1 J 3 c dat pers et inf tell one to do so and so ἵνα γάρ σφιν ἐπέφραδον ἠγερέθεσθαι Il 10127 δὴ γάρ microοι ἐπέφραδε Κίρκη (sc ἰέναι) Od 10549 τοῖς ἀνθρώποισι φ σιγᾶν Ar Pax 98 (anap) τὰ ὅπλα ὑπολαβεῖν Th 658 cf 315 4 abs give counsel advise suggest δόλος ἦν ὁ φράσας S El 197 (lyr) II Med and Pass indicate to oneself ie think or muse upon consider ponder Ep Ion Trag but not in Att Prose εὔκηλος τὰ φράζεαι ἅσς ἐθέλῃσθα Il 1554 φράζεσθαι βουλήν βουλάς 18313 Od 11510 ἐνὶ φρεσὶ microῆτιν ἀmicroείνω Il 9423 πάντα microετὰ φρεσίν Hes Op 688 θυmicroῷ Il 16646 ἐφράσθη καὶ ἐς θυmicroὸν ἐβάλετο Hdt 184 πρὸς ταῦτα φράζου bethink thee S El 383 ἀmicroφὶς φ to think differently Il 214 folld by εἰ c fut indic consider whether 183 Od 10192 2 purpose plan contrive φ τινὶ κακά θάνατον ὄλεθρον 2367 3242 13373 microέγ ὄνειαρ 4444 ἐσθλά Il 12212 φράσσατο Πατρόκλῳ microέγα ἠρίον 23126 φράσσεται ὥς κε νέηται will contrive how Od 1205 φ ὅπως ὄχ ἄριστα γένοιτο 3129 cf S Aj 1041 3 c acc et inf think suppose believe imagine that Od 11624 οὐκ ἐφράζετο δυνατὸς εἶναι Hdt 3154 4 perceive observe οἷον ἐγὼν οἰωνὸν ἐφρασάmicroην Od 17161

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exemplo estabelece a sua ligaccedilatildeo semacircntica com Phreacuten - diafragma coraccedilatildeo como

sede das paixotildees e do espiacuterito do pensar e agir que ocorre na harmonia entre duas

forccedilas contraacuterias que habitam sob a tensatildeo do seu ritmo O focirclego e todo o

movimento de vir a ser mantecircm-se atraveacutes desse fundamento na antiguidade O

Efeacutesio explora a multiplicidade de sentidos para enfatizar a relaccedilatildeo genuiacutena entre

ser pensar e dizer que eacute um e o mesmo145 Ou seja a phyacutesis e loacutegos satildeo termos

equivalentes que expressam o processo total do desenvolvimento da vida desde

Homero a Heraacuteclito

O mais interessante desse processo reflexivo que parte dos fragmentos do

filoacutesofo eacute perceber o fato dele apresentar a sua visatildeo mais profunda da Phyacutesis em

total consonacircncia com a linguagem poeacutetica que desempenhou um lugar de destaque

dentro da cultura grega Ela era a palavra que visava organizar a vida helecircnica e

suprir a curiosidade em torno desses questionamentos mais baacutesicos da existecircncia

humana Como ressaltamos anteriormente a poesia era o meio pelo qual os

helecircnicos conseguiram desenvolver para reorganizar a sua sociedade apoacutes o

tenebroso episoacutedio histoacuterico que culminou no decliacutenio da civilizaccedilatildeo micecircnica146

Esse periacuteodo que eacute conhecido pelos historiadores como a idade das trevas eacute o

momento de uma profunda transformaccedilatildeo social e poliacutetica que teve para muitos

especialistas (SNODGRASS 2000) a sua origem em uma infortuita equaccedilatildeo que

parte de causas humanas e naturais147 Essas importantes transformaccedilotildees foram

τὴν (sc τὴν οὐλὴν ) ἀπονίζουσα φρασάmicroην 2375 with a part τὸν δὲ φράσατο προσιόντα Il 10339 cf 23453 later c gen χειmicroῶνος Arat 745 ποmicroπᾶς Theoc 284 rarely c part ψυχὰν αιδᾳ τελέων οὐ φράζεται marks not that he will die Pi I 168 5 watch guard [ὀρσοθύρην] Od 22129 6 beware of ξύλινον λόχον Orac ap Hdt 357 freq in imper φράζευ κύνα cave canem Ar Eq 1030 (hex) φράσσαι κυναλώπεκα microή σε δολώσῃ ib 1067 (hex) φράζεο δή microὴ microάρψῃ Id Pax 1099 (hex) cf Call LavPall 52 c inf φράζου microὴ πόρσω φωνεῖν S El 213 (lyr) abs φράζου take care A Eu 130 (Perh cf Lith girdziugrave I hear inf girdēti ) 145 Vide os seguintes fragmentos DK (219 50 72) 146 Iniacutecio do periacuteodo preacute-homeacuterico 147 Em torno dessa questatildeo haacute diversos estudos que tentatam entender esse processo de transformaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dessa importante cultura preacute-helecircnica Esses estudos arqueoloacutegicos concentram-se em analisar os seguintes materiais arqueoloacutegicos os registros do Linear A e B os afrescos deixados nas paredes fragmentos de ceracircmica e de objetos de uso cotidiano encontrados nas antigas ruiacutenas que formava o esplendoroso palaacutecio de Micenas Para muitos especialistas a duas principais causas do colapso da civilizaccedilatildeo micecircnica parte de causas naturais como o surgimento de terremoto e maremoto e de causas humanas como a guerra e a superpopulaccedilatildeo que forccedilou o deslocamento (diaacutesporaδιασπορά dispersatildeo) apoacutes a invasatildeo doacuterica que obrigou muitas famiacutelias que residiam na parte continental onde estava localiazada a releza de Micenas a se espalharem para outras localidades da bacia do mar Mediterracircneo Esse fato caracteriza-se por um lado como o fim da Era do Bronze e por outro como o iniacutecio do periacuteodo Preacute-Homerico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo pois acreditamos que o processo do amplo desenvolvimento subjetivo da cultura

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posteriormente essenciais para a construccedilatildeo da mentalidade cultural da civilizaccedilatildeo

helecircnica Um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo apoacutes a fragmentaccedilatildeo e

dispersatildeo da populaccedilatildeo micecircnica pelo Mediterracircneo eacute o processo de total

isolamento cultural que culminou entre outras ocorrecircncias no abandono da

opulecircncia do modo de vida micecircnico e do uso da escrita A guerra a destruiccedilatildeo e

a fome produziram marcas profundas na subjetividade dos sobrevintes da antiga

cultura micecircnica Esses estranhos fatos possibilitaram o desenvolvimento da

tradiccedilatildeo oral atraveacutes do uso da mitologia poesia e do aperfeiccediloamento das teacutecnicas

mnemocircnicas atraveacutes da muacutesica148 Posteriormente pretendemos investigar149 como

esse conhecimento musical foi essencial para conservar e transmitir o legado

cultural desses povos predecessores que ajudaram a construir a mentalidade

helecircnica Mesmo sem utilizar a escrita os gregos conseguiram desenvolver uma

capacidade mnemocircnica tatildeo eficiente que posteriormente eacute possiacutevel identificarmos

a sua utilidade e emprego no desenvolvimento da Retoacuterica Poliacutetica Filosofia e da

Literatura

helecircnica parte desse contexto Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto indicamos a leitura do seguinte livro SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 148Μουσικήmousikeacute ldquoArte das musasrdquo Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto que para noacutes eacute essencial para a compreensatildeo do desenvolvimento do subjetivo da cultura helecircnica 149 Vide o capiacutetulo III

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3 Poesia memoacuteria e verdade

31 A palavra entre os homens e deuses

Como foi exposto anteriormente o homem desde seus primoacuterdios teve a

pretensatildeo de desvendar a linguagem da Natureza 150 para buscar respostas sobre a

sua origem Para Platatildeo (Teeteto 155 d) e Aristoacuteteles (Met A 982 b) por exemplo

a Filosofia nasce nesse momento quando ele experimenta o primeiro espanto 151

que surge do reconhecimento152 da grandiosidade existencial das forccedilas 153 que

compotildee o mundo A partir disso surgiu toda uma tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que teria

como expoentes os poetas Hesiacuteodo e Homero que foram responsaacuteveis por

estabelecer os primeiros pilares da cultura grega Esses homens tinham o poder

divino de traduzir essas forccedilas 154 que ecoavam pela imensidatildeo do mundo antigo

Essa poesia trazia consigo aleacutem da finalidade de responder essas questotildees sobre as

nossas origens o objetivo de ajudar a construir um meio para a orientaccedilatildeo e

organizaccedilatildeo social e poliacutetica do homem grego antigo155 Todo o legado cultural era

conservado e transmitido pela voz dos aedos que eram os uacutenicos instrumentos de

comunicaccedilatildeo responsaacutevel por manter a consciecircncia histoacuterica do seu proacuteprio povo

150 A palavra grega phyacutesis (Φύσις) pode ser traduzida por natureza mas seu significado eacute mais amplo Este termo refere-se tambeacutem agrave realidade natildeo aquela pronta e acabada mas a que se encontra em movimento e transformaccedilatildeo a que nasce e se desenvolve o fundo eterno perene imortal e impereciacutevel de onde tudo brota e para onde tudo retorna Nesse sentido a palavra significa gecircnese origem e manifestaccedilatildeo Saber o que eacute a Physis assim levanta a questatildeo da origem de todas as coisas a sua essecircncia que constitui a realidade e que se manifesta no movimento da vida Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o primeiro capiacutetulo desse presente trabalho 151 θαυmicroάζωthaumazo 152 ἀναγνώρισιςanagnoacuterisis 153 Para GMA Grube satildeo essas forccedilas (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) que ultrapassam a esfera da mortalidade humana que o grego antigo chama deus (θεόςtheos) Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do seguinte livro GRUBE G M A Platorsquos Thought Indianapolis Hackett 1980 154 Vide o iniacutecio do capiacutetulo anterior 155 Sobre essa questatildeo Jean-Pierre Vernant em um beliacutessimo artigo intitulado como ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo(A bela morte e o cadaacutever ultrajado) diz ldquoMas para que a honra heroica permaneccedila viva no coraccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores como que receba a marca de sua chancela eacute necessaacuterio que a funccedilatildeo poeacutetica mais que objeto de divertimento tenha conservado um papel educativo e formador que atraveacutes dela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um esse conjunto de saberescrenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura Somente a poesia eacutepica devido ao seu estatuto e agrave sua funccedilatildeo pode conferir ao desejo de gloacuteria impereciacutevel que domina o heroacutei essa base institucional e essa legitimaccedilatildeo social sem as quais ele natildeo passaria de uma fantasia subjetiva Para mais informaccedilotildees vide VERNANT JP ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo Journal de Psychologie 2-3 (1980) pp 220-221

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Eacute atraveacutes dos versos desses filhos das Musas156 que o homem grego podia

transcender os limites do espaccedilo e do tempo e acessar todo o seu distante passado

que era presentificado atraveacutes de imagens reconstruiacutedas pela audiccedilatildeo que foram

fundamentais para moldar o futuro da cultura helecircnica157 Com isso o poeta passa

a ser uma figura de grande importacircncia e prestiacutegio dentro da sociedade grega antiga

Na primeira obra de Hesiacuteodo por exemplo o conteuacutedo dessa poesia fala sobre

o surgimento dos deuses158 O poeta usa a linguagem miacutetica para declamar de modo

estruturado a genealogia das divindades que pairavam por toda Heacutelade No seu livro

conhecido como a Teogonia Hesiacuteodo desenvolve atraveacutes de sua narrativa a

primeira ideia de causalidade que temos notiacutecia (TORRANO 1991) e que

posteriormente seraacute utilizada como base para os filoacutesofos que surgiratildeo escrevendo

sobre as cosmogonias159 referentes agrave Phyacutesis

A Teogonia narra sobre quatro geraccedilotildees de deuses que satildeo responsaacuteveis por

todas as coisas viventes que satildeo nomeadas pelos seguintes nomes Caos Terra

Taacutertaro e Eros Mesmo sem comprovaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo durante muito tempo

essa era a explicaccedilatildeo utilizada pelos gregos para estruturar todo o seu conhecimento

histoacuterico e poliacutetico-social Como consequecircncia disso a Paideacuteia (educaccedilatildeo) tinha

como obrigaccedilatildeo de repassar esse conhecimento de forma oral para cada jovem

156 ΜοῦσαιMousai 157 Platatildeo (Timeu ndash 20 e) 158 O professor GM A Grube em seu famoso livro ldquoPlatorsquos Thoughtrdquo chama a nossa atenccedilatildeo para uma importante observaccedilatildeo feita pelo filoacutelogo alematildeo Wilamowitz sobre a palavra deus (θεόςtheos) Para o scholar os gregos usavam esse termo como uma noccedilatildeo fundamentalmente predicativa Em comparaccedilatildeo aos cristatildeos e judeus por exemplo quando eles dizem que ldquoDeus eacute amorrdquo ou que ldquoDeus eacute bomrdquo apontam para uma existecircncia de um ser ldquodesconhecidordquo e consequentemente fazem um juiacutezo qualitativo em torno desse termo colocando ldquoamorrdquo ldquobemrdquo e ldquobelordquo como seus atributos Para um grego essa ordem era completamente inversa pois ao dizer por exemplo que o ldquoAmor eacute deusrdquo ou a ldquoBeleza eacute deusrdquo o grego natildeo estaria apenas pressupondo a existecircncia de uma divindade antropomoacuterfica oculta mas tambeacutem falando sobre algo acerca do ldquoAmorrdquo e da ldquoBelezardquo como realidades natildeo antropomorfizadas que natildeo podem ser negadas e nem confundidas com os cultos religiosos E segundo o professor Grube o sujeito do seu juiacutezo a coisa pela qual se fala encontra-se no mundo que conhecemos e o pensamento pagatildeo estava focado nessa ideia Ao dizer que o ldquoAmor eacute deusrdquo os gregos queriam expressar fundamentalmente o caraacuteter sobre humano de algo que natildeo estaacute sujeito agrave morte ou destruiccedilatildeo e que escapa sobretudo do domiacutenio dos homens Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como FERNANDES Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013 159 O pensamento cosmogocircnico eacute definido como uma tentativa de explicaccedilatildeo sobre a origem do mundo atraveacutes de mitos Enquanto que o pensamento cosmoloacutegico que segundo os relatos antigos teria surgido com o filoacutesofo Tales de Mileto eacute caracterizado como uma tentativa hipoteacutetica de formulaccedilotildees conceituais que visa uma explicaccedilatildeo mais clara e objetiva da Phyacutesis

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grego Alguns seacuteculos depois surgiram pensadores que comeccedilaram a colocar em

xeque esse conhecimento tradicional poeacutetico160 A partir de algumas duacutevidas sobre

a origem do conhecimento do poeta grego surgem as seguintes questotildees como

posso ter certeza da veracidade das palavras de Hesiacuteodo Quais satildeo as provas que

servem para sustentar esses argumentos Nossos sentidos 161 Nossa razatildeo162 O

senso comum163 O que eacute a verdaderevelaccedilatildeo164 Tais perguntas foram de extrema

importacircncia para o nascimento de uma postura criacutetica entre os gregos que foi

fundamental para o desenvolvimento do ceticismo165 posteriormente

Marcel Detienne (DETIENNE 1967) sob a influecircncia estruturalista de Leacutevi-

Strauss166 construiu uma interessante pesquisa que visa compreender esse periacuteodo

de rupturatransiccedilatildeo167 entre a tradiccedilatildeo miacutetica e o pensamento racional Essa

postura criacutetica que determina o surgimento de uma forma de pensar mais criacutetica e

elaborada nasce em um contexto social poliacutetico e econocircmico bem especiacutefico a

160 Para John Burnet (BURNET 1930) isso ocorre quando os gregos comeccedilam a se distanciar da visatildeo tradicional mito-poeacutetica Ele parece sugerir no livro algo semelhante ao que antecedeu o periacuteodo Moderno Ou seja esses pensadores provocaram uma crise (κρίσιςkrisis separaccedilatildeodistinccedilatildeo) que possibilitou um questionamento generalizado sobre todos os valores difundidos pela poesia antiga ocasionando uma ruptura radical (tese do milagre grego) que possibilitou diversas mudanccedilas na cultura grega sobretudo no campo eacutetico poliacutetico e pedagoacutegico Nos diaacutelogos de Platatildeo tambeacutem podemos encontrar uma atitude semelhante em relaccedilatildeo aos seus predecessores e coetacircneos Mas esse ponto infelizmente natildeo ganhou a devida atenccedilatildeo do helenista 161 αισθήσειςaisthesis 162 νοῦςnous 163 δόξαdoxa 164 Em nossa abordagem natildeo vamos traduzir o termo aleacutetheia (ἀλήθεια) por ldquoverdaderdquo para natildeo cairmos nas armadilhas que esse termo grego impotildee aos tradutores desavisados pois o sentido que o termo verdade ganha entre os modernos ndash que se contrapotildee agrave mentira ndash natildeo eacute o mesmo que encontramos na literatura antiga No proacutelogo da Teogonia eacute possiacutevel encontrarmos uma formulaccedilatildeo bem interessante apresentada em versos por Hesiacuteodo em torno desse problema ldquoαἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν ἄρνας ποιmicroαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο τόνδε δέ microε πρώτιστα θεαὶ πρὸς microῦθον ἔειπον Μοῦσαι Ὀλυmicroπιάδες κοῦραι ∆ιὸς αἰγιόχοιο ποιmicroένες ἄγραυλοι κάκ᾽ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον ἴδmicroεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύmicroοισιν ὁmicroοῖα ἴδmicroεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωmicroεν ἀληθέα γηρύσασθαιrdquo Elas [as Musas] certa vez a Hesiacuteodo ensinaram belo canto Ovelhas ele apascentando sob o Heacutelicon divino E a mim antes de tudo as deusas estas palavras dirigiram As Musas olimpiacuteades filhas de Zeus que tem a eacutegide Pastores agrestes maus oproacutebios ventres soacute sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autecircnticas e sabemos quando queremos verdades proclamarrdquo Hesiacuteodo Teogonia 22-28 Para mais informaccedilotildees vide a seguinte obra HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo PauloIluminuras 1991 165 Ou como o proacuteprio termo skeacutepsis (Σκῆψις) aponta seraacute que o ceticismo natildeo poderia ter surgido nesse momento de criacutetica agrave tradiccedilatildeo 166 Voltaremos a falar desse grande antropoacutelogo no momento que formos abordar o problema da escrita na sociedade grega 167 Para Burnet houve uma ruptura que possibilitou o surgimento do pensamento racional E no caminho oposto segue o helenista Cornford que defende uma continuidade histoacuterica (transiccedilatildeo) entre o pensamento miacutetico e racional

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partir do desaparecimento (crisetransiccedilatildeo) 168 da figura do deacutespota169 que daacute ensejo

ao surgimento da cidade170 atraveacutes da valorizaccedilatildeo da oralidade como um

instrumento de poder poliacutetico que eacute essencialmente marcado pela forccedila da

persuasatildeo171que determina a partir de um confronto acirrado172 de ideias todas as

decisotildees dentro desse novo espaccedilo social173 (VERNANT 1962)

Eacute nesse ponto que o helenista francecircs tenta buscar o sentido da palavra

aleacutetheia174 a partir das mudanccedilas que ocorreram durante o decorrer da histoacuteria

grega O seu foco primordial eacute rastrear as linhas de forccedilas que formam o leacutexico

desse termo tatildeo complexo para noacutes Para obter ecircxito em sua pesquisa Detienne

aplica o meacutetodo de anaacutelise lexicoloacutegica estrutural no intuito de alcanccedilar as relaccedilotildees

de oposiccedilatildeo e associaccedilatildeo dentro do campo semacircntico entre esses dois periacuteodos

Nessa direccedilatildeo ele percebe uma diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior da sociedade

grega de modo progressivo entre dois tipos de discursos a palavra (loacutegosdiscurso)

do historiador Tuciacutedides e o texto do poeta Hesiacuteodo A diferenccedila que reside entre

ambas eacute que o texto do historiador parece ter sido orientado pelos fatos (realismo)

que satildeo oriundos da sua observaccedilatildeo empiacuterica que fundamenta o meacutetodo cientiacutefico

e simultaneamente marca o seu distanciamento com a tradiccedilatildeo miacutetica 175 Enquanto

168 Esse momento de crisetransiccedilatildeo segundo Vernant acontece no momento em que a Greacutecia rompe as suas ligaccedilotildees comerciais com o Oriente O ldquomarrdquo que outrora era uma fonte de expansatildeo torna-se nesse periacuteodo uma terriacutevel barreira Isolada sobre si mesma o que restou da grande civilizaccedilatildeo micecircnica retorna para uma economia agriacutecola apenas para manter a subsistecircncia do seu povo Esse eacute o mundo homeacuterico Natildeo haacute nesse momento uma divisatildeo de trabalho e nem um corpo vasto de matildeo de obra servil Com isso o grande aacutenax cai e daacute lugar a um grupo de homens conhecidos como basileus (βασιλεύς) Esse grupo passa a ser responsaacutevel por todas as funccedilotildees poliacuteticas e religiosas dentro desse novo espaccedilo social E esse eacute um dos pontos que sustenta a tese do helenista para o surgimento ou desenvolvimento do pensamento racional entre os gregos 169 ἄναξaacutenax 170 πόλιςpoacutelis 171 πειθώpeithoacute 172 ἀγώνagoacuten 173 Posteriormente veremos como essa caracteriacutestica foi importante para a constituiccedilatildeo da polis Essa experiecircncia pode ter exercido uma forte influecircncia na formaccedilatildeo da dialeacutetica a partir do surgimento da agoniacutestica Infelizmente Vernant natildeo fala sobre essa questatildeo mas podemos sugerir essa hipoacutetese a partir dos elementos que o helenista apresenta em seu livro De qualquer modo eacute notoacuterio que essa nova forma de pensar tenha se desenvolvido e se ampliado dentro de um contexto democraacutetico mas para noacutes isso natildeo eacute suficiente para comprovar que a Filosofia teria surgido com a Democracia dentro da Greacutecia pois haacute diversos autores como Plutarco (De Iside et Osiride 9) e Dioacutegenes de Laeacutercio (DL I-X) entres outros antigos que mencionam a existecircncia da Filosofia em um periacuteodo anterior no Antigo Egito Aliaacutes eacute importante ressaltar que no iniacutecio do seu livro (DL I-I) Dioacutegenes faz questatildeo de afirmar que a Filosofia tem origem estrangeira 174 ἀλήθεια 175 Esse rigor na elaboraccedilatildeo da obra eacute visto por muitos especialistas como o iniacutecio da historiografia como uma ciecircncia

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que a loacutegica poeacutetica de Hesiacuteodo176 reside na forccedila da verossimilhanccedila177

ambiguidade e imaginaccedilatildeo No interior do texto hesioacutedico178 parece natildeo haver uma

diferenciaccedilatildeo clara entre verdade e falsidade179 mas entre verdade e memoacuteria 180

Ou seja o discurso poeacutetico parece natildeo ter a pretensatildeo de ser claro e fidedigno aos

fatos como o que ocorre nos textos de Tuciacutedides mas que se coloca como verdade

por ser oriunda do mundo divino A famosa obra do historiador intitulada como ldquoA

Histoacuteria da Guerra do Peloponesordquo eacute marcada por uma ordenaccedilatildeo cronoloacutegica

entre os acontecimentos que datildeo para os leitores um panorama preciso dos fatores

que desencadearam a guerra Enquanto que o tempo poeacutetico estaacute mergulhado em

uma instacircncia que reuacutene em si em um uacutenico instante o presente o futuro181 e o

passado182 Nesse sentido a poesia em seus primoacuterdios atua como uma expressatildeo

imageacutetica183 da eternidade184 que abrange a plenitude do momento da criaccedilatildeo que

escapa da compreensatildeo dos mortais185 Ela eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo

(linguagem) e manutenccedilatildeo (memoacuteria) da proacutepria realidade que se daacute atraveacutes da

revelaccedilatildeo das musas186 Somente o poeta inspirado187 pode acessar esse domiacutenio

pois ele eacute a uacutenica conexatildeo entre o mundo divino 188 e humano

176 Posteriormente veremos que a poesia de Hesiacuteodo jaacute apresenta profundas mudanccedilas em relaccedilatildeo aos seus predecessores que foram importantes para o surgimento do trabalho desenvolvido por Tuciacutedides 177 Platatildeo (Timeu -29 c) Eacute nesse ponto que Platatildeo afirma que o discurso (λόγοςlogos) eacute uma ldquoimagemrdquo que copia o seu modelo (εἰκότας ἀνὰ λόγον τε ἐκείνων ὄνταςeikotas ana logon te ekeinocircn ontas) e nesse sentido ele reconhece a importacircncia do mito para expressatildeo do pensamento 178 Veremos posteriormente que essa comparaccedilatildeo soacute vale para a Teogonia pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta desenvolve um tipo de texto mais claro que seraacute um referencial para todos os escritores que surgiratildeo a partir do seacuteculo V 179 ἀληθεία και ψεύδουςaleacutetheia kai pseudos 180ἀληθεία και microνήmicroηaleacutetheia kai mneme Vide TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Pag 29 181 αἰώνaion Platatildeo (Timeu -37 e) 182 Hesiacuteodo (Teogonia-26-8) ldquopor cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre a cantarrdquo TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 183 Vide o primeiro capiacutetulo 184 Platatildeo (Timeu -37 d) 185 Heraacuteclito (Diels-Kranz fragmento 22 B1) 186 Vide o primeiro capiacutetulo da seguinte monografia ldquoΡεριαδο a poesia como potecircncia de criaccedilatildeo e expressatildeo da vidardquo Uerj 2008 187 Platatildeo (Fedro ndash 245 a) Nesse diaacutelogo Soacutecrates afirma que o verdadeiro poeta eacute aquele que estaacute tomado pelo deliacuterio (microανίαmania) A teacutecnica (τέχνηtechneacute) segundo o filoacutesofo natildeo tem nenhuma serventia para a verdadeira poesia Esse eacute um dos criteacuterios que Platatildeo vai utilizar para criticar e consequentemente expulsar os maus poetas da sua Repuacuteblica 188 E dizei-me agora Musas habitantes do Olimpo ndash pois sedes voacutes deusas presentes por toda parte e conheceis tudo natildeo ouvimos mais que um ruiacutedo e noacutes nada sabemos () A multidatildeo natildeo

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Atraveacutes da etimologia da palavra Poesia 189 podemos estabelecer uma

conexatildeo com essa experiecircncia criadora O verbo poieacuteo190 que forma o radical do

termo traz o sentido de fazer construir e criar Logo a criaccedilatildeo eacute a palavra chave

que daacute sentido e apresenta a accedilatildeo primordial da linguagem que tem por essecircncia

estabelecer a comunicaccedilatildeo que eacute fundamental para a nossa vida em uma sociedade

organizada191 Sem ela a nossa existecircncia natildeo seria possiacutevel Como foi dito por noacutes

anteriormente192 essa experiecircncia singular do sagrado traz consigo a capacidade de

explorar infinitas possibilidades que satildeo construiacutedas pelo pensamento que vatildeo (re)

configurando a cada instante o nosso mundo E eacute por ela que o homem vai tomando

e ampliando a sua consciecircncia de si e de todas as coisas que estatildeo ao seu redor

Nesse sentido a aleacutetheia surge na poesia de Homero e Hesiacuteodo como uma forccedila de

revelaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da proacutepria Phyacutesis193 O natildeo-esquecimento assinala uma

relaccedilatildeo direta com a funccedilatildeo mnemocircnica exercida pela poesia dentro de uma

sociedade oral Ou seja ela eacute a uacutenica responsaacutevel por manter e conservar todos os

coacutedigos eacuteticos morais poliacuteticos e religiosos que satildeo rememorados e repassados em

contos e cantos pelos aedos Portanto o significado de aleacutetheia estaacute implicado nesse

periacuteodo ao desejo coletivo de preservaccedilatildeo desses coacutedigos que formam a base

cultural e que sobrevivem atraveacutes da memoacuteria do poeta194

Mesmo com o advento e a expansatildeo do uso da escrita - que para alguns

especialistas como Eric Havelock (HAVELOCK 1982) teria afetado radicalmente

a praacutetica oral - essa atividade sagrada ainda perdurou por bastante tempo entre os

poderia eu enumeraacute-la nem denominaacute-la mesma que tivesse dez liacutenguas dez bocas e um coraccedilatildeo incansaacutevel um coraccedilatildeo de bronze em meu peito Iliacuteada de Homero apud Detienne 1988 p 15 189 ποίησιςpoiesis No grego esse termo carrega os seguintes significados fabricaccedilatildeo confecccedilatildeo e construccedilatildeo 190 ποιέω 191 Eacute o que diz Aristoacuteteles em seu livro (Pol- 1252 a e 1252 b 13-4) E eacute por causa dessa capacidade natural de comunicaccedilatildeo que o homem eacute considerado pelo filoacutesofo como um animal poliacutetico (άνθρωπος φύσει πολιτικόν ζώον anthropos physei politikon zoon) 192 Vide o primeiro capiacutetulo 193 Eacute importante ressaltar que apenas o livro ldquoTeogoniardquo traz essas caracteriacutesticas mais tradicionais da poesia arcaica pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo encontramos um trabalho mais elaborado que se distancia totalmente da tradiccedilatildeo homeacuterica 194 Diferentemente da modernidade a poesia desempenhava um papel funcional e didaacutetico entre os gregos

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gregos195 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade196

Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano

Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia

no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar197 as

singularidades existentes entre Esparta e outras cidades198 O mais interessante eacute

que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros

e sucessores do poeta Creoacutefilo199 alguns textos contendo diferentes partes das obras

poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses

textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer200 que ele ordenou que essas

obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de

195 No periacuteodo poacutes-micecircnico a escrita ressurge com a funccedilatildeo de publicidade e era compartilhada de forma coletiva O seu uso natildeo seraacute mais restrito a um grupo de escribas que tinha por obrigaccedilatildeo contabilizar e controlar toda a produccedilatildeo de alimentos que eram fornecidas pelos agricultores sob o controle do anaacutex Nesse novo contexto por volta do seacuteculo IX aC ela reaparece como um instrumento de divulgaccedilatildeo das leis Logo o seu uso foi compartilhando de modo coletivo entre os cidadatildeos para o conhecimento e cumprimento das decisotildees que eram tomadas por seus governantes E a partir desse contexto eacute bem provaacutevel que os gregos possam ter evoluiacutedo intelectualmente Aliaacutes Eric Havelock desenvolve a sua tese de que a grande Literatura Grega se expandiu por causa desse novo uso da escrita em cima dessa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 196 Vidas Paralelas (em grego Βίοι Παράλληλοι Bioi paralleloi) eacute uma reuniatildeo de vaacuterias biografias de homens ilustres da Greacutecia e da Roma Antiga que foram escritas pelo historiador e bioacutegrafo Plutarco A obra tal como a conhecemos hoje em dia tem 23 pares de biografias Cada livro possui uma biografia de um homem ilustre grego e outro romano O primeiro par conhecido Epaminondas - Cipiatildeo o Africano infelizmente esse texto foi perdido Haacute uma ediccedilatildeo rara brasileira que foi baseada na traduccedilatildeo de Jacques Amyot (importante tradutor francecircs do seacuteculo XVI que foi grande amigo do filoacutesofo Montaigne) Para mais informaccedilotildees vide Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 197 ldquo assim como um meacutedico que compara corpos saudaacuteveis com corpos doentes ele poderia estudar as diferenccedilas entre seus modos de vida e seus respectivos governosrdquo (Plutarch Lyc ndash 43) 198 Essa praacutetica parece ter sido algo muito comum na educaccedilatildeo de vaacuterias personalidades na antiguidade Importantes figuras como Tales Soacutelon Pitaacutegoras Empeacutedocles Platatildeo entre diversos outros tinham por haacutebito viajar no intuito de estudar outras culturas Essa eacute mais uma prova do intercacircmbio da cultura helecircnica com outros povos A formaccedilatildeo intelectual dos antigos era tambeacutem baseada nessas viagens que possibilitaram uma ampla abertura para o crescimento cultural dos gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro

ROMILLY Jacqueline de ldquoPourquoi la Gregravecerdquo Paris Eacuted de Fallois 1992 199 Creophylus of ChiosSamos ou Ios segundo a doxografia antiga teria sido um importante poeta eacutepico grego que foi amigo de Homero e responsaacutevel por difundir as suas obras para posteridade (Plat Rep 600 c Plut Lyc 4 Heracleid Pont Poet Fragm 2 Iamblich Vit Pythag ii 9 Strab xiv) O poema eacutepico Oichalia ou Oichalias halosis o que eacute atribuiacutedo a ele segundo a tradiccedilatildeo teria sido recebido de Homero como um presente ou como um dote junto com sua esposa (Vide Caliacutemaco Epigrama 6 Proclus ap Hephaest P466 Ed Giasford Schol ad Plat p 421 ed Bakker Suidas sv) 200 No texto grego a expressatildeo (πρὸς ἡδονὴν καὶ ἀκρασίαν proacutes edonen kai akrasian ao prazer e agrave licenccedila) apresenta dois termos distintos (prazer e licenccedila ndash para o segundo muitos tradutores escolheram essa palavra para passar o sentido de akrasia - natildeo ter comando sobre si mesmo ndash que estaacute contido na frase) com o intuito de destacar o efeito de ecircxtase sentido por Licurgo ao ler os textos homeacutericos

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preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco

ainda ressalta que nessa eacutepoca201 os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar

escassos E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o

legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo

entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica

como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica202 E por uacuteltimo eacute importante

ressaltar que essa memoacuteria que foi preservada trazia consigo um dos sentidos do

termo aleacutetheia (natildeo esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os

seacuteculos VIII e V

Todavia esse uacuteltimo testemunho de Plutarco abre para outro grande problema

para noacutes por que seraacute que a obra de Homero estava desaparecendo na eacutepoca de

Licurgo Quais foram os fatores que desencadearam esse processo Haacute diversas

hipoacuteteses que tentam responder essa questatildeo Uma delas eacute apresentada por

Havelock que defende que o ressurgimento da escrita na sociedade grega teria

produzido um efeito radical na antiga praacutetica oral que era a base pedagoacutegica da

cultura grega203 Se de fato isso ocorreu eacute bem provaacutevel que esse foi um processo

progressivo e de simbiose pois como apresentamos anteriormente o proacuteprio

Plutarco nos lembra de que a escrita foi uma ferramenta uacutetil para que Licurgo

pudesse conservar e reunir todas as partes da obra homeacuterica Logo essas

transformaccedilotildees podem ter sido motivadas por outros fatores como a crise religiosa

-sobretudo aquela que era sustentada pela teologia homeacuterica- social204 poliacutetica e a

201 Os relatos sobre essa questatildeo cronoloacutegica satildeo imprecisos O proacuteprio Plutarco (Ac 46 ndash 120 d C) no iniacutecio do seu texto sobre a vida de Licurgo (Plu Lyc13) ressalta que havia diversos relatos contraditoacuterios e o seu trabalho foi reuni-los com o propoacutesito de manter a memoacuteria do ilustre espartano O que podemos supor das informaccedilotildees que foram obtidas eacute que Licurgo pode ter vivido entre os seacuteculos VIII e V O aspecto mais importante na declaraccedilatildeo de Plutarco eacute a constataccedilatildeo do progressivo desaparecimento das obras de Homero nesse periacuteodo Haacute diversas teses que tentam explicar esse fato atraveacutes da transiccedilatildeo entre a oralidade e a escrita (HAVELOCK 1982) De qualquer forma essa eacute uma informaccedilatildeo valiosa para os helenistas que estudam o alcance da obra de Homero e a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita na antiguidade 202 Vide Platatildeo (Rep 599 d) 203 Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 204 Como veremos posteriormente eacute bem provaacutevel que tivesse ocorrido uma crise social entre a classe aristocraacutetica e a dos trabalhadores (artesatildeos e campesinos) O aparecimento do poeta Hesiacuteodo apresenta vaacuterios indiacutecios para essa possiacutevel crise E para essa direccedilatildeo interpretativa encontramos o apoio dos helenistas Werner Jaeger e Jean-Pierre Vernant O historiador Moses Finley afirma que com o aparecimento da polis a populaccedilatildeo agraacuteria natildeo vivia em uma propriedade isolada mas ela tambeacutem fazia parte do espaccedilo da polis De qualquer modo isso talvez tenha sido mais um fator para a instauraccedilatildeo da crise social Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989

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disseminaccedilatildeo do uso da escrita entre as classes mais baixas Aliaacutes essa uacuteltima

hipoacutetese pode ser corroborada com o exemplo do proacuteprio Hesiacuteodo que se apresenta

como um poeta205 de origem modesta que cuidava do seu rebanho na encosta do

monte Heacutelicon206 Atraveacutes de uma de suas obras mais importantes intitulada como

Trabalho e os dias 207 podemos constatar que o foco da sua poesia natildeo eacute o mesmo

que o do seu predecessor Homero Enquanto que esse uacuteltimo estava empenhado em

realccedilar as caracteriacutesticas do nobre aristocraacutetico como um modelo para o homem

grego atraveacutes da imagem do heroacutei (JAEGER 1936) que busca a sua imortalidade

atraveacutes de uma morte gloriosa208 Hesiacuteodo estaacute preocupado em mostrar o valor do

trabalho como um instrumento para formaccedilatildeo humana Essa nova proposta

pedagoacutegica traz consigo grandes mudanccedilas dentro da estrutura social dos gregos

que podem ser localizadas em vaacuterios textos da Literatura grega O comedioacutegrafo

Aristoacutefanes por exemplo em uma de suas peccedilas209 apresenta para o seu puacuteblico

uma breve anaacutelise sobre o conteuacutedo que era ensinado por quatros importantes poetas

da Greacutecia210 e entre eles podemos encontrar esse traccedilo que marca a poesia desse

famoso campesino

205 Para esse ponto irei vamos nos basear em uma comunicaccedilatildeo que foi apresentada em 2011 na Semana dos Alunos de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Puc intitulada ldquoO canto de resistecircncia do Rouxinol sob as garras afiadas do Falcatildeo na idade do Ferro A poesia de Hesiacuteodo e seu desdobramento eacutetico-poliacutetico na Greacuteciardquo Nela eacute possiacutevel notar a diferenccedila entre a poesia homeacuterica e hesioacutedica Enquanto que na poesia de Homero vemos a elevaccedilatildeo de fundamentos de um ideal da classe aristocraacutetica onde seus versos formam a base para uma cultura que contempla a coragem e a determinaccedilatildeo entre os mais fortes com o surgimento de Hesiacuteodo esse paradigma se inverte a poesia se torna uma voz dos menos favorecidos e se faz presente dentro da polis como um importante canal de comunicaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo difundindo assim os preceitos dos camponeses para todos os gregos A partir dessa constataccedilatildeo foi traccedilado um paralelo entre os dois poetas e a suas respectivas influecircncias no campo eacutetico-social na Greacutecia antiga 206 Monte Heacutelicon (Ἑλικών ou Ηλικών transl Helikon [monte] tortuoso de ηλιξ heacutelix espiral em grego moderno Ελικώνας Elikoacutenas) eacute uma montanha na regiatildeo de Teacutespias na Beoacutecia Greacutecia que foi muito cultuada na mitologia grega Com uma altitude de 1749 metros acima do niacutevel do mar localiza-se proacuteximo ao Golfo de Corinto Esse eacute o lugar que Hesiacuteodo teria recebido das musas o canto sobre a origem dos deuses Aliaacutes o poeta Caliacutemaco conta uma histoacuteria similar a de Hesiacuteodo e situa no Heacutelicon o episoacutedio no qual Tireacutesias encontra Atena se banhando e acaba ficando cego poreacutem recebe o dom da profecia Vide hino V de Caliacutemaco em The Greek Anthology With an English Translation by W R Paton In five volumes London William Heinemann New York G P Putnams Sons MCMXVI The Loeb Classical Library 1916 207 Posteriormente veremos que esse trabalho foi um ldquodivisor de aacuteguasrdquo dentro da Literatura grega antiga 208 Vide o exemplo do heroacutei Aquiles na Iliacuteada (Canto XXII ndash 304-5) de Homero 209 Aristoacutefanes (As ratildes 1030-1036) 210 Essa passagem de Aristoacutefanes eacute de extrema importacircncia para os estudiosos da Paideia antiga pois a impressatildeo que temos eacute que no periacuteodo do comedioacutegrafo ndash no seacuteculo IV a C- cada poeta era responsaacutevel por um conteuacutedo especiacutefico dentro da educaccedilatildeo grega Esse programa pedagoacutegico estava divido nos seguintes pontos agricultura guerra religiatildeo sabedoria oracular orientaccedilatildeo moral e o conhecimento da medicina Haacute ainda mais duas outras hipoacuteteses que natildeo podem ser descartadas 1) cada um desses programas poderia estar a serviccedilo apenas da educaccedilatildeo de seus

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[1030] Eacutesquilo211 - Ora aiacute tens o tipo de assuntos com que se devem preocupar os poetas Senatildeo observa bem como desde

o princiacutepio os verdadeiramente bons se mostraram uacuteteis Orfeu ensinou-nos a celebrar os misteacuterios e a evitarmos os sacrifiacutecios Museu a cura das doenccedilas e os oraacuteculos Hesiacuteodo o trabalho da terra as estaccedilotildees das colheitas e as tarefas agriacutecolas e o divino Homero onde foi ele buscar fama e gloacuteria senatildeo agraves coisas uacuteteis que ensinou estrateacutegia coacutedigo militar equipamentos dos guerreiros212

Nesse sentido encontramos uma mudanccedila de paradigma que se opera no

interior da sociedade grega que reflete uma crise na estrutura social helecircnica A sua

poesia ruacutestica de origem campesina exprime o heroiacutesmo de uma classe social mais

humilde que trava uma luta diaacuteria e silenciosa com a terra dura que abastece todos

os nobres que vivem no conforto dos seus palaacutecios Ao olharmos a topologia da

Greacutecia com mais atenccedilatildeo encontramos um terreno muito acidentado com vales

estreitos que satildeo entrecortados por montanhas Esses fatores dificultavam o

cultivo213 e a sobrevivecircncia de uma cultura que era baseada atraveacutes da agricultura

de subsistecircncia e do pastoreio O historiador Heroacutedoto214 relembra esse fato em um

diaacutelogo entre o rei persa Xerxes e o grego Demarato que narra entre outras coisas

sobre a pobreza e as dificuldades enfrentadas pelo povo grego

respectivos membros 2) numa cultura extremamente agoniacutestica eacute bem provaacutevel que esses poetas disputassem entre si o cargo de grande pedagogo da Greacutecia E talvez seja por isso que o comedioacutegrafo apresente todos esses grupos em sua peccedila pois eles formavam a sua plateia como um todo De qualquer modo natildeo temos provas suficientes para validar essa tese apenas algumas pistas Vale ressaltar que a poesia eacute vista no debate entre Eacutesquilo e Euriacutepides como algo utilitaacuterio e didaacutetico Isso eacute algo irrefutaacutevel dentro desse contexto histoacuterico E mais o seu valor precisa ser avaliado a partir desse criteacuterio que visa o aperfeiccediloamento do homem grego Na Repuacuteblica Platatildeo vai utilizar esse mesmo crivo para estabelecer os pilares da sua polis ideal Logo seraacute necessaacuterio o filoacutesofo fazer uma anaacutelise minuciosa de toda a poesia do seu tempo para estabelecer uma nova proposta pedagoacutegica Aliaacutes dentro da peccedila de Aristoacutefanes esse eacute o leitmotiv que conduz a trama no submundo O diaacutelogo entre os dois poetas traacutegicos Esquilo e Euriacutepides eacute observado pelo deus Dioniso que eacute a divindade que representa o teatro Ele eacute o juiz da ldquodisputardquo - agon - entre esses dois importantes poetas traacutegicos Posteriormente voltaremos a falar sobre esse caraacuteter agoniacutestico dentro da educaccedilatildeo grega 211 Eacutesquilo estaacute no inferno junto com Euriacutepides e o deus Dioniso A cataacutebase - do grego κατὰ baixo βαίνω ir - corresponde a qualquer forma de descida no grego Na mitologia o termo eacute usado para se referir agrave descida ao inferno o mundo dos mortos esse eacute o cenaacuterio utilizado por Aristoacutefanes pois na mitologia antiga esse era o lugar onde vaacuterios personagens buscavam conhecimento Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do interessante livro do professor Eudoro de Sousa Vide SOUSA E Cataacutebases estudos sobre viagens aos infernos na Antiguidade Satildeo Paulo Annablume Claacutessica 2013 212 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e comentaacuterio de Maria de Faacutetima Silva ldquoSeacuterie Autores Gregos e Latinosrdquo editora Annablume 2014 213 Vide Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso livro I -II) 214 Heroacutedoto (Hist VII-CII)

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[CII] ldquoPois bem senhor mdash tornou Demarato mdash jaacute que assim o desejais dir-vos-ei a verdade e natildeo duvideis jamais daqui por diante de quem usar da mesma linguagem Os Gregos tecircm sido criados na escola da pobreza e a virtude215 a ela se junta filha da temperanccedila e das leis estaacuteveis dando-nos armas contra a pobreza e a tirania Os Gregos que habitam as regiotildees vizinhas aos Doacuterios mdash para citar apenas esses como exemplo mdash sempre se houveram com dignidade bravura e nobreza drsquoalma sendo por isso dignos de todos os louvores Ouso afirmar senhor que eles natildeo soacute natildeo ouviratildeo as vossas propostas que tecircm por fim submeter a Greacutecia como estaratildeo decididos a ir ao vosso encontro e oferecer-vos batalha mesmo que os outros povos gregos disso se abstenham Quanto ao seu nuacutemero senhor qualquer que ele seja natildeo influiraacute na sua decisatildeo de resistir Tivessem eles um exeacutercito de apenas mil homens e nem por isso deixariam de oferecer-vos combaterdquo

Esse relato apresenta para noacutes um panorama geral da vida do homem do

campo que encontramos na descriccedilatildeo feita por Hesiacuteodo Atraveacutes do texto do poeta

podemos localizar o ponto exato de distanciamento dos ideais aristocraacuteticos que satildeo

defendidos por Homero e o momento em que a poesia passa a ser um veiacuteculo de

contestaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de uma classe de trabalhadores que vive distante do centro 216

Eacute importante ressaltar que essas inovaccedilotildees trazidas por Hesiacuteodo foram feitas

a partir da estrutura tradicional da poesia homeacuterica que era utilizada por diversos

rapsodos como Iacuteon217 O alcance e a aceitaccedilatildeo do seu trabalho dependiam

fundamentalmente do pleno domiacutenio das regras de composiccedilatildeo oral que passam

pelo conhecimento da mitologia das teacutecnicas de construccedilatildeo mnemocircnica e dos

esquemas riacutetmicos como os hexacircmetros dactiacutelicos218 que formam a estrutura da

eacutepica antiga Sem o conhecimento dessas teacutecnicas dificilmente o poeta poderia

obter ecircxito em seu objetivo Para operar a desconstruccedilatildeo ele precisa partir do

215 Excelecircncia (ἀρετή arete) 216 Estamos partindo do pressuposto que nesse periacuteodo jaacute houvesse uma espeacutecie de espaccedilo (preacute-polis) ldquocentralizadordquo que foi passando por diversas modificaccedilotildees ateacute o momento do surgimento da polis Eacute importante ressaltar que natildeo encontramos o termo polis nos escritos de Homero e Hesiacuteodo Todavia isso natildeo nos fornece o direito de afirmar que nesse periacuteodo natildeo existisse uma distinccedilatildeo espacial entre os habitantes que viviam nos campos e aqueles que habitavam em um espaccedilo ldquocomumrdquo perto dos templos religiosos 217 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 218 Hexacircmetro datiacutelico (do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida(s)) ou hexacircmetro heroacuteico eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica tanto grega quanto latina como por exemplo a Iliacuteada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgiacutelio Eacute a mais importante forma meacutetrica usada na poesia eacutepica da Greacutecia Antiga

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interior da tradiccedilatildeo utilizando as mesmas armas do seu oponente219 de modo

metoacutedico Com isso o poeta vai inserindo as suas novas alteraccedilotildees de forma e

conteuacutedo no modelo tradicional poeacutetico para afirmar o seu distanciamento da obra

homeacuterica220 e demarcar a sua posiccedilatildeo como um pretendente ao cargo de educador221

da Greacutecia222 Logo essas mudanccedilas natildeo ocorreram de modo radical mas de forma

sutil e progressiva223 Essa competiccedilatildeo acirrada entre esses dois poetas apresenta

para noacutes outra caracteriacutestica importante que marcou de modo determinante esse

periacuteodo de transiccedilatildeocrise na cultura helecircnica o espiacuterito agonistico

Os gregos descobriram uma forma genuiacutena para superar e elevar ao maacuteximo

os limites da nossa passageira e fraacutegil existecircncia E isso ocorre atraveacutes da poesia

que tem o poder de transformar toda a negatividade e o sofrimento em belas

imagens apoliacuteneas que passam a serem utilizadas como um modelo eacutetico atraveacutes da

arte que atua como um dispositivo necessaacuterio para orientar a vida humana Segundo

Nietzsche (NIETZSCHE 1870) os helenos possuiacuteam uma capacidade singular de

sentir o sofrimento e de saber reconhecer 224 o quatildeo miseraacutevel eacute a vida dos mortais

E com essa triste constataccedilatildeo poderiam facilmente seguir o caminho do pessimismo

e da negaccedilatildeo da vida como outrora seguiu o seu mestre Arthur Schopenhauer Mas

eacute exatamente aiacute que o povo heleno demonstra a sua maior grandeza ao converter

toda a negatividade do mundo em uma potecircncia criadora A arte e a religiatildeo

surgem para os gregos com a funccedilatildeo de tornar a nossa existecircncia suportaacutevel A

poesia de Homero e Hesiacuteodo atua como filtros que decantam a tristeza e a dor obtida

por experiecircncias traacutegicas do passado em imagens profundamente belas e uacuteteis A

religiatildeo apoliacutenea por exemplo eacute um modo eficaz de divinizar todas essas forccedilas

219 Utilizando os mitos e a crenccedila do povo campesino como meio de expressatildeo para alcanccedilar a adesatildeo dos seus pares 220 Algo similar ocorreu com o grande poeta Dante Alighieri na composiccedilatildeo da ldquoDivina comeacutediardquo pois ele natildeo quis escrever a sua obra em latim ndash que era liacutengua dos nobres e intelectuais da sua eacutepoca - mas utilizando o italiano vulgar E com isso Dante e posteriormente Petrarca ao se distanciarem da tradiccedilatildeo culta que vigorava naquele periacuteodo ajudaram a construir os fundamentos da liacutengua italiana atual Curiosamente esse mesmo fato ocorre na poesia de Hesiacuteodo diante da tradiccedilatildeo da sua eacutepoca Pois como veremos a seguir nesse presente trabalho ele foi responsaacutevel por diversas transformaccedilotildees no interior da cultura helecircnica 221 Vide Platatildeo (Rep 607 a) e tambeacutem DK (Xenoacutefanes - frag 10) 222 Vide o primeiro capiacutetulo 223 Vide os seguintes livros ldquoTeogoniardquo e tambeacutem ldquoTrabalhos e os diasrdquo Haacute diversas diferenccedilas que foram registradas por vaacuterios especialistas entre essas duas obras Para noacutes isso demonstra o distanciamento de Hesiacuteodo em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica que estaacute em plena consonacircncia com as mudanccedilas que ocorreram nesse periacuteodo de transiccedilatildeo e crise na Greacutecia 224 Vide o primeiro capiacutetulo

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225 que estatildeo acima do nosso controle em arqueacutetipos que refletem as qualidades e

defeitos inerentes agrave condiccedilatildeo humana Em alguns fragmentos dos filoacutesofos preacute-

socraacuteticos eacute possiacutevel encontrarmos ecos dessa experiecircncia agoniacutestica que foi

profundamente importante para o nascimento da Filosofia e do Teatro Heraacuteclito226

por exemplo foi um dos primeiros filoacutesofos a ldquoreconhecerrdquo a guerra como um

princiacutepio regulador de todas as coisas

ldquoo combate eacute de todas as coisas pai de todas rei e uns revelou deuses outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo227

E ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes nasce a mais bela

harmonia e tudo segundo a discoacuterdiardquo 228

Essa identificaccedilatildeo com um tipo de experiecircncia que afirma a oposiccedilatildeo entre

duas229 ou mais ldquoforccedilasrdquo como algo afirmativo eacute uma qualidade que parece ter

surgido em uma eacutepoca bem remota no pensamento dos gregos pois em Homero e

Hesiacuteodo eacute possiacutevel encontrarmos resquiacutecios dessa ideia230 Na Iliacuteada por exemplo

podemos notar que os cantos eacutepicos exaltam as accedilotildees dos guerreiros que buscam a

imortalidade atraveacutes de uma morte gloriosa Nesse contexto a morte e o sofrimento

ganham caracteriacutesticas positivas que insuflam o desejo de superaccedilatildeo e nobreza na

alma helecircnica Para Homero o homem adquire a sua dignidade e respeito quando

225 Vide o primeiro capiacutetulo 226 Posteriormente veremos como Heraacuteclito tambeacutem foi um grande criacutetico da tradiccedilatildeo homeacuterica Com isso encontramos mais outro exemplo desse caraacuteter agoniacutestico que marcou o pensamento antigo De qualquer modo eacute necessaacuterio ressaltar que essa ideia segundo Nietzsche jaacute poderia ser encontrada na poesia de Homero 227 DK (Heraacuteclito-Frag IX 9) 228 ἔριςeris Aristoacuteteles (Eacutetica Nic VIII 2 1155 b 4) A deusa Eacuteris eacute conhecida na mitologia como a deusa da discoacuterdia Em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo e na ldquoTeogoniardquo o poeta Hesiacuteodo fala da sua importacircncia e da sua origem Esse eacute outro ponto que ele segue a tradiccedilatildeo homeacuterica pois eacute nele que a deusa aparece pela primeira vez citada em um texto escrito 229 Essa experiecircncia agoniacutestica eacute tatildeo marcante que podemos encontraacute-la como uma ferramenta linguiacutestica que foi utilizada na retoacuterica claacutessica com o nome de Oxiacutemoro (do grego ὀξύmicroωρον composto de ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) Ela eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo ou locuccedilatildeo palavras que exprimem conceitos contraacuterios Vide os fragmentos de Heraacuteclito 230 Eacute importante ressaltar que o primeiro a trazer essa ideia a partir das consideraccedilotildees de Nietzsche foi Homero Em seguida veremos que Hesiacuteodo parte dessa tradiccedilatildeo mas com um sentido bem distinto do seu antecessor

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atua com extrema bravura durante os combates 231 Nesse sentido o poeta tem

como dever escrever os seus atos que serviratildeo de modelo para a educaccedilatildeo militar

dos jovens nobres Eacute atraveacutes dessa experiecircncia que o homem pode se aproximar do

Olimpo tornando-se um heroacutei imortal Dentro desse novo contexto o termo

disputa232 passa a pautar todas as experiecircncias e atividades da cultura grega Como

vimos anteriormente a poesia deu um caraacuteter de positividade a uma experiecircncia de

horror que eles conheciam profundamente atraveacutes de inuacutemeras guerras travadas na

antiguidade

ldquoO Terror e o Temor Acorriam (a Discoacuterdia sanha que natildeo cessa irmatilde soacutecia de Ares matador-de-gente desponta diminuta e cresce e entesta com o ceacuteu e calca a terra dor e furor pelas tropas lanccedilando) Quando guerreiros enfim se datildeo de encontro frente agrave frente e os broqueis se entre batem e se entre chocam o vigor das lanccedilas dos homens todo-bronze encouraccedilados contra os escudos bojudos como umbigos ergue-se um tumulto de gritos de dor e de triunfo dos que vatildeo trucidando e dos que estatildeo morrendo e o sangue jorra sobre a terra e a inundardquo233

O impulso de destruiccedilatildeo eacute agora domesticado e desconstruiacutedo em prol da

afirmaccedilatildeo da existecircncia que tem a competiccedilatildeo como o criteacuterio que estimula a

superaccedilatildeo de si a partir do dialogo estabelecido com os outros 234 Em todas as

expressotildees do pensamento antigo encontramos reflexos dessa experiecircncia

agoniacutestica que marca de modo determinante a Educaccedilatildeo (παιδείαpaideia) e o

surgimento da polis Para os gregos esse modelo pedagoacutegico era necessaacuterio para

estimular o aperfeiccediloamento em todos os niacuteveis da sociedade235

Na Paideacuteia Jaeger ressalta que eacute possiacutevel encontramos os rastros de diversos

dialetos antigos nos poemas homeacutericos que apontam que esse patrimocircnio foi

231 Nos proacuteximos paraacutegrafos veremos como essa palavra foi importante para estimular a evoluccedilatildeo do homem dentro da cultura grega 232 ἀγώνaacutegon 233 Homero (Iliacuteada - IV 440-443) Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 234 A alteridade que abrange natildeo apenas os indiviacuteduos mas a proacutepria phyacutesis 235 Os jogos oliacutempicos eacute um exemplo dessa experiecircncia agoniacutestica Os gregos inventaram os agones que eram competiccedilotildees de cunho religioso como o atletismo teatro muacutesica poesia e pintura com o intuito de cultuarem os deuses e os heroacuteis miacuteticos A poesia tambeacutem tinha a responsabilidade de manter essa experiecircncia viva dentro da memoacuteria coletiva helecircnica Essa foi a forma encontrada para superar esse sentimento de relatividade que estava imanente ao processo de transformaccedilatildeo e decadecircncia do tempo (vide Heraacuteclito e Protaacutegoras) Com isso eles conseguiram a imortalidade superando com intensa beleza os limites de nossa existecircncia fraacutegil e mortal

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constituiacutedo com a ajuda de vaacuterios povos Essa contribuiccedilatildeo coletiva na composiccedilatildeo

desses poemas orais pode ter sido uma causa importante para estabelecer uma

unificaccedilatildeo pelo idioma entre essas polis que foram surgindo em vaacuterios pontos do

Mediterracircneo e da Europa236 De qualquer modo eacute praticamente impossiacutevel

sabermos com precisatildeo como isso ocorreu de fato Os escassos relatos que temos

natildeo podem nos passar muitas informaccedilotildees sobre as suas origens Alguns

testemunhos fornecidos por Heroacutedoto Tuciacutedides Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e

Plutarco nos datildeo algumas pistas de como eram constituiacutedas essas cidades-

estados237 Dentro desses relatos conseguimos obter algumas informaccedilotildees preciosas

de cidades como Esparta por exemplo Aliaacutes depois de Atenas ela foi uma das

mais importantes polis do mundo antigo Segundo o depoimento de Xenofonte238

os lacedemocircnios foram homens extremamente virtuosos ateacute o momento da sua ruiacutena

que foi causada pela corrupccedilatildeo dos seus membros239 A sua enorme admiraccedilatildeo pelo

regime poliacutetico espartano demonstra para noacutes uma insatisfaccedilatildeo latente com os

rumos que democracia estava tomando em Atenas Esse descontentamento aliaacutes

era compartilhado por filoacutesofos como Platatildeo e Soacutecrates240 O jornalista americano

236 Pausacircnias (Descda Greacutecia -1041) apresenta alguns pontos determinantes para a constituiccedilatildeo de uma polis condiccedilotildees sociais culturais e poliacuteticas Referente agrave sua arquitetura ela deve conter praccedilas templos e teatro Enquanto que Aristoacuteteles (Pol1330 a34) dizia que a constituiccedilatildeo da polis depende de quatro pontos fundamentais sauacutede defesa beleza e adequaccedilatildeo agrave atividade poliacutetica Segundo Finley o termo polis era utilizado pelos antigos com dois sentidos O primeiro para a cidade em sentido estrito e o segundo no sentido poliacutetico Para Platatildeo e Aristoacuteteles a polis surge devido agrave incapacidade das duas formas de associaccedilatildeo humana (famiacutelia e o agrupamento de parentesco maior) Com o objetivo de alcanccedilar a plenitude existencial de seus cidadatildeos eles constroem um espaccedilo autossuficiente e autaacuterquico O historiador ainda acrescenta que mesmo os agricultores que viviam distante da cidade (centro urbano) fazia parte dessa unidade que forma a polis Todavia isso natildeo isenta o fato de ter havido ndash como apresentamos anteriormente- uma luta de classes - entre ricos e pobres ndash no interior da polis As discussotildees ocorriam em torno da propriedade e posse das terras entre aqueles que eram fazendeiros-fidalgos (que viviam no conforto da cidade) e os lavradores que sobreviviam a duras penas na regiatildeo rural Ou seja entre homens que viviam no oacutecio e outros que trabalhavam para sustentar essa mordomia Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989 237 Dioacutegenes de Laeacutercio (DL V-27) menciona uma obra de Aristoacuteteles conhecida na antiguidade pelo seguinte nome ldquoConstituiccedilotildees de 158 Cidades em geral e em particular das democraacuteticas oligaacuterquicas aristocraacuteticas e tiracircnicasrdquo Atraveacutes desse tiacutetulo podemos tirar duas informaccedilotildees valiosiacutessimas para o estudo dessas cidades-estados A primeira eacute a informaccedilatildeo da existecircncia de 158 polis ateacute o periacuteodo do filoacutesofo A segunda eacute o fato de haver pelo menos quatro formas de governo que eram aplicadas nessas cidades Essa obra poderia fazer parte dos estudos do filoacutesofo sobre a poliacutetica que incluem tambeacutem o livro da Constituiccedilatildeo dos Atenienses que vamos analisar em seguida 238 Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios I-1) em Xeacutenophon Oeuvres complegravetes trad Pierre Chambry Garnier-Flammarion 3 vol 1967 239 Ibidem Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios XIV-3 ) 240 Na Repuacuteblica sobretudo no livro VIII Platatildeo faz diversas criacuteticas ao regime democraacutetico ateniense

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IF Stone (STONE 1988) em seu famoso livro sobre o julgamento de Soacutecrates

investigou esse ponto que foi determinante para o processo que foi levantado contra

o filoacutesofo Nesse momento em Atenas havia ainda uma divergecircncia poliacutetica

antiga241 entre a definiccedilatildeo de cidadania entre os gregos O problema girava em torno

das seguintes questotildees a cidadania deveria ser restrita como na oligarquia ou

aberta como na democracia A polis deve ser governada pela minoria ou maioria

Pelos ricos ou pelos pobres Essas questotildees geravam intensos debates entre

diversos pensadores na antiguidade Podemos ter uma ideia dessa tensatildeo242 nas

paacuteginas dos textos escritos por Aristoacuteteles na Poliacutetica e na Constituiccedilatildeo dos

atenienses Nas obras de Platatildeo e Xenofonte243 eacute possiacutevel constatar que Soacutecrates

era um grande criacutetico dos dois modelos apresentados por seus conterracircneos pois

para ele a cidade natildeo deve ser governada pela maioria ou minoria mas por aquele

que sabe 244 E essa postura criacutetica e o seu envolvimento pessoal com figuras

polecircmicas como Alcibiacuteades e Criacutetias245 foram responsaacuteveis por influenciar a

decisatildeo de vaacuterios atenienses no desfecho do julgamento que culminou na sua

sentenccedila de morte Para muitos helenistas essa histoacuteria apresentou para o mundo

uma grande ironia que teve um desfecho traacutegico pois o projeto pedagoacutegico

socraacutetico que era fundamentado na anaacutelise de todas as opiniotildees (doxa) e que visava

o aperfeiccediloamento dos cidadatildeos fora o que mais causava incocircmodo entre os

atenienses naquele momento Muitos homens e jovens estavam completamente

cegos e surdos por causa do efeito ilusoacuterio provocado pela persuasatildeo sofiacutestica246 A

morte do filoacutesofo eacute um retrato do desequiliacutebrio que se alastrava dentro do sistema

poliacutetico ateniense

241 Vide Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses livro II) 242 Como foi dito por noacutes no primeiro capiacutetulo desse presente trabalho essa tensatildeo social era um fenocircmeno que foi apontado por Hesiacuteodo e posteriormente por Aristoacuteteles 243 Platatildeo (Repuacuteblica e Poliacutetico) e Xenofonte (Memoraacuteveis e a constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios) 244 Vide Platatildeo (Rep V - 473 d) 245 O poliacutetico Alcibiacuteades foi acusado de traiccedilatildeo e o segundo foi responsaacutevel pelo golpe contra Atenas conhecido como a tirania dos trintas tiranos Para mais informaccedilotildees vide Xenofonte (Memoraacuteveis - 111 e 1212-16) Platatildeo (Apol - 33a-b) Dioacutegenes Laeacutercio (DL - 240) 246 Some-se a isso a imagem negativa pintada por Aristoacutefanes que foi um nobre comedioacutegrafo que prezava pela tradiccedilatildeo e rechaccedilava qualquer novidade no acircmbito da Educaccedilatildeo e da Cultura Em uma das suas peccedilas mais famosas conhecida desde a antiguidade sob o nome de ldquoAs nuvensrdquo o escritor mira a sua criacutetica corrosiva em direccedilatildeo da sofiacutestica Curiosamente ele elenca Soacutecrates como um daqueles homens responsaacuteveis pela decadecircncia ateniense Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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32 Entre a oralidade e a escrita

Nesse periacuteodo a praacutetica oral comeccedila a disputar espaccedilo com as inuacutemeras

possibilidades oferecidas por esse importante instrumento de comunicaccedilatildeo Antes

da reintroduccedilatildeo da escrita a oralidade era o uacutenico suporte utilizado para que a

realeza micecircnica pudesse organizar e controlar suas financcedilas (VERNANT 1962)

Para Milman Parry (PARRY 1971) as obras de Homero foram construiacutedas a partir

de uma composiccedilatildeo oral extremamente sofisticada Caso ele esteja certo podemos

supor que a poesia homeacuterica pode ter sido fruto de um tempo onde esse sistema de

comunicaccedilatildeo ainda era desconhecido ou pouco utilizado como suporte mnemocircnico

Todavia eacute notoacuterio que posteriormente a escrita comeccedila a atuar de modo mais amplo

dentro da sociedade grega E graccedilas a ela eacute que hoje podemos ter acesso a diversas

obras do passado Como vimos anteriormente247 Licurgo jaacute aparece em um periacuteodo

no qual a escrita estava sendo utilizada com a funccedilatildeo de salvar as composiccedilotildees orais

que estavam desaparecendo na antiguidade248 Eacute a partir desses indiacutecios eacute que

podemos rastrear o processo revolucionaacuterio que esse instrumento propiciou aos

gregos

Entre os seacuteculos VII e V eacute possiacutevel encontrar os primeiros documentos

escritos249 de cunho privado poliacutetico e religioso A Literatura escrita comeccedila a se

difundir consideravelmente em todas as partes da Greacutecia Em seu livro

Xenofonte250 relata um importante incidente que demonstra para noacutes a raacutepida

difusatildeo de obras escritas na antiguidade Ele narra que em sua eacutepoca ocorreu um

naufraacutegio de um navio que continha uma consideraacutevel carga de livros 251 Essa

suacutebita proliferaccedilatildeo literaacuteria aponta para um novo tempo em que o letramento e a

escrita jaacute natildeo eram apenas restritos ao ciacuterculo da aristocracia Isso reforccedila a nossa

hipoacutetese inicial de que esse fator pode ter desencadeado um processo de

247 Vide o subcapiacutetulo anterior 248 Esse depoimento de Plutarco revela dois fatos a deterioraccedilatildeo da teologia homeacuterica e da tradiccedilatildeo oral 249 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 18-19 250 Vide Xenofonte (Anaacutebase 7514) 251 βίβλοςbiblos

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conscientizaccedilatildeo coletiva que surge a partir do desgaste da antiga tradiccedilatildeo homeacuterica

Aliaacutes o mau uso dessa ferramenta despertou severas criacuteticas de Platatildeo252 Por volta

do seacuteculo IV aC a escrita vinha sendo utilizada intensamente dentro de vaacuterios

setores da sociedade grega inclusive no processo educacional A criacutetica do filoacutesofo

parece revelar uma proliferaccedilatildeo sem controle de inuacutemeros textos que estavam sendo

veiculados sem o rigor criacutetico que o seu mestre tanto prezava Essa propagaccedilatildeo

desmedida de opiniotildees253estava gerando um terriacutevel efeito colateral no sistema

poliacutetico social grego Algo similar ao que ocorre em nossa atual sociedade com o

jornalismo e a imprensa em geral

Contudo eacute importante ressaltar que no periacuteodo claacutessico ainda existia um grande

descompasso entre a atividade de ler e escrever Havia uma desigualdade entre os

nuacutemeros de leitores e escritores254 que era resultado da tensatildeo existente entre a

oralidade e escrita e do processo confuso de alfabetizaccedilatildeo que teria sido iniciado

por Soacutelon em Atenas255 A leitura de algum texto entre os seacuteculos V e IV ainda era

feita por escravos instruiacutedos assim como o trabalho de contabilidade feito pelos

escribas na antiga realeza micecircnica Eacute provaacutevel que o processo de alfabetizaccedilatildeo do

povo seguisse algum padratildeo especiacutefico que permitisse apenas um acesso miacutenimo

atraveacutes da leitura das obrigaccedilotildees e dos direitos256 Eacute notoacuterio que por volta do seacuteculo

V aC o processo de formaccedilatildeo de uma parte dos jovens era privado257 e tinha a

finalidade de formar bons oradores para os debates que ocorriam na Aacutegora258 Esse

era um tipo de conhecimento que natildeo era acessiacutevel para o povo pois aleacutem de caro

era uma poderosa ferramenta de ascensatildeo poliacutetica e social De todo modo essa

instruccedilatildeo estava disponiacutevel ao lado daquela educaccedilatildeo baacutesica oferecida pelo

252 Platatildeo (Fedro - 274c-275b) 253 δόξα doxa 254 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 14 255 Havelock sugere que esse processo de alfabetizaccedilatildeo possa ter ocorrido a partir do seacuteculo VI aC no periacuteodo de atuaccedilatildeo de Soacutelon Mas o mesmo ressalta que isso eacute apenas uma suposiccedilatildeo que se baseia em passagens de alguns diaacutelogos de Platatildeo (Prot 325 e ndash 326c-e e Caacutermides 159 c) em um periacuteodo bem posterior a Soacutelon Contudo baseado nas informaccedilotildees de Xenofonte sobre a Constituiccedilatildeo de Esparta eacute bem provaacutevel que houvesse um ensino oferecido pelo Estado em Atenas Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 pp 213 nota 4 256 Ibidem 257 Ou seja ele era adquirido para todos que pudessem pagar o serviccedilo oferecido pelos sofistas 258 Aacutegora (ἀγορά assembleia lugar de reuniatildeo derivada de ἀγείρω reunir) Espaccedilo comum onde os cidadatildeos se reuniam para discutir sobre questotildees poliacuteticas

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Estado259 Logo os sofistas surgiram com o intuito de suprir uma necessidade social

e poliacutetica que surgiu nesse momento de abertura democraacutetica em Atenas

Para o historiador Rosalind Thomas (THOMAS 1992) os padrotildees que

determinavam a utilizaccedilatildeo da escrita e da oralidade eram totalmente distintos dos

que satildeo empregados por noacutes atualmente A antiga retoacuterica por exemplo ainda se

baseava na forccedila da oralidade que ainda era responsaacutevel por decidir as questotildees

mais importantes no acircmbito juriacutedico poliacutetico social e pedagoacutegico Logo a escrita

parece travar um conflito direto com essa antiga praacutetica260 Aleacutem de Platatildeo o sofista

Alcidamas pupilo de Goacutergias foi um grande expoente da retoacuterica grega que

tambeacutem teceu diversas criacuteticas ao papel desempenhado pela escrita em seu

tempo261 Essa tensatildeo existente entre essas formas de comunicaccedilatildeo sinaliza dois

importantes fatos para noacutes o primeiro eacute a disseminaccedilatildeo do letramento entre as

vaacuterias classes sociais Essa inclusatildeo parece estar a serviccedilo do novo modelo da

constituiccedilatildeo poliacutetica que surgiu apoacutes o decliacutenio da monarquia Ou seja essa praacutetica

eacute empregada apenas para que todos os cidadatildeos possam respeitar a legislaccedilatildeo que

comeccedila a entrar em vigor quando as decisotildees satildeo expostas no Poacutertico Real262

Todavia isso natildeo impede que essa praacutetica posteriormente venha desempenhar

outras funccedilotildees dentro da sociedade grega

O uacuteltimo ponto surge de um argumento ex silentio eacute provaacutevel que o contato

com o letramento pelo acircmbito juriacutedico possa ter despertado nas classes mais

humildes a iniciativa de usar esse novo instrumento como uma ferramenta de

expressatildeo conscientizaccedilatildeo e de denuacutencia263 Essa forccedila silenciosa de resistecircncia

pode ter sido uma das causas para estimular o surgimento de um pensamento mais

criacutetico que foi capaz de efetuar uma grande revoluccedilatildeo dentro da cultura helecircnica

259 Gramaacutetica Aritmeacutetica e Ginaacutestica 260 No caso de Platatildeo o tipo de composiccedilatildeo escrita mimetiza a primazia da oralidade Essa carateriacutestica eacute um fator que natildeo pode ser omitido pelos estudiosos pois Platatildeo eacute um dos que demarca atraveacutes de sua obra a ldquocriserdquo entre esses dois meios de expressatildeo na antiguidade 261 Para mais informaccedilotildees sobre esse interessante sofista recomendamos a leitura do seguinte livro Alcidamas ldquoThe Works and Fragmentsrdquo (Greek Texts) by John Muir 1 edition First published in 2001 262 Στοά ΒασίλειοςStoaacute Basileios 263 Essa nossa hipoacutetese eacute traccedilada a partir da obra de Hesiacuteodo Para mais informaccedilotildees vide o seguinte artigo ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo revista IacutetacaUfrj 2015

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Logo podemos supor que a decadecircncia da teologia homeacuterica possa ter levado o

enfraquecimento dessa tradiccedilatildeo que se sustentava na forccedila da oralidade dos antigos

rapsodos E isso pode ter gerado uma abertura que propiciou o acesso de um nuacutemero

maior de pessoas as teacutecnicas mnemocircnicas e de composiccedilatildeo que foram essenciais

para a elaboraccedilatildeo de uma prosa poeacutetica que marcou determinantemente a cultura

grega264

A expansatildeo dessas artes que antes estavam sob o domiacutenio exclusivo da

aristocracia guerreira desencadeou diversas transformaccedilotildees que afetaram

diretamente a subjetividade coletiva grega Vimos anteriormente265 que o aedo era

o uacutenico responsaacutevel pela funccedilatildeo de comunicaccedilatildeo e memoacuteria na antiga civilizaccedilatildeo

micecircnica Apoacutes o advento do alfabeto o pensamento grego vai se desenvolvendo

simultaneamente com as mudanccedilas trazidas pela crise Essa nova linguagem

atravessa a realidade do indiviacuteduo que comeccedila a expressar seus valores e anseios

que agora natildeo satildeo mais pautados apenas nos deuses mas naquele que passa a ser a

medida de todas as coisas o homem266 Essa eacute a nova realidade que vai orientar a

Poesia e a Filosofia desse tempo Essa criatura mortal adquire o poder de domesticar

o loacutegos (o fogo ndash mito de Prometeu) 267 para atender as necessidades que surgem

dentro desse novo espaccedilo social e poliacutetico Nesse momento a palavra ganha uma

vestimenta mais soacutebria fixa e objetiva E nesse sentido a poesia de Hesiacuteodo foi

uma influecircncia determinante para alavancar essas grandes mudanccedilas dentro da

sociedade grega

264 E que propiciou que a poesia fosse praticada por homens do campo como Hesiacuteodo 265 Vide o primeiro capiacutetulo 266 Vide Protaacutegoras (DK - Fr B I) 267 Esse mito de Hesiacuteodo jaacute traz algumas ideias que refutam a teologia homeacuterica Para o grande Protaacutegoras essa dimensatildeo metafoacuterica engloba entre outras coisas a capacidade de astuacutecia (Μῆτιςmeacutetis) e de adaptaccedilatildeo sob condiccedilotildees hostis que foi importante para a evoluccedilatildeo da humanidade atraveacutes da manipulaccedilatildeo e desenvolvimento do loacutegos E eacute nesse momento que ele retoma o pensamento do grande Heraacuteclito pois o ldquofogordquo (πυράpyraacute) para o efeacutesio eacute a proacutepria imagem do Logos que estaacute presente em todas as coisas a partir de uma ldquomedidardquo (microέτρονmetron) Assim como fizera Heraacuteclito outrora Protaacutegoras opera uma brilhante transposiccedilatildeo entre Loacutegos (λόγος) e Deus (θεόςTheos) como uma convenccedilatildeo (νόmicroοςnomos) que foi criada pelos homens Ou seja o deslocamento feito pelo sofista eacute genial pois a ideia que estaacute subtendida no mito agora eacute atraveacutes da forccedila do loacutegos o homem se torna a medida de todas as coisas (πάντων χρηmicroάτων microέτρον έστιν άνθρωποςpanton chrematon metron estiacuten anthropos) Coincidentemente Heraacuteclito e Hesiacuteodo satildeo dois autores que influenciaram esse sofista Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do primeiro capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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Em Os trabalhos e os dias podemos encontrar um dos primeiros recortes

histoacutericos que foi efetuado pelo poeta Esse texto apresenta a imagem do tempo

presente que marca esse contraste com a tradiccedilatildeo homeacuterica Em seus versos haacute um

retrato quase jornaliacutestico268 das mazelas vivenciadas pelo seu povo Essa

abordagem eacute projetada com um olhar criacutetico e incisivo que denuncia a pressatildeo

exercida pelos nobres sobre o povo mais humilde Diferentemente de Homero o

poeta fala atraveacutes da primeira pessoa269 pois nomeia se a si mesmo no seu canto

que apresenta o nascimento dos deuses 270 Nesse momento ele fala sobre a sua

proacutepria experiecircncia existencial em um tempo e lugar determinados Essa sua

assinatura eacute o que tenta fornecer o tom de veracidade 271 que o seu relato visa passar

Com isso ele inaugura um sentido historiograacutefico que foi essencial para o

desenvolvimento da prosa que vamos encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides

posteriormente Uma tendecircncia individualizadora que natildeo pode ser confundida em

hipoacutetese alguma com a nossa experiecircncia moderna272 Pelo contraacuterio em Hesiacuteodo

esse traccedilo marcante eacute a proacutepria imagem da conquista da autonomia da subjetividade

coletiva dos trabalhadores humildes O poeta reuacutene em si mesmo o grito de dor do

povo e o expressa de modo exemplar em seus versos para que os mesmos

trabalhadores possam encontrar um alento uma voz que clama por justiccedila e

igualdade e que serve de apoio para enfrentar seus opressores com coragem e

prudecircncia Para isso o poeta precisa desenvolver um encadeamento loacutegico

especiacutefico que visa desconstruir o ideal aristocraacutetico homeacuterico e pontuar as accedilotildees

injustas praticadas contra o seu povo e expressaacute-las de um modo coerente E eacute nesse

sentido que o seu trabalho seraacute uma importante referecircncia para o surgimento da

prosa aacutetica

268 Uma abordagem factual 269 Eacute importante ressaltar aqui que o uso da primeira pessoa desempenha uma funccedilatildeo inovadora dentro da antiga poesia Primeiro porque Hesiacuteodo parece ter a intenccedilatildeo de demarcar uma diferenciaccedilatildeo entre o seu trabalho e dos outros poetas Em segundo lugar o poeta utiliza a sua poesia como um instrumento que expressa a exploraccedilatildeo sofrida pelo seu povo 270 Hesiacuteodo (Teogonia ndash v 25) 271 O sentido de verdade aqui eacute de algo que natildeo pode ser esquecido 272 Como o cogito ergo sum de Descartes Essa tendecircncia que vemos em Hesiacuteodo tem o sentido de unificaccedilatildeo de toda uma consciecircncia coletiva de um determinado grupo social que claramente se opotildee como foi exposto anteriormente a classe aristocraacutetica que foi educada pela poesia homeacuterica Ao trazer esse clamor para a primeira pessoa ele impotildee ao seu relato um tom factual que eacute importante para tornar veriacutedico o seu relato

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Com a dessacralizaccedilatildeo do poder poliacutetico a prosa surge como uma expressatildeo

inovadora ao lado da divulgaccedilatildeo das leis escritas273 Para o sucesso de tal objetivo

se faz necessaacuterio um texto que possa transmitir de modo direto os novos ideais e

normas atraveacutes de proposiccedilotildees claras e universalmente vaacutelidas Esse texto tem o

intuito de ser acessiacutevel para todos os membros da polis Eacute nesse ponto que podemos

identificar mais um traccedilo que nos permite ver o distanciamento com a tradiccedilatildeo

poeacutetica anterior Mas eacute importante ressaltar que esse fenocircmeno natildeo ocorreu de

modo radical Pelo contraacuterio ele coexistiu com as outras formas de expressatildeo que

ainda era cultividas pela tradiccedilatildeo popular De qualquer modo essa novidade

promoveu muita polecircmica entre os intelectuais do periacuteodo claacutessico Para

entendermos esse ponto eacute necessaacuterio levarmos em consideraccedilatildeo a crise de valores

que a antiga tradiccedilatildeo homeacuterica sofreu a partir dessas mudanccedilas poliacuteticas Eacute o que

veremos a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

A criacutetica e a investigaccedilatildeo 274satildeo as palavras-chave que contribuiacuteram para a

substituiccedilatildeo da antiga eacutetica da nobreza homeacuterica que utilizava a fama e o prestiacutegio

social dos heroacuteis275 como paracircmetro supremo para julgar as accedilotildees do homem276 O

fracasso dessa experiecircncia fez surgir um espiacuterito criacutetico que age como um vigia 277

permanente de todas as accedilotildees e palavras Ou seja a sua funccedilatildeo eacute impedir os

excessos e as injusticcedilas Um censor 278 Logo o poetafiloacutesofo desempenha o papel

de porta voz desses anseios coletivos e de criacutetico e contraditor da opiniatildeo comum 279 Por fim eacute importante ressaltar que essa caracteriacutestica soacute eacute possiacutevel quando a

escrita surge como um instrumento publicitaacuterio para a divulgaccedilatildeo das leis Essa

nova experiecircncia poeacutetica ronda como uma sombra que age como um espelho que

273 A poesia de Soacutelon jaacute traz essa influecircncia da poesia hesioacutedica Infelizmente essa questatildeo natildeo poderaacute ser abordada nesse presente trabalho mas pretendemos no futuro desenvolver uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo poeacutetica entre Hesiacuteodo e Soacutelon dentro desse contexto de crise social 274 Essas palavras trazem o comeccedilo da experiecircncia ceacutetica O verbo σκέπτοmicroαι (skeacuteptomai) que vem do grego para dar surgimento ao termo ceticismo traz em seu radical o substantivo skeacutepsis que significa ldquopercepccedilatildeo pela vistardquo ldquoobservaccedilatildeordquo e ldquoconsideraccedilatildeordquo O verbo skeacuteptomai eacute tambeacutem ainda empregado com os sentidos figurados de ldquoexaminarrdquo ldquomeditarrdquo e ldquorefletirrdquo Esses termos satildeo como pontos cardeais de grande importacircncia para o surgimento do pensamento filosoacutefico 275 Vide as epopeias homeacutericas 276 Vide o caso de Ciacutelon Curiosamente apoacutes o seu fracassado golpe o povo se rebelou de modo violento contra os nobres 277 Como um catildeo (κυνικός kynikos igual a um catildeo κύων kyocircn) 278 ψόγοςpsoacutegos Esse termo em grego tambeacutem traz o sentido de censura Eacute um termo muito utilizado no acircmbito da retoacuterica antiga Vide Demoacutestenes 279 δόξαdoxa Para esse caso podemos utilizar o papel desempenhado pelo grande Soacutecrates

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reflete as tensotildees e injusticcedilas da sociedade Eacute nesse tempo que tambeacutem vemos surgir

agrave beleza do Teatro antigo pois ele atua nesse mesmo sentido como um poderoso

promotor280 puacuteblico que defende os interesses coletivos da sociedade a partir da

visatildeo panoracircmica do poeta O palco eacute uma espeacutecie de ensaio que antecipa as

reflexotildees que poderatildeo estar presentes nas futuras discussotildees que ocorreratildeo nas

assembleias Sendo assim o Teatro atua como uma espeacutecie de agente regulador

subjetivo281 que expotildee para a cidade os seus pontos mais conflitantes que precisam

ser discutidos julgados e alterados para preservar a harmonia da instituiccedilatildeo

Apoacutes a grande crise social a nova organizaccedilatildeo do Estado foi obrigada a pocircr

em praacutetica um sistema de coacutedigo juriacutedico que respeitasse o direito de todos os seus

membros Essa mudanccedila foi responsaacutevel para o surgimento de um novo tipo de

cidadatildeo ndash no sentido pleno do termo ndash que precisa aprender a respeitar as leis para

manter a organizaccedilatildeo da polis pois a sua realizaccedilatildeo individual dependente

fundamentalmente dessa lei universal (∆ίκηDike) que manteacutem o equiliacutebrio de todas

as partes (classes) que compotildee a cidade

280 Eacute aquele que sempre expotildee para o puacuteblico ldquojulgarrdquo (corte) uma situaccedilatildeo conflitante (drama) 281 Eacute o instrumento disponiacutevel que nos faz pensar sobre as questotildees cruciais para a cidade grega nesse contexto

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4 Mythos Eacutepos e Loacutegos

41 Mito e poesia

A ordem disposta entre esses termos que configura o tiacutetulo desse presente

capiacutetulo natildeo eacute de modo algum casual ou arbitraacuteria282 Essas trecircs importantes

palavras na liacutengua grega referem-se ao ato de criaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo humana283

que abarcam o surgimento da tradiccedilatildeo oral ateacute o advento da escrita284 Como foi

exposto no primeiro capiacutetulo o espanto285 despertado atraveacutes das forccedilas

naturais286 que revela a presenccedila da Phyacutesis apresenta a necessidade287 de

comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo288 para a manutenccedilatildeo da existecircncia humana em todos os

seus aspectos Em detrimento desse fato e a partir dos fragmentaacuterios registros

histoacutericos gregos escritos e do mais variado legado arqueoloacutegico que pode ser

obtido atraveacutes da Arquitetura Escultura e Pintura podemos estabelecer uma fraacutegil

tentativa de esboccedilar um mapeamento289 cronoloacutegico e semacircntico do uso dessas

282 Para Fernand de Saussure a liacutengua pode ser analisada como uma realidade autocircnoma em um determinado contexto histoacuterico sem a necessidade de avaliar o seu processo de desenvolvimento Segundo a sua teoria a realidade linguiacutestica do falante pode ser definida a partir do seu proacuteprio uso (O filoacutesofo britacircnico John Langshaw Austin parte desse mesmo pressuposto para a sua ldquoteoria dos atos de falardquo) Para tal objetivo o filoacutesofo linguista elabora dois importantes conceitos para esse estudo o primeiro eacute o de Sincronia No qual determina certas caracteriacutesticas de uma liacutengua em um recorte temporal especiacutefico (analisa por exemplo as variaccedilotildees sociais regionais e situacionais) que se formula atraveacutes de uma regularidade e homogeneidade pertencente a um contexto histoacuterico definido O segundo eacute o de Diacronia Esse conceito eacute responsaacutevel por apontar as inuacutemeras mudanccedilas que uma liacutengua sofre durante o decorrer histoacuterico de uma cultura Esse processo eacute interessante por rastrear as suas principais variaccedilotildees desde a sua origem ateacute o seu uso atual Ao decorrer desse capiacutetulo vamos utilizar esses dois dispositivos com o intuito de analisar o uso desses termos entre a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita entre os gregos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro SAUSSURE F de ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 283 Sobre esse ponto vide o capiacutetulo I 284 Para noacutes esse ponto eacute essencial para compreender o processo de transformaccedilatildeo do pensamento grego A escrita na realeza micecircnica segundo os estudos arqueoloacutegicos realizados a partir do Linear B que era utilizado para o controle da produccedilatildeo agriacutecola Apoacutes o decliacutenio monaacuterquico e o surgimento das primeiras polis aparece com um sentido totalmente distinto o de publicizaccedilatildeo das leis Sobre esse ponto vide os comentaacuterios do helenista francecircs Jean Pierre Vernant no capiacutetulo II do seguinte livro ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 285 θαῦmicroα 286 ἀθάνατοι 287 Ανάγκη 288 ποιεῖν 289 Ou seja natildeo pretendemos estabelecer nesse presente trabalho uma linha evolutiva entre esses termos O nosso objetivo visa localizar o uso deles em diversos contextos distintos da historiografia

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formas de expressatildeo que antecedem o diaacutelogo como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

Essa constataccedilatildeo eacute do nosso grande interesse por apresentar alguns dos meandros

do desenvolvimento do proacuteprio pensamento grego antigo290 De um modo natildeo

linear 291 veremos que essa segunda premissa eacute o fundamento para a primeira No

longo processo de construccedilatildeo cultural cada uma dessas palavras contribuiacutera para a

formaccedilatildeo da subjetividade coletiva que auxiliou na formaccedilatildeo do espaccedilo social

poliacutetico religioso pedagoacutegico e juriacutedico em cada contexto histoacuterico grego

Para muitos scholars como o britacircnico John Burnet (BURNET 1892) eacute

possiacutevel traccedilar uma linha evolutiva que parte do pensamento miacutetico-poeacutetico ateacute o

momento em que o homem grego alcanccedilou a sua maioridade racional atraveacutes do

Loacutegos292

grega antiga atraveacutes da relaccedilatildeo da tradiccedilatildeo oral e o novo uso dado agrave escrita a partir do surgimento da Democracia 290 No famoso ldquocurso de linguiacutestica geralrdquo Fernand de Saussure aplica essa abordagem que foi nomeada de linguiacutestica histoacuterica para estudar a evoluccedilatildeo de uma determinada liacutengua Para mais informaccedilotildees vide SAUSSURE F de Curso de Linguiacutestica Geral 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 Paacuteg 8 291 Ao contraacuterio de muitos especialistas que seguem a posiccedilatildeo do escolar britacircnico John Burnet natildeo acreditamos que haja um deslocamento evolutivo entre esses termos Para a maioria dos defensores dessa posiccedilatildeo o mito tem origem ldquoreligiosardquo enquanto que o loacutegos eacute o momento que o homem alcanccedila a sua plenitude racional mas isso eacute um ledo engano Infelizmente essa posiccedilatildeo eacute ineficiente para dar conta dessa problemaacutetica Um dos exemplos que essa posiccedilatildeo natildeo explica eacute o uso que Platatildeo e outros pensadores sobretudo no acircmbito da Literatura fazem do mito durante e depois do periacuteodo claacutessico Eacute inegaacutevel que a apariccedilatildeo e o uso de cada um deles passou por consideraacuteveis mudanccedilas semacircnticas que desempenharam uma complexa repercussatildeo na funccedilatildeo cognitiva e na produccedilatildeo subjetividade do homem grego desde do periacuteodo micecircnico ateacute o claacutessico Logo A interpretaccedilatildeo de cada um desses termos necessita ser cautelosamente estudada a partir do seu respectivo contexto histoacuterico Posteriormente veremos que a ortodoxia de muitos helenistas e linguistas acabou impedindo uma visatildeo mais ampla sobre esse problema E isso ocorreu por descartarem algumas contradiccedilotildees que para noacutes eacute salutar para promover um estudo mais abrangente sobre essa questatildeo na antiguidade Uma delas eacute o fato de o mito ter surgido no acircmbito oral enquanto que o uso do loacutegos que muitos helenistas - vide o exemplo do proacuteprio Burnet - aplicam para os primeiros prensadores preacute-socraacuteticos como um discurso mais ldquosoacutebriordquo e ldquocoerenterdquo aparece no choque entre a tradiccedilatildeo oral e a novidade da escrita Esse ponto necessita ser levado em consideraccedilatildeo para um estudo mais aprofundando em torno desse tema A partir disso a nossa pretensatildeo eacute tentar estabelecer uma ordem diacrocircnica de uso desses termos ndash tendo como pano de fundo o momento de transiccedilatildeo entre a oralidade e escrita - sem estabelecer um juiacutezo de valor entre eles dentro do pensamento grego Ainda sobre essa grande celeuma entre os mais diversos especialistas dentro dos estudos sobre a linguiacutestica eacute importante destacar o trabalho desenvolvido por Jacques Derrida em torno desse problema no seu livro chamado Gramatologia Para o filoacutesofo todos os estudos relacionados a esse tema de um modo geral surgem quando o conceito de ciecircncia eacute forjado a partir da fonetizaccedilatildeo da escritura que ocorre com o surgimento do loacutegos Em um momento oportuno voltaremos a essa questatildeo 292 Nesse contexto especiacutefico o termo apresenta o sentido de razatildeo que se distanciou do seu antagonista o mito

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ldquoFoi somente apoacutes se desarticularem a visatildeo tradicional do mundo e as normas costumeiras de vida que os gregos comeccedilaram a sentir as necessidades que as filosofias da natureza e da conduta procuram satisfazer Tais necessidades natildeo se fizeram sentir de imediato As maacuteximas ancestrais de conduta natildeo foram seriamente questionadas ateacute a antiga visatildeo da natureza desaparecer Por isso os primeiros filoacutesofos ocuparam-se principalmente com especulaccedilotildees sobre o mundo ao seu redor No devido tempo criou-se a Loacutegica para atender a uma nova necessidade O empenho na investigaccedilatildeo cosmoloacutegica trouxera agrave luz uma ampla divergecircncia entre a ciecircncia e o senso comum Este problema exigia uma soluccedilatildeo e aleacutem disso obrigava os filoacutesofos a estudar meios de defender seus paradoxos dos preconceitos do natildeo-cientiacutefico Mais tarde o interesse preponderante por problemas loacutegicos levantou a questatildeo da origem e da validade do conhecimento ao passo que mais ou menos na mesma eacutepoca a desarticulaccedilatildeo da moral tradicional deu origem agrave Eacutetica O periacuteodo que antecede a ascensatildeo da Loacutegica e da Eacutetica tem portanto um caraacuteter especiacutefico e eacute adequado trataacute-lo separadamenterdquo293

Mas essa posiccedilatildeo natildeo eacute satisfatoacuteria para explicar a amplitude que o

pensamento miacutetico-poeacutetico desempenhou ateacute o periacuteodo romano294 Como podemos

ver nessa passagem que foi citada anteriormente essa hipoacutetese elaborada pelo

ilustre professor britacircnico sugere um caminho ascensional que se fundamenta no

distanciamento entre esses modos de expressatildeo a partir de uma posiccedilatildeo antagocircnica

e de inferioridade em relaccedilatildeo ao Loacutegos295 Infelizmente essa via mascara o valor do

pensamento miacutetico-poeacutetico como uma forma de saber extremamente relevante que

surgiu durante a tradiccedilatildeo oral para o povo helecircnico Posteriormente296 teremos a

oportunidade de analisar algumas peculiaridades desse fato que foi reconhecido

atraveacutes da manifestaccedilatildeo da Poesia Retoacuterica Teatro e da proacutepria Filosofia que

juntas satildeo expressotildees maacuteximas do valor intelectual que pode ser mensurado atraveacutes

do legado da Literatura297 e de outras expressotildees artiacutesticas que fizeram da Greacutecia

o modelo cultural do nosso mundo Ocidental desde do periacuteodo preacute-homeacuterico Eacute

importante ressaltar que todas as sociedades antigas em algum momento histoacuterico

utilizaram esse tipo peculiar de expressatildeo para reunir e manter as impressotildees mais

importantes sobre as nossas origens298 No caso grego eacute possiacutevel encontrarmos

293 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Pp 21 294 Sobre esse ponto vide a seguinte obra VEYNE Paul ldquoAcreditavam os gregos em seus mitosrdquo Satildeo Paulo Brasiliense 1983 295 Na Gramatologia Jacques Derrida vai tecer durar criacuteticas a esse pressuposto que foi seguido por muitos especialistas que estudam esse tema 296 No capiacutetulo IV 297 Dentro desse contexto incluiacutemos a tradiccedilatildeo oral ateacute o surgimento das primeiras obras escritas 298 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide a leitura do seguinte livro GRIMAL P ldquoA Mitologia Gregardquo Satildeo Paulo Brasiliense 1987

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outras aplicaccedilotildees A antiga realeza micecircnica por exemplo utilizou o recurso miacutetico

para a fundamentaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do poder monaacuterquico atraveacutes de algumas

famiacutelias que tinha uma relaccedilatildeo consanguiacutenea com os deuses Ou seja aleacutem do

caraacuteter histoacuterico que eacute atribuiacutedo por muitos antropoacutelogos o mito nesse caso eacute

utilizado para reivindicar tiacutetulos de nobreza para algumas famiacutelias e cidades Esse

tipo de aplicaccedilatildeo nos demonstra o seu caraacuteter plaacutestico e de utilidade para a

organizaccedilatildeo social como um todo ao lado da Poesia

42 Mito e espanto

A forccedila e beleza do discurso299 foi uma heranccedila que foi obtida a partir da

sofisticaccedilatildeo e primazia da fala que foi ampliada dentro do periacuteodo oral Essa

caracteriacutestica foi tatildeo marcante que se perdurou mesmo depois do seu esgotamento

como instrumento de transmissatildeo e conservaccedilatildeo cultural ateacute o auge da escrita

durante o periacuteodo claacutessico No discurso do estadista ateniense Peacutericles que foi

registrado pelo historiador Tuciacutedides300 por volta do ano 431 aC eacute possiacutevel

notarmos o fasciacutenio que bela fala produzia nos ouvidos dos atenienses

A maioria daqueles que falaram neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso agrave cerimocircnia tradicional considerando justo celebrar com palavras os mortos na guerra em seus funerais A mim todavia ter-me-ia parecido suficiente tratando-se de homens que se mostraram corajosos em atos manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos - honras como as que hoje presenciastes nesta cerimocircnia fuacutenebre do Estado - em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependecircncia do maior ou menor talento oratoacuterio de um soacute homem Eacute realmente difiacutecil falar com propriedade numa ocasiatildeo em que natildeo eacute possiacutevel avaliar a credibilidade das palavras do orador O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensaraacute talvez que natildeo foi feita a devida justiccedila em face de seus proacuteprios 299 Μύθος Έπος και λόγος Dentro dessa perspectiva vide a famosa oraccedilatildeo fuacutenebre de Peacutericles que estaacute registrada no livro II (35-46) sobre a ldquoA guerra do Peloponesordquo do historiador Tuciacutedides Mesmo sendo um discurso oral esse pronunciamento eacute oriundo de uma formulaccedilatildeo escrita Para esse assunto vide o seguinte livro HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Traduzido por Enid Abreu Dubraacutenzsky Campinas SP Papirus 1996 300 Vide nota anterior Esse texto eacute de grande importacircncia histoacuterica por revelar natildeo apenas a sobriedade da fala que foi esculpida pela beleza retoacuterica desse periacuteodo mas a consciecircncia de cidadania que foi elevada pelo auge do regime democraacutetico e imperialista de Atenas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CANFORA Luciano ldquoO mundo de Atenasrdquo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2015

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desejos e de seu conhecimento dos fatos enquanto outro menos informado ouvindo falar de um feito aleacutem de sua proacutepria capacidade seraacute levado pela inveja a pensar em algum exagero De fato elogios a outras pessoas satildeo toleraacuteveis somente ateacute onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menccedilatildeo estaacute ouvindo quando vatildeo aleacutem disto provocam a inveja e com ela a incredulidade Seja como for jaacute que nossos antepassados julgaram boa esta praacutetica tambeacutem devo obedecer agrave lei e farei o possiacutevel para corresponder agrave expectativa e agraves opiniotildees de cada um de voacutesrdquo301

A grande novidade desse momento eacute que a fala soacutebria do estadista eacute fruto da

reinserccedilatildeo da escrita que possibilitou uma imensa transformaccedilatildeo dentro do

contexto soacutecio-poliacutetico grego durante o auge do processo democraacutetico no periacuteodo

claacutessico302 Para avaliarmos algumas caracteriacutesticas desse fato no campo da

subjetividade coletiva podemos destacar a notaacutevel coerecircncia entre as partes desse

precioso discurso fuacutenebre que foi declamado com o intuito de consolar os

atenienses e de buscar apoio poliacutetico para o projeto imperialista de Peacutericles dentro

e fora de Atenas303 A escrita agrave serviccedilo da fala desempenha nesse momento aleacutem

de reforccedilar a publicidade das ideias difundidas no conteuacutedo dessa peccedila oratoacuteria304

tem por objetivo produzir um efeito de comoccedilatildeo e apoio atraveacutes da persuasatildeo

produzida a partir do encadeamento entre vaacuterias ideias que esse discurso propotildee aos

seus respectivos ouvintes de modo grandiloquente305 Essa experiecircncia de domiacutenio

da fala que aparece no periacuteodo oral foi ampliada e refinada dentro do acircmbito

301 Tuciacutedides ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo (livro II ndash 35) 302 Sobre essa questatildeo vide o seguinte livro HAVELOCK ERIC A ldquoA Revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturaisrdquo Trad Ordep Joseacute Serra Satildeo Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 303 Na ldquoGenealogia da Moralrdquo Nietzsche revela na sua primeira dissertaccedilatildeo (cap 11) as intenccedilotildees que estatildeo subtendidas nesse discurso de Peacutericles que foram registradas por Tuciacutedides Para essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NIETZSCHE F ldquoA genealogia da Moralrdquo (traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 304 O helenista Conford vai analisar as intenccedilotildees fictiacutecias e histoacutericas de Tuciacutedides ao escrever o seu livro que conteacutem esse discurso fuacutenebre de Peacutericles Para mais informaccedilotildees vide CORNFORD Francis Macdonald ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Philadelphia University of Pennsylvania 1971 305 Esse discurso pode ser divido em dois niacuteveis o primeiro sentido busca a comoccedilatildeo e o apoio dos atenienses e aliados enquanto que o segundo visa mostrar o poderio beacutelico ateniense para intimidar os inimigos e as outras cidades que ainda natildeo haviam assumido apoio direto ao projeto militar e poliacutetico de Peacutericles Vale lembrar que essa peccedila oratoacuteria carrega os grandes traccedilos da influecircncia sofistica de Protaacutegoras de Abdera e da arte do escultor Fiacutedeas Algumas das suas obras mais famosas na antiguidade se destacaram pelo poder de distorccedilatildeo da realidade com o intuito de fornecer ao espectador um profundo prazer esteacutetico O uso desse tipo de recurso anuncia a intenccedilatildeo do artista que se coaduna com a pedagogia do movimento sofiacutestico de produzir comoccedilatildeo atraveacutes do espanto Nesse sentido ambas seguem o mesmo fundamento da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que pode ser encontrada nas obras homeacutericas Para mais informaccedilotildees vide o segundo ensaio chamado ldquoThe spirit of art of Pheidiasrdquo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 Paacuteg 42

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militar pedagoacutegico teatral e juriacutedico306 A organicidade e clareza eram pontos

essenciais para a desenvoltura e eficiecircncia de todos os rapsodos tragedioacutegrafos e

comedioacutegrafos antigos Logo o uso da teacutecnica da grafia alfabeacutetica possibilitou um

domiacutenio ainda maior na composiccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo puacuteblica desses artesatildeos da

fala 307 Essa novidade oriunda do advento da escrita teria surgido por volta do

seacuteculo VIII aC e durante um determinado periacuteodo dividiu o espaccedilo com a antiga

oralidade que era o instrumento principal para conservaccedilatildeo e transmissatildeo cultural

Mas antes de abordarmos esse ponto vamos rastrear as evidecircncias que antecederam

esse fato no mundo grego

Os dois primeiros termos que expressam o ato de fala estatildeo voltados

diretamente para a tradiccedilatildeo oral que foi determinante para organizaccedilatildeo cultural

helecircnica 308 Dentro desse contexto o pensamento miacutetico e eacutepico foi responsaacutevel

por formular as primeiras concepccedilotildees de linguagem que revelam o profundo

conhecimento e desenvolvimento das teacutecnicas mnemocircnicas essenciais para a

manutenccedilatildeo e sobrevivecircncia cultural na antiguidade Essa caracteriacutestica pode ser

obtida no antigo culto das musas que eram as divindades responsaacuteveis pela

perpetuaccedilatildeo da memoacuteria309 Satildeo elas que no mundo homeacuterico constroem e

estabelecem a compreensatildeo das forccedilas que organizam o nosso mundo (SVENBRO

1976) Essa concepccedilatildeo tem o poder de fundamentar o conhecimento necessaacuterio para

306 Eacute possiacutevel encontramos nesse discurso de Peacutericles todos esses aspectos reunidos Eacute importante ressaltar que antes mesmo da reinserccedilatildeo da escrita o ritmo e a melodia da muacutesica davam ao discurso poeacutetico o sentido e a coesatildeo necessaacuteria para promover a simpatia e prazer aos ouvintes atraveacutes dos seus respectivos metros Posteriormente essas caracteriacutesticas ainda vigoravam na prosa aacutetica que escritores dramaturgos oradores professores e poliacuteticos utilizavam nesse periacuteodo Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista Iacutetacaufrj 2015 307 Vide os apontamentos de Aristoacuteteles sobre esse tema na Poeacutetica e Retoacuterica Eacute importante destacar que houve uma grande polecircmica em torno dessa questatildeo entre os defensores da tradiccedilatildeo oral e daqueles que pautavam os seus trabalhos como os filoacutesofos logoacutegrafos e sofistas atraveacutes do uso de textos escritos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 308 Sobre esse ponto vide as consideraccedilotildees que estatildeo no primeiro e no segundo capiacutetulo desse presente trabalho 309 Μοῦσαι (Moũsai) satildeo divindades responsaacuteveis pela inspiraccedilatildeo simboacutelica no campo da muacutesica arte literatura e ciecircncia na mitologia grega O mais interessante eacute que todas as concepccedilotildees filosoacuteficas antigas sobre a origem da muacutesica satildeo fundamentadas a partir dessa heranccedila da tradiccedilatildeo oral Ora esse detalhe eacute de extrema importacircncia por apresentar a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo miacutetica para o desenvolvimento da muacutesica e filosofia entre os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GRIMAL Pierre ldquoDicionaacuterio da mitologia grega e romanardquo Traduccedilatildeo de Victor Jabouille 3 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 Em um importante artigo chamado ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo o helenista alematildeo Friedrich Solmsen aponta algumas diferenccedilas entre o uso dessas divindades invocadas por esses dois poetas na tradiccedilatildeo antiga Para mais informaccedilatildeo vide o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954

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os gregos dentro desse contexto histoacuterico Ao fornecer aos homens uma

possibilidade de compreensatildeo do mundo as musas datildeo sentido para a existecircncia

humana na organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica da realeza micecircnica (GERNET 1982)

Todas as expressotildees do pensamento nesse momento satildeo pautadas atraveacutes da sua

forccedila persuasiva e expressiva emitidas pela fala divina do aedo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOacute Musas me dizei moradoras do Olimpo divinas todo-presentes todo-sapientes (noacutes nada mais sabendo soacute a fama ouvimos) quais eram hegemocircnicos guiando os Dacircnaos os priacutencipes e os chefes O total de nomes da multidatildeo nem tendo dez bocas dez liacutenguas voz inquebraacutevel peito brocircnzeo eu saberia dizer se as Musas filhas de Zeus porta-escudo oliacutempicas natildeo derem agrave memoacuteria ajuda renomeando-me os nomes Soacute direi o nuacutemero das naves e os navarcas que assediaram Troia Pemeleu Protoeacutenor Lito Arcesilau mais Clocircnio iam agrave testa dos Beoacutecios de Aacuteulide peacutetrea de Hiacuteria de Esqueno Escolo e de Eteono milmontanhosa Teacutespio Graia Micalesso vasta em planiacutecies de Harma de Ileacutessio de Eritras os de Eleona Peteona Hila de Ocaleia Medeona bem-construiacuteda Tisbe columbaacuterio riquiacutessimo e os de Eutreacutessio de Copas e os vindos de Coroneia e de Haliarto verdejante e os de Plateia e Glissa os de Hipotebas poacutelis bem-construiacuteda os de Onquesto veneranda bosque de Posecircidon esplecircndido e os de Arna riquiacutessima em pacircmpanos de Nisa divina e Mideia e os de Anteacutedon extremo ponto na fronteira Cento e cinquenta naves da Beoacutecia e nelas em cada barco cento e vinte homens de guerraOs nativos de Aspleacutedon de Orcocircmeno Miacutenias Ascaacutelafos e Iaacutelmeno comandam filhos de Astiacuteoque com Ares (o deus alcanccedilara a virgem casta no alto do palaacutecio de Aacutector o Azeide onde agraves ocultas no leito a possuiacutera esses em fila enchiam trinta naves cocircncavas310rdquo

310 HOMERO Iliacuteada canto II v 484-515 ἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαιὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν πληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνω οὐδ᾽ εἴ microοι δέκα microὲν γλῶσσαι δέκα δὲ στόmicroατ᾽ εἶεν φωνὴ δ᾽ ἄρρηκτος χάλκεον δέ microοι ἦτορ ἐνείη εἰ microὴ Ὀλυmicroπιάδες Μοῦσαι ∆ιὸς αἰγιόχοιο θυγατέρες microνησαίαθ᾽ ὅσοι ὑπὸ Ἴλιον ἦλθον ἀρχοὺς αὖ νηῶν ἐρέω νῆάς τε προπάσας Βοιωτῶν microὲν Πηνέλεως καὶ Λήϊτος ἦρχον Ἀρκεσίλαός τε Προθοήνωρ τε

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A partir dessa passagem que se encontra no segundo livro da Iliacuteada de

Homero podemos compreender a importacircncia dessas divindades para o

desenvolvimento do processo de subjetividade coletiva grega No iniacutecio dos versos

o poeta ressalta que elas satildeo as responsaacuteveis por guiar os gregos atraveacutes do

conhecimento que eacute fornecido atraveacutes da memoacuteria311 Sendo assim nos deparamos

com a uacutenica via possiacutevel para ultrapassar o limite que separa o mundo divino e

humano A manifestaccedilatildeo dessa verdade ocorre entre o movimento freneacutetico da

melodia da voz e do corpo312 que materializa em um uacutenico instante313 a presenccedila

dessas forccedilas que organizam o mundo atraveacutes dessas imagens glorificadas no

tempo

ldquoQuando Aquiles por exemplo presta um grande juramento sua palavra eacute inseparaacutevel de um gesto e de um comportamento solidaacuteria agrave virtude do cetro que a confunde com a afirmaccedilatildeo oracular A todo momento a linguagem verbal se entrelaccedila com a linguagem gesticular quando Althaiacutea amaldiccediloa o seu filho sua maldiccedilatildeo eacute palavra e postura toda encolhida ela bate com forccedila no chatildeo para suscitar a Eriacutenia vingadora Eacute a atitude do corpo que confere sua potecircncia agrave palavra uma palavra que aliaacutes se identifica com a obscura figura de Eriacutenia Na suacuteplica a palavra se faz silecircncio eacute o corpo que fala sozinho atraveacutes de uma espeacutecie de prostraccedilatildeo cujas significaccedilotildees satildeo muacuteltiplas estado de luto atitude do morto nos infernos do condenado do candidato agrave purificaccedilatildeo ou agrave iniciaccedilatildeo Quando brota a voz tira sua forccedila do comportamento gesticular Todos estes comportamentos sociais satildeo siacutembolos eficazes que agem diretamente em virtude de sua potecircncia proacutepria o gesto da matildee o cetro a oliveira guarnecida com latilde satildeo o espaccedilo central de uma potecircncia religiosa A palavra eacute da mesma ordem como a matildeo que daacute que recebe que toma como o bastatildeo que Κλονίος τε οἵ θ᾽ Ὑρίην ἐνέmicroοντο καὶ Αὐλίδα πετρήεσσαν Σχοῖνόν τε Σκῶλόν τε πολύκνηmicroόν τ᾽ Ἐτεωνόν Θέσπειαν Γραῖάν τε καὶ εὐρύχορον Μυκαλησσόν οἵ τ᾽ ἀmicroφ᾽ Ἅρmicro᾽ ἐνέmicroοντο καὶ Εἰλέσιον καὶ Ἐρυθράς οἵ τ᾽ Ἐλεῶν᾽ εἶχον ἠδ᾽ Ὕλην καὶ Πετεῶνα Ὠκαλέην Μεδεῶνά τ᾽ ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Κώπας Εὔτρησίν τε πολυτρήρωνά τε Θίσβην οἵ τε Κορώνειαν καὶ ποιήενθ᾽ Ἁλίαρτον οἵ τε Πλάταιαν ἔχον ἠδ᾽ οἳ Γλισᾶντ᾽ ἐνέmicroοντο οἵ θ᾽ Ὑποθήβας εἶχον ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Ὀγχηστόν θ᾽ ἱερὸν Ποσιδήϊον ἀγλαὸν ἄλσος οἵ τε πολυστάφυλον Ἄρνην ἔχον οἵ τε Μίδειαν Νῖσάν τε ζαθέην Ἀνθηδόνα τ᾽ ἐσχατόωσαν τῶν microὲν πεντήκοντα νέες κίον ἐν δὲ ἑκάστῃ κοῦροι Βοιωτῶν ἑκατὸν καὶ εἴκοσι βαῖνον οἳ δ᾽ Ἀσπληδόνα ναῖον ἰδ᾽ Ὀρχοmicroενὸν Μινύειον τῶν ἦρχ᾽ Ἀσκάλαφος καὶ Ἰάλmicroενος υἷες Ἄρηος οὓς τέκεν Ἀστυόχη δόmicroῳ Ἄκτορος Ἀζεΐδαο παρθένος αἰδοίη ὑπερώϊον εἰσαναβᾶσα Ἄρηϊ κρατερῷ ὃ δέ οἱ παρελέξατο λάθρῃ τοῖς δὲ τριήκοντα γλαφυραὶ νέες ἐστιχόωντο Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 311 No grego o jogo entres esses termos eacute bem perceptiacutevel ldquoἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαι ὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανrdquo 312 Atraveacutes do canto e danccedila ou seja entre a voz (focirclegoalma) e o movimento do corpo (mundo sensiacutevel) Na sequecircncia veremos que esse importante detalhe tambeacutem natildeo passou despercebido aos olhos de Marcel Detienne em ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo No quarto capiacutetulo (A ambiguidade da palavra) ele expotildee uma anaacutelise que reforccedila o que foi dito por noacutes anteriormente 313 Νῦν (nun) significa ldquoagorardquo (adveacuterbio temporal) e o ldquotempo presenterdquo

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afirma o poder como os gestos de imprecaccedilatildeo ela eacute uma forccedila religiosa que age em virtude de sua proacutepria eficaacutecia A palavra que o adivinho o poeta e o rei de justiccedila pronunciam natildeo consiste em algo fundamentalmente diferente da proclamaccedilatildeo do vingador ou das imprecaccedilotildees de um moribundo dirigidas a seus assassinos Eacute o mesmo tipo de palavra maacutegico-religiosa314rdquo

Homero deixa o frenesi guiar as suas palavras que antes mesmo de descrever

o incidente que indica o nuacutemero de naus que atacaram Troacuteia apresenta quase

visualmente para noacutes uma evocaccedilatildeo315 uma prece que parece ser algo de praxe

entre os antigos aedos316 que tem o poder de materializar essas forccedilas divinas no

mundo humano Esse ritual indica a relaccedilatildeo religiosa que pode ter nascido apoacutes o

primeiro espanto diante da grandiosidade da phyacutesis que lhe trouxe a primeira

verdade aos homens a inteligiacutevel fronteira entre o mundo dos mortais e imortais

O conteuacutedo dessa experiecircncia eacute transmitido de modo equacircnime que passa a ser

reconhecido entre todos os membros da comunidade pelo encantamento dos versos

do poeta que era considerado entre seus pares como um artiacutefice divino Como foi

exposto por Marcel Detienne anteriormente essa palavra ganha consistecircncia no

diaacutelogo estabelecido com o corpo que eacute o receptaacuteculo sensiacutevel para a manifestaccedilatildeo

de toda ordem divina sobre o mundo humano317 Toda beleza harmocircnica da voz seraacute

simultaneamente manifesta no ritmo do gestual corporal da danccedila ambas atividades

formam o primor do mais alto valor da cultura helecircnica que se manteve ativa mesmo

depois do decliacutenio do teatro na antiguidade

314 Vide DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap IV (Ambiguidade da Palavra) pag 33 315 Significa literalmente chamar para fora Enquanto que invocaccedilatildeo eacute o contraacuterio ou seja chamar os deuses para dentro Ambos os termos vecircm do termo latino ldquovocarerdquo (chamar) 316 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo v 22-34 e o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954 317 Mais um ponto de convergecircncia ndash ou mera coincidecircncia - entre o pensamento miacutetico-poeacutetico e filosoacutefico A relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias pode ser encontrada nos fragmentos de pitagoacutericos como Alcmeacuteon (DK 24 B4) Empeacutedocles (DK 31B17) e no Timeu de Platatildeo (34 c) aos poucos vamos coletando e expondo esses indiacutecios que demostram o diaacutelogo profiacutecuo entre a filosofia e a poesia na antiguidade

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43 Mito accedilatildeo e verdade

A arte do bem falar era algo essencial na formaccedilatildeo dos homens responsaacuteveis

pela atividade poliacutetica A excelecircncia entre o falar e o fazer era respaldada no modelo

heroico fornecido pela poesia homeacuterica O valor de verdade e honestidade do

orador era forjado pelos seus grandes feitos que eram imortalizados pelos aedos e

reconhecidos por todos os membros da comunidade Nesse caso a guerra318 era o

espaccedilo que fornecia ao homem da realeza o direito de falar e ser respeitado por

todos os gregos Mas esse direito soacute era concedido atraveacutes das conquistas oriunda

dos campos de batalhas no qual cada vitoacuteria era a ratificaccedilatildeo do seu parentesco

divino319 e que fornecia ao mesmo tempo a justificaccedilatildeo necessaacuteria para manter a

sua respectiva soberania poliacutetica Nesse sentido eacute possiacutevel encontrarmos o embriatildeo

para a noccedilatildeo que o filoacutesofo italiano Giambattista Vico vai nomear de verum

factum320 e que de modo conceitual foi aplicada na antiguidade por pensadores de

diferentes correntes como Xenoacutefanes321 e Aristoacuteteles322 Ambos cada um ao seu

318 No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 319 Atraveacutes das vitoacuterias e dos belos feitos Os jogos oliacutempicos por exemplo eacute uma praacutetica que manteacutem acesa essa moral heroica que podemos encontrar na pedagogia homeacuterica Todos os esportes carregam a essecircncia agoniacutestica que sempre foi exaltada como maacuteximo valor pela cultura grega na antiguidade Nesse sentido as Oliacutempiadas tambeacutem desempenhavam uma funccedilatildeo pedagoacutegica que servia para incutir essa moral guerreira Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo neste presente capiacutetulo 320 Essa importante expressatildeo viquiana surgiu a partir do estudo do desenvolvimento de algumas culturas da antiguidade Para Vico a accedilatildeo eacute uma parte da razatildeo e portanto depende essencialmente da certeza da manifestaccedilatildeo do seu agente Ou seja a verdade eacute uma conversatildeo entre razatildeo accedilatildeo e efetivaccedilatildeo Esse eacute o seu criteacuterio de verdade O seu objetivo epistemoloacutegico e hermenecircutico eacute deslocar a esfera da accedilatildeo para o acircmbito conceitual Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros ldquoDe Antiquiacutessima Italorum Sapientiardquo (A Antiga Sabedoria dos Italianos) e ldquoScienza Nuovardquo (Ciecircncia Nova) 321 Xenoacutefanes de Coacutefon elegias (DK 21 B1 Ateneu X 462 c) (ldquoἀλλ᾿ εἰκῆι microάλα τοῦτο νοmicroίζεται οὐδὲ δίκαιον προκρίνειν ώmicroην τῆς ἀγαθῆς σοφίης οὔτε γὰρ εἰ πύκτης ἀγαθὸς λαοῖσι microετείη οὔτ᾿ εἰ πενταθλεῖν οὔτε παλαισmicroοσύνην οὐδὲ microὲν εἰ ταχυτῆτι ποδῶν τόπερ ἐστὶ πρότιmicroον ῥώmicroης ὅσσ᾿ ἀνδρῶν ἔργ᾿ ἐν ἀγῶνι πέλει τοὔνεκεν ἂν δὴ microᾶλλον ἐν εὐνοmicroίηι πόλις εἴη) ldquoLogo nem havendo entre o povo um bom pugilista nem havendo um bom no pentatlo nem no pugilato ou pela velocidade dos peacutes que mais pelo vigor fiacutesico merece honra entre as accedilotildees dos homens nos jogos natildeo eacute por isso que a cidade viveria em uma bela ordemrdquo nossa traduccedilatildeo 322 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro VI 1139) (ldquoἕν τι microέρος τοῦ λόγον ἔχοντος ληπτέον ἄρ᾽ ἑκατέρου τούτων τίς ἡ βελτίστη ἕξις αὕτη γὰρ ἀρετὴ ἑκατέρου ἡ δ᾽ ἀρετὴ πρὸς τὸ ἔργον τὸ οἰκεῖον τρία δή ἐστιν ἐν τῇ ψυχῇ τὰ κύρια πράξεως καὶ ἀληθείας αἴσθησις νοῦς ὄρεξις τούτων δ᾽ ἡ αἴσθησις οὐδεmicroιᾶς ἀρχὴ πράξεως δῆλον δὲ τῷ τὰ θηρία αἴσθησιν microὲν ἔχειν πράξεως δὲ microὴ κοινωνεῖν ἔστι δ᾽ ὅπερ ἐν διανοίᾳ κατάφασις καὶ ἀπόφασις τοῦτ᾽ ἐν ὀρέξει δίωξις καὶ φυγή ὥστ᾽ ἐπειδὴ ἡ ἠθικὴ ἀρετὴ ἕξις προαιρετική ἡ δὲ προαίρεσις ὄρεξις βουλευτική δεῖ διὰ ταῦτα microὲν τόν τε λόγον ἀληθῆ εἶναι καὶ τὴν ὄρεξιν ὀρθήν εἴπερ ἡ προαίρεσις σπουδαία καὶ τὰ αὐτὰ τὸν microὲν φάναι τὴν δὲ διώκειν αὕτη microὲν οὖν ἡ διάνοια καὶ ἡ ἀλήθεια πρακτική τῆς δὲ θεωρητικῆς διανοίας καὶ microὴ πρακτικῆς microηδὲ ποιητικῆς τὸ εὖ καὶ κακῶς τἀληθές ἐστι καὶ ψεῦδος τοῦτο γάρ ἐστι παντὸς

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modo refletem esse importante traccedilo do ideal de formaccedilatildeo do homem antigo que

se faz na efetivaccedilatildeo de suas accedilotildees no mundo323 atraveacutes da linguagem

O termo que eacute utilizado pelo poeta para descrever esse processo comunicativo

entre os antigos estaacute contido nessa passagem que pertence ao segundo livro da

Iliacuteada Nela o poeta emprega o verbo mytheacuteomai324 para o ato de fala325 que conduz

essa experiecircncia original da linguagem no qual se fundamenta toda a tradiccedilatildeo oral

Dentro dessa mesma passagem podemos tambeacutem notar que essa accedilatildeo estaacute associada

de modo reciacuteproco agrave audiccedilatildeo326 nomenclatura327 conhecimento328 e gloacuteria329 A

proximidade relacional entre esses termos sugere que esse conjunto terminoloacutegico

forma a imagem da faculdade de criaccedilatildeo330 e expressatildeo que eacute amparada pela forccedila

divina de Mnemosyne a deusa da memoacuteria331 responsaacutevel por guardar o

διανοητικοῦ ἔργον τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁmicroολόγως ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ πράξεως microὲν οὖν ἀρχὴ προαίρεσιςmdashὅθεν ἡ κίνησις ἀλλ᾽ οὐχ οὗ ἕνεκαmdashπροαιρέσεως δὲ ὄρεξις καὶ λόγος ὁ ἕνεκά τινοςrdquo) ldquoSatildeo trecircs os itens na alma que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo inteligecircncia e desejo Entre eles a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio de accedilatildeo alguma como eacute evidente pelo fato de que os animais tecircm sensaccedilatildeo mas natildeo tecircm parte na accedilatildeo Aquilo que no pensamento eacute afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo no desejo eacute procurar ou evitar Consequentemente dado que a virtude do caraacuteter eacute uma habilitaccedilatildeo relativa ao propoacutesito e dado que o propoacutesito eacute um desejo deliberado eacute preciso por isso que o raciociacutenio seja verdadeiro e que o desejo seja correto ndash se o propoacutesito for virtuoso ndash e que o raciociacutenio afirme as mesmas coisas que o desejo procura Eacute nisso pois que consiste o pensamento realizador de accedilatildeo e a verdade realizadora de accedilatildeo Do pensamento teoacuterico isto eacute que natildeo leva nem agrave accedilatildeo nem agrave produccedilatildeo a boa e a maacute condiccedilatildeo consistem no verdadeiro e no falso (pois eacute essa a funccedilatildeo de toda a parte pensante) Mas da parte pensante que produz accedilatildeo a boa condiccedilatildeo consiste na verdade em acordo com o desejo corretordquo) Traduccedilatildeo de Lucas Angioni 323 No discurso fuacutenebre de Peacutericles que se encontra na histoacuteria da guerra do Peloponeso de Tuciacutedides (II 41 1-2) o grande estadista ateniense afirma que a ldquoverdade estaacute na accedilatildeotrabalhordquo (ἔργων ἐστὶν ἀλήθειαergon estiacuten aleacutetheia) Nessa expressatildeo podemos destacar a relaccedilatildeo entre aleacutetheia (natildeo esquecimentoverdade) e ergon (accedilatildeotrabalhofazer) que vem do projeto pedagoacutegico homeacuterico e hesiodico Nesse sentido a retoacuterica polida de Peacutericles - que se projeta como uma fala universal- estava bem atenta aos diferentes perfis soacutecio-poliacuteticos que ela deveria abranger No proacuteximo capiacutetulo vamos analisar o choque entre esses dois projetos pedagoacutegicos que revela a crise poliacutetica que se instaurou em Atenas apoacutes a queda da realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista IacutetacaUfrj 2015 324 Vide Homero Iliacuteada livro II (v 489) ldquoπληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνωrdquo ldquoPlethyn d ouk an ego mythesomai oud onomenordquo posteriormente voltaremos a analisar essa importante evidecircncia da tradiccedilatildeo oral na literatura antiga 325 Vide o emprego do termo (γλῶσσαιglossai) liacutenguas no verso 489 326 No emprego do verbo ἀκούοmicroενakouacutemen para o ato de ouvir 327 Para o ato de nomear (ὀνοmicroήνωonomeacuteno) Dentro desse ato como vimos nas consideraccedilotildees sobre o Craacutetilo de Platatildeo subtende-se que o poeta tambeacutem eacute uma figura responsaacutevel pela nominaccedilatildeo das coisas dentro desse contexto histoacuterico 328 No emprego do verbo (ἴστέisteacute) que eacute oriundo do verbo (οἶδαoida) para o ato de conhecer 329 O termo (κλέοςkleacuteos) gloacuteria que nesse contexto oral carrega tambeacutem o sentido de ouvir e de transmitir algum relato (mito) Vide Lidell amp Scott Posteriormente falaremos mais sobre esse ponto 330 ΠοίησιςPoieacutesis 331 ΜνηmicroοσύνηMnemosyne a divindade que personifica a memoacuteria e matildee das nove musas

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conhecimento de todas as coisas Dentro dessa tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que apresenta

a genealogia dos deuses332 eacute possiacutevel encontrarmos a configuraccedilatildeo natildeo apenas da

ordem divina mas da proacutepria estruturaccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem e da

racionalidade humana que se expressa atraveacutes da oralidade

Nesse contexto o mito que estaacute contido no radical desse verbo eacute algo

essencial para a organizaccedilatildeo cultural helecircnica sob as leis natildeo escritas333 dos deuses

que se comunicam com os mortais atraveacutes da fala inspirada334 Em seu livro sobre

o conceito de Phyacutesis para os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Gerard Naddaff (NADAFF

1992) apresenta uma hipoacutetese muito interessante sobre a utilidade dos mitos para

os gregos Aleacutem de todos os aspectos mnemocircnicos que ressaltamos na nossa tese

ele acrescenta mais trecircs caracteriacutesticas que aceitamos como razoaacuteveis para a

importacircncia do uso desse meio de expressatildeo para os gregos vejamos a seguir

anthropogocircnico335 sociogocircnico336 e politogocircnico337 Esses trecircs pontos satildeo oriundos

das cosmogonias miacuteticas que foram a base conceitual para os primeiros filoacutesofos

Para o professor lusitano Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) essa experiecircncia da

linguagem eacute algo excepcional que evidencia o entrelaccedilamento do homem com a

Natureza Ela assinala o exato instante que a observaccedilatildeo desses fenocircmenos naturais

passa a ocupar o seu pensamento de modo integrado e reflexivo Logo o ato de

criaccedilatildeo e expressatildeo ganham forma simultaneamente quando o mundo humano se

expande atraveacutes das inuacutemeras faces da poesia E eacute nesse interstiacutecio que ele se depara

332 Ou Teogonia Vide o livro homocircnimo de Hesiodo 333 Vide a seguir passagem de Antiacutegona de Soacutefocles onde eacute empregada essa expressatildeo que revela uma crise entre as leis humanas e divinas entre phyacutesis e nomos a partir do verso 455 (ὥστ᾽ ἄγραπτα κἀσφαλῆ θεῶν νόmicroιmicroα δύνασθαι θνητὸν ὄνθ᾽ ὑπερδραmicroεῖνoacutest agrapta kasphaleacute teon noema dynasthai) 334 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo (533d534e) nessa obra eacute exposta a imagem do poeta inspirado que vem dessa tradiccedilatildeo oral mais antiga Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo claacutessico a funccedilatildeo poeacutetica foi passando por diversas transformaccedilotildees A criacutetica de Platatildeo eacute direcionada agrave poesia que eacute construiacuteda atraveacutes de uma techneacute Essa corrente teria sido iniciada com o poeta liacuterico Simocircnides de Ceos que cobrava por seus versos e defendia o caraacuteter artificial da palavra poacuteetica Diante de uma concepccedilatildeo que foi muito difundida no periacuteodo claacutessico atraveacutes das obras de Phiacutedias a pintura era considerada como uma ilusatildeo ou coacutepia da realidade Para ele a pintura eacute poesia silenciosa enquanto que a poesia eacute a pintura que fala Notem que haacute uma aproximaccedilatildeo intencional entre os olhos e ouvidos Dois importantes sentidos que representam por um lado a tradiccedilatildeo oral e por outro o momento da reinserccedilatildeo da escrita e do auge das artes plaacutesticas Simocircnides pode tambeacutem ter contribuiacutedo para o surgimento do movimento sofiacutestico em Atenas pois para muitos autores antigos como Plutarco ele teria influenciado Goacutergias Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Sofistas ldquoTestimonios y fragmentosrdquo Trad Antonio Melero Bellido Madrid Gredos 1996 335 Relativo agraves criaccedilotildees humanas 336 Relativo agrave organizaccedilatildeo das sociedades humanas 337 Relativo agraves praacuteticas soacutecio-poliacuteticas

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com o drama original que obriga a agir de modo incisivo para poder afirmar a sua

proacutepria existecircncia nesse mundo

Como foi exposto no iniacutecio desse capiacutetulo eacute inegaacutevel que a maioria das

culturas antigas levantaram inuacutemeras questotildees que se expressam de diferentes

formas nessa importante praacutetica coletiva oral pois o homem eacute um ser movido por

esse anseio de conhecer o mundo que lhe abarca Esse fenocircmeno investigativo natildeo

eacute um privileacutegio exclusivo do advento da escrita E esses registros natildeo podem ser

interpretados unicamente como expressotildees de praacuteticas ritualiacutesticas no acircmbito da

religiatildeo Aliaacutes o professor Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) ressalta que a

mitologia natildeo deve ser compreendida como algo encerrada em si mesma Logo a

religiatildeo natildeo pode ser concebida como a sua essecircncia mas com um dos seus

inuacutemeros acidentes338 Dentro da tradiccedilatildeo oral o aedo por um lado eacute o

instrumento vivo que estabelece a conexatildeo com as forccedilas divinas e por outro atua

como um legislador e pedagogo agrave serviccedilo da realeza Ou seja ele pertence agrave classe

aristocraacutetica que utiliza os mitos entoados natildeo apenas para o acircmbito religioso mas

para a fundamentaccedilatildeo poliacutetica juriacutedica pedagoacutegica e social do seu povo Tendo

em vista esse fato o conteuacutedo miacutetico desempenha uma ampla gama de funccedilotildees de

acordo com cada contexto histoacuterico Portanto essa eacute a conclusatildeo que chegamos

apoacutes o levantamento desses estudos Dentro de toda tradiccedilatildeo oral o mito aparece

como uma expressatildeo central na construccedilatildeo cultural nos primoacuterdios da formaccedilatildeo da

mentalidade helecircnica

Em geral todas as civilizaccedilotildees antigas utilizavam esse recurso com o mesmo

objetivo339 de estruturaccedilatildeo cultural As primeiras cosmogonias por exemplo

carregavam essas caracteriacutesticas apresentadas que datildeo o fundamento necessaacuterio

para a tese defendida pelo helenista americano Naddaff Como apresentamos

anteriormente o mito tambeacutem desempenhava a funccedilatildeo de atender as demandas

soacutecio-poliacuteticas de cada comunidade helecircnica A organizaccedilatildeo e o equiliacutebrio da

antiga sociedade micecircnica por exemplo estava respaldada nos conteuacutedos que eram

338 Parafraseando Aristoacuteteles que diz ldquoo ser se diz de muitas maneirasrdquo podemos afirmar ldquoo mito se diz de muitas maneirasrdquo Para esse caso a conceituaccedilatildeo de substacircncia aristoteacutelica nos ajuda a compreender esse ponto que o professor Eudoro de Sousa estaacute destacando nessa passagem Para mais informaccedilotildees indicamos a leitura do seguinte livro SOUSA E ldquoMitologiardquo Lisboa Guimaratildees 1984 339 Vide o iniacutecio desse presente capiacutetulo e os relatos de Heroacutedoto sobre a sociedade egiacutepcia no seu livro chamado ldquoHistoacuteriasrdquo (Ἰστορἴαι historiai)

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repassados e mantidos em versos nos movimentos da danccedila dos ritos e nas

inuacutemeras obras esculpidas em maacutermore e pedra que serviam para facilitar a

memorizaccedilatildeo e efetivaccedilatildeo do controle poliacutetico pelo apelo auditivo e visual e que

culminava na heranccedila cultural de mais alto valor que deveria ser transmitida agraves

proacuteximas geraccedilotildees340 Logo todas as narrativas miacuteticas forneciam a mateacuteria prima

da poesia e da arte tradicional que era difundida e protegida atraveacutes dos ritos e

obrigaccedilotildees controladas pela aristocracia real E mesmo com a queda da realeza

micecircnica (VERNANT 1962) e as inuacutemeras transformaccedilotildees que ocorreram durante

esse momento de transiccedilatildeo algumas dessas praacuteticas lituacutergicas341 se mantiveram

durante o periacuteodo homeacuterico ateacute depois do claacutessico342

340 Para essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 341 Λειτουργίαleitourgia O vocaacutebulo Liturgia em grego formado pelas raiacutezes (leit- que vem de laoacutes povo) e - urgia (trabalho ofiacutecio) significa serviccedilo ou trabalho puacuteblico Para mais informaccedilotildees sobre esse vocaacutebulo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott λειτουργ-ία ἡ anterior Att λητ- IG 22114014 (386 BC) - em Atenas e em outros lugares (por exemplo Siphnos Isoc 1936 Mitylene Antipho 577) serviccedilo puacuteblico executado por cidadatildeos particulares agraves suas proacuteprias custas E 442 Lys 2119 etc λ ἐγκύκλιοι ordinaacuterias isto eacute anuais liturgias D 2021 λειτουργίαι microετοίκων opp πολιτικαἰ ib 18 II qualquer serviccedilo puacuteblico ou trabalho Phib 1784 (iii BC) etc in ἐπὶ τῶν λειτουργιῶν τεταγmicroένος em um exeacutercito o oficial que superintendia os operaacuterios carpinteiros etc Plb 3934 οἱ ἐπί τινα λ Idπεσταλmicroένοι Id 10165 geralmente dever militar UPZ 1525 (pl Ii BC) 2 geralmente qualquer serviccedilo ou funccedilatildeo ἡ πρώτη φανερὰ τοῖς ζῴοις λ διὰ τοῦ στόmicroατος οὖσα Arist PA 650a9 cf 674b9 20 IA 711b30 φιλικὴν ταύτην λ Luc Sal 6 3 serviccedilo ministraccedilatildeo ajuda 2 EpCor 912 Ep Phil 230 III serviccedilo puacuteblico dos deuses αἱ πρὸς τοὺς θεοὺς λ Arist Pol 1330a13 αἱ τῶν θεῶν θεραπεῖαι καὶ λ DS 121 cf UPZ 1717 (ii BC) PTeb 30230 (i AD) etc o serviccedilo ou ministeacuterio dos sacerdotes LXX Nu 825 Ev Luc 123 342 Para Vernant apoacutes a decadecircncia micecircnica ocorreram inuacutemeras transformaccedilotildees no modo de vida grego Entre elas estaacute a recusa da opulecircncia dos antigos funerais dos membros da antiga aristocracia real pois essa praacutetica produzia uma sensaccedilatildeo de diferenccedila social entre as pessoas ao fomentar inveja e desavenccedilas desnecessaacuterias que ameaccedilavam a harmonia social Logo esse indiacutecio pode ter sido um dos fatores para um novo tipo de organizaccedilatildeo poliacutetica que estimula a agoniacutestica ateacute mesmo no campo verbal De qualquer modo o poder da palavra como algumas praacuteticas sobretudo religiosas se mantiveram mesmo depois da queda da monarquia micecircnica Para mais informaccedilotildees vide o IV capiacutetulo (O universo espiritual da polis) do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000

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44 Mito e religiatildeo

Segundo o cientista poliacutetico francecircs Durkheim (DURKHEIM1912) as mais

elementares construccedilotildees mitoloacutegicas satildeo produtos que recobrem um fundo de

crenccedilas que constitui a base que auxiliou a edificaccedilatildeo dos mais diversos sistemas

religiosos na antiguidade No caso grego haacute uma enorme dificuldade de

entendermos essa questatildeo com o nosso olhar que eacute marcado pela nossa tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde Eacute inegaacutevel que a experiecircncia mito-poeacutetica esteja intimamente

relacionada com a religiatildeo mas o nosso grande problema eacute aceitar uma ordem de

valor na qual o mito estaria subordinado a ele com esse uacutenico propoacutesito O primeiro

ldquoespantordquo que todos os antigos apontam para o despertar humano e que culminou

no nascimento da proacutepria Filosofia tambeacutem pode ter sido a origem dessa separaccedilatildeo

entre duas instacircncias que teria sido responsaacutevel pela origem da Religiatildeo Nesse

caso a linha entre Religiatildeo e Filosofia eacute mais tecircnue do que podemos imaginar De

qualquer modo um ponto que todos os helenistas - independentemente de suas

teorias - estatildeo de acordo eacute no caso grego a experiecircncia mito-poeacutetica estaacute totalmente

relacionada com essas criaccedilotildees do pensamento humano que surgiram frente agrave

complexidade e grandiosidade da Phyacutesis Desse modo nos deparamos com mais

uma evidecircncia que reforccedila a tese apresentada por Naddaff anteriormente Pois o

domiacutenio do sagrado como um segredo insondaacutevel foi o objeto de desejo tanto dos

aedos e quanto dos primeiros filoacutesofos Cada um a seu modo se colocaram como os

responsaacuteveis por determinar esse limite entre o mundo dos mortais e imortais

Logo a tradiccedilatildeo miacutetica natildeo pode ser interpretada apenas associada agraves praacuteticas

religiosas primitivas Por tanto se faz necessaacuteria uma abordagem que possa

contemplar esse outro aspecto que apresentamos a partir de uma nova perspectiva

que estabeleccedila o seu lugar de valor como uma consistente praacutetica sapiencial343 que

343 Vide os fragmentos da poesia cosmoloacutegica mais antiga de Orfeu Museo e Epimecircnides curiosamente esses trecircs satildeo considerados na antiguidade como filoacutesofos e poetas Para os dois primeiros em alguns fragmentos encontramos o termo aedos (ἀοιδός) para classificaacute-los Esse eacute um importante indiacutecio que aponta a relaccedilatildeo entre a praacutetica sapiencial primitiva e a poesia oral O ponto em comum entre esses aspectos que podemos provisoriamente destacar eacute o papel desempenhado pela muacutesica que flutua entre o caraacuteter miacutestico e filosoacutefico Posteriormente pretendemos expor algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto No caso de Epimecircnides que fecha essa

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foi responsaacutevel por ampliar o processo de subjetividade coletiva helecircnica durante

esse momento histoacuterico Mesmo com essas ressalvas temos a consciecircncia de que

haacute ainda uma forte resistecircncia pela tradiccedilatildeo de especialistas que estudam essa

questatildeo pois muitos pesquisadores hesitam em aceitar uma nova abordagem que

tente encontrar a razatildeo do uso do conteuacutedo mito-poeacutetico em outras esferas da

sociedade grega A nossa intenccedilatildeo eacute de explorar essa via que foi esquecida para

uma atualizaccedilatildeo exegeacutetica em torno dessas questotildees que ainda carecem de razoaacuteveis

esclarecimentos

No caso da religiatildeo esse problema ainda eacute mais complexo pois mesmo com

a queda da realeza micecircnica e do periacuteodo de laicizaccedilatildeo344 que ganhou espaccedilo na

constituiccedilatildeo das primeiras polis com o advento da Democracia na Greacutecia o

fenocircmeno religioso ainda exercia uma profunda influecircncia na mentalidade coletiva

helecircnica345 Contudo haacute uma pergunta que precisa ser respondida como esse fato

foi possiacutevel A uacutenica teoria que poderiacuteamos utilizar para nos aproximar de uma

hipoacutetese aceitaacutevel seria uma concepccedilatildeo de religiatildeo que natildeo fosse imutaacutevel e

acompanhasse as diversas transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que ocorreram na Greacutecia

E nessa direccedilatildeo temos uma importante pista que talvez possa nos ajudar a

compreender esse problema Para Louis Gernet (GERNET 1968) por exemplo o

culto dionisiacuteaco346 parece ter sido uma praacutetica que natildeo pertencia a religiatildeo oficial e

triacuteade de filoacutesofos poetas miacutesticos vale lembrar uma impressionante histoacuteria que se encontra no livro de Dioacutegenes de Laeacutercio sobre a vida de Soacutelon (DL livro I) no qual narra que o poeta miacutestico foi chamado para extirpar uma terriacutevel praga em solo ateniense Independentemente do grau de veracidade o detalhe que destacamos eacute a sua atuaccedilatildeo desses saacutebios no campo social que se coaduna com o papel desempenhado pelos antigos aedos na antiga realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro DIELS Hermann e KRANZ Walther ldquoI Presocraticirdquo 3a ed Trad Giovanni Reale et al Milano Bompiani 2006 344 Ou processo de desconstruccedilatildeo da religiatildeo vigente Eacute notoacuterio que mesmo com o surgimento do regime democraacutetico houve uma abertura e transformaccedilatildeo dos antigos ritos pois eles nunca deixaram de existir na mentalidade grega Talvez fosse necessaacuterio reformular essa questatildeo a partir do sincretismo que eacute um traccedilo marcante da proacutepria formaccedilatildeo cultural grega que dialoga com a esfera poliacutetica eacutetica educativa e juriacutedica helecircnica 345 Haja vista os inuacutemeros processos de impiedade que foi noticiado em diversos relatos antigos Os filoacutesofos sofistas e poliacuteticos eram as figuras que mais sofriam em decorrecircncia desse problema Curiosamente o periacuteodo que esses intelectuais foram mais perseguidos foi o democraacutetico Logo eacute importante levar esse detalhe em consideraccedilatildeo na interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo sobretudo quando o filoacutesofo-poeta tece as suas duras criacuteticas ao regime democraacutetico (Vide a Repuacuteblica e as Leis) que foi responsaacutevel por condenar agrave morte o seu mestre Soacutecrates A necessidade de uma grande reforma poliacutetica e pedagoacutegica em Atenas surgiu da anaacutelise histoacuterica das organizaccedilotildees poliacuteticas gregas 346 E aqui poderiacuteamos citar o exemplo da religiatildeo oacuterfica e da confraria pitagoacuterica

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tradicional da antiga aristocracia grega347 Sendo de origem oriental e campesina

posteriormente foi absorvido para o seio dos rituais tradicionais controlados pela

aristocracia para fins administrativos Esse detalhe natildeo pode ser ignorado pois

revela o caraacuteter plaacutestico das praacuteticas religiosas helecircnicas Eacute provaacutevel que esse tipo

de fenocircmeno fosse moldado a partir de fortes pressotildees sociais e poliacuteticas de origem

interna e externa por toda extensatildeo territorial grega348 Curiosamente a experiecircncia

miacutetica tambeacutem parece ter sofrido diversas transformaccedilotildees para atender outras

demandas que surgiram no interior da vida helecircnica Por conseguinte eacute possiacutevel

que haja relaccedilatildeo entre esses indiacutecios mas essa pesquisa nos faria tomar um caminho

que nos distanciaria demais do presente objetivo349

De qualquer modo eacute importante ressaltar que para alguns antropoacutelogos como

Leacutevi-Strauss (STRAUSS 1964) o mito eacute um termocircmetro que podemos utilizar para

medir essas mudanccedilas que acompanharam a histoacuteria e o processo subjetivo coletivo

de qualquer povo Eacute notoacuterio que a formaccedilatildeo cultural helecircnica foi marcada por outros

povos egressos mais antigos como os grupos eacutetnicos da Europa e da Aacutesia que

ficaram conhecidos como indo-europeus Logo para se fazer um estudo minucioso

347 Segundo Louis Gernet o ritual dionisiacuteaco natildeo estaacute em hipoacutetese alguma relacionado com a realeza e nem com o antepassado das famiacutelias nobres ou com a formaccedilatildeo das cidades apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica Essa praacutetica religiosa teve origem entre os primeiros agricultores que viviam distante do palaacutecio e da parte territorial mais nobre da Greacutecia A Anthesteria (Ἀνθεστήρια Anthestếria de ἄνθος anthos flor portanto a festa das flores) eacute uma antiga festividade grega celebrada em honra do deus Dioniacutesio Esse evento de origem camponesa estaacute entre as mais tiacutepicas que foram preservadas na antiguidade e que aparece no calendaacuterio de Atenas e vaacuterias outras cidades Elas acontecem do deacutecimo primeiro ao deacutecimo terceiro dia do mecircs de anestesia o oitavo mecircs do calendaacuterio aacutetico (o uacuteltimo mecircs do ano antes de 1ordm de marccedilo comeccedilando o ano novo e o periacuteodo de guerra) correspondendo no calendaacuterio gregoriano no final de fevereiro e no iniacutecio de marccedilo Essas caracteriacutesticas alimentam a hipoacutetese da influecircncia estrangeira que foi essencial para o sincretismo grego desde o periacuteodo arcaico Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro LOUIS Gernet et ANDREacute Boulanger ldquoLe Geacutenie grec dans la religionrdquo Paris Albin Michel 1970 348 De modo anacrocircnico podemos pensar como ocorreu essa mudanccedila A expansatildeo do cristianismo que aconteceu entre o seacuteculo I e III em Roma que antes era uma cultura pagatilde foi posteriormente aceita como uma religiatildeo oficial atraveacutes de um decreto assinado pelo imperador Constantino Talvez algo similar possa ter acontecido entre os gregos antes da intervenccedilatildeo de Soacutelon Nesse sentido eacute bem provaacutevel que a religiatildeo dionisiacuteaca tenha sido assimilada como uma expressatildeo legiacutetima do estado Mesmo sendo uma divindade antagonista de Apolo Dioniacutesio representa uma forccedila de purificaccedilatildeo que era benfazeja para o cultivo agraacuterio das classes mais baixas Assim podemos concluir que a antiga organizaccedilatildeo poliacutetica administrada pela classe aristocraacutetica sentiu a necessidade de promover essa abertura por algum tipo de crise ou pressatildeo social Eacute importante ressalta por uacuteltimo que por causa do abastecimento agriacutecola oferecido por esses trabalhadores mais humildes a nobreza tenha recuado Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoAnthropologie de la Gregravece antiquerdquo preacuteface de Jean-Pierre Vernant Paris Flammarion 1982 349 Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo vide os seguintes livros DETIENNE Marcel ldquoA invenccedilatildeo da mitologiardquo Brasiacutelia EDUNB Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1992 E VERNANT J P ldquoMito e sociedade na Greacutecia Antigardquo 2ordf ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1999

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sobre esse problema seria necessaacuterio analisar esses aspectos em outras culturas orais

antigas a partir de suas respectivas praacuteticas linguiacutesticas350 poliacuteticas religiosas e

artiacutesticas que estejam relacionadas ao uso da mitologia para esses fins Como foi

ressaltado por noacutes anteriormente no iniacutecio desse presente capiacutetulo a tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica natildeo pode ser considerada como uma instacircncia independente ou estanque

(GRIMAL 1987) pois ela acompanha todo o processo de desenvolvimento

humano nos seus mais diferentes contextos de atuaccedilatildeo que atravessa desde da

origem da Religiatildeo ateacute as primeiras praacuteticas sapienciais que foram importantes para

o desenvolvimento da Linguagem Educaccedilatildeo Direito Literatura Arte e Filosofia

no mundo antigo

45 Mito e a voz

Haacute vaacuterios sentidos para esse termo o emprego mais antigo que encontramos

estaacute na poesia homeacuterica como expusemos anteriormente351 e ele estaacute associado ao

nosso ato de fala O mito eacute a palavra que designa o pensamento que se exprime

atraveacutes da liacutengua de modo literal e natural352 Como uma histoacuteria espontacircnea e

350 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro BENVENISTE E ldquoLe vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes 1 Eacuteconomie parenteacute socieacuteteacute 2 Pouvoir droit religionrdquo Paris Eacuteditions de Minuit 1969 351 Vide Homero Iliacuteada (livro II v 489) 352 Esse eacute o seu sentido originaacuterio que encontramos no dicionaacuterio Lydell amp Scott microῦθος ὁ palavra fala freq em Hom e outros Poetas em sg e pl πος καὶ microῦθος Od 11561 opp ἔργον microύθων τε ῥητῆρ ἔmicroεναι πρηκτῆρά τε ἔργων Il 9443 cf 19242 esp mera palavra microύθοισιν opp ἔγχεϊ 18252 ἔργῳ κοὐκέτι microύθῳ A Pr 1080 (anap) Etc - em relaccedilotildees especiais 2 discurso puacuteblico micro Odνδρεσσι microελήσει Od 1358 microύθοισιν σκολιοῖς Hes Op 194 microύθου ἐπισχεσίη a apresentaccedilatildeo de um fundamento Od 2171 πρὶν ἂν ἀmicroφοῖν micro ἀκούσῃς οὐκ ἂν δικάσαις Ar V 725 microύθοισι κεκάσθαι para ter habilidade na fala Od 7157 3 conversa principalmente em pl 4214 239 etc 4 coisa disse fato mateacuteria microῦθον δέ τοι οὐκ ἐπικεύσω ib 744 τὸν ὄντα micro Enguia 346 ameaccedila comando ἠπείλησεν microῦθον Il 1388 cf 25 1683 cobrar missatildeo 9625 conselho conselho 7358 5 coisa pensamento palavra natildeo dita propoacutesito design 1545 (pl) microύθων οὓς microνηστῆρες ἐνὶ φρεσὶ βυσσοδόmicroευον Od 4676 cf 777 ἔχετ ἐν φρεσὶ microῦθον 15445 5χε σιγῇ micro ἐπίτρεψον δὲ θεοῖσι 19502 cf 11442 mateacuteria θεοῖσι microῦθον ἐπιτρέψαι 22289 microῦθον microυθείσθην τοῦ εἵνεκα λαὸν ἄγειραν o motivo 3140 6 dizendo κατὰ τὸν ἡmicroέτερον micro Pl Epin 980a οὐκ ἐmicroὸς ὁ micro ἀλλ E Fr 484 cf Pl Smp 177a Ligue Lav 56 Ph 1601 Plu 2661a viu proveacuterbio τριγέρων micro τάδε φωνεῖ A Ch 314 (anap) 7 conversa de homens boato ἀγγελίαν τὰν ὁ microέγας micro Sέξει S Aj 226 (lyr) Cf 188 (lyr Pl) E IA 72 relatoacuterio mensagem S Tr 67 (pl) E Ion 1340 II conto histoacuteria narrativa Od 394 4324 S Ant 11 etc em Hom como o λόγος posterior sem distinccedilatildeo de verdadeiro ou falso micro παιδός ou sobre ele Od 11492 na Trageacutedia Ἀκούσει microῦθον ἐν βραχεῖ λόγῳ(χρόνῳ cod M) A Pers 713 microύθων τῶν Λιβυστικῶν Id Pe 1391 em Prosa τὸν εἰκότα micro a mesma histoacuteria como lihood pl Ti 29d prov Μ πώλετο seja de uma histoacuteria que nunca chega ao fim ou de um contado para aqueles que natildeo ouvem Cratin 59 Crates Com 21 pl Th 164d cf R 621b Lg 645b Phlb 14a micro ἐσώθη esse eacute o fim da histoacuteria Phot 2 ficccedilatildeo (opp Λόγος verdade histoacuterica) Pi O 129 (pl) N 723 (pl) Pl Phd 61b Prt 320c 324d etc 3 geralmente ficccedilatildeo micro

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orgacircnica que natildeo tem a necessidade de verificaccedilatildeo factual353 pois dentro dessa

especiacutefica conjuntura oral o criteacuterio de verdade estava totalmente subordinado agrave

memoacuteria que era validada atraveacutes do desempenho persuasivo do aedo ao revelar

para o mundo a palavra ambiacutegua dos deuses e a accedilatildeo do homem nobre que tinha

alcanccedilado o seu respeito atraveacutes de suas conquistas no campo de batalha atraveacutes da

eacutepica homeacuterica354 Dentro desse contexto esses dois traccedilos eram relacionaacuteveis a

partir do horizonte divino que era o paracircmetro fundamental para a construccedilatildeo

mimeacutetica do horizonte humano355 A expressatildeo dessa ldquoverdaderdquo pode ser obtida

atraveacutes de vaacuterias perspectivas Uma delas que gostariacuteamos de salientar pode ser

fornecida atraveacutes dos jogos Oliacutempicos que nasceu a partir do mito de Heacuteracles356

Phδιοι Phld Po 55 lenda mito Hdt 245 pl R 330d Lg 636c etc ὶ περὶ θεῶν micro Epicur Ep 3p65 U τοὺς micro τοὺς ἐπιχωρίους γέγραφεν SIG 3827 (Delos iii aC) 4 professada obra de ficccedilatildeo histoacuteria infantil faacutebula Pl R 377a das faacutebulas de Esopo Arist Mete 356 b11 5 enredo de uma comeacutedia ou trageacutedia Id Po 1449b5 1450a4 1451a16 III = στάσις Panyas em CollAlex p249 vl em Batr 135 cf microυθιήτης 353 Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo preacute-homeacuterico o poeta ou aedo era o paracircmetro para a noccedilatildeo de verdade que estava associada ao sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo Para mais informaccedilotildees vide o segundo capiacutetulo do seguinte livro DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap II (A memoacuteria do Poeta) pag 15 354 Vide Iliacuteada (Livro IX 443 ndash 455) ldquoOacute luminoso Aquiles se de fato tens o retorno na mente se das naus velozes natildeo queres afastar o fogo vorador possuiacutedo de ira como poderei quedar-me sem ti abandonado Peleu domador-de-corceacuteis quando haacute tempo da Ftia te mandou a Agamecircmnon enviou-me contigo eras muito jovem inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da aacutegora onde os nobres formam-se Por isso me mandou para que te fizesse na oratoacuteria eminente eficiente nas obras Sem ti natildeo ficaria filho mesmo que um deus desvestir do meu corpo a senescecircncia prometesse e a flor dos anos restituir-me quando deixei - mulheres lindas - a Heacutelade fugindo de meu pai o Ormeniacuteade Amintor com o qual brigara disputando-lhe a platino loura pulcra amante por ele em desfavor da esposa preferida Rogara-me minha matildee que a outra eu possuiacutesse insuflando oacutedio ao velho Coisa que fiz obedecendo Deu-se conta o pairdquo Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 355 Nas Leis (livro IV 716 c) Platatildeo parte dessa mesma constataccedilatildeo que tambeacutem pode ser encontrada em outras obras como Timeu no qual apresenta uma relaccedilatildeo proporcional entre o homem cidade e cosmos A figura do demiurgo eacute um espelho para o homem pois nessa idealizaccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer a construccedilatildeo de um caminho seguro para encontrar a plenitude existencial tatildeo almejada Curiosamente eacute possiacutevel perceber que esse artificie divino carrega traccedilos humanos (Timeu - 37 c7) que fazem jus aquela passagem biacuteblica encontrada no livro do Gecircnesis (126) que afirma que o homem eacute feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus Nesse sentido o filoacutesofo poeta parece retomar e reformular esse ideal da sua linhagem nobre que surgiu antes mesmo do periacuteodo preacute-homeacuterico De um modo geral o seu pensamento sempre dialogou com a tradiccedilatildeo Eacute importante ressaltar que mesmo em sua uacuteltima fase de vida Platatildeo nunca deixou de demonstrar o seu profundo respeito pela tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica As suas criacuteticas agrave poesia satildeo formuladas a partir do efeito colateral que ela produziu durante o surgimento da Democracia atraveacutes de Simocircnides de Ceos e do surgimento do movimento pedagoacutegico sofiacutestico 356 Eacute importante salientar que para muitos estudiosos havia uma atividade na civilizaccedilatildeo minoica que eacute muito similar aos jogos oliacutempicos pois ela combinava esporte danccedila e atletismo como parte de suas cerimocircnias religiosas puacuteblicas Aleacutem de outros elementos que pretendemos apresentar em momento oportuno como a proacutepria origem mito de Heacuteracles e da sua importacircncia no periacuteodo eacutepico eacute provaacutevel que essas atividades se perpetuaram atraveacutes da tradiccedilatildeo oral apoacutes a queda da civilizaccedilatildeo micecircnica durante o periacuteodo das trevas dos povos remanescentes que ajudaram a formar posteriormente a cultura grega Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto gostariacuteamos de recomendar

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Esse festival foi criado para prestigiar os deuses atraveacutes do ritual que exalta a

lembranccedila dos grandes heroacuteis miacuteticos357 e manter acesa a beleza das accedilotildees desses

homens superiores em astuacutecia inteligecircncia forccedila e coragem Os poetas tinham o

dever de imortalizaacute-los atraveacutes dessas virtudes cardeais Enquanto Homero canta

os feitos de seus heroacuteis a poesia de Piacutendaro de Tebas homenageava a vitoacuteria dos

grandes competidores358 Assim como a poesia esse certame era responsaacutevel por

delimitar a fronteira entre o espaccedilo humano e divino e o espanto359 primordial que

elevou o espiacuterito humano atraveacutes da accedilatildeo bela que construiu uma forma de

afirmaccedilatildeo existencial a partir do reconhecimento da nossa mortalidade A

excelecircncia360 e a sabedoria praacutetica361 eram os traccedilos de uma pedagogia362 que tinha

como objetivo fornecer ao indiviacuteduo os meios para alcanccedilar a sua plenitude

existencial363 atraveacutes do respeito e desenvolvimento de suas aptidotildees que deveriam

estar agrave serviccedilo do bem maacuteximo da comunidade364 Essa bela accedilatildeo deveria ser

alcanccedilada no acircmbito da guerra poliacutetica assembleias e nos jogos O ideal de beleza 365 e coragem366 estavam inseridos em todas essas expressotildees da cultura helecircnica

Foi a partir dessa noccedilatildeo que surgiu a possibilidade da construccedilatildeo de uma moral que

pudesse realizar em grau maacuteximo a harmonia entre o mundo humano e o cosmos

divino E para a execuccedilatildeo desse objetivo encontramos uma coleccedilatildeo de mitos em

torno da figura de Heacuteracles367 As narrativas que envolvem o seu nome eacute sem duacutevida

alguma um dos legados da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica de maior repercussatildeo e atuaccedilatildeo

no mundo antigo Basta lembrar que aventuras protagonizadas pelo heroacutei perdurou

a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 357 Nesse ponto podemos sublinhar a importacircncia do mito para o nascimento da competiccedilatildeo oliacutempica 358 Vide as odes oliacutempicas de Piacutendaro 359 Θαύmicroα thaacuteuma 360 Αρετές areteacutes 361 Φρόνησις phroacutenesis Vide a Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1214- a33-b35) 362 Παιδεία paideacuteia 363 Eὐδαιmicroονία eudaimonia 364 Κοινωνία koinonia 365 Kαλός καγαθός kaloacutes kagathoacutes 366 Ανδρείαandreia 367 Vide a obra de Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 8 Nesse livro haacute uma compilaccedilatildeo sobre os principais mitos desse importante heroacutei grego que no periacuteodo latino ficou conhecido sob a alcunha de Heacutercules No item sobre a relaccedilatildeo entre mito e epos pretendemos apresentar mais algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia dessa temaacutetica para a cultura helecircnica na antiguidade

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do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute ser importado para ser utilizado como figura lendaacuteria

dentro da mitologia romana368

Na obra do historiador grego Diodoro de Siciacutelia que se chama ldquoBiblioteca

histoacutericardquo que foi escrita por volta do seacuteculo I aC nos deparamos com diversas

passagens no qual o proacuteprio autor chama a nossa atenccedilatildeo para as vaacuterias incoerecircncias

entre esses relatos miacuteticos mas essa objeccedilatildeo natildeo ofusca o valor dessa tradiccedilatildeo oral

pois ela ainda exercia uma grande relevacircncia para a educaccedilatildeo dos antigos Diodoro

chega a justificar para seus leitores que no teatro nos deparamos com vaacuterias

histoacuterias fantasiosas de centauros e de outros seres maacutegicos e nem por isso

deixamos de aplaudir e de honrar as divindades Nesse sentido podemos claramente

perceber o seu esforccedilo de conciliar a tradiccedilatildeo miacutetica com o rigor histoacuterico que

comeccedilou a ser cobrado a princiacutepio com a obra a ldquoHistoacuteria da guerra de

Peloponesordquo de Tuciacutedides369 Esse detalhe natildeo pode passar despercebido entre noacutes

pois revela que mesmo no periacuteodo romano a mitologia ainda vigorava com muita

forccedila entre o mundo grego e romano No caso de Heraacutecles os seus doze trabalhos

foram utilizados para incutir os ideais de coragem e persistecircncia na pedagogia

helecircnica e latina Esses valores idealizados eram projetados em todas as atividades

que perpassava o aspecto militar da educaccedilatildeo homeacuterica ateacute a importacircncia do

trabalho fomentado pela poesia hesiodica Eacute sob essa perspectiva que podemos

encontrar o caraacuteter plaacutestico da mitologia que pocircde ser explorado infinitamente por

diversos poetas e aedos para vaacuterios fins No caso do mito de Heacuteracles por exemplo

um desses usos mais antigos culminou na fundaccedilatildeo dos jogos Oliacutempicos na

Greacutecia370 E como foi exposto por noacutes anteriormente esse festival puacuteblico tinha o

objetivo de estimular em todos os homens essa afirmaccedilatildeo de excelecircncia atraveacutes da

accedilatildeo efetiva que tem o objetivo de zelar o equiliacutebrio social e poliacutetico da civilizaccedilatildeo

368 E nesse momento nos deparamos in loco com a prova do uso da tradiccedilatildeo mito poeacutetica que perdurou ateacute o periacuteodo heleniacutestico 369 O helenista britacircnico Francis Cornford natildeo pensa desse modo Ele afirma que a nossa historiografia moderna projetou de modo anacrocircnico e equivocado os nossos criteacuterios de cientificidade sobre a obra do ilustre grego pois Tuciacutedides natildeo conhecia o conceito de causalidade histoacuterica E nesse sentido temos que estudar a sua obra a partir do seu respectivo contexto histoacuterico que estava vinculada diretamente a mentalidade traacutegica das peccedilas de Eacutesquilo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro CORNFORD F M ldquoThucydides Mythistoricusrdquo London 1907 370 Vide Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 14

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helecircnica Esse foi o caminho construiacutedo para a manutenccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses

povos

Nesse sentido o atletismo371 foi a atividade que materializou esse ensejo

coletivo Ele se tornou o siacutembolo maacuteximo da cultura grega que foi responsaacutevel por

carregar esse legado da educaccedilatildeo aristocraacutetica mais antiga A competiccedilatildeo372 foi um

traccedilo tatildeo marcante que essa experiecircncia ficou eternizada em um ritual ciacutevico para

lembrar a importacircncia dessa atividade na formaccedilatildeo humana atraveacutes da Paideacuteia

(Educaccedilatildeo)373 Em cada prova esse contato com o mundo divino eacute rememorado e

reafirmado entre seus inuacutemeros competidores O homem atraveacutes do seu esforccedilo

fiacutesico e mental pode alcanccedilar o seu valor quando ultrapassa os seus proacuteprios

limites que foram impostos a priori pela natureza Esse gesto magnifico - que eacute

atualmente compartilhado entre diversas culturas em nosso mundo ndash tem o poder

de aproximar o homem dos deuses em cada recorde alcanccedilado Um degrau de

ascensatildeo que eleva o atleta e lhe fornece as devidas honras e gloacuterias que eacute obtida

pela accedilatildeo vitoriosa que abrange do campo individual ao coletivo374 Ou seja

somente atraveacutes da bela accedilatildeo no terreno da disputa o competidor ndash e o guerreiro -

pode estabelecer um diaacutelogo no qual resulta o seu reconhecimento e valor dentro

371 Esse termo traz em seu radical o sentido de combate competiccedilatildeo e disputa Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott ἀθλ-έω athleacuteo Ion impf ἀέθλεον Hdt 167 7212 aor ἤθλησα (v infr) pf ἤθληκα Plu Demetr 5mdash Med aor ἐνηθλησάmicroην AP 7117 (Zenod)mdash Pass pf κατήθληmicroαι Suid (ἆθλος ἆθλον)mdashforma comum dos estrangeiros usado por Homero somente no aoristo Particiacutepio Λαοmicroέδοντι ἀθλήσαντε tendo contenda com ele Il 7453 πολλάπερ ἀθλήσαντα tendo paacutessdo por muitas lutas 1530 contenda em batalha Hdt 7212 πρός τινα 167 ἀ ἄθλους ἀ κατὰ τὴν ἀγωνίαν Pl Ti 19c and b cf Lg 830a ἤθλησα κινδυνεύmicroατα have engaged in perilous struggles S OC 564 φαῦλον ἀθλήσας πόνον E Supp 317 ἀ τῷ σώmicroατι Aeschin 2147 II Para ser um atleta e disputar nos jogos Simon 149 CIG 2810b (Aphrodisias) III Realizar jogos ἐπ αρχεmicroόρῳ B 812 372 Αγώνεςagones 373 Para mais informaccedilotildees vide os seguintes livros ROCHA PEREIRA MARIA H ldquoEstudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Irdquo Cultura Grega Lisboa 2006 E ANDRONICOS E (e outros) ldquoJogos Oliacutempicos na Greacutecia Antigardquo Ed Odysseus 2004 374 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo Ou seja ela eacute (ενέργεια τισ εστιν eneacutergeia tis estiacuten) uma atividade e natildeo uma possessatildeo Eacute importante ressaltar que para o filoacutesofo macedocircnio essa conquista eacute algo que abrange do campo coletivo ao individual A diferenccedila que encontramos sobre essa questatildeo entre o periacuteodo homeacuterico e claacutessico eacute o fato de que para Homero a moral natildeo eacute autocircnoma pois ainda estaacute subserviente da vontade dos deuses No caso de Aristoacuteteles ela eacute imanente ao homem e surge como decorrecircncia da atividade poliacutetica que visa estabelecer a harmonia na polis Somente nela o indiviacuteduo pode realizar as suas competecircncias em maacuteximo grau para encontraacute-la e compartilhaacute-la para o equiliacutebrio total da cidade e consequentemente encontrar a sua plenitude existencial Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SNELL Bruno ldquoA descoberta do espiacuteritordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 E ARISTOTLE ldquoNicomachean Ethicsrdquo Loeb Classical Library Trans H Rackham Rev ed Cambridge Mass 1934

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da imortalidade que foi recebida como uma daacutediva dos deuses pelo canto dos

poetas no mundo humano Exatamente como ocorreu no mito de Heacuteracles Atraveacutes

dessa perspectiva podemos reconhecer a eficaacutecia do poder materializador da

mitologia ao transformar homens em seres quase divinos que ganharatildeo a sua

imortalidade375 e fama atraveacutes de suas accedilotildees que seratildeo expostas e cantadas como

modelo para as geraccedilotildees vindouras Eacute unicamente nesse contexto que a tradiccedilatildeo

mito-poeacutetica revela o seu maacuteximo valor e alcance na vida dos mortais

Mas antes desse momento de gloacuteria coletiva a accedilatildeo criadora eacute soprada da

alma para os laacutebios do aedo Esse som produzido por esse gesto poeacutetico estaacute no

termo myacutetha376 que eacute o uso mais antigo para phoneacute377 o som da voz responsaacutevel

375 E natildeo-esquecimento na histoacuteria humana 376 Μύθα myacutetha Som da voz 377 Para mais informaccedilotildees obre esse termo vide o dicionaacuterio do Lidell amp Scott φων-ή ἡ som tom prop o som da voz seja de homens ou animais com pulmotildees e garganta (ἡ φωνὴ ψόφος τίς ἐστιν ἐmicroψύχου Arist de An 420b5 cf 29 HA 535a27 PA 664b1) opp φθόγγος (v φθόγγος 11) I principalmente de seres humanos fala voz enunciaccedilatildeo φ Ilρρηκτος Il 2490 ἀτειρέα φ 17555 φ δέ οἱ αἰθέρ ἵκανεν do grito de guerra de Ajax 15686 do grito de guerra de um exeacutercito Τρώων καὶ αχαιῶν φ δεινὸν ἀϋσάντων 14400 pl dos gritos de pessoas do mercado X Cyr 123 τόνος τῆς φ Identidade Cyn 620 D 18280 Aeschin 3209 ὀξεῖα βαρυτέρα λεία τραχεῖα φ Pl Ti 67b φ microαλακή Nu 979 (anap) microιαρά ἀναιδής Id Eq 218 638 com Verbos φωνὴν ῥῆξαι Hdt 185 Ar Nu 357 (anap) φ Hέναι Hdt 22 423 Pl Phdr 259d etc φ Eσει E HF 1295 προίεσθαι Aeschin 223 Xρθροῦν X Mem 1412 διαρθρώσασθαι Pl Prt 322a Aντείνασθαι Aeschin 2157 φ ῖπαρεῖ D 19336 ῇωνῇ com a voz em voz alta Il 3161 Pi P 929 εἶπε τῇ φωνῇ τὰ ἀπόρρητα Lys 651 διὰ ζώσης φωνῆς Anon GeogEpit 1p488M microιᾷ φ com uma voz Luc Nigr 14 ἀπὸ φωνῆς c gen ditado por Choerob em Thd 1103 tit Marin em EucDat p234 M Olymp em Grg p 1 N Pall no Hp 21 D pl Αἱ φ as notas da voz Pl Grg 474e σχήmicroασι καὶ φωναῖς Arist Rh 1306a32 prov ῇωνῇ ὁρᾶν de um homem cego S OC 138 (anap) πᾶσαν τὸ λεγόmicroενον φ ἱέντα ou seja usando todos os esforccedilos Pl Lg 890d cf Euthd 293a πάσας ἀφιέναι φωνάς Id R 475a D 18195 ἀωνὰς ἀπρεπεῖς προίεντο PTeb 80215 (ii B C) 2 o grito de animais como de suiacutenos catildees bois Od 10239 1286 396 de jumentos Hdt 4129 do rouxinol canccedilatildeo Od 19521 νθρωπος πολλὰς φωνὰς ἀφίησι τὰ δὲ ἄλλα microίαν Arist Pr 895a4 3 qualquer som articulado opp ruiacutedo inarticulado (ψόφος) κωκυmicroάτων S Ant 1206 ὥσπερ φωνῆς οὔσης κατὰ τὸν ἀέρα πολλάκις καὶ λόγου ἐν τῇ φωνῇ Trama 6412 στοιχεῖόν ἐστι φ ἀδιαίρετος Arist Po 1456b22 tambeacutem especialmente de vogal op para de consoantes Pl Tht 203b Arist HA 535a32 na criacutetica literaacuteria de som opp significados Ph Po 520 (pl) 21 4 de sons feitos por objetos inanimados principalmente Poeta κερκίδος S S Fr 595 συρίγγων E Tr 127 (lyr) αὐλῶν Mnesim 456 (anap) raro no iniacutecio da prosa φργάνων φωναί Pl R 397a LXX Ex 2018 ροντῆς ib Ps 103 (104) 7 ὐ φ αὐτοῦ ὡς φ ὑδάτων πολλῶν Apoc 115 5 geralmente som definido como ἀὴρ πεπληγmicroένος πληγὴ ἀε ρος Zeno Stoic 121 Chrysippib 243 II faculdade de fala discurso εἰ φωνὴν λάβοι S El 548 παρέσχε φωνὴν τοῖς ἀφωνήτοις τινά Id OC 1283 2 linguagem hdt 4114 117 ἀνθρωπηίη Id 255 ἀγνῶτα φ βάρβαρον A Ag 1051 φωνὴν ἥσοmicroεν Παρνησίδα Id CH 563 cf E Or 1397 (lyr) Th 65 757 X Cyn 23 pl Ap 17d etc τῶν βαρβάρων πρὶν microαθεῖν τὴν φ Identidade Th 163b κατὰ τὴν αττικὴν τὴν παλαιὰν φ Identidade Cra 398d cf 409e III frase dizendo τὴν Σιmicroωνίδου φ Identidade Prt 341b ἡ τοῦ Σωκράτους φ Plu 2106b cf 330f etc de foacutermulas στοιχειώmicroατα καὶ φ Epicur Ep 1p4U cf SentVat 41 (= Metrod Fr 59) αἱ σκεπτικαὶ φ SE P 114 cf jul Ou 5162b etc IV relatoacuterio rumor LXX Ge 4516 b mensagem Sammelb 725221 (iii iv A D) V fala alta se gabando Epicur SentVat 45

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pela comunicaccedilatildeo entre homens e deuses O vocaacutebulo My378 no dicionaacuterio Liacutedell amp

Scott que estaacute presente na raiz da palavra mito musa379 e no verbo myacutetheomai380

corresponde em sua forma mais elementar na literatura helecircnica ao murmuacuterio feito

pelos laacutebios Esse som primaacuterio eacute o ponto inaugural que assinala o comeccedilo dessa

experiecircncia expressiva e criativa do homem do periacuteodo preacute-homeacuterico381 na

linguagem A voz antes mesmo de formular uma palavra expressa a forccedila da vida382

que ecoa no corpo como uma espeacutecie de possessatildeo divina atraveacutes do espanto Esse

ruiacutedo confuso antes mesmo de encontrar a melodia e o ritmo da muacutesica em nosso

batimento cardiacuteaco que ampliou o desenvolvimento cultural grego apoacutes essa

descoberta talvez tenha se originado como uma resposta ao momento em que o som

do trovatildeo383 mar384 e o do vento385 tenham despertado os sentidos desse homem

para esses fenocircmenos naturais Aos poucos ele vai percebendo que o ritmo que se

impotildee ao seu redor e no seu proacuteprio corpo lhe revela o pulsar majestoso da vida386

378 Μῦ τό nome da letra micro IG 2432124 (iv B C) Epigr ap Ath 10454f Hellad ap Phot Bibl p530 B etc 2 microῦ ou microὺ microῦ para representar um som de murmuacuterio feito com os laacutebios microῦ λαλεῖν para murmurar Hippon 80 (dubl l) para imitar o som de soluccedilos microὺ microῦ microὺ microῦ Ar Eq 10 379 Natildeo eacute fortuita a relaccedilatildeo entre esses termos Como foi visto anteriormente as musas satildeo as entidades divinas fundamentais para o processo de conhecimento comunicaccedilatildeo memoacuteria e educaccedilatildeo grega Eacute importante ressaltar que o verbo ldquoiniciarrdquo tambeacutem eacute oriundo desse mesmo radical (Vide o dicionaacuterio Lidell amp Scott para esse termo microύησις [υ] myacuteesis εως ἡ iniciaccedilatildeo Androt 34 OGI 7647 (Pergam Ii B C) Herm em Phdr p158 A etc em pl Ph 1156 Plu 2169d SIG 126727 (Ios iii A D) Iamb VP 1774) 380 Homero Iliacuteada (livro II v 489) Como foi exposto anteriormente essas divindades satildeo responsaacuteveis por ldquoiniciarrdquo ou ldquoensinarrdquo aos homens as coisas mais belas e uacuteteis para a sua sobrevivecircncia Nesse sentido a arte das musas que no grego corresponde ao termo mousikeacute (microουσικὴ) refere-se aos conjuntos de atividades que o homem precisava praticar para encontrar a sua plenitude existencial 381 Segundo os arqueoacutelogos e historiadores que tratam dessa questatildeo da formaccedilatildeo cultural grega durante o periacuteodo preacute-homeacuterico os primeiros habitantes indo-europeus que eram formados por tribos de origem ariana (aqueus jocircnios eoacutelios e por uacuteltimo os doacuterios) apareceram por volta de 1200 aC a 1100 aC e atraveacutes do processo de mesticcedilagem formaram as primeiras civilizaccedilotildees neoliacuteticas gregas que foram responsaacuteveis por inaugurar a civilizaccedilatildeo helecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E KIRK G S ldquoHomer and the Oral Traditionrdquo Cambridge 1976 382 Para a fonoaudiologia a voz eacute o som produzido utilizando as cordas vocais O pulmatildeo eacute o oacutergatildeo responsaacutevel por gerar a corrente de ar necessaacuteria para esse processo Curiosamente o elemento primordial para o filoacutesofo preacute-socraacutetico Anaxiacutemenes era o focirclego (πνεῦmicroαpneuma) que era considerado ateacute pelos estoicos como a forccedila criadora da vida 383 Ζεύς Zeus eacute o pai dos deuses (πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε pater andron te theon te) O soberano uacutenico do Olimpo que reina sobre as demais divindades na mitologia grega Eacute o deus dos ceacuteus raios relacircmpago que mantecircm a ordem e justiccedila do mundo 384 Ποσειδῶν Poseidōn eacute o deus do mar 385 Αίολος Aiacuteolos eacute o senhor dos ventos 386 Atraveacutes do reconhecimento da existecircncia da alma Para Erwin Rohde o culto das almas foi a forma mais antiga de religiatildeo em diversos povos antigos No caso dos gregos o helenista alematildeo vai estudar esse fenocircmeno a partir dos poemas homeacutericos e de Piacutendaro e dos fragmentos doxograacuteficos sobre o orfismo e o pitagorismo antigo Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura

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e de sua conexatildeo com o mundo que parte de uma forccedila invisiacutevel que ordena e

estabelece a ordem entre todas as coisas387 A partir desses indiacutecios apresentados

natildeo podemos em hipoacutetese alguma subestimar o papel desempenhado pela mitologia

na tradiccedilatildeo oral Dentro desse contexto o mito foi essencial para efetivaccedilatildeo

existencial da cultura helecircnica Mesmo com o advento da escrita posteriormente e

a expansatildeo da ciecircncia e da filosofia que se fundamenta atraveacutes do seu rigor factual

o recurso miacutetico ainda era utilizado por diversos intelectuais em suas obras durante

e depois do periacuteodo claacutessico (VEYNE 1984) Por conseguinte essa evidecircncia natildeo

pode ser ignorada nos estudos que abordam o desenvolvimento da mentalidade

grega na antiguidade

46 Mito e muacutesica

O primeiro som ouvido e posteriormente exprimido pela voz humana e das

musas estaacute contido no radical da palavra mito Como foi exposto por noacutes

anteriormente388 a tradiccedilatildeo oral se desenvolveu atraveacutes do domiacutenio da arte sonora

que foi essencial para o processo de comunicaccedilatildeo e conhecimento da tradiccedilatildeo preacute-

homeacuterica389 Dentro desse contexto a muacutesica sem duacutevida alguma eacute um dos eixos

do seguinte livro ROHDE Erwin ldquoPsyche The Cult of Souls and the Belief in Immortality among the Greeksrdquo trans from the 8th edn by W B Hillis London Routledge amp Kegan Paul 1925 387 Vide a poesia ldquoRerum naturardquo de Lucreacutecio que expressa esse cosmo em versos O helenista britacircnico James Adam ao avaliar a dimensatildeo do pensamento platocircnico na antiguidade cita um poema beliacutessimo chamado ldquoOde Intimations of Immortality from Recollections of early childhoodrdquo do grande poeta romacircntico escocecircs William Wordsworth que expressa de modo sublime o espanto da natureza sobre o homem primitivo que teria dado o iniacutecio para a elevaccedilatildeo da cultura grega em seus primoacuterdios Vide ADAM James ldquoThe Vitality of Platonismrdquo Cambridge University Press 1911 paacuteg 8 388 Vide 33 389 Eacute importante ressaltar que dentro desse contexto oral esses dois termos satildeo praticamente sinocircnimos Nesse presente capiacutetulo podemos constatar que o criteacuterio de verdade e conhecimento estava associado ao grau de utilidade que um determinando tipo de conteuacutedo desempenhava na antiga sociedade grega Logo o mito que foi em muitos casos utilizados para a justificaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do poder real em outros contextos era utilizado para educaccedilatildeo dos jovens e propagaccedilatildeo dos valores da realeza Nessa raacutepida anaacutelise podemos apontar pelo menos quatro tipos de aplicaccedilatildeo Posteriormente veremos que a arte sonora jaacute fazia parte da preacute-histoacuteria grega atraveacutes das culturas ciclaacutedicas minoica e micecircnica Mesmo depois da idade das trevas apoacutes a invasatildeo doacuterica esse tipo de conhecimento natildeo desapareceu da mentalidade dos grupos remanescentes que posteriormente ajudaram a constituir a cultura helecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto indicamos a leitura do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998

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de relaccedilatildeo entre o mundo divino e humano Ou seja ela eacute o viacutenculo390 entre o

homem e a phyacutesis Em todos os mitos relacionados agrave muacutesica391 na antiguidade eacute

possiacutevel detectar a presenccedila da conexatildeo entre a comunicaccedilatildeo memoacuteria criaccedilatildeo e

o conhecimento de modo sub-reptiacutecio em suas mais diversas apariccedilotildees na literatura

e nas artes plaacutesticas Como foi exposto anteriormente392 as musas satildeo as principais

divindades que representam essas funccedilotildees cognitiva dentro da tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica A presenccedila desses arqueacutetipos nesse contexto revela uma estrutura muito

bem organizada que apresenta natildeo apenas o fasciacutenio mas o valor dessa atividade

na vida cotidiana grega desde a sua origem

De um modo geral na mitologia esse fenocircmeno de caracteriacutesticas muacuteltiplas

carrega um poder de unidade como acontece com a alma humana393 Esse poder de

coesatildeo eacute algo inerente agrave proacutepria Natureza que foi explorado posteriormente pela

maioria dos pensadores conhecidos como preacute-socraacuteticos Para Aristoacuteteles394 por

exemplo a muacutesica eacute o som da vida que se origina na voz humana395 e todos os

instrumentos que foram criados para imitar a voz cantando satildeo meios artificiais para

copiaacute-la Os padrotildees meloacutedicos da liacutengua grega eram utilizados para acentuar

significado agraves palavras (LEVIN 2009) Esse importante recurso foi criado durante

o periacuteodo de desenvolvimento do pensamento miacutetico-poeacutetico que possibilitou o

fundamento da cultura oral A partir dessa descoberta o filoacutesofo muacutesico

peripateacutetico Aristoxeno396 afirmava em seus estudos sobre a muacutesica e a harmonia

que havia uma espeacutecie de melodia no discurso cotidiano397 Essa caracteriacutestica

390 Para o grande filoacutesofo italiano Giordano Bruno o viacutenculo eacute pensado como a ordem de articulaccedilotildees de afecccedilotildees entre noacutes e o mundo e vice-versa E esse exerciacutecio de reconhecimento impotildee ao homem um novo olhar sobre a proacutepria natureza Ou seja ele apreende que ele eacute um microcosmo dentro de um macrocosmo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro BRUNO Giordano ldquoTratado da Magiardquo Satildeo Paulo Editora Martins Fontes 2008 391 Μουσικήmousikeacute a ldquoarte das musasrdquo 392 Vide 32 393 Na antiguidade os pitagoacutericos acreditavam que havia uma harmonia entre a alma e o corpo Vide os argumentos de Siacutemias e Cebes apresentados para Soacutecrates na prisatildeo sobre esse ponto Vide Platatildeo Feacutedon (84c-88b) 394 Vide Aristoacuteteles (De anima 420 b 5 -6) 395 Eis o viacutenculo exposto por Giordano Bruno 396 Aristoxeno Elementa harmocircnica (Livro I 2) 397 λογωδές τι microέλος logodeacutes ti melos Curiosamente em uma obra pouco conhecida chamada ldquoDo universo ou do mundordquo (Περὶ κοσmicroου peri kosmou 396 b-20) que eacute atribuiacuteda a Aristoacuteteles mas para muitos especialistas ela foi escrita por algum disciacutepulo peripateacutetico haacute uma passagem que vemos uma niacutetida aproximaccedilatildeo entre a muacutesica e o ato de fala vejamos a seguir ldquo a muacutesica mistura notas agudas e graves longas e curtas fazendo de diferentes sons uma uacutenica harmonia A gramaacutetica mistura vogais e consoantes como consequecircncia disso ela cria a sua arte O mesmo eacute falado pelo obscuro Heraacuteclito conjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente

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remonta direto a uma praacutetica discursiva que se baseava na linguagem musical

Nesse sentido para os falantes da liacutengua grega antiga distorcer algum acento tocircnico

era o mesmo que cometer um terriacutevel erro gramatical que implicaria em um ato

falho398 na praacutetica discursiva Um exemplo disso pode ser percebido quando

comeccedilamos a estudar o koineacute399 e o grego aacutetico400 e nos deparamos com duas

palavras que possuem a mesma grafia401 como vida e arco mas seus respectivos

significados satildeo totalmente distintos a partir da pronunciaccedilatildeo e tonicidade Logo

esse indiacutecio eacute a prova que confirma a sofisticaccedilatildeo e o amplo desenvolvimento

racional helecircnico que jaacute existia durante esse momento histoacuterico402 Aliaacutes a nossa

hipoacutetese eacute que esse passo ocorreu atraveacutes do aperfeiccediloamento de suas praacuteticas

discursivas

No caso do idioma grego nota-se que a praacutetica oral foi importante natildeo

apenas para o amplo desenvolvimento da muacutesica403 mas da proacutepria formulaccedilatildeo de

sua gramaacutetica404 Pois como relata Aristoxeno a muacutesica estava agrave serviccedilo da

consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo esse registro revela que os estudos referentes ao ato de comunicaccedilatildeo estavam em total sintonia com as teorias mais antigas sobre o fenocircmeno musical entre os gregos Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo nesse presente capiacutetulo 398 Eacute um deslize na fala na memoacuteria ou na escrita Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro FREUD Sigmund ldquoSobre a psicopatologia da vida cotidianardquo Em Ediccedilatildeo Standard Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud Vol VI Rio de Janeiro Imago 1970 399 Ελληνιστική ΚοινήHellenistikeacute Koineacute Esse idioma antecedeu o grego moderno e desenvolveu-se a partir do dialeto aacutetico e era praticado na regiatildeo da Aacutetica (onde se encontra Atenas) embora tenha grande influecircncia de elementos do antigo jocircnico 400 O aacutetico eacute o dialeto utilizado pela maioria dos grandes escritores do periacuteodo claacutessico como Tuciacutedides e Aristoacuteteles Posteriormente ele foi a base para a formaccedilatildeo de um dialeto mais popular que foi chamado de koineacute Vide a nota anterior 401 βίος και Βιός biacuteos kai bioacutes vide o fragmento 48 de Heraacuteclito no qual o filoacutesofo poeta brinca com essa semelhanccedila para apontar a relaccedilatildeo dos contraacuterios que se se aproximam como a morte e a vida O arco que eacute um instrumento de caccedila para subsistecircncia humana tambeacutem eacute utilizado em outro contexto para tirar vidas na guerra ou seja para produzir a morte Simultaneamente o arco e a vida carregam uma linha esticada que vive sempre em tensatildeo como a noccedilatildeo de harmonia que foi explorada por Pitaacutegoras No caso de Heraacuteclito essa tensatildeo eacute resultado da harmonia das forccedilas contraacuterias Essa proximidade sonora quanto semacircntica eacute explorada pelo filoacutesofo poeta para demonstrar a riqueza da linguagem grega que estaacute na poesia e no iniacutecio da filosofia grega 402 Ao contraacuterio do que afirmam alguns helenistas esse periacuteodo foi essencial para o desenvolvimento da racionalidade grega O nosso grande equiacutevoco talvez seja desconsideraacute-lo no processo que foi importante para o surgimento da Filosofia 403 Ou vice-versa Vide os comentaacuterios de Sexto Empiacuterico em ldquoContra os professoresrdquo (livro VI 1) sobre esses pontos Como foi ressaltado pelo filoacutesofo ceacutetico esse termo tem pelo menos trecircs sentidos que satildeo utilizados entre os gregos na antiguidade 404 Arte de ler e escrever Eacute importante ressaltar que na antiguidade havia uma grande polecircmica sobre a definiccedilatildeo de gramaacutetica que nesse periacuteodo se confundia com a filologia No livro ldquoContras os professoresrdquo (livro I 42) Sexto Empiacuterico esboccedila em termos gerais os meandros desse problema para os antigos Curiosamente quando ele inicia a sua investigaccedilatildeo ldquocontra os gramaacuteticosrdquo no capiacutetulo 42 ele questiona o ar de superioridade que essa ciecircncia possui em relaccedilatildeo as outras A partir

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poesia405 O uso da tonicidade nos indica que a marcaccedilatildeo silaacutebica foi aplicada para

a metrificaccedilatildeo e versificaccedilatildeo poeacutetica visando a excelecircncia expressiva Logo

podemos pressupor que o estudo da harmonia natildeo era algo de cunho meramente

teoacuterico406 mas estava voltado para a necessidade da praacutetica comunicativa que

desempenhou uma ampla gama de funccedilotildees durante o periacuteodo homeacuterico ateacute o

claacutessico407

Ao nos depararmos com essas evidecircncias expostas anteriormente chegamos a

uma conclusatildeo a natureza semacircntica das palavras dos poetas e dos primeiros

filoacutesofos estavam voltadas para a audiccedilatildeo atraveacutes desses acentos tocircnicos que eram

oriundos de uma sofisticada teacutecnica oral Os ouvidos dos antigos gregos estavam

altamente treinados para perceber as mais sutis nuances tocircnicas que eram essenciais

para a perfeita compreensatildeo do conteuacutedo sonoro da canccedilatildeo como da fala

ordinaacuteria408 Nesse sentido eacute possiacutevel aferir a importacircncia vital da muacutesica no

processo de comunicaccedilatildeo durante e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico Os recursos

que foram desenvolvidos para alcanccedilar a eficiecircncia comunicativa certamente eram

voltados para a estruturaccedilatildeo meloacutedica e riacutetmica em torno da tonalidade que

possibilitaram agrave poesia o uso como instrumento primordial de organizaccedilatildeo cultural

atraveacutes da oralidade e esse atributo revela o imenso desenvolvimento cognitivo

coletivo Como foi exposto anteriormente a tradiccedilatildeo mito-poeacutetica participou

da leitura do seu texto podemos extrair algumas evidecircncias 1) A superestimaccedilatildeo da gramaacutetica revela a importacircncia que a retoacuterica desempenhava ateacute o periacuteodo de Sexto Esse ponto pode ser subtendido quando o filoacutesofo ceacutetico menciona a passagem das Sirenes no livro da Odisseia de Homero (Odisseia canto XII 184-91) Esse mito remonta direto ao periacuteodo oral no qual o poder do canto era um phaacutermakon (remeacutedio e veneno) pois pode ser usado de modo beneacutefico ao apontar o limite humano ou tambeacutem levar os navegantes imprudentes agrave morte quando utilizado de modo equivocado Graccedilas aos conselhos (conhecimento) de Circe (divindade) o astuto heroacutei utiliza com prudecircncia um artifiacutecio(techneacute) para superar esse poder da natureza Logo o poder da techneacute humana eacute fornecida pelos deuses como no mito de Protaacutegoras Eacute possiacutevel tambeacutem interpretar esse mito como uma criacutetica do poder desmedido desempenhado pela antiga poesia atraveacutes da fala persuasiva que estava atrelada agrave vontade do rei que era representaccedilatildeo do mundo divino e posteriormente com o surgimento da atividade retoacuterica durante o periacuteodo democraacutetico Talvez apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica esse tipo de autoridade teria sido colocado em xeque Basta notar a criacutetica que Homero faz ao rei ilegiacutetimo na Iliacuteada (vide o proacuteximo capiacutetulo desse presente trabalho) De qualquer modo esse eacute mais um indiacutecio que nos apresenta o valor que a muacutesica desempenhou para os antigos 2) no capiacutetulo 43 Sexto Empiacuterico destaca que os gramaacuteticos atraveacutes dos mitos e histoacuterias ostentam a sua habilidade no tratamento dos dialetos e nas regras de recitaccedilatildeo Ou seja tenta excitar os ouvintes para a sua importacircncia Esse eacute o ponto que chama atenccedilatildeo para a investigaccedilatildeo do filoacutesofo ceacutetico 405 Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18) 406 Essa era a criacutetica que Aristoxeno fazia aos platocircnicos por estudar a muacutesica atraveacutes da teoria Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro II 30) 407 Vide os inuacutemeros estudos sobre a muacutesica na antiguidade a partir das listas apresentadas por Dioacutegenes de Laecircrtios 408 Vide os comentaacuterios de Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18)

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ativamente desse processo durante todo periacuteodo monaacuterquico ateacute o arcaico409 O

caraacuteter elementar das narrativas miacuteticas sugere um encadeamento loacutegico que

deveria ser correspondente ao modo e arranjo musical mais simplificado para

cumprir de modo eficaz o seu objetivo pedagoacutegico e lituacutergico410 Todas as funccedilotildees

da vida grega eram acompanhadas pela muacutesica (LEVIN 2009) Do casamento agrave

guerra o ritmo e a melodia ditavam o comportamento em cada ocasiatildeo especiacutefica

seja em momentos de paz entre rituais e festividades ciacutevicas ou de guerra Entre

todas as classes pertencentes a estrutura do corpo social grego esse fenocircmeno

ocorria tanto de maneira deliberada ou involuntaacuteria nas diferentes cidades que

formavam o territoacuterio helecircnico411

[TUCIacuteDIDES Histoacuteria da guerra do Peloponeso] ainda no mesmo inverno os atenienses purificaram Delos em obediecircncia a algum oraacuteculo Jaacute houvera anteriormente uma purificaccedilatildeo feita pelo tirano Pisiacutestratos mas apenas na parte da cidade visiacutevel do santuaacuterio e natildeo em toda a ilha desta vez a purificaccedilatildeo foi total e feita da seguinte maneira os tuacutemulos sitiados em Delos foram todos removidos e foi expressamente proibido deixar que algueacutem morresse na ilha ou laacute tivesse filhos a partir dessa ocasiatildeo em tais casos ter-se-ia de passar para Recircneia A distacircncia entre Delos e Recircneia eacute tatildeo curta que

409 Os periacuteodos da Greacutecia antiga satildeo divididos de um modo feral entre as seguintes fases Preacute-homeacuterico (seacuteculos XX - XII aC) homeacuterico (seacuteculos XII - VIII aC) arcaico (seacuteculos VIII - VI aC) e claacutessico (seacuteculos V - IV aC) 410 Em relaccedilatildeo as obrigaccedilotildees ritos e festividades de cada sociedade Segundo Louis Gernet essas atividades foram importantes para manter o equiliacutebrio da sociedade E no caso grego o direito sacro precedeu o direito civil no periacuteodo preacute-homeacuterico E como foi exposto por noacutes anteriormente a poesia desempenhava a tarefa de manter viva essas praacuteticas que visavam a soberania da realeza e manutenccedilatildeo do equiliacutebrio social Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Paris Flammarion 2007 411 Sobre esse aspecto podemos citar as celebraccedilotildees dos rituais dionisiacuteacos que segundo os antigos tinha o poder de levar os participantes ao deliacuterio Na guerra os militares iam para o campo de batalha acompanhados de muacutesicos para essa referecircncia vide os comentaacuterios do jurista romano Aulius-Gellius em ldquoNoites aacuteticasrdquo (Livro I cap 11 1-4) no qual ressalta que os antigos aqueus combatiam em silecircncio (Homero Iliacuteada canto III 1-10) enquanto que os troianos entravam em campo de batalha de modo estridente como os paacutessaros Aliaacutes nessa passagem da Iliacuteada sob a bela imagem poeacutetica pintada por Homero podemos pressupor que nesse tempo os troianos jaacute utilizavam esse recurso musical na guerra Eacute provaacutevel que no caso dos aqueus esse haacutebito tenha sido inserido posteriormente por influecircncia dos troianos ou de outros povos da Aacutesia Menor como os liacutedios e egiacutepcios na Aacutefrica (vide a passagem de grande importacircncia para noacutes relatada por Heroacutedoto em Histoacuterias livro II LX Dentro desse contexto citado pelo historiador eacute possiacutevel que o conhecimento teoacuterico desenvolvido por Pitaacutegoras sobre a harmonia possa ter sido trazido do Egito) Desde dos primoacuterdios os gregos foram fascinados por esse fenocircmeno que abrangia a instacircncia fiacutesica e espiritual pois era considerado uma manifestaccedilatildeo divina que exercia efeito sobre o caraacuteter humano Diferentemente de noacutes os gregos natildeo utilizavam a muacutesica como uma mera atividade de lazer (vide Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso livro V 70) Pelo contraacuterio ela fazia parte de todos os fenocircmenos culturais militares e ateacute mesmo epistemoloacutegicos Sendo tratada como uma expressatildeo divina responsaacutevel pela criaccedilatildeo da natureza humana atraveacutes da cosmologia matemaacutetica e filosofia Dentro da mitologia haacute vaacuterias ocorrecircncias que abordam esses aspectos Anteriormente citamos uma passagem de Odisseu com as Sirenes no livro da Odisseia (canto XII 184-91) de Homero Haacute ainda o mito de Orfeu e das musas que tratam dessa experiecircncia essencial para a vida helecircnica que se iniciou na sua preacute-histoacuteria e que perdurou ateacute o periacuteodo claacutessico

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Poliacutecrates tirano de Samos durante algum tempo muito poderoso no mar e senhor de todas as ilhas inclusive Recircneia pocircde ligaacute-la a Delos por uma corrente apoacutes havecirc-la consagrado a Apolo Deacutelio Pela primeira vez apoacutes a purificaccedilatildeo os atenienses celebraram laacute as Deacutelias um festival quinquenal No passado jaacute houvera em Delos uma grande reuniatildeo perioacutedica de iocircnios e dos ilheacuteus vizinhos eles compareciam agrave reuniatildeo com as mulheres e filhos como fazem os iocircnios de hoje nas cerimocircnias de Eacutefesos nela jaacute se realizavam competiccedilotildees de ginaacutestica e muacutesica e as cidades enviavam coros Homero mostra claramente que as reuniotildees eram assim nos versos seguintes de seu Hino a Apolo

Teu coraccedilatildeo encontra mais encanto em Delos Febo quando os iocircnios de rasantes tuacutenicas se juntam

em tua rua com seus filhos e suas esposas no pugilismo eles competem e no canto e danccedila dizendo o teu sagrado nome antes de comeccedilar

Homero mostra igualmente nos versos seguintes tirados do mesmo hino que tambeacutem havia concursos musicais e que os interessados iam competir em Delos apoacutes mencionar o coro das mulheres de Delos ele termina o seu elogio com estes versos onde faz menccedilatildeo a si mesmo

Vamos Que Apolo esteja a meu favor junto com Aacutertemis A todas voacutes estou rendendo as minhas homenagens

mas peccedilo-vos que logo mais penseis em mim de novo quando outro vate natural tambeacutem de nossa terra e tatildeo sofrido quanto eu sou vier e perguntar-vos Qual dos poetas em competiccedilatildeo aqui donzelas vos traz cantos mais doces e de vosso agrado

Dizei-lhe entatildeo com o pensamento em noacutes e todas juntas Eacute o homem cego morador em Quios escarpada

Este eacute o testemunho de Homero quanto agrave existecircncia em Delos desde os tempos antigos de uma grande reuniatildeo e festa os ilheacuteus e os atenienses continuaram a enviar seus coros com oferendas mas as competiccedilotildees e a maior parte das cerimocircnias foram suspensas como costuma acontecer nos tempos de calamidades ateacute que finalmente na ocasiatildeo mencionada acima os atenienses restabeleceram os concursos e introduziram uma competiccedilatildeo hiacutepica esta antes inexistente412

Esse relato do historiador Tuciacutedides eacute uma das provas mais contundentes para

analisar o grau de relevacircncia que a muacutesica desempenhou desde o periacuteodo homeacuterico

O ponto mais notaacutevel eacute o fato dessa experiecircncia ter afetado de maneira irreversiacutevel

o processo de subjetividade coletiva que foi responsaacutevel pelas grandes mudanccedilas e

avanccedilos culturais dentro da histoacuteria grega Eacute bem provaacutevel como sugere a

professora Flora (LEVIN 2009) que os gregos possuiacutessem por causa dessa

412 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (livro III capiacutetulo 104) Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

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caracteriacutestica o ouvido absoluto413 que era estimulado desde a infacircncia para captar

as mais sutis variaccedilotildees tonais414 Essa capacidade pode ter sido conquistada atraveacutes

de uma incessante praacutetica auditiva que deveria ser iniciada na infacircncia Eacute importante

ressaltar que este tipo de educaccedilatildeo dos sentidos natildeo tinha apenas o objetivo voltado

para o acircmbito da comunicaccedilatildeo mas tambeacutem era essencial para a caccedila e a guerra

Podemos pressupor essa hipoacutetese atraveacutes das evidecircncias que encontramos em vaacuterias

tribos de nativos americanos (BROWN1999) Percebe-se que em muitas dessas

culturas aacutegrafas os seus respectivos membros eram conhecedores da arte de

rastreamento415que consistia no niacutevel inicial em um profundo (re) conhecimento

dos vestiacutegios inorgacircnicos e orgacircnicos de animais plantas e do proacuteprio meio

ambiente que eacute considerado como um cosmo organizado416 Para o aprimoramento

dessa arte eacute essencial que se pratique desde cedo o estiacutemulo de todos os sentidos

A eficiecircncia desses rastreadores residia basicamente em dois eixos o primeiro

estava voltado para a capacidade de identificar os mais sutis sons sabores e rastros

para poder recriar o que aconteceu em determinado ambiente observado Esse tipo

de conhecimento em um niacutevel bem mais avanccedilado fornecia ao homem antigo a

capacidade de previsatildeo417 ou seja a habilidade de prever acontecimentos

413 Eacute a capacidade de identificaccedilatildeo das notas musicais sem a necessidade de uma referecircncia tonal Segundo os estudos apresentados por Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo podemos notar o interesse pelos estudos musicais por causa da relaccedilatildeo da muacutesica com a fala cotidiana Esse detalhe deixa evidente que a questatildeo gira em torno do aperfeiccediloamento comunicativo que foi algo almejado desde o periacuteodo oral 414 Haacute uma passagem de Heraacuteclito que pode ser encontrada na obra de Clemente de Alexandria que se chama ldquoStromatardquo (livro II 24) no qual o filoacutesofo preacute-socraacutetico diz ldquoNatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo Esse fragmento do pensador efeacutesio aponta para a importacircncia do aprimoramento dos sentidos para a ampliaccedilatildeo do nosso ato de comunicaccedilatildeo Como aponta o professor e helenista Alexandre Costa a intenccedilatildeo dessa passagem seria de subordinar o conhecimento da fala a capacidade de percepccedilatildeo que para Heraacuteclito parece ser tatildeo importante como a nossa faculdade racional Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro HERAacuteCLITO ldquoHeraacuteclito fragmentos contextualizadosrdquo Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 Paacuteg 53 415 Esse tipo de habilidade foi desenvolvido por necessidade no homem primitivo para coletar alimentos sobretudo em situaccedilotildees totalmente desfavoraacuteveis A geografia do territoacuterio grego demonstra que os primeiros grupos humanos que se instalaram na regiatildeo tiveram que lutar duramente para manter a sua subsistecircncia Esse fato por si soacute jaacute indica a busca de um aprimoramento teacutecnico dos sentidos para a defesa e a caccedila 416 O estudo e observaccedilatildeo da Natureza Ou seja essa caracteriacutestica natildeo estaacute presente apenas nos gregos Ela pode ser encontrada em muitas tribos ateacute os dias de hoje Esse fato eacute de extrema importacircncia para os estudos antropoloacutegicos e sociais para entendermos o processo de desenvolvimento da subjetividade dessas culturas antigas 417 Para Francis Cornford o filoacutesofo eacute herdeiro do poeta e vidente O nosso grande problema eacute entender o que significa o termo filoacutesofo pois as palavras saacutebio e sofista como poeta eram amplamente utilizadas na antiguidade para as atividades sapienciais Outra hipoacutetese defendida eacute o grau de proximidade que haacute entre a religiatildeo e ciecircncia Para o helenista natildeo haacute separaccedilatildeo entre elas A imaginaccedilatildeo poeacutetica eacute vista como um importante recurso hipoteacutetico que tem o poder de transcender

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futuros418 atraveacutes da leitura dos rastros dispostos no meio ambiente419 Para o

filoacutesofo britacircnico-americano Peter Carruthers (CARRUTHERS 2006) essas

capacidades cognitivas empregadas na arte do rastreamento satildeo as mesmas

utilizadas na pesquisa cientiacutefica Independentemente de qual seja o ambiente o

laboratoacuterio ou o campo em ambas atividades a reflexatildeo420 eacute algo imprescindiacutevel

para resoluccedilatildeo de problemas O cientista ou iacutendio emprega a observaccedilatildeo dessas

evidecircncias na natureza para estabelecer um caminho seguro para a compreensatildeo e

atuaccedilatildeo sobre ela Nesse caso a analogia proposta pelo professor Carruthers eacute

muito benvinda para o nosso presente trabalho pois revela os meandros de uma

atividade sapiencial de caraacuteter pragmaacutetico421 que se aproxima do meacutetodo cientiacutefico

moderno

o campo individual para o universal e que pode ser encontrada em ambas atividades Em divergecircncia com a teoria platocircnica da reminiscecircncia (vide Platatildeo Meacutenon 81a5 ndash 86c3) a teoria empiacuterica do conhecimento defende todas as noccedilotildees gerais como construccedilotildees do indiviacuteduo que partem de outras impressotildees sensoriais semelhantes Esse eacute o caminho que foi seguido por Aristoacuteteles (vide Aristoacuteteles Metafiacutesica IV 5-6) pois a generalizaccedilatildeo eacute oriunda da experiecircncia para encontrar o conhecimento com a apreensatildeo decorrente da razatildeo ou causa Neste estudo tambeacutem aparece o embate entre o vidente e o filoacutesofo O ponto central dessa discussatildeo parte do processo que culminou na condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cornford apresenta as bases para a formulaccedilatildeo de sua hipoacutetese atraveacutes do diaacutelogo de Platatildeo chamado Eutifron e algumas passagens que podem ser obtidas no diaacutelogo Poliacutetico para trazer algumas hipoacuteteses sobre o processo e da atuaccedilatildeo da religiatildeo na organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do Estado Segundo a sua posiccedilatildeo o filoacutesofo grego natildeo era totalmente ceacutetico pois acreditava em um poder de previsatildeo (πρόληψις (proleacutepsis preconcepccedilatildeo e antecipaccedilatildeo que vem de προλαmicroβάνωprolambaacuteno pegar antecipadamente) que era fornecido por seu daimon Nesse sentido ele expotildee a contradiccedilatildeo de seus acusadores que afirmavam sobre o seu ateiacutesmo O ponto desse embate apresenta algumas caracteriacutesticas importantes o primeiro eacute o fato de a religiatildeo ter uma grande influecircncia sobre a organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica do estado ainda no periacuteodo claacutessico A partir desse contexto eacute possiacutevel entendermos o processo movido contra o filoacutesofo pois o posicionamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo aos deuses oliacutempicos nos parece ser exatamente igual a de Protaacutegoras e Epicuro Apesar disso segundo a imagem esculpida por Platatildeo ele admitia esse poder visionaacuterio do daimon como uma intuiccedilatildeo necessaacuteria para as tomadas de decisatildeo Essa posiccedilatildeo foi retirada do diaacutelogo Eutifron De qualquer modo natildeo sabemos ateacute que ponto Soacutecrates estava usando a sua famosa ironia sobre esse ponto Seja como for a sua postura sapiencial eacute muito similar ao pajeacute entre os iacutendios Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do capiacutetulo V do seguinte livro CORNFORD F M ldquoPrincipium Sapientiaerdquo As origens do pensamento filosoacutefico grego Traduccedilatildeo Maria Manuela Rocheta dos Santos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1952 418 Dentro desse contexto podemos destacar a classe sapiencial do poetas oraacuteculos e sacerdotes que atuaram em todas as culturas na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NK CHADWICK ldquoPoetry and Prophecyrdquo Cambridge 1942 419 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros BROWN T ldquoThe Science and Art of Trackingrdquo New York Berkley Books 1999 E o quarto capiacutetulo intitulado The roots of scientific reasoning infancy modularity and the art of trackingrdquo em CARRUTHERS P STICH S SIEGAL M ldquoThe Cognitive Basis of Science Cambridge University Press 2002 420 E a especulaccedilatildeo 421 Haacute muitas obras que destacam esse fato na antiguidade Na biblioteca histoacuterica (livro I ndash 12) por exemplo Diodoro de Siciacutelia afirma que o trabalho dos autores antigos merece reconhecimento entre todos os homens porque suas obras oferecem sem perigo o ensinamento do conveniente que

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A inferecircncia a partir desses elementos observaacuteveis visa suprir uma demanda

que surge de acordo com cada circunstacircncia O acuacutemulo dessa experiecircncia obtida

no contato diaacuterio com o meio ambiente eacute mantido e transmitido entre seus pares em

qualquer cultura pois ela eacute responsaacutevel por estabelecer uma profunda intimidade

entre o homem e a natureza atraveacutes da praacutetica adquirida na experiecircncia que visa

manter o bem-estar coletivo Como foi exposto anteriormente por noacutes422 o sentido

de verdade no periacuteodo claacutessico para pensadores como Aristoacuteteles estava voltado

para a efetividade A eficaacutecia de qualquer meacutetodo empregado423 estaacute amplamente

afinada com o sucesso e a sua aplicabilidade deveria estar agrave disposiccedilatildeo do bem da

comunidade de um modo geral A luta pela sobrevivecircncia nos primoacuterdios

impulsionou o homem primitivo a desenvolver as suas capacidades de percepccedilatildeo e

reflexatildeo para assegurar a proacutepria estabilidade do seu povo Logo as antigas praacuteticas

sapienciais estavam apontando o caminho que a ciecircncia iria tomar posteriormente

pois satildeo oriundas do criteacuterio de observaccedilatildeo experimentaccedilatildeo e anaacutelise de dados

que eram praticados por diversas culturas na antiguidade No caso grego esse fato

natildeo foi diferente sabe-se que ateacute o periacuteodo claacutessico424 o conhecimento

desenvolvido pela intelectualidade antiga apresentava um caraacuteter pragmaacutetico que

seguia esses mesmos preceitos que podem ser encontrados em muitas civilizaccedilotildees

antigas

A miscigenaccedilatildeo cultural eacute uma caracteriacutestica que eacute ressaltada por muitos

intelectuais do mundo antigo e contemporacircneo como um fator marcante na

constituiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo helecircnica e de outros povos na antiguidade425 Essa

oferece a mais bela experiecircncia aos seus leitores e o aprendizado pela experimentaccedilatildeo (ἡ microὲν γὰρ ἐκ τῆς πείρας ἑκάστου microάθησις microετὰ πολλῶν πόνων καὶ κινδύνων ποιεῖ τῶν χρησίmicroων ἕκαστα διαγινώσκειν καὶ διὰ τοῦτο τῶν ἡρώων ὁ πολυπειρότατος microετὰ microεγάλων ἀτυχηmicroάτων πολλῶν ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω ἡ δὲ διὰ τῆς ἱστορίας περιγινοmicroένη σύνεσις τῶν ἀλλοτρίων ἀποτευγmicroάτων τε καὶ κατορθωmicroάτων ἀπείρατον κακῶν ἔχει τήν διδασκαλίαν) essa caracteriacutestica foi algo marcante ateacute o periacuteodo heleniacutestico 422 Em 33 423 No acircmbito militar e poliacutetico 424 Durante esse periacuteodo comeccedila a surgir entre os intelectuais uma grande discussatildeo em torno da importacircncia praacutetica da Filosofia para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ARISTOacuteTELES ldquoProteacutepticordquo Em Aristotelis fragmenta selecta (ed por W D Ross) Oxford 1955 425 Vide o primeiro capiacutetulo chamado The rise of Mycenae do seguinte livro KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E Heroacutedoto Histoacuteria capiacutetulo XLII mdash ldquoTodos aqueles que erigiram templos a Juacutepiter Tebano ou que satildeo de Tebas natildeo imolam absolutamente carneiros nem sacrificam outros animais senatildeo cabras Realmente nem todos os Egiacutepcios adoram os mesmos deuses natildeo rendem todos o mesmo culto a Iacutesis e a Osiacuteris que na opiniatildeo deles satildeo o mesmo que Baco Contrariamente os que possuem um templo em Mecircndis e satildeo conhecidos pela designaccedilatildeo de

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capacidade de adaptaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de haacutebitos de outras culturas sempre esteve

entre os gregos mesmo antes de sua formaccedilatildeo atraveacutes das civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica426 Posteriormente esse traccedilo tornou-se uma regra para o

desenvolvimento espiritual na antiguidade atraveacutes do comeacutercio e da diplomacia no

mundo mediterracircneo antigo427 A maioria dos grandes intelectuais gregos trazem

esse ponto em comum com outras culturas Heroacutedoto por exemplo com o intuito

de construir a sua narrativa alega ter viajado para muitas cidades428 Esse

conhecimento empiacuterico foi essencial para a expansatildeo cultural grega e ampliaccedilatildeo do

criteacuterio criacutetico sobre a origem e a validade do conhecimento429 que apareceu

durante o periacuteodo claacutessico430 Logo podemos supor que o conhecimento musical

adquirido durante a tradiccedilatildeo oral possa ter vindo de outros povos que estabelecia

relaccedilatildeo com os gregos antes e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico431 Em seguida

Mendeacutesios imolam ovelhas e poupam as cabras Os Tebanos e todos os que como eles se abstecircm de sacrificar ovelhas assim procedem em virtude de uma lei motivada pelo seguinte fato Heacutercules segundo contam desejava ardentemente ver Juacutepiter mas esse deus natildeo queria ser visto Por fim como Heacutercules natildeo deixava de fazer solicitaccedilotildees nesse sentido Juacutepiter recorreu a um artifiacutecio matou um cordeiro cortou-lhe a cabeccedila e colocando-a agrave frente da sua revestiu-se da latilde apresentando-se assim a Heacutercules Eacute por essa razatildeo que as estaacutetuas de Juacutepiter no Egito representam o deus com uma cabeccedila de cordeiro O referido costume passou dos Egiacutepcios aos Amocircnios Estes constituem uma colocircnia de Egiacutepcios e Etiacuteopes e a liacutengua que falam eacute uma mistura dos idiomas dos dois povos Creio mesmo que se chamam Amocircnios pelo fato de os Egiacutepcios darem o nome de Aacutemon a Juacutepiter Eacute portanto por esse motivo que os Tebanos consideram os cordeiros animais sagrados e natildeo os sacrificam absolutamente exceto no dia da festa de Juacutepiter sendo essa a uacutenica ocasiatildeo em que eles imolam um dos aludidos animais e da mesma maneira pela qual Juacutepiter procedera revestem com a pele do cordeiro a estaacutetua do deus aproximando-a da de Heacutercules Feito isso todos os que se encontram em torno do templo batem no peito deplorando a morte do animal sepultando-o em seguida numa urna sagrada Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 426 Essas trecircs culturas satildeo consideradas pelos especialistas como precursoras da civilizaccedilatildeo helecircnica na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E CASTLEDEN Rodney ldquoMycenaeans life in bronze age Greecerdquo Routledge Press London 2005 427 Vide o mapa do mundo mediterracircneo nos anexos 428 Vide a seguinte obra PLUTARCO ldquoPlutarch livesrdquo Traduccedilatildeo de Bernadotte Perrin Cambridge Massachusetts e London England Harvard University Press Loeb Classical Library 1948 429 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Paacuteg 21 430 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ROMILLY Jacqueline de ldquoLa construction de la veacuteriteacute chez Thucydiderdquo Paris Julliard 1990 431 Segundo Diacuteogenes de Laeacutercio o estudo da filosofia por exemplo comeccedilou entre os baacuterbaros Independentemente da imensa polecircmica que ateacute hoje essa passagem levanta o que gostariacuteamos de destacar dentro desse contexto eacute o aspecto de assimilaccedilatildeo de outras culturas que muitos intelectuais associam agrave cultura grega E isso aconteceu de vaacuterios modos viagens comerciais e diplomaacutetica Eacute notoacuterio que essa atividade era muito comum O filoacutesofo Tales de Mileto - entre outros como o grande Pitaacutegoras ndash eacute mencionado pelo bioacutegrafo como tendo feito vaacuterias viagens na antiguidade Mas a nossa hipoacutetese caminha na direccedilatildeo de que a muacutesica foi uma atividade que veio atraveacutes da influecircncia ainda mais antiga dessas culturas que antecederam os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse

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teremos a oportunidade de encontrar um desses contatos descritos de modo

minucioso por um grego sobre algumas caracteriacutesticas da vida dos egiacutepcios que foi

uma cultura que exerceu bastante influecircncia sobre o povo helecircnico

[Heroacutedoto Histoacuterias II LX] A vida em Bubaacutestis por ocasiatildeo das festividades transforma-se por completo Tudo eacute alegria buliacutecio e confusatildeo Nos barcos engalanados singrando o rio em todas as direccedilotildees homens mulheres e crianccedilas munidos em sua maioria de instrumentos musicais predominantemente a flauta enchem o ar de vibraccedilotildees sonoras do ruiacutedo de palmas de cantos de vozes de ditos humoriacutesticos e agraves vezes injuriosos e de exclamaccedilotildees sem conta Das outras localidades ribeirinhas afluem constantemente novos barcos igualmente enfeitados e igualmente pejados de pessoas de todas as classes e de todos os tipos ansiosas por tomar parte nos folguedos homenagear a deusa e imolar em sua honra grande nuacutemero de viacutetimas que trazem consigo e previamente escolhidas Enquanto dura a festa natildeo cessam as expansotildees de alegria as danccedilas e as libaccedilotildees No curto periacuteodo das festividades consome-se mais vinho do que em todo o resto do ano pois para ali se dirigem segundo afirmam os habitantes cerca de setecentas mil pessoas de ambos os sexos sem contar as crianccedilas432 A partir desse relato de Heroacutedoto podemos notar natildeo apenas o seu olhar de

admiraccedilatildeo sobre outra cultura estrangeira mas como a muacutesica tambeacutem fazia parte

do cotidiano da vida dos egiacutepcios Para o professor alematildeo Geoffrey Stephen Kirk

(KIRK 1962) ao analisar os vestiacutegios da arquitetura e da ceracircmica da antiga

civilizaccedilatildeo minoica433 que antecedeu a sociedade micecircnica apoacutes a invasatildeo doacuterica

ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro LAEcircRTIOS Dioacutegenes ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury Brasiacutelia UNB 1988 432 Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 433 A civilizaccedilatildeo minoica eacute apontada pelo britacircnico Arthur Evans como uma cultura matriarcal pois a mulher desempenhava uma posiccedilatildeo de destaque na sociedade e desenvolvia vaacuterias funccedilotildees no acircmbito religioso administrativo e poliacutetico atraveacutes da classe sacerdotal que fazia parte da realeza Ateacute um determinado periacuteodo histoacuterico foi um povo considerado paciacutefico e politeiacutesta A ideia mais importante dessa cultura residia no fato que a mulher era um componente fundamental para a harmonia soacutecio-poliacutetica da sociedade Eacute provaacutevel que essa caracteriacutestica tenha sido absorvida dos remanescentes da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica que foi a sua predecessora Um traccedilo marcante desse fenocircmeno que pode ser encontrada em ambas as culturas eacute o fato do mais importante siacutembolo religioso de culto era uma deusa que se chamava Potnia (Πότνια θηρώνPotnia theron ndash ldquoa senhora dos animaisrdquo) Curiosamente esse epiacuteteto pode ser localizado no canto XXI vv 470 da Iliacuteada de Homero no qual percebe-se que eacute atribuiacutedo agrave deusa Aacutertemis Posteriormente esse mito parece ter sido a influecircncia para a construccedilatildeo arquetiacutepica de Perseacutefone (Kore) a divindade relativa aos misteacuterios de Elecircusis A partir dessas evidecircncias apresentadas podemos encontrar como a mitologia dessas culturas predecessoras dos gregos ainda foram utilizadas para a religiatildeo grega a muacutesica e a construccedilatildeo da literatura homeacuterica Aliaacutes em muitos momentos da obra platocircnica (vide Timeu 108 d) eacute possiacutevel identificarmos a presenccedila dessa influecircncia cultural ciclaacutedica e minoica no que tange sobretudo agrave mousikeacute (arte das musas) que se conservou mesmo depois do periacuteodo das trevas atraveacutes da mitologia Para mais informaccedilatildeo sobre essas questotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first

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eacute possiacutevel detectar a influecircncia de outras culturas que estabeleceram contato direto

atraveacutes do comeacutercio exterior com esse povo Segundo Kirk a influecircncia egiacutepcia foi

a mais marcante E ela pode ser reconhecida atraveacutes da arquitetura metalurgia e

do artesanato minoico434 Esse encontro teria ocorrido por volta do ano 2000 e 1600

aC aleacutem da arte a escrita435 e modo de organizaccedilatildeo palaciana centralizada trazia

diversas semelhanccedilas com as culturas hitita e egiacutepcia Em algumas tumbas grandes

e monumentais que foram descobertas pelos arqueoacutelogos satildeo indicativos de um

povo que tinha um conceito bem articulado de vida apoacutes a morte436 Todavia natildeo

haacute documentos que revelem com precisatildeo o cacircnone da teologia minoica Todas as

hipoacuteteses apresentadas sobre esse ponto se baseiam em evidecircncias que podem ser

encontradas no Egito437 e em alguns afrescos e ceracircmicas que foram retiradas das

developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 434 Essas caracteriacutesticas podem ser observadas nos mais variados vestiacutegios de ceracircmicas metalurgia e da arquitetura minoica que demonstram natildeo apenas o intercacircmbio cultural mas a influecircncia da cultura egiacutepcia que se iniciou durante o desenvolvimento da cultura ciclaacutedica Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 435 O grande arqueoacutelogo inglecircs Arthus Evans encontrou algumas inscriccedilotildees em pedras que chamou a sua atenccedilatildeo pela similaridade com os hieroacuteglifos egiacutepcios Aleacutem de apontar essa semelhanccedila eacute bem provaacutevel que a escrita chamada de Linear A tenha sido desenvolvida sob a influecircncia egiacutepcia O uso de sinais lineares como marcas de pedreiros artesatildeos ou de proprietaacuterios foi difundido em todo o Mediterracircneo Oriental na antiguidade e haacute exemplos disso no iniacutecio da Creta minoica O uso mais especial de tais sinais lineares como marcas de artesatildeos estaacute bem estabelecido no periacuteodo de construccedilatildeo do palaacutecio denominado meacutedio minoico I e apresenta semelhanccedilas aos signos lineares e alfabetiformes de obras de artesatildeos egiacutepcios sob a XII dinastia A liacutengua que tem sido chamada Linear A foi encontrada em muitos dos tabletes inscritos desenterrados em todo o mundo minoico A segunda liacutengua usada pelos minoicos a Linear B foi decifrada por Michael Ventris que descobriu em 1952 que a linguagem era uma versatildeo inicial do grego Os textos dos tabletes Linear B revelam muitos detalhes da vida minoica mas sem conseguir decifrar Linear A alguns aspectos da vida minoica permanecem na mais total obscuridade Esses textos ainda confundem os estudiosos em mais um aspecto pois eles nos deram uma imagem clara do sistema numeacuterico minoico Era um sistema decimal simples que natildeo conhecia o uso do zero curiosamente esse mesmo sistema era empregado pelos antigos egiacutepcios Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 E CHADWICK John ldquoThe Decipherment of Linear Brdquo Cambridge University Press first printed 1958 reprinted 2000 436 Mais um aspecto que podemos encontrar na mitologia sobretudo atraveacutes do mito de Orfeu 437 As descobertas em tuacutemulos egiacutepcios incluem representaccedilotildees de embarcaccedilotildees minoicas particularmente uma foca que era um animal muito representado na arte minoica aparece em algumas pinturas de tuacutemulos egiacutepcios Os navios minoicos variavam em tamanho de embarcaccedilotildees costeiras bastante modestas a navios maiores com um mastro no meio sustentando por uma vela Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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ruiacutenas do palaacutecio minoico que foi localizado apoacutes as escavaccedilotildees na cidade de Creta

A nossa grande questatildeo eacute saber como e quando a muacutesica comeccedilou a desempenhar

um papel determinante na vida helecircnica Para esse estudo eacute necessaacuterio voltarmos o

nosso olhar investigativo para as trecircs culturas que ajudaram a construir a

mentalidade helecircnica antes da idade das trevas438 que satildeo as civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica O grande legado dessas culturas apoacutes o fim da idade do

bronze de alguma forma sobreviveu atraveacutes do imaginaacuterio coletivo desses

membros remanescentes da civilizaccedilatildeo micecircnica que foi drasticamente dizimada

com a invasatildeo doacuterica A hipoacutetese aceita por muitos historiadores e arqueoacutelogos eacute

de que esses habitantes que se assentavam com as suas respectivas famiacutelias sob o

domiacutenio da realeza micecircnica que era localizada na parte que hoje eacute conhecida como

a Greacutecia continental439 foram obrigados a se deslocarem para outras imediaccedilotildees da

bacia do Mediterracircneo440 Para o professor Anthony Snodgrass (SNODGRASS

2000) o aumento populacional nessa regiatildeo pode ter sido um dos fatores que

acarretou a dispersatildeo desses habitantes para aacutereas mais escassas de recursos Seja

como for esse episoacutedio que ficou conhecido como a primeira diaacutespora grega441 e

foi responsaacutevel por uma profunda transformaccedilatildeo na estrutura soacutecio-poliacutetica da

antiga civilizaccedilatildeo micecircnica

Antes dessa grande mudanccedila ocorrida apoacutes esse deslocamento populacional

que culminou na aproximaccedilatildeo dos quatros principais grupos eacutetnicos442 que

formaram a base inicial da cultura helecircnica a idade de bronze443 destacou-se por

ser um periacuteodo de grande opulecircncia que pode ser constatado atraveacutes das suntuosas

438 A Idade das trevas na Greacutecia (1200 ndash 800 aC) eacute um periacuteodo posterior ao da invasatildeo dos doacutericos no qual toda a rica estrutura comercial e urbana que tinham sido construiacutedas durante o periacuteodo micecircnico A Idade das Trevas eacute caracterizada pela inutilizaccedilatildeo da escrita durante trecircs seacuteculos aproximadamente e pela reconstruccedilatildeo da sociedade grega posteriormente Para alguns especialistas que seguem a linha evemerista (Evecircmero foi um escritor e hermeneuta grego da eacutepoca heleniacutestica que foi considerado como o pai da corrente hermenecircutica conhecida como evemerismo que defendia que os deuses da mitologia satildeo representaccedilotildees de personagens histoacutericas) o pouco que se sabe desse periacuteodo pode ser obtido nas obras de Homero 439 Vide o mapa da regiatildeo no anexo 440 Ibidem 441 ∆ιασπορά diaacutespora Deslocamento Para as ocorrecircncias desse termo na liacutengua grega vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott διασπορ-ά ἡ (διασπείρω) scattering dispersion Plu 21105 a LXX Je 157 δ ψυχική Ph 2426 2 collectively = οἱ διεσπαρmicroένοι LXX De 2825 EvJo 735 pl LXX Ps 146(147)2 442 A saber Aqueus Jocircnios Eoacutelios e Doacutericos Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the Twelfth and Eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 443 A idade do Bronze entre os anos de 3000 ndash 1200 a C

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construccedilotildees arquitetocircnicas e o aprimoramento da metalurgia Esse fato revela que

durante um determinado periacuteodo essas culturas predecessoras dos gregos

alcanccedilaram um amplo desenvolvimento econocircmico tecnoloacutegico e cultural

A primeira grande cultura de destaque dessa eacutepoca foi a chamada cultura

ciclaacutedica O pouco que sabemos sobre ela aponta para um tipo de sociedade que

passou por diversas transformaccedilotildees ao longo de sua histoacuteria444 A elegacircncia das

esculturas de maacutermores foi sem duacutevida alguma um dos seus maiores destaques

durante o seu florescimento cultural que ocorreu aproximadamente entre o ano de

2700 e de 2400 antes de Cristo Eacute notoacuterio entres todos os historiadores que essa

civilizaccedilatildeo promoveu uma profunda sofisticaccedilatildeo artiacutestica que pode ser captada

atraveacutes das representaccedilotildees em pinturas que revelam a vida cotidiana que nos ajudam

a compreender um pouco dos aspectos da organizaccedilatildeo social religiosa e poliacutetica

desse periacuteodo Para a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule alguns desses

materiais encontrados indicam a influecircncia estrangeira que certamente se deu

atraveacutes do comeacutercio445 A sua localizaccedilatildeo geograacutefica446 permitia estabelecer contato

com a Aacutefrica e a Anatoacutelia que pode ser mensurado atraveacutes de objetos que foram

encontrados por arqueoacutelogos no Egito e Mesopotacircmia que confirma essa influecircncia

estrangeira (VERMEULE 1964) Algumas dessas esculturas nos revela que os seus

artesatildeos jaacute utilizavam meacutetodos elaborados com a utilizaccedilatildeo de riscadores e

compassos para dividir os segmentos no maacutermore com maacutexima precisatildeo para

produzir o efeito de bi dimensionalidade em suas obras447 Esse detalhe revela a

sofisticaccedilatildeo da arte ciclaacutedica que acompanhou a expansatildeo cultural dessa regiatildeo Em

1840 os arqueoacutelogos encontraram na ilha de Santorini atual Itaacutelia uma escultura

datada do segundo periacuteodo ciclaacutedico que foi nomeada como ldquoO tocador de

444 Periacuteodos da cultura ciclaacutedica Antigo I 31003000 ndash 2650 aC Grota-Pelos Ciclaacutedico Antigo II 2650 - 24502 400 aC Ceros-Siros Ciclaacutedico Antigo III 24502400 - 22002 150 aC Kastri Ciclaacutedico Antigo III BCiclaacutedico Meacutedio I 20502000 - 19001 850 aC Filaacutecopi Ciclaacutedico Meacutedio II 19001850 - 1700 aC (Influecircncia minoica) ciclaacutedica Meacutedio III 1700 - 1 675 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente I 1675 - 1 500 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente II 1500 - 1 450 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente III 1450 - 1100 aC (Influecircncia micecircnica) 445 A configuraccedilatildeo fiacutesica dessa regiatildeo facilitava a navegaccedilatildeo para distribuiccedilatildeo e recepccedilatildeo dos produtos manufaturados atraveacutes do comeacutercio Eacute obvio que essa caracteriacutestica permitiu o intercacircmbio cultural que possibilitou uma expansatildeo sociocultural desses povos na antiguidade Vide o mapa no anexo 446 Na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas na bacia do Mediterrecircno 447 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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harpardquo448 que prova a aplicaccedilatildeo da praacutetica musical449 de um instrumento de cordas

Nesse sentido podemos supor que esse conhecimento foi um legado que certamente

foi transmitido para a cultura minoica e depois para a micecircnica que surgiu

primeiramente na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas450

A civilizaccedilatildeo minoica foi denominada com esse nome apoacutes as descobertas

efetuadas a partir das expediccedilotildees arqueoloacutegicas da equipe de pesquisa do professor

britacircnico Arthur Evans na regiatildeo de Creta451 Segundo Tuciacutedides452 no primeiro

livro sobre a ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo e de acordo com a tradiccedilatildeo

oral453 Minos foi o primeiro a ter se estabelecido na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas

atraveacutes de um poder naval454 sendo o primeiro a conquistar todos os pontos da

regiatildeo que no seu tempo ficou conhecida como o mar helecircnico455 A denominaccedilatildeo

dessa nova formaccedilatildeo que se destacou nessa regiatildeo eacute uma cultura que dominou e

absorveu a antiga cultura ciclaacutedica A fama de sua conquista pode ser reconhecida

atraveacutes dos mitos mais antigos que relatam as suas faccedilanhas na antiguidade

448 Vide os anexos 449 Posteriormente pretendemos desenvolver esse ponto para analisar a consequecircncia do conhecimento musical para o desenvolvimento da tradiccedilatildeo oral e do processo subjetivo helecircnico na antiguidade 450 E mais uma vez nos deparamos com as seguintes questotildees 1) como esse conhecimento foi adquirido em uma eacutepoca tatildeo remota do passado grego 2) como essa atividade permaneceu entre os gregos mesmo depois da queda da realeza micecircnica A nossa hipoacutetese comeccedila aqui a ganhar mais forccedila com esses achados arqueoloacutegicos pois eacute bem provaacutevel que as teacutecnicas musicais foram essenciais para o aprimoramento mnemocircnico da tradiccedilatildeo oral que facilitou a difusatildeo da mitologia e da poesia no mundo helecircnico 451 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 452 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (1-4) 453 No grego ele utiliza dois verbos ldquoconhecerrdquo( ἴσmicroεν ismen que vem de οἶδαoida) eldquoouvirrdquo (ἀκοήakoeacute) que se aproxima dessa noccedilatildeo ldquoΜίνως γὰρ παλαίτατος ὧν ἀκοῇ ἴσmicroεν ναυτικὸν ἐκτήσατο καὶ τῆς νῦν Ἑλληνικῆς θαλάσσης ἐπὶ πλεῖστον ἐκράτησε καὶ τῶν Κυκλάδων νήσων ἦρξέ τε καὶ οἰκιστὴς πρῶτος τῶν πλείστων ἐγένετο Κᾶρας ἐξελάσας καὶ τοὺς ἑαυτοῦ παῖδας ἡγεmicroόνας ἐγκαταστήσας τό τε λῃστικόν ὡς εἰκός καθῄρει ἐκ τῆς θαλάσσης ἐφ᾽ ὅσον ἐδύνατο τοῦ τὰς προσόδους microᾶλλον ἰέναι αὐτῷrdquo ldquoMinos foi o mais antigo de todos os personagens tradicionalmente conhecidos a ter uma frota e a conquistar grande parte do hoje chamado mar helecircnico tornando-se o senhor das ilhas Ciacutecladas e primeiro colonizador da maior parte delas expulsando os caacuteries e estabelecendo nelas os seus proacuteprios filhos como governantes Ele tambeacutem tentou numa sequecircncia natural livrar os mares tanto quanto possiacutevel da pirataria para receber com maior seguranccedila os tributos que lhe eram devidosrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury 454 ΘάλασσακρατίαThalassacracia 455 Bacia do Mediterracircneo

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[Homero Odisseacuteia XI] ldquoProle de Zeus avisto Minos Cetro de ouro na matildeo Prerrogativa sua era sentado fazer valei a lei aos mortos que sentados indagam-lhe a sentenccedila no Hades largos-poacuterticos456

Essa passagem que estaacute localizada no deacutecimo primeiro canto da Odisseia

parece fazer jus a imagem de grande rei que foi apresentada por Tuciacutedides em seu

relato sobre a guerra do Peloponeso Como foi exposto por noacutes anteriormente457

para os gregos do periacuteodo heroico ateacute o claacutessico a verdade eacute construiacuteda atraveacutes das

accedilotildees vitoriosas458 Nesse sentido o soacutebrio discurso de Tuciacutedides e a poesia

encantadora de Homero parecem carregar esse ponto em comum Mesmo com

todas as suas diferenciaccedilotildees de forma e conteuacutedo ambas satildeo expressotildees oriundas

da tradiccedilatildeo oral que imortalizou certos fatos histoacutericos que foram essenciais para o

futuro desdobramento da formaccedilatildeo cultural helecircnica Entre a distacircncia da realidade

promovida pela beleza da linguagem mito poeacutetica mais antiga e a proximidade

factual do relato da novidade da prosa aacutetica reside o interesse de buscar e preservar

a tradiccedilatildeo gloriosa de um passado que eacute aceita com muito orgulho como modelo

que deve ser seguido e difundido para as geraccedilotildees vindouras459 Dentro da tensatildeo

existente entre esses dois meios de expressatildeo do pensamento humano eacute possiacutevel

456 Homero Odisseia canto XI (568-71) ldquoἔνθ᾽ ἦ τοι Μίνωα ἴδον ∆ιὸς ἀγλαὸν υἱόν χρύσεον σκῆπτρον ἔχοντα θεmicroιστεύοντα νέκυσσιν ἥmicroενον οἱ δέ microιν ἀmicroφὶ δίκας εἴροντο ἄνακτα ἥmicroενοι ἑσταότες τε κατ᾽ εὐρυπυλὲς Ἄϊδος δῶrdquo Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Eacute importante ressaltar que a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule evita utilizar a obra homeacuterica como uma fonte histoacuterica para estudar as civilizaccedilotildees na Idade de Bronze pois segundo a sua visatildeo o trabalho oral do poeta estaacute pelo menos um seacuteculo de distacircncia da cultura micecircnica Seja como for para o presente trabalho partirmos da hipoacutetese de que a obra homeacuterica mesmo sendo de cunho poeacutetico e sem pretensatildeo de ser um relato histoacuterico nos moldes de uma ciecircncia moderna nos apresenta inuacutemeros indiacutecios para nos aproximar da atmosfera contextual desse determinado periacuteodo Logo ela eacute uma fonte indispensaacutevel Para o presente trabalho aleacutem de sua obra estamos recorrendo haacute outras escassas fontes disponiacuteveis atraveacutes de estudos comparativos sobre os siacutetios arqueoloacutegicos afrescos e de peccedilas de maacutermore bronze e ouro Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 457 Em 33 Mito accedilatildeo e verdade 458 Verum factum Vide as nossas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo no capiacutetulo 33 459 Esse tipo de intenccedilatildeo eacute a base que fundamenta a tese apresentada por Conford no qual afirma que o trabalho de Tuciacutedides ao contraacuterio do que dizem muitos historiadores ainda estaacute totalmente subordinado ao contexto mito-poeacutetico atraveacutes de alguns paradigmas que podem ser encontrados nos dramas de Eacutesquilo Para o helenista o historiador grego nutre um discurso tendencioso a partir da perspectiva ateniense e haacute diversas discrepacircncias em seu relato Logo a sua concepccedilatildeo histoacuterica que foi muito apreciada por historiadores modernos precisa ser revista agrave luz de outras evidecircncias de fontes contemporacircneas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CORNFORD F M 1907 ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Ed London Arnold 1907

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extrairmos importantes informaccedilotildees sobre esse obscuro momento da histoacuteria grega

Como foi visto anteriormente nesse presente capiacutetulo o proacuteprio Tuciacutedides que eacute

destacado por muitos helenistas e historiadores como modelo de um pensamento

criacutetico refinado460 ainda recorre a essas fontes oriundas da mitologia e da tradiccedilatildeo

oral para compreender esse turvo passado dos gregos Logo o nosso trabalho

investigativo precisa atuar com o mesmo cuidado criacutetico dos ceacuteticos antigos Nesse

sentido vale ressaltar os resquiacutecios desse importante meio de expressatildeo ainda em

vigor no pensamento grego do periacuteodo claacutessico

Eacute sabido que historicamente o primeiro filoacutesofo a desenvolver um estudo

especiacutefico sobre a teoria acuacutestica por volta do seacuteculo 6 aC teria sido Pitaacutegoras de

Samos461 A sua concepccedilatildeo surgiu duzentos anos depois das epopeias homeacutericas

que jaacute apresentavam um imenso aprimoramento riacutetmico e meloacutedico na metrificaccedilatildeo

poeacutetica Contudo nos deparamos com uma dificuldade imensa em nomeaacute-lo como

o responsaacutevel por essa importante atividade na antiguidade Podemos supor a partir

desses indiacutecios apresentados atraveacutes da eacutepica homeacuterica que jaacute houvesse uma ampla

gama de estudos que deveriam estar voltados para o aprimoramento praacutetico das

teacutecnicas de composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em puacuteblico Aleacutem disso tambeacutem havia

como defende Milman Parry (PARRY1971) vaacuterias foacutermulas mnemocircnicas como o

uso de epiacutetetos que fornecia aos aedos e rapsodos mais liberdade nas performances

460 Uma contraposiccedilatildeo agrave tese apresentada por Conrford pode ser encontrada na seguinte obra ROMILLY Jacqueline de ldquoHistoacuteria e razatildeo em Tuciacutedidesrdquo Brasiacutelia UNB 1998 461 Eacute importante ressaltar que a figura de Pitaacutegoras estaacute rodeada de muitas polecircmicas A sua fama reputaccedilatildeo entre os antigos no entanto se baseia em algumas ideias muito influentes que ateacute hoje natildeo foram totalmente compreendidas Essas ideias de um modo geral incluem as seguintes caracteriacutesticas (1) as da metafiacutesica do nuacutemero e da concepccedilatildeo de que a realidade incluindo a muacutesica e a astronomia eacute em seu niacutevel mais profundo de natureza matemaacutetica (2) o uso da filosofia como um meio de purificaccedilatildeo espiritual (3) o destino celestial da alma e a possibilidade de sua ascensatildeo agrave uniatildeo com o divino (4) o apelo a certos siacutembolos agraves vezes miacutesticos como os tetraktys a seccedilatildeo aacuteurea e a harmonia das esferas (5) o teorema de Pitaacutegoras e (6) a exigecircncia de que os membros da seita pitagoacuterica mantenha sigilo sobre os seus estudos Colocando ecircnfase em certas experiecircncias internas e verdades intuitivas reveladas apenas aos iniciados o pitagorismo parece ter desenvolvido um subjetivismo dirigido pela alma alheio agrave corrente principal do pensamento grego preacute-socraacutetico centralizado na costa jocircnica da Aacutesia Menor que estava preocupado em determinar qual eacute o elemento essencial de todas as coisas Em contraste com esse naturalismo jocircnico o pitagorismo era semelhante agraves tendecircncias vistas em religiotildees de misteacuterio como o orfismo que muitas vezes alegava alcanccedilar atraveacutes do ecircxtase induzido uma percepccedilatildeo espiritual da origem e natureza divinas da alma Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro RIEDWEG C ldquoPythagoras His life teaching and influencerdquo Translated by Steven Rendall with Christoph Riedweg and Andreas Schatzmann Ithaca NY Cornell University Press 2005

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ao vivo462 Logo nos deparamos com indiacutecios dessa atividade bem antes da

apariccedilatildeo do filoacutesofo grego

Os estudos histoacutericos indicam que esse fenocircmeno surgiu durante o

desenvolvimento da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica463 Haacute diversos mateacuterias arqueoloacutegicos

desse periacuteodo que foram encontrados que revelam que a praacutetica musical que

inicialmente se deu atraveacutes do uso da voz464 para o canto Posteriormente eacute notaacutevel

o emprego de instrumentos de sopro cordas e percussatildeo para acompanhaacute-la Aliaacutes

em Tebas foi encontrado uma tabuinha em Linear B que apresenta uma lista de

vaacuterios tocadores de lira (YOUNGER 1998) que certamente trabalhavam para

realeza com o intuito de auxiliar diversos rituais fuacutenebres e ciacutevicos Segundo o

professor americano John Younger as descobertas de instrumentos musicais

similares em outros siacutetios arqueoloacutegicos demonstram que a lira pode ter sido

introduzida pelos egiacutepcios pois ela foi encontrada durante o reino de Akhenaton

entre os anos de 1367 ndash 1350 aC Logo nos deparamos com mais uma prova que

demonstra o processo de intercacircmbio cultural que houve entre esses povos na

antiguidade Como foi ressaltado anteriormente465 por Heroacutedoto466 a muacutesica

acompanhava os egiacutepcios em inuacutemeras atividades Na descriccedilatildeo de sua viagem ele

ressalta o uso de vaacuterios instrumentos musicais entre as pessoas das classes mais

baixas A uacutenica diferenccedila que pode ser detectada entre essas culturas que

dialogavam com os predecessores dos gregos em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical pode

ser medida atraveacutes da tonalidade atraveacutes da divisatildeo sonora em tetracordes467 de

uma quarta ou de um intervalo proacuteximo dele como uma oitava Eacute provaacutevel que no

Egito usasse a muacutesica egeia mais baixa com tons mais espaccedilados com o intervalo

de uma quarta O som de um modo geral para os ouvintes eacute considerado pelos

462 Esse ponto seraacute analisado por noacutes posteriormente nesse presente trabalho 463 Vide a nossa tabela cronoloacutegica em nossos anexos 464 Vide Aristoacuteteles De anima (420 b 5-20) Uma questatildeo que o filoacutesofo destaca nessa passagem eacute a relaccedilatildeo da voz (φωνήphoneacute) e a alma (ψυχῆςpsycheacute) A alma representa o movimento da vida que eacute notado atraveacutes do uso da voz Todos os instrumentos inventados nasceram com o intuito de imitar esse poder inato do homem A muacutesica eacute um fenocircmeno fiacutesico que depende de vibraccedilotildees que se propagam no ar como a voz e que segundo o filoacutesofo serve para expressar o pensamento de modo perfeito 465 Vide o capiacutetulo 36 466 Heroacutedoto Histoacuterias ( livro II cap LX) 467 Tetracordes em geral eacute uma seacuterie de quatro tons que preenchem um intervalo de quarta justa numa frequecircncia de proporccedilatildeo 43 Na muacutesica moderna o termo eacute usado para qualquer segmento de escala ou seacuterie tonal que composto a partir de quatro notas Esse termo eacute de origem grega e refere-se literalmente as quatro cordas Ou seja tem relaccedilatildeo com os instrumentos musicais como a lira harpa ou a ciacutetara que eram utilizados pelos antigos

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especialistas como robusto com uma qualidade melismaacutetica468 de caraacuteter penta

tocircnico Esse estilo tinha a caracteriacutestica de ser uma muacutesica hipnoacutetica que era

utilizada em diversos rituais para levar os seus ouvintes ao estado de ecstasy469 e

esse tipo de som pode ser encontrado na regiatildeo do Oriente Proacuteximo Segundo o

professor Younger470 a muacutesica produzida durante a idade do bronze pelas culturas

que habitavam na bacia do mar Egeu desperta o interesse de vaacuterios especialistas

que entre eles estaacute o musicoacutelogo britacircnico Martin L West que escreveu uma obra

sobre o iniacutecio da muacutesica claacutessica ocidental a partir da origem egeia471

Eacute importante ressaltar que nenhuma composiccedilatildeo antiga dessas culturas

sobreviveu pois o Linear B natildeo era utilizado para esse fim Como foi exposto

anteriormente esse tipo de escrita tinha a finalidade de registrar e controlar toda a

produccedilatildeo agraacuteria Mas o Linear A parece ter sido utilizado para outros fins

(YOUNGER 1998) durante o seu uso pela civilizaccedilatildeo minoica O fato desse tipo

de escrita ter sido encontrado em outros suportes eacute possiacutevel especularmos que tenha

sido usado para escrever muacutesicas O disco de argila chamado Phaistos472 no qual

ambos os lados carregam uma inscriccedilatildeo em espiral de pictogramas aparentemente

natildeo relacionado com o Linear A pode ter sido uma gravaccedilatildeo de um poema de algum

tipo riacutetmico que carregava a repeticcedilatildeo de refrotildees O professor grego-britacircnico

Gareth Owens a partir dos estudos de traduccedilatildeo desses idiomas pictoacutericos mais

antigos que ele desenvolveu junto com o especialista britacircnico John Coleman em

foneacutetica da universidade de Oxford diz ter solucionado esse enigma Segundo

Owens o disco circular de argila conteacutem uma oraccedilatildeo para a deusa matildee da

civilizaccedilatildeo minoica que segundo a sua traduccedilatildeo de um lado conteacutem a histoacuteria de

uma mulher graacutevida e do outro apresenta a histoacuteria de uma mulher que estaacute prestes

a dar agrave luz A prece deve ser lida seguindo a espiral pois caminha na direccedilatildeo circular

468 Eacute a teacutecnica de transformar a siacutelaba de um texto que sempre representa uma nota durante a execuccedilatildeo sonora durante o canto Esse tipo de teacutecnica pode ser encontrado no canto gregoriano e na muacutesica hindu e muccedilulmana 469 Certamente esse tipo de muacutesica tem relaccedilatildeo direta com os misteacuterios eleusianos orfismo e o ritual dionisiacuteaco 470 Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 471 Sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra WEST ML ldquoAncient Greek Musicrdquo Oxford Clarendon Press 1992 472 O famoso disco de Phaistos foi encontrado em 1908 e foi descoberto pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier desde entatildeo os especialistas tentam desvendar o seu conteuacutedo O disco eacute datado do ano 1700 aC e foi encontrado nas ruiacutenas do palaacutecio minoico de Phaistos na costa sul de Creta

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do disco de fora para o centro Como se o poeta ou escriba estabelecesse um

ritmo constante com suas marcaccedilotildees de tempo e tonalidade numa espeacutecie de

partitura primitiva que deveria guiar os muacutesicos a reproduzirem de modo fidedigno

a canccedilatildeo original que foi estabelecida pelo compositor divino Se ele estiver correto

em sua traduccedilatildeo essa eacute a prova cabal de um dispositivo utilizado para o registro de

uma informaccedilatildeo que deveria ser mantida para a posteridade e que foi encontrado

no palaacutecio minoico de Creta473 durante a idade do bronze como um protoacutetipo de

um disco de vinil A partir dessas evidecircncias podemos postular a possibilidade da

existecircncia de uma praacutetica literaacuteria altamente evoluiacuteda e que foi encontrada antes

do periacuteodo homeacuterico

As imagens que estatildeo descritas em cada lado formariam uma mensagem

sagrada que condiz com a religiatildeo desse periacuteodo no qual a mulher desempenhava

uma alta importacircncia dentro da cultura minoica na regiatildeo de Creta474 O artefato em

si pode ser dividido de modo ordenado em duas partes complementares que

podemos nomeaacute-las para fins exegeacuteticos de A e B pois cada lado apresenta um dos

estaacutegios do processo de florescimento da vida que estava associado com as

divindades femininas nesse contexto histoacuterico (CASTLEDEN 1990) Essa eacute uma

beliacutessima imagem que poderia ser contemplada como uma uacutenica peccedila sonora que

se realizava entre esses dois momentos quando estabelecemos um encadeamento

serial que tem a capacidade de espacializar essa experiecircncia religiosa que ocorre

na relaccedilatildeo entre os dois lados e nela podemos encontrar atraveacutes da coacutepula475 o

equiliacutebrio da vida que se manifesta com a sua mais bela dinacircmica e fluidez

representada atraveacutes do fenocircmeno fiacutesico da muacutesica Esse disco representaria a

proacutepria imagem do tempo e a relaccedilatildeo entre o plano inteligiacutevel e sensiacutevel que pode

ser encontrada na religiatildeo minoica e que posteriormente ecoou atraveacutes da tradiccedilatildeo

oral na mitologia para os gregos do periacuteodo homeacuterico A grande matildee era

473 Vide a tabela cronoloacutegica em nossos anexos 474 Uma reminiscecircncia dessa concepccedilatildeo pode ser encontrada nas odes do poeta tebano Piacutendaro (Odes nemeacuteia VI) ldquo ἓν ἀνδρῶν ἓν θεῶν γένος ἐκ microιᾶς δὲ πνέοmicroεν microατρὸς ἀmicroφότεροι διείργει δὲ πᾶσα κεκριmicroένα δύναmicroις ὡς τὸ microὲν οὐδέν ὁ δὲ χάλκεος ἀσφαλὲς αἰὲν ἕδος microένει οὐρανόςrdquo ldquoUma soacute de homens uma soacute raccedila de deuses de uma soacute matildee respiramos ambos distantes todavia todo o poder que as difere de forma que uma eacute nada mas sede sempre intreacutepido permanece brocircnzeo o ceacuteurdquo Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros CASTLEDEN Rodney ldquoMinoans Life in Bronze Age Creterdquo Routledge Press London 1990 E ldquoMycenaeans Life in Bronze Age Greecerdquo Routledge Press London 2005 475Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo

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considerada a divindade mais importante entre eles pois ela simbolizava vida

fertilidade e abundacircncia da Natureza Nos afrescos e ceracircmicas que essa deusa

aparece eacute possiacutevel notar a sua imponecircncia e espirito acolhedor diante dos seus

suacuteditos que em muitas representaccedilotildees satildeo de figuras animalescas e humanas

(MARINATOS 2010) A sua imagem maternal revela a natureza provedora que eacute

responsaacutevel pelo equiliacutebrio e prosperidade da comunidade Em outras apariccedilotildees o

machado duplo e o sol estatildeo ao seu lado O primeiro como o instrumento uacutetil para

manter a subsistecircncia atraveacutes da caccedila e a construccedilatildeo de utensiacutelios domeacutesticos De

outro uma arma de defesa e combate Enquanto que o sol representa o

florescimento da vida e do tempo Essas caracteriacutesticas revelam o poder dualista

da deusa que estaacute de um lado entre a fertilidade e a guerra e de outro entre o

mundo humano e divino Ou seja todos esses atributos inerentes agrave proacutepria Natureza

Em vaacuterios afrescos encontrados vemos que esse ritual em sua homenagem eacute

acompanhado por muacutesicos476 Esse fato revela o seu grau de importacircncia dentro da

civilizaccedilatildeo minoica

Eacute importante ressaltar que esses dois siacutembolos477 satildeo pertencentes a escrita

pictoacuterica minoica que eacute similar aos hieroacuteglifos egiacutepcios (EVANS 1952) Em todas

essas culturas antigas que utilizavam essa forma de expressatildeo os ideogramas

possuiacuteam um valor conceitual que eacute associado ao seu valor foneacutetico Ou seja os

sinais expostos no disco de argila de Phaistos por exemplo auxilia o leitor a

compreender imediatamente o conceito atraacutes de cada imagem exposta de modo

organizado O formato solar desse artefato tambeacutem remete diretamente aos

atributos da deusa que foram mencionados anteriormente Essa peccedila como um todo

representa o aacutepice que a civilizaccedilatildeo minoica alcanccedilou antes de seu total decliacutenio O

arqueoacutelogo britacircnico Arthur Evans identificou atraveacutes das escavaccedilotildees no siacutetio de

Creta que diversos ideogramas minoicos foram utilizados em trabalhos artiacutesticos no

interior do palaacutecio e em outros objetos de uso domeacutestico Ele notou que muitos

deles eram empregados com o mesmo valor simboacutelico que era utilizado na escrita

egiacutepcia478 Ora esse fato apresenta mais um ponto de conexatildeo entre essas duas

476 Vide os nossos anexos 477 Vide a escrita minoica no disco de argila de Phaistos nos anexos 478 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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culturas Nas fontes analisadas de modo comparativo pode-se averiguar que a

figura do sol desempenhou uma funccedilatildeo crucial na religiatildeo egiacutepcia atraveacutes do deus

Raacute Supreendentemente esse mesmo siacutembolo entre os minoicos ficou associado agrave

divina grande matildee que foi nomeada posteriormente de Potnia Theron479 a rainha

das feras Nesse sentido podemos acompanhar como uma importante divindade

minoica se manteve pelo menos em sua essecircncia arquetiacutepica incoacutelume na

mitologia grega mesmo depois do retrocesso cultural que foi produzido durante a

idade das trevas As divindades femininas de Atenas Reia Hera e Aacutertemis satildeo

exemplos de como essa antiga deusa solar sobreviveu no inconsciente coletivo

desses remanescentes que foram importantes para a formaccedilatildeo da base cultural

helecircnica (CHADWICK 1976)

Ao analisarmos algumas pinturas desse periacuteodo podemos supor que o mito

das musas e de Orfeu possa ter partido desse contexto cultural mais antigo das

civilizaccedilotildees ciclaacutedica e minoica que utilizavam esse meio artiacutestico totalmente

vinculado com o acircmbito religioso soacutecio-poliacutetico pedagoacutegico e juriacutedico Eacute notoacuterio

que essas culturas apresentavam o fenocircmeno da muacutesica como uma manifestaccedilatildeo

divina que era fundamento para outras atividades que tinha por objetivo manter o

equiliacutebrio soacutecio-poliacutetico entre todas as camadas que formavam a sociedade O poeta

que obtivesse a sua gloacuteria era considerado como aquele que pode transitar como

Orfeu entre o mundo humano e divino Uma prova desse encantamento que

ultrapassa a esfera humana e que marcou profundamente o processo de

subjetividade coletivo grego pode ser encontrado como tema central no diaacutelogo Iacuteon

de Platatildeo no qual o filoacutesofo apresenta uma interessante discussatildeo para saber se a

poesia eacute fruto do conhecimento humano ou da inspiraccedilatildeo divina480 Dentro desse

contexto histoacuterico poacutes homeacuterico em que a trama se baseia eacute possiacutevel detectar o

aparecimento da figura do rapsodo que apresentava poemas que natildeo era de sua

autoria e sem o acompanhamento musical481 Desde os primoacuterdios a figura de

479 Πότνια ΘηρῶνPotnia Theron 480 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo Eacute importante ressaltar que o pano de fundo desse cenaacuterio no qual o diaacutelogo se desenvolve estaacute tambeacutem a questatildeo entre a relaccedilatildeo entre a phyacutesis e nomos (φύσις και νόmicroος) ou seja o debate entre a lei da natureza e a lei da convenccedilatildeo humana Essa era uma polecircmica que despertou o interesse dos pensadores entre os seacuteculos 4 e 5 na Greacutecia a partir das reflexotildees que tinha a figura do homem como tema central 481 Essa eacute uma diferenccedila crucial em relaccedilatildeo a atividade poeacutetica que podemos encontrar na maioria do material arqueoloacutegico analisado dessas antigas civilizaccedilotildees que foram predecessoras dos gregos O acompanhamento instrumental fazia parte do trabalho desses artistas De um lado temos a

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destaque era o aedo482 que declamava seus proacuteprios versos eacutepicos em diversos

cantos da Greacutecia As caracteriacutesticas que satildeo apresentadas entre esses dois ourives

da palavra demonstram o processo de transformaccedilatildeo que a proacutepria poesia estava

atravessando com a expansatildeo da reinserccedilatildeo do uso da escrita (HAVELOCK 1996)

que deu a possibilidade para a reconfiguraccedilatildeo do processo de subjetividade coletivo

grego Nesse sentido o ofiacutecio do aedo representa o primeiro estaacutegio do

desenvolvimento racional e cultural grego pois ele eacute responsaacutevel por manter todo

o legado mais importante de seu povo atraveacutes do amplo desenvolvimento musical

que estava agrave serviccedilo do processo de memorizaccedilatildeo e encantamento utilizando como

conteuacutedo todos os acontecimentos mais marcantes do passado O segundo

momento que ocorreu o aparecimento da figura do rapsodo entre os seacuteculos V e

IV aC apresenta uma mudanccedila em que a literatura escrita passa influenciar as

praacuteticas de recitaccedilatildeo que acompanham esse novo contexto soacutecio-poliacutetico e cultural

grego Ou seja a tecnologia escrita foi interpretada por muitos pensadores como

Platatildeo483 e Alcidamas484 como um meio artificial e mimeacutetico que se chocou com

essa tradiccedilatildeo oral mais antiga que era focada na inspiraccedilatildeo divina que foi ampliada

pelo poder magnifico das leis musicais Eacute importante ressaltar que esse modelo mais

antigo estabelece relaccedilatildeo direta com a capacidade de memorizaccedilatildeo e raciociacutenio

que foi essencial para desenvolvimento da geometria e matemaacutetica dessas

sociedades

No diaacutelogo Fedro de Platatildeo essa novidade era concebida por Soacutecrates como

uma espeacutecie de ilusatildeo de conhecimento que parte do distanciamento entre os

manifestaccedilatildeo divina que surge pela capacidade de memorizaccedilatildeo e encantamento coletivo e pelo outro a capacidade humana de criaccedilatildeo atraveacutes da tecnologia que eacute representada na construccedilatildeo desses instrumentos que tinham desde a sua origem apresentar o diaacutelogo entre o mundo humano e divino Como ressaltamos anteriormente esse legado pode ser encontrado na mitologia que auxiliou os gregos na construccedilatildeo de sua sociedade apoacutes a idade das trevas atraveacutes da tradiccedilatildeo oral 482 Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott Αἰδώς aidoacutes ἀοιδός [α] ὁ ( ἀείδω ) cantor menestrel bardo Il 24720 Od 3270 al Hes Th 95 Op 26 Sapph 92 etc ἀ ἀνήρ Od 3267 θεῖος ἀ 417 887 al τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀ Hdt 124 πολλὰ ψεύδονται ἀ Arist Metaph 983a4 cgen γόων χρησmicroῶν ἀοιδός E HF 110 Heracl 403 πρᾶτος ἀ of the cock Theoc 1856 2 fem songstress πολύϊδρις ἀ Id 1597 of the nightingale Hes Op 208 of the Sphinx S OT 36 E Ph 1507 (lyr) ἀοιδὸς Μοῦσα Id Rh 386 (lyr) 3 encantador S Tr 1000 II as Adj melodioso musical ἀοιδοτάταν ὄρνιθα E Hel 1109 (lyr) cf Theoc 127 Call Del 252 IG 12(2)443 2 Pass = ἀοίδιmicroος famous πολλὸν ἀοιδοτέρη Arcesil ap DL 430 III = εὐνοῦχος Hsch cf δοῖδος 483 Vide Platatildeo Fedro (275 a ) 484 Vide Alcidamas sobre os sofistas

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interlocutores485 Logo o meacutetodo maiecircutico socraacutetico dentre desse novo contexto

estava completamente ameaccedilado Por essa perspectiva eacute possiacutevel compreendermos

o fato de o filoacutesofo nunca ter escrito uma uacutenica linha A filosofia para ele eacute

fundamentalmente calcada no processo dialoacutegico que necessita do contato entre

duas almas de modo ativo como uma praacutetica existencial de cunho eacutetico epistecircmico

poliacutetico e pedagoacutegico O seu grande disciacutepulo Platatildeo carrega essa marca de modo

paradoxal ao escrever seus diaacutelogos A escrita platocircnica eacute a imagem do diaacutelogo oral

que eacute o meacutetodo deixado pelo seu mestre para a busca de conhecimento que soacute pode

ocorrer no encontro entre duas almas Dentro dessa concepccedilatildeo eacute importante

ressaltar que o processo subjetivo eacute atravessado pela troca incessante e essencial

com o outro pois o diaacutelogo natildeo repassa para o indiviacuteduo um conhecimento acabado

Pelo contraacuterio ele eacute resultado de um esforccedilo e colaboraccedilatildeo muacutetuo que parte da

duacutevida e da busca compartilhada Nesse sentido eacute possiacutevel como ressalta o

helenista francecircs Pierre Hadot (HADOT 1995) compreendermos o motivo pelo

qual Platatildeo jamais escreveu utilizando a primeira pessoa do singular Ao contraacuterio

de outros pensadores do seu periacuteodo o filoacutesofo sempre afirmou atraveacutes da premissa

socraacutetica do natildeo saber a nossa incapacidade de realizar qualquer atividade sem o

auxiacutelio do outro Como ressaltamos em nossa introduccedilatildeo esse caminho filosoacutefico

eacute baseado na constataccedilatildeo da necessidade do outro que atravessa essencialmente a

natureza humana desde a sua origem Dentro desse debate produzido durante o

periacuteodo claacutessico nos deparamos com o choque entre a antiga tradiccedilatildeo oral que era

fundamentada atraveacutes do conhecimento musical da poesia e com o novo uso da

teacutecnica escrita que comeccedila a atuar como o principal instrumento de armazenamento

informacional Essa transformaccedilatildeo modificou de modo irreversiacutevel o processo de

subjetividade grego Uma nova mentalidade comeccedila a ser desenhada no qual essa

tradiccedilatildeo oral de um modo geral comeccedila a ser colocada em xeque pelos seus

detratores O efeito desse desgaste resultou no discurso em prosa que podemos

encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides No iniacutecio da Poeacutetica486 haacute uma passagem

interessante em que Aristoacuteteles demarca esse distanciamento entre esses dois

485 Ou seja o diaacutelogo presencial natildeo pode acontecer dentro desse novo contexto Esse ponto eacute importante para apresentar o caraacuteter pragmaacutetico que o meacutetodo dialoacutegico representava em uma cultura que foi criada a partir da tradiccedilatildeo oral 486 Vide Aristoacuteteles Poeacutetica (1447 b)

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importantes meios expressivos do pensamento grego487 A sua abordagem

sistematizadora e perspicaz eacute de grande ajuda para detectarmos algumas

caracteriacutesticas dessa nova forma de expressatildeo que eacute derivada da antiga arte das

musas488

Em todas as culturas que antecederam esse momento encontramos inuacutemeras

provas de atividades artiacutesticas que comprovam o grande desenvolvimento do

processo de subjetividade preacute-grego atraveacutes da muacutesica A nossa hipoacutetese busca o

seu fundamento na concepccedilatildeo musical que parte da afinaccedilatildeo489 que surge da tensatildeo

dos instrumentos de cordas e que opera de modo relacional e comparativo Ou

seja duas importantes atribuiccedilotildees de nossa capacidade cognitiva que aponta para

um amplo desenvolvimento intelectual A noccedilatildeo de harmonia490 que na liacutengua

grega apresenta o sentido de ajuste e concoacuterdia antes mesmo de Pitaacutegoras e

Heraacuteclito essas importantes noccedilotildees jaacute estavam sendo estudadas e utilizadas por

todos os poetas e muacutesicos da idade do bronze com o intuito de alcanccedilar a excelecircncia

487 O termo empregado no texto grego eacute λόγοςloacutegos Posteriormente apresentaremos algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto

488 Μουσικήmousikeacute 489 Ato de ajustar aumentando ou diminuindo a tensatildeo das cordas Natildeo sabemos ao certo quando isso ocorreu na antiguidade mas uma coisa eacute certa natildeo foi Pitaacutegoras o primeiro a ter feito isso A natildeo ser que a cronologia que muitos historiadores apresentam ao seu respeito esteja equivocada Seja como for a sua teoria pode ter sido aprimorada a partir dessas descobertas musicais que ele certamente adquiriu com os sacerdotes egiacutepcios 490 Ἁρmicroονίαharmonia Na mitologia eacute uma divindade responsaacutevel pela concoacuterdia Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott ἁρmicroονία ἡ ( ἁρmicroόζω ) meios de uniatildeo fixaccedilatildeo γόmicroφοις microιν καὶ ἁρmicroονίῃσιν ἄρηρεν Od 5248 ὄφρ ἂν ἐν ἁρmicroονίῃσιν ἀρήρῃ ib 361 2 articulaccedilatildeo como entre as pranchas de um navio τὰς ἁ ἐν ὦν ἐπάκτωσαν τῇ βύβλῳ vedar as junccedilotildees com papiros Hdt 296 τῶν ἁρmicroονιῶν διαχασκουσῶν Ar Eq 533 tambeacutem em alvenaria αἱ τῶν λίθων ἁ DS 28 cf Paus 888 9337 3 Em anatomia sutura Hp Off 25 Oss 12 uniatildeo de dois ossos por mera justaposiccedilatildeo Gal 2737 tambeacutem no plural ajustes πόρων Epicur Fr 250 4 Estrutura ῥηγνὺς ἁρmicroονίαν λύρας S Fr 244 βοός Philostr Im 116 esp do quadro humano ἁρmicroονίην ἀναλυέmicroεν ἀνθρώποιο Ps-Phoc 102 νεύρων καὶ κώλων ἔκλυτος ἁ AP 7383 ( Phil ) τὰς ἁ διαχαλᾷ τοῦ σώmicroατος Epicr 219 b da mente δύστροπος γυναικῶν ἁdo temperamento perverso das mulheres E Hipp 162 (lyr) c estrutura do universo CorpHerm 114 II Convecircnio acordo in pl microάρτυροι καὶ ἐπίσκοποι ἁρmicroονιάων Il 22255 III governo estabelecido ordem τὰν ∆ιὸς ἁ A Pr 551 (lyr) IV Na muacutesica afinar ἁ τόξου καὶ λύρας Heraclit 51 cf Pl Smp 187a daiacute meacutetodo de afinaccedilatildeo musical escala Philol 6 etc Nicom Harm 9 esp oitava ἐκ πασῶν ὀκτὼ οὐσῶν [φωνῶν] microίαν ἁ συmicroφωνεῖν Pl R 617b ἑπτὰ χορδαὶ ἡ ἁ Arist Metaph 1093a14 cf Pr 919b21 of the planetary spheres in Pythag theory Cael 290b13 Mu 399a12 etc 2 Geralmente muacutesica αὐτῷ δὲ τῷ ῥυθmicroῷ microιmicroοῦνται χωρὶς ἁ Id Po 1447a26 3 especial tipo de escala modo ἁ Λυδία Pi N 446 Αἰολίς or -ηις PratinLyr 5 Lasus I cf Pl R 398e al Arist Pol 1276b8 1341b35 etc b esp Escala enarmocircnica Aristox Harm pI M Plu 21135a al 4 ἁρmicroονίαν λόγων λαβών um devido arranjo das palavras fit to be set to music Pl Tht 175e 5 intonation or pitch of the voice Arist Rh 1403b31 6 metaph De pessoas coisas harmonia concoacuterdia Pl R 431e etc V personificado como uma figura miacutetica hAp 195 Hes Th 937 etc Philos like φιλότης princiacutepio de uniatildeo opp Νεῖκος Emp 1222 cf 273 VI Pythag Nome para trecircs Theol Ar 16 VII Nome de um remeacutedio Gal 1361 nome de um gesso Paul Aeg 362

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expressiva Logo podemos concluir que essa atividade que foi explorada por esses

pensadores gregos posteriormente tambeacutem foi uma heranccedila oriunda da tradiccedilatildeo

oral

A teoria mais importante da muacutesica grega antiga que foi reconhecida entre os

especialistas parte da teoria harmocircnica de Pitaacutegoras que seguia uma concepccedilatildeo

geomeacutetrica491 Em resposta direta a esse pressuposto a formulaccedilatildeo de Aristoxeno

que foi desenvolvida posteriormente era fundamentalmente empiacuterica ou seja o

criteacuterio de seu estudo estava voltado para o surgimento desse fenocircmeno fiacutesico em

nossos sentidos E segundo a professora Flora (LEVIN 2009) foram essas duas

concepccedilotildees que estabeleceram o paracircmetro para a ciecircncia da melodia em nosso

mundo Ocidental Desde a antiguidade a muacutesica estabelece uma espeacutecie de imagem

que apresenta o universo em movimento que sintetiza o proacuteprio processo da vida

Eacute importante ressaltar que para o pitagorismo a descoberta dessas leis natildeo

escritas que governam a nossa realidade tem uma dimensatildeo idecircntica agrave constituiccedilatildeo

do processo musical e da arte como um todo492 Desse modo podemos encontrar

mais um elemento de afinidade com o desenvolvimento racional que foi essencial

para o surgimento da ciecircncia e filosofia ateacute o periacuteodo renascentista Ao intuir a

essecircncia da muacutesica como nos apresenta as doxografia pitagoacuterica493 como uma lei

superior invisiacutevel que ordena o mundo sensiacutevel estamos aptos para reconhecer uma

lei universal que governa essa estrutura composta de vaacuterias partes mas natildeo como

uma realidade autocircnoma e isolada e sim como algo pertencente agrave um todo orgacircnico

estruturado A descoberta dessa ordem musical da Natureza reflete-se na religiatildeo

matemaacutetica geometria arte poliacutetica educaccedilatildeo e na filosofia Dentro desse

contexto o mito expande a sua atuaccedilatildeo nos mais variados campos Do encanto da

fala ou a fala cantada em um dos seus muacuteltiplos usos surge para ampliar o

horizonte da criaccedilatildeo helecircnica agrave serviccedilo da poesia eacutepica e a formaccedilatildeo das crianccedilas494

491 Sobre esse ponto recomendamos leitura do seguinte livro LEVIN RF ldquoGreek Reflections on the nature of musicrdquo Cambridge University Press 2014 492 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GHYKA Matila ldquoEstheacutetique des proportions dans la nature et dans les artsrdquo Editeacute par Paris Editions Gallimard 1927 493 Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros HUFFMAN C ldquoPhilolaus of Croton Pythagorean and Presocraticrdquo Cambridge University Press 1993 e IAMBLICHUS ldquoOn the Pythagorean Way of Liferdquo The translation by J Dillon and J Hershbell Atlanta Scholars Press 1991 494 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro II e III) e Aristoacuteteles Poliacutetica (livro VIII) Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo

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com as dramatizaccedilotildees que facilitavam o processo pedagoacutegico Esse recurso trazia

em seu bojo os elementos necessaacuterios para o amplo desenvolvimento individual que

era alcanccedilado atraveacutes da ampliaccedilatildeo da percepccedilatildeo visual auditiva mnemocircnica

criativa emocional e afetiva495 que eram necessaacuterios para a construccedilatildeo e equiliacutebrio

do homem grego na vida poliacutetica e militar496 o desenvolvimento desse processo de

formaccedilatildeo psicoloacutegica foi tatildeo importante que posteriormente alcanccedilou a sua

plenitude maacutexima atraveacutes da sofisticaccedilatildeo pedagoacutegica apresentada pelo Teatro497

Na antiguidade haacute um consenso que apresenta Pitaacutegoras como o primeiro

pensador a elaborar uma teoria sobre a muacutesica Mas posteriormente muitos

estudiosos da escola platocircnica e aristoteacutelica se interessaram por esse assunto

durante e apoacutes o periacuteodo claacutessico498 Esse interesse pode ser considerado como

mais uma evidecircncia para a importacircncia desses estudos no acircmbito da epistemologia

antiga Natildeo podemos esquecer que em seus uacuteltimos momentos na prisatildeo Soacutecrates

menciona a relaccedilatildeo entre a muacutesica e a filosofia499 Em algumas horas antes do

filoacutesofo tomar a cicuta revela aos seus companheiros que devido a um sonho

recorrente ele foi impulsionado a cultivar a arte das musas A partir disso ele

compocircs algumas poesias inspirado nas faacutebulas de Esopo500 que foi um poeta

495 Παθηmicroαpathema No tratado intitulado ldquoDa interpretaccedilatildeordquo (livro I 16 a) Aristoacuteteles destaca o papel das afecccedilotildees no processo da linguagem humana Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega παθ-ηmicroα ατος τό dat pl παθηmicroάτοις com Adesp 283 (Aetol De acordo com Eust 27942 176136) - o que acontece com um sofrimento infortuacutenio S Tr 142 Th 448 etc τὸ π τοῦ Χριστοῦ a paixatildeo de Cristo 2 EpCor 15 de boa fortuna χαῖρε παθὼν τὸ π (deificaccedilatildeo) Orph Pe 32f principalmente em pl Hdt 8136 etc παθήmicroαθ ἅπαθον S OC 361 ἀκούσια π opp ἑκούσια καὶ ἐκ προνοίας ἀδικήmicroατα Antipho 127 τὰ δέ microοι π microαθήmicroατα γέγονε meus sofrimentos foram minhas liccedilotildees (cf πάθος 12) Hdt 1207 cf Ar ordm 199 pl Smp 222b II emoccedilatildeo ou condiccedilatildeo afeto π τῆς ψυχῆς εἶναι τὴν σωφροσύνην οὐ microάθηmicroα X Cyr 3117 cf Pl Phd 79d opp ποίηmicroα Id Sph 248b τὸ τῆς ἑτέρας χειρὸς π Enredo 492 mas nos primeiros escritores principalmente em pl afeiccedilotildees sentimentos opp ποιήmicroατα Pl R 437b τὰ περὶ τὸ σῶmicroα π Identidade Phlb 33d σα διὰ τοῦ σώmicroατος π ἐπὶ τὴν ψυχὴν τείνει Id Th 186c π ν τῇ ψυχῇ γιγνόmicroενα Id R 511d παθήmicroασιν ὑπηρετεῖν obedeccedilam aos sentimentos Arist Pol 1254b24 opp ἤθη ἕξεις Id Rh 1396b33 cf Po 1449b28 2 Medic Pl Problemas sintomas Hp VM 2 Epid 2224 π καὶ νοσήmicroατα Pl R 439d cf 389c III em pl incidentes acontecimentos τὰ ἐν ∆οδυσσείᾳ π ib 393b πάντα εἴδη καὶ π πολιτειῶν Id Lg 681d 2 incidentes ou mudanccedilas de corpos materiais τὰ οὐράνια π Identidade Ion 531c cf Phd 98a τὰ τῆς σελήνης π Arist Metaf 982b16 cf Mete 363a24 365a12 3 em Loacutegica incidentes propriedades ou acidentes Pl Phdr 271b Prm 141d 157b Arist APo 76b13 Cael 310a20 τὰ π τὰ αἰσθητά de cor etc Id Sens 445b4 496 No proacuteximo capitulo veremos que a atuaccedilatildeo militar estava inteiramente vinculada a vida poliacutetica entre os gregos 497 Vide a Poacuteetica de Aristoacuteteles (1447 a 10025) 498 Vide De institutione musica de Boeacutecio 499 Vide Platatildeo Feacutedon (57 a - 65 c ) 500 Escritor grego (620 aC ndash 564 aC ) de origem africana () que teria sido o inventor da faacutebula Segundo Heroacutedoto (Histoacuterias II 134) Esopo foi escravo do filoacutesofo Xanto e foi condenado agrave morte

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escravo que teria sido condenado agrave morte injustamente501 As suas faacutebulas que

tinha uma caracteriacutestica eacutetico-moral foram um importante trabalho de expressatildeo

poeacutetico que era utilizado para fins pedagoacutegicos Esse dado curioso fornece vaacuterias

pistas que apontam para a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo antiquiacutessima grega que sempre

esteve voltada para o desenvolvimento do processo subjetivo coletivo grego que

podemos encontrar algumas evidecircncias na mitologia e nas obras de Platatildeo502

47 Eacutepos 503

Como foi exposto anteriormente no primeiro capiacutetulo esse eacute o segundo

importante termo encontrado na liacutengua grega que se refere ao ato de expressatildeo

humano504 De um modo geral a poesia eacutepica ganhou notoriedade a partir da obra

injustamente Talvez seja por isso que Soacutecrates de maneira irocircnica tenha mencionado o poeta escravo por causa desse julgamento equivocado e pelo teor eacutetico-moral e alegoacuterico de suas obras na antiguidade 501 Ibidem 502 Vide o diaacutelogo Feacutedon e a Repuacuteblica de Platatildeo 503 Em outros capiacutetulos desse presente trabalho vamos apresentar algumas caracteriacutesticas que tem relaccedilatildeo direta com esse meio de expressatildeo A partir disso o presente subcapiacutetulo focaraacute em alguns aspectos formais e histoacuterico que visam expor a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral 504 Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega Ἔπος mais antigo ϊέπος SIG 9 (v infr) etc εος τό (Skt vaacutecas palavra hino cf εἶπον) I palavra παύρῳ ἔπει em poucas palavras Pi O 1398 ἐπέων κόσmicroος Parm 852 Democr 21 ἔπους σmicroικροῦ χάριν S OC 443 λόγοι ἔπεσι κοσmicroηθέντες Th 367 geralmente aquilo que eacute pronunciado em palavras fala conto ἔπος ἐρέειν Il 383 etc φάσθαι Xenoph 73 Parm 123 etc ao lado de microῦθος Od 4597 11561mdashUsos especiais 1 Canccedilatildeo acompanhada de muacutesica 891 17519 2 Palavra prometida promessa Il 88 τελέσαι ἔπος fulfil keep ones word 1444 cf A Pr 1033 3 Palavra na eacutepoca conselho Il 1216 2807 Od 18166 etc freq in Trag E Hel 513 etc 4 Palavra de uma divindade oraacuteculo Od 12266 Hdt 113 etc 5 Falar proveacuterbio τὸ παλαιὸν ἔπος Id 751 cf Ar Av 507 6 palavra opp ato ἔπε ἀκράαντα palavras sem efeito opp ἔτυmicroα Od 19565 cf E HF 111 (lyr) opp ἔργον Il 15234 Od 2272 etc cf 111 αἴτε ϊέπος αἴτε ϊάργον SIG 9 (Elis vi BC) opp βίη Il 15106 opp χεῖρες 177 (pl) 7 Assunto de uma fala menssagem 11652 17701 S OT 1144 etc II Uso posteriores 1 Juntou-se com ἔργον or πρᾶγmicroα Heraclit 1 A Pers 174 (troch) Ar Eq 39 etc ἔργῳ τε καὶ ἔπει Pl Lg 879 c ἅmicroα ἔπος τε καὶ ἔργον ἐποίεε Hdt 3134 χρηστὰ ἔργα καὶ ἔπεα ποιέειν Id 190 2 κατ ἔπος palavra por palavra κατ ἔ βασανιεῖν φησι τὰς τραγῳδίας Ar Ra 802 3 πρὸς ἔπος para a primeira palavra Luc Ep Sat 37 b palavra em troca de palavra ἀmicroείβεσθαι ἀποκρίνεσθαι of an oracle Id Alex 19 Philops 38 ἔ δ ἀmicroείβου πρὸς ἔ A Eu 586 cf Ar Nu 1375 Pl Sph 217d c οὐδὲν πρὸς ἔ to no purpose Ar Ec 751 tambeacutem nada a proacutesito ἐὰν microηδὲν πρὸς ἔ ἀποκρίνωmicroαι Pl Euthd 295c cf Luc Herm 36 τί πρὸς ἔπος Pl Phlb 18d 4 ὡς ἔπος εἰπεῖν quase praticamente qualificando uma expressatildeo muito absoluta esp com πᾶς and οὐδείς (sem metaacuteforas) Pl Ap 17a Phd 78e Grg 456a al Arist Metaph 1009 b16 Pol 1252 b29 D 947 etc opp ὄντως or ἀκριβεῖ λόγῳ Pl Lg 656e R 341b posteriormente ὡς ἔ ἐστὶν εἰπεῖν POxy 6714 (iv AD) in Trag ὡς εἰπεῖν ἔ A Pers 714 (troch) E Heracl 167 Hipp 1162 once in Pl Lg 967b (svl) 5 ἑνὶ ἔπει em uma palavra brevemente ἑνὶ ἔπεϊ πάντα συλλαβόντα λέγειν Hdt 382 III De palavras isoladas esp com ref para etimologia ou uso Id 230 Ar Nu 638 Pl Prt 339 a etc ὀρθότης ἐπῶν = ὀρθοέπεια (qv) Ar Ra 1181 ἄριστ ἐπῶν ἔχον ib 1161 IV in pl epic poetry opp microέλη (lyric poetry) ἰαmicroβεῖα διθύραmicroβοι etc ῥαπτῶν ἐπέων ἀοιδοί Pi N 22 τὰ Κύπρια ἔπεα Hdt 2117 cf Th 13

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homeacuterica505 e hesioacutedica506 se focircssemos atribuir uma uacutenica caracteriacutestica agrave epopeia

poderiacuteamos afirmar que ela estaacute voltada para registrar a excelecircncia da accedilatildeo

humana507 diante das dificuldades para manter a sobrevivecircncia em um mundo

completamente hostil marcado essencialmente pela guerra Todas as experiecircncias

satildeo reunidas com o intuito de organizar um banco mnemocircnico que pode ser

utilizado para a sua orientaccedilatildeo social e poliacutetica Eacute importante ressaltar que esse tipo

de gecircnero natildeo era de uso exclusivo dos gregos (KIRK 1962) Em outras

civilizaccedilotildees muito mais antigas como o povo hitita por exemplo eacute possiacutevel

encontramos esse gecircnero sendo utilizado para fins religiosos e militares508

As obras dos dois poetas gregos mais famosos Homero e Hesiacuteodo se apoiam

em uma tradiccedilatildeo oral extremamente antiga para a construccedilatildeo de suas narrativas

poeacuteticas que seguem agrave risca uma estruturaccedilatildeo meloacutedica e meacutetrica que foi

desenvolvida atraveacutes do aperfeiccediloamento das teacutecnicas musicais que foram essecircncias

para a sua longevidade e efetividade na cultura grega509 Como foi exposto por noacutes

anteriormente510 esses poetas deram continuidade a uma atividade mnemocircnica que

tinha uma funccedilatildeo determinante na estruturaccedilatildeo social poliacutetica e pedagoacutegica dos

gregos Dentro do estudo desenvolvido na Poeacutetica o filoacutesofo macedocircnio expotildee que

todas as composiccedilotildees poeacuteticas independentemente do gecircnero se caracterizavam

por meio do ritmo das palavras511 e da harmonia de modo separado ou

combinado512 E elas tem por dever imitar as accedilotildees excelentes513 atraveacutes da palavra

X Mem 143 Pl R 379 a etc ἔπεά τε ποιεῖν πρὸς λύραν τ ἀείδειν Theoc Ep 216 νικήσας ἔπος IG 31020 ποητὴς ἐπῶν ib 731979 (Orchom Boeot) cf OGI 5137 (Egypt iii BC) b geralmente poesia ateacute letras Alcm 25 (prob) Pi O 38 etc c linhas versos esp de linhas faladas no drama Ar Ra 862 956 etc sg verso linha de poesia Hdt 429 Pl Min 319 d conjunto de versos Id R 386 c Hdt 7143 d linhas escritas microυρίων ἐπῶν microῆκος Isoc 12136 ἐν ὅλοις ἑπτὰ ἔπεσι παραδραmicroεῖν de um histoririador Luc HistConscr 28 505 Eacute importante ressaltar que as duas epopeias da Iliacuteada e Odisseia representam dois momentos distintos dentro da histoacuteria da poesia heroica grega No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essas diferenccedilas que encontramos nessas duas obras 506 Ibidem 507 Na Poeacutetica (1448 a ndash 26) Aristoacuteteles afirma que a epopeia eacute a imitaccedilatildeo de homens que se destacam por sua excelecircncia (ἀρετή aretecirc) Logo podemos encontrar a partir dessa passagem o caraacuteter pedagoacutegico e axioloacutegico da antiga poesia eacutepica 508 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros GEORGE A RldquoThe Babylonian Gilgamesh Epicrdquo Oxford 2003 E BOWRA Cecil Maurice ldquoHeroic Poetryrdquo London Macmillan 1952 509 Vide o subcapiacutetulo anterior 510 Ibidem 511 No texto grego observamos que o filoacutesofo natildeo utiliza o termo ἔπος eacutepos mas λόγος loacutegos No proacuteximo subcapiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 512 Aristoacuteteles Poeacutetica (livro I 1447 a 20 ndash 25) 513 Excelecircncia ἀρετή aretecirc

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e melodia514 Nesse sentido nos deparamos com o caraacuteter de interdependecircncia

reciacuteproco entre a palavra e a muacutesica Em outro livro chamado Problemas515 ele

deixa subtendido que o diaacutelogo entre esses dois termos estaacute totalmente voltado para

a proacutepria estruturaccedilatildeo do idioma grego Todas as formas literaacuterias criadas

acompanham indissociavelmente esse processo de desenvolvimento musical Ou

seja a melodia estaacute voltada para o aspecto foneacutetico que visa encontrar a excelecircncia

expressiva nos olhos516 e ouvidos dos gregos

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees de como era a formaccedilatildeo desses

primeiros aedos Para o helenista britacircnico Geoffrey Stephen Kirk (KIRK 1962)

esses primeiros poetas tinha uma plena aceitaccedilatildeo entre todas as camadas sociais

dos membros da realeza ateacute a populaccedilatildeo mais humilde A sua hipoacutetese eacute

fundamentada pela anaacutelise da poesia heroica iugoslava517 e algumas partes da

Odisseia que apresentam o profundo respeito que figuras como Phemius518 e

Demoacutedoco519 exerciam naquele periacuteodo Uma caracteriacutestica desse tipo de

composiccedilatildeo era o uso dos epiacutetetos atraveacutes do uso de substantivos de modo repetitivo

que tinha a finalidade de realccedilar alguma qualidade de algum personagem

importante como eacute o caso de figuras como Aquiles520 e Odisseu521 na Iliacuteada Vale

ressaltar que esse recurso tambeacutem era utilizado para destacar lugares objetos e

certas situaccedilotildees que deveriam ser mantidas para facilitar o processo mnemocircnico do

aedo que tinha que recordar milhares de versos sem a ajuda da teacutecnica escrita

durantes as suas apresentaccedilotildees puacuteblicas522 Natildeo haacute duacutevida de que esse tipo de

capacidade para alcanccedilar a sua maacutexima excelecircncia necessitava ser praticada

514 Μελοποι-ια ἡ melopoia Fazer poemas liacutericos ou muacutesica geralmente muacutesica Arist Po 1450b16 Pol 1341b24 Aristox Harm p38 M Phld Mus p31 K Ocell 48 Cleonid Harm 14 AristidQuint 112 II Composiccedilatildeo musical ao contraacuterio de sua praacutetica Pl Smp 187d cf R 404 d para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott 515 Vide Aristoacuteteles Problemas (livro XIX 20) 516 Com a encenaccedilatildeo teatral e dos grandes oradores como Goacutergias 517 Esse trabalho foi analisado de modo primoroso no seguinte livro CHADWICK H Munro and Nora ldquoThe Growth of Literaturerdquo In 3 vols Cambridge 1932 518 Vide Homero Odisseia (Canto I 325 ndash 345) 519 Ibidem (Canto VIII 62-68) Essa passagem eacute importante pois revela que a funccedilatildeo do aedo era sempre acompanhada pelo som da ciacutetara E como foi exposto no subcapiacutetulo anterior essa praacutetica eacute extremamente antiga na preacute-histoacuteria grega 520 O melhor dos aqueus 521 O muito astuto 522 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro Barnabeacute Pajares A ldquoFragmentos de Eacutepica Griega Arcaicardquo Madrid Editorial Gredos1979

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exaustivamente desde a infacircncia e eacute bem provaacutevel que houvesse uma espeacutecie de

confraria do tipo sacerdotal que era muito comum nessas culturas do periacuteodo de

bronze523 para organizar e preparar os jovens mais aptos para exercer essa

atividade divina dentro do palaacutecio Todavia eacute importante ressaltar que natildeo haacute

muitas fontes disponiacuteveis que possam afirmar com seguranccedila como e quando esse

tipo de atividade surgiu no mundo antigo

Essa tradiccedilatildeo milenar a partir do seacuteculo VIII e VII comeccedila a receber outros

traccedilos para atender de modo exemplar as novas configuraccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que

se expande com a reinserccedilatildeo do uso da escrita524 Consequentemente esse

importante meio de expressatildeo se reconfigurou atraveacutes da criaccedilatildeo de novos gecircneros

ateacute desparecer completamente da literatura grega (KIRK 1962) por causas sociais

e histoacutericas Mas eacute importante ressaltar que essas transformaccedilotildees natildeo ocorreram

de modo uniforme em todas as partes da Greacutecia pois em cada cidade havia um

legado eacutepico especiacutefico para suprir a demanda soacutecio-poliacutetica e pedagoacutegica local525

Esse fato demonstra natildeo apenas o poder de plasticidade mas tambeacutem o alcance e

vigor da poesia homeacuterica que persistiu durante um longo periacuteodo em territoacuterio grego

e romano526 Na parte formal desse gecircnero podemos destacar o uso recorrente do

verso em hexacircmetro dactiacutelico e a fraseologia tradicional que lhe impocircs sentido e

beleza O conteuacutedo abrangia uma temaacutetica bem variada a partir da assinatura de

523 Vide nossos anexos 524 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar as singularidades existentes entre Esparta e outras cidades O mais interessante eacute que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros e sucessores do poeta Creoacutefilo alguns textos contendo diferentes partes das obras poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer que ele ordenou que essas obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco ainda ressalta que nessa eacutepoca os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar escassos Eacute bem provaacutevel que essa tradiccedilatildeo estivesse comeccedilando a cair em desuso E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica E por uacuteltimo vale mencionar que essa memoacuteria preservada trazia consigo um dos sentidos do termo aleacutetheia (natildeo-esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os seacuteculos VIII e V Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 525 Ibidem 526 Vide a Eneida que foi um poema eacutepico latino escrito por Virgiacutelio no seacuteculo I aC que foi altamente influenciada pela epopeia homeacuterica

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cada poeta e regiatildeo527 Por um lado haacute o legado deixado do ciclo eacutepico que eacute uma

reuniatildeo de diversas epopeias que se caracterizou por manter algum elo de

continuidade e com a inserccedilatildeo proposital de alguns hiatos que fornecia ao rapsodo

um espaccedilo de liberdade criativa no qual fornecia a oportunidade de preenchecirc-los a

partir do seu interesse ou motivaccedilatildeo especiacutefica528 Dentro desse contexto haacute ainda

a poesia eacutepica de cunho genealoacutegico que apresentava uma espeacutecie de

sistematizaccedilatildeo do mito que expotildee as transformaccedilotildees e ateacute a configuraccedilatildeo atual do

mundo529 um exemplo claro pode ser encontrado no mito das cinco raccedilas de

Hesiacuteodo530 no qual eacute possiacutevel identificar uma espeacutecie de ordenamento cronoloacutegico

que certamente foi baseado nas antigas narrativas orais que estavam disponiacuteveis em

seu tempo Diante disso surge as seguintes questotildees que geram debates

interminaacuteveis entre os especialistas 1) o que de fato constituiu a idade heroica531

mencionada pelo poeta 2) podemos compreendecirc-la a partir de certas condiccedilotildees

soacutecio-poliacuteticas que podem ter ocorrido entre a idade do bronze e das trevas 3) o

elemento histoacuterico factual eacute essencial para o desenvolvimento da narrativa heroica

dos antigos aedos A disposiccedilatildeo metoacutedica que o poeta organizou entre cada fase do

seu mito nos leva a tendecircncia de aceitarmos a sua exposiccedilatildeo como uma histoacuteria

vaacutelida pois dentro desse contexto a palavra do poeta natildeo poderia ser de forma

alguma colocada em duacutevida

Logo esse tipo de narrativa pocircde ser utilizado para diferentes fins

Posteriormente a palavra do poeta comeccedilou a ser utilizada como justificaccedilatildeo de

algum parentesco divino para fornecer privileacutegios poliacuteticos532 ou ateacute mesmo

construir a imagem negativa de alguma personalidade ou cidade Certamente esse

era um dos pontos que levou Platatildeo533 a condenar a poesia em seu tempo com todas

527 Ibidem 528 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 529 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo 530 Vide o Trabalho e os dias de Hesiacuteodo 531 Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (versos 156) 532 Eacute criacutevel que esse tipo de atitude tambeacutem ocorresse em seus primoacuterdios para a fundamentaccedilatildeo divina durante as teocracias em vaacuterias outras civilizaccedilotildees Mas com a abertura poliacutetica ocorrida na Greacutecia apoacutes o periacuteodo arcaico No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro DETIENNE M ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 533 Vide Platatildeo Goacutergias (501 d ndash 502 c) Nessa passagem podemos encontrar uma criacutetica do filoacutesofo sobre o uso do acompanhamento musical que estava sendo utilizado para agradar a plateia Esse fato indica essas transformaccedilotildees que indicamos anteriormente

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as suas forccedilas pois o efeito colateral desse tipo de distorccedilatildeo que aparece apoacutes a

perda do seu caraacuteter sagrado produziu um terriacutevel efeito 534 em todo territoacuterio grego

A condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte eacute um exemplo claro de como a funccedilatildeo poeacutetica

tornou-se uma arma perigosa nas matildeos ou bocas erradas Logo o filoacutesofo teve que

passar pelo seu crivo criacutetico toda a obra de Homero pois todos os artiacutefices da

palavra buscavam no primeiro pedagogo grego a sua inspiraccedilatildeo e apoio

Consequentemente todo o aspecto solene da poesia que era voltado para uma

praacutetica de cunho sagrado e milenar comeccedila a perder a sua roupagem divina e

adquiriu uma forma mais humanizada a partir das transformaccedilotildees poliacuteticas que

comeccedilaram a ocorrer apoacutes a idade das trevas Durante o periacuteodo claacutessico por

exemplo essa atividade jaacute trazia em seu bojo diversas inovaccedilotildees que estavam

modificando o seu antigo caraacuteter pedagoacutegico para um instrumento de mera

publicidade nas matildeos de oradores profissionais que cobravam pelas apresentaccedilotildees

em puacuteblico O surgimento do movimento sofista que eacute um reflexo da abertura

democraacutetica que ocorreu em algumas cidades como Atenas tambeacutem foi um fator

relevante para a remodelaccedilatildeo de sua forma e uso A proacutepria atividade dos rapsodos

que jaacute natildeo utilizavam acompanhamento musical em suas apresentaccedilotildees eacute fruto

dessas novas transformaccedilotildees culturais e econocircmicas E essa eacute sem duacutevida uma das

caracteriacutesticas mais importantes que podemos detectar desse processo de

distanciamento da praacutetica dos antigos aedos535 desde a sua origem

Outra temaacutetica que estava associada nesse tipo de expressatildeo poeacutetica satildeo as

viagens como a epopeia da Odisseia de Homero que foi protagonizada pelo grande

heroacutei de Iacutetaca o astuto Odisseu Aliaacutes esse tipo de gecircnero eacute sem duacutevida o primeiro

road movie536 que teve origem nos contos populares que desempenhou tambeacutem uma

importante funccedilatildeo didaacutetica entre os gregos Dentro desse contexto o ordenamento

serial eacute estabelecido com uma precisatildeo topograacutefica e histoacuterica537 tatildeo

impressionante que no ano de 1870 o arqueoacutelogo alematildeo Heinrich Schliemann a

534 Vide a comeacutedia As nuvens de Aristoacutefanes Nessa obra o comedioacutegrafo pintou uma imagem negativa da figura de Soacutecrates que para o proacuteprio foi determinante para a sua condenaccedilatildeo agrave morte Nesse sentido Platatildeo como grande pensador criacutetico que era sentiu a necessidade de analisar esse efeito colateral da poesia de modo minucioso em seu tempo em diaacutelogos como o Iacuteon Goacutergias e a Repuacuteblica 535 Vide Homero Odisseia (Canto VIII 62-68) 536 No cinema eacute um gecircnero no qual um filme se desenvolve a partir de alguma viagem 537 Como uma narrativa popular

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partir da descriccedilatildeo minuciosa oferecida pelos versos de Homero conseguiu

localizar um siacutetio arqueoloacutegico na regiatildeo da Turquia que teria sido o cenaacuterio onde

ocorreu a guerra de Micenas contra Troacuteia Esse tipo de descoberta levou o

arqueoacutelogo alematildeo a defender a tese do valor histoacuterico da obra homeacuterica538

Independentemente das inuacutemeras polecircmicas em torno dessas questotildees que

foram levantadas a poesia eacutepica originalmente foi aprimorada para atender uma

demanda coletiva539 ateacute o momento de se tornar uma referecircncia para o surgimento

de outros gecircneros na literatura grega Na sua origem essa narrativa tinha como

espelho a experiecircncia da violecircncia que foi obtida nos campos de batalha A accedilatildeo

vitoriosa era contrastada com as inuacutemeras derrotas E a partir dessa constataccedilatildeo a

poesia vai pavimentando todo um horizonte possiacutevel para a instauraccedilatildeo de uma

sociedade forte e proacutespera atraveacutes das cinzas do passado A coragem e a nobreza

eram fomentadas no caso homeacuterico para incutir nas almas uma disposiccedilatildeo afetiva

que deveria guiar a moral da cultura helecircnica com o intuito de encontrar a harmonia

necessaacuteria para encontrar o equiliacutebrio social e poliacutetico A poesia heroica estabelece

o seu imperativo categoacuterico para apresentar essas virtudes cardeais que satildeo

esculpidas por cada aedo em suas respectivas sociedades Mas para o seu alcance

efetivo o poeta precisa estar afinado com o seu contexto histoacuterico de origem O

conhecimento do passado ou pelo menos dos fatos mais marcantes apontam as

suas diretrizes fundamentais O encantamento e o vigor de cada obra composta satildeo

o resultado das lembranccedilas amargas e vitoriosas que repousam nas almas de cada

homem que compartilham o desejo de superaccedilatildeo em prol de um futuro promissor

Nesse sentido o poeta eacute o termocircmetro das tensotildees sociais e poliacuteticas O seu ofiacutecio

eacute intermediar todos os conflitos e devolver para o povo uma obra que possa se

538 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SCHLIEMANN H ldquoIacutetaca o Peloponeso e Troia pesquisas arqueoloacutegicasrdquo Traduccedilatildeo Cyntia Baumgart Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1992 Nesse sentido para quem defende o valor factual da narrativa homeacuterica poderaacute aceitar a narrativa de Hesiacuteodo como veriacutedica 539 Ou atender uma determinada classe ou famiacutelia poliacutetica E esse eacute tambeacutem um traccedilo que vem desde a realeza minoica e micecircnica Com as inuacutemeras transformaccedilotildees sociopoliacuteticas na Greacutecia houve uma abertura cultural que promoveu o acesso dessa atividade para as classes emergentes que podemos encontrar por exemplo no valor vinculado ao trabalho que foi desenvolvido por Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias Haacute ainda uma grande polecircmica em saber como esses antigos aedos eram preparados para exercer esse ofiacutecio Eacute bem provaacutevel que houvesse uma formaccedilatildeo bem riacutegida para a escolha desses mestres da verdade Seja como for posteriormente essa atividade vai perdendo aos poucos o seu caraacuteter sagrado para se tornar uma profissatildeo de uso particularizado que promovia genealogias em troca de dinheiro Logo para avaliarmos essa atividade poeacutetica eacute muito importante estabelecer o recorte do contexto histoacuterico

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utilizada para educar os homens de modo eficiente e belo no caminho da virtude

Com o passar do tempo essa forccedila propulsora da accedilatildeo humana vai se

transformando em um novo tipo de discurso540 que seraacute a marca dos novos

pedagogos que vatildeo disputar de modo feroz a coroa do grande aedo Homero na

Greacutecia arcaica

48 Loacutegos 541

Apoacutes as turbulentas mudanccedilas oriundas da idade das trevas os remanescentes

da antiga civilizaccedilatildeo micecircnica experimentaram a mesma sensaccedilatildeo que um dia o

grande Priacuteamo sentiu quando viu todo o seu legado que foi construiacutedo pelos seus

antepassados ser consumido pelo fogo O espanto produzido nesse instante antes

da morte natildeo passou despercebido pelo olhar perspicaz de Aristoacuteteles542 Esse

mesmo elemento divino que segundo o mito de Protaacutegoras543 o grande titatilde

Prometeu roubou para oferecer aos homens que eram desprovidos de habilidades

em relaccedilatildeo aos outros animais544 Sem esse tipo de instrumento a humanidade natildeo

teria nenhuma chance na luta por sua sobrevivecircncia no mundo De modo alegoacuterico

esse mito fornece uma explicaccedilatildeo da origem humana de modo amplamente

estruturado O ponto interessante eacute que o fogo reuacutene em si o poder de criaccedilatildeo e

destruiccedilatildeo que satildeo caracteriacutesticas inerentes da proacutepria Natureza545 linguagem546 e

da razatildeo547 Aliaacutes um pouco antes do sofista o filoacutesofo Heraacuteclito afirmara548 a

relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que satildeo aspectos desse elemento primordial549

540 Λόγοςloacutegos 541 Nos primeiros capiacutetulos do presente trabalho esse termo tambeacutem foi abordado pois era impossiacutevel analisar determinados ponto da histoacuteria do pensamento grego sem mencionaacute-lo 542 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1100 a ndash 5) 543 Vide Platatildeo Protaacutegoras (320 c) 544 Ibidem 545 Φύσις phyacutesis 546 Vide Sexto Empiacuterico Contra os professores ( livro I 42) 547 Λόγοςloacutegos 548 Vide Diels-Krans Heraacuteclito fragmento 30 549 Aρχή archeacute ndash origem comeccedilo Para os antigos filoacutesofos preacute-socraacuteticos a archeacute eacute o elemento primordial que deveria participar de todos os processos da existecircncia no mundo Para Heraacuteclito por exemplo o fogo era um elemento puro que deveria fazer parte de todas as coisas Enquanto que para o filoacutesofo Tales de Mileto esse elemento essencial era a aacutegua Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do nosso presente trabalho

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que originou todas as coisas A forccedila que eacute utilizada na guerra550 em grandes escalas

para gerar a morte eacute em contrapartida a mesma que fornece a vida atraveacutes do calor

do sol e quando bem dominada para o uso da metalurgia Ao domesticaacute-la o

homem pocircde utilizaacute-la para inuacutemeros fins atraveacutes do desenvolvimento da

tecnologia551 no mundo antigo Desde do primeiro espanto que despertou no

homem primitivo uma capacidade de reflexatildeo sobre a sua fraacutegil condiccedilatildeo mortal552

a sua forma de olhar a natureza natildeo foi a mesma Desde entatildeo a sua trajetoacuteria foi

construiacuteda a partir do bom uso dessa daacutediva divina que abrange o nosso modo de

expressatildeo e accedilatildeo que deve sempre buscar a excelecircncia553atraveacutes da vida em

comunidade

Mas essa foi uma conquista que foi adquirida com o passar de inuacutemeras

experiecircncias amargas e vitoriosas desde a sua preacute-histoacuteria que marcou

profundamente o processo de subjetividade coletivo (FINLEY 1990) Para os

gregos do periacuteodo homeacuterico por exemplo todos os barcos os utensiacutelios de

ceracircmica instrumentos musicais e as ferramentas que foram deixadas por seus

predecessores eram como fotogramas deixados por seus ancestrais de grandes

gloacuterias As enormes paredes das fortalezas preacute-histoacutericas foram explicadas pelos

gregos como um trabalho realizado pelo engenho dos Ciclopes554(WEDEKING

1968) e a duacutevida que paira sobre esse ponto eacute saber qual seria a real motivaccedilatildeo para

a construccedilatildeo desse tipo de relato555 Seja como for as imagens esculpidas parecem

visar uma forma de expressatildeo espantosa556 que certamente foram uacuteteis para

repassaacute-las de modo eficiente atraveacutes da memoacuteria das crianccedilas557 O mais

550 Os militares gregos utilizavam armas incendiaacuterias no campo de batalha no acircmbito terrestre e naval Para mais informaccedilotildees vide Tuciacutedides ldquoA guerra do Peloponesordquo (livro IV cap 100) Esse tipo de ambiente marcado pela guerra que encontramos na epopeia homeacuterica certamente influenciou o pensamento de muitos pensadores antigos como Anaximandro de Mileto Vide Diels-Krans Anaximandro fragmento 1 551 Τέχνες techneacute 552 Vide os nossos apontamentos no primeiro capiacutetulo 553 Ἀρετή aretecirc 554 Vide Homero Odisseia (Canto IX) 555 A nossa hipoacutetese eacute que esse tipo de relato poderia ser utilizado para facilitar o processo mnemocircnico entre as crianccedilas Posteriormente veremos uma importante passagem de Platatildeo na Repuacuteblica no qual o filoacutesofo revela a utilidade desse meio de expressatildeo no processo educativo 556 O mesmo efeito que as faacutebulas de Esopo despertam nas crianccedilas 557 Esse tipo de procedimento estaacute descrito de modo minucioso no livro II da Repuacuteblica (377 a ndash e) por Platatildeo Para o filoacutesofo essa eacute uma forma eficiente de moldar o caraacuteter das crianccedilas Nesse sentido a poesia ou educaccedilatildeo musical eacute apresentada como um instrumento uacutetil para atender essa finalidade Independentemente da sua criacutetica agrave poesia que aparece nesse contexto ele natildeo descarta o uso das faacutebulas para fins pedagoacutegicos E esse certamente eacute um traccedilo que vem da pedagogia da

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interessante eacute poder notar a riqueza de rastros histoacutericos que posteriormente

tornaram-se a mateacuteria prima de uma remodelaccedilatildeo que apresenta o poder da razatildeo

criadora helecircnica para a construccedilatildeo de um novo horizonte

A arquitetura dos grandes palaacutecios multicoloridos onde restos visiacuteveis de sua

antiga imponecircncia estavam ainda preservados foi uma heranccedila inspiradora para a

narrativa da poesia homeacuterica que reuniu todas essas lembranccedilas materiais e que

sem sombra de duacutevida foi essencial para a reconfiguraccedilatildeo cultural helecircnica tendo

o conflito como o pano de fundo desse cenaacuterio558 Nesse sentido eacute possiacutevel detectar

o esforccedilo para a conservaccedilatildeo dessa memoacuteria viva559 que engloba natildeo apenas o

espaccedilo fiacutesico mas as inuacutemeras guerras vivenciadas que foram uacuteteis na elevaccedilatildeo de

uma nova forma de organizaccedilatildeo social que partiu do olhar atencioso sobre o seu

rico passado para a pavimentaccedilatildeo do presente e do futuro Logo era necessaacuterio

revisitar continuamente essas lembranccedilas pois ameaccedila de uma nova cataacutestrofe era

algo permanente entre os remanescentes da cultura micecircnica

A precauccedilatildeo depois de uma terriacutevel experiecircncia oriunda da guerra ou de

ordem natural promoveu um choque que deixou profundas marcas no corpo social

sobrevivente E a partir disso era necessaacuterio estabelecer uma forma narrativa mais

enxuta que trouxesse a economia e a frieza da loacutegica militar para o seio da sociedade

como um todo No qual a precisatildeo factual e a objetividade agissem juntas como um

criteacuterio essencial para a construccedilatildeo soacutelida de todo legado cultural necessaacuterio para

manter a sobrevivecircncia do povo Como foi exposto por noacutes anteriormente560 a

literatura grega em seus primoacuterdios foi marcada por um tipo de transmissatildeo verbal

que natildeo impedia nem facilitava561 a transmissatildeo de informaccedilotildees emoccedilotildees ou ideias

(COLE 1991) Posteriormente com a reconfiguraccedilatildeo poliacutetica durante o periacuteodo

arcaico comeccedilou a surgir entre os gregos uma preocupaccedilatildeo mais riacutegida em relaccedilatildeo

tradiccedilatildeo oral Ou seja nos deparamos com mais um elemento que prova um elo de continuidade a partir da tradiccedilatildeo antiga durante o periacuteodo claacutessico [Rep 377α] ldquoπαιδευτέον δ᾽ ἐν ἀmicroφοτέροις πρότερον δ᾽ ἐν τοῖς ψευδέσιν οὐ microανθάνω ἔφη πῶς λέγεις οὐ microανθάνεις ἦν δ᾽ ἐγώ ὅτι πρῶτον τοῖς παιδίοις microύθους λέγοmicroεν τοῦτο δέ που ὡς τὸ ὅλον εἰπεῖν ψεῦδος ἔνι δὲ καὶ ἀληθῆ πρότερον δὲ microύθοις πρὸς τὰ παιδία ἢ γυmicroνασίοις χρώmicroεθα ἔστι ταῦτα τοῦτο δὴ ἔλεγον ὅτι microουσικῆς πρότερον ἁπτέον ἢ γυmicroναστικῆς ὀρθῶς ἔφηrdquo Por uacuteltimo eacute importante ressaltar que no texto grego eacute possiacutevel notarmos que o filoacutesofo considera essa ferramenta pedagoacutegica utilizando as faacutebulas (παιδίοις microύθους) como a primeira parte da educaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica (microουσικῆς) 558 Vide o subcapiacutetulo anterior 559 Os materiais arqueoloacutegicos 560 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 561 Vide o caraacuteter hermeacutetico dos antigos oraacuteculos

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ao controle do meio de transmissatildeo da informaccedilatildeo que pudesse evitar interpretaccedilotildees

equivocadas e superar o choque contraditoacuterio de ideologias562 Como explicitou

Jean-Pierre Vernant (VERNANT 1962) com o surgimento da polis entre os

seacuteculos VIII e VII o homem grego se depara com uma extraordinaacuteria valorizaccedilatildeo

da palavra em relaccedilatildeo aos outros instrumentos de poder Ou seja ela ganha uma

roupagem nova para impor o seu controle das principais funccedilotildees do Estado Nesse

momento o poder de comunicaccedilatildeo foi exaltado mais uma vez apresentando

algumas carateriacutesticas que contribui fielmente ao seu novo contexto

O mito e o eacutepos que antes representavam em sua mais distante origem uma

forma de accedilatildeo e expressatildeo que estava calcada na forccedila da memoacuteria presente na

tradiccedilatildeo oral comeccedila apresentar sinais de desgaste a partir da nova remodelaccedilatildeo

poliacutetica e cultural que ocorreu no periacuteodo arcaico Dentro desse novo contexto

surge o terceiro termo irmatildeo que possibilitou aos gregos uma capacidade de

expressatildeo mais metoacutedica e soacutebria chamada loacutegos563 que adiciona mais um

importante capiacutetulo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo helecircnica Antes desse momento a

palavra do aedo estava envolvida em uma ritualidade compatiacutevel com o caraacuteter

sagrado e fechado que era vinculado ao poder teocraacutetico das antigas realezas Com

a sua decadecircncia ela reaparece afirmando o confronto de ideias que necessita seguir

os criteacuterios da argumentaccedilatildeo e persuasatildeo564 O puacuteblico tornou-se o soberano que

vai decidir entre os dois argumentos conflitantes na praccedila puacuteblica A verdade seraacute

o fruto doce saboreado pelo vencedor Nesse novo espaccedilo o termo loacutegos vai

coexistir de modo ambiacuteguo em um primeiro momento com o mito e o eacutepos565 e

no discurso dos primeiros filoacutesofos e retoacutericos

562 Vide a obra de Tuciacutedides 563 Para mais informaccedilotildees sobre a ocorrecircncia de uso desse termo na liacutengua grega vide o nosso anexo Na obra homeacuterica soacute haacute apenas duas ocorrecircncias do uso desse termo A primeira aparece na Iliacuteada (canto XV vv 393) e na Odisseia (canto I vv 56) Dentro desses dois contextos o poeta parece utilizar esse substantivo com o sentido de discurso Para o ato de fala ele utiliza eacutepos e mito A partir de Hesiacuteodo eacute que o termo loacutegos parece ganhar uma carga semacircntica similar aos outros termos Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (vv 106-107) Nesse contexto o poeta campesino utiliza o termo de modo diferenciado Aliaacutes dentro das suas obras disponiacuteveis encontramos a recorrecircncia do uso desse termo em cinco momentos na Teogonia (vv 229 890) e Os trabalhos e os dias (vv 78 106 789) De modo comparativo eacute perceptiacutevel que entre as obras dos dois poetas haacute um aumento gradativo do uso e o deslocamento semacircntico 564 Nesse sentido ela ainda guarda importantes caracteriacutesticas da antiga tradiccedilatildeo oral Sobre esse assunto gostariacuteamos de indicar a leitura do seguinte livro COLE Thomas ldquoThe Origins of Rhetoric in Ancient Greecerdquo Baltimore Johns Hopkins UP 1991 565 Vide os nossos apontamentos nas notas anteriores

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Eacute importante ressaltar que a origem desse termo na liacutengua grega ainda

fomenta inuacutemeros debates pois o sentido atribuiacutedo na antiguidade eacute extensamente

amplo 566 Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1992) o limite semacircntico entre

esses termos na antiguidade eacute muito controverso mas pode ser localizado com um

novo sentido pela primeira vez na doxografia preacute-socraacutetica em um fragmento do

poeta filoacutesofo Xenoacutefanes de Coacutelofon567 que parece estabelecer uma sutil

diferenciaccedilatildeo para delimitar a fronteira entre o mundo humano e divino568 A partir

do seu estudo sobre a Natureza ele tornou-se um criacutetico contumaz da religiatildeo

tradicional e popular Talvez tenha sido junto com Heraacuteclito um dos primeiros

pensadores a agir de modo contundente contra o senso comum da eacutepoca569 Eacute

importante ressaltar que esse fenocircmeno entre os primeiros filoacutesofos natildeo ocorreu de

modo uniforme Em Empeacutedocles570 por exemplo nota-se que o filoacutesofo de

Agrigento ainda continua estabelecendo o diaacutelogo entre todos esses termos em sua

obra Para Jean Bollack (BOLLACK 1965) os deuses satildeo utilizados de modo

simboacutelico para caracterizar os elementos primordiais da Natureza De qualquer

modo o filoacutesofo poeta italiano em seus fragmentos ainda ecoa o encantamento

solene das antigas musas que eram autoridades invocadas para validar esse tipo de

discurso na esfera religiosa Mesmo que possamos identificar como afirma Jean

Bollack o rigor e a estruturaccedilatildeo encadeada entre suas ideias natildeo podemos deixar

de verificar o uso da mesma linguagem poeacutetica homeacuterica para expressar a sua visatildeo

sobre a Natureza571

566 Ibidem 567 Vide Diels-Krans Xenoacutefanes fragmento I 13- 4 568 A expressatildeo in loco eacute ldquoευφηmicroοις microυθοιζ και καθαροισι λογοιςrdquo 569 Esse tipo de postura posteriormente influenciou a escola socraacutetica e epicurista 570 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra BOLLACK J ldquoEmpeacutedoclerdquo (Volumes 1ndash4) Paris Les Editions Minuit 1965ndash1969 571 Vide as nossas consideraccedilotildees no primeiro capiacutetulo

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5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo

51 A fala livre

A liberdade de fala foi um dos pontos cruciais no surgimento e

desenvolvimento da polis na Greacutecia entre os seacuteculos VII e VI Nesse momento a

palavra572 que antes era o instrumento que atuava na esfera religiosa para o

controle e organizaccedilatildeo da realeza micecircnica apoacutes a sua queda passa a ser o

fundamento que vai orientar a vida poliacutetica dessa nova sociedade que surge das suas

ruiacutenas O seu poder miacutestico encantatoacuterio e curador de outrora vai sugerir um

discurso mais soacutebrio que ainda traz em seu bojo algumas dessas caracteriacutesticas que

se somam a uma poderosa capacidade de conexatildeo entre as almas que seraacute utilizada

com o objetivo de fundar o pilar da Democracia em Atenas573 Sem esse poder de

adesatildeo a base dessa nova organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica estaria totalmente

comprometida

Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1967) apoacutes a queda do impeacuterio

micecircnico essa palavra maacutegico-religiosa foi sendo substituiacuteda gradativamente pela

palavra-diaacutelogo A diferenccedila fundamental que existe entre esses dois tipos de

experiecircncia da fala (eposmythos e logos) eacute que enquanto a primeira estava

vinculada a uma esfera religiosa que expressava valores simboacutelicos onde a sua

eficaacutecia era atemporal como uma daacutediva oriunda do mundo divino concedida para

alguns poucos mortais a palavra-diaacutelogo que eacute diametralmente oposta assinala o

processo de laicizaccedilatildeo ou distanciamento que marca esse periacuteodo de transiccedilatildeo entre

duas formas de organizaccedilatildeo poliacutetica que ocorreu entre o periacuteodo micecircnico e o iniacutecio

572 Havia trecircs termos para expressar o ato de falar na antiguidade Epos Mythos e Logos (Μύθος έπος και λόγος) Os dois primeiros satildeo utilizados no periacuteodo homeacuterico enquanto que o segundo surge no periacuteodo que a Filosofia comeccedila a dar os seus primeiros passos 573 A retoacuterica surgiraacute nesse momento para desempenhar a funccedilatildeo de coesatildeo e adesatildeo poliacutetica Para Pierre Vidal-Naquet a relaccedilatildeo entre a assembleia e o povo comeccedila em 650 em Esparta a partir dos relatos de Plutarco vida de Licurco cap 6 e tambeacutem do poeta Tirteu fragmento 4 Vide Pierre Vidal Naquet ldquoOs gregos os historiadores a democraciardquo pp 173 Todavia o nosso presente recorte contextual baseia-se em sua maior parte sobre a experiecircncia ateniense

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das primeiras polis Esse tipo de logos se inscreve agora no tempo histoacuterico574 que

estaacute vinculado diretamente agrave accedilatildeo que constitui a organizaccedilatildeo do mundo humano

sem a interferecircncia divina Apoacutes a retirada de todas as suas caracteriacutesticas maacutegico-

religiosas essa palavra torna-se um bem puacuteblico e ganha uma autonomia que visa

atender aos interesses desse novo grupo social que foi formado por uma casta de

homens especialistas na arte da guerra575 que passa a atuar de modo efetivo nas

deliberaccedilotildees das questotildees poliacuteticas nesse novo espaccedilo social Esses guerreiros

desempenhavam desde a antiga monarquia micecircnica a funccedilatildeo de proteger e

defender os interesses da realeza Antes essa funccedilatildeo estava concentrada apenas nas

matildeos do rei576 pois ele era o uacutenico que detinha o total comando do exeacutercito real

Posteriormente essa responsabilidade passa a ser designada para as matildeos de um

general577 e a partir dessa transferecircncia ocorre uma profunda transformaccedilatildeo no

574 Sobre esse ponto o exemplo mais notaacutevel eacute o surgimento da obra de Tuciacutedides Diferentemente do seu predecessor Heroacutedoto o seu livro ldquoA histoacuteria da guerra do Peloponesordquo inaugura uma visatildeo mais soacutebria sobre o passado e um distanciamento do pensamento miacutetico Para Vernant (Origens do pensamento grego cap III) eacute nesse momento que o homem toma consciecircncia da distinccedilatildeo entre o passado e o presente Ou seja haacute uma mudanccedila no aspecto psicoloacutegico Esse tambeacutem eacute o periacuteodo que desaparece o rei divino e surge uma diferenccedila intransponiacutevel entre a esfera humana e divina E satildeo esses os aspectos que apontam para uma nova configuraccedilatildeo soacutecio-poliacutetica que se distacircncia dos antigos misteacuterios e que possibilita o surgimento do loacutegos e da polis Vale lembrar que esse distanciamento natildeo foi integral A classe aristocraacutetica ainda utilizava a teologia homeacuterica para garantir o funcionamento da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Posteriormente essa conduta vai gerar uma terriacutevel crise social entre os gregos 575 Para os gregos a guerra eacute um fenocircmeno natural (Φύσιςphyacutesis) do mundo As suas cidades-estados (polis) eram organizadas em pequenos grupos que brigavam entre si para manter a sua independecircncia e afirmar a sua supremacia Logo a guerra torna-se uma expressatildeo normal de rivalidade que era importante para modular a relaccedilotildees poliacuteticas (interna e externa) entre os gregos O espiacuterito de luta eacute o paracircmetro primordial para os mais diversos aspectos da civilizaccedilatildeo helecircnica entre eles os principais satildeo 1) na relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos 2) entre as famiacutelias 3) os estados 4) nos jogos oliacutempicos 5) no tribunal 6) nos debates da assembleia 7) na Educaccedilatildeo 8) no campo de batalha No proacuteprio idioma podemos encontrar indiacutecios de como os gregos reconhecem esse importante fenocircmeno da guerra (poacutelemos πόλεmicroος eacuteris Ἔρις e neikos Νεῖκος) Aliaacutes o confronto entre duas forccedilas eacute apresentado por Anaximandro e tambeacutem o poeta Hesiacuteodo apresenta a guerra como as raiacutezes do mundo (Os trabalhos e os dias v15 e 20) e que o grande Heraacuteclito celebra como pai e rei de todo o universo (fragmento 53) Para mais informaccedilotildees sobre esses pontos recomendamos a leitura do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 576 Haacute dois termos utilizados para rei e eles satildeo Anaacutex (ἄναξ) e Basileus (βασιλεύς) O primeiro que eacute mais arcaico refere-se ao periacuteodo micecircnico onde o rei tinha o total poder poliacutetico militar e religioso nas suas matildeos Ele tinha natildeo apenas o controle do poder poliacutetico mas tambeacutem o poder agriacutecola e de todo o rebanho Esse termo foi encontrado por um grupo de arqueoacutelogos pela primeira vez nas pequenas tabuinhas chamadas ldquoLinear Brdquo Esses achados continham registros contaacutebeis da produccedilatildeo agriacutecola da civilizaccedilatildeo micecircnica Em Homero esses dois termos satildeo utilizados em diversos momentos do poema Curiosamente anaacutex que eacute o termo mais arcaico eacute utilizado para referir-se ao rei dos reis- ou chefe de homens-Agamecircmnon (Vide Iliacuteada canto I v 5) E a partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer uma hierarquia entre o emprego semacircntico desses dois termos O primeiro como mais antigo e mais poderoso eacute o soberano que estaacute acima de todos os outros basileus 577 Polemarkhos (πολεmicroαρχος)

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interior da organizaccedilatildeo da antiga monarquia micecircnica Na Iliacuteada de Homero578

que parece retratar um periacuteodo histoacuterico posterior579 eacute possiacutevel encontrar ecos

dessa crise de poder que ocorreu na realeza e que perdurou ateacute o iniacutecio do

surgimento das primeiras polis Esse fato natildeo passou despercebido aos olhos atentos

da poesia homeacuterica No canto I por exemplo podemos encontrar logo no iniacutecio

dos primeiros versos do poema uma terriacutevel desavenccedila entre o rei dos reis (anaacutex)

Agamecircmnon que lidera o povo aqueu contra os troianos e o chefe dos mirmidotildees

o famoso guerreiro Aquiles Essa contenda que chama a nossa atenccedilatildeo ao iniciar a

leitura da obra descreve de modo claro o enfraquecimento do poder do antigo rei

(anaacutex) Em alguns desses memoraacuteveis versos podemos detectar tambeacutem que a

virtude580 para governar outros homens natildeo poder ser fundada apenas no sangue

(genos) como ocorria nos primoacuterdios do periacuteodo arcaico mas em virtudes581 como

a coragem e honra A seguir veremos uma passagem onde a poesia de Homero

utiliza a personagem de Aquiles para demonstrar a covardia e a vileza de um rei

ilegiacutetimo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOlho de catildeo e coraccedilatildeo de cervo Bronco de vinho Nunca ousaste armado com teu povo enfrentar um combate nem seguiste os bravos na luta de emboscadas Tens pavor agrave morte

Mais faacutecil eacute no vasto campo dos Aqueus

esbulhar do seu bem a quem te contradiz

Devora-Povo Rei do Dacircnaos Rei de nada582

O modo ofensivo como Aquiles se dirige a Agamecircmnon nesses versos jaacute

apresenta o natildeo reconhecimento dele como o seu rei Eacute notoacuterio aqui a total falta de

competecircncia do soberano para comandar um de seus subordinados Aleacutem disso

nem mesmo atuando atraveacutes da opressatildeo despoacutetica ele consegue subjugar a vontade

578 HOMERO ldquoIliacuteada canto I 579 Essa eacute a hipoacutetese defendida por Pierre Vidal- Naquet no primeiro capiacutetulo do seguinte livro Le monde drsquoHomegravere Ed Perrin 2002 580 Aretecirc (ἀρετή) 581 Ibidem Aretecirc (ἀρετή) eacute excelecircncia e virtude Ao decorrer da histoacuteria grega esse termo foi assimilando outros sentidos Na sua origem essa palavra estaacute associada a raiz do mesmo termo que originou a palavra aristocracia que carrega consigo os seguintes sentidos superioridade competecircncia e habilidade 582 HOMERO ldquoIliacuteada canto I v 225 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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do nobre guerreiro E isso eacute um erro graviacutessimo que foi exposto de modo alusivo

em diversos pontos do poema homeacuterico Sobretudo em momentos de crise o

governante precisa demonstrar a sua bravura e honra para seus aliados e seus

inimigos pois esses satildeo dois pressupostos sine qua non para o ato de governar e

garantir o bem-estar dos seus suacuteditos O fato de um rei como acontece no caso de

Menelau e de Agamecircmnon depender da forccedila de outro homem para recuperar a

esposa que foi roubada pelo jovem Paacuteris jaacute denota na Iliacuteada uma anomalia que

levou a uma crise institucional que pode ter sido um dos fatores que corroborou

para a dissoluccedilatildeo da realeza micecircnica De qualquer modo eacute importante ressaltar

que esse periacuteodo onde encontramos diversos reis disputando a posse da bela Helena

eacute um momento em que as monarquias - pelo menos no contexto grego - jaacute eram

auxiliadas por conselhos583 que foram formados por outros reis ou chefes de

governo com o intuito de deliberar sobre diversas questotildees estrateacutegicas do acircmbito

poliacutetico e militar Aliaacutes eacute dentro desse contexto que o proacuteprio Agamecircmnon eacute

escolhido para liderar os aqueus na guerra contra Troacuteia que tinha como soberano o

nobre Priacuteamo Ou seja nesse momento natildeo haacute mais a figura de um rei supremo que

toma as decisotildees sozinho Esse talvez seja um dos pontos mais difiacuteceis para a

compreensatildeo desse periacuteodo entre os historiadores pois natildeo temos nenhum registro

contundente que demonstre os motivos pelos quais esse antigo regime entrou em

processo de colapso ou os fatores que deram o ensejo para o surgimento desses

conselhos Aleacutem das obras homeacutericas que mencionamos anteriormente as outras

poucas referecircncias que temos sobre esse momento obscuro da histoacuteria grega satildeo de

autores posteriores oriundos do seacuteculo IV e III aC de qualquer forma esses relatos

satildeo de extrema importacircncia para estabelecermos algumas hipoacuteteses plausiacuteveis No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um dos uacutenicos documentos que temos escritos sobre a

transiccedilatildeo entre esses dois momentos histoacutericos da poliacutetica grega

Aristoacuteteles na Constituiccedilatildeo dos atenienses584 apresenta em detalhes uma

estrutura poliacutetica - anterior ao tempo de Draacutecon ndash que nos ajuda a compreender esse

momento posterior ao absolutismo monaacuterquico e de transiccedilatildeo para a era arcaica

Essa constituiccedilatildeo poliacutetica era organizada em magistraturas que eram fundamentadas

583 Bouleacute (Βουλή) Vide nota 54 584 ARISTOacuteTELES Const dos atenienses 31

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a partir de dois criteacuterios o primeiro era o de ldquonobreza de nascimentordquo (genos)585

e o segundo era o da ldquoboa condiccedilatildeo econocircmicardquo586 Esses mandatos eram vitaliacutecios

mas depois passaram a durar por um periacuteodo de dez anos Os magistrados mais

importantes eram o rei (basileu)587 o general (polemarkhos)588e o arconte589

Atraveacutes dessa descriccedilatildeo de Aristoacuteteles - como noacutes jaacute haviacuteamos anunciado no

paraacutegrafo anterior ndash pode-se verificar que o governo jaacute natildeo estava mais centralizado

na figura de um uacutenico homem O que encontramos nesse momento eacute uma triparticcedilatildeo

do poder poliacutetico Ou seja uma diluiccedilatildeo da estrutura absolutista que era

fundamentada em bases religiosas desde o periacuteodo preacute-homeacuterico Segundo o

585 Esse criteacuterio era determinado por laccedilos de sangue que estavam ligados as principais famiacutelias (genos) que se assentaram nessa regiatildeo no periacuteodo preacute-helecircnico Fustel de Coulanges defende que a formaccedilatildeo familiar surge no acircmbito religioso Ou seja ela eacute mais uma associaccedilatildeo religiosa do que natural (tese de Aristoacuteteles) Para o historiador positivista francecircs a religiatildeo fez com que a famiacutelia formasse um uacutenico corpo nessa e na outra vida Enquanto que o helenista Hammond afirma que a organizaccedilatildeo social da comunidade no periacuteodo arcaico estava fundamentada em uma estrutura racial Logo cada ateniense que tivesse algum grau de parentesco com o rei Iacuteon pertencia ao grupo de philetai (membros dos quatros genos originais conhecidos como philai) phratores (membros das trecircs phratriai que eram divididas cada tribo) gennetai (membros dos genes que eram formadas cada fratria) e por uacuteltimo o oikeioi (membros das famiacutelias associadas por parentescos que formavam os genos que eram estruturadas a partir do oikos ou oikia) Enfim esse era um dos criteacuterios para a formaccedilatildeo da aristocracia que tinha o ldquodireitordquo de participar do conselho do areoacutepago Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros HAMMOND N G L ldquoStudies in greek historyrdquo Oxford1973 paacutegs 105-115 e tambeacutem FUSTEL DE COULANGES ldquoA Cidade Antigardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 paacuteg 44 586 Para esse segundo criteacuterio apontado por Aristoacuteteles haacute duas importantes pistas a primeira estaacute em Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso I -II) que afirma que desde os seus primoacuterdios Atenas sempre foi um lugar extremamente receptivo com os estrangeiros (metecosΜέτοικος) sobretudo com os refugiados que vinham de outras localidades pois eles tambeacutem pagavam altos tributos para permanecerem em Atenas Aliaacutes essa foi uma caracteriacutestica importante para o desenvolvimento econocircmico e social da cidade A segunda estaacute em um fragmento de Filoacutecoro (um antigo atidoacutegrafo) que foi citado por Foacutecio (Suda FGr Hist 328 F 35a) que diz o seguinte em relaccedilatildeo aos orgeones escreveu tambeacutem Filoacutecoro ldquoaos phratores cabe a obrigaccedilatildeo de acolher tanto os orgeones como os homogalaktes aos quais chamamos gennetairdquo Isso prova que havia algumas formas de afiliaccedilatildeo em Atenas que estava baseada em uma hierarquia social para o alcance da plena cidadania O mais interessante nesse fragmento eacute que Filoacutecoro parece nos sugerir que havia um tipo de mecanismo ndash e aqui eacute o ponto que estabelece a relaccedilatildeo com a passagem de Aristoacuteteles - que permitia integrar outras pessoas sem o parentesco sanguiacuteneo Esses homens eram conhecidos por gennetai homogalaktes (pessoas que foram amamentadas como o mesmo leitealimento) Ou seja essa expressatildeo idiomaacutetica indica o fato de haver pessoas que conviviam dentro da sociedade grega com alguns prestiacutegios sociais Certamente esse grupo gozava de vaacuterios privileacutegios em relaccedilatildeo aos outros estrangeiros Suspeitamos que essa filiaccedilatildeo fosse concedida tendo como um dos criteacuterios a condiccedilatildeo econocircmica do meteco 587 Em Homero e Hesiacuteodo tambeacutem eacute possiacutevel encontrar a utilizaccedilatildeo de um termo similar e mais arcaico para rei que eacute anax (ἄναξsenhor) 588 General o senhor da guerra 589 O arconte (arkhonαρχων) chefe era responsaacutevel pela organizaccedilatildeo juriacutedica na antiga Greacutecia Ele era uma espeacutecie de juiz que era ldquoencarregadordquo de estabelecer algumas leis importantes para manter o bom funcionamento dos principais oacutergatildeos do Estado em Atenas Ele tambeacutem participava nas decisotildees nos conselhos (bouleacute) e ao lado do rei conduzia o governo

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filoacutesofo o surgimento da figura do general (polemarkhos)590 marca o primeiro

movimento de transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo da antiga realeza Por uma falta de

ldquovocaccedilatildeordquo o rei ldquotransfererdquo 591 uma parte da sua autoridade para um general592 que

passa a cuidar dos assuntos militares Para ele o surgimento da figura de Iacuteon foi

responsaacutevel pela primeira grande transformaccedilatildeo da constituiccedilatildeo original Deste

modo esse incidente desencadeou um processo de mudanccedila poliacutetica que foi

importante para o surgimento de um governo que fosse organizado a partir de uma

base coletiva que foi constituiacuteda atraveacutes do emprego da palavra-diaacutelogo Mas antes

de falarmos dessa importante inovaccedilatildeo no campo da linguagem que possibilitou

590 Haacute ainda outro termo no grego para chefe do exeacutercito que a palavra estrategos (στρατηγός) No caso do polemarkhos (πολέmicroαρχος) era uma espeacutecie de comandante geral de diversas tropas O termo eacute uma junccedilatildeo de poacutelemos (πόλεmicroος) guerra + arkhon (αρχων) chefe = chefe ou senhor da guerra 591 A nossa hipoacutetese eacute de que essa ldquotransferecircnciardquo de poder possa ter ocorrido em um contexto muito difiacutecil e violento Essa posiccedilatildeo pode ser corroborada a partir das evidecircncias que encontramos nos relatos dos historiadores Heroacutedoto e Tuciacutedides e principalmente na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo de Aristoacuteteles que apresentam essas causas para a crise poliacutetica que surgiu depois desse periacuteodo Eacute possiacutevel que essa antiga realeza sofresse fortes pressotildees internas e externas E esses dois fatores podem ter gerado esse processo que levou o enfraquecimento da antiga monarquia Infelizmente natildeo temos registros doxograacuteficos que forneccedilam informaccedilotildees mais precisas de como e quando isso exatamente ocorreu 592 Esse eacute um ponto de extrema polecircmica entre os historiadores e helenistas pois segundo Aristoacuteteles o primeiro polemarkhos (senhor da guerra) teria sido Iacuteon (rei e fundador da Jocircnia) O nosso maior problema eacute que haacute diversas histoacuterias em torno dessa figura lendaacuteria Ou seja mais uma vez nos deparamos com a antiga confusatildeo existente entre a mitologia e histoacuteria pois ambas se misturam nesse ponto quando tentamos buscar informaccedilotildees mais precisas sobre a sua existecircncia Segundo o texto aristoteacutelico (Cons dos atenienses 32) os atenienses forccedilados pela ldquonecessidaderdquo chamaram o destemido Iacuteon para desempenhar uma funccedilatildeo que antes estava na matildeo do rei A polecircmica surge exatamente nesse momento pois natildeo sabemos em que contexto essa ldquotransiccedilatildeordquo aconteceu e nem as causas que obrigaram o rei abrir matildeo dessa importante funccedilatildeo militar (vide a nota anterior para essa questatildeo) e nem dados adicionais sobre a vida de Iacuteon De qualquer modo o que podemos inferir a partir das informaccedilotildees de Aristoacuteteles eacute que ele possa ter sido um dos atores que ajuda a promover a queda da antiga realeza As nossas maiores duacutevidas satildeo 1) quem foi Iacuteon 2) quem satildeo esses atenienses que clamam sua ajuda 3) seraacute que ele foi um grande guerreiro que saiu do povo A nossa suspeita caminha em direccedilatildeo desse uacuteltimo ponto pois o grande poeta Euriacutepides ndash que eacute conhecido na antiguidade por ter sido um dos primeiros a dessacralizar os mitos - escreveu uma peccedila sobre a sua vida que conta que ele era filho de Apolo mas foi abandonado quando crianccedila por sua matildee que se chamava Creusa Essa mulher era filha de Erecteu que segundo a mitologia foi um antigo rei de Atenas Aliaacutes existe ateacute hoje em Atenas um templo chamado Erecteion que foi feito em sua homenagem O mais curioso eacute que esse templo foi construiacutedo em estilo jocircnico que foi um povo que segundo os antigos historiadores teria sido criado pelo seu neto Iacuteon E mais uma vez a histoacuteria e o mito se confundem aqui De qualquer modo o relato mais concreto que temos sobre a sua vida encontramos em Aristoacuteteles que afirma (Cons dos atenienses ndash 422) que a primeira mudanccedila na constituiccedilatildeo original ocorreu atraveacutes de Iacuteon e de seus companheiros Ou seja eacute bem provaacutevel que esse general fosse originaacuterio de outra classe social que se opusesse ao governo e para essa hipoacutetese temos que nos basear nos textos fornecidos por Euriacutepides e sobretudo Aristoacuteteles Haacute alguns pontos nesses relatos que se coadunam de modo muito estranho Aliaacutes o filoacutesofo ainda acrescenta que o grande polemarco teria reunido as ldquoquatro tribosrdquo que escolheram os seus respectivos representantes De qualquer modo essa eacute uma questatildeo bem interessante para os historiadores pois aborda a distinccedilatildeo entre o mito e histoacuteria para os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro A ANDREWES ldquoThe Greek Tyrantsrdquo London Hutchinson 1956

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uma grande revoluccedilatildeo poliacutetica na Greacutecia eacute preciso apresentar um curioso aspecto

ocorrido nesse periacuteodo que corroborou para essa transformaccedilatildeo que deu a

possibilidade para o surgimento desse novo tipo de logos e ele reside na mudanccedila

de atuaccedilatildeo da casta dos nobres guerreiros nos campos de batalhas

52 A palavra e a bela accedilatildeo

Na poesia homeacuterica podemos encontrar vestiacutegios de uma eacutetica heroica que

ainda estava vinculada aos valores individuais que eram adquiridas em duelos

singulares onde cada participante deveria provar as suas competecircncias militares

para governar e ser respeitado pelos seus pares e suacuteditos (VERNANT 1962) Na

Iliacuteada essas disputas representavam natildeo apenas a sorte dos guerreiros mas o destino

de toda uma naccedilatildeo A habilidade coragem e astuacutecia593 eram qualidades exigidas

entres os homens e observadas e controladas pelos deuses oliacutempicos Aleacutem do poder

mnemocircnico que conserva em si as caracteriacutesticas essenciais para a formaccedilatildeo do

homem antigo (JAEGER 1936) A poesia homeacuterica traz em seu bojo todo o

imaginaacuterio desse pensamento mais arcaico594 que destaca algumas qualidades

morais e espirituais que ganham forma na accedilatildeo e no ethos595 do guerreiro grego de

modo integrado Independentemente da a-historicidade que muitos helenistas596

impotildee a poesia homeacuterica eacute notoacuterio que durante a passagem entre os periacuteodos

593 Techneacute andreas e meacutetis (Tέχνη Ἀνδρέας και Μῆτις) 594 No sentido de mais ldquoantigordquo e natildeo no sentido de periacuteodo histoacuterico 595 Ethos (ἔθος) caraacuteter moral 596 Para o helenista Geoffrey S Kirk (KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92) A eacutepica homeacuterica eacute uma construccedilatildeo ficcional que contecircm contribuiccedilotildees de diferentes periacuteodos histoacutericos que provavelmente pode estar situada entre um periacuteodo de 500 anos ou mais Para ele esse mundo fascinante apresentado pelo poeta natildeo tem semelhanccedila exata com qualquer cenaacuterio histoacuterico (sic) Poreacutem o proacuteprio helenista reconhece que eacute possiacutevel encontrar na literatura homeacuterica vaacuterios elementos que satildeo baseados em fatos histoacutericos que foram comprovados por alguns arqueoacutelogos atraveacutes de um estudo cuidadoso da Iliacuteada e da Odisseia que levaram a encontrar os vestiacutegios da cidade de Troacuteia e Micenas entre outros artefatos de guerra que comprovam alguns aspectos historiograacuteficos que podem ser obtidos atraveacutes dos poemas Logo para noacutes independentemente dessa polecircmica entre especialistas o mais importante eacute analisar uma forma de existir e pensar da cultura grega que pode ser constatada na literatura homeacuterica que pode nos ajudar na compreensatildeo entre a transiccedilatildeo do periacuteodo homeacuterico e arcaico no qual aparece o iniacutecio das primeiras polis

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homeacuterico arcaico e o claacutessico esses valores foram agregando outros contornos e

matizes Um exemplo desse fato pode ser constatado na poesia hesioacutedica que via o

trabalho como o valor mais importante para educaccedilatildeo dos trabalhadores

campesinos597 De qualquer modo desde Homero a Platatildeo podemos encontrar um

ponto em comum que perpassa por todo pensamento poeacutetico e filosoacutefico antigo e

ele reside na eacutetica pedagoacutegica que percorre vaacuterios momentos histoacutericos da cultura

grega que tinha como fundamento a busca pela excelecircncia de todos os seus

concidadatildeos

Desde os primoacuterdios da cultura helecircnica a negaccedilatildeo desse princiacutepio era o

sintoma da total decadecircncia humana No caso homeacuterico todos os valores

apresentados satildeo fortemente marcados pelo o sentido da guerra598 O desejo pela

conquista da honra era algo vital para todos os membros da aristocracia599 Esse

prestiacutegio soacute podia ser obtido atraveacutes do ldquoreconhecimentordquo de uma memoacuteria

coletiva que transmitia aos poetas os nomes de alguns poucos mortais que poderiam

ganhar a imortalidade atraveacutes do elogio ou censura600 A gloacuteria ou desgraccedila era

unicamente alcanccediladas pelas accedilotildees de alguns mortais que posteriormente se

tornariam versos que seriam cantados e declamados entre rapsodos e aedos por toda

a eternidade helecircnica Esses poemas traziam consigo o intuito de serem utilizados

como modelos (paradigmas) para educaccedilatildeo dos jovens aristocratas Curiosamente

esse traccedilo mais antigo da poesia ainda seraacute uma importante referecircncia para os

filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico601 O elogio e a censura se tornaratildeo palavras

chave para a eacutetica filosoacutefica que surge com o objetivo de nortear a vida social dos

atenienses na polis entre o seacuteculo IV e III A seguir veremos in loco uma passagem

no qual o filoacutesofo Aristoacuteteles emprega essas duas noccedilotildees com o intuito de avaliar

as accedilotildees humanas com o objetivo de encontrar o caminho da justa medida602 para

o bem agir

597 HESIacuteODO ldquoOs trabalhos e os diasrdquo (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι Erga kaiacute Hemeacuterai) 598 Πόλεmicroος (poacutelemos) 599 Aristokratiacutea (ἀριστοκρατία) literalmente significa o ldquopoder dos melhoresrdquo o termo vem de ἄριστος (aristos que significa excelente + κράτος (kratos) poder) eacute uma forma de governo na qual o poder poliacutetico eacute exercido por membros da nobreza 600 Έπαινος ή ψόγος (epainos e psoacutegos) elogio e censura 601 Vide as obras de Platatildeo Aristoacuteteles e Isoacutecrates 602 O caminho da ldquojusta medidardquo (microεσοτεσmesotes) ou ldquomeio termordquo que implica numa espeacutecie de sabedoria praacutetica que Aristoacuteteles chama de phronēsis (φρόνησις) Vide Aristoacuteteles (EN II 6 1106

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[ARIST EN] natildeo se censura contudo o homem que se desvia um pouco da bondade quer no sentido do menos quer do mais soacute merece reproche o homem cujo desvio eacute maior pois esse nunca passa despercebido Mas ateacute que ponto um homem pode desviar-se sem merecer censura Isso natildeo eacute faacutecil determinar pelo raciociacutenio como tudo que seja percebido pelos sentidos tais coisas dependem de circunstacircncias particulares e quem decide eacute a percepccedilatildeo Fica bem claro pois que em todas as coisas o meio-termo603 eacute digno louvado mas que agraves vezes devemos inclinar-nos para o excesso e outras vezes para a deficiecircncia Efetivamente essa eacute a maneira mais faacutecil de atingir o meio termo e o que eacute certo604

De qualquer modo a vida honrada e feliz605 eacute uma conquista que soacute pode ser

mensurada depois da morte Na Eacutetica Nicocircmaco por exemplo o filoacutesofo

macedocircnio afirma tambeacutem que soacute eacute possiacutevel analisar se algueacutem foi ou natildeo feliz apoacutes

o teacutermino do seu ciclo de vida Para ele o que torna um homem realmente feliz ndash e

a felicidade606 (eudaimonia) dentro desse contexto cultural eacute sinocircnimo de

nobreza607 - natildeo satildeo as accedilotildees empregadas em determinadas situaccedilotildees da vida mas

em todo o seu conjunto que podem ser avaliadas apenas no post mortem608 O

proacuteprio filoacutesofo reconhece o quatildeo paradoxal eacute essa afirmaccedilatildeo mas para demonstrar

a sua tese Aristoacuteteles cita o exemplo do rei Priacuteamo que depois de uma vida repleta

de belos feitos teve que experimentar na velhice os infortuacutenios que coincidiram com

a morte do seu filho e sucessor ao trono o priacutencipe Heitor e a total destruiccedilatildeo da

a 26) Esse ponto seraacute de extrema importacircncia para Aristoacuteteles no campo eacutetico e poliacutetico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 603 Posteriormente veremos como esse termo eacute central nos estudos sobre poliacutetica em Aristoacuteteles 604 Em ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicomacircco (1109 b 30) Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de W D Ross In Os Pensadores Satildeo Paulo Nova Cultural 1973 v4 Um ponto muito curioso nessa passagem eacute que o filoacutesofo defende categoricamente que o criteacuterio para a avaliaccedilatildeo das accedilotildees depende das circunstacircncias particulares Ou seja se um menino estiver com muita fome o seu ato pode ser justificado pela necessidade de sobrevivecircncia Eacute uma posiccedilatildeo que estaacute muito proacutexima dos grandes sofistas como Protaacutegoras Mas eacute importante ressaltar que para o pensamento socraacutetico-platocircnico as circunstacircncias particulares natildeo podem serem utilizadas como criteacuterio mas sim o ideal de ldquoBemrdquo Dentro dessa concepccedilatildeo mesmo com fome a atitude de roubar seria ainda algo reprovaacutevel Logo a partir dessa constataccedilatildeo percebemos uma importante diferenccedila entre o pensamento socraacutetico-platocircnico e aristoteacutelico 605 A redundacircncia aqui eacute proposital como veremos a seguir 606 Eudaimonia (εὐδαιmicroονία) Plenitude existencial 607 Kalos kai agathos (καλός καi αγαθός) que significa belo e bom ou belo e virtuoso 608 ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicocircmaco (Livro VII 1098 a- 18)

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cidade de Troacuteia609 Consequentemente todas essas tristes ocorrecircncias no final de

sua vida produziram uma mudanccedila610 que levou o rei troiano a um fim miseraacutevel

Mas quais foram os erros611 cometidos por Priacuteamo que teriam o conduzido a

esse triste fim612 Essa fascinante questatildeo poderia nos levar a tomar outros

caminhos que fugiriam do nosso presente objetivo Todavia eu natildeo poderia deixar

de assinalar aqui que a eacutetica antiga demonstra que mesmo o menor dos deslizes ndash

como aceitar que seu filho Paacuteris roubasse a esposa do rei espartano Menelau613 ndash

pode se transformar em terriacuteveis cataacutestrofes no futuro A loacutegica da causa e

consequecircncia que posteriormente foi desenvolvida com mais rigor por filoacutesofos

como Platatildeo e Aristoacuteteles parece estar em total consonacircncia com esse princiacutepio

eacutetico fundamentado na guerra que encontramos nos antigos poemas homeacutericos e

nos primeiros filoacutesofos gregos Em Anaximandro por exemplo o embate entre

forccedilas eacute uma das caracteriacutesticas que compotildee uma lei universal que ordena todas as

coisas no mundo sensiacutevel

[Simpl In Phys 24 17] uma outra natureza apeiron de que provecircm todos os ceacuteus e mundos neles contidos E a fonte de geraccedilatildeo das coisas que existem eacute aquela em que a destruiccedilatildeo tambeacutem se verifica segundo a necessidade pois pagam castigo e retribuiccedilatildeo umas agraves outras pela sua injusticcedila de acordo com o decreto do tempo614

Segundo essa sentenccedila o mundo eacute composto de contraacuterios que guerreiam entre

si em todos os instantes A origem e o fim de todas as coisas estatildeo subordinados agrave

lei da necessidade615 e julgadas pelo poder ordenador do tempo que sempre atua no

609 Ibidem (livro IX 1100 a-5) 610 Peripeteia (περιπέτεια) eacute um conceito importantiacutessimo encontrado na Poeacutetica que apresenta o sentido de reviravolta 611 Ibidem Harmaacutertia (άmicroαρτία) erro ou falha 612 Natildeo eacute mera coincidecircncia a relaccedilatildeo entre a Poeacutetica e a Eacutetica a Nicocircmaco pois ambas as obras estudam as accedilotildees (praacutexis πράξις) humanas 613 Eacute importante destacar que esse ato de sequestrar a rainha Helena eacute uma violaccedilatildeo da lei de hospitalidade que havia entre as naccedilotildees no mundo antigo 614 ANAXIMANDRO ( Fragmento 101) Esse fragmento foi retirado do capiacutetulo III do seguinte livro KIRK G S ndash RAVEN JC Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos traduccedilatildeo de C A Louro Fonseca e outros Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 2a ediccedilatildeo 1982 615 Kata ton chreon (κατὰ τὸ χρεών) como podemos notar na sentenccedila o filoacutesofo parece expressar que o mundo sensiacutevel e do vir a ser estatildeo totalmente marcados por essa falta original que eacute a caracteriacutestica de tudo aquilo que eacute mortal e pereciacutevel A relaccedilatildeo entre o ilimitado (apeironἄπειρον) e o limitado (perasπέρας) eacute a mesma entre o mundo divino e o humano nos poemas homeacutericos

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sentido de reparar uma injusticcedila616ou falta617 A maioria dos helenistas que

interpretam essa passagem cosmoloacutegica618 deixam escapar o aspecto antropoloacutegico

que parece ter sido profundamente influenciado pela antiga eacutetica homeacuterica que via

as accedilotildees dos guerreiros dentro da relaccedilatildeo loacutegica do seguinte trinocircmio causa efeito

e consequecircncia Todos os nossos atos estatildeo sob a estrutura riacutegida dessa equaccedilatildeo

Nas duas obras homeacutericas podemos notar que a dinacircmica das accedilotildees eacute regulada pela

ordem da guerra - o conflito entre duas forccedilas619 - que potildee a prova o caraacuteter e a

bravura de cada guerreiro com o intuito de buscar a excelecircncia moral que satildeo

atributos essenciais para a composiccedilatildeo do verdadeiro heroacutei da nobreza grega No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um exemplo de como esses duelos individuais estavam

marcados por uma determinada forma de disputa que estava associada como uma

eacutetica guerreira que posteriormente foi alterada para uma forma de combate coletivo

que foi essencial para o surgimento da palavra-diaacutelogo

No Canto III da Iliacuteada podemos encontrar a descriccedilatildeo do combate corpo a

corpo entre Paacuteris e Menelau que o poeta narra em detalhes Mas antes de apresentaacute-

lo eacute importante ressaltar que a guerra nesse periacuteodo tinha que respeitar um coacutedigo

juriacutedico militar bem especiacutefico Havia uma espeacutecie de constituiccedilatildeo internacional

entre as naccedilotildees que estabeleciam determinadas regras e rituais que deveriam ser

seguidas rigorosamente pelas duas partes da contenda No duelo que ocorre no

Canto III essas caracteriacutesticas ritualiacutesticas satildeo destacadas em vaacuterios versos pois

elas compotildeem todo o cenaacuterio para o combate que seraacute deflagrado entre o

representante dos Aqueus o rei Menelau e do outro lado o priacutencipe troiano Paacuteris

Esse duelo tinha o intuito de encerrar a querela em torno da guarda de Helena e

evitar a guerra entre os aqueus e troianos Mas no meio do combate a covardia de

Paacuteris sobressai aos olhos de todos os aqueus e troianos E essa fraqueza abre espaccedilo

para a demonstraccedilatildeo da superioridade de Menelau que parte com toda a sua fuacuteria

na direccedilatildeo do jovem mancebo mas a deusa Afrodite interveacutem620 para o nosso

616 Adikia (Ἀδικία)injusticcedila 617 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta erro ou falha Ela eacute uma caracteriacutestica que marca a mortalidade humana Todas as coisas que tem uma geraccedilatildeo estatildeo sob o domiacutenio dessa ldquolei natildeo escritardquo (agraphos nomos Άγραφος νόmicroος) Vide Soacutefocles Antiacutegona 450-59 618 Eacute importante ressaltar que o modo de expressatildeo desses primeiros filoacutesofos estaacute ainda conectado com a tradiccedilatildeo poeacutetica que tinha uma visatildeo holiacutestica do mundo 619 Conceito que posteriormente seraacute a base para o surgimento do drama como gecircnero literaacuterio 620 Essa intervenccedilatildeo divina eacute vista com muita desconfianccedila por muitos especialistas modernos Por que os deuses intervecircm nas questotildees humanas Posteriormente veremos como esse mundo da

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espanto e faz com que Paacuteris possa escapar ileso do duelo Segundo agraves palavras de

Helena que podem ser encontradas no verso 400 o rei Menelau teria saiacutedo vitorioso

do combate Aliaacutes a proacutepria princesa espartana621 humilha Paacuteris por sua covardia e

culpa a deusa Afrodite por ter intervindo de modo indevido na contenda Helena

reconhece que essa intervenccedilatildeo custaraacute muito caro agrave nobreza troiana

A relaccedilatildeo com o mundo divino eacute outra caracteriacutestica que salta aos nossos olhos

na leitura da Iiacuteada pois todas as personagens da aristocracia tecircm um parentesco

com os deuses622 Isso fica claro na resposta que Paacuteris fornece agrave Helena Segundo

ele o rei Menelau tambeacutem teve o auxiacutelio da deusa Atena Enquanto isso os aqueus

liderados por Agamecircmnon clamam pela vitoacuteria e a devoluccedilatildeo imediata de Helena

nos uacuteltimos versos No iniacutecio do Canto IV encontramos uma espeacutecie de digressatildeo

que apresenta uma reuniatildeo divina623 que tem o intuito de avaliar os pormenores da

contenda entre as duas naccedilotildees E Zeus nesse momento interpela os seus pares com

a seguinte questatildeo ldquoqual curso daremos as coisas Incitar a guerra atroz ou a paz

entre os dois povosrdquo essa indagaccedilatildeo confirma as palavras ditas anteriormente por

nobreza homeacuterica ainda era amparado por essas divindades oliacutempicas que era um traccedilo dessa tradiccedilatildeo oriunda do periacuteodo preacute-homeacuterico Para alguns inteacuterpretes esse fato pode ser compreendido como um eufemismo inserido por Homero para esconder a covardia ou total despreparo de Paacuteris para o duelo com Menelau Haacute ainda a hipoacutetese de que Homero estaria do lado dos troianos De qualquer modo essa instacircncia divina eacute uma questatildeo presente de modo decisivo nas obras homeacutericas Poreacutem ao comparar as duas obras podemos detectar na Odisseacuteia um certo distanciamento entre homens e deuses Esse fato pode ser constatado claramente na postura de Odisseu ao trocar a imortalidade ao lado da deusa Calipso pela vida simples como mortal em Iacutetaca ao lado de sua esposa Peneacutelope 621 Essa passagem mostra que Helena foi uma das primeiras mulheres a levantar a voz em um mundo guerreiro totalmente masculino Isso demonstra que ela natildeo estava vinculada ao papel tradicional que as mulheres desempenhavam nesse periacuteodo na Greacutecia 622 Esse eacute outro aspecto que tem origem no periacuteodo preacute-homeacuterico A relaccedilatildeo da realeza com o mundo divino que ocorre tambeacutem nas culturas egiacutepcia e persa apresenta uma base para a justificaccedilatildeo e validaccedilatildeo do poder poliacutetico Mesmo com a queda da antiga monarquia a Greacutecia de um modo geral continuou utilizando a esfera religiosa para manter e organizar a sua constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Nesse sentido a poesia em seu iniacutecio desempenhou um importante papel de imprimir essa noccedilatildeo no inconsciente coletivo grego atraveacutes dos ritos e foacutermulas que eram entoados maciccedilamente entre a populaccedilatildeo Um dos seus objetivos nesse periacuteodo era impor de modo sutil a adesatildeo dessa noccedilatildeo no espiacuterito das classes mais humildes para facilitar o papel da governabilidade do soberano o rei divino Vale ressaltar por uacuteltimo que na poesia homeacuterica jaacute eacute possiacutevel rastrear o decliacutenio dessa concepccedilatildeo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro GERNET Louis Anthropologie de La Gregravece antique Paris Flammarion 1977 Cap I e II 623 A forma como Zeus se dirige aos seus pares nos leva a crer que jaacute havia o emprego das assembleias (Bouleacute Βουλή) - que eacute um traccedilo caracteriacutestico da formaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da polis - no periacuteodo que esse poema foi composto por Homero Curiosamente essa forma de expressatildeo utilizada por Zeus no Canto IV eacute muito similar ao que filoacutesofo Platatildeo costumava a utilizar em seus diaacutelogos e nas suas aulas (vide Aristoacuteteles Eacutetica Nicocircmaco I IV 5) Essa caracteriacutestica demonstra para noacutes a total sintonia de Platatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica O termo aacutegora (ἀγορά) assembleia lugar de reuniatildeo eacute derivado do verbo agueiro (ἀγείρω) reunir e posteriormente torna-se um espaccedilo de grande importacircncia para a resoluccedilatildeo dos mais diversos problemas dos gregos Podemos encontrar o uso in loco desse verbo no iniacutecio do Canto XX

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Paacuteris sobre a intervenccedilatildeo divina Enquanto que Hera Poseidon Hefesto Teacutetis e

Atenas estavam protegendo Menelau e os aqueus a Deusa Afrodite Apolo Ares

Leto e Aacutertemis formavam o time divino que davam apoio aos troianos Todavia a

intervenccedilatildeo de Afrodite a favor de Paacuteris no ponto mais culminante do duelo eacute tida

como uma manobra repugnante ateacute mesmo no mundo dos mortais Para os aqueus

essa atitude eacute interpretada como uma quebra contratual que foi estabelecida em

comum acordo entre as partes envolvidas624 O duelo deveria ser definido a partir

das habilidades individuais de cada um Mas como vimos anteriormente o

combate contava tambeacutem com a simpatia dos deuses Para muitos leitores esse

uacuteltimo quesito pode ser interpretado como algo do acircmbito casual e do inesperado

que ocorre de modo totalmente acidental Eacute importante ressaltar que os deuses no

mundo homeacuterico natildeo parecem atuar como meras hipoacutestases625 dos sentimentos

humanos Pelo contraacuterio elas satildeo a expressatildeo do mundo dos imortais atraveacutes dessas

forccedilas sobre-humanas como o destino626 e a sorte627 que atuam independentemente

da nossa vontade mas que podem ou natildeo serem decisivas ateacute mesmo no campo de

batalha De qualquer modo essa forma de disputa individual era uma prova no qual

as accedilotildees de cada guerreiro necessitavam levar esse ponto em extrema

consideraccedilatildeo628 O melhor guerreiro natildeo eacute aquele considerado mais forte ou fraco

natildeo apenas do ponto de vista fiacutesico ou mental mas aquele que sabe melhor agir sob

qualquer tipo de circunstacircncia ao saber equilibrar os dois mais importantes traccedilos

624 Os ritos descritos no canto III deixam claro que o duelo natildeo deveria ter a intervenccedilatildeo divina Todas as oferendas destinadas aos deuses trazem esse propoacutesito bem expliacutecito a vitoacuteria deveria ser decidida no fio das espadas mas a deusa Afrodite interveacutem e muda o rumo do combate Haacute ainda outro aspecto importantiacutessimo que o poeta parece sugerir sub-repticiamente em seus versos por um lado ele apresenta mesmo de modo tiacutemido o distanciamento entre o mundo humano e divino nessa elaboraccedilatildeo ritualiacutestica e por outro que esse distanciamento natildeo eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo humana Essa uacuteltima hipoacutetese pode ser confirmada com a assembleia divina que ocorre no iniacutecio do canto IV 625Hipostatizar eacute interpretar como uma existecircncia real algo oriundo da abstraccedilatildeo Ou seja afirmar algo abstrato como algo material Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos o seguinte artigo KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 93 626 As moiras (Μοῖραι) na mitologia grega satildeo as trecircs irmatildes responsaacuteveis pelo destino humano e divino Eram trecircs mulheres com um aspecto fuacutenebre que tinham a funccedilatildeo de fabricar tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos deuses e homens Durante esse importante ofiacutecio as moiras utilizavam uma espeacutecie de Roda da Fortuna que era um tear utilizado para se tecer os fios As voltas da roda posicionam o fio de cada indiviacuteduo em sua parte mais alta ou em sua parte menos desejaacutevel que era o fundo que representavam os momentos de boa ou maacute sorte dos homens e dos deuses 627 Tykhe (Τύχη) sorte Na mitologia grega ainda havia uma divindade chamada Moros que era responsaacutevel pela sorte e destino dos deuses e homens Ele eacute um daimon filho de Nix (noite) na Teogonia de Hesiacuteodo 628 Essa separaccedilatildeo entre o mundo mortal e dos imortais pode ser configurada dentro desse contexto que deu ensejo para o nascimento do traacutegico

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da alma humana a emoccedilatildeo e a razatildeo629 que para o poeta ambas tecircm a sua sede no

coraccedilatildeo (SNELL 2001) O resultado desse caacutelculo apresentaraacute escolhas que podem

levar agraves accedilotildees que daratildeo o sentido da vitoacuteria ou fracasso em qualquer disputa O

exemplo desse pressuposto eacutetico homeacuterico pode ser encontrado na histoacuteria do

proacuteprio Aquiles que teve uma vida curta mas ganhou a imortalidade e gloacuteria

atraveacutes das suas atitudes Em nenhum momento da sua histoacuteria ele agiu motivado

pelo descontrole ou desmedida630 Mesmo sendo um mortal ele pocircde se destacar

entre todos os homens justamente por saber refrear os seus impulsos631 Mesmo a

sua tatildeo famosa ldquoirardquo 632 que eacute cantada no iniacutecio da Iliacuteada pelas musas natildeo eacute de

modo algum fortuita Pelo contraacuterio dentro da construccedilatildeo da eacutepica homeacuterica esse

sentimento de revolta estaacute condicionado a uma espeacutecie de lei divina - como foi visto

anteriormente em nossa anaacutelise sobre o aspecto eacutetico do fragmento de Anaximandro

- que age contra qualquer tipo de atitude que viole ou ameace o equiliacutebrio da

sociedade humana (MUELLNER 1996) Nesse sentido a ira de Aquiles quando

aplicada na medida exata torna-se uma forccedila benfazeja pois ela visa reparar uma

injusticcedila ocorrida anteriormente com a morte de seu querido amigo Paacutetroclo Esse

aspecto de respeito ao outro que marca a eacutetica no periacuteodo claacutessico fica ainda mais

evidente para noacutes quando comparamos as atitudes desse nobre guerreiro com a de

outros personagens como o rei Agamecircmnon e o priacutencipe Paacuteris pois esses dois satildeo

retratados por Homero como homens egoiacutestas que satildeo movidos por suas paixotildees

mais baixas

No caso do priacutencipe troiano mesmo com o auxiacutelio divino o jovem Paacuteris natildeo

pocircde evitar o triste legado de um covarde que alcanccedilou a sua maacute reputaccedilatildeo quando

ajudou a levar a cidade dos seus pais agraves cinzas Haacute ainda mais um agravante que eacute

o fato de ter assassinado o melhor dos homens o grande guerreiro Aquiles com

629 Em Homero os dois termos correspondentes em grego satildeo Thymoacutes (θυmicroός) e nous (νοῦς) O primeiro carrega diversos sentidos no periacuteodo homeacuterico mas no geral ele estaacute voltado para as emoccedilotildees na acepccedilatildeo mais recorrente do termo Enquanto que nous desempenha a capacidade de abstraccedilatildeo atraveacutes das ldquoimagensrdquo 630 Hybris (ὕϐρις) 631 Vide Iliacuteada canto I 632 Mecircnis (Μῆνις) No dicionaacuterio Liddel amp Scott esse termo aparece com o sentido de indignaccedilatildeo Para noacutes essa interpretaccedilatildeo sobretudo no contexto da eacutepica homeacuterica eacute mais coerente com a construccedilatildeo moral proposta pelo poeta Esse sentimento de revolta que eacute provocado por uma circunstacircncia injusta indigna ou revoltante traz em seu bojo a importacircncia da amizade para a construccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da cultura helecircnica que seraacute de extrema importacircncia para a construccedilatildeo eacutetica da falange hoplita no qual o guerreiro corajoso eacute aquele que daria a vida para proteger o seu companheiro de armas Posteriormente voltaremos a essa questatildeo

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uma flecha e natildeo com uma espada em punho firme Esses exemplos satildeo mais que

suficientes para a sua condenaccedilatildeo no tribunal do poeta que expotildee graciosamente o

preccedilo que deve ser pago por aqueles que satildeo controlados por suas emoccedilotildees de modo

desmedido Eacute essa a imagem que o poema homeacuterico imortalizou para a posteridade

grega a de um rei incompetente que eacute guiado por sua vilania e de um jovem

impulsivo e fraco que natildeo foi adequadamente educado Um rei e um priacutencipe Essas

duas figuras simbolizam dois importantes aspectos da vida humana e poliacutetica no

mundo da aristocracia Em relaccedilatildeo a Paacuteris que representa a juventude que eacute uma

fase intermediaacuteria entre a infacircncia e a vida adulta a criacutetica do poeta parece atuar de

modo mais incisivo Pois o jovem mesmo com a sorte divina que herdou dos seus

antepassados natildeo foi suficientemente prudente e por conta das suas paixotildees pocircs

em decliacutenio toda a estrutura soacutecio-poliacutetica de sua cidade natal Portanto a educaccedilatildeo

homeacuterica tinha como pressuposto as seguintes liccedilotildees para todos os gregos

primeiramente formar os melhores homens com o intuito de garantir a felicidade

(eudaimonia) plena da cidade que soacute pode ser adquirida atraveacutes de uma boa

conduta Em um segundo momento a poesia atuaria como um instrumento um

espelho retrovisor que visava evitar que os jovens seguissem o mesmo destino do

priacutencipe Paacuteris ou do rei Agamecircmnon que satildeo cada um ao seu modo os dois

exemplos paradigmaacuteticos de desmedida que geram todas as injusticcedilas naquele

contexto soacutecio-poliacutetico Ou seja um jovem nobre mal-educado no passado poderaacute

ser no futuro um peacutessimo governante Para termos uma noccedilatildeo da importacircncia que

os gregos davam para o processo de formaccedilatildeo dos poliacuteticos o bioacutegrafo e historiador

Plutarco no livro X da Moralia633 afirma que sem educaccedilatildeo634 jamais um homem

poderaacute se tornar um bom governante Aliaacutes ele eacute o mesmo que afirma a importacircncia

da poesia antes mesmo do estudo da filosofia para a formaccedilatildeo dos jovens da

aristocracia do seu tempo635 O objetivo de ambas deve auxiliar os jovens a alcanccedilar

a sua maturidade para o alcance de uma vida plena636 em conformidade com os

633 Em PLUTARCO Moralia livro X (728 a) ldquoPara os governantes mal-educadosrdquo (Πρὸς ἡγεmicroόνα ἀπαίδευτον) 634 Apaideutos (απαίδευτος) 635 Em PLUTARCO Moralia livro I 636 Philosophia biou kybernetes (Φιλοσοφία Βίου Κυβερνήτης) o amor pela sabedoria eacute o guia da vida Eacute atraveacutes desse famoso epiacuteteto que Pierre Hadot vai defender a tese de que as escolas filosoacuteficas na antiguidade tinham o objetivo de buscar a melhor alternativa para o homem alcanccedilar a sua plenitude existencial

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princiacutepios que regem a harmonia da cidade637 Logo os exemplos retirados das

eacutepicas homeacutericas ateacute o periacuteodo heleniacutestico deveriam seguir essa orientaccedilatildeo

pedagoacutegica Mas eis que surge mais uma questatildeo como a poesia homeacuterica poderia

ser tatildeo eficiente na educaccedilatildeo dos jovens nobres Como vimos anteriormente o

olhar arguto da poeacutetica homeacuterica apresenta a junccedilatildeo de dois ciclos da formaccedilatildeo

humana a saber a juventude e a maturidade pois ambas satildeo complementares no

processo de construccedilatildeo do homem poliacutetico na aristocracia grega de um modo geral

e que tem como ideal comparativo a imagem do nobre Aquiles que serve como um

paradigma eacutetico entre as personagens do rei Agamecircmnon e do priacutencipe Paacuteris Para

o sucesso de tal objetivo o poeta tinha que contrapor em seus versos os viacutecios e

virtudes que se expressavam nas accedilotildees de cada um desses personagens que

representam a nobreza que tem o poder sobre o destino de cada cidade E satildeo essas

caracteriacutesticas que fazem jus ao seu famoso epiacuteteto que podemos encontrar na

Repuacuteblica de Platatildeo638 que diz que poeta eacute o primeiro educador dos gregos Antes

mesmo do grande filoacutesofo ateniense ele jaacute expunha em versos os efeitos das accedilotildees

que natildeo foram devidamente refletidas Ao apresentar esse desvio atraveacutes do seu

espelho literaacuterio ele tambeacutem aponta uma direccedilatildeo que deveraacute ser seguida para

encontrar o alcance da gloacuteria eterna dos mortais639 Talvez seja esse o maior legado

que a poesia homeacuterica forneceraacute aos poetas traacutegicos posteriormente demonstrar o

637 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica (livro III 1288 a-b) O filoacutesofo afirma nessa passagem que um dos seus interesses visa encontrar qual eacute o melhor tipo de constituiccedilatildeo poliacutetica Na primeira parte do estudo ele observa que a virtude do homem do cidadatildeo e da cidade satildeo totalmente equivalentes entre si E ele parte a sua afirmaccedilatildeo da seguinte premissa eacute evidente que do mesmo modo o homem e pelos mesmos meios que homem se torna bom tambeacutem se pode constituir uma cidade aristocraacutetica ou monaacuterquica de modo que a educaccedilatildeo e os costumes que fazem um homem bom seratildeo mais ou menos as mesmas que satildeo utilizadas para um homem tornam-se apto para ser um homem de Estado ou rei A partir disso podemos notar como a eacutetica e poliacutetica estatildeo sob o mesmo diapasatildeo 638 PLATAtildeO Repuacuteblica livro X 606 C 639 A busca pela gloacuteria (κλέος kleacuteos) ou notoriedade era algo tatildeo importante para os gregos que haacute um fragmento de Heraacuteclito que expressava essa caracteriacutestica do mundo antigo ldquoas musas jocircnicas dizem expressamente que a massa e os aparentemente saacutebios seguem os aedos do povo e baseiam-se em seus costumes mesmo cientes de que muitos satildeo os maus poucos os bons e que soacute os melhores a gloacuteria perseguem Uma soacute coisa contra todas as outras escolhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzinada como o gadordquo (Frag XXIX ndash Clemente de Alexandria Stromata V 59) retirado do seguinte livro HERAacuteCLITO Fragmentos Contextualizados Ed Biliacutengue trad e comentaacuterios Alexandre Costa Rio de Janeiro Difel 2002 Eacute importante lembrar que o radical dessa palavra segundo Lidell amp Scott estaacute associado ao ato de ouvir Ou seja esse termo carrega implicitamente o significado de ldquoouvir algo ao seu respeitordquo A partir disso eacute possiacutevel constatar a profunda importacircncia da tradiccedilatildeo oral Sobretudo nesse contexto em que Heraacuteclito faz menccedilatildeo a esse fato em sua sentenccedila Pois como vimos anteriormente a uacutenica forma de alcance dessa gloacuteria eacute atraveacutes do canto dos aedos e rapsodos Neste sentido o fragmento de Heraacuteclito eacute de extrema importacircncia para compreendermos o sentido que carrega a gloacuteria para os antigos gregos

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encadeamento dos fatos e as motivaccedilotildees que movem cada uma das personagens na

trama construiacuteda pelos deuses E consequentemente obter uma espeacutecie de cosmo

visatildeo sobre as falhas no sentido da incapacidade dos homens em reconhecer o que

eacute realmente certo atraveacutes de uma orientaccedilatildeo precisa atraveacutes desse espelho poeacutetico

Aliaacutes Aristoacuteteles afirma na Poeacutetica640que a falha641 na trageacutedia natildeo eacute oriunda de

um desvio moral mas de uma deficiecircncia da proacutepria natureza humana642 No

capiacutetulo seis ele acrescenta ainda que a definiccedilatildeo traacutegica ocorre atraveacutes da accedilatildeo

Dito de outro modo eacute atraveacutes da accedilatildeo que unicamente o homem pode se reconhecer

como tal De qualquer modo a sua posiccedilatildeo estaacute em consonacircncia com uma ideia

que podemos encontrar na eacutepica homeacuterica que afirma que os homens satildeo apenas

meros joguetes nas matildeos das forccedilas divinas Logo se faz necessaacuterio desenvolver

uma cartografia para navegar no mar tempestuoso da vida Sem ela o homem

estaria totalmente agrave deriva e desprotegido como uma crianccedila perdida na selva O

famoso preceito deacutelfico que dizia ldquoconhece-te a ti mesmordquo que influenciou

posteriormente o pensamento socraacutetico jaacute apontava um imperativo eacutetico que

mostrava que o homem deveria voltar-se unicamente para uma reflexatildeo sobre as

suas proacuteprias accedilotildees com o objetivo de alcanccedilar a sua plenitude existencial Esse eacute

o caminho que os gregos antigos construiacuteram para natildeo mergulharem numa vida

totalmente niilista Aliaacutes essa preocupaccedilatildeo pode tambeacutem ser encontrada nas mais

diversas obras da literatura antiga Logo foi importante que o homem grego

descobrisse uma forma de afirmar a sua existecircncia mediante uma das uacutenicas

verdades que de fato podemos conhecer nesse mundo a natureza humana eacute mortal

Nesse sentido ao expor os problemas da relaccedilatildeo entre homens e deuses Homero

torna-se a mais importante referecircncia para a construccedilatildeo da mentalidade grega e ateacute

mesmo para o pensamento eacutetico que seraacute desenvolvido pelos tragedioacutegrafos

comedioacutegrafos sofistas e filoacutesofos no periacuteodo claacutessico

640 ARISTOacuteTELES Poeacutetica cap XIII 641 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta ou erro 642 A partir dessa afirmaccedilatildeo eacute possiacutevel extrair uma concepccedilatildeo de traacutegico do pensamento do filoacutesofo Essa eacute uma posiccedilatildeo muito discutiacutevel mas natildeo eacute em hipoacutetese alguma descartaacutevel Natildeo eacute porque natildeo encontramos nenhuma teoria sobre essa questatildeo ndash strictu sensu - nas obras de Aristoacuteteles que poderemos afirmar categoricamente como querem alguns alematildees como Albin Lesky que natildeo haja uma teoria sobre o pensamento traacutegico na antiguidade Em nosso proacuteprio trabalho apresentamos alguns elementos que vatildeo desde a obra homeacuterica que podem nos ajudar a encontrar uma teoria para defender uma posiccedilatildeo contraacuteria A seguir apresentaremos mais alguns importantes indiacutecios para essa hipoacutetese

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O autocontrole das emoccedilotildees643 era outro aspecto evidenciado por Homero ao

se referir a nobreza dos grandes heroacuteis na sua eacutepica pedagoacutegica Em diversos pontos

da Iliacuteada o poeta ressalta essa atitude como uma virtude que ajudava a compor a

beleza do melhor dos aqueus o valente Aquiles644 Essa disposiccedilatildeo espiritual estava

reciprocamente em conexatildeo com as habilidades645 de combate necessaacuterias para

qualquer guerreiro atraveacutes do manuseio de armas como a espada escudo e a lanccedila

Mas dentro desse contexto da eacutepica homeacuterica uma das qualidades de maior

destaque para a classe dos nobres que satildeo apresentadas pelo poeta inclui o domiacutenio

da arte de equitaccedilatildeo Para termos uma noccedilatildeo da dimensatildeo dessa importacircncia basta

constatar que dois dos termos mais recorrentes na Iliacuteada eacute o uso do verbo domar646

que eacute empregado justamente para ressaltar a capacidade humana de domesticar um

dos animais essenciais para a vida dos gregos - e que eacute outro termo de maior

destaque no poema - o cavalo647 Em quase todos os cantos o poeta ressalta a

relevacircncia do emprego desse mamiacutefero em vaacuterios aspectos da cultura helecircnica A

sua maior influecircncia foi no acircmbito econocircmico e militar Os altos custos para manter

e domesticar esses animais restringia a arte de equitaccedilatildeo para os poucos

proprietaacuterios de terras que pertenciam agrave classe dos nobres648 E esse fato eacute mais um

indiacutecio que corrobora a hipoacutetese que apresentamos anteriormente de que a epopeia

homeacuterica era um projeto pedagoacutegico que estava voltado essencialmente para uma

elite aristocraacutetica que estava no controle do poder econocircmico e que de certa forma

ainda guardava laccedilos sanguiacuteneos e afetivos com a constituiccedilatildeo poliacutetica anterior ao

643 Sophrosyne (Σωφροσύνη) era considerada por muitos gregos como uma espeacutecie de daimon que estimulava o autocontrole Enquanto que deusa Afrodite ficou conhecida na antiguidade como uma divindade responsaacutevel por fomentar as paixotildees desenfreadas Vide o caso do sequestro de Helena por Paacuteris que culminou com a destruiccedilatildeo da cidade de Troacuteia na Iliacuteada 644 Vide Iliacuteada (canto I v 340) Homero nesses versos apresenta a ponderaccedilatildeo do bravo Aquiles mediante a covardia de Agamecircmnon que envia um grupo de soldados agrave sua tenda para sequestrar a sua companheira a jovem Briseida que foi conquistada pelo nosso heroacutei em um butim 645 Teacutecnica (τέχνη) teacutechne Esse termo remete para qualquer procedimento que busca um determinado resultado 646 Damazo (δαmicroαζω) submeter ao julgo domar amansar e domesticar No caso passivo haacute tambeacutem o significado de forccedilado ou seduzido 647 Hippos (Ἵππος) cavalo 648 Vide a obra de Xenofonte ldquoDa equitaccedilatildeo ou arte da cavalariardquo (22-3) Nesse livro o escritor grego ressalta que a arte da equitaccedilatildeo era uma atividade praticada apenas pelos membros da elite ateniense que pertenciam a uma minoria que detinha o poder poliacutetico militar e econocircmico da polis Esse traccedilo eacute de extrema importacircncia para noacutes pois isso prova que mesmo com a queda da realeza micecircnica um pequeno grupo de guerreiros que certamente eram oriundos da antiga realeza micecircnica distribuiu o poder atraveacutes de uma divisatildeo que levava em consideraccedilatildeo a condiccedilatildeo econocircmica de seus membros pois esse aspecto eacute essencial sobretudo nesse periacuteodo para o cidadatildeo poder desempenhar a atividade militar que era o fundamento do controle poliacutetico vide o caso de Peacutericles que era liacuteder poliacutetico e estratego (general) de Atenas Posteriormente voltaremos a comentar esse ponto

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surgimento da Democracia na Greacutecia A arte de equitaccedilatildeo eacute uma heranccedila que une

esses dois momentos poliacuteticos na histoacuteria grega e esse fato pode ser verificado em

diversos exemplos da mitologia helecircnica que abrange do periacuteodo arcaico ateacute o

claacutessico no qual podemos verificar a relaccedilatildeo de vaacuterias divindades oliacutempicas com

esse precioso animal Eacute oacutebvio que os antigos aedos ajudaram a propagar admiraccedilatildeo

do cavalo no imaginaacuterio popular grego com o intuito de imprimir respeito aos que

detinham o controle dessa daacutediva divina649 Em vaacuterios mitos650 eacute possiacutevel detectaacute-

lo numa posiccedilatildeo privilegiada que concomitantemente revelava natildeo apenas o seu

valor mas tambeacutem o prestiacutegio e a destreza do seu condutor o nobre cavaleiro que

carregava a habilidade de domesticaacute-lo e de tecirc-lo como um aliado na frente de

batalha O caso mais emblemaacutetico que os gregos criaram para imortalizar essa

imagem idealizada estaacute contido no mito do centauro Quiacuteron651 Essa figura lendaacuteria

que eacute metade homem e outra metade cavalo eacute a siacutentese perfeita que simboliza o

prestiacutegio que a arte da equitaccedilatildeo exercia entre a nobreza grega Essa criatura era

tida como uma das mais famosas e saacutebias entre a classe dos centauros na mitologia

Em detrimento disso a sua filiaccedilatildeo estaacute associada ao panteatildeo dos deuses oliacutempicos

que formam a religiatildeo difundida pela nobreza A sua sabedoria lhe conferiu o ofiacutecio

de ser o maior educador entre os seres mitoloacutegicos gregos Xenofonte que eacute

conhecido por ter sido mercenaacuterio e disciacutepulo de Soacutecrates ndash e pertencente a uma

das famiacutelias mais influentes em Atenas652 - escreveu um livro intitulado Sobre a

649 Podemos encontrar em vaacuterios mitos a imagem do cavalo relacionado com o mundo divino e dotados de poderes especiais a seguir apresentaremos alguns exemplos 1) Quiacuteron um centauro filho de Cronos que atuou como tutor de Aquiles 2) Pegasus o cavalo alado filhos de Poseidon e Medusa Mais tarde ele foi transformado por Zeus na constelaccedilatildeo de Peacutegaso O cavalo desempenhou um papel central nos grandes festivais ciacutevicos no mundo antigo como os jogos de Panathenaicos em Atenas e os Jogos Oliacutempicos em Olympus onde participava de corridas de carros e corridas individuais No quinto seacuteculo em Tebas o poeta liacuterico Piacutendaro imortaliza as vitoacuterias dos cavalos e cavaleiros nos jogos Iacutestmicos Olimpo Piacuteticos O entusiasmo ateniense para o cavalo tambeacutem foi ressaltado em muitos edifiacutecios civis e religiosos que estavam cobertos com pinturas e esculturas de cavaleiros e cenas de batalha Todos esses indiacutecios coletados na arte e arquitetura satildeo importantes para noacutes pois apresentam as proezas dos guerreiros gregos na batalha natildeo apenas durante o periacuteodo arcaico mas tambeacutem no periacuteodo claacutessico e heleniacutestico Eacute possiacutevel encontrar vaacuterias obras que relatam essa faceta por exemplo a sepultura estela de Dexileos (3943 BC) que mostra o jovem cavaleiro em batalha em um cavalo de elevaccedilatildeo com o inimigo debaixo dele encolhido Da mesma forma satildeo famosas as representaccedilotildees de Alexandre o Grande e seu famoso cavalo Bucephalos como a do par montando para a batalha no Alexander Mosaico na Casa do Fauno Pompeacuteia Essas diversas representaccedilotildees do cavalo tem o intuito de demonstrar sua importacircncia na guerra e a centralidade desta criatura na vida ciacutevica religiosa e econocircmica da cidade 650 Vide nota anterior 651 Quiacuteron foi um centauro que atuou como o educador de Aquiles Neste sentido a mitologia grega foi muito eficiente para imprimir os valores da aristocracia atraveacutes dos aedos e rapsodos 652 Em ESTREBAtildeO Geografia Livro IX Capiacutetulo 2 7 Nessa passagem o geografo relata a batalha de Deacutelio que ocorreu por volta de 424 aC no qual os atenienses satildeo derrotados pelas tropas tebanas

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caccedila no qual enumera vinte e uma figuras lendaacuterias que foram educadas por esse

centauro No capiacutetulo I aleacutem dele nomear todos os heroacuteis que tiveram Quiacuteron como

pedagogo ele tambeacutem fornece uma preciosa informaccedilatildeo ao apresentar o conteuacutedo

programaacutetico e pedagoacutegico para a classe dos cavaleiros em Atenas Para se tornar

um bom heroacutei o jovem nobre deveria estudar as seguintes especialidades artes de

caccedila combate equitaccedilatildeo e muacutesica Podemos notar que todas essas disciplinas

estavam vinculadas agrave formaccedilatildeo militar e poliacutetica Ambas essenciais para o domiacutenio

poliacutetico do acircmbito interno e externo da poliacutetica grega

Na listagem apresentada por Xenofonte sobre os alunos ilustres de Quiacuteron eacute

possiacutevel encontrarmos o nome do guerreiro Aquiles Essa relaccedilatildeo pedagoacutegica e

poeacutetica natildeo eacute de modo algum fortuita Vimos anteriormente como Aquiles

representava o modelo de heroacutei na eacutepica homeacuterica Logo era de extrema

importacircncia para fundamentar esse projeto pedagoacutegico voltado para a nobreza que

esse mito de Quiacuteron fosse esculpido de modo que estivesse associado intimamente

agrave imagem de Aquiles para surtir o efeito esperado de persuasatildeo e respeito por um

lado no imaginaacuterio dos jovens nobres e por outro na populaccedilatildeo com o intuito de

imprimir submissatildeo agrave classe dominante A partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel

compreendermos a utilizaccedilatildeo da mitologia para controle e produccedilatildeo de

subjetividade653 Uma das funccedilotildees da poesia desde o periacuteodo preacute-homeacuterico era de

publicizar atraveacutes de teacutecnicas mnemocircnicas e meloacutedicas esses ideais difundidos

pela aristocracia que sempre esteve presente na antiga realeza Logo a estrutura do

poder vigente durante esse periacuteodo que abrange da monarquia micecircnica ateacute o iniacutecio

do surgimento da Democracia pode ser representada e inserida no inconsciente

coletivo grego atraveacutes da poesia na reuniatildeo de apenas duas imagens a do homem

nobre e do cavalo Satildeo esses dois iacutecones654 unidos que simbolizam o poder militar

poliacutetico e econocircmico de mais alto valor da cultura helecircnica

Apoacutes uma retirada em massa dos sobreviventes atenienses o filoacutesofo Soacutecrates teria socorrido Xenofonte que teria caiacutedo do seu cavalo 653 Para Guattari cada indiviacuteduo ou grupo social cria o seu proacuteprio sistema de modelizaccedilatildeo da subjetividade Ou seja uma espeacutecie de cartografia que eacute desenvolvida a partir de inscriccedilotildees cognitivas miacuteticas ritualiacutesticas sintomatoloacutegicas a partir da qual ele demarca a sua posiccedilatildeo como homem no mundo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide GUATTARI F ldquoCaosmose um novo paradigma esteacuteticordquo Satildeo Paulo Editora 34 1992 654 Esse termo vem de eikon (εἰκών) e significa uma representaccedilatildeo imageacutetica Para a semiologia e a semioacutetica o iacutecone eacute um signo que representa outro objeto por semelhanccedila

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A faccedilanha em torno desse lendaacuterio animal marca uma forma de combate que

foi imortalizada por Homero e que tambeacutem fez parte da construccedilatildeo imageacutetica

efetuada pela casta guerreira que assumiu o lugar do rei (aacutenax) com a queda da

antiga realeza micecircnica Esses haacutebeis condutores de carros que satildeo conhecidos

como os primeiros cavaleiros (hippeis)655 de combate na Greacutecia era uma

importante heranccedila de uma estrateacutegia militar que marcou a construccedilatildeo da eacutepica e

da consciecircncia coletiva grega pelo menos dentro do acircmbito da aristocracia que

eram responsaacuteveis por imprimir seus valores para o resto da populaccedilatildeo Segundo o

helenista britacircnico Geoffrey Kirk (KIRK 1962) esses primeiros carros de

combates surgiram no contexto preacute-helecircnico a partir do contato comercial com

algumas culturas da Aacutesia Menor como a civilizaccedilatildeo Hitita por volta do seacuteculo XVI

aC esses povos teriam sido os primeiros a utilizar esses animais nos campos de

batalha Devido aos altos custos na criaccedilatildeo desses animais a arte da equitaccedilatildeo ficou

restrita agrave nobreza

Como vimos anteriormente a construccedilatildeo do heroacutei homeacuterico era baseada em

habilidades individuais que eram decisivas natildeo apenas no campo de batalha mas

para a formaccedilatildeo do homem poliacutetico656 No livro IV da Poliacutetica Aristoacuteteles afirma

que as primeiras constituiccedilotildees baseavam o seu poder militar na cavalaria que era

mantida por uma oligarquia formada por poucos nobres E a partir dessa constataccedilatildeo

podemos encontrar mais um elemento que comprova a relaccedilatildeo dessa classe com o

poder poliacutetico657 Posteriormente com a necessidade de utilizaccedilatildeo da infantaria658

a base estrutural que formava o poder do Estado foi ampliada Natildeo sabemos de fato

como essa transformaccedilatildeo ocorreu mas encontramos alguns indiacutecios fornecidos pelo

proacuteprio filoacutesofo659 que indica que a pressatildeo popular pode ter sido um dos fatores

655 Hippeis (ἱππεύς) cavaleiros que formavam a cavalaria militar grega 656 Para o cientista poliacutetico inglecircs Ernest Barker o sentido do valor do indiviacuteduo foi uma caracteriacutestica do desenvolvimento do pensamento poliacutetico grego antigo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 2 657 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica livro IV 1289 b 658 Ibidem livro III 1280 a nessa passagem o filoacutesofo afirma categoricamente que o desequiliacutebrio entre ricos (minoria) e pobres (maioria) eacute o que vai gerar o deslocamento de poder entre a oligarquia e a democracia A maioria massacrada pela opressatildeo de poucos estimula o processo de disputa de poder poliacutetico com a classe de nobres E com a necessidade de regimentos para o pronto emprego na guerra com outros povos eacute oacutebvio que a aristocracia teve que ceder agraves pressotildees populares Em contrapartida a classe aristocraacutetica abre esse espaccedilo poliacutetico com a prerrogativa de que esses novos membros pudessem participar ativamente na formaccedilatildeo de regimentos para a atuaccedilatildeo na guerra 659 As inuacutemeras derrotas sofridas pelos gregos podem ter sido um dos motivos para ceder agraves pressotildees populares

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que corroborou para essa abertura poliacutetica atraveacutes da necessidade do proacuteprio

governo depender do auxiacutelio cada vez maior de combatentes de outras classes

sociais para compor as fileiras para o emprego na guerra

53 A fala compartilhada

A mudanccedila para essa nova forma de combate ocorre a partir do iniacutecio de VII

a C (ANDREWES 1956) quando os gregos comeccedilaram a utilizar formaccedilatildeo em

falange660 com o uso de armaduras mais pesadas na infantaria e esse poderoso

agrupamento militar era conhecido na antiguidade como a formaccedilatildeo de combate

hoplita As caracteriacutesticas de maior destaque dessa mudanccedila de atuaccedilatildeo no campo

de batalha estatildeo nos seguintes quesitos novo tipo de lanccedila transformaccedilatildeo no

formato do escudo e na formaccedilatildeo de combate em grupo Ao inveacutes de basear a forccedila

da estrateacutegia militar em lutadores individuais como podemos verificar em algumas

partes da Iliacuteada esses guerreiros operavam de modo coletivo atraveacutes da formaccedilatildeo

de um bloco uacutenico Na forma de combate antiga o guerreiro carregava lanccedilas

sobressalentes que eram lanccediladas agrave uma certa distacircncia na direccedilatildeo do seu oponente

A espada soacute era utilizada em um combate mais proacuteximo se por acaso essa teacutecnica

natildeo surtisse o efeito esperado E por esse motivo a armadura para a sua defesa nesse

periacuteodo natildeo era tatildeo elaborada como na forma de combate hoplita Apenas o seu

escudo era a sua maior proteccedilatildeo e ele tinha na parte interna um uacutenico suporte para

apoiar a matildeo que estava conectada a uma espeacutecie de correia que estava amarrada

no pescoccedilo do guerreiro e que ligava ateacute a parte interna do escudo Se fosse

necessaacuterio o combatente poderia deixar a proteccedilatildeo do escudo para penduraacute-lo pela

sua cinta e ter as suas matildeos livres ou se porventura decidir fugir ele poderia

tambeacutem utilizaacute-lo apoiado no cinto para proteger as suas costas durante o

deslocamento A seguir veremos uma descriccedilatildeo da forma de combate antiga que foi

apresentada por Homero no canto XXIII da Iliacuteada Esse duelo entre Diomedes e

660 Phaacutelax (φάλαγξ) Essa eacute uma importante e antiga taacutetica militar de guerreiros que formam um bloco retangular que caminha em direccedilatildeo dos seus inimigos com o intuito de esmaga-los com as lanccedilas e escudos

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Ajax eacute uma simulaccedilatildeo de combate que faz parte dos ritos fuacutenebres dedicados agrave

memoacuteria de Paacutetroclo que foi morto pelas matildeos de Heitor

[HOMERO Iliacuteada] ldquoConvido dois guerreiros dos melhores ambos revestido de arnecircs portando armas de bronze pontiagudo a provar-se um ao outro perante o povo Aquele que primeiro a pele do outro esflorar atraveacutes da couraccedila tirando lhe sangue escuro este a traacutecia espada ganharaacute cravejada de prata por mim conquistada a Asteropeu beliacutessima ambos pugnaratildeo pelo arnecircs de Sapeacuterdon com banquete esplecircndido na tenda honrarei Disse O Telamocircnio Aacutejax se apresenta um gigante Diomedes Tideide fortiacutessimo tambeacutem Os dois em armas saem cada um do lado para o centro convergindo aacutevidos de lutar com mirada veloz De espanto os Aqueus todos pasmam Um contra o outro avanccedilam se acometem trecircs vezes trecircs vezes se entrechocam No escudo panequilibrado Aacutejax golpeia e natildeo chega a atingir a pele encouraccedilada do Tideide este por cima da mega-adarga estava por ferir a gorja do outro com a fulgente lanccedila Ciosos de Aacutejax os Dacircnaos clamam pela suspensa da lide pedindo precircmio igual a ambos Mas ao Tideide Aquiles deu a megaespada com o talim e bainha bem-lavrados Aquiles na arena potildee como disco massa de ferreiro grosseiro lanccedilando-a Eeciatildeo provava a sua forccedila O Peleide depois de ter matado enviou agraves naus o disco mais outros bens Ereto diz para os Argivos apresentem-se aqueles agrave prova concorrer Se o que venccedila possuir feacuterteis fartas glebas mas afastadas ferro por um lustro natildeo vai faltar Pastor ou lavrador agrave polis natildeo teraacute de compra-lo haacute de sobrardquo661

O caraacuteter ritualiacutestico desse duelo revela uma forma de combate que estava

totalmente centrada nas aptidotildees de cada indiviacuteduo No caso da nova formaccedilatildeo em

falange a armadura utilizada para defesa era muito mais elaborada e

consequentemente tambeacutem mais pesada E isso tirava a agilidade do combatente

em um combate de plano mais aberto A peccedila principal nessa nova indumentaacuteria

para guerra era uma couraccedila de metal - ou tiras de metal- que eram totalmente presas

661 HOMERO Iliacuteada canto XXIII v 800-835 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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entre si e que cobriam o peito e a maior parte da barriga A grande novidade estava

na constituiccedilatildeo e no uso do escudo Nesse novo emprego o escudo natildeo tinha um

suporte de ligaccedilatildeo que era conectado no pescoccedilo como vimos anteriormente Na

posiccedilatildeo normal ele apenas cobria o lado esquerdo do corpo do guerreiro pois a

outra parte era utilizada para proteger o lado direito do outro companheiro de armas

que permanecia ao seu lado em uma perfeita linha defensiva O sucesso dessa

estrateacutegia consistia em manter a linha unida a todo custo

Com essa nova taacutetica os guerreiros hoplitas precisavam trabalhar

harmoniosamente em grupo para formar uma espeacutecie de muro intransponiacutevel

durante as incursotildees na frente de batalha Outra caracteriacutestica desse novo escudo

era o fato de ele natildeo proteger totalmente o corpo do usuaacuterio Ou seja ele era um

fardo que precisava ser carregado para manter a proteccedilatildeo do seu companheiro e a

formaccedilatildeo firme na linha de frente Se porventura um dos hoplitas tivesse a triste

ideia de fugir ou fraquejar em algum momento ele seria responsaacutevel por colocar

em risco toda a formaccedilatildeo da falange662 A lanccedila que antes era utilizada como um

projeacutetil durante as incursotildees em campo aberto nessa nova taacutetica de combate eacute

utilizada de forma firme na altura que possa atingir o pescoccedilo do oponente na linha

de frente dessa formaccedilatildeo Se por acaso a lanccedila falhar o guerreiro ainda tem a sua

disposiccedilatildeo uma espada curta que pode ser empregada numa circunstacircncia em que o

inimigo esteja mais proacuteximo para um combate corpo-a-corpo

A diferenccedila mais notaacutevel entre as duas formas de combate eacute que o hoplita soacute

pode combater dentro dessa linha de formaccedilatildeo Logo para o sucesso dessa taacutetica eacute

fundamental o perfeito entrosamento entre os membros dessa nova formaccedilatildeo de

combate Outro detalhe notaacutevel eacute que a seguranccedila de cada guerreiro reside na

responsabilidade de todos os membros componentes da linha Essa caracteriacutestica

que se fundamenta na confianccedila e o respeito pelo outro inaugura uma nova

concepccedilatildeo de coragem que seraacute exaltada por poetas como Tirteu e Platatildeo663 O

662 Vide em HEROacuteDOTO ldquoHistoacuteriasrdquo livro IX cap 70 o relato do historiador sobre o que acontecia com um combatente que agia de modo covarde em Esparta 663 Vide PLATAtildeO ldquoLaquesrdquo (181e-183d) Nesse diaacutelogo aleacutem do filoacutesofo apresentar o conceito de coragem (andreiaανδρεια) ele tambeacutem fala sobre a importacircncia desse tipo de treinamento militar (hoplomakhiacuteaὁπλοmicroαχία) na formaccedilatildeo dos jovens atenienses Esse registro eacute de extrema relevacircncia para noacutes pois apresenta alguns pontos sobre essa forma de combate militar Na ldquoRepuacuteblicardquo Livro IV (429 a) o filoacutesofo discorre sobre o conceito de coragem Em DL ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo livro II cap V 2 podemos encontrar a famosa histoacuteria de bravura de Soacutecrates que foi

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homem corajoso dentro desse novo contexto natildeo eacute aquele antigo heroacutei homeacuterico

que prova as suas capacidades singulares no campo de batalha mas naquele que

natildeo recua e que se manteacutem firme na sua posiccedilatildeo protegendo o seu companheiro a

todo custo664 O objetivo dessa nova taacutetica era desarticular as fileiras inimigas mas

para isso ocorrer com maacutexima eficiecircncia era necessaacuteria muita praacutetica de trabalho

em equipe E essa caracteriacutestica eacute responsaacutevel por propiciar uma grande

transformaccedilatildeo nas praacuteticas sociais dos helenos

O antigo meacutetodo de combate que vimos anteriormente nas exposiccedilotildees sobre a

eacutepica homeacuterica estava marcado pela habilidade individual de cada guerreiro665

Mesmo dentro de um combate em massa algum bravo militar como Aquiles por

exemplo poderia atirar a sua lanccedila na direccedilatildeo de um uacutenico inimigo e apoacutes essa

investida e caso esse primeiro ataque natildeo obtivesse ecircxito o duelo era definido

corpo-a-corpo atraveacutes de uma luta entre espadas Dentro desse contexto a

indumentaacuteria para combate tinha que ser mais leve para dar flexibilidade e

velocidade no campo de batalha Eacute importante ressaltar que esse artifiacutecio descrito

nos poemas homeacutericos natildeo apresenta apenas uma construccedilatildeo poeacutetica para dar

destaque aos seus heroacuteis mas ela revela uma forma de combate que antecede ao

periacuteodo de surgimento da formaccedilatildeo em falange da infantaria hoplita A questatildeo que

surge para noacutes eacute quando esse tipo de combate apareceu entre os gregos

Para o historiador inglecircs Antony Andrewes (ANDREWES1956) esse tipo de

formaccedilatildeo taacutetica teria sido utilizado pela primeira vez no iniacutecio do seacuteculo VII no sul

da Greacutecia na regiatildeo do Peloponeso O helenista apoia a sua hipoacutetese em algumas

pinturas antigas e nos fragmentos escritos de Arquiacuteloco e Tirteu666 Esses dois

poetas descrevem algumas cenas em seus versos que fornecem algumas evidecircncias

sobre o emprego da indumentaacuteria hoplita As mudanccedilas ocorridas nessas duas

formas de combate tambeacutem trazem no seu bojo profundas mudanccedilas no contexto

tambeacutem citada por Estrebatildeo Para os fragmentos de Tirteu vide TIRTEU fr 5 que estaacute no seguinte livro BARNSTONE WILLIS ldquoGreek Lyric Poetryrdquo Introduction by William McCulloh New York Bantam Classics 1962 paacuteg 18 664 Ibidem 665 Vide o subcapiacutetulo anterior 666 Sobre esses dois poetas haacute dois livros que apresentam de modo cuidadoso os seus respectivos fragmentos O primeiro eacute BRUNHARA R ldquoAs Elegias de Tirteurdquo Satildeo Paulo Editora Humanitas 2014 E o segundo CORREcircA Paula da Cunha ldquoArmas e Varotildees a guerra na liacuterica de Arquiacutelocordquo Satildeo Paulo Editora Unesp 1998

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soacutecio-poliacutetico grego Como foi visto anteriormente o meacutetodo individual de

combate estaacute inteiramente voltado para o meacutetodo militar da aristocracia no qual a

massa do povo eacute de pouca importacircncia e a responsabilidade dos combates eacute

efetuada unicamente por uma classe de especialistas militares oriundos da nobreza

que podem arcar com as despesas dos equipamentos necessaacuterios para a guerra

Enquanto que o meacutetodo taacutetico da falange precisa de uma base mais ampla um maior

nuacutemero de combatentes treinados e acostumados a atuar de modo coletivo E nesse

contexto natildeo haacute mais espaccedilo para as proezas individuais que antes representava o

ideal de coragem para a nobreza A relaccedilatildeo hieraacuterquica que antes era totalmente

verticalizada nessa nova forma de combate necessita do diaacutelogo e do muacutetuo

respeito entre os irmatildeos de armas Caso contraacuterio seria impossiacutevel estabelecer uma

uniatildeo entre todos os membros da falange

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem

dessa taacutetica entre os gregos mas no periacuteodo claacutessico os hoplitas eram oriundos de

uma espeacutecie de classe meacutedia667 que foi sendo formada por pequenos produtores Haacute

muitas divergecircncias sobre essa questatildeo entres os especialistas de Histoacuteria Antiga668

Eacute notoacuterio que em algumas partes da Iliacuteada669 eacute possiacutevel encontrarmos indicaccedilotildees

sobre o emprego de alguns combates em grupos mas natildeo haacute menccedilatildeo do emprego

dessa estrateacutegia nas obras homeacutericas A partir desses indiacutecios o que podemos

afirmar eacute que esses combates em massas relatados pelo poeta podem ter sido o

embriatildeo para a formaccedilatildeo mais robusta e equipada da famosa falange hoplita

posteriormente De qualquer modo o uacutenico relato que temos mais consistente sobre

essa questatildeo pode ser encontrado em detalhes no livro IV da Poliacutetica de

667 Esse indiacutecio nos leva a hipoacutetese de que o lendaacuterio ldquoreirdquo Iacuteon possa ter sido um guerreiro pertencente a esse grupo 668 Para o antropoacutelogo escocecircs Andrew Lang eacute possiacutevel encontramos combates em massas na Iliacuteada (XII 105 XII 145-52 XIII 126-33 XVI 212-17 e XVII 354-5) mas a questatildeo eacute saber se essa massa empregada era a famosa falange hopliacutetica Infelizmente natildeo eacute possiacutevel encontrarmos nenhum termo em grego nas epopeias homeacutericas que contribua para afirmar categoricamente que havia esse tipo de taacutetica militar durante o periacuteodo homeacuterico A outra hipoacutetese defendida por Helenistas como GS Kirk eacute que os poemas homeacutericos satildeo camadas de vaacuterios periacuteodos histoacutericos Logo essa formaccedilatildeo hopliacutetica pode ter servido como material poeacutetico Vide KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92 Para os helenistas Murray (1934) e TBL Webster (1958) as descriccedilotildees de combates em grupos teriam sido interpolaccedilotildees feitas posteriormente pelos escribas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro LANG A ldquoThe world of Homerrdquo London 1910 669 Ibidem

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Aristoacuteteles670 A nossa hipoacutetese caminha na seguinte direccedilatildeo a ascensatildeo econocircmica

pode ter sido um dos fatores que desencadearam essa mudanccedila junto com a

necessidade de criar regimentos de combatentes cada vez maiores para as

campanhas militares e consequentemente surge a demanda de mais homens

treinados na arte da guerra Com as novas taacuteticas militares empregadas por outros

povos nos campos de batalha e as crescentes baixas entre os membros da

aristocracia a antiga forma de combate torna-se obsoleta Logo surge a

necessidade de utilizar uma nova taacutetica mais eficiente que possa agregar mais

combatentes

Nesse sentido as pressotildees internas ndash e externas - somada aos altos custos

humanos e materiais para defender a soberania grega podem ter propiciado essa

fissura na antiga constituiccedilatildeo possibilitando uma organizaccedilatildeo poliacutetica mais aberta e

numerosa Eacute importante ressaltar que os equipamentos utilizados para a guerra natildeo

eram fornecidos pelo estado Logo soacute poderiam participar de qualquer atividade

militar apenas aqueles indiviacuteduos que podiam custear as armaduras e armas para o

combate671 Sobre essa questatildeo o helenista francecircs Jean-Pierre Vernant

(VERNANT 1962) acrescenta que a inclusatildeo desse grupo de produtores na esfera

militar possibilitava automaticamente uma ampla atuaccedilatildeo na esfera poliacutetica como

cidadatildeo Eacute bom lembrar que dentro desse contexto histoacuterico grego as palavras

guerreiro e cidadatildeo satildeo sinocircnimas de poliacutetico672 A partir dessas mudanccedilas jaacute era

possiacutevel prever uma grande transformaccedilatildeo dentro da estrutura sociopoliacutetica da

cidade Pois com a sua necessidade de participaccedilatildeo cada vez mais frequente na

guerra essa classe meacutedia emergente comeccedila agora a reivindicar o seu espaccedilo

poliacutetico dentro das decisotildees do estado E consequentemente essa atitude comeccedila a

desconstruir o monopoacutelio poliacutetico mantido anteriormente pela classe dos

aristocratas que fundamentavam o seu status atraveacutes do parentesco sanguiacuteneo com

a religiatildeo tradicional e que por sua vez mantinha laccedilos com a estrutura da antiga

realeza micecircnica

670 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV 671 Eacute importante notar que o estatuto do cidadatildeo tanto no acircmbito militar e poliacutetico estaacute sempre associado com a emancipaccedilatildeo econocircmica 672 Politeacutes (πολιτης) e politikoacutes (πολιτικός) Notem que ambas as palavras satildeo originadas do mesmo radical

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No capiacutetulo IV do livro da Poliacutetica673 Aristoacuteteles afirma que os homens que

pertenciam a essa classe de aristocratas eram soberbos674 A riqueza desmedida

desse pequeno grupo os tornava cegos e totalmente indiferentes agrave pobreza da

maioria da populaccedilatildeo formada por diversos trabalhadores manuais Muito antes de

Marx o filoacutesofo jaacute diagnosticava que essa caracteriacutestica negativa que demonstra

pretensatildeo de superioridade sobre os outros homens era o ponto que gerava

desequiliacutebrio dentro da estrutura sociopoliacutetica grega Para uma classe que detinha

o controle econocircmico e poliacutetico total da cidade isso era um grave erro Some-se a

isso o fato do total desrespeito ndash e despreparo para os mais diversos encargos

poliacuteticos e juriacutedicos - que gerava os mais diversos abusos propiciados pelas regalias

desfrutadas agraves custas do suor do povo A partir dessa constataccedilatildeo Aristoacuteteles no

livro da Retoacuterica675 estabelece uma importante distinccedilatildeo sobre o conceito de

nobreza Para ele haacute uma diferenccedila essencial entre a nobreza de estirpe e a de

caraacuteter A primeira eacute uma espeacutecie de heranccedila convencional (nomos) repassada

pelos antepassados aos seus familiares e que segundo ele tem o poder de

enfraquecer o espiacuterito gerando ambiccedilatildeo e desprezo pelos seus proacuteprios semelhantes

Ou seja esse eacute um tipo de status que natildeo deveria ser herdado por ningueacutem A

verdadeira nobreza eacute aquela oriunda de qualidades naturais (phyacutesis) dispostas em

cada indiviacuteduo e que se expressa atraveacutes de uma boa conduta Infelizmente natildeo era

isso o que o ocorria no passado pois a maioria dos nobres de estirpe eram pessoas

totalmente despreziacuteveis676 Esse orgulho desmedido acabava alimentando a

ambiccedilatildeo desenfreada nos espiacuteritos desses jovens Pois eles ao herdarem o nome e

os bens de suas respectivas famiacutelias tornavam-se pessoas totalmente egoiacutestas e

indiferentes ao sofrimento alheio E mais o acuacutemulo de riquezas comeccedila a atuar

como um paracircmetro valorativo para as demais questotildees da sociedade como por

exemplo o direito de participar como membro da forccedila militar Pois tudo parece

ser comprado atraveacutes da forccedila do dinheiro inclusive a fama e o poder Logo a

luxuacuteria e a ostentaccedilatildeo de poucos afetavam diretamente o senso eacutetico da maioria dos

miseraacuteveis que se amontoavam em diversas partes da cidade Por volta do seacuteculo

673 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV (1289 b e 1295b) 674 Sobre a soberba dos ricos vide PLATAtildeO Leis cap V (742 e) ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 16 (1390 b35) 675 Ibidem 676 ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 15 Vide o nosso comentaacuterio sobre as personagens de Agamecircmnon e Paacuteris

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VII e VI essa crise vai eclodir em uma terriacutevel guerra civil que soacute poderaacute ser

atenuada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon677

Vimos anteriormente que essa criacutetica agrave nobreza de sangue jaacute estava contida

de modo sutil nas obras homeacutericas atraveacutes da relaccedilatildeo entre as personagens de

Aquiles Agamecircmnon e Paacuteris O filoacutesofo macedocircnio parece seguir essa mesma

orientaccedilatildeo sobretudo quando avalia os diversos tipos de constituiccedilotildees poliacuteticas

gregas Eacute importante notarmos que desde Homero ateacute Aristoacuteteles a organizaccedilatildeo

poliacutetica da cidade representa um modo de vida que tem a excelecircncia como um ideal

Logo o cuidado com os outros membros passa a ser algo vital para o bom

funcionamento do estado grego que eacute a expressatildeo de um todo orgacircnico678 A

plenitude existencial de cada indiviacuteduo depende fundamentalmente do equiliacutebrio

pleno da cidade Por isso que filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles tratam a ciecircncia

poliacutetica da sua eacutepoca a partir de uma perspectiva eacutetica679 Por esse prisma eacute possiacutevel

compreendermos a importacircncia do legado homeacuterico para o Teatro e a Filosofia

pois nele podemos encontrar uma visatildeo do homem na plenitude de suas accedilotildees e

relaccedilotildees no meio ambiente em que vive Quando esses pequenos produtores

comeccedilam a ascender economicamente uma nova etapa da histoacuteria poliacutetica grega

comeccedila a ser escrita e declamada Na obra Os trabalhos e os dias do poeta Hesiacuteodo

podemos acompanhar os pormenores dessas transformaccedilotildees que ocorreram no

interior da sociedade helecircnica que impulsionaram esse processo de distanciamento

dos valores da aristocracia Esses trabalhadores que eram explorados comeccedilam a se

organizar em grupos com o intuito de romper os grilhotildees Nesse sentido a poesia

hesioacutedica desempenha dois papeacuteis importantiacutessimos o primeiro eacute de expor a

exploraccedilatildeo sofrida pelos nobres e o segundo estabelecer uma espeacutecie de adesatildeo

entre todas as viacutetimas que sofriam com a exploraccedilatildeo e a escravidatildeo Eacute bem provaacutevel

que esses pequenos produtores que ascenderam economicamente tivessem uma

677 Sobre essa questatildeo vide o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 678 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro I 2 (1253 a 2) III 6 (1278 b 20) Para o filoacutesofo a organizaccedilatildeo da polis eacute uma criaccedilatildeo natural Logo o homem eacute por natureza um animal poliacutetico (zoon politikon ζῷον πολιτικόν) 679 Esse ponto eacute mais um indiacutecio que corrobora a tese de Pierre Hadot que afirma que a praacutetica filosoacutefica atual eacute totalmente distorcida em relaccedilatildeo ao periacuteodo antigo Para essa questatildeo vide o seguinte livro HADOT P ldquoQuest-ce que la philosophie antiquerdquo Paris Gallimard 1995 E tambeacutem BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 6

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relaccedilatildeo de proximidade muito maior com esses outros trabalhadores manuais do

que com os oligarcas Nesse sentido eacute bem provaacutevel que esse pequeno grupo

tomasse a frente nas reivindicaccedilotildees e no diaacutelogo com os bem-nascidos

Na visatildeo de Aristoacuteteles680 a sociedade helecircnica era composta basicamente

entre ricos pobres e outras pessoas que viviam em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria681

Os primeiros estatildeo armados enquanto que a maioria que pertence ao segundo grupo

natildeo possui armas e consequentemente natildeo tem acesso ao poder militar Essa

camada da populaccedilatildeo era formada basicamente por trabalhadores manuais

campesinos artesatildeos e pequenos comerciantes O mais espantoso eacute que essa

multidatildeo natildeo tinha acesso agrave cidadania Logo natildeo tinha o direito de utilizar a

palavra682 para reivindicar as suas demandas Pois como o proacuteprio Aristoacuteteles

apresenta no livro IV da Poliacutetica683 ser cidadatildeo eacute todo aquele que pode participar

ativamente do processo de manutenccedilatildeo do governo Mas o que esses trabalhadores

representavam para a sociedade grega Eacute o que vamos investigar no proacuteximo

paraacutegrafo

No livro III ele formula essa questatildeo de modo retoacuterico ao indagar se os

trabalhadores manuais poderiam ser considerados como cidadatildeos684 ldquoComo esses

trabalhadores natildeo satildeo escravos ou estrangeiros em que categoria poderiacuteamos

classificaacute-losrdquo Na sequecircncia desse capiacutetulo ele tenta encontrar um meio termo

para encontrar uma resposta loacutegica atraveacutes de uma formulaccedilatildeo que visa apresentar

vaacuterias categorias de cidadatildeo De qualquer modo a sua argumentaccedilatildeo natildeo soluciona

o problema exposto O que podemos extrair das suas reflexotildees eacute que o criteacuterio

econocircmico utilizado pela oligarquia685 no lugar da virtude686 eacute o que vai determinar

o acesso dessa minoria ao poder militar que simultaneamente vai aplicar essa

prerrogativa para justificar o controle poliacutetico da cidade Essa distorccedilatildeo vai gerar

uma tensatildeo entre uma minoria que defende esse tipo de constituiccedilatildeo e uma maioria

680 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV 681 Meacuteson (microέσον) E mais uma vez nessa passagem surge a nossa hipoacutetese eacute bem possiacutevel que a figura de Iacuteon tenha surgido dentro desse contexto Mesmo sem Aristoacuteteles citaacute-lo a partir das informaccedilotildees que ele fornece nas suas duas obras (Poliacutetica e a Constituiccedilatildeo dos atenienses) indiacutecios que alimentam a nossa teoria 682 Loacutegos (λόγος) 683 Ibidem livro IV (1283 b) 684 Ibidem livro III (1277 b) 685 Uma plutocracia 686 ἀρετήaretecirc

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de pobres que vai reagir de modo violento apoacutes um longo periacuteodo de escravidatildeo

por diacutevidas ateacute resultar em um novo modelo poliacutetico denominado democracia que

alcanccedilou a sua plenitude apoacutes as reformas do legislador Clistenes Na argumentaccedilatildeo

aristoteacutelica essa nova forma de constituiccedilatildeo eacute um efeito colateral da primeira Ou

seja ela surge de um erro provocado pelos oligarcas Logo ambas natildeo expressam

em sua totalidade a justiccedila suprema em que uma constituiccedilatildeo ideal deveria se pautar

Ele reconhece que nos dois sistemas poliacuteticos o criteacuterio de justiccedila eacute parcial pois

natildeo funciona para todos mas apenas para aqueles que satildeo considerados iguais687

A sua anaacutelise epistemoloacutegica parece estar em total consonacircncia com as criacuteticas que

o seu mestre Platatildeo apresenta sobre esses modelos poliacuteticos no livro VI VII e IV

da Repuacuteblica688 Para o mestre da academia todas as constituiccedilotildees689 poliacuteticas tem

um ciclo vital como qualquer ser vivo690 Ou seja um comeccedilo meio e fim Um

momento de pleno vigor e outro de decadecircncia A oligarquia e a democracia satildeo

degeneraccedilotildees oriundas da aristocracia Utilizando uma formulaccedilatildeo apresentada por

Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias691 ele declara que essa discoacuterdia entre os

nobres e o povo que ele denomina em termos assaz poeacuteticos como uma batalha

entre a raccedila de ferro e de bronze satildeo motivadas pela ganacircncia e o lucro692 Para

Platatildeo assim como Aristoacuteteles a constituiccedilatildeo ideal deveria ser norteada693 pela

virtude As indagaccedilotildees que o filoacutesofo-poeta apresenta na sua Repuacuteblica por

exemplo tentam buscar uma nova forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que respeite esse

princiacutepio para formaccedilatildeo harmocircnica da cidade Eacute notoacuterio que a sua tentativa de

instalar esse governo em Siracusa foi um tremendo fracasso694 Ateacute o periacuteodo

claacutessico a constituiccedilatildeo poliacutetica grega sobretudo em Atenas que mais vigorou foi o

regime democraacutetico que possibilitou a participaccedilatildeo da maioria excluiacuteda na

constituiccedilatildeo oligaacuterquica Eacute importante ressaltar que esse tipo de constituiccedilatildeo

687 ἴσοςisos esse radical vai gerar o termo isonomia (ἰσονοmicroία) Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo ἰσονοmicro-ία Ion -ιη ἡ equal distribution equilibrium balance δυνάmicroεων Alcmaeon 4 cf Ti Locr 99b Epicur Fr 352 II equality of political rights Hdt 380 142 ἰ ποιεῖν Id 537 opp δυναστεία Th 478 ἰ πολιτική Id 382 ἰ ἐν γυναιξὶ πρὸς ἄνδρας καὶ ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας Pl R 563b 688 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo livro VI (488 a-489 a) VIII (544 c ndash 562 a) e IX 689 Seguindo a ordem estabelecida por Platatildeo no livro VIII Aristocracia Timocracia oligarquia democracia e tirania 690 Eacute a partir dessa constataccedilatildeo que Aristoacuteteles vai desenvolver a sua tese da polis como algo natural e tambeacutem do homem como um animal poliacutetico 691 Erga kaiacute Hemeacuterai (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι) 692 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo VIII (547 b) 693 Ibidem livro VIII (556 a-b) 694 PLATAtildeO ldquoCarta VIIrdquo

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tambeacutem sofreu diversas modificaccedilotildees que satildeo expostas e analisadas no livro da

Poliacutetica por Aristoacuteteles

Para o filoacutesofo macedocircnio essa classe meacutedia formada por pequenos

produtores que estava em uma zona intermediaacuteria entre nobres e pobres seraacute em

sua visatildeo695 a mais apta a estabelecer um governo justo para todos os indiviacuteduos na

cidade Mas o ponto central para a nossa presente anaacutelise eacute que ele reconhece que

a durabilidade do regime democraacutetico eacute totalmente dependente da intervenccedilatildeo da

classe meacutedia696 pois esse elemento intermediaacuterio eacute muito mais numeroso e

consistente ao estabelecer a uniatildeo entre ambos os lados - os ricos e pobres - com o

objetivo de evitar que se produzam excessos contraacuterios Para justificar a sua tese o

estagirita tem em mente o terriacutevel incidente que levou Atenas a uma das mais

sangrentas guerras civis que ocorreu entre os seacuteculos VII e VI Por isso que ele

destaca que os melhores legisladores gregos satildeo Soacutelon Licurgo e Carondas697 pois

todos esses homens citados aleacutem de possuiacuterem uma nobreza genuiacutena de caraacuteter

eles tambeacutem se destacaram por atuar com extrema eficiecircncia e coragem em

momentos de crise698 O detalhe mais importante eacute que todos esses poliacuteticos eram

oriundos dessa bendita classe intermediaacuteria Essa explanaccedilatildeo a favor desse regime

poliacutetico a partir do auxiacutelio desses homens do centro ndash que eacute embasada na cuidadosa

anaacutelise histoacuterica efetuada pelo filoacutesofo - indica para noacutes que a grande revoluccedilatildeo699

que ocorreu atraveacutes da reforma hopliacutetica por volta dos seacuteculos VIII e VII pode estar

relacionada com o surgimento do proacuteprio processo democraacutetico A nossa hipoacutetese

695 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV (1295 b) 696 Ibidem livro IV (1296 a) 697 Soacutelon foi um poeta legislador responsaacutevel por estabelecer a primeira base para a fundaccedilatildeo do regime democraacutetico em Atenas Carondas foi um legislador da cidade de Catacircnia na Siacutecilia sul da Itaacutelia por volta do seacuteculo VII aC Licurgo foi um dos espartanos mais famosos na antiguidade Aleacutem de estabelecer o coacutedigo juriacutedico e educacional de Esparta ele tambeacutem foi responsaacutevel por resgatar as obras de Homero que estavam desaparecendo em sua eacutepoca Para mais informaccedilatildeo vide o livro de Plutarco sobre a sua vida 698 Eacute estranho notar que Aristoacuteteles natildeo menciona o legislador Clistenes dentro desse contexto As reformas de Clistenes satildeo mencionadas de modo sucinto na primeira parte da Constituiccedilatildeo dos atenienses 699 Sobre esse ponto haacute duas teses que seguem em direccedilotildees opostas a primeira eacute a que defende que esse processo ocorreu de forma lenta e gradual Para essa linha exegeacutetica vide o seguinte livro M Finley ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 Enquanto que a segunda interpretaccedilatildeo defende que houve de fato uma revoluccedilatildeo a partir do desenvolvimento da tecnologia na aacuterea militar Para essa interpretaccedilatildeo vide as contribuiccedilotildees de Claude Mosseacute no seguinte livro C Mosseacute ldquoA Greacutecia Arcaica de Homero a Eacutesquilordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo M Detienne ldquoLa phalange problegravemes et controversiesrdquo in JP Vernant (Ed) Problegravemes de la guerre en Gregravece Ancienne Paris Eacuteditions EHESS 1985 pp 119-142

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fundamenta-se em dois importantes detalhes fornecidos pelo proacuteprio Aristoacuteteles O

primeiro eacute que a conduta desses grandes homens estava em total consonacircncia com

o ideal de respeito e confianccedila pelo outro que torna um paradigma valorativo e

normativo para todos os gregos ateacute o periacuteodo claacutessico e que tem origem nessa nova

forma de combate hoplita O segundo aspecto e natildeo menos importante eacute o fato de

esses homens serem extremamente respeitados pelos oligarcas e o povo Caso

contraacuterio seria praticamente impossiacutevel solucionar a crise existente entre esses dois

grupos sociais que representavam os pontos mais extremos da cidade Essa

intermediaccedilatildeo foi importante para formaccedilatildeo de uma forccedila militar mais consistente

e numerosa700 Esse aspecto foi responsaacutevel por promover uma abertura poliacutetica que

pode ter sido condicionada como apontamos anteriormente por fatores de ordem

interna e externa Para o primeiro que foi amplamente exposto nos paraacutegrafos

anteriores refere-se ao fato de essa minoria explorar de forma vil a maioria dos

trabalhadores humildes que sustentavam a estrutura econocircmica da cidade Segundo

as fontes fornecidas por Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo701 e

Dioacutegenes de Laeacutercio702 os trabalhadores do campo viviam nas terras desses nobres

de modo muito precaacuterio Em contrapartida esses campesinos tinham que pagar

altiacutessimas taxas para poderem trabalhar no campo Com a dificuldade de plantio

essas famiacutelias criavam altiacutessimas diacutevidas para manter o cultivo e a sua proacutepria

subsistecircncia E para piorar os nobres obrigavam esses trabalhadores a assinarem

um pacto no qual a garantia desse acordo era selada com a proacutepria vida Ou seja

todos aqueles que natildeo pudessem pagar as suas diacutevidas tornavam-se escravos dos

seus credores que os mantinham como um servo permanente em seus lares ou

entatildeo eram postos agrave venda como mercadorias para outras cidades Muitos desses

trabalhadores eram obrigados a entregarem os seus proacuteprios filhos e esposas para

quitarem as suas diacutevidas Essa situaccedilatildeo ficou insustentaacutevel e gerou uma terriacutevel

guerra civil que soacute pocircde ser solucionada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador

Soacutelon

700 E mais uma vez nos vem agrave lembranccedila do lendaacuterio rei general Iacuteon que eacute mencionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo com um dos responsaacuteveis por modificar a constituiccedilatildeo original 701 ARISTOacuteTELES ldquoConstituiccedilatildeo dos Ateniensesrdquo (63) Sobre essa questatildeo vide tambeacutem o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 702 DIOacuteGENES DE LAEacuteRCIO ldquoVida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustresrdquo livro I (53)

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[PLUTARCO Vida de Soacutelon cap IV] ldquoEnquanto maus existem que enriquecem Haacute muitos bons que pobres permanecem Todavia trocar a nossa bondade natildeo desejamos pela vil maldade Pois a virtude eacute firme e perduraacutevel Mas a riqueza incerta e transmudaacutevel703rdquo

Os fatores de ordem externa referem-se agraves constantes guerras entre as

cidades704 vizinhas e as inuacutemeras tentativas de invasotildees de diversos povos como

os persas O mais interessante nesses uacuteltimos aspectos apresentados eacute que essas

cidades que constantemente brigavam entre si em determinado momento se

juntaram para formar um exeacutercito de coalizatildeo contra um inimigo comum705 E esse

fator eacute tambeacutem apontado por vaacuterios helenistas (EHRENBERGER 1968) como um

dos responsaacuteveis para o surgimento do tipo singular de formaccedilatildeo sociopoliacutetica da

polis A partir dessas uacuteltimas consideraccedilotildees eacute possiacutevel nos aproximar na medida

do possiacutevel da mentalidade voltada especificamente para o acircmbito da guerra que

teve as suas maiores mudanccedilas entre o periacuteodo homeacuterico e arcaico

A grande novidade que surge entre essas duas etapas histoacutericas eacute a criaccedilatildeo da

falange hopliacutetica A nova formaccedilatildeo que estabelece uma formaccedilatildeo em linha de

escudos inaugura uma nova concepccedilatildeo de coragem que estaacute totalmente em

consonacircncia com a postura dos homens do meio que foram essenciais para

estabelecer uma uniatildeo poliacutetica na Greacutecia Vimos anteriormente que no periacuteodo

homeacuterico o valor do guerreiro aristocraacutetico estava totalmente voltado para as

faccedilanhas de cunho individual A coacutelera guerreira706 que era inspirada por alguma

703 PLUTARCO ldquoVida dos Homens Ilustresrdquo Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 704 Eacute importante ressaltar que estamos utilizando o sentido de ldquocidaderdquo na sua forma mais ampla que corresponde a um conglomerado de pessoas que habitam no mesmo espaccedilo 705 EHRENBERG Victor ldquoFrom Solon to Socratesrdquo London Methuen 1968 Cap III 706 Lyssa (λύσσα) eacute uma espeacutecie de fuacuteria guerreira Vide Liddel amp Scott λύσσ-α Att λύττα ἡ raiva fuacuteria em Hom sempre de raiva marcial κρατερὴ δέ ἑ λ δέδυκεν Il 9239 λ ἔχων ὀλοήν ib 305 λ δέ οἱ κῆρ αἰὲν ἔχε κρατερή 21542 2 apoacutes Hom furiosa loucura frenesi como foi causada pelos deuses como a de 10 λύσσης πνεύmicroατι microάργῳ A Pr 883 (ANAP) de Orestes Id CH 287 E Ou 254 etc dos Proetides B 10102 de frenesi Baco ἐλαφρὰ λ E Ba 851 θοαὶ Λύσσας κύνες das Fuacuterias ib 977 (LYR) λύσσῃ παράκοπος Ar ordm 680 Strengthd λ microανιάς S Fr 9414 λύττα ἐρωτική Pl Lg 839a λ sozinho de fuacuteria amor Theoc 347 simplesmente raiva Phld IR p77 W fanatismo περὶ τὰς αἱρέσεις Gal 8148 (pl) 3 personificada Λύσσα a deusa da loucura E HF 823 II a raiva em catildees X Uma 5726 Arist HA 604a5 Gal 1296 em cavalos Porph Abst 37 2 o verme sob a liacutengua dos catildees removido da crenccedila de que ela produz raiva Plin HN 29100

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divindade oliacutempica era o leitmotiv para realizaccedilatildeo de atitudes heroicas no campo

de batalha Esse furor despertava uma espeacutecie de ecstasy707 no espiacuterito do

combatente que se lanccedilava de modo totalmente impulsivo e insano em direccedilatildeo do

inimigo Por isso que nesse contexto a coragem estava totalmente centrada no

destaque das accedilotildees individuais Sob outra perspectiva totalmente distinta a falange

hoplita operava na guerra Para eles a coragem natildeo estava mais focada no destaque

pessoal mas na forccedila coletiva A coacutelera beacutelica eacute substituiacuteda pela prudecircncia708 e o

autocontrole Dentro desse novo contexto o domiacutenio dos impulsos709 passa a ser

algo essencial para o estabelecimento de uma moral no qual o sentido de coragem

seraacute pautado no ideal de respeito e solidariedade O primeiro registro histoacuterico

escrito dessa mudanccedila que temos notiacutecia pode ser localizado na obra de

Heroacutedoto710 que foi escrita por volta do seacuteculo IV ac No livro IX o historiador

relata a famosa batalha entre os 300 espartanos contra o exeacutercito persa Nessa

ocasiatildeo o exeacutercito espartano mesmo estando em menor nuacutemero se manteve

totalmente unido e firme na sua posiccedilatildeo como um bloco monoliacutetico formado por

homens e escudos sem recuar da sua posiccedilatildeo no combate Segundo Heroacutedoto

houve apenas um guerreiro espartano chamado Aristodemo que foi humilhado por

seus pares por ter abandonado a formaccedilatildeo durante o combate nas Termoacutepilas Apoacutes

essa censura e com o intuito de reparar a sua falta ele acaba cometendo outro erro

707 Vide Lidell amp Scott Ekstasis (ἔκστασις) εως ἡ (ἐξίστηmicroι) deslocamento ἄρθρων Hp Arte 56 πᾶσα κίνησις ἔ ἐστι τοῦ κινουmicroένου Arist reitor 406b13 mudanccedila εἰς ἀντικείmicroενα Id GA 768a27 αἱ κακίαι ἐ Identidade Ph 247a3 ἔ ἐστιν ἐν τῇ γενέσει τὸ παρὰ φύσιν τοῦ κατὰ φύσιν Id Cael 286a19 ἔ τῆς φύσεως degenerescecircncia Thphr CP 316 opp στάσις Plot 632 o movimento para o exterior ἔ ἀπὸ τοῦ παράγοντος Dam Pr 97 bis ἔ εἰς τὸ ἔξω ib 401 [Σῶmicroα] ἐν ἐκστάσει λαβὸν τὴν ὑπόστασιν Porph Enviei 36 diferenciaccedilatildeo ἔ καὶ πιῆθος Plot 6717 αἱ εἰς πλῆθος ἐ Procl em Ti 2203 D II ficando de lado Arist Rh 1361a37 (pl) b = Lat cessio bonorum 20ii9 CPR (iii dC) ἔ χρηmicroάτων Porph Abst 153 um imposto sobre as cessotildees BGU 9146 (AD ii) PLond 23052 (PTeb P184 ii) 2 distraccedilatildeo da mente de terror espanto raiva etc Hp APH 75 Prorrh 29 ἔ σιγῶσα Id Coac 65 ἔ microανική Arist Gato 10A1 ἔ τῶν λογισmicroῶν Plu Sol 8 Plot νοῦ 537 τὰ microηδὲ προσδοκώmicroεν ἔκστασιν φέρει Men 149 cf Epit 472 Epicur Fr 113 εἰς ἔ ἄγειν Longin 14 3 entrancement espanto Ev Luc 526 EvMarc 542 4 trance ActAp 1010 2217 ecstasy Plot 6911 ἔ καὶ microανία Herm Em PhDr p103A b excitaccedilatildeo de embriaguez Corn ND 30 708 Sophosyne (σωφροσύνη) Vide Lidell amp Scott σωφροσύνη [υ] Dor σωφρον-ύνα Ep e poeta σαοφροσύνη (como em Hom e na poesia depois IG 22363211 3753) ἡ bom juiacutezo prudecircncia discriccedilatildeo Od 2313 em pl ib 30 a forma comum pela primeira vez em Thgn 379 701 1138 Epich 101 αἰδὼς σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει Th 184 σ λαβεῖν Id 864 sanidade opp microανία X Mem 1116 cf ActAp 2625 2 moderaccedilatildeo nos desejos sensuais autocontrole a temperanccedila Democr 210 AR Nu 962 (ANAP) Pl 563 (ANAP) E 1131 Pl PhDr 237e etc σ τὸ κρατεῖν ἡδονῶν καὶ ἐπιθυmicroιῶν Id Smp 196C σ τὸ περὶ τὰς γυναῖκας (sc ἔργον) Arist Pol 1263b9 cf PT 1117b23 Pl Phd 68c R 430E sq 1 EpTi 29 3 em um sentido poliacutetico uma forma moderada de governo Th 864 709 Eacute importante ressaltar que essas caracteriacutesticas podem ser encontradas em Homero 710 Heroacutedoto ldquoHistoacuteriasrdquo IX 70

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ainda mais grave lanccedila-se na direccedilatildeo do inimigo de modo totalmente impulsivo e

egoiacutesta Em detrimento dessa sua impostura ele natildeo obteve as honras fuacutenebres que

os outros guerreiros espartanos receberam apoacutes a morte711 Esse importante registro

revela uma profunda mudanccedila na eacutetica guerreira que ocorreu entre o periacuteodo

homeacuterico e arcaico que vai modular o comportamento sociopoliacutetica dos gregos

Essa nova concepccedilatildeo de coragem revela que o valor de cada indiviacuteduo soacute pode ser

manifestado dentro da reuniatildeo do seu respectivo grupo O desejo de vitoacuteria sobre o

inimigo soacute pode ser obtido atraveacutes da forccedila da amizade712 e do espiacuterito de

comunidade713 A partir dessa perspectiva nos deparamos com a total rejeiccedilatildeo dos

antigos valores aristocraacuteticos Esse indiacutecio indica que a pressatildeo para ocorrer essas

mudanccedilas possam ter sido impulsionadas pelo povo com o auxiacutelio desses homens

do meio A ostentaccedilatildeo e a soberba tornam-se praacuteticas odiosas porque podem

provocar a inveja que levaraacute ao desequiliacutebrio dentro da proacutepria estrutura

sociopoliacutetica da cidade

Essa nova mentalidade inaugura na historiografia grega uma nova forma de

comunicaccedilatildeo que se distanciaraacute da palavra maacutegico-religiosa714oriunda do periacuteodo

micecircnico O processo de laicizaccedilatildeo que ocorre simultaneamente ao lado dessa nova

concepccedilatildeo de combate em grupo torna possiacutevel o surgimento da palavra-diaacutelogo

pois ela eacute diametralmente oposta agrave forma verticalizada e fechada da palavra

maacutegico-religiosa Natildeo havia reciprocidade no ato de comunicaccedilatildeo no periacuteodo da

realeza micecircnica mesmo com a mudanccedila da organizaccedilatildeo poliacutetica esse pequeno

grupo que chegou ao controle da cidade ainda se apoiava nas antigas tradiccedilotildees da

nobreza palaciana Com as draacutesticas mudanccedilas que o ocorreram na mentalidade

grega o processo de comunicaccedilatildeo foi tornando-se mais aberto e plural715 Nesse

sentido a concepccedilatildeo de combate hoplita foi responsaacutevel por promover uma

proximidade entre os homens que soacute pocircde ser alcanccedilada a partir do momento em

que a cidade rompe os laccedilos com os valores da classe aristocraacutetica E essa mudanccedila

711 Ibidem 712 Philia (φιλiacuteα) 713 Koinonia (κοινωνία) 714 Vide o capiacutetulo 1 715 Vide o subcapiacutetulo 37

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vem atraveacutes da nova concepccedilatildeo de coragem que eacute regida pela forccedila da solidariedade

e do diaacutelogo

O ato de compartilhar os despojos de guerra que podemos ver em detalhes na

Iliacuteada de Homero716 eacute uma antiga praacutetica que contribui para o estabelecimento de

viacutenculos de proximidade e respeito muacutetuo entre os guerreiros Essa experiecircncia na

cultura grega foi tatildeo marcante que o surgimento da assembleia717 que surgiu nas

discussotildees entre os guerreiros no campo de batalha acompanharaacute o

desenvolvimento espacial da proacutepria cidade Diferentemente da organizaccedilatildeo

poliacutetica palaciana a nova organizaccedilatildeo arquitetocircnica vai estabelecer uma praccedila no

centro que seraacute aberta a todos os cidadatildeos Essa caracteriacutestica revela a importacircncia

que a palavra compartilhada e discutida ganha na vida do povo helecircnico A praccedila

de reuniatildeo torna-se um centro essencial que nortearaacute os rumos da vida poliacutetica da

polis atraveacutes do diaacutelogo da argumentaccedilatildeo e confronto de ideias No qual a

palavra718 compartilhada atuaraacute como um instrumento poliacutetico Ela seraacute a expressatildeo

da proacutepria soberania grega atraveacutes da democracia e da filosofia socraacutetico-platocircnica

716 Vide Canto I 717 Ekklesia (Εκκλησία) e Aacutegora (ἀγορά) 718 Λόγος Loacutegos Vide os nossos anexos

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Consideraccedilotildees finais

O fim uacuteltimo de toda investigaccedilatildeo filosoacutefica deve contribuir para o

desenvolvimento progressivo de formas melhores para a existecircncia humana719 A

eudaimonia para um autecircntico filoacutesofo grego antigo720 como Platatildeo consiste

exatamente em olhar para o mundo como um imenso espelho721 que reflete a sua

proacutepria imagem que se forma na multiplicidade de cores e texturas que estatildeo

escondidas na beleza invisiacutevel que talvez tenhamos a chance de encontraacute-la quando

estabelecemos uma relaccedilatildeo harmocircnica com o outro atraveacutes do diaacutelogo722 A partir

do acircmbito individual nos deparamos com o movimento que nos impulsiona agrave busca

do conhecimento que em um primeiro momento ocorre de modo solitaacuterio a partir

do reconhecimento de nossa ignoracircncia e que posteriormente mostra ao indiviacuteduo

a sua pobreza e incompletude Essa atitude eacute essencial por um lado para o homem

reconhecer a importacircncia do seu semelhante que segundo Aristoacuteteles723 eacute uma lei

natural que nos obriga a viver em comunidade de modo justo e equilibrado E por

outro essa busca abre o campo de possibilidades que demarca o proacuteprio horizonte

que estabelece a divisatildeo entre o mundo divino e humano

Segundo o filoacutesofo macedocircnio o nosso caraacuteter724 se revela em nossas

accedilotildees725 Logo o nosso senso moral precisa estar afinado com a razatildeo para que

possamos escolher o melhor caminho existencial possiacutevel Nesse sentido a

educaccedilatildeo desempenha uma das mais importantes funccedilotildees na construccedilatildeo de

qualquer sociedade pois eacute ela que fornece ao indiviacuteduo o conhecimento

fundamental para a realizaccedilatildeo de tal objetivo atraveacutes da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica

Para os gregos a sua pedagogia partiu de todas as experiecircncias que se formaram a

partir das inuacutemeras trageacutedias humanas e naturais Elas formam a mateacuteria prima

719 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 720 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo 721 Razatildeoreflexatildeo 722 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e) 723 Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro II 1103b ndash 10 e 25) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo 724 ἔθοςeacutethos 725 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (livro I 10 94 a)

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para a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prezasse pelo fundamento da Beleza que

atuou como um criteacuterio existencial As grandes conquistas e dissabores dos povos

predecessores em seu passado mais remoto foram determinantes para a reuniatildeo de

um imenso banco mnemocircnico que foi uacutetil para a reconfiguraccedilatildeo da cultura helecircnica

apoacutes o longo - e traacutegico - periacuteodo conhecido como a idade das trevas Antes

surgiram trecircs importantes culturas que participaram de modo ativo na reuniatildeo

dessas lembranccedilas que foram empregues na estruturaccedilatildeo cultural grega a saber a

civilizaccedilatildeo ciclaacutedica minoica e micecircnica

Com o amplo trabalho efetuado pelos arqueoacutelogos antropoacutelogos e

historiadores foi possiacutevel encontrarmos uma vasta gama de materiais orgacircnicos e

inorgacircnicos que nos permitiram analisar de perto algumas caracteriacutesticas dessas

sociedades que foram catalogadas e registradas em diversas obras Infelizmente

algumas dessas importantiacutessimas fontes que foram inspiradoras para o iniacutecio dessa

presente pesquisa estavam no antigo Museu Nacional que deveria ser protegido

como um tesouro de maacuteximo valor pelo ministeacuterio da educaccedilatildeo e cultura De modo

inexplicaacutevel todo o nosso vastiacutessimo legado histoacuterico que abrangia objetos de

importantes civilizaccedilotildees antigas que foram reunidas pela famiacutelia imperial foram

consumidos pelo fogo O mesmo poder divino que outrora destruiu a cidade de

Troacuteia veio para nos mostrar que estamos agindo de modo imprudente e desmedido

Diante de tal trageacutedia foi possiacutevel nos aproximar da mesma sensaccedilatildeo de vazio que

outrora devastou Priacuteamo e que nos faz repensar toda a nossa vida em um uacutenico

instante Esse espanto que surge diante do noacutes eacute o mesmo responsaacutevel pelo

nascimento da filosofia726

Segundo Platatildeo e Aristoacuteteles o processo produzido pelo thaacuteuma faz

reconhecer a nossa ignoracircncia que estaacute atrelada diretamente com a nossa fraacutegil

condiccedilatildeo de seres mortais diante das forccedilas dos imortais A filosofia para esses

pensadores eacute fundamentalmente marcada por esse processo social e dialoacutegico que

necessita do contato entre duas almas727 de modo ativo como uma praacutetica

existencial que estaacute conectada com a esfera eacutetica epistecircmica poliacutetica juriacutedica e

pedagoacutegica Diante das consideraccedilotildees apresentadas no segundo capiacutetulo728

726 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 727 Esse mesmo processo pode ser aplicado ao processo de intercacircmbio cultural 728 Vide o subcapiacutetulo 2 1 intitulado A palavra entre os homens e deuses

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pudemos avaliar como o processo reflexivo estava em total sintonia com a luta pela

sobrevivecircncia humana Logo nos deparamos que esse importante processo

intelectual natildeo surgiu como um passe de maacutegica durante o periacuteodo arcaico na

Greacutecia729 E a partir dessas evidecircncias que esses autores antigos fornecem em suas

respectivas obras formamos o nosso itineraacuterio investigativo que nos levou para um

territoacuterio temporal que ainda eacute desconhecido entre muitos estudantes da aacuterea da

filosofia antiga

Durante o desenvolvimento desse presente trabalho foi necessaacuterio questionar

por exemplo como ocorreu esse processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva

helecircnica E como foi exposto por noacutes anteriormente a nossa cartografia precisou

criar um caminho metodoloacutegico e estrateacutegico que nos levou diretamente para o

periacuteodo preacute-histoacuterico grego Atraveacutes do meacutetodo comparativo pudemos avaliar a

imensa riqueza dos materiais arqueoloacutegicos disponiacuteveis que foram descobertos

inicialmente pelos estudos do alematildeo Heinrich Schliemann e o britacircnico Arthur

Evans Consequentemente essas provas foram cotejadas ao lado da extensa

tradiccedilatildeo mito-poeacutetico que construiu um legado importante que reuacutene em suas

narrativas os traccedilos mais essecircncias dessas culturas predecessoras que foram

selecionadas com precisatildeo para a elevaccedilatildeo de sua proacutepria identidade cultural que

foi mantida pela poesia E nesse sentido a obra de Homero e Hesiacuteodo foram

basilares para avaliar a importacircncia desse legado que foi construiacutedo atraveacutes da

tradiccedilatildeo oral

A primeira evidecircncia que encontramos no meio desse caminho foi o caraacuteter

de mesticcedilagem730 que eacute um traccedilo diga-se de passagem detectaacutevel em todas as

culturas que antecederam os gregos Outro ponto interessante que encontramos no

decorrer desse estudo foi a descoberta que nos mostrou que a mitologia helecircnica

foi constituiacuteda durante um longo processo que se iniciou na preacute-histoacuteria grega

(NILSSON 1973) ou seja um periacuteodo muito mais recuado do que aquele

denominado por alguns historiadores como a fase preacute-homeacuterica A partir dessa

constataccedilatildeo eis que surge a seguinte questatildeo como foi possiacutevel diante de vaacuterios

processos de transiccedilatildeo e decliacutenio algumas carateriacutesticas culturais desses povos mais

antigos sobreviverem atraveacutes da mitologia ateacute depois do periacuteodo claacutessico E esse

729 Vide a tese do milagre grego defendida pelo classicista escocecircs John Burnet 730 Cruzamento eacutetnico

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problema foi um dos pontos centrais e mais interessantes que foi exposto em nossa

tese Primeiramente porque atraveacutes dele podemos compreender a grandiosidade e

a singularidade do processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega O mito

eacutepos loacutegos e o diaacutelogo satildeo os principais aspectos do longo e complexo processo de

expressatildeo e reflexatildeo que passa por diversas transformaccedilotildees para corresponder

eficientemente a cada um dos seus respectivos contextos histoacutericos Ao analisarmos

esses modos foi possiacutevel delinear a grandiosidade e a riqueza desse imenso legado

que estaacute reunido na obra homeacuterica e hesiodica

A figura responsaacutevel por manter e proteger esse tesouro humano era o aedo

A sua fama e gloacuteria ao contraacuterio dos nossos poetas modernos que se destacam

atraveacutes de suas criaccedilotildees que tentam buscar algo novo era construiacuteda na utilizaccedilatildeo

desse material tradicional mais antigo de modo original e encantador A assinatura

dos grandes aedos como Homero surgia a partir de uma releitura minuciosa de todo

esse banco mnemocircnico que permitia uma identificaccedilatildeo imediata entre todos os seus

respectivos ouvintes Nesse sentido o pleno domiacutenio das regras musicais foi

essencial para o alcance desse objetivo de manter todo o precioso legado cultural

vivo entre seus pares Esse fenocircmeno de origem divina731 para os gregos surgiu na

remota civilizaccedilatildeo ciclaacutedica e foi expandida na civilizaccedilatildeo minoica e micecircnica e

exerceu uma profunda influecircncia no processo de subjetividade grego

O uso de instrumentos musicais revela o domiacutenio de um profundo

conhecimento da harmonia que eacute uma lei necessaacuteria para ordenar o encadeamento

dos acordes que ocorre na relaccedilatildeo ou seja no diaacutelogo entre o uso da voz e dos

instrumentos musicais732 Nesse sentido nos deparamos com mais uma evidecircncia

que prova que esse tipo de estudo eacute bem anterior ao surgimento da teoria harmocircnica

de Pitaacutegoras733 E eis que surge a questatildeo como poderiacuteamos avaliar o valor desse

antigo conhecimento na cultura grega O valor dessa heranccedila pode ser mensurado

atraveacutes da estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica que acompanhou todo o processo de

731 Ou seja natildeo humana 732 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (108 b) 733 A nossa hipoacutetese eacute de que o grandes Pitaacutegoras e outros importantes pensadores desse fenocircmeno fiacutesico como Aristoxeno partiram desse imenso legado para o desenvolvimento dos seus respectivos estudos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o nosso terceiro capiacutetulo

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florescimento literaacuterio grego O hexacircmetro dactiacutelico734 por exemplo aleacutem de

fornecer um mecanismo eficiente para as apresentaccedilotildees puacuteblicas dos aedos

tambeacutem estabelecia o proacuteprio sentido da poesia heroica A muacutesica como o

diaacutelogo735 opera por esse jogo de contraste 736 entre a tensatildeo e o ajuste entre o

ritmo e a melodia Essas satildeo as mesmas leis do pensamento que estatildeo na concepccedilatildeo

original do diaacutelogo que encontramos nas obras de Platatildeo737

Dentro desse contexto podemos nos aproximar desse magniacutefico mecanismo

que revela o processo de construccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem grega que

foi aprimorada atraveacutes da muacutesica Como foi exposto em diversas partes desse

presente trabalho a fala extraordinaacuteria inspirada pelos deuses foi o criteacuterio inicial

para a organizaccedilatildeo do mundo ordinaacuterio humano Vale ressaltar que essa capacidade

foi esculpida e ampliada em seu mais extenso uso dentro da tradiccedilatildeo oral que

exerceu a sua posiccedilatildeo de destaque ateacute o ressurgimento da escrita no periacuteodo arcaico

Como ressaltou a professora Flora em sua pesquisa sobre a muacutesica helecircnica

(LEVIN 2014) os gregos podem ter desenvolvido desde a infacircncia uma capacidade

extraordinaacuteria que foram encontradas em outras culturas aacutegrafas738 do ouvido

absoluto e relativo Pois para o alcance da excelecircncia e efetividade739 dessa

atividade se faz necessaacuterio uma educaccedilatildeo que fosse voltada para expandir a

capacidade dos sentidos que foi responsaacutevel por ampliar o processo subjetivo

coletivo grego E essa faceta tambeacutem era empregada natildeo apenas no processo

comunicativo mas sobretudo para a formaccedilatildeo militar

Uma importante referecircncia que corrobora com essa hipoacutetese pode ser

encontrada no segundo livro da Repuacuteblica740 no qual o filoacutesofo afirma que a poesia

fazia parte do primeiro processo musical que se iniciava na infacircncia antes da

734 Hexacircmetro dactiacutelico do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida Eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico utilizado na cultura oral Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica grega e latina 735 A muacutesica assim como o diaacutelogo necessita estabelecer esse contato entre duas almas para encontrarem o seu proacuteprio sentido expressivo 736 O uso do Oxiacutemoro (ὀξύmicroωρον esse termo que eacute formado por ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) ou paradoxismo eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo palavras que exprimem ideias contraacuterias Ela eacute considerada uma figura de linguagem que eacute um traccedilo que encontramos na muacutesica que marcou - como foi ressaltado por noacutes anteriormente - profundamente o processo de subjetividade grego Vide os fragmentos de Heraacuteclito 737 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e 146 a 190 a) 738 Vide as nossas consideraccedilotildees no subcapiacutetulo 36 739 Vide as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto em nosso primeiro capiacutetulo 740 Vide Platatildeo Repuacuteblica (377 a) e as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto no subcapiacutetulo 37

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ginaacutestica741 Nesse sentido ele acompanhou todos os meandros dessa antiga

tradiccedilatildeo pedagoacutegica para desenvolver criticamente o seu meio de expressatildeo

filosoacutefico atraveacutes do diaacutelogo que por outro lado eacute a imagem de sua proacutepria

pedagogia Esse meio de expressatildeo ganha a sua plenitude apoacutes a abertura

democraacutetica742 que possibilitou entre os cidadatildeos o uso de um importante

instrumento linguiacutestico que visava manter a sua proacutepria soberania poliacutetica atraveacutes

do ideal de igualdade

741 Na antiguidade era os dois principais toacutepicos da formaccedilatildeo pedagoacutegica grega 742 A partir da intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon e das reformas de Clistenes

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HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012

HADOT Pierre Quest-ce que la philosophie antique Paris Gallimard 1995

HAVELOCK E Prefaacutecio a Platatildeo Traduccedilatildeo Enid Abreu Dobraacutenzsky Campinas Papirus 1996

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9 Anexos

Mapa Grego ndash Idade do Bronze

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Tabela Cronoloacutegica

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O tocador de harpa

O tocador de harpa (Badisches Landesmuseum Karlsruhe Alemanha inventaacuterio B 864 maacutermore H 135 cm L 57 cm D 109 cm) essa eacute uma figura da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica idade do bronze do iniacutecio do periacuteodo ciacuteclico II que foi encontrada no iniacutecio do seacuteculo 19 em uma sepultura na ilha grega de Santorini e posteriormente foi comprada em 1840 por F Maler na Itaacutelia e desde 1853 estaacute na coleccedilatildeo do Badisches Landesmuseum

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Disco de Phaistos

Esse artefato foi encontrado no palaacutecio minoico de Phaistos pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier em 1908 Essa peccedila pertence ao meio ou final do periacuteodo de Bronze

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Sacerdotiza minoica

Figura de um ritual (idade do Bronze) que foi encontrada Sarcoacutefago de Hagia Triada que pertencia a realeza minoica A foacuterminx era um instrumento similar agrave ciacutetara Poreacutem esse instrumento aleacutem de menor tinha um som menos robusto do que a ciacutetara O usos desses dois instrumentos aparecem nos poemas homeacutericos

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As ocorrecircncias do termo loacutegos na liacutengua grega

Λόγος ὁ verbal noun of λέγω (B) with senses corresponding to λέγω (B) II and III (on the various senses of the word v Theo Sm pp7273 H AnOx 4327 ) common in all periods in Prose and Verse exc Epic in which it is found in signf derived from λέγω (B) 111 cfinfr VI 1 a I computation reckoning (cf λέγω (B) II) 1 account of money handled σανίδες εἰς ἃς τὸν λ ἀναγράφοmicroεν IG 12374191 ἐδίδοσαν τὸν λ ib 2322 λ δώσεις τῶν microετεχείρισας χρηmicroάτων Hdt 3142 cf 143 οὔτε χρήmicroατα διαχειρίσας τῆς πόλεως δίδωmicroι λ αὐτῶν οὔτε ἀρχὴν ἄρξας οὐδεmicroίαν εὐθύνας ὑπέχω νῦν αὐτῆς Lys 2426 λ ἀπενεγκεῖν Arist Ath 541 ἐν ταῖς εὐθύναις τοῦ τοιούτου λ ὑπεχέτω Pl Lg 774b τὸν τῶν χρηmicroάτων λ παρὰ τούτων λαmicroβάνειν D 847 ἀδικήmicroατα εἰς ἀργυρίου λ ἀνήκοντα Din 160 συνᾶραι λόγον microετά τινος settle accounts with EvMatt 1823 etc δεύτεροι λ a second audit CodJust 14261 ὁ τραπεζιτικὸς λ banking account Theo Sm p73 H metaph οὐκ ἂν πριαίmicroην οὐδενὸς λ βροτόν S Aj 477 b public accounts i e branch of treasury ἴδιος λ in Egypt OGI 1882 1893 66938 also as title of treasurer ib 4084 Str 17112 ὁ ἐπὶ τῶν λ IPE 229 A ( Panticapaeum ) δηmicroόσιος λ = Lat fiscus OGI 66921 (Egypt i AD ) etc (but later = aerarium CodJust 1515 ) also Καίσαρος λ OGI 66930 κυριακὸς λ ib 18 2 generally account reckoning microὴ φῦναι τὸν ἅπαντα νικᾷ λ excels the whole account ie is best of all S OC 1225 (lyr) δόντας λ τῶν ἐποίησαν accounting for ie paying the penalty for their doings Hdt 8100 λ αἰτεῖν Pl Plt 285e λ δοῦναι καὶ δέξασθαι Id Prt 336c al λαmicroβάνειν λ καὶ ἐλέγχειν Id Men 75d παρασχεῖν τῶν εἰρηmicroένων λ Id R 344d λ ἀπαιτεῖν D 3015 cf Arist EN 1104a3 λ ὑπέχειν δοῦναι D 1995 λ ἐγγράψαι Id 24199 al λ ἀποφέρειν τῇ πόλει Aeschin 322 cf Eu Luc 162 EpHebr 1317 τὸ παράδοξον τῶν συmicroβεβηκότων ὑπὸ λόγον ἄγειν Plb 15342 λ ἡ ἐπιστήmicroη πολλὰ δὲ ὁ λ the account is manifold Plot 694 ἔχων λόγον τοῦ διὰ τί an account of the cause Arist APo 74b27 ἐς λ τινός on account of ἐς χρηmicroάτων λ Th 346 cf Plb 5896 LXX 2 Ma 114 JRS 18152 ( Jerash ) λόγῳ c gen by way of CodJust 325 al κατὰ λόγον τοῦ microεγέθους if we take into account his size Arist HA 517b27 πρὸς ὃν ἡmicroῖν ὁ λ EpHebr 413 cf DChr 31123 3 measure tale (cf infr 111 ) θάλασσα microετρέεται ἐς τὸν αὐτὸν λ ὁκοῖος πρόσθεν Heraclit 31 ψυχῆς ἐστι λ ἑαυτὸν αὔξων Id 115 ἐς τούτου (sc γήραος ) λ οὐ πολλοί τινες ἀπικνέονται to the point of old age Hdt 399 cf 79 β ὁ ξύmicroπας λ the full tale Th 756 cf EpPhil 415 κοινῷ λ νοmicroίσαντα common measure Pl Lg 746e sum total of expenditure IG 42(1)103151 (Epid iv BC ) ὁ τῆς οὐσίας λ = Lat patrimonii modus CodJust 151220 4 esteem consideration value put on a person or thing (cf infr VI 2 d) οὗ πλείων λ ἢ τῶν ἄλλων who is of more worth than all the rest Heraclit 39 βροτῶν λ οὐκ ἔσχεν οὐδέν A Pr 233 ου σmicroικροῦ λ S OC 1163 freq in Hdt Μαρδονίου λ οὐδεὶς γίνεται 8102 τῶν ἦν ἐλάχιστος ἀπολλυmicroένων λ 4135 cf E Fr 94 περὶ ἐmicroοῦ οὐδεὶς λ Ar Ra 87 λόγου οὐδενὸς γίνεσθαι πρός τινος to be of no account repute with Hdt 1120 cf 4138 λόγου ποιήσασθαί τινα make one of account Id 133 ἐλαχίστου πλείστου λ εἶναι to be highly lowly esteemed Id 1143 3146 but also λόγον τινὸς ποιεῖσθαι like Lat rationem habere alicujus make account of set a value on Democr 187 etc usu in neg statements οὐδένα λ ποιήσασθαί τινος Hdt 14

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cf 13 Plb 21149 etc λ ἔχειν Hdt 162 115 λ ἴσχειν περί τινος Pl Ti 87c λ ἔχειν περὶ τοὺς ποιητάς Lycurg 107 λ ἔχειν τινός D 18199 Arist EN 1102b32 Plu Phil 18 (but also have the reputation of v infr VI 2 e) ἐν οὐδενὶ λ ποιήσασθαί τι Hdt 350 ἐν οὐδενὶ λ ἀπώλοντο without regard Id 970 ἐν σmicroικρῷ λ εἶναι Pl R 550a ὑmicroεῖς οὔτ ἐν λ οὔτ ἐν ἀριθmicroῷ Orac ap Sch Theoc 1448 ἐν ἀνδρῶν λ [εἶναι] to be reckoned count as a man Hdt 3120 ἐν ἰδιώτεω λόγῳ καὶ ἀτίmicroου reckoned as EusMynd Fr 59 σεmicroνὸς εἰς ἀρετῆς λ καὶ δόξης D 19142 II relation correspondence proportion 1 generally ὑπερτερίης λ relation (of gold to lead) Thgn 418 = 1164 πρὸς λόγον τοῦ σήmicroατος A Th 519 κατὰ λόγον προβαίνοντες τιmicroῶσι in inverse ratio Hdt 1134 cf 736 κατὰ λ τῆς ἀποφορῆς Id 2109 τἄλλα κατὰ λ in like fashion Hp VM 16 Prog 17 c gen κατὰ λ τῶν πρόσθεν ib 24 κατὰ λ τῶν ἡmicroερῶν Ar Nu 619 κατὰ λ τῆς δυνάmicroεως X Cyr 8611 ἐλάττω ἢ κατὰ λ Arist HA 508a2 cf PA 671a18 ἐκ ταύτης ἐγένετο ἐκείνη κατὰ λ Id Pol 1257a31 cf εὔλογος sts with ὁ αὐτός added κατὰ τὸν αὐτὸν λ τῷ τείχεϊ in fashion like to Hdt 1186 περὶ τῶν νόσων ὁ αὐτὸς λ analogously Pl Tht 158d cf Prm 136b al εἰς τὸν αὐτὸν λ similarly Id R 353d κατὰ τὸν αὐτὸν λ in the same ratio IG 12768 by parity of reasoning Pl Cra 393c R 610a al ἀνὰ λόγον τινός τινί Id Ti 29c Alc 2145d τοῦτον ἔχει τὸν λ πρὸς ὃν ἡ παιδεία πρὸς τὴν ἀρετήν is related to as Procl in Euc p20 F al 2 Math ratio proportion ( ὁ κατ ἀνάλογον λ λ τῆς ἀναλογίας Theo Sm p73 H) Pythag 2 ἰσότης λόγων Arist EN 113a31 λ ἐστὶ δύο microεγεθω ν ἡ κατὰ πηλικότητα ποιὰ σχέσις Euc 5 Def 3 τῶν ἁρmicroονιῶν τοὺς λ Arist Metaph 985b32 cf 1092b14 λόγοι ἀριθmicroῶν numerical ratios Aristox Harm p32 M τοὺς φθόγγους ἀναγκαῖον ἐν ἀριθmicroοῦ λ λέγεσθαι πρὸς ἀλλήλους to be expressed in numerical ratios Euc SectCan Proeumlm in Metre ratio between arsis and thesis by which the rhythm is defined Aristox Harm p34 M ἐὰν ᾖ ἰσχυροτέρα τοῦ αἰσθητηρίου ἡ κίνησις λύεται ὁ λ Arist de An 424a31 ἀνὰ λόγον analogically Archyt 2 ἀνὰ λ microερισθεῖσα [ἡ ψυχή] proportionally Pl Ti 37a so κατὰ λ Men 3196 πρὸς λόγον in proportion Plb 6303 9153 (but πρὸς λόγον ἐπὶ στενὸν συνάγεται narrows uniformly Sor 19 cf DioclFr 171 ) ἐπὶ λόγον IG 5(1)1428 ( Messene ) 3 Gramm analogy rule τῷ λ τῶν microετοχικῶν τῆς συγκοπῆς by the rule of the participles of syncope Choerob in Theod 175 Gaisf 1377 H εἰπέ microοι τὸν λ τοῦ Αἴας Αἴαντος τουτέστι τον κανόνα AnOx 4328 III explanation 1 plea pretext ground ἐκ τίνος λ A Ch 515 ἐξ οὐδενὸς λ S Ph 731 ἀπὸ παντὸς λ Id OC 762 χὠ λ καλὸς προσῆν Id Ph 352 σὺν ἀφανεῖ λ Id OT 657 (lyr vl λόγων ) ἐν ἀφανει λ Antipho 559 ἐπὶ τοιούτῳ λ Hdt 6124 κατὰ τίνα λ on what ground Pl R 366b οὐδὲ πρὸς ἕνα λ to no purpose Id Prt 343d ἐπὶ τίνι λ for what reason X HG 2219 τὸν λ τοῦτον this ground of complaint Aeschin 3228 τίνι δικαίῳ λ what just cause is there Pl Grg 512c τίνι λ on what account ActAp 1029 κατὰ λόγον ἂν ἠνεσχόmicroην ὑmicroῶν reason would that ib 1814 λ ἔχειν with personal subject εἶχον ἄν τινα λ I (ie my conduct) would have admitted of an explanation Pl Ap 31b τὸν ὀρθὸν λ the true explanation ib 34b b plea case in Law or argument (cf VIII I) τὸν ἥττω λ κρείττω ποιεῖν to make the weaker case prevail ib 18b al Arist Rh 1402a24 cf Ar Nu 1042 (pl) personified ib 886 al ἀmicroύνεις τῷ τῆς ἡδονῆς λ Pl Phlb 38a ἀνοίσεις τοὺς λ αὐτῶν πρὸς τὸν θεόν LXX Ex 1819 ἐχειν λ πρός τινα to have a case ground of action against ActAp 1938 2 statement of a theory argument οὐκ ἐmicroεῦ ἀλλὰ τοῦ λ ἀκούσαντας prob in Heraclit 50 λόγον ἠδὲ νόηmicroα ἀmicroφὶς ἀληθείης discourse and reflection on reality Parm 850 δηλοῖ οὗτος ὁ λ ὅτι Democr 7 οὐκ ἔχει λόγον

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it is not arguable ie reasonable S El 466 Pl Phd 62d etc ἔχει λ D 4432 οὐδεὶς αὐτὰ καταβαλεῖ λ E Ba 202 δίκασον τὸν λ ἀκούσας Pl Lg 696b personified φησὶ οὗτος ὁ λ ib 714d cf Sph 238b Phlb 50a ὡς ὁ λ (sc λέγει ) Arist EN 1115b12 ὡς ὁ λ ὁ ὀρθὸς λέγει ib 1138b20 cf 29 ὁ λ θέλει προσβιβάζειν Phld Rh 141 cf 119 S οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου ἀποτρέποντος Arist EN 1179b27 λ καθαίρων Aristo Stoic 188 λόγου τυγχάνειν to be explained Phld Mus p77 K ὁ τὸν λ microου ἀκούων my teaching EvJo 524 ὁ προφητικὸς λ collect of VT prophecy 2 EpPet 119 pl ὁκόσων λόγους ἤκουσα Heraclit 108 οὐκ ἐπίθετο τοῖς ἐmicroοῖς λ Ar Nu 73 of arguments leading to a conclusion ( ὁ λ ) Pl Cri 46b τὰ αναξαγόρου βιβλία γέmicroει τούτων τῶν λ Id Ap 26d λ ἀπὸ τῶν ἀρχῶν ἐπὶ τὰς ἀρχάς Arist EN 1095a31 συλλογισmicroός ἐστι λ ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν κτλ Id APr 24b18 λ ἀντίτυπός τε καὶ ἄπορος of a self-contradictory theory Plot 687 b ὁ περὶ θεῶν λ title of a discourse by Protagoras DL 954 ὁ αχιλλεὺς λ name of an argument ib 23 ὁ αὐξόmicroενος λ Plu 2559b καταβάλλοντες (sc λόγοι ) title of work by Protagoras SE M 760 λ σοφιστικοί Arist SE 165a34 al οἱ microαθηmicroατικοὶ λ Id Rh 1417a19 etc οἱ ἐξωτερικοὶ λ current outside the Lyceum Id Ph 217b31 al ∆ισσοὶ λ title of a philosophical treatise (= Dialex ) Λ καὶ Λογίνα name of play of Epicharmus quibble argument personified Ath 8338d c in Logic proposition whether as premiss or conclusion πρότασίς ἐστι λ καταφατικὸς ἢ ἀποφατικός τινος κατά τινος Arist APr 24a16 d rule principle law as embodying the result of λογισmicroός Pi O 222 P 135 N 431 πείθεσθαι τῷ λ ὃς ἄν microοι λογιζοmicroένῳ βέλτιστος φαίνηται Pl Cri 46b cf c ἡδονὰς τοῖς ὀρθοῖς λ ἑποmicroένας obeying right principles Id Lg 696c προαιρέσεως [ἀρχὴ] ὄρεξις καὶ λ ὁ ἕνεκά τινος principle directed to an end Arist EN 1139a32 of the final cause ἀρχὴ ὁ λ ἔν τε τοῖς κατὰ τέχνην καὶ ἐν τοῖς φύσει συνεστηκόσιν Id PA 639b15 ἀποδιδόασι τοὺς λ και τὰς αἰτίας οὗ ποιοῦσι ἑκάστου ib 18 [ τέχνη] ἕξις microετὰ λ ἀληθοῦς ποιητική Id EN 1140a10 ὀρθὸς λ true principle right rule ib 1144b27 1147b3 al κατὰ λόγον by rule consistently ὁ κατὰ λ ζῶν Pl Lg 689d cf Ti 89d τὸ κατὰ λ ζῆν opp κατὰ πάθος Arist EN 1169a5 κατὰ λ προχωρεῖν according to plan Plb 1203 3 law rule of conduct ᾧ microάλιστα διηνεκῶς ὁmicroιλοῦσι λόγῳ Heraclit 72 πολλοὶ λόγον microὴ microαθόντες ζῶσι κατὰ λόγον Democr 53 δεῖ ὑπάρχειν τὸν λ τὸν καθόλου τοῖς ἄρχουσιν universal principle Arist Pol 1286a17 ὁ νόmicroος λ ὢν ἀπό τινος φρονήσεως καὶ νοῦ Id EN 1180a21 ὁ νόmicroος ἔmicroψυχος ὢν ἑαυτῷ λ conscience Plu 2780c τὸν λ πρόχειρον ἔχειν precept Phld Piet 30 cf 102 ὁ προστακτικὸς τῶν ποιητέων ἢ microὴ λ κοινός MAnt 44 4 thesis hypothesis provisional ground ὡς ἂν εἰ λέγοι λόγον maintain a thesis Pl Prt 344b ὑποθέmicroενος ἑκάστοτε λ provisionally assuming a proposition Id Phd 100a τὸν τῆς ὁmicroοιότητος λ hypothesis of equivalence Arist Cael 296a20 5 reason ground πάντων γινοmicroένων κατὰ τὸν λ τόνδε Heraclit 1 οὕτω βαθὺν λ ἔχει Id 45 ἐκ λόγου opp microάτην Leucipp 2 microέγιστον σηmicroεῖον οὗτος ὁ λ Meliss 8 [ἐmicroπειρία] οὐκ ἔχει λ οὐδένα ὧν προσφέρει has no grounds for Pl Grg 465a microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης θείας Id Sph 265c ἡ microετα λόγου ἀληθὴς δόξα ( ἐπιστήμη ) Id Tht 201c λόγον ζητοῦσιν ὧν οὐκ ἔστι λ proof Arist Metaph 1011a12 οἱ ἁπάντων ζητοῦντες λ ἀναιροῦσι λ Thphr Metaph 26 6 formula (wider than definition but freq equivalent thereto) term expressing reason λ τῆς πολιτείας Pl R 497c ψυχῆς οὐσία τε καὶ λ essential definition Id Phdr 245e ὁ τοῦ δικαίου λ Id R 343a τὸν λ τῆς οὐσίας ib 534b cf Phd 78d τὰς πολλὰς ἐπιστήmicroας ἑνὶ λ προσειπεῖν Id Tht 148d ὁ τῆς οἰκοδοmicroήσεως λ ἔχει τὸν

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τῆς οἰκίας Arist PA 646b3 τεθείη ἂν ἴδιον ὄνοmicroα καθ ἕκαστον τῶν λ Id Metaph 1006b5 cf 1035b4 πᾶς ὁρισmicroὸς λ τίς ἐστι Id Top 102a5 ἐπὶ τῶν σχηmicroάτων λ κοινός generic definition Id de An 414b23 ἀκριβέστατος λ specific definition Id Pol 1276b24 πηγῆς λ ἔχον Ph 2477 τὸ ᾠὸν οὔτε ἀρχῆς ἔχει λ fulfils the function of Plu 2637d λ τῆς microίξεως formula i e ratio (cf supr II) of combination Arist PA 642a22 cf Metaph 993a17 7 reason law exhibited in the world-process κατὰ λόγον by law κόσmicroῳ πάντα καὶ κατὰ λ ἔχοντα Pl R 500c κατ τὸν ampλταὐτὸν αὖampγτ λ by the same law Epich 17018 ψυχῆς τὸ πᾶν τόδε διοικούσης κατὰ λ Plot 2313 esp in Stoic Philos the divine order τὸν τοῦ παντὸς λ ὃν ἔνιοι εἱmicroαρmicroένην καλοῦσιν Zeno Stoic 124 τὸ ποιοῦν τὸν ἐν [τῇ ὕλῃ] λ τὸν θεόν ibid cf 42 ὁ τοῦ κόσmicroου λ ChrysippStoic 2264 λόγος = φύσει νόmicroος Stoic 2169 κατὰ τὸν κοινὸν θεοῖς καὶ ἀνθρώποις λ MAnt 753 ὁ ὀρθὸς λ διὰ πάντων ἐρχόmicroενος ChrysippStoic 34 so in Plot τὴν φύσιν εἶναι λόγον ὃς ποιεῖ λ ἄλλον γέννηmicroα αὑτοῦ 382 b σπερmicroατικὸς λ generative principle in organisms ὁ θεὸς σπ λ τοῦ κόσmicroου Zeno Stoic 128 usu in pl Stoic 2205 314 al γίνεται τὰ ἐν τῷ παντὶ οὐ κατὰ σπερmicroατικούς ἀλλὰ κατὰ λ περιληπτικούς Plot 317 cf 4439 so without σπερmicroατικός ὥσπερ τινὲς λ τῶν microερῶν CleanthStoic 1111 οἱ λ τῶν ὅλων Ph 19 c in Neo-Platonic Philos of regulative and formative forces derived from the intelligible and operative in the sensible universe ὄντων microειζόνων λ καὶ θεωρούντων αὑτοὺς ἐγὼ γεγέννηmicroαι Plot 384 οἱ ἐν σπέρmicroατι λ πλάττουσι τὰ ζῷα οἷον microικρούς τινας κόσmicroους Id 4310 cf 3216 357 opp ὅρος Id 674 ἀφανεῖς λ τῆς φύσεως Procl in R 118 K τεχνικοὶ λ ib 142 K al IV inward debate of the soul (cf λ ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ διεξέρχεται Pl Tht 189e ( διάλογος in Sph 263e ) ὁ ἐν τῇ ψυχῇ ὁ ἔσω λ (opp ὁ ἔξω λ ) Arist APo 76b25 27 ὁ ἐνδιάθετος opp ὁ προφορικὸς λ Stoic 243 Ph 2154 ) 1 thinking reasoning τοῦ λ ἐόντος ξυνοῦ opp ἰδία φρόνησις Heraclit 2 κρῖναι δὲ λόγῳ ἔλεγχον test by reflection Parm 136 reflection deliberation (cf VI 3 ) ἐδίδου λόγον ἑωυτῷ περὶ τῆς ὄψιος Hdt 1209 cf 34 S OT 583 D 457 microὴ εἰδέναι microήτε λόγῳ microήτε ἔργῳ neither by reasoning nor by experience Anaxag 7 ἃ δὴ λόγῳ microὲν καὶ διανοίᾳ ληπτά ὄψει δ οὔ Pl R 529d cf Prm 135e ὁ λ ἢ ἡ αἴσθησις Arist EN 1149a35 al αὐτῷ microόνον τῷ λ πιστεύειν (opp αἰσθήσεις ) of Parmenides and his school Aristocl ap Eus PE 1417 hence λόγῳ or τῷ λ in idea in thought τῷ λ τέmicroνειν Pl R 525e τῷ λ δύο ἐστίν ἀχώριστα πεφυκότα two in idea though indistinguishable in fact Arist EN 1102a30 cf GC 320b14 al λόγῳ θεωρητά mentally conceived opp sensibly perceived Placit 135 cf DemetrLac Herc 105520 τοὺς λ θεωρητοὺς χρόνους Epicur Ep 1p19U διὰ λόγου θ χ ib p10 U λόγῳ καταληπτός Phld Po 520 etc ὁ λ οὕτω αἱρέει analogy proves Hdt 233 ὁ λ or λ αἱρέει reasoning convinces Id 345 6124 cf Pl Cri 48c (but our argument shows Lg 663d ) also c acc pers χρᾶται ο τι microιν λ αἱρέει as the whim took him Hdt 1132 ἢν microὴ ἡmicroέας λ αἱρῇ unless we see fit Id 4127 cf Pl R 607b later ὁ αἱρῶν λ ordaining reason Zeno Stoic 150 MAnt 25 cf 424 Arr Epict 2220 etc coupled or contrasted with other functions καθ ὕπνον ἐπειδὴ λόγου καὶ φρονήσεως οὐ microετεῖχε since reason and understanding are in abeyance Pl Ti 71d microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης opp αἰτία αὐτοmicroάτη of Natures processes of production Id Sph 265c τὸ microὲν δὴ νοήσει microετὰ λόγου περιληπτόν embraced by thought with reflection opp microετ αἰσθήσεως ἀλόγου Id Ti 28a τὸ microὲν ἀεὶ microετ ἀληθοῦς λ opp τὸ δὲ ἄλογον ib 51e cf 70d al λ ἔχων ἑπόmicroενον τῷ νοεῖν Id Phlb 62a ἐπιστήmicroη ἐνοῦσα καὶ ὀρθὸς λ scientific knowledge and right process of thought Id Phd 73a πᾶς λ καὶ πᾶσα ἐπιστήmicroη τῶν καθόλου

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Arist Metaph 1059b26 τὸ λόγον ἔχον Id EN 1102b15 1138b9 al in sg and pl contrasted by Pl and Arist as theory abstract reasoning with outward experience sts with depreciatory emphasis on the former εἰς τοὺς λ καταφυγόντα Pl Phd 99e τὸν ἐν λόγοις σκοπούmicroενον τὰ ὄντα opp τὸν ἐν ἔργοις (realities) ib 100a τῇ αἰσθήσει microᾶλλον τῶν λ πιστευτέον Arist GA 760b31 γνωριmicroώτερα κατὰ τὸν λ opp κατὰ τὴν αἴσθησιν Id Ph 189a4 ἐκ τῶν λ δῆλον opp ἐκ τῆς ἐπαγωγῆς Id Mete 378b20 ἡ τῶν λ πίστις opp ἐκ τῶν ἔργων φανερόν Id Pol 1326a29 ἡ πίστις οὐ microόνον ἐπὶ τῆς αἰσθήσεως ἀλλὰ καὶ ἐπὶ τοῦ λ Id Ph 262a19 microαρτυρεῖ τὰ γιγνόmicroενα τοῖς λ Id Pol 1334a6 ὁ microὲν λ τοῦ καθόλου ἡ δὲ αἴσθησις τοῦ κατὰ microέρος explanation opp perception Id Ph 189a7 ἔσονται τοῖς λ αἱ πράξεις ἀκόλουθοι theory opp practice Epicur Sent 25 in Logic of discursive reasoning opp intuition Arist EN 1142a26 1143b1 reasoning in general ib 1149a26 πᾶς λ καὶ πᾶσα ἀπόδειξις all reasoning and demonstration Id Metaph 1063b10 λ καὶ φρόνησιν Phld Mus p105 K ὁ λ ἢ λογισmicroός ibid τὸ ἰδεῖν οὐκέτι λ ἀλλὰ microεῖζον λόγου καὶ πρὸ λόγου of mystical vision opp reasoning Plot 6910 mdashPhrases κατὰ λ τὸν εἰκότα by probable reasoning Pl Ti 30b οὔκουν τόν γ εἰκότα λ ἂν ἔχοι Id Lg 647d παρὰ λόγον opp κατὰ λ Arist RhAl 1429a29 cf EN 1167b19 cf παράλογος (but παρὰ λ unexpectedly E Ba 940 ) 2 reason as a faculty ὁ λ ἀνθρώπους κυβερνᾷ [ Epich ] 256 [ θυmicroοειδὲς] τοῦ λ κατήκοον Pl Ti 70a [ θυmicroὸς] ὑπὸ τοῦ λ ἀνακληθείς Id R 440d σύmicromicroαχον τῷ λ τὸν θυmicroόν ib b πειθαρχεῖ τῷ λ τὸ τοῦ ἐγκρατοῦς Arist EN 1102b26 ἄλλο τι παρὰ τὸν λ πεφυκός ὃ microάχεται τῷ λ ib 17 ἐναντίωσις λόγου πρὸς ἐπιθυmicroίας Plot 4713(8) οὐ θυmicroός οὐκ ἐπιθυmicroία οὐδὲ λ οὐδέ τις νόησις Id 6911 freq in Stoic Philos of human Reason opp φαντασία Zeno Stoic 139 opp φύσις Stoic 2206 οὐ σοφία οὐδὲ λ ἐστὶν ἐν [τοῖς ζῴοις ] ibid τοῖς ἀλόγοις ζῴοις ὡς λ ἔχων λ microὴ ἔχουσι χρῶ MAnt 623 ὁ λ κοινὸν πρὸς τοὺς θεούς Arr Epict 133 οἷον [εἰκὼν] λ ὁ ἐν προφορᾷ λόγου τοῦ ἐν ψυχῇ οὕτω καὶ αὐτὴ λ νοῦ Plot 513 τὸ τὸν λ σχεῖν τὴν οἰκείαν ἀρετήν (sc εὐδαιmicroονίαν ) Procl in Ti 3334 D also of the reason which pervades the universe θεῖος λ [ Epich ] 257 τὸν θεῖον λ καθ ηράκλειτον δι ἀναπνοῆς σπάσαντες νοεροὶ γινόmicroεθα SE M 7129 (cf infr x) b creative reason ἀδύνατον ἦν λόγον microὴ οὐκ ἐπὶ πάντα ἐλθεῖν Plot 3214 ἀρχὴ οὖν λ καὶ πάντα λ καὶ τὰ γινόmicroενα κατ αὐτόν Id 3215 οἱ λ πάντες ψυχαί Id 3218 V continuous statement narrative (whether fact or fiction) oration etc (cf λέγω (B) 112 ) 1 fable Hdt 1141 Αἰσώπου λόγοι Pl Phd 60d cf Arist Rh 1393b8 ὁ τοῦ κυνὸς λ X Mem 2713 2 legend ἱρὸς λ Hdt 262 cf 47 Pi P 380 (pl) συνθέντες λ E Ba 297 λ θεῖος Pl Phd 85d ἱεροὶ λ of Orphic rhapsodies Suid SV ορφεύς 3 tale story ἄλλον ἔπειmicroι λ Xenoph 71 cf Th 197 etc συνθέτους λ A Pr 686 σπουδην λόγου urgent tidings E Ba 663 ἄλλος λ another story Pl Ap 34e ὁmicroολογούmicroενος ὁ λ ἐστίν the story is consistent Isoc 327 pl histories ἐν τοῖσι ασσυρίοισι λ Hdt 1184 cf 106 299 so in sg a historical work Id 2123 619 7152 also in sg one section of such a work (like later βίβλος ) Id 238 639 cf VI 3d so in pl ἐν τοῖσι Λιβυκοῖσι λ Id 2161 cf 175 522 793 213 ἐν τῷ πρώτῳ τῶν λ Id 536 ὁ πρῶτος λ of St Lukes gospel ActAp 11 in Pl opp microῦθος as history to legend Ti 26e ποιεῖν microύθους ἀλλ οὐ λόγους Phd 61b cf Grg 523a (but microῦθον λέγειν opp λόγῳ ( argument ) διεξελθεῖν Prt 320c cf 324d ) περὶ λόγων καὶ microύθων Arist Pol 1336a30 ὁ λ microῦθός ἐστι Ael NA 434 4 speech delivered in court assembly etc χρήσοmicroαι τῇ τοῦ λ τάξει ταύτῃ Aeschin 357 cf Arist Rh 1358a38 δικανικοὶ λ Id EN 1181a4

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τρία γένη τῶν λ τῶν ῥητορικῶν συμβουλευτικόν δικανικόν ἐπιδεικτικόν Id Rh 1358b7 τῷ γράψαντι τὸν λ Thphr Char 178 cf λογογράφος 11 ἐπιτάφιος λ funeral oration Pl Mx 236b esp of the body of a speech opp ἐπίλογος Arist Rh 1420b3 opp προοίmicroιον ib 1415a12 body of a law opp proem Pl Lg 723b spoken opp written word τὸν τοῦ εἰδότος λ ζῶντα καὶ ἔmicroψυχον οὗ ὁ γεγραmicromicroένος εἴδωλόν τι Id Phdr 276a ὁ ἐκ τοῦ βιβλίου ῥηθεὶς [λ ] speech read from a roll ib 243c published speech DC 4054 rarely of the speeches in Tragedy ( ῥήσεις ) Arist Po 1450b6 9 VI verbal expression or utterance (cf λέγω (B) 111 ) rarely a single word v infr b never in Gramm signf of vocable ( ἔπος λέξις ὄνοmicroα ῥῆmicroα ) usu of a phrase cf I X 3 (the only sense found in Ep ) a pl without Art talk τὸν ἔτερπε λόγοις Il 15393 αἱmicroύλιοι λ Od 156 hMerc 317 Hes Th 890 Op 78 789 Thgn 704 AR 31141 ψευδεῖς Λ personified Hes Th 229 ἀφροδίσιοι λ Semon 791 ἀγανοῖσι λ Pi P 4101 ὄψον δὲ λ φθονεροῖσιν tales Id N 821 σmicroικροὶ λ brief words S Aj 1268 (svl) El 415 δόκησις ἀγνὼς λόγων bred of talk Id OT 681 (lyr) also in sg λέγ εἴ σοι τῷ λ τις ἡδονή speak if thou delightest in talking Id El 891 b sg expression phrase πρὶν εἰπεῖν ἐσθλὸν ἢ κακὸν λ Id Ant 1245 cf E Hipp 514 microυρίας ὡς εἰπεῖν λόγῳ Hdt 237 microακρὸς λ rigmarole Simon 189 Arist Metaph 1091a8 λ ἠρέmicroα λεχθεὶς διέθηκε τὸ πόρρω a whispered message Plot 493 ἑνὶ λόγῳ to sum up in brief phrase Pl Phdr 241e Phd 65d concisely Arist EN 1103b21 (but also = ἁπλῶς περὶ πάντων ἑνὶ λ Id GC 325a1 ) pl λ θελκτήριοι magic words E Hipp 478 rarely of single words λ εὐσύνθετος οἷον τὸ χρονοτριβεῖν Arist Rh 1406a36 οὐκ ἀπεκρίθη αὐτῇ λ answered her not a word EvMatt 1523 c coupled or contrasted with words expressed or understood signifying act fact truth etc mostly in a depreciatory sense λ ἔργου σκιή Democr 145 ὥσπερ microικρὸν παῖδα λόγοις micro ἀπατᾷς Thgn 254 λόγῳ opp ἔργῳ Democr 82 etc νηπίοισι οὐ λ ἀλλὰ ξυmicroφορὴ διδάσκαλος Id 76 ἔργῳ κοὐ λόγῳ τεκmicroαίροmicroαι A Pr 338 cf S El 59 OC 782 λόγῳ microὲν λέγουσι ἔργῳ δὲ οὐκ ἀποδεικνῦσι Hdt 48 οὐ λόγων φασίν ἡ ἀγορὴ δεῖται χαλκῶν δέ Herod 749 οὔτε λ οὔτε ἔργῳ Lys 914 λόγοις opp ψήφῳ Aeschin 233 opp νόῳ Hdt 2100 οὐ λόγῳ microαθών E Heracl 5 ἐκ λόγων κούφου πράγmicroατος Pl Lg 935a λόγοισι εἰς τὸ πιθανὸν περιπεπεmicromicroένα ib 886e cf Luc Anach 19 ἵνα microὴ λ οἴησθε εἶναι ἀλλ εἰδῆτε τὴν ἀλήθειαν Lycurg 23 cf D 3034 opp πρᾶγmicroα Arist Top 146a4 opp βία Id EN 1179b29 cf 1180a5 opp ὄντα Pl Phd 100a opp γνῶσις 2 EpCor 116 λόγῳ in pretence Hdt 1205 Pl R 361b 376d Ti 27a al λόγου ἕνεκα merely as a matter of words ἄλλως ἕνεκα λ ἐλέγετο Id Cri 46d λόγου χάριν opp ὡς ἀληθῶς Arist Pol 1280b8 but also let us say for instance Id EN 1144a33 Plb 10464 Phld Sign 29 MAnt 432 λόγου ἕνεκα let us suppose Pl Tht 191c ἕως λόγου microέχρι λ = Lat verbo tenus Plb 10247 Epict Ench 16 sts without depreciatory force the antithesis or parallelism being verbal (cf word and deed) λόγῳ τε καὶ σθένει S OC 68 ἔν τε ἔργῳ καὶ λ Pl R 382e cf DS 13101 EvLuc 2419 ActAp 722 Paus 2162 ὅσα microὲν λόγῳ εἶπον opp τὰ ἔργα τῶν πραχθέντων Th 122 2 common talk report tradition ὡς λ ἐν θνητοῖσιν ἔην Batr 8 λ ἐκ πατέρων Alc 71 οὐκ ἔστ ἔτυmicroος λ οὗτος Stesich 32 διξὸς λέγεται λ Hdt 332 λ ὑπ Αἰγυπτίων λεγόmicroενος Id 247 νέον [λ ] tidings S Ant 1289 (lyr) τὰ microὲν αὐτοὶ ὡρῶmicroεν τὰ δὲ λόγοισι ἐπυνθανόmicroεθα by hearsay Hdt 2148 also in pl ἐν γράmicromicroασιν λόγοι κείmicroενοι traditions Pl Lg 886b b rumour ἐπὶ παντὶ λ ἐπτοῆσθαι Heraclit 87 αὐδάεις λ voice of rumour B 1444 περὶ θεῶν διῆλθεν ὁ λ ὅτι Th 646 λ παρεῖχεν ὡς Plb 3893 ἐξῆλθεν ὁ λ οὗτος εῖς τινας ὅτι EvJo 2123 cf

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ActAp 1122 fiction EvMatt 2815 c mention notice description οὐκ ὕει λόγου ἄξιον οὐδέν worth mentioning Hdt 428 cf Plb 1248 etc ἔργα λόγου microέζω beyond expression Hdt 235 κρεῖσσον λόγου τὸ εἶδος τῆς νόσου beyond description Th 250 microείζω ἔργα ἢ ὡς τῷ λ τις ἂν εἴποι D 611 d the talk one occasions repute mostly in good sense good report praise honour (cf supr 14 ) πολλὰ φέρειν εἴωθε λ πταίσmicroατα Thgn 1221 λ ἐσλὸν ἀκοῦσαι Pi I 5(4)13 πλέονα λ οδυσσέος ἢ πάθαν Id N 721 ἵνα λ σε ἔχῃ πρὸς ἀνθρώπων ἀγαθός Hdt 75 cf 978 Τροίαν ἧς ἁπανταχοῦ λ whose fame story fills the world E IT 517 οὐκ ἂν ἦν λ σέθεν Id Med 541 less freq in bad sense evil report λ κακόθρους κακός S Aj 138 (anap) E Heracl 165 pl λόγους ψιθύρους πλάσσων slanders S Aj 148 (anap) e λ ἐστί ἔχει κατέχει the story goes c acc et inf ἔστ τις λ τὰν αρετὰν ναίειν Simon 581 cf S El 417 λ microὲν ἔστ ἀρχαῖος ὡς Id Tr 1 λ alone E Heracl 35 ὡς λ A Supp 230 Pl Phlb 65c etc λ ἐστί Hdt 7129 926 al λ αἰὲν ἔχει S OC 1573 (lyr) ὅσον ὁ λ κατέχει tradition prevails Th 110 also with a personal subject in the reverse construction Κλεισθένης λ ἔχει τὴν Πυθίην ἀναπεῖσαι has the credit of Hdt 566 cf Pl Epin 987b 988b λ ἔχοντα σοφίας EpCol 223 vsupr 14 3 discussion debate deliberation πολλὸς ἦν ἐν τοῖσι λ Hdt 859 συνελέχθησαν οἱ Μῆδοι ἐς τὠυτὸ καὶ ἐδίδοσαν σφίσι λόγον λέγοντες περὶ τῶν κατηκόντων Id 197 οἱ Πελασγοὶ ἑωυτοῖσι λόγους ἐδίδοσαν Id 6138 πολέmicroῳ microᾶλλον ἢ λόγοις τὰ ἐγκλήmicroατα διαλύεσθαι Th 1140 οἱ περὶ τῆς εἰρήνης λ Aeschin 274 τοῖς ἔξωθεν λ πεπλήρωκε τὸν λ [Plato] has filled his dialogue with extraneous discussions Arist Pol 1264b39 τὸ microῆκος τῶν λ DChr 7131 microεταβαίνων ὁ λ εἰς ταὐτὸν ἀφῖκται our debate Arist EN 1097a24 ὁ παρὼν λ ib 1104a11 θεῶν ὧν νῦν ὁ λ ἐστί discussion Pl Ap 26b cf Tht 184a MAnt 832 τῷ λ διελθεῖν διϊέναι Pl Prt 329c Grg 506a etc τὸν λ διεξελθεῖν conduct the debate Id Lg 893a ξυνελθεῖν ἐς λόγον confer Ar Eq 1300 freq in pl ἐς λόγους συνελθόντες parley Hdt 182 ἐς λ ἐλθεῖν τινι have speech with ib 86 ἐς λ ἀπικέσθαι τινί Id 232 διὰ λόγων ἰέναι E Tr 916 ἐmicroαυτῇ διὰ λ ἀφικόmicroην Id Med 872 ἐς λ ἄγειν τινά X HG 412 κοινωνεῖν λόγων καὶ διανοίας Arist EN 1170b12 b right of discussion or speech ἢ πὶ τῷ πλήθει λ S OC 66 λ αἰτήσασθαι ask leave to speak Th 353 λ διδόναι X HG 5220 οὐ προυτέθη σφίσιν λ κατὰ τὸν νόmicroον ib 175 λόγου τυχεῖν D 1813 cf Arist EN 1095b21 Plb 18521 οἱ λόγου τοὺς δούλους ἀποστεροῦντες Arist Pol 1260b5 δοῦλος πέφυκας οὐ microέτεστί σοι λόγου TragAdesp 304 διδόντας λ καὶ δεχοmicroένους ἐν τῷ microέρει Luc Pisc 8 hence time allowed for a speech ἐν τῷ ἐmicroῷ λ And 126 al ἐν τῷ ἑαυτοῦ λ Pl Ap 34a οὐκ ἐλάττω λ ἀνήλωκε D 189 c dialogue as a form of philosophical debate ἵνα microὴ microαχώmicroεθα ἐν τοῖς λ ἐγώ τε καὶ σύ Pl Cra 430d πρὸς ἀλλήλους τοὺς λ ποιεῖσθαι Id Prt 348a hence dialogue as a form of literature οἱ Σωκρατικοὶ λ Arist Po 1447b11 Rh 1417a20 cf διάλογος d section division of a dialogue or treatise (cf v 3 ) ὁ πρῶτος λ Pl Prm 127d ὁ πρόσθεν ὁ παρελθὼν λ Id Phlb 18e 19b ἐν τοῖς πρώτοις λ Arist PA 682a3 ἐν τοῖς περὶ κινήσεως λ in the discussion of motion (i e Ph bk 8 ) Id GC 318a4 ἐν τῷ περὶ ἐπαίνου λ Phld Rh 1219 branch department division of a system of philosophy τὴν φρόνησιν ἐκ τριῶν συνεστηκέναι λ τῶν φυσικῶν καὶ τῶν ἠθικῶν καὶ τῶν λογικῶν ChrysippStoic 2258 e in pl literature letters Pl Ax 365b Epin 975d DH Comp 1 21 (but also in pl treatises Plu 216c ) οἱ ἐπὶ λόγοις εὐδοκιmicroώτατοι Hdn 614 Λόγοι personified AP 9171 ( Pall ) VII a particular utterance saying 1 divine utterance oracle Pi P 459 λ microαντικοί Pl Phdr 275b οὐ γὰρ ἐmicroὸν ἐρῶ τὸν λ Pl Ap 20e ὁ λ τοῦ θεοῦ Apoc 12 9 2 proverb

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maxim saying Pi N 96 A Th 218 ὧδ ἔχει λ ib 225 τόνδ ἐκαίνισεν λ ὡς Critias 21 cf Pl R 330a EvJo 437 ὁ παλαιὸς λ Pl Phdr 240c cf Smp 195b Grg 499c Lg 757a 1 EpTi 115 Plu 21082e Luc Alex 9 etc τὸ τοῦ λόγου δὴ τοῦτο Herod 245 cf DChr 6624 Luc JTr 3 Alciphr 356 etc pl Arist EN 1147a21 3 assertion opp oath S OC 651 ψιλῷ λ bare word opp microαρτυρία D 2754 4 express resolution κοινῷ λ by common consent Hdt 1141 al ἐπὶ λ τοιῷδε ἐπ ᾧ τε on the following terms Id 7158 cf 926 ἐνδέξασθαι τὸν λ Id 160 cf 95 λ ἔχοντες πλεονέκτην a greedy proposal Id 7158 freq in pl terms conditions Id 933 etc 5 word of command behest A Pr 17 40 (both pl) Pers 363 ἀνθρώπους πιθανωτέρους ποιεῖν λόγῳ X Oec 139 ἐξέβαλε τὰ πνεύmicroατα λόγῳ EvMatt 816 οἱ δέκα λ the ten Commandments LXX Ex 3428 Ph 1496 VIII thing spoken of subject-matter (cf 1111 b and 2 ) λ τοῦτον ἐάσοmicroεν Thgn 1055 προπεπυσmicroένος πάντα λ the whole matter Hdt 121 cf 111 τὸν ἐόντα λ the truth of the matter ib 95 116 microετασχεῖν τοῦ λ to be in the secret ib 127 microηδενὶ ἄλλῳ τὸν λ τοῦτον ειπῃς Id 865 τίς ἦν λ S OT 684 ( = πρᾶγmicroα 699 ) περί τινος λ διελεγόmicroεθα subject question Pl Prt 314c [ τὸ προοίmicroιον] δεῖγmicroα τοῦ λ case Arist Rh 1415a12 cf 1111b τέλος δὲ παντὸς τοῦ λ ψηφίζονται the end of the matter was that Aeschin 3124 οὐκ ἔστεξε τὸν λ Plb 8125 οὐκ ἔστι σοι microερὶς οὐδὲ κλῆρος ἐν τῷ λ τούτῳ ActAp 821 ἱκανὸς αὐτῷ ὁ λ Pl Grg 512c οὐχ ὑπολείπει [Γοργίαν] ὁ λ matter for talk Arist Rh 1418a35 microηδένα λ ὑπολιπεῖν Isoc 4146 πρὸς λόγον to the point apposite οὐδὲν πρὸς λ Pl Phlb 42e cf Prt 344a ἐὰν πρὸς λ τι ᾖ Id Phlb 33c also πρὸς λόγου Id Grg 459c (s vl) 2 plot of a narrative or dramatic poem = microῦθος Arist Po 1455b17 al b in Art subject of a painting ζωγραφίας λόγοι Philostr VA 610 λ τῆς γραφῆς Id Im 125 3 thing talked of event microετὰ τοὺς λ τούτους LXX 1 Ma 733 cf ActAp 156 IX expression utterance speech regarded formally τὸ ἀπὸ [ψυχῆς] ῥεῦmicroα διὰ τοῦ στόmicroατος ἰὸν microετὰ φθόγγου λ opp διάνοια Pl Sph 263e intelligent utterance opp φωνή Arist Pol 1253a14 λ ἐστὶ φωνὴ σηmicroαντικὴ κατὰ συνθήκην Id Int 16b26 cf DiogBabStoic 3213 ὅθεν (from the heart) ὁ λ ἀναπέmicroπεται Stoic 2228 cf 244 Protagoras was nicknamed λόγος Hsch ap Sch Pl R 600c Suid λόγου πειθοῖ Democr 181 in pl eloquence Isoc 33 911 τὴν ἐν λόγοις εὐρυθmicroίαν Epicur SentPal 5p69 v d M λ ἀκριβής precise language Ar Nu 130 (pl) cf Arist Rh 1418b1 τοῦ microὴ ᾀδοmicroένου λ Pl R 398d ἡδυσmicroένος λ of rhythmical language set to music Arist Po 1449b25 ἐν παντὶ λ in all manner of utterance 1 EpCor 15 ἐν λόγοις in orations Arist Po 1459a13 λ γελοῖοι ἀσχήmicroονες ludicrous improper speech Id SE 182b15 Pol 1336b14 2 of various modes of expression esp artistic and literary ἔν τε ᾠδαῖς καὶ microύθοις καὶ λόγοις Pl Lg 664a ἐν λόγῳ καὶ ἐν ᾠδαῖς X Cyr 1425 cf Pl Lg 835b prose opp ποίησις Id R 390a opp ψιλοmicroετρία Arist Po 1448a11 opp ἔmicromicroετρα ib 1450b15 (pl) τῷ λ τοῦτο τῶν microέτρων (sc τὸ ἰαmicroβεῖον ) ὁmicroοιότατον εἶναι Id Rh 1404a31 in full ψιλοὶ λ prose ib b33 (but ψιλοὶ λ = arguments without diagrams Pl Tht 165a ) λ πεζοί opp ποιητική DH Comp 6 opp ποιήmicroατα ib 15 κοινὰ καὶ ποιηmicroάτων καὶ λόγων Phld Po 57 πεζος λ ib 27 al b of the constituents of lyric or dramatic poetry words τὸ microέλος ἐκ τριῶν λόγου τε καὶ ἁρmicroονίας καὶ ῥυθmicroοῦ Pl R 398d opp πρᾶξις Arist Po 1454a18 dramatic dialogue opp τὰ τοῦ χοροῦ ib 1449a17 3 Gramm phrase complex term opp ὄνοmicroα Id SE 165a13 λ ὀνοmicroατώδης noun- phrase Id APo 93b30 cf Rh 1407b27 expression DH Th 2 Demetr Eloc 92 b sentence complete statement ἄνθρωπος microανθάνει λόγον εἶναί φῃς ἐλάχιστόν τε καὶ πρῶτον Pl Sph 262c λ αὐτοτελής AD Synt

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36 DT 6341 ῥηθῆναι λόγῳ to be expressed in a sentence Pl Tht 202b λ ἔχειν to be capable of being so expressed ib 201e cf Arist Rh 1404b26 c language τὰ τοῦ λ microέρη parts of speech ChrysippStoic 231 SE M 9350 etc τὰ microόρια τοῦ λ DH Comp 6 microέρος λ DT 63326 AD Pron 46 al (but ἓν microέρος ampλττοῦ codgt λόγου one word Id Synt 34010 cf 33422 ) περὶ τῶν στοιχείων τοῦ λ title of work by Chrysippus X the Word or Wisdom of God personified as his agent in creation and world-government ὁ παντοδύναmicroός σου λ LXX Wi 1815 ὁ ἐκ νοὸς φωτεινὸς λ υἱὸς θεοῦ CorpHerm 16 cf Plu 2376c λ θεου δι οὗ κατεσκευάσθη [ὁ κόσmicroος ] Ph 1162 τῆς τοῦ θεοῦ σοφίας ἡ δέ ἐστιν ὁ θεοῦ λ ib 56 λ θεῖος εἰκὼν θεοῦ ib 561 cf 501 τὸν τοmicroέα τῶν συmicroπάντων [θεοῦ] λ ib 492 τὸν ἄγγελον ὅς ἐστι λ ib 122 in NT identified with the person of Christ ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λ EvJo 11 cf 14 1 EpJo 27 Apoc 1913 ὁ λ τῆς ζωῆς 1 EpJo 11

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Page 3: Emerson Fernandes Diálogo: natureza, pensamento, linguagem

Todos os direitos reservados Eacute proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial do trabalho sem autorizaccedilatildeo da universidade do autor e do orientador

Emerson Fernandes

Graduou-se em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 2010 Em 2013 concluiu o curso de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio com a dissertaccedilatildeo intitulada ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Eacute muacutesico poeta educador e professor no curso de especializaccedilatildeo em Filosofia Antiga no CCEPUC-Rio

Ficha Catalograacutefica

CDD 100

Fernandes Emerson Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Emerson Fernandes orientador Danilo Marcondes de Souza Filho ndash 2018 189 f il color 30 cm Tese (doutorado)ndashPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia 2018 Inclui bibliografia 1 Filosofia ndash Teses 2 Natureza 3 Poesia 4 Mito 5 Epos 6 Logos I Souza Filho Danilo Marcondes de II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia III Tiacutetulo

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Em memoacuteria do antigo Museu Nacional

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Agradecimentos

Agradeccedilo aos meus amigos Dado Villa-Lobos Arthur Macias Benito Guidi Pedro

Tambellini Nancy Ribeiro Bruno Wagner e meus familiares que sempre me

apoiaram nessa longa estrada da vida que comeccedilou no Complexo da Mareacute

Ao meu orientador Danilo Marcondes e aos professores Paulo Ceacutesar Duque-

Estrada Renato Matoso Arthur Dapieve Paul Heritage Maura Iglesias Irley

Franco Luisa Buarque Luiacutes Carlos Pereira Marcelo Moraes Eduardo Barbosa

Carlos Monteiro Ricardo Noacutebrega Alexandre Costa Luiacutes Felipe Bellitani pelo

apoio confianccedila e contribuiccedilatildeo na reflexatildeo filosoacutefica

Agrave minha querida Vanessa Clarice pelo amor respeito e paciecircncia

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (Capes)

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Resumo

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

Esta tese tem por objetivo apresentar o percurso geneacutetico do diaacutelogo como uma

praacutetica discursiva oral que se tornou um gecircnero literaacuterio ateacute o momento que foi

utilizado como meio de expressatildeo poeacutetico e filosoacutefico por autores antigos A partir

da obra homeacuterica que foi o pilar eacutetico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico para

a organizaccedilatildeo da cultura grega esse importante gecircnero tornou-se a base para a

elaboraccedilatildeo das primeiras reflexotildees que culminaram no surgimento do Teatro e da

Filosofia na Greacutecia

Palavras-chave

Natureza Poesia Mito Epos Logos

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Abstract

Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho (Advisor) Dialogue nature thought language and expression Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro

This thesis aims to present the genetic path of dialogue as an oral discursive

practice which has become a literary genre up to the moment that was used as a

way of poetic and philosophical expression by ancient authors From this Homeric

work which was the ethical epistemological political and pedagogical pillar for

the organization of Greek culture this important genre became the basis for the

elaboration of the first reflections that culminated in the emergence of Theater and

Philosophy in Greece

Key-words

Nature Poetry Myth Epos Logos

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Sumaacuterio

1Introduccedilatildeo 9

2 Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento 18

21 A expressatildeo da Phyacutesis 18 22 Phyacutesis e Loacutegos 29 23 Poesia e Loacutegos 36 3 Poesia memoacuteria e verdade 41

31 A palavra entre os homens e deuses 41 32 Entre a oralidade e a escrita 57 4 Mythos Eacutepos e Loacutegos 64

41 Mito e poesia 64 42 Mito e espanto 67 43 Mito accedilatildeo e verdade 73 44 Mito e religiatildeo 78 45 Mito e a voz 81 46 Mito e muacutesica 88 47 Eacutepos 115 48 Loacutegos 122 5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo 127

51 A fala livre 127 52 A palavra e a bela accedilatildeo 133 53 A fala compartilhada 148 6 Consideraccedilotildees finais 164 7 Referecircncias bibliograacuteficas 170 8 Anexos 176

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1 Introduccedilatildeo

A palavra diaacutelogo1 tem originalmente algumas acepccedilotildees na liacutengua grega

Dentro delas eacute possiacutevel encontrarmos o sentido de relaccedilatildeo contato e alteridade que

ocorre em qualquer praacutetica comunicativa social poliacutetica2 e reflexiva3 A

grandiosidade da cultura helecircnica foi forjada atraveacutes do reconhecimento da

necessidade do outro que ocorreu em sua mais tenra idade no periacuteodo preacute-histoacuterico

quando o homem primitivo estabeleceu os primeiros assentamentos na parte

continental grega por volta de 40000 aC 4 Com o passar do tempo os habitantes

desse territoacuterio deixaram uma importante heranccedila cultural que repercutiu no futuro

glorioso da civilizaccedilatildeo helecircnica (VERMEULE 1964) atraveacutes dos avanccedilos

tecnoloacutegicos obtidos na idade do Bronze

Esse legado que foi atestado pela arqueologia5 eacute a prova de ter havido um

processo de continuidade entre essas culturas que ocorreu de modo subterracircneo

1 ∆ιάλογοςdiaacutelogos ὁ (διαλέγοmicroαι ) conversaccedilatildeo diaacutelogo Pl Prt 335d Demetr Eloc 223 δ τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτήν Pl Sph 263 e οἱ Σωκρατικοὶ δ Arist Fr 72 τὰ ἐν τοῖς δ Debater argumentos Id APo 78a12 geralmente conversaccedilatildeo Cic Att 552 II discurso ou seacuterie de discursos debate (cf διάλεξις) IG 31128 al III = διαλογισmicroός 1 PHib 1122 (iii BC) PTeb 5831 (ii BC) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo grego recomendamos a leitura do seguinte livro LIDDELL H G and SCOTT R A Greek-English Lexicon Oxford Clarendon Press 1997 2 Em um regime poliacutetico de caraacuteter monaacuterquico a realeza necessita estabelecer um diaacutelogo mesmo sendo de modo verticalizado com o povo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro MAQUIAVEL Nicolau ldquoO priacutenciperdquo Trad Antonio Caruccio-Caporale Satildeo Paulo LampPM Editores Porto Alegre 2011 3 Basta notar o parentesco semacircntico que eacute apontado pelos dois filoacutelogos na nota sobre o diaacutelogo atraveacutes da palavra dialogismos διαλογ-ισmicroός ὁ ponderaccedilatildeo D 3623 PRevLaws 1717 (pl) IG 5 (1) 14326 (Messene) etc daqui II caacutelculo consideraccedilatildeo Pl Machado 367a δ λαβεῖν περὶ σφῶν αὐτῶν Str 537 ὁ δ οὗτος esta consideraccedilatildeo Phld D 115 III debate argumento discussatildeo Epicur Pe 138 (pl) Metrod 37 Plu 2180c IV circuito τοῦ νοmicroοῦ δ ποιῆσαι PLond 235819 cf BGU 19i13 (ii AD) V inqueacuterito judicial PTeb 2735 (ii BC) PFay 662 (ii AD) 4 Vide a nossa tabela cronoloacutegica no anexo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E FINLEY MI ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Trad WR Vaccari Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 5 Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the twelfth and eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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atraveacutes do amplo desenvolvimento das teacutecnicas naacuteuticas militares agriacutecolas e

artiacutesticas que foram mantidas e modificadas com o passar do tempo entre esses

habitantes do solo grego para suprir as suas necessidades existenciais Dentro desse

contexto um dos elementos que pode ser identificado nesses diversos materiais

provenientes dessas culturas predecessoras eacute a utilizaccedilatildeo da muacutesica agrave serviccedilo da

tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que perdurou6 - mesmo depois da fatiacutedica idade das trevas ndash

na memoacuteria dos sobreviventes da realeza micecircnica e dos pastores e agricultores

que se refugiaram no alto das montanhas Atualmente haacute vaacuterios estudos sobre esse

tema que tentam entender como ocorreu o fenocircmeno musical durante a idade do

bronze7 Essa investigaccedilatildeo despertou o nosso interesse por tambeacutem revelar aspectos

do desenvolvimento intelectual humano que podem ser encontrados na sofisticaccedilatildeo

empregada primeiramente no uso da poesia na tradiccedilatildeo oral e posteriormente no

teatro filosofia e retoacuterica no periacuteodo claacutessico

Atraveacutes dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel identificarmos o resquiacutecio de algumas

praacuteticas culturais que sobreviveram atraveacutes da memoacuteria coletiva que pode ser

encontrada na poesia homeacuterica e hesiodica8 Consequentemente esses fatos

fornecem a base para a hipoacutetese de que os remanescentes micecircnicos contribuiacuteram

na reconstruccedilatildeo cultural que desencadeou posteriormente em um novo processo de

organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico9 no mundo antigo Esse testemunho oferecido pelo

proacuteprio Platatildeo em seu uacuteltimo diaacutelogo inacabado10 e por Heroacutedoto11 Tuciacutedides12 e

Aristoacuteteles13 apresenta para o leitor atencioso algumas pistas imprescindiacuteveis que

revela esse passado mais distante e sombrio dos gregos Consequentemente esses

relatos quando satildeo aproximados dos inuacutemeros materiais analisados pela

6 Haacute diversos estudos que apontam esse processo de continuidade Eacute importante ressaltar que o modo como isso ocorreu ainda eacute motivo de muitas polecircmicas entre os especialistas A nossa intenccedilatildeo secundaacuteria eacute levantar algumas evidecircncias que foram surgindo ao decorrer de nossa pesquisa Uma delas foi apresentada por Jean-Pierre Vernant que se refere ao uso do cavalo que foi inicialmente adotado para diversos usos na civilizaccedilatildeo minoica A importacircncia do cavalo sobretudo no acircmbito mitoloacutegico e militar estaacute extensamente descrita na poesia eacutepica homeacuterica Essa eacute uma das provas do elo de continuidade cultural que falamos anteriormente Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 7 Vide o seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 8 Vide nota 6 9 Vide Platatildeo As Leis (livro III 677) 10 Ibidem 11 Vide Heroacutedoto Histoacuterias 12 Vide Tuciacutedides A histoacuteria da guerra do Peloponeso 13 Vide as seguintes obras de Aristoacuteteles Poliacutetico e a Constituiccedilatildeo dos atenienses

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arqueologia contemporacircnea revela algumas evidecircncias que seratildeo expostas e

estudadas nesse presente trabalho Vale ressaltar que dentro desse contexto a liacutengua

grega foi constituiacuteda e aprimorada acompanhando todas essas influecircncias histoacutericas

e culturais recebidas de outras civilizaccedilotildees afins Para esse estudo a anaacutelise do

Linear A14 e B ainda continua sendo um rico manancial para os historiadores

filoacutelogos e antropoacutelogos O nosso meacutetodo investigativo natildeo se ateve apenas sobre

os registros fornecidos pela literatura escrita mas como foi exposto anteriormente

partirmos de importantes estudos arqueoloacutegicos que analisa materiais

arquitetocircnicos orgacircnicos inorgacircnicos pictoacutericos artesanais e metaluacutergicos A

forma como esses estudos satildeo organizados partem da reuniatildeo de todas as evidecircncias

disponiacuteveis para uma investigaccedilatildeo mais detalhada do comportamento humano E

um dos criteacuterios utilizados pelos pesquisadores eacute a anaacutelise do desenvolvimento

tecnoloacutegico que pode ser alcanccedilado de modo comparativo entre os diferentes

periacuteodos da historiografia grega

Como um verbo transitivo que sempre busca o seu complemento a nossa

capacidade de expressatildeo reflexatildeo e criaccedilatildeo opera por essa mesma loacutegica que revela

a nossa incompletude e que assina a imagem da natureza humana em relaccedilatildeo aos

imortais15 Essa caracteriacutestica foi ressaltada e analisada por Aristoacuteteles no livro I da

Poliacutetica16 no qual eacute exposto que o homem por natureza17tem o poder da palavra

articulada18 que eacute fundamental para o processo de organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo

existencial da comunidade humana19 e que se constitui atraveacutes da praacutetica

dialoacutegica20 De modo discreto o filoacutesofo macedocircnio estabelece uma interessante

14 Jean-Pierre Vernant chama atenccedilatildeo para o fato de haver por volta do seacuteculo XV aC uma fusatildeo de diferentes culturas que foi denominada de chipro-micecircnica na qual podemos identificar elementos da cultura minoica micecircnica e asiaacutetica Durante esse periacuteodo eles disponibilizavam de uma escrita que foi derivada do Linear A Logo o estudo dessa escrita possibilita muitas informaccedilotildees sobre esse processo de mesticcedilagem cultural que ocorreu nesse periacuteodo histoacuterico Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 15 Αθάνατοι athaacutenatoi Os deuses 16 Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) 17 Kατά Φύσιν kata phyacutesin18 Λόγοςloacutegos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse importante termo do vocabulaacuterio grego 19 Πόλιςpoacutelis 20 A partir da exposiccedilatildeo aristoteacutelica no capiacutetulo I do livro da Poliacutetica no qual eacute dito que o homem por natureza ou seja por necessidade precisa viver em comunidade (κοινωνίαkoinonia) subentende-se a importacircncia do desenvolvimento do processo dialoacutegico ndash e aqui nos deparamos com uma evidecircncia que remonta diretamente a fundamentaccedilatildeo de nossa hipoacutetese sobre o uso desse

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ordenaccedilatildeo argumentativa que apresenta em sua obra a relaccedilatildeo entre o pensamento

julgamento expressatildeo sociabilidade e poliacutetica que revela a heranccedila intelectual

herdada das investigaccedilotildees promovida por seu mestre na Academia Aliaacutes foi o

proacuteprio Platatildeo que chamou atenccedilatildeo para esse fato em uma passagem do diaacutelogo

Mecircnon21 Na liacutengua grega eacute possiacutevel observar algumas dessas noccedilotildees atraveacutes da

proximidade semacircntica entre o verbo desejar22 e perguntar23 que assinala esse

caraacuteter de alteridade que abrange a instacircncia epistemoloacutegica poliacutetica e social no

mundo antigo24 Esse traccedilo que eacute perceptiacutevel na maioria das obras gregas expotildee

meio de expressatildeo por Soacutecrates e Platatildeo para buscar a plenitude existencial da poacutelis ndash que eacute essencial dentro desse contexto exposto pelo filoacutesofo macedocircnio (vide in loco a passagem 1252 b 25 ndash 30

ldquoPrimeiro haacute a necessidade de reunir dois seres que natildeo podem fazer nada um sem o outro quero dizer a uniatildeo dos sexos para a reproduccedilatildeo E natildeo haacute nada arbitraacuterio pois no homem assim como em outros animais e plantas eacute um desejo natural querer deixar para traacutes um ser feito agrave sua imagemrdquo) Nesse sentido o contato natural entre os seres da mesma espeacutecie ndash que reside na expressatildeo ldquo ἀνάγκη δὴ πρῶτον συνδυάζεσθαιanacircnke de proacuteton synduazesthai rdquo pressupotildee a atividade comunicativa necessaacuteria no acircmbito da linguagem para a realizaccedilatildeo desse objetivo que tambeacutem tem relaccedilatildeo com a estruturaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica para Aristoacuteteles Atualmente na aacuterea da Educaccedilatildeo haacute diversos estudos que apresentam a importacircncia da praacutetica dialoacutegica no processo pedagoacutegico de jovens e adultos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro FLECHA R ldquoCompartiendo palavras el aprendizaje de las personas adultas a traveacutes del diaacutelogordquo Barcelona Paidoacutes 1997 21 Em Platatildeo Mecircnon (84 c) Nessa passagem Platatildeo estabelece um jogo poeacutetico entre o uso desses verbos que visa destacar a correspondecircncia - e importacircncia - entre eles na investigaccedilatildeo filosoacutefica socraacutetica A atitude de desejar algo estaacute intrinsicamente relacionada com a imagem do filoacutesofo que eacute construiacuteda a partir da busca da verdade Aliaacutes no Banquete essa questatildeo eacute retomada quando Soacutecrates invoca a sacerdotisa Diotima para estabelecer o diaacutelogo que apresenta a imagem do amor agrave sabedoria que soacute pode ser alcanccedilada na relaccedilatildeo de proximidade e harmonia com o proacuteximo 22 Έράωeraacuteo (A) utilizado no Act somente no pres e imp (que na poesia satildeo ἔραmicroαι ἠράmicroην) iacuteon Archρέω Archil 253 impf Hρων Hdt 9108 E Fr 161 Ar Ach 146 - Passar ἀντ-ερᾶται X Smp 83 optar Id Hier 1111 inf ἐρᾶσθαι Plu Brut 29 etc parte ἐρώmicroενος (v infr) - tambeacutem ἐράοmicroαι 3 sg ἐρᾶται Plu 2753b Philostr Academia 48 (vράασθε v Sub ἔραmicroαι) todos os outros tempos seratildeo encontrados em ἔραmicroαι - amor c gen pers da paixatildeo sexual apaixonar-se por (X Cyr 5110) ἤρα τῆσ γυναικός Hdt 9108 etc c acc cogn ἔρᾶν ἔρωτα E Hipp 32 pl Smp 181b abs Aρῶν a lover vl em pi O 180 (pl) S Fr 1498 (pl) opp the ωρωmicroένη o amado Hdt 331 SE P 3196 [ὁ] ἐρώmicroενος X Smp 836 pl Phdr 239a cf Ar Eq 737 (pl) τὸν ἐρώmicroενον αὐτοῦ Lat delicias ejus Arist Pol 1303b23 2 sem referecircncia sexual amar calorosamente opp φιλέω οὐδ ἤρα οὐδ ἐφίλει Pl Ly 222a - ὥστε οὐ microόνον φιλοῖο ἂν ἀλλὰ καὶ ἐρῷο X Hier 1111 cf Plu Brut 29 κινεῖ [τὸ οὗ ἕνεκα] ὡς ἐρώmicroενον Arist Metaf 1072b3 II c gen rei amor ou desejo apaixonadamente τυραννίδος Archil 253 τερπνότατον τοῦ τις ἐρᾷ τὸ τυχεῖν Thgn 256 microάχης ἐρῶν A Th 392 microόνος θεῶν γὰρ Θάνατος οὐ δώρων ἐρᾷ Id Pe 161 Antmicroηχάνων ἐρᾷς S Ant 90 πατρίδος ἐρᾶν E Ph 359 οὗ ἐπιθυmicroεῖ τε καὶ ἐρᾷ Pl Smp 200a e c inf desejo de fazer A Fr 441 θανεῖν ἐρᾷ S Ant 220 Hποθανεῖν ἐρῶντες Hp de Arte 7 Arαγεῖν Ar Ach 146 πληροῦσθαι Pl Phlb 35a 23 Έρέω ereacuteo (A) Ep verbo = ἐρεείνω ἔροmicroαι ἐρωτάω perguntar inquirir c acc rei sobre uma coisa ἐρέων γενεήν τε τόκον τε Il 7128 cf Od 2131 procurar por Aυλαν AR 11354 2 c acc pers questatildeo microάντιν ἐρείοmicroεν (v infr) Il ἱερῆα Il 162 Odλλήλους ἐρέοιmicroεν Od 4192 ὅπως ἐρέοιmicroι ἑκάστην 11229 3 c acc rei pesquisa explorar Nicλυούς Nic ordm 143 (vl ἐρέθοντες) (Prob Ἐρε (ϊ) - cf ρευτής ἐρείοmicroεν perh metri gr para ἐρέ(ϊ) -o-microεν pres subj de radical natildeo-temaacutetico) 24 Vide Platatildeo Teeteto (149 a) Um dos pontos que estaacute impliacutecito nesse diaacutelogo eacute a necessidade do outro para a busca e obtenccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido o diaacutelogo eacute o meacutetodo fundamental para atender esse tipo de objetivo Na nossa dissertaccedilatildeo de mestrado haacute importantes observaccedilotildees

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esse impulso essencial que marca o nosso ponto de diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo

divino Pois ele eacute responsaacutevel por direcionar o homem atraveacutes da busca do

conhecimento que visa suprir os objetivos existenciais mais baacutesicos da nossa

espeacutecie de modo organizado e compartilhado

Nesse contexto eacute possiacutevel detectarmos a importacircncia que desempenhou a

Literatura oral e escrita para o surgimento de um tipo de reflexatildeo mais enxuta que

eclodiu com o surgimento da Filosofia que no seu estado inicial sempre esteve

voltada para auxiliar as accedilotildees humanas (HADOT 1995) na busca da plenitude

existencial Essa tese que foi defendida por Aristoacuteteles no Protreacuteptico25 estabelece

uma argumentaccedilatildeo no qual o estudo teoacuterico deve estar voltado para auxiliar o

mundo praacutetico A siacutentese entre o homo faber e sapiens que foi ressaltada por

pensadores como Mondolfo (MONDOLFO 1969) parece ter sido uma

caracteriacutestica importante da tradiccedilatildeo dos antigos sete saacutebios que teve origem na

expansatildeo cultural promovida na idade do Bronze em diversas civilizaccedilotildees desse

periacuteodo No livro X da Repuacuteblica26 Platatildeo expotildee a junccedilatildeo dessas duas atividades27

que a princiacutepio dialogavam sob o mesmo diapasatildeo exegeacutetico Ou seja o

pensamento reflexivo cultivado entre os iguais28 resulta na construccedilatildeo de um

fundamento que seraacute utilizado como uma buacutessola para encontrar a plenitude

existencial em cada comunidade A dimensatildeo externa ndash e natildeo menos importante -

dessa noccedilatildeo aponta para uma espeacutecie de caraacuteter hiacutebrido que apresenta a

que explicitamos sobre como o processo de composiccedilatildeo dramaacutetica do diaacutelogo estava em total consonacircncia com o questionamento elaborado por Platatildeo em torno da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento Um dos detalhes que chamou a nossa atenccedilatildeo foi o fato do poeta-filoacutesofo apontar a proximidade entre o jovem Teeteto e Soacutecrates atraveacutes da metoniacutemia que eacute construiacuteda na relaccedilatildeo entre o corpo e alma para evidenciar de modo sutil atraveacutes de carateriacutesticas exteriores algumas qualidades (Teeteto 144 a) a priori que satildeo essenciais para o desenvolvimento do processo dialoacutegico entre o jovem Teeteto e Soacutecrates Por outra perspectiva essa descoberta chama atenccedilatildeo para o problema da relaccedilatildeo entra a alma e o corpo (vide Feacutedon) que sempre foi um tema muito caro em sua obra Para Platatildeo essa foi uma forma encontrada para tentar combater o sensualismo defendido por alguns sofiacutestas Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura da seguinte obra F Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo dissertaccedilatildeo de mestrado Puc-Rio 2013 25 Vide Aristoacuteteles Protreacuteptico (Iamblichus Protreacuteptico VI 3627-37 22 Pistelli) 26 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro X 600-a) 27 Εἰς τὰ ἔργα σοφοῦ eis ta erga sophou Essa expressatildeo encontrada no livro X da Repuacuteblica foi ressaltada por Rodolfo Mondolfo em sua obra no qual analisa esse problema Para mais detalhes sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum Factumrdquo Desde antes de Vico hasta Marx Bs As Ed Siglo Veintiuno 1971 28 Como ressaltamos anteriormente na nota 24 essa ideia estaacute exposta no diaacutelogo Teeteto de Platatildeo na proximidade entre a imagem do jovem Teeteto e Soacutecrates

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multiplicidade cultural da essecircncia helecircnica que foi obtida desde o seu passado mais

remoto no contato com vaacuterias culturas na Bacia do Mediterracircneo

A proximidade com outros povos que foi estabelecida atraveacutes do comeacutercio e

da guerra a partir do desenvolvimento das culturas ciclaacutedica minoacuteica e micecircnica

aleacutem de revelar esse processo de relaccedilatildeo cultural29 tambeacutem foi responsaacutevel por

promover um banco extraordinaacuterio de conhecimento das accedilotildees humanas que foi

mantido e repassado atraveacutes da tradiccedilatildeo oral Esse acuacutemulo que foi fruto de

experiecircncias vitoriosas e amargas foram essenciais para a sobrevivecircncia e

manutenccedilatildeo dessas lembranccedilas do passado que serviu como norte para o futuro

atraveacutes da construccedilatildeo de uma das mais belas expressotildees humanas que foi alcanccedilada

a partir do amplo desenvolvimento das teacutecnicas musicais empregadas na

constituiccedilatildeo da poesia homeacuterica Esse feito notaacutevel reuacutene em sua maacutexima

excelecircncia todos os elementos mais importantes de sua histoacuteria30 que serviu para

pavimentar a estrada sinuosa do mundo helecircnico

No caso grego a linguagem eacute fundamentalmente marcada pelo contato e

observaccedilatildeo da Natureza O mito epoacutes loacutegos e o diaacutelogo satildeo imagens oriundas

dessa caracteriacutestica sublime que se iniciou na tradiccedilatildeo oral e que juntas formam a

relaccedilatildeo entre o ato de reflexatildeo e expressatildeo Essa experiecircncia foi essencial cada

uma delas em seu respectivo contexto para o desenvolvimento da religiatildeo arte

filosofia ciecircncia e poliacutetica no mundo antigo A forma como o homem estabeleceu

29 ∆ιάλογοςdiaacutelogos 30 Eacute importante ressaltar que o sentido de historicidade nesse contexto natildeo eacute equivalente ao conceito moderno Haacute uma grande polecircmica entre os historiadores em torno desse assunto Aliaacutes o termo grego em sua origem carrega o sentido de investigaccedilatildeo ἱστορ-ία historiacutea iacuteon -ιη ἡ inqueacuterito στορίῃσι εἰδέναι τι παρά τινος Hdt 2118 cf 119 ἡ περὶ φύσεως ἱ Pl Phd 96a αἱ περὶ τῶν ζῴων ἱ Arist Resp 477a7 al ἡ ἱ Id περὶ τὰ ζῷα Id PA 674b16 ζωικὴ ἱ ib 668b30 περὶ φυτῶν ἱ tiacutetulo do trabalho de Teofrasto observaccedilatildeo sistemaacutetica ou cientiacutefica Epicur Ep 1p29U abs da ciecircncia em geral ὄλβιος ὅστις τῆς ἱ Eσχε microάθησιν E Fr 910 (anap) da geometria Pythag ap Cordeiro VP 1889 na medicina empiacuterica corpo de casos registrados Gal 1144 mitologia ησίοδον πάσης ἤρανον ἱστορίης Hermesiano 722 2 conhecimento assim obtido informaccedilatildeo Hdt 1 Praef Hp VM 20 ἐις ἐmicroὴ καὶ γνώmicroη καὶ ἱ Hdt 299 πρὸς ἱστορίαν τῶν κοινῶν pelo conhecimento de D 18144 ψ τῆς ψυχῆς ἱ Arist reitor 402a4 II relato escrito de suas investigaccedilotildees narrativa histoacuteria prob neste sentido em Hdt 796 αἱ τῶν περὶ τὰς πράξεις γραφόντων ἱ Arist Rh 1360a37 Po 1451b3 Plb 1575 al Oκ τῶν ἱστοριῶν καὶ ἐκ τῶν ἄλλων microαρτυριῶν OGI 1312 (iii BC) αἱ Μαιανδρίου ἱ InscrPrien 37105 κοινὴ ἱ histoacuteria geral DH Ελληνική ρωmicroαϊκή Plu 2191d restringido por alguns agrave histoacuteria contemporacircnea Lat rerum cognitio praesentium VerrFlacc ap Gell 518 geralmente histoacuteria Call Aet 317 para a polecircmica em torno dessa questatildeo na antiguidade recomendamos a leitura dos seguintes livros HARTOG Franccedilois ldquoEvidecircncia da histoacuteria o que os historiadores veemrdquo Trad Guilherme Joatildeo de Freitas com a colaboraccedilatildeo de Jaime A Clasen Belo Horizonte Autecircntica 2011 E ldquoOs Antigos O Passado e o Presenterdquo Ed UnB Brasiacutelia 2003

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comunicaccedilatildeo com essas forccedilas divinas moldou o seu proacuteprio modo de pensar e o

espaccedilo de atuaccedilatildeo no mundo atraveacutes de suas accedilotildees O contato com a natureza

humana e divina somada agrave capacidade de observaccedilatildeo e audiccedilatildeo trouxe um traccedilo

singular no processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega que

proporcionou o encontro da gloacuteria e o respeito entre as maiores civilizaccedilotildees da

antiguidade Um olhar singular que alcanccedilou a imensidatildeo do cosmo divino para

buscar sentido para os meros mortais quando estabelecia proximidade com os

deuses oliacutempicos atraveacutes de seus mais grandiosos feitos A reflexatildeo expressatildeo e

accedilatildeo que operam de modo encadeado criaram os seus mais belos rebentos atraveacutes

da Poesia Teatro Poliacutetica e Filosofia

Sobre a beleza eacute importante ressaltar que no contexto grego o seu sentido estaacute

em total consonacircncia com a noccedilatildeo de verdade que se forma no periacuteodo preacute-

homeacuterico e perdura ateacute o claacutessico31 a partir do criteacuterio do natildeo-esquecimento e da

accedilatildeo eficaz que garante o ecircxito no campo de batalha da vida A partir desses

princiacutepios a proacutepria constituiccedilatildeo do processo preacute-juriacutedico grego tambeacutem se

desenvolve para auxiliaacute-los na sua organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Em um primeiro

momento histoacuterico essas accedilotildees efetivas satildeo imortalizadas pela boca do aedo que

habita entre as duas instacircncias que juntas compotildee o espaccedilo dramaacutetico32 de atuaccedilatildeo

entre homens e deuses Nesse sentido eacute perceptiacutevel a partir do contexto homeacuterico

identificar algumas noccedilotildees que os gregos mantiveram do seu passado mais remoto

com o intuito de utilizaacute-las para garantir a perpetuaccedilatildeo dos valores cultivados pelos

seus ancestrais33 Por outro lado esse legado dispotildee de dispositivos que foram

31 Vide as obras de Homero Platatildeo e Aristoacuteteles Apesar de algumas diferenccedilas entre esses pensadores eacute possiacutevel encontramos essa noccedilatildeo que perpassa por todas as culturas predecessoras dos gregos atraveacutes da mitologia que foi mantida e difundida pela tradiccedilatildeo oral Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 32 Ou seja o mundo eacute formado atraveacutes do princiacutepio da guerra Vide o fragmento de Anaximandro (D-K 12 A 9 Simpliacutecio Fiacutes 24 13-25) Nele o filoacutesofo expotildee em sua sentenccedila mais famosa na antiguidade um questionamento que pode ser tambeacutem encontrado na poesia homeacuterica o sentido de ilimitado (ἄπειρονaacutepeiron) carrega o mesmo alfa privativo que estaacute contido na palavra imortal (ἀθάνατοςathaacutenatos) que para noacutes parece ter uma carga semacircntica similar Esse termo que ganha uma importacircncia fundamental na cosmologia do filoacutesofo estaacute em total consonacircncia com o questionamento que foi primeiramente trazido por poetas mais antigos como Homero e Hesiacuteodo Logo podemos encontrar mais uma evidecircncia de como a poesia oral foi importante para manter esse legado da cultura grega e que serviu de base para a reflexatildeo dos primeiros filoacutesofos 33 Uma das provas de continuidade cultural tambeacutem pode ser obtida nas praacuteticas oraculares que ainda desempenhavam um importante papel na esfera poliacutetica entre os gregos Esse fato traz um grande problema para aqueles que defendem que houve um processo de distanciamento da religiatildeo apoacutes o surgimento da Democracia que teria possibilitado o surgimento da Filosofia Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do IV capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs

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imprescindiacuteveis para o aprimoramento epistemoloacutegico social poliacutetico e juriacutedico

Para o primeiro basta lembrar a importacircncia da poesia homeacuterica e hesioacutedica em

todas as discussotildees cosmogocircnicas e cosmoloacutegicas dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos que

culminou posteriormente no surgimento do debate intelectual no qual o homem

passou a ser o centro de todas as questotildees ou a medida de todas as coisas como

defendia o grande Protaacutegoras de Abdera34 Paralelamente a reflexatildeo juriacutedica e

poliacutetica foram temas de destaque nessas respectivas obras Na Iliacuteada de Homero

por exemplo nos deparamos com uma profunda criacutetica poliacutetica a partir da crise

entre Agamemnon e Aquiles que nos revela a decadecircncia da antiga estrutura

monaacuterquica micecircnica com a figura de um rei fraco e covarde Aleacutem dessa questatildeo

podemos notar a defesa dos valores calcados na honra e na coragem que eacute atribuiacuteda

ao grande heroacutei dos mirmidotildees

Posteriormente em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta campesino ressalta a

necessidade do reconhecimento do papel da Justiccedila35para a organizaccedilatildeo do espaccedilo

social e poliacutetico no mundo humano que deve sempre manter um bom diaacutelogo com

o mundo divino com o objetivo de encontrar a harmonia atraveacutes do valor do

trabalho e respeito agraves leis A sua exposiccedilatildeo vem acompanhada de uma profunda

criacutetica ao modo como a classe aristocraacutetica administrava a comunidade36 Aliaacutes

Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 34 Ibidem 35 ∆ίκη Dikeacute Divindade que representa o conceito de justiccedila no mundo grego Eacute importante ressaltar que que nesse contexto o seu sentido tem proximidade semacircntica com a verdade (ἀλήθειαaleacutetheia) pois satildeo elas as responsaacuteveis por organizar a vida humana Esses dois fundamentos teoloacutegicos que pertence a esfera divina eacute outro legado oriundo de uma tradiccedilatildeo muito antiga Curiosamente do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute o periacuteodo claacutessico essa concepccedilatildeo vigorava no pensamento grego de modo irrevogaacutevel Como exemplo podemos encontraacute-la ainda presente nos livros da Repuacuteblica e as Leis de Platatildeo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros GERNET Louis ldquoDroit et Socieacuteteacute dans la Gregravece Anciennerdquo Paris Recueil Sirey 1955 HESIacuteODO ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo Traduccedilatildeo de Mary de Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1989 36 Hesiacuteodo ldquoTrabalhos e os diasrdquo (v 205 - 285) Sobre essa questatildeo vale ressaltar as consideraccedilotildees que foram apresentadas por Louis Gernet que apontou uma mudanccedila no conceito de justiccedila entre o periacuteodo arcaico e claacutessico ao analisar as duas virtudes que foram oferecidas aos homens por Zeus no mito de Protaacutegoras (Platatildeo Protaacutegoras 322 c) Aleacutem da Justiccedila (∆ίκη Dikeacute) aparece um termo de difiacutecil traduccedilatildeo chamado αἰδώς aidoacutes (Platatildeo Protaacutegoras 322 cαἰδῶ τε καὶ δίκην aido te kai dikeacuten) que segundo o dicionaacuterio de Lidell amp Scott apresenta o sentido de um sentimento moral de respeito aos outros mas aleacutem desse haacute outros a saber αἰδώς όος contr οῦς η (tarde nom pl αἰδοί Sch E Hipp 386) como um sentimento moral reverecircncia admiraccedilatildeo respeito pelo sentimento ou opiniatildeo dos outros ou pela proacutepria consciecircncia e assim vergonha auto-respeito (na ἑαυτοῦ αἰδώς Hierocl em CA 9p433M) sentido de honra αἰδῶ θέσθ ἐνὶ θυmicroῷ Il 15561 ἴσχε γὰρ αἰ καὶ δέος ib 657 cf Sapph 28 democr 179 etc αἰ σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει αἰσχύνης δὲ εὐψυχία Th 184 cf E Supp 911 Arist EN 1108a32 etc αἰδοῖ microειλιχίῃ Od 8172 so ἀλλά microε κωλύει αἴδως Alc 55 (Sapphus est versus) ἅmicroα κιθῶνι ἐκδυοmicroένῳ συνεκδύεται καὶ τὴν αἰδῶ γυνή

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esse fato teve um desdobramento terriacutevel com uma guerra civil de grandes

proporccedilotildees entre a classe dos nobres e dos trabalhadores que levou muitos gregos

agrave morte37 Essa crise foi apaziguada temporariamente atraveacutes da intervenccedilatildeo do

poeta legislador Soacutelon A partir dessas mudanccedilas e das reformas de Clistenes38 a

Greacutecia comeccedila estabelecer uma abertura poliacutetica e social que foi fundamental para

um regime poliacutetico no qual o diaacutelogo e confronto de ideias39datildeo a tocircnica desse novo

momento histoacuterico que culminou no florescimento de grandes personalidades que

influenciam ateacute hoje o nosso mundo ocidental

Hdt 18 δακρύων πένθιmicroον αἰδῶ laacutegrimas de pesar e vergonha A Supp 579 αἰ τίς micro ἔχει Pl Sph 217d αἰ καὶ δίκη Id Prt 322c αἰδοῦς ἐmicroπίπλασθαι X Cyr 144 sobriedade moderaccedilatildeo pi O 13115 αἰδῶ λαβεῖν S Aj 345 2 consideraccedilatildeo pelos outros respeito reverecircncia αἰδοῦς οὐδεmicroιῆς ἔτυχον Thgn 1266 cf E Heracl 460 αἰ τοκέων respeito por eles Pi P 4218 τὴν ἐmicroὴν αἰδῶ respeito por mim A Pers 699 em conta para os amigos ἰχαλκεύτοισιν ἔζευκται πέδαις E Fr 595 esp consideraccedilatildeo pelo desamparado compaixatildeo αἰδοῦς κῦρσαι S OC 247 perdatildeo Antipho 126 Pl Lg 867e (cf αἰδέοmicroαι 112) II aquilo que causa vergonha ou respeito e assim 1 vergonha escacircndalo αἰδώς αργεῖοι κάκ ἐλέγχεα Il 5787 etc αἰδώς ὦ Λύκιοι πόσε φεύγετε 16422 αἰδὼς microὲν νῦν ἥδε 17336 2 = τὰ αἰδοῖα Il 2262 Arat 493 DH 772 3 dignidade majestade αἰ καὶ χάρις hCer 214 III Personδώς personificado Reverecircncia Pi O 744 Misericoacuterdia Ζηνὶ σύνθακος θρόνων Αἰ S OC 1268 cf Paus 1171 παρθένος Αἰδοῦς ∆ίκη λέγεται Pl Lg 943e Logo eacute possiacutevel compreender esse termo como fruto de um contexto soacutecio-poliacutetico democraacutetico no qual era necessaacuterio estabelecer um laccedilo de respeito muacutetuo atraveacutes do diaacutelogo que ainda tem ligaccedilatildeo com a justiccedila divina de Hesiacuteodo Ou seja ela eacute um fundamento que parte de um desdobramento do acircmbito divino para o mundo no qual o homem eacute a medida de todas as coisas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Champs-Flammarion 1982 37 Entre os seacuteculos VII e VI aconteceu uma terriacutevel crise social que produziu uma guerra civil entre a classe dos nobres e dos trabalhadores atenienses Esse problema foi resolvido apoacutes a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon A sua atuaccedilatildeo foi essencial para o estabelecimento da base democraacutetica que foi consolidada com as reformas do legislador Clistenes Para mais informaccedilatildeo sobre esse tema recomendo a leitura do seguinte artigo F Emerson ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj 2015 38 Ibidem 39 Nesse caso o pleonasmo natildeo foi acidental No uacuteltimo capiacutetulo do presente trabalho pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo A forma como a palavra-diaacutelogo apareceu nesse determinado contexto histoacuterico pode responder por exemplo como essa noccedilatildeo foi importante para o desenvolvimento do drama como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

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Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento

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A expressatildeo da Phyacutesis

A Natureza eacute saacutebia e ela natildeo faz nada sem nenhum propoacutesito40 Segundo

Aristoacuteteles no livro da Poliacutetica41 o homem eacute um animal que tem o poder da palavra

articulada 42 que eacute a caracteriacutestica sine qua non que determina a sua diferenccedila entre

todos os outros seres vivos43 Esse poder de expressatildeo que eacute regido atraveacutes da nossa

capacidade de julgar44 eacute o que permite ao homem poder se organizar em uma

comunidade 45 justa e por isso ser considerado por natureza um animal poliacutetico46

40 Aristoacuteteles Poliacutetica (Livro I1253 a -10-14) 41 Ibidem 42 Λόγος (Loacutegos) Vide tambeacutem Eacutetica a Nicoacutemaco (Livro IX 9 1170 b11) onde o filoacutesofo afirma que a diferenccedila entre os homens e os outros animais eacute a faculdade de pensar (νοῦςnous) Os animais soacute possuem apenas a faculdade das sensaccedilotildees (αἴσθησῐςaiacutesthēsis) Eacute importante ressaltar a nossa imensa dificuldade em traduzir esse importante termo da liacutengua grega pois ele carrega diversos sentidos e a sua traduccedilatildeo necessita levar em consideraccedilatildeo o contexto especiacutefico no qual a palavra esteja sendo empregada Nessa passagem de Aristoacuteteles por exemplo ela carrega o sentido de uma palavra articulada pelo poder da razatildeo ndash sendo esse outro significado que o termo abrange como vimos na passagem do livro da Eacutetica a Nicocircmaco ndash que nos diferencia de outros animais No proacuteprio texto do filoacutesofo macedocircnio ele estabelece essa conotaccedilatildeo que nos ajuda a encontrar uma traduccedilatildeo apropriada Vide tambeacutem Xenofonte Memoraacuteveis (IV 3 12) e Isoacutecrates Sobre a mudanccedila de fortuna (253-7) e A Nicoles (50) Provavelmente Aristoacuteteles esteja desenvolvendo a sua teoria a partir dessas obras que foram inspiradas no pensamento de Protaacutegoras que podemos encontrar no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo Posteriormente iremos apresentar algumas hipoacuteteses em torno desse termo e a sua relaccedilatildeo com mais dois outros que expressam o sentido de linguagem e comunicaccedilatildeo para os gregos a saber ἔπος και microῦθος (epos e mythos) 43 Vide o mito de Protaacutegoras 44 Λογισmicroός (Logismoacutes) 45 Κοινωνία (Koinonia) associaccedilatildeo 46 ldquoὁ ἄνθρωπος φύσει ζῷον πολιτικόνrdquo (ho anthropos physei zoon politikon) Essa locuccedilatildeo grega tambeacutem levanta intensos debates em torno de sua interpretaccedilatildeo Infelizmente eacute muito difiacutecil traduzirmos com maacutexima fidelidade o sentido que o filoacutesofo empregou nessa sentenccedila O substantivo zoacuteon ao lado do adjetivo politikon parece formar um neologismo que estabelece um importante conceito na filosofia do pensador macedocircnio mas eis que surge uma questatildeo seraacute que esse conceito foi realmente cunhado por Aristoacuteteles ou pelo seu mestre Platatildeo No livro das Leis (livro III e IV) Poliacutetico e da Repuacuteblica (livro VI 546 a) o filoacutesofo poeta apresenta diversas questotildees que satildeo retomadas pelo seu disciacutepulo Eacute certo que esse era um importante tema dentro das intensas discussotildees que ocorriam na Academia Logo se faz necessaacuterio respeitar o contexto do qual essa expressatildeo foi retirada para evitar qualquer tipo de anacronismo ou distorccedilatildeo

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que busca encontrar a sua plenitude existencial como objetivo final de sua vida47

Nesse sentido o poder de comunicaccedilatildeo e de criaccedilatildeo que eacute fornecido e revelado

pela palavra satildeo determinantes para a construccedilatildeo organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do

mundo humano Semelhante ao deus platocircnico que se inspira nas ideias48 para a

criaccedilatildeo de todo o universo49 o homem mimetiza50 a Natureza51 para a realizaccedilatildeo do

objetivo que eacute ressaltado pelo filoacutesofo macedocircnio como a finalidade primordial que

define a nossa espeacutecie Ou seja ela eacute a medida de todas as coisas52 Estudar a sua

manifestaccedilatildeo eacute o ideal do homem primitivo que ao reconhecer a sua presenccedila eacute

tomado pelo assombro53 que eacute responsaacutevel para o surgimento da busca pela

sabedoria54 Esse importante passo contribui de modo definitivo para o seu mais

amplo desenvolvimento existencial em nossa histoacuteria O trabalho dos primeiros

pensadores parte dessa constataccedilatildeo inicial Ou seja o olhar dirigido para todos os

fenocircmenos naturais que eclodem ao redor do seu espaccedilo de atuaccedilatildeo delineia o

47 Ευδαιmicroονία (Eudaimonia) O ldquoBem-estarrdquo eacute um dos pontos centrais das discussotildees intelectuais no periacuteodo claacutessico No diaacutelogo Eutidemo de Platatildeo (278 e) essa questatildeo aparece como norteadora para a reflexatildeo eacutetica poliacutetica e pedagoacutegica para os gregos de modo geral 48 Platatildeo Timeu (28 a-b) ldquoὅτου microὲν οὖν ἂν ὁ δηmicroιουργὸς πρὸς τὸ κατὰ ταὐτὰ ἔχον βλέπων ἀεί τοιούτῳ τινὶ προσχρώmicroενος παραδείγmicroατι τὴν ἰδέαν καὶ δύναmicroιν αὐτοῦ ἀπεργάζηται καλὸν ἐξ ἀνάγκηςrdquo Destarte o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel que utiliza como arqueacutetipo quando fornece a forma e as propriedades ao que se cria Eacute necessaacuterio que tudo aquilo que se efetiva deste modo seja belo 49 Κόσmicroος (koacutesmos) Ο termo carrega o sentido de ordenamento e harmonia 50 Μίmicroησις (miacutemesis) Esse eacute outro termo dificiacutelimo para traduzir No geral os tradutores utilizam a palavra imitaccedilatildeo mas para o contexto grego o sentido eacute muito mais amplo Um deles pode ser a noccedilatildeo de representaccedilatildeo (Leis livro I 655d II 667d IV 719c VII 815a) que ele aplica ao contexto teatral e das artes de um modo geral Mas haacute ainda um sentido mais conceitual que Platatildeo aplica de modo sub-reptiacutecio no livro X da Repuacuteblica agrave teoria das formas Ao contraacuterio de muitos helenistas e especialistas de esteacutetica que criticaram de modo ofensivo a sua exposiccedilatildeo o filoacutesofo parece associar a esse termo um contraponto ao sentido de ldquocriaccedilatildeordquo (ποιεῖν) que eacute a tarefa do demiurgo e do filoacutesofo Para a defesa da nossa hipoacutetese partimos da passagem que citamos do Timeu na nota anterior e tambeacutem de uma importante obra esquecida do historiador Dionisio de Halicarnaso chamada ldquoSobre a imitaccedilatildeordquo (Περι Μιmicroησεως) Ao aproximaacute-la do livro X e da passagem que expomos do Timeu podemos extrair uma tese bem interessante sobre o ato de criaccedilatildeo para os antigos Posteriormente Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448ordf17-19) vai explorar o sentido desse termo no acircmbito poeacutetico eacutetico e ontoloacutegico a partir de sua doutrina 51 Φύσιςphyacutesis 52 Platatildeo e Aristoacuteteles defendem que o modelo ou medida (microέτρον) para o mundo humano - diferentemente do que defendia Protaacutegoras com a noccedilatildeo do homem como medida de todas as coisas- eacute a Natureza para Aristoacuteteles e Deus Para Platatildeo Apesar de algumas diferenciaccedilotildees entre elas essas satildeo noccedilotildees similares que deveriam ser o criteacuterio de orientaccedilatildeo para as accedilotildees humanas Nesse sentido atraveacutes da ontologia a filosofia teria como objetivo estudar esses primeiros princiacutepios com o intuito de encontrar o caminho necessaacuterio para a plenitude da existecircncia humana Vide Protreacutepticoe a Metafiacutesica de Aristoacuteteles 53 θαῦmicroα 54 Σοφία

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campo de possibilidades para a sua afirmaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo do seu proacuteprio

mundo que se daacute atraveacutes da revelaccedilatildeo dos seus segredos

Em todas as cosmogonias antigas eacute notoacuterio o desejo de entender esses

fenocircmenos que se manifestam em torno de nossa existecircncia que estaacute associado natildeo

apenas ao nosso instinto de autopreservaccedilatildeo mas tambeacutem pela necessidade da

busca de uma vida plena e feliz apoacutes essa constataccedilatildeo inicial em seguida surgem

as seguintes questotildees quem somos De onde viemos Para onde vamos O que eacute

a natureza A partir dessa uacuteltima buscou-se as respostas para as primeiras O largo

campo semacircntico que se estende em torno do termo Phyacutesis no caso grego nos daacute

a dimensatildeo do tamanho do esforccedilo exposto por esses primeiros pensadores na

antiguidade para tentar responder tais questotildees Ao nos debruccedilarmos sobre a

extensa literatura antiga podemos avaliar na antiguidade as mais variadas

manifestaccedilotildees reflexivas para compreendecirc-la Mas o nosso limite racional nos

impede que tenhamos uma posiccedilatildeo definitiva em torno desse grande problema

antigo Todavia essa delimitaccedilatildeo natildeo pode ser vista como algo negativo ou ateacute

mesmo impeditivo pelo contraacuterio ela nos impotildee a tarefa de ampliar e de manter a

discussatildeo viva Logo pretendemos acompanhar na medida do possiacutevel a evoluccedilatildeo

de certas noccedilotildees expostas por esses pensadores atraveacutes dessa fragmentaacuteria literatura

que nos fornece muitas pistas para a nossa presente investigaccedilatildeo O primeiro ponto

que podemos encontrar um certo consenso entre os filoacutesofos antigos eacute que a

indagaccedilatildeo humana comeccedila a estabelecer os seus primeiros passos a partir da relaccedilatildeo

dialoacutegica entre as forccedilas55 que escapam do seu domiacutenio e que se estende

incialmente entre dois niacuteveis do mundo e do homem56 No decorrer histoacuterico essas

reflexotildees desempenharatildeo grandes mudanccedilas dentro e fora57 da cultura grega

55 Nesse presente texto vamos utilizar dois termos que no contexto histoacuterico grego satildeo correlatos a saber (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) Posteriormente vamos apresentar alguns pontos sobre a utilizaccedilotildees desses termos desde do periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico nos estudos sobre a Phyacutesis e o homem 56 Nos referimos ao questionamento dos primeiros poetas e filoacutesofos sobre a phyacutesis (natureza) ateacute a chegada do movimento sofiacutestico e de Soacutecrates que tinha como escopo dos seus estudos o homem no periacuteodo claacutessico De qualquer modo eacute importante ressaltarmos que haacute uma grande divergecircncia entres os helenistas em torno dessa esquematizaccedilatildeo Para o pesquisador canadense Gerard Naddaf por exemplo as obras dos primeiros pensadores natildeo faziam essa distinccedilatildeo entre essas duas esferas Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro NADDAF Gerard The greek concept of nature Albany State University of New York Press 2005 57 Podemos citar dois exemplos para esse caso a influecircncia da cultura grega sobre os romanos e a retomada da tradiccedilatildeo claacutessica durante o periacuteodo do Renascimento por volta do seacuteculo XIV

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Essa transformaccedilatildeo ocorre atraveacutes dessa capacidade que eacute inerente a todos os

animais mas que no homem ganha destaque por ser considerada como a proacutepria

imagem ou emanaccedilatildeo da Natureza58 Esse atributo permite-nos exercer esse poder

de realizaccedilatildeo necessaacuterio para manutenccedilatildeo de nossa existecircncia Logo torna-se

essencial o estudo de todos os fenocircmenos que nos fornecem essa daacutediva divina59

Compreendecirc-la eacute o papel principal desempenhado pelos primeiros pensadores Essa

forccedila se manifesta de modo tatildeo sublime que se confunde com a forma de expressatildeo

do nosso proacuteprio pensamento60 Em Heraacuteclito por exemplo essa questatildeo define o

sentido de Natureza e linguagem apresentado pelo filoacutesofo efeacutesio A Phyacutesis estaacute

para o Loacutegos 61 assim como a noite estaacute para o dia62

ldquoDesse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees63 tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindordquo64

Para os gregos entre o periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico esse termo eacute carregado

de diversos sentidos Mas de uma forma geral podemos resumi-los entre quatro

pontos fundamentais Entre eles estatildeo os seguintes atributos que podemos encontrar

em vaacuterias obras e fragmentos dentro desse contexto histoacuterico substacircncia

58 Φύσις posteriormente vamos nos debruccedilar sobre a intima relaccedilatildeo entre a phyacutesis e a sua expressatildeo (Μύθος Έπος και λόγοςMythos epos e logos) 59 Ou seja que natildeo proveacutem do mundo humano 60 Inicialmente atraveacutes da poesia (ποίησις) e depois do loacutegos (λόγος) que eacute um desdobramento histoacuterico desse importante termo Eacute importante ressaltarmos que esse uacuteltimo abarca natildeo apenas o ato de expressatildeo e a revelaccedilatildeo da Natureza mas tambeacutem o ato de julgar e de agir Se faz necessaacuterio destacar essa diferenccedila sobretudo por causa da confusatildeo semacircntica que ocorre entre os tradutores que ignoram a plasticidade do termo quando retirado do seu contexto especiacutefico 61Φύσις και Λόγος Posteriormente vamos apresentar uma anaacutelise sobre a relaccedilatildeo iacutentima que haacute entre esses dois termos no pensamento antigo 62 Heraacuteclito Fragmento 50 (DK) ldquoοὐκ ἐmicroοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁmicroολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναίrdquo (Ouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo um) Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 63 Importante destacar a relaccedilatildeo entre ldquopalavrasrdquo e ldquoaccedilotildeesrdquo (ἐπέων καὶ ἔργων) exposta pelo pensador efeacutesio Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 64Heraacuteclito Fragmento I ldquoτοῦ δὲ λόγου τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον γινοmicroένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι πειρώmicroενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦmicroαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονταιrdquo Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012

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primordial origem processo e resultado (NADDAF 1992) Eacute importante ressaltar

que todas essas caracteriacutesticas estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de proximidade

semacircntica A primeira apariccedilatildeo na literatura grega desse termo surge de modo

emblemaacutetico no livro X da Odisseacuteia de Homero65 Para fazermos uma anaacutelise

pormenorizada dessa passagem eacute necessaacuterio nos atermos a construccedilatildeo alegoacuterica

promovida pelo poeta em torno das personagens de Odisseu Circe e o deus Hermes

Aleacutem da apariccedilatildeo originaacuteria do uso da palavra phyacutesis podemos extrair dessa

passagem uma das primeiras elaboraccedilotildees da relaccedilatildeo entre a Phyacutesis (Natureza) e

Loacutegos (Linguagem) 66 na histoacuteria do pensamento antigo No proacuteximo paraacutegrafo

vamos apresentar todo o contexto do qual a passagem foi retirada e comentaacute-la em

seguida

Apoacutes suportar diversas peripeacutecias67 com o intuito de retornar agrave sua cidade natal

Iacutetaca o grande heroacutei ardiloso desembarca em Eeia ilha da deusa Circe68 ao lado

dos seus marinheiros Esses homens que estavam completamente famintos

adentram o territoacuterio desconhecido da senhora das drogas e dos venenos69 mas satildeo

surpreendidos por ela em seu esplendoroso palaacutecio

[HOMERO Odisseia] ldquoComo o ordenaste oacute glorioso Odisseu fomos pela floresta onde num vale encontramos um belo palaacutecio construiacutedo todo com pedras polidas num siacutetio ao redor abrigado Dentro se achava no tear meneando-se algueacutem que cantava ou fosse deusa ou mulher eles logo em voz alta a chamaram Sem se fazer esperar veio a deusa e o portatildeo lhes franqueia belo e brilhante os estultos entatildeo para dentro a seguiram com exceccedilatildeo soacute de mim por ter tido suspeita de dolo Todos os outros sumiram sem que um soacute deles voltasse Por muito tempo deixei-me ficar de atalaia ali mesmordquo Isso disse ele passei logo a espada de cravos de prata grande

65 Em Homero Odisseacuteia (Livro X vv 230-340) 66 Vide nota 48 67 Περιπέτεια (peripeteacuteia) Esse eacute um importante conceito que foi estudado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 68 Na mitologia Circe era uma poderosa feiticeira que dominava o poder das drogas e venenos Ela era filha do deus sol Heacutelios e da ninfa Perseis que por sua vez era filha de Oceano e de Teacutetis Em outros registros ela aparece como filha da deusa da necromancia e feiticcedilaria conhecida como Heacutecate Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana Trad V Jabouille Lisboa DIFEL 2ordf ed 1993 69 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Esse eacute outro importante termo que demonstra o poder de plasticidade e riqueza poeacutetica que os gregos cultivavam em relaccedilatildeo agrave cunhagem das palavras A determinaccedilatildeo de sentido desse termo necessita -como em outros termos como logos e phyacutesis que apresentamos anteriormente- fundamentalmente do contexto semacircntico pelo qual ele foi aplicado A ambiguidade que oscila entre veneno ou remeacutedio vai depender da posologia ou seja da medida (microέτρονmeacutetron) que seraacute fornecida atraveacutes da razatildeo Posteriormente veremos como esse tipo de artifiacutecio foi essencial para o desenvolvimento e primazia da arte do bem falar na antiguidade Da poesia ateacute o surgimento da retoacuterica esse tipo de recurso foi amplamente utilizado para ornamentar e impressionar os ouvintes atraveacutes da criaccedilatildeo de diversas figuras de linguagem que tinham por intuito comover ou convencer a sua audiecircncia

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e de bronze por volta dos ombros e de arco muni-me Tendo isso feito ordenei-lhe que mostrasse o caminho seguido Mas os joelhos com ambas as matildeos abraccedilou-me implorante e entre gemidos sentidos me diz as palavras aladas ldquoContra vontade disciacutepulo de Zeus arrastar-me natildeo queiras Tenho certeza que nunca hei de ver-te outra vez e que os soacutecios natildeo mais contigo hatildeo de vir Eacute mais certo fugirmos com estes sem mais demora talvez escapar consigamos da Morterdquo Isso disse ele em resposta lhe digo as seguintes palavras ldquoFica-te Euriacuteloco neste lugar em que te achas sozinho junto da ceacutelere nau de cor negra comendo e bebendo mas quanto a mim seguirei porque forccedila incontida me obriga Tendo isso dito da nave afastei-me e da praia marinha Mas quando estava no vale sagrado e do grande palaacutecio me aproximava de Circe que todas as plantas conhece Hermes me veio encontrar o imortal que o bastatildeo de ouro leva mdash antes de agrave casa chegar mdash na figura de um moccedilo radiante a quem o buccedilo comeccedila a apontar na sazatildeo mais graciosa Da matildeo me toma e falando me disse as seguintes palavras ldquoPor onde vais infeliz atraveacutes desses montes sozinho do siacutetio ignaro Na casa de Circe se encontram teus soacutecios sob a figura de porcos trancados em boas pocilgas Vais ateacute laacute com tenccedilatildeo de trazecirc-los Natildeo creio entretanto que de laacute voltes mas haacutes de ficar onde os outros se encontram Quero poreacutem proteger-te e livrar-te do mal iminente Toma esta droga de muita eficaacutecia e o palaacutecio de Circe entra porque haacute de livrar-te a cabeccedila do dia funesto Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe haacute de bebida oferecer-te e veneno te pocircr na comida Mas impossiacutevel ser-lhe-aacute enfeiticcedilar-te que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo Atende ao que segue logo que Circe com sua varinha tocar-te no corpo saca depressa da espada cortante que ao lado te pende e contra a deusa arremete mostrando intenccedilatildeo de mataacute-la Ela com medo haacute de entatildeo implorar-te que ao leito a acompanhes De forma alguma te negues subir para o leito da deusa para que os soacutecios te queiram livrar e tratar-te benigna O juramento dos deuses poreacutem exigir deves dela de que nenhuma outra insiacutedia de fato planeja em teu dano natildeo aconteccedila fazer-te vileza ao te ver desarmadordquo Tendo isso dito arrancou o correio de luacutecido aspecto da terra a planta e me deu explicando-me suas virtudes Tinha a raiz de cor negra mas branca era a flor como leite Moacuteli chamavam-lhe os deuses difiacutecil aos homens seria de vida curta arrancaacute-la mas tudo os eternos conseguem Hermes depois de isso feito partiu para o Olimpo elevado pela ilha de aacutervores cheia eu me fui para a casa de Circe O coraccedilatildeo nesse instante batia-me forte no peito Diante da porta da deusa de tranccedilas bem-feitas detive-me de onde depois em voz alta chamei tendo a deusa me ouvidordquo70

70 Em Homero Odisseacuteia (livro X vv 250 ndash 310) ldquoἤιοmicroεν ὡς ἐκέλευες ἀνὰ δρυmicroά φαίδιmicro᾽ Ὀδυσσεῦ εὕροmicroεν ἐν βήσσῃσι τετυγmicroένα δώmicroατα καλὰ ξεστοῖσιν λάεσσι περισκέπτῳ ἐνὶ χώρῳ ἔνθα δέ τις microέγαν ἱστὸν ἐποιχοmicroένη λίγ᾽ ἄειδεν (255) ἢ θεὸς ἠὲ γυνή τοὶ δὲ φθέγγοντο καλεῦντεςἡ δ᾽ αἶψ᾽ ἐξελθοῦσα θύρας ὤιξε φαεινὰς καὶ κάλει οἱ δ᾽ ἅmicroα πάντες ἀιδρείῃσιν ἕποντοαὐτὰρ ἐγὼν ὑπέmicroεινα ὀισάmicroενος δόλον εἶναι οἱ δ᾽ ἅmicro᾽ ἀιστώθησαν ἀολλέες οὐδέ τις αὐτῶν 260 ἐξεφάνη δηρὸν δὲ καθήmicroενος ἐσκοπίαζον ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγὼ περὶ microὲν ξίφος ἀργυρόηλον ὤmicroοιιν βαλόmicroην microέγα χάλκεον ἀmicroφὶ δὲ τόξατὸν δ᾽ ἂψ ἠνώγεα αὐτὴν ὁδὸν ἡγήσασθαι αὐτὰρ ὅ γ᾽ ἀmicroφοτέρῃσι λαβὼν ἐλλίσσετο γούνων (265) καί micro᾽ ὀλοφυρόmicroενος ἔπεα πτερόεντα προσηύδα lsquomicroή micro᾽ ἄγε κεῖσ᾽ ἀέκοντα διοτρεφές ἀλλὰ λίπ᾽ αὐτοῦ οἶδα γάρ ὡς οὔτ᾽ αὐτὸς ἐλεύσεαι οὔτε τιν᾽ ἄλλον ἄξεις σῶν ἑτάρων ἀλλὰ ξὺν τοίσδεσι θᾶσσον φεύγωmicroεν ἔτι γάρ κεν ἀλύξαιmicroεν κακὸν ἦmicroαρrsquo(270) ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγώ microιν ἀmicroειβόmicroενος προσέειπον Εὐρύλοχ᾽ ἦ τοι microὲν σὺ microέν᾽ αὐτοῦ τῷδ᾽ ἐνὶ χώρῳ ἔσθων καὶ πίνων κοίλῃ παρὰ νηὶ microελαίνῃαὐτὰρ ἐγὼν εἶmicroι κρατερὴ δέ microοι ἔπλετ᾽ ἀνάγκηrsquoὣς εἰπὼν παρὰ νηὸς ἀνήιον ἠδὲ θαλάσσης (275) ἀλλ᾽ ὅτε δὴ ἄρ᾽ ἔmicroελλον ἰὼν ἱερὰς ἀνὰ βήσσας Κίρκης ἵξεσθαι πολυφαρmicroάκου ἐς microέγα δῶmicroα ἔνθα microοι Ἑρmicroείας χρυσόρραπις ἀντεβόλησεν ἐρχοmicroένῳ πρὸς δῶmicroα νεηνίῃ ἀνδρὶ ἐοικώς πρῶτον ὑπηνήτῃ τοῦ περ χαριεστάτη ἥβη (280) ἔν τ᾽ ἄρα microοι φῦ χειρί ἔπος τ᾽ ἔφατ᾽ ἔκ τ᾽ ὀνόmicroαζε lsquoπῇ δὴ αὖτ᾽ ὦ δύστηνε δι᾽ ἄκριας ἔρχεαι οἶος χώρου ἄιδρις ἐών ἕταροι δέ τοι οἵδ᾽ ἐνὶ Κίρκης ἔρχαται ὥς τε σύες πυκινοὺς κευθmicroῶνας ἔχοντεςἦ τοὺς λυσόmicroενος δεῦρ᾽ ἔρχεαι οὐδέ σέ φηmicroι (285) αὐτὸν νοστήσειν microενέεις δὲ σύ γ᾽ ἔνθα περ ἄλλοι ἀλλ᾽ ἄγε δή σε κακῶν ἐκλύσοmicroαι ἠδὲ σαώσω τῆ τόδε φάρmicroακον ἐσθλὸν ἔχων ἐς δώmicroατα Κίρκης ἔρχευ ὅ κέν τοι κρατὸς ἀλάλκῃσιν κακὸν ἦmicroαρ πάντα

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Apoacutes o desfecho traacutegico que culminou na transformaccedilatildeo dos marinheiros em

porcos Odisseu resolve salvaacute-los com a ajuda divina de Hermes A primeira

apariccedilatildeo do uso do termo phyacutesis aparece exatamente quando o heroacutei de Iacutetaca eacute

interpelado como de praxe por uma divindade com o intuito de auxiliaacute-lo na

missatildeo de resgatar e desfazer o feiticcedilo que foi lanccedilado contra a sua tripulaccedilatildeo Na

passagem do verso 30371 podemos encontrar in loco um dos primeiros momentos

que a palavra eacute aplicada (NADDAF 1992) na literatura homeacuterica Inicialmente o

seu sentido estaacute associado diretamente aos seguintes termos morpheacute eidos e phye 72 Etimologicamente o termo phyacutesis parece ser oriundo do verbo phye (crescer)

que era empregado no geral para expressar o desenvolvimento da forma humana73

e natildeo para designar o aspecto natural de qualquer outro ente por exemplo Para esses

δέ τοι ἐρέω ὀλοφώια δήνεα Κίρκης (290) τεύξει τοι κυκεῶ βαλέει δ᾽ ἐν φάρmicroακα σίτῳ ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς θέλξαι σε δυνήσεται οὐ γὰρ ἐάσει φάρmicroακον ἐσθλόν ὅ τοι δώσω ἐρέω δὲ ἕκαστα ὁππότε κεν Κίρκη σ᾽ ἐλάσῃ περιmicroήκεϊ ῥάβδῳ δὴ τότε σὺ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάmicroενος παρὰ microηροῦ (295) Κίρκῃ ἐπαῖξαι ὥς τε κτάmicroεναι microενεαίνωνἡ δέ σ᾽ ὑποδείσασα κελήσεται εὐνηθῆναι ἔνθα σὺ microηκέτ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπανήνασθαι θεοῦ εὐνήν ὄφρα κέ τοι λύσῃ θ᾽ ἑτάρους αὐτόν τε κοmicroίσσῃ ἀλλὰ κέλεσθαί microιν microακάρων microέγαν ὅρκον ὀmicroόσσαι (300) microή τί τοι αὐτῷ πῆmicroα κακὸν βουλευσέmicroεν ἄλλο microή σ᾽ ἀπογυmicroνωθέντα κακὸν καὶ ἀνήνορα θήῃ ὣς ἄρα φωνήσας πόρε φάρmicroακον ἀργεϊφόντης ἐκ γαίης ἐρύσας καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξε ῥίζῃ microὲν microέλαν ἔσκε γάλακτι δὲ εἴκελον ἄνθος305 microῶλυ δέ microιν καλέουσι θεοί χαλεπὸν δέ τ᾽ ὀρύσσειν ἀνδράσι γε θνητοῖσι θεοὶ δέ τε πάντα δύνανται Ἑρmicroείας microὲν ἔπειτ᾽ ἀπέβη πρὸς microακρὸν Ὄλυmicroπον νῆσον ἀν᾽ ὑλήεσσαν ἐγὼ δ᾽ ἐς δώmicroατα Κίρκης ἤια πολλὰ δέ microοι κραδίη πόρφυρε κιόντιrdquo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 71 καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξεkai moi physin autou eacutedeixe (ldquoE a mim trouxe a luz a sua formardquo) Na traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes acima para natildeo perder a fluecircncia e coerecircncia poeacutetica do texto ele optou traduzir forma por virtude de qualquer modo a sua traduccedilatildeo natildeo estaacute tatildeo distante do original pois como veremos a seguir o termo phyacutesis expressa a noccedilatildeo de qualidade ou caracteriacutestica 72 Μορφή εἶδος και φυή Os trecircs termos carregam o sentido de forma ou figura que apresentam as suas caracteriacutesticas exteriores No caso do verbo φυή (phye) encontramos tambeacutem o sentido de crescimento e estatura Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo Dor φυά ἡ ( φύω ) growth stature esp fine growth noble stature in Hom always (as in Hes) of the human form and only in acc θηήσαντο φυὴν καὶ εἶδος ἀγητόν Il 22370 φυὴν ἐδάην καὶ microήδεα 3208 most freq in adv sense Νέστορι δίῳ εἶδός τε microέγεθός τε φυήν τ ἄγχιστα ἐῴκει in shape and in stature and in size (or growth) 258 cf Od 6152 οὔ ἑθέν ἐστι χερείων οὐ δέmicroας οὐδὲ φυήν οὔτ ἂρ φρένας Il 1115 cf Od 5212 7210 φυήν γε microὲν οὐ κακός ἐστι 8134 χρυσέῳ [γένει] οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόηmicroα Hes Op 129 cf Sc 88 B 5168 later in gen οὔτε φυῆς ἐπιδευέες οὔτε νόοιο Theoc 22160 rare in Trag τὴν τάλαιναν εὔmicroορφον φ A Niob in PSI 1112088 φυὰν Γοργόνος ἴσχειν E El 461 (lyr) 2 after Hom of animals plants or objects ἐmicroβάλλων ἐριπλεύρῳ φυᾷ κέντρον Pi P 4235 κάνθαρος Αἰτναῖος φυήν S Ichn 300 also τερπόmicroεναι ῥοδέῃ φ of roses Mosch 236 of beans Luc VitAuct 6 of things ἀνέβη ἡ φ τοῖς τείχεσιν their original form was restored LXX Ne 47(1) ἐὰν κατὰ φυὰν διαφθαρῇ τις τῶν λίθων IG 7307340 (Lebad ii B C) II poet for φύσις nature genius σοφὸς ὁ πολλὰ εἰδὼς φυᾷ Pi O 286 microάρνασθαι φυᾷ Id N 125 cf I 7(6)22 φυᾷ τὸ γενναῖον ἐπιπρέπει Id P 844 τὸ δὲ φυᾷ κράτιστον ἅπαν Id O 9100 δεινὸς φυήν Cratin 221 III the flower or prime of age εὐάνθεmicroος φυά Pi O 167 IV substance ἀναίmicroων ἐστὶ φυὴ microελέων Opp H 1639 νεφροὶ τὴν φ ἀδενώδεες Aret SD 23 V microερόπων φυή the race of men APl 41837 VI produce of a year harvest φ τοῦ ἐνεστῶτος ἔτους BGU 7084 (ii A D) cf Pland 2612 (i A D) etcmdashPoet and later prose 73 Ibidem

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casos o termo eidos e morpheacute eram mais utilizados Aleacutem disso tambeacutem

encontramos outra palavra que foi importante posteriormente para fenomenologia

no seacuteculo XIX74 que eacute o verbo phaino75(mostrarrevelar) que estaacute no radical de

phainesthai 76 A partir dessas evidecircncias expostas podemos afirmar que o sentido

primaacuterio de phyacutesis estava totalmente atrelado aos seguintes termos crescimento

aparecimento desenvolvimento forma ou estrutura de alguma coisa 77 No

exemplo exposto pelo poeta a sentenccedila deixa claro que a forma78 da planta foi lhe

revelada79 apenas quando o deus Hermes interveacutem para lhe transmitir o

conhecimento necessaacuterio para que o nosso astuto heroacutei pudesse desfazer o feiticcedilo

lanccedilado por Circe e com isso realizar o objetivo de libertar seus amigos80

Um dos pontos que gostariacuteamos de destacar aqui eacute a correlaccedilatildeo que haacute entre

o ato de transmissatildeo e conhecimento dentro desse contexto que toma a proacutepria

phyacutesis como forma e paradigma81 desse viacutenculo fundamental que determina a

existecircncia de todas as coisas Mesmo de modo alegoacuterico e sub-reptiacutecio o poeta

apresenta os pontos substanciais para a discussatildeo nesses versos que seratildeo

norteadores para todos os pensadores que surgiratildeo posteriormente Essa trama que

ocorre no capiacutetulo X expotildee de modo exemplar a nossa condiccedilatildeo82 miseraacutevel de total

ignoracircncia que assinala a naturezaforma(phyacutesis) humana e seu distanciamento do

mundo divino mas tambeacutem abre o horizonte para a formulaccedilatildeo de uma educaccedilatildeo83

que possa orientar e resguardar a comunidade atraveacutes desse contato cauteloso com

74 Corrente filosoacutefica que foi desenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938) - filoacutesofo matemaacutetico e loacutegico austriacuteaco 75 Φαίνω Aparecer 76 Φαινεσθαιphainesthai 77 Essa evidecircncia nos leva a especular a possibilidade da famosa hipoacutetese conhecida na antiguidade como a teoria das formas ter surgido a partir desse conceito de natureza que foi proposto no periacuteodo homeacuterico 78 Φύσιςphyacutesis 79 Esse eacute o sentido do verbo ἔδειξεeacutedeixe que vem de δείκνυmicroιdeiknumi (trazer agrave luz mostrar fazer conhecido) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott Dentro da construccedilatildeo poeacutetica homeacuterica podemos reconhecer a relaccedilatildeo entre esse termo e o da phyacutesis Para nossa hipoacutetese esse ponto eacute de extrema importacircncia como veremos posteriormente 80 Posteriormente faremos uma anaacutelise sobre esse ponto para ressaltar os desdobramentos dessa histoacuteria no pensamento antigo 81 Παράδειγmicroα padratildeo modelo ou base Eacute importante frisar que no pensamento platocircnico esses dois termos satildeo correlatos Aliaacutes no livro X da Leis o filoacutesofo continua ainda utilizando esse mesmo esquema exegeacutetico que encontramos em Homero para apresentar as suas reflexotildees A partir desse fato podemos afirmar que esse eacute mais um indiacutecio que fornece elementos para a validaccedilatildeo de nossa hipoacutetese 82 Esse eacute outro termo correlato para a Φύσιςphyacutesis 83 ΠαιδείαPaideacuteia Posteriormente vamos apresentar algumas caracteriacutesticas sobre a educaccedilatildeo grega

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os deuses pois a uacutenica forma de um mortal como no caso de Odisseu obter sucesso

contra as forccedilas que natildeo pertencem ao mundo humano - que no contexto homeacuterico

eacute sempre retratado com adjetivos que ressaltam a fragilidade e a brevidade de nossa

condiccedilatildeo ndash eacute estabelecer um diaacutelogo84 com alguma divindade 85 Nesse sentido a

poesia homeacuterica afirma que essa relaccedilatildeo com o mundo divino eacute o uacutenico caminho

que pode fornecer ao homem o conhecimento necessaacuterio para manter a sua

sobrevivecircncia em um mundo que eacute controlado por essas forccedilas antagocircnicas Dentro

dessa construccedilatildeo alegoacuterica86 eacute necessaacuterio recorrer ao extenso banco mnemocircnico de

histoacuterias que foram transmitidas e mantidas desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo oral que

possibilitou o surgimento e ecircxito da poesia homeacuterica (VIDAL-NAQUET 2002) no

mundo grego Para adesatildeo coletiva dessas noccedilotildees como veremos no proacuteximo

capiacutetulo eacute necessaacuterio que os gregos compartilhem esses valores que eram

repassados pelos antigos aedos87 de modo unificado atraveacutes de sua liacutengua Um

exemplo desse fato pode ser adquirido na observaccedilatildeo do papel de destaque que

poeta fornece ao deus Hermes dentro do drama sofrido por Odisseu Eacute provaacutevel

como ressalta o socioacutelogo e filoacutelogo francecircs Louis Gernet (GERNET 1968) que

esse coacutedigo de conduta que eram repassados em versos na antiguidade por

intermeacutedio dos mitos fossem utilizados para a construccedilatildeo de arqueacutetipos que eram

uacuteteis natildeo apenas para afirmaccedilatildeo dos valores defendidos pela aristocracia mas para

coesatildeo estrutural da trama narrada pelo poeta pois a total eficaacutecia do primeiro

objetivo vive em funccedilatildeo do desempenho harmocircnico obtido pelo aedo perante o

puacuteblico O reconhecimento dessas figuras facilita a adesatildeo por parte da audiecircncia e

84 ∆ιάλογοςdiaacute-logos Conversaccedilatildeo interaccedilatildeo e relaccedilatildeo e entre duas ou mais pessoas Posteriormente vamos apresentar a importacircncia desse ato natildeo apenas para o desenvolvimento cultural grego mas tambeacutem sob o ponto de vista ontoloacutegico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico Nesse sentido estamos partindo da hipoacutetese de que os fundamentos principais para cada um desses pontos jaacute estatildeo apresentados de modo alegoacuterico nos poemas homeacutericos 85 ἈθάνατοιAthanatoi Os imortais Na mitologia esse fato estaacute presente na maioria dos mitos que chegaram ateacute noacutes Outro exemplo que podemos trazer podem ser obtidas na obra da Iliacuteada Na guerra de Troacuteia ambas os lados aqueus e troinanos receberam apoio divino 86 ὑπόνοιαhyponoacuteia ἡ (ὑπονοέω) suspeita conjectura suposiccedilatildeo Ar Pax 993 (pl anap) τοῦ microὴ συνειληφέναι Sor 254 cf Gal 6663 ὑπόνοιαι τῶν microελλόντων noccedilotildees formadas de eventos futuros Th 587 ἡ ὑ τῶν ἔργων Id 241 cf E Ph 1133 em sentido negativo ὑπόνοιαι πλασταί D 4839 cf Men Mon 732 2 suggestion Phld Mus p71 K imputaccedilatildeo Id D 113 II o verdadeiro significado que estaacute no fundo de uma coisa um sentido mais profundo τὰς ὑ οὐκ ἐπίστανται X Smp 36 esp significado secreto (como eacute transmitido por mitos e alegorias) ὁ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε ὑ καὶ ὃ microή Pl R 378d cf Plu 219e opp αἰσχρολογία Arist EN 1128a24 καθ ὑπόνοιαν por insinuaccedilatildeo secretamente Plb 2845 DH Rh 91 δι ὑπονοιῶν Alciphr 24 87 ἀοιδός aoidos cantor Esse termo eacute oriundo do verbo (ᾄδω aidocirc) cantar

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reforccedila de modo sutil a funccedilatildeo coercitiva que a poesia realiza junto com a religiatildeo

para a manutenccedilatildeo e organizaccedilatildeo juriacutedica no periacuteodo arcaico (GERNET 1968)

Para termos uma noccedilatildeo mais precisa desse fato basta observar o uso intenso

dos epiacutetetos e foacutermulas nas duas obras homeacutericas Segundo Milman Parry que foi

um importante helenista americano que se destacou pelo estudo da tradiccedilatildeo oral

homeacuterica o uso demasiado dos epiacutetetos e foacutermulas tinha uma funccedilatildeo bem

determinada para os antigos aedos permite uma espeacutecie de pausa no fluxo contiacutenuo

da narrativa que lhe fornecia um breve descanso durante as longas apresentaccedilotildees

desses poemas e a possibilidade de estender ou encurtar a sua recitaccedilatildeo (PARRY

1971) conforme a sua vontade Eacute uma espeacutecie de dispositivo extremamente

sofisticado para a cultura oral que oferece ao cantor um domiacutenio maior sobre o

conteuacutedo para o total ecircxito de sua performance em puacuteblico Essa caracteriacutestica

fornecia ao aedo uma possibilidade de assinar a sua singularidade em relaccedilatildeo aos

outros que compartilhavam com ele o mesmo ofiacutecio E isso era algo primordial

dentro de uma cultura tatildeo competitiva como a grega A perfeiccedilatildeo era algo almejado

como maacuteximo valor entre os helenos

Mas haacute ainda uma caracteriacutestica que natildeo foi ressaltada pelo ilustre helenista

E ela reside na funccedilatildeo mnemocircnica e de fixaccedilatildeo do conteuacutedo expresso nas foacutermulas

e epiacutetetos Esse recurso atua como uma espeacutecie de ritornelo88 na muacutesica popular

que desempenha o papel de reforccedilar a mensagem exposta pela canccedilatildeo No caso da

poesia homeacuterica quando nos deparamos com a repeticcedilatildeo de certas foacutermulas e

epiacutetetos nos salta aos olhos - mas sobretudo aos ouvidos89 - o poder de cravar na

memoacuteria coletiva natildeo apenas as qualidades dos heroacuteis mas dos deuses oliacutempicos

Essa estrateacutegia na muacutesica tambeacutem ocorre com o leitmotiv90 que associa a

88 Na muacutesica em geral atua como refratildeo estribilho coro ou ritornelo Esse recurso tem o poder de sintetizar a mensagem geral de uma canccedilatildeo reafirmando o seu principal sentido norteador Ou seja o leitmotiv da canccedilatildeo Essa caracteriacutestica nos fornece alguns elementos para entender o recursoutilizado por esses antigos poetas gregos 89 Esse detalhe natildeo pode ser esquecido por noacutes aacutevidos leitores modernos No mundo antigo a transmissatildeo de conhecimento era dada atraveacutes da oralidade Logo para defender essa hipoacutetese precisamos nos colocar na posiccedilatildeo de ouvinte Nesse sentido a canccedilatildeo popular sobretudo o estilo dos cordelistas em vaacuterias culturas ainda guardam algumas caracteriacutesticas dessa antiga tradiccedilatildeo oral 90 Esse termo vem da liacutengua alematilde e significa ldquomotivo condutorrdquo

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personagem ou algum tema especiacutefico a uma determinada imagem sonora

composta para o intuito de associaccedilatildeo automaacutetica91

Quando analisamos cada uma das divindades que formam o mundo oliacutempico

encontramos natildeo apenas os sentimentos humanos antropomorfizados em figura

divinas mas de qualidades que atuam de modo simboacutelico na construccedilatildeo poeacutetica

sobre a ordem humana92 O exemplo que gostariacuteamos de destacar no proacuteximo

paraacutegrafo para enfatizar e fornecer elementos comprobatoacuterios para a nossa

hipoacutetese eacute a atuaccedilatildeo de Hermes na Odisseia Teremos a oportunidade de analisar

nesse incidente que ocorre no capiacutetulo X a riqueza poeacutetica agrave serviccedilo da educaccedilatildeo

aristocraacutetica helecircnica que foi importante para os estudos dos primeiros filoacutesofos

gregos que surgiram posteriormente

Na mitologia essa divindade carregava inuacutemeros atributos e entre eles estatildeo o

domiacutenio da magia fertilidade dos rebanhos e da adivinhaccedilatildeo Contudo o seu

epiacuteteto mais famoso na antiguidade eacute o de mensageiro dos deuses Ele eacute o

responsaacutevel de estabelecer o diaacutelogo entre o mundo divino e humano Ou seja o

papel da comunicaccedilatildeo e do conhecimento eacute fornecido aos homens a partir da sua

atuaccedilatildeo que ocorre exatamente quando ele estabelece contato com Odisseu Como

vimos anteriormente no fragmento I de Heraacuteclito o Loacutegos93atua na dimensatildeo

humana e divina e estaacute totalmente em consonacircncia com a Phyacutesis Esse dado fornece

a primeira evidecircncia do desenvolvimento da linguagem94 que pode ser fornecido

pelo verbo phyacutee95 que forma o seu radical A frase emblemaacutetica do livro X na qual

Odisseu expressa que Hermes lhe repassou o segredo da planta soacute eacute confirmada a

partir da expressatildeo ldquoe a mim trouxe a luz a sua formardquo96 E eacute exatamente nesse

91 O ponto que gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo na relaccedilatildeo entre o ritornelo e o leitmotiv eacute a repeticcedilatildeo que guarda o mesmo efeito de fixaccedilatildeo e reforccedilo que satildeo fornecidos pelos epiacutetetos e foacutermulas homeacutericas Um estudo interessante seria investigar qual eacute a relaccedilatildeo desse antigo recurso mnemocircnico na influecircncia na composiccedilatildeo da muacutesica moderna 92 O teatro antigo tambeacutem parte desse mesmo pressuposto que foi utilizado pelos primeiros poetas no periacuteodo arcaico 93 Dentro desse contexto especiacutefico vamos atribuir o sentido de linguagem Eacute importante ressaltar como nos lembra o grande professor Danilo Marcondes que entre os gregos antigos esse era um dos problemas mais importantes Todavia haacute uma grande divergecircncia no uso desse termo entre os especialistas sobre o tema Logo esse presente trabalho visa destacar alguns desses pontos sobre o assunto a partir da literatura antiga Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 94 Vide a nota anterior Dito de outro modo sobre o surgimento da questatildeo entre o ser pensar e dizer entre os gregos 95 Φυή Phuacutee formaestatura 96 Traduccedilatildeo literal nossa

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ponto que gostariacuteamos de focar a nossa total atenccedilatildeo O jogo poeacutetico e semacircntico

natildeo eacute de modo algum fortuito pois Hermes eacute aquele deus que faz revelar - por fora

e por dentro - as caracteriacutesticas gerais da planta (exterior) e o efeito do

venenodroga97 que estaacute escondido no seu acircmago (interior) A luz que se associa ao

conhecimento equivale ao poder de trazer a forma a sua presenccedila que estaacute oculta

aos nossos precaacuterios sentidos Entre essas duas esferas instaura-se uma tecircnue linha

vertical que impotildee uma ordem98com as suas leis99 e com a sua oacuterbita especiacutefica que

seraacute composta a partir das seguintes linhas exegeacuteticas teogocircnica cosmogocircnica e

cosmoloacutegica100 no qual seraacute delineado todo o espaccedilo de atuaccedilatildeo humano tendo

como paracircmetro os imortais

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Phyacutesis e Loacutegos

Conforme foi exposto anteriormente o uso e a definiccedilatildeo de linguagem que

podemos encontrar amplamente exposta no periacuteodo claacutessico nas obras de Platatildeo101

e Aristoacuteteles102 por exemplo jaacute estatildeo apresentados dentro dessa imagem pintada

pelo poeta nesse sentido podemos afirmar como os grandes homeridas antigos103

que a poesia de Homero expotildee os elementos mais importantes para uma definiccedilatildeo

natildeo apenas da Natureza mas tambeacutem de sua relaccedilatildeo com o Loacutegos104 ou seja o

diaacutelogo entre a Natureza e Linguagem estaacute totalmente esboccedilado dentro desse

97 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Eacute nesse instante que percebemos a grandiosidade do pensamento grego que estaacute atrelado agrave justa medida (ὀρθὸς λόγοςorthos loacutegos) que soacute pode ser alcanccedilada atraveacutes do conhecimento (ἐπιστήmicroηepistheme) Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o livro II da ldquoEacutetica a Nicomacirccordquo de Aristoacuteteles (EthNic II 1103 ndash 35) No capiacutetulo III voltaremos a dissertar sobre o desdobramento dessa importante questatildeo no acircmbito poliacutetico grego 98 Κόσmicroος 99 Νόmicroοιnomoi 100 Θεογονία κοσmicroογονία και κόσmicroολογία 101 Vide o diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo No proacuteximo paraacutegrafo faremos uma anaacutelise pormenorizada de uma importante passagem desse diaacutelogo que corrobora com nossa hipoacutetese 102 Vide a Poeacutetica e Da Interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles 103 Satildeo os antigos especialistas na interpretaccedilatildeo das obras homeacutericas na antiguidade Platatildeo cita esses especialistas no diaacutelogo Craacutetilo (407 b) Para mais informaccedilotildees sobre assunto vide o seguinte livro PSEUDO-HERAacuteCLITO ldquoAs alegorias de Homerordquo 104 Eacute importante lembrarmos que esse termo soacute aparece duas vezes na obra homeacuterica (Iliacuteada canto 15393 e Odisseia canto 156) e parece que estaacute nesse contexto com o sentido de discurso Dentro do presente capiacutetulo estamos utilizando uma de suas acepccedilotildees que estaacute votado para o ato de expressatildeo Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto vide o nosso anexo

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contexto literaacuterio Mas eacute importante ressaltarmos aqui que o sentido primaacuterio que

encontramos no livro X para phyacutesis precisa levar essa relaccedilatildeo com o loacutegos de modo

bem cuidadoso pois apenas a partir de Heraacuteclito e Platatildeo eacute possiacutevel fazer uma

aproximaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que nos ajuda a fundamentar a nossa

hipoacutetese aqui exposta Atraveacutes dessa via-cruacutecis helecircnica podemos compreender

essa relaccedilatildeo que representa as duas faces da mesma moeda de ouro que foi cunhada

pelas matildeos dos antigos bardos ou seja seguindo a loacutegica vertical subtendida no

poema o loacutegos atua como desdobramento da phyacutesis do niacutevel interior ao exterior

do particular ao universal do imanente ao transcendente Os deuses que tudo criam

possuem a verdade (verum factum) das coisas porque satildeo seus criadores105 logo

somente eles tecircm o poder da linguagem divina106 que homem tem acesso apenas

quando lhe eacute revelado os meandros de algo e isso ocorre quando essa verdade for

realmente conhecidapercebidaconcebida em sua totalidade ou seja quando ela se

torna sensiacutevel para o mundo humano Eis os trecircs eixos temaacuteticos que juntos formam

a equaccedilatildeo do problema da linguagem conhecimento percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Curiosamente esses pontos aparecem na leitura que encontramos no diaacutelogo

Craacutetilo107 que na antiguidade era visto como um dos maiores seguidores de

Heraacuteclito108 Como veremos a seguir essa passagem corrobora de modo imparcial

com a hipoacutetese que defendemos ateacute agora a obra homeacuterica estaacute em total

consonacircncia com as reflexotildees dos primeiros pensadores preacute-socraacuteticos em torno

105 Essa importante hipoacutetese foi levantada pela primeira vez pelo filoacutesofo italiano Giambattista Vico em ldquoDe antiquissima Italorum sapientiardquo no qual o conhecimento de todas as coisas estaacute na matildeo de deus pois ele eacute o uacutenico criador da natureza de todas as coisas existentes como o homem eacute a sua imagem e semelhanccedila atraveacutes do loacutegos o homem poder estabelecer um diaacutelogo unicamente atraveacutes dessa via com essa instacircncia divina De certa forma essa noccedilatildeo aparece no pensamento de Descartes na terceira meditaccedilatildeo Rodolfo Mondolfo chama atenccedilatildeo para essa concepccedilatildeo ativista do conhecimento que podemos encontrar na obra de Vico ateacute Marx que parte da leitura dos antigos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum factum desde antes de Vico hasta Marxrdquo Na antiguidade essa noccedilatildeo aparece de modo mais estruturado na obra ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles (Aris EthNic Livro VI 31138-9b) quando ele estabelece o criteacuterio de verdade a partir de algo que foi realizado e efetivado Posteriormente veremos que essa noccedilatildeo natildeo exclui ou compete com o sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo apresentado pelos antigos poetas Pelo contraacuterio ela aparece como algo complementar a esse sentido primaacuterio 106 Λόγος No sentido tambeacutem do conhecimento das coisas divinas que eacute oriunda da mente ou inteligecircncia divina (θεοῦ νόησιν theou noecircsis) Essa expressatildeo aparece no diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo (407 b) quando Soacutecrates estabelece uma etimologia para o nome da deusa Atenas a partir da seguinte frase ldquoaquela que tem conhecimento das coisas divinasrdquo (ὡς τὰ θεῖα νοούσηςhoacutes taacute theia noouacuteses) 107 Vide a ldquoMetafiacutesicardquo de Aristoacuteteles (livro A 6 988 a26) e tambeacutem em Dioacutegenes Laeacutercio ldquoDa vida e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo (Livro III 4) 108 Em DK (65) Alguns aspectos da vida e obra de Craacutetilo podem ser obtidos na seguinte obra I Presocratici Prima traduzione integrale con testi originali fronte delle testimoniannze e dei frammenti nella raccolta di H Diels e W Kranz Milano 2006

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desse problema da linguagem Nesse famoso diaacutelogo de Platatildeo a personagem de

Soacutecrates apresenta uma etimologia interessante em torno desse deus que nos

fornece muitos elementos para a nossa presente investigaccedilatildeo Vejamos a seguir

[PLATAtildeO Craacutetilo] ldquoHermoacutegenes - eacute o que eu farei antes poreacutem desejo perguntar-te a respeito de Hermes por haver dito Craacutetilo que eu natildeo sou Hermoacutegenes Investiguemos portanto o verdadeiro significado do nome Hermes para ver se ele tinha razatildeo no que disse Soacutecrates - de todo o jeito Quer parece-me que o nome Hermes se relaciona com o discurso109 eacute inteacuterprete110 ou mensageiro111 tambeacutem trapaceiro feacutertil em discursos e comerciante labioso qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da palavra112 Ora como dissemos antes falar (eirein) eacute fazer uso do discurso aleacutem de haver uma expressatildeo muito empregada por Homero (emecircsato) que significa inventar Da reuniatildeo dessas duas expressotildees ndash falar e inventar ndash formou o legislador o nome do deus como se nos advertisse expressamente homens o deus que inventou o discurso deve ser chamado Eiremes Mas hoje segundo eu penso embelezamos-lhe o nome e lhe chamamos Hermes Iacuteris tambeacutem parece provir do mesmo vocaacutebulo eirein por ser ela mensageira Hermoacutegenes ndash entatildeo parece que Craacutetilo tem razatildeo de dizer que natildeo me chamo Hermoacutegenes pois sou jejuno em mateacuteria de discursos Soacutecrates ndash quanto a Pan camarada filho de Hermes eacute faacutecil compreender que eacute de natureza hiacutebrida Hermoacutegenes ndash como assim Soacutecrates ndash como sabes o discurso indica todas as coisas (pan) e circula e movimenta sem parar aleacutem de ser de natureza hiacutebrida verdadeira e falsa ao mesmo tempo113 Hermoacutegenes ndash desde logo Soacutecrates ndash logo o que nele haacute de verdadeiro eacute macio e divino e reside no alto com os deuses por outro lado o que haacute de falso mora em baixo com a multidatildeo dos homens e eacute aacutespero como o bode da trageacutedia pois em verdade o maior nuacutemero das faacutebulas e das mentiras se encontra justamente no domiacutenio da trageacutedia114rdquo

109 περὶ λόγονperi logon 110 ἑρmicroηνέαhermeneia 111 ἄγγελονaggelon 112 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 113 οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής oistha hoti o loacutegos to pan semainei kai kyklei kai poleia ei kai esti diplous alethes te kai pseudes Essa eacute sem duacutevida alguma uma das expressotildees mais importantes dessa passagem 114 Em Platatildeo Craacutetilo (407 e - 408 a-c) Ἑρmicroογένης - ἀλλὰ ποιήσω ταῦτα ἔτι γε ἓν ἐρόmicroενός σε περὶ Ἑρmicroοῦ ἐπειδή microε καὶ οὔ φησιν Κρατύλος Ἑρmicroογένη εἶναι πειρώmicroεθα οὖν τὸν lsquoἙρmicroῆνrsquo σκέψασθαι τί καὶ νοεῖ τὸ ὄνοmicroα ἵνα καὶ εἰδῶmicroεν εἰ τὶ ὅδε λέγει Σωκράτης - ἀλλὰ microὴν τοῦτό γε ἔοικε περὶ λόγον τι εἶναι ὁ lsquoἙρmicroῆςrsquo καὶ τὸ ἑρmicroηνέα εἶναι καὶ τὸ ἄγγελον καὶ τὸ [408α] κλοπικόν τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοις καὶ τὸ ἀγοραστικόν περὶ λόγου δύναmicroίν ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγmicroατεία ὅπερ οὖν καὶ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγοmicroεν τὸ lsquoεἴρεινrsquo λόγου χρεία ἐστί τὸ δέ οἷον καὶ Ὅmicroηρος πολλαχοῦ λέγει lsquoἐmicroήσατόrsquo φησιν τοῦτο δὲ microηχανήσασθαί ἐστιν ἐξ ἀmicroφοτέρων οὖν τούτων τὸν τὸ λέγειν τε καὶ τὸν λόγον microησάmicroενονmdashτὸ δὲ λέγειν δή ἐστιν εἴρεινmdashτοῦτον τὸν θεὸν ὡσπερεὶ ἐπιτάττει [408β] ἡmicroῖν ὁ νοmicroοθέτης lsquoὦ ἄνθρωποι ὃς τὸ εἴρειν ἐmicroήσατο δικαίως ἂν καλοῖτο ὑπὸ ὑmicroῶν εἰρέmicroηςrsquo νῦν δὲ ἡmicroεῖς ὡς οἰόmicroεθα καλλωπίζοντες τὸ ὄνοmicroα lsquoἙρmicroῆνrsquo καλοῦmicroεν καὶ ἥ γε Ἶρις ἀπὸ τοῦ εἴρειν ἔοικεν κεκληmicroένη ὅτι ἄγγελος ἦν Ἑρmicroογένης - νὴ τὸν ∆ία εὖ ἄρα microοι δοκεῖ Κρατύλος λέγειν τὸ ἐmicroὲ microὴ εἶναι Ἑρmicroογένη οὔκουν εὐmicroήχανός γέ εἰmicroι λόγου Σωκράτης - καὶ τό γε τὸν Πᾶνα τοῦ Ἑρmicroοῦ εἶναι ὑὸν διφυῆ ἔχει τὸ εἰκός ὦ ἑταῖρε Ἑρmicroογένης - πῶς δή Σωκράτης - οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής Ἑρmicroογένης - πάνυ γε Σωκράτης - οὐκοῦν τὸ microὲν ἀληθὲς αὐτοῦ λεῖον καὶ θεῖον καὶ ἄνω οἰκοῦν ἐν τοῖς θεοῖς τὸ δὲ ψεῦδος κάτω ἐν τοῖς πολλοῖς τῶν ἀνθρώπων καὶ τραχὺ καὶ τραγικόν ἐνταῦθα γὰρ πλεῖστοι οἱ microῦθοί τε καὶ τὰ ψεύδη ἐστίν περὶ τὸν τραγικὸν βίον (Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes)

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Essa passagem platocircnica que destacamos do diaacutelogo Craacutetilo sintetiza todos os

pontos que ressaltamos anteriormente nesse presente capiacutetulo Independentemente

do foco que muitos helenistas colocam em torno do problema da criacutetica da teoria

convencionalista e naturalista da linguagem que se refere a uma problemaacutetica

contextual da eacutepoca115 o diaacutelogo nos fornece uma gama de elementos que flutuam

em torno da questatildeo da phyacutesis e do nomos116 ou seja da natureza e da convenccedilatildeo

humana Essa era uma das questotildees cruciais do periacuteodo claacutessico que nos ajuda a

compreender a atmosfera intelectual desse periacuteodo Sendo esse eacute um dos primeiros

aspectos que eacute resultado do desdobramento da alegoria homeacuterica Eacute o que veremos

a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

Um dos traccedilos de destaque do periacuteodo claacutessico foi sem duacutevida alguma a

abertura intelectual e poliacutetica que promoveram a apariccedilatildeo de gecircnios como o escultor

Fiacutedias Tuciacutedides Anaxaacutegoras e Goacutergias O pensamento de Protaacutegoras e de

Soacutecrates117 que tambeacutem pertence a esse famoso grupo por exemplo carrega um

ponto em comum com esse conjunto de intelectuais ele revela o distanciamento da

subordinaccedilatildeo do homem ao mundo divino118 Mas essa independecircncia ocorreu em

direccedilotildees opostas De um lado alimentou o desprezo dos jovens pela tradiccedilatildeo119 que

foi importante para o surgimento de uma postura criacutetica que pocircs em xeque o proacuteprio

passado helecircnico e de outro contribuiu para enfraquecer os laccedilos de fraternidade

que era a principal base do antigo sistema poliacutetico grego A influecircncia sofiacutestica que

se mantinha atraveacutes da forccedila da palavra (loacutegos) foi determinante para cultivar o

agnosticismo120 e o individualismo entre os mais jovens As teacutecnicas retoacutericas eram

cultivadas com o intuito de fornecer um meio eficaz de conquista e poder pessoal

para os mais jovens121 No Craacutetilo eacute possiacutevel percebemos a ironia e o espanto de

115 Vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 116 Φύσις και νόmicroος 117 No proacuteximo capiacutetulo vamos abordar esse ponto 118 De certa forma Platatildeo tentou superar essa crise 119 Cito aqui o processo de Soacutecrates E um dos pontos do processo estava o crime de corrupccedilatildeo dos jovens 120 Refere-se a impossibilidade radical de se conhecer algo que escape da esfera humana Um exemplo o conhecimento dos deuses Vide o caso de Protaacutegoras muito antes de Kant foi um dos primeiros a impor limite ao conhecimento humano Em contrapartida esse gesto acarretou um desprezo pelo estudo da filosofia e tambeacutem alimentou o sentimento egoiacutesta entre os jovens como veremos posteriormente de modo mais detalhado 121 Vide a comeacutedia ldquoAs nuvensrdquo de Aristoacutefanes Posteriormente veremos que o projeto pedagoacutegico oferecido por Platatildeo atraveacutes do diaacutelogo visava reverter esse processo

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Platatildeo em relaccedilatildeo ao interesse pueril sobre a exatidatildeo dos nomes Como pano de

fundo esse diaacutelogo apresenta a decadecircncia intelectual atraveacutes da discussatildeo em

torno da tese convencionalista que eacute defendida pelos seguidores de Protaacutegoras e

os naturalistas que seguem a visatildeo de Heraacuteclito que tem a phyacutesis como a medida

de todas as coisas Essa eacute uma imagem que expotildee em plano aberto o cenaacuterio geral

dos efeitos colaterais promovidos pela pedagogia sofiacutestica122 Mesmo sendo um

diaacutelogo de cunho aporeacutetico Soacutecrates123 tem inicialmente uma tendecircncia de seguir

a orientaccedilatildeo de Craacutetilo que visa refutar a posiccedilatildeo convencionalista defendida por

Protaacutegoras De modo sorrateiro ele utiliza essa hipoacutetese para liquidar todas as

possibilidades de contra argumentaccedilatildeo do pobre Hermoacutegenes Mas no final

percebemos que ele se distacircncia tambeacutem da linha oferecida por Craacutetilo Esse

abandono eacute algo curioso pois natildeo sabemos se isso revela a postura de Platatildeo ou do

proacuteprio Soacutecrates histoacuterico124 Segundo Aristoacuteteles o seu mestre tinha influecircncia da

escola pitagoacuterica e desde de jovem era um seguidor de Craacutetilo e do pensamento do

filoacutesofo efeacutesio para as questotildees que estavam voltadas para o acircmbito do

conhecimento125 A tese muita difundida na eacutepoca que defendia que todas as coisas

sensiacuteveis estatildeo em processo de mudanccedila contiacutenua teria sido o seu ponto de partida

para a filosofia platocircnica Enquanto que para questotildees de cunho moral teria se

servido da influecircncia socraacutetica

O ponto interessante nessa descriccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo dos fatos e o ordenamento

cronoloacutegico126 oferecido pelo filoacutesofo macedocircnio Diferentemente do mestre da

Academia o seu estilo soacutebrio e analiacutetico apresenta de modo claro para o leitor

atencioso muitas questotildees que vatildeo aleacutem da proacutepria informaccedilatildeo transmitida no texto

A primeira delas eacute o processo de formaccedilatildeo intelectual do filoacutesofo poeta esse traccedilo

122 No cinema o plano aberto (long shot) a cacircmera que representa o olhar do cineasta estaacute distante do objeto de modo que ele ocupa uma parte pequena do cenaacuterio Eacute um plano de ambientaccedilatildeo importante para apresentar inicialmente o espaccedilo cecircnico 123 Ou Platatildeo 124 Uma hipoacutetese para esse ldquoabandonordquo poderia ser interpretada pelo distanciamento de Platatildeo em relaccedilatildeo as duas principais correntes intelectuais do seu tempo No Teeteto por exemplo eacute possiacutevel encontramos uma minuciosa criacutetica em relaccedilatildeo agrave validade do conhecimento a partir dessas hipoacuteteses 125 Aristoacuteteles Metafiacutesica (I6 986-30) 126 Para essa questatildeo seguimos a tese de Wener Jaeger que defende que Aristoacuteteles foi o primeiro pensador que construiu paralelo a sua obra um conceito de sua proacutepria posiccedilatildeo na histoacuteria Ele teria sido o primeiro a promover a criaccedilatildeo de um novo gecircnero de consciecircncia filosoacutefica atraveacutes do modo de expressatildeo que corresponde diretamente ao seu desenvolvimento intelectual Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Jaeger W Aristotle Fundamentals of the History of His Development 2nd ed Oxford (1948)

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pode ser constatado a partir do proacuteprio tiacutetulo do diaacutelogo que leva o nome do seu

antigo mestre O segundo detalhe eacute o modo como Aristoacuteteles menciona a figura de

Heraacuteclito no texto A expressatildeo utilizada de modo literal eacute a seguinte ldquotendo

primeiro se familiarizado desde jovem com Craacutetilo e as opiniotildees de Heraacuteclitordquo127

no texto grego a expressatildeo ldquoas opiniotildees de Heraacuteclitordquo (Heracleiteiois doxais)

parece nos dizer com o uso do adjetivo primeiro (proacuteton)128 carregando o sentido

de anterioridade histoacuterica em referecircncia direta a Craacutetilo129 que as opiniotildees do

filoacutesofo efeacutesio teriam sido transmitidas por intermeacutedio dele Ao contrapor essas

informaccedilotildees com a anaacutelise do diaacutelogo homocircnimo nos deparamos com todas essas

evidecircncias que orientam a construccedilatildeo dramaacutetica e filosoacutefica do proacuteprio texto

Atraveacutes de uma espessa neblina pintada com os tons escuros da figura enigmaacutetica

de Soacutecrates ele refuta metodicamente as duas principais vias hipoteacuteticas

apresentadas no diaacutelogo Eacute importante ressaltar que a mesma tese heracliacutetica que

exerceu uma profunda influecircncia sobre o seu pensamento e de seu mestre Craacutetilo

tambeacutem foi importante para a postura relativista e agnoacutestica de Protaacutegoras130 Essa

aporia carrega um sentido mais traacutegico quando percebemos que a inutilidade dessa

discussatildeo promovida no encontro entre Craacutetilo Hermoacutegenes e Soacutecrates revela algo

ainda muito mais tenebroso ao filoacutesofo de que a linguagem eacute um caminho

totalmente incerto e enganoso para a obtenccedilatildeo do conhecimento da realidade131

Essa longa digressatildeo que fizemos natildeo foi sem propoacutesito Ela se fez necessaacuteria

para obtermos mais instrumentos pois temos a plena consciecircncia que o caminho

que estamos percorrendo eacute extremamente espinhoso Por isso que precisamos seguir

rotas alternativas que satildeo pouco frequentadas pelos mais apressados Mesmo

caminhando em ciacuterculos e com algumas pausas durante esse longo percurso como

o proacuteprio Platatildeo nos avisa natildeo devemos desistir diante dos obstaacuteculos Aprender a

127 ldquoἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόmicroενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαιςrdquo Ek neacuteou te gar synesthes genomenos proacuteton Kratylo kai Heracleiteiois doxais (Nossa traduccedilatildeo) 128 πρῶτον Κρατύλῳ proacuteton Kratylo 129 Vide a nota anterior 130 A doxagrafia antiga relata uma influecircncia do pensamento de Demoacutecrito sobre Protaacutegoras Mas a partir de vaacuterias posiccedilotildees defendidas pelo grande sofista como a tese dos dissoi logoi nos leva a crer uma certa aproximaccedilatildeo do pensamento do filoacutesofo efeacutesio Mario Untersteiner foi um dos primeiros helenistas que apontou essa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide UNTERSTEINER Mario Les Sophistes Traduit et precircsenteacute par Alonso Tordesillas Paris Librairie Philosophigue J Vrin 1993 Um ponto tambeacutem que natildeo discutimos em relaccedilatildeo a descriccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre o seu mestre eacute a distinccedilatildeo que ele faz de modo muito sutil entre Craacutetilo e Heraacuteclito Para algumas fontes mais antigas a saber em DL livro (III-4) 131 No diaacutelogo Teeteto o filoacutesofo analisa a natureza do conhecimento a partir dessa questatildeo

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olhar uma paisagem por diferentes perspectivas nos fornece uma visatildeo privilegiada

que habilita o espiacuterito a reatualizar a nossa rota mantendo o ritmo constante em

busca de novos resultados O nosso objetivo anterior seraacute retomado agora Depois

de analisar alguns aspectos discutidos no diaacutelogo de Platatildeo o nosso desvio

estrateacutegico em torno das polecircmicas entre os filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico

nos trouxe algumas evidecircncias para analisar com mais consistecircncia a imagem de

Hermes como a divindade simboacutelica da linguagem para os gregos desde do periacuteodo

homeacuterico

Esses rastros estatildeo contidos na passagem em que Hermoacutegenes pede ao

filoacutesofo Soacutecrates a etimologia do nome do deus Hermes pois segundo o proacuteprio

Hermoacutegenes a partir da linha defendida por Craacutetilo o seu nome natildeo guardava

nenhum parentesco132 com a divindade De forma geral todo o diaacutelogo carrega um

certo tom cocircmico em torno das origens dos nomes mas esse aspecto natildeo empobrece

a relevacircncia que o filoacutesofo impotildee na discussatildeo de outras questotildees que giram em

torno desse centro gravitacional que parte da inutilidade da pedagogia sofiacutestica e

a anaacutelise de algumas teses que surgem do desdobramento do problema entre a

phyacutesis e o nomos Aliaacutes essa problemaacutetica tambeacutem estaacute relacionada com as

reflexotildees que se inicia na obra homeacuterica e que se amplia atraveacutes dos primeiros

filoacutesofos preacute-socraacuteticos e chega finalmente no periacuteodo claacutessico com o diaacutelogo

Craacutetilo Nessa obra Platatildeo expotildee para noacutes os indiacutecios cruciais para a validaccedilatildeo da

interpretaccedilatildeo alegoacuterica que surge do encontro entre Hermes e Odisseu na ilha de

Circe Nesse momento Soacutecrates apresenta todos as caracteriacutesticas desse deus que

estaacute em total sintonia com a tradiccedilatildeo poeacutetica que foi a fonte e a base pedagoacutegica e

intelectual para a cultura helecircnica que o antecedera Atraveacutes da boca irocircnica de

Soacutecrates Platatildeo demonstra a sua erudiccedilatildeo que eacute fruto dessa educaccedilatildeo

aristocraacutetica recitando de cor e salteado a etimologia completa em torno do nome

de Hermes sem hesitar em nenhum momento Sendo essa uma das passagens mais

valiosas da obra que revela a sua capacidade mnemocircnica e o conteuacutedo da educaccedilatildeo

132 A antiga aristocracia fundava o seu poder poliacutetico atraveacutes dessa relaccedilatildeo familiar com os deuses que era fornecida pela teologia homeacuterica Eacute bem provaacutevel que essa praacutetica das correccedilotildees dos nomes pelos sofistas tenha a sua origem na genealogia promovida por essa minoria que detinha o poder na poacutelis Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto noacutes recomendamos o seguinte artigo FACAtildeO Emerson Democracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca - Revista dos alunos de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Novembro (2017)

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mito-poetica que ainda vigorava no seu tempo Nesse momento podemos notar que

o nome da divindade estaacute intimamente em consonacircncia com os seguintes termos

loacutegos133 intepretaccedilatildeo134 e mensagem135 Sendo tambeacutem considerado pela tradiccedilatildeo

como trapaceiro136 feacutertil em discursos137 comerciante labioso Todas essas

qualidades se assentam no poder da palavra138 Em outras fontes antigas139 que

temos sobre a imagem dessa divindade eacute possiacutevel comprovar a precisatildeo da

descriccedilatildeo platocircnica Nesse sentido e mesmo de modo sarcaacutestico o filoacutesofo expotildee

com perfeiccedilatildeo as caracteriacutesticas simboacutelicas que encontramos na obra homeacuterica140

23

Poesia e Loacutegos

Quando juntamos essas informaccedilotildees ao lado da passagem que expomos

anteriormente sobre o encontro entre Odisseu e Hermes nos deparamos com a

uniatildeo entre duas esferas que orienta todo o processo de subjetividade helecircnico

daquele periacuteodo O uso do termo phyacutesis aplicado pelo poeta naquele contexto traz

o sentido de segredo revelado por um deus que escapa aos olhos humanos que seraacute

posteriormente retomado por Heraacuteclito ao lado desse loacutegos que se apoia nas mesmas

caracteriacutesticas desse uso semacircntico apresentado por Homero na Odisseia A partir

dessas evidecircncias expostas eacute possiacutevel traccedilar uma linha de continuidade entre

Homero e os filoacutesofos do periacuteodo preacute-socraacutetico141 (NADAFF 2005) O primeiro

desses pensadores foi Heraacuteclito Em alguns dos seus escassos fragmentos ele traz

vaacuterios elementos que coadunam com o sentido de phyacutesis que encontramos na obra

homeacuterica

133 περὶ λόγονperi logon 134 ἑρmicroηνέαhermeneia 135 ἄγγελονaggelon 136 Κλοπικόςklopikoacutes 137 τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοιςte kai to apantelon em loacutegois 138 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 139 Em Homero Iacuteliada (livro XXIV 334-5) no hino homeacuterico a Hermes e Aristoacutefanes A paz (14-5) 140 Esse eacute um dos indiacutecios que prova o diaacutelogo em niacutevel mais profundo que haacute entre Platatildeo e Homero 141 Ou seja uma continuidade e natildeo ruptura entre a Poesia e Filosofia

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ldquoA natureza ama esconder-serdquo142

E

ldquoBem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo143

Eacute importante ressaltar que esses primeiros pensadores se expressavam com

a mesma liberdade poeacutetica de seus antepassados Esse eacute outro importante traccedilo de

continuidade que pode ser encontrado nos fragmentos de vaacuterios desses pensadores

antigos Atraveacutes de suas obras eacute possiacutevel notarmos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo No

caso sobretudo de Heraacuteclito esse ponto eacute evidente a partir dessas passagens

expostas No fragmento I e no 112 ele usa a expressatildeo ldquoKata Physinrdquo (por natureza)

que eacute uma das primeiras apariccedilotildees desse termo entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos na

antiguidade No fragmento I um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo eacute o emprego

de duas conjunccedilotildees a primeira que foi mencionada anteriormente eacute ldquoKata Physinrdquo

(por ou segundo Natureza) e a segunda ldquoKata ton Logonrdquo (segundopor esse

loacutegos) Esse Kata atua como uma preposiccedilatildeo atraveacutes do caso genitivo e acusativo

Ele traz o sentido de ldquocomrdquo e ldquovindo derdquo Liddell amp Scott ainda chamam atenccedilatildeo

para o fato dessa partiacutecula carregar o sentido de ldquomovimento que vem de cima para

baixordquo Ou seja haacute uma alusatildeo do velho esquema de autoridade que os poetas

traziam do mundo divino para o mundo humano No caso de Heraacuteclito essas

conjunccedilotildees estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de reciprocidade que poeticamente

reforccedila o sentido entre essas duas instacircncias que ele expotildee filosoficamente na

sentenccedila A Poesia e a Filosofia assim como a Phyacutesis e o Loacutegos estatildeo intimamente

conectadas dentro desse contexto Ao partir da obra homeacuterica vimos que o nome do

deus Hermes se caracteriza por essa accedilatildeo de comunicaccedilatildeo vertical entre os dois

142 Heraacuteclito fragmento DK (123) φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ phyacutesis kryacuteptesthai philei nossa traduccedilatildeo 143 Ibidem DK (112) σωφρονεῖν ἀρετὴ microεγίστη καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας sophronein areteacute megiste kai sophin aletheacuteia legein kai poieiein kata phyacutesin hepaiontas traduccedilatildeo de Alexandre Costa

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mundos que estaacute presente nessas sentenccedilas que abordam a questatildeo da Phyacutesis e

Loacutegos Essas duas conjunccedilotildees operam de maneira dialoacutegica para acentuar os

diferentes niacuteveis semacircnticos explorados pelo filoacutesofo efeacutesio em torno dos

problemas oriundo da Natureza Como disse anteriormente esses dois termos tem

uma iacutentima afinidade que certamente vem da interpretaccedilatildeo homeacuterica entre a

natureza e linguagem O termo phrazon144(mostrar) que surge no fragmento I por

144 Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo a seguir φράζω S Ph 25 etc poet impf φράζον Pi N 161 fut φράσω [α] A Pr 781 etc aor 1 ἔφρασα hVen 128 hMerc 442 Hdt 2150 etc poet φράσα [α] Od 1122 A Ag 231 (lyr) imper φράσσατε Pi P 4117 pf πέφρακα Isoc 593 Phld Po 523 Ep aor πέφραδον ἐπέφραδον used by Hom mostly in 3 sg Il 14500 al (in Od 1273 8142 πέφραδε is imper) opt πεφράδοι Il 14335 inf πεφραδέειν πεφραδέmicroεν Od 19477 749 1 sg ἐπέφραδον only Il 10127 also aor 1 part gen φράδαντος dub in IG 5(2)26115 (Mantinea vi B C)mdash Med and Pass φράζοmicroαι Ep imper φράζεο φράζευ Il 5440 9251 inf φράζεσθαι Od 1294 Ep 3 sg impf φράζετο φραζέσκετο 11624 hAp 346 fut φράσοmicroαι [α] Il 15234 Ep φράσσοmicroαι Od 16238 aor1 ἐφρασάmicroην 17161 Ep φρασάmicroην 2375 3 sg and pl ἐφράσσατο φράσσαντο 4529 Il 15671 imper φράσαι Od 24331 A Ch 113 Ep 3 sg subj φράσσεται Od 24217 Ep inf φράσσασθαι Orac ap Hdt 357 aor Pass ἐφράσθην Od 19485 Hdt 184 E Hec 546 pf πέφρασmicroαι (in med sense) A Supp 438 (in pass sense) Isoc 15195 part προ-πεφραδmicroένος Hes Op 655 mdashThe aor Med is chiefly Ep also Archil 94 Sol 54 341 A Ch 113 E Med 653 (lyr)mdash point out show (never say tell in Hom acc to Aristarch) ἐς χῶρον ὃν φράσε Κίρκη Od 1122 cf Il 23138 Od 15424 also show the way to show where to find ᾗ οἱ αθήνη πέφραδε δῖον ὑφορβόν 143 cf 868 σήmicroατrsquo τά οἱ ἔmicroπεδα πέφραδ οδυσσεύς showed 19250 microῦθον πέφραδε πᾶσιν show make known the word to all 1273 cf 8142 δεῖξε καὶ ἔφρασε hVen 128 φράσσατέ microοι δόmicroους show me them Pi P 4117 ἔφρασε τὴν ἀτραπόν Hdt 7213 κόποι αὐτόmicroατοι φράζουσι νούσους Hp Aph 25 δmicroώων δή τινα microοι φράσον Theoc 2547 τὸ παράδειγmicroα ὃ ἂν φράζῃ ὁ ἀρχιτέκτων IG 22166896 abs φωνῆσαι microὲν οὐκ εἶχε τῇ δὲ χειρὶ ἔφραζε Hdt 4113 ἀντὶ φωνῆς φράζε χερί A Ag 1061 2 show forth tell declare λόγον ἔπος ὄνοmicroα Pi O 260 A Pers 173 (troch) Supp 320 φ τοῖσι ἥκουσι τὰ πρήγmicroατα Hdt 6100 ἑλοῦ γάρ ἢ πόνωντὰ λοιπά σοι φράσω σαφηνῶς ἢ τὸν ἐκλύσοντ ἐmicroέ A Pr 781 τιπρός τινα Hdt 168 Ar Nu 359 (anap) etc c dupl acc φ τινά τι Isoc 15100 τι Pl Phdr 267b περί τινος Isoc 15117 (v infr) ἐπί τινος Id Ep 68 rarely c gen tell of τῆς microητρὸς ἥκω τῆς ἐmicroῆς φράσων ἐν οἷς νῦν ἐστι S Tr 1122 folld by a relat clause φ ὅτι Lys 123 Pl Phdr 278b etc φ ὡς δεῖ γεωργεῖν X Oec 168 φ οἷ ἐπορσύνθη κακά A Pers 267 cf Pr 995 etc with double constr φ τό τε ὄνοmicroα καὶ ἐν ᾗ κώmicroῃ οἰκοῦσιν PRevLaws 295 (iii B C) rarely c part πεφραδέειν πόσιν ἔνδον ἐόντα Od 19477 οὐκ ἔφραζες σῆς προκείmicroενον νέκυν γυναικός E Alc 1012 later c acc et inf Phld lc explain (opp λέγω which means simply speak say) φράσον ἅπερ γ ἔλεξας declare explain what thou didst say S Ph 559 φράζε δὴ τί φῄς Id OT 655 φράζουσιν ἃ λέγει X An 2418 φράζε λόγῳ S Ph 49 Pl Lg 814c οὐχ ἁπλῶς εἰπεῖν ἀλλὰ σαφῶς φράσαι περὶ αὐτῶν Isoc 15117 cf Ep 12 σαφῶς φ τοῖς βουλοmicroένοις συνιέναι Aeschin 1129 of teachers Antipho 613 Pl Tht 180b of oracles Ar Eq 1048 Pl 46 Pl Lg 923a etc of letters Plu Cic 15 abs τοῦτο φράζει ὅτι this signifies that X Smp 830 b cultivate style or phrasing opp αὐτὸ τὸ γράφειν Duris 1 J 3 c dat pers et inf tell one to do so and so ἵνα γάρ σφιν ἐπέφραδον ἠγερέθεσθαι Il 10127 δὴ γάρ microοι ἐπέφραδε Κίρκη (sc ἰέναι) Od 10549 τοῖς ἀνθρώποισι φ σιγᾶν Ar Pax 98 (anap) τὰ ὅπλα ὑπολαβεῖν Th 658 cf 315 4 abs give counsel advise suggest δόλος ἦν ὁ φράσας S El 197 (lyr) II Med and Pass indicate to oneself ie think or muse upon consider ponder Ep Ion Trag but not in Att Prose εὔκηλος τὰ φράζεαι ἅσς ἐθέλῃσθα Il 1554 φράζεσθαι βουλήν βουλάς 18313 Od 11510 ἐνὶ φρεσὶ microῆτιν ἀmicroείνω Il 9423 πάντα microετὰ φρεσίν Hes Op 688 θυmicroῷ Il 16646 ἐφράσθη καὶ ἐς θυmicroὸν ἐβάλετο Hdt 184 πρὸς ταῦτα φράζου bethink thee S El 383 ἀmicroφὶς φ to think differently Il 214 folld by εἰ c fut indic consider whether 183 Od 10192 2 purpose plan contrive φ τινὶ κακά θάνατον ὄλεθρον 2367 3242 13373 microέγ ὄνειαρ 4444 ἐσθλά Il 12212 φράσσατο Πατρόκλῳ microέγα ἠρίον 23126 φράσσεται ὥς κε νέηται will contrive how Od 1205 φ ὅπως ὄχ ἄριστα γένοιτο 3129 cf S Aj 1041 3 c acc et inf think suppose believe imagine that Od 11624 οὐκ ἐφράζετο δυνατὸς εἶναι Hdt 3154 4 perceive observe οἷον ἐγὼν οἰωνὸν ἐφρασάmicroην Od 17161

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exemplo estabelece a sua ligaccedilatildeo semacircntica com Phreacuten - diafragma coraccedilatildeo como

sede das paixotildees e do espiacuterito do pensar e agir que ocorre na harmonia entre duas

forccedilas contraacuterias que habitam sob a tensatildeo do seu ritmo O focirclego e todo o

movimento de vir a ser mantecircm-se atraveacutes desse fundamento na antiguidade O

Efeacutesio explora a multiplicidade de sentidos para enfatizar a relaccedilatildeo genuiacutena entre

ser pensar e dizer que eacute um e o mesmo145 Ou seja a phyacutesis e loacutegos satildeo termos

equivalentes que expressam o processo total do desenvolvimento da vida desde

Homero a Heraacuteclito

O mais interessante desse processo reflexivo que parte dos fragmentos do

filoacutesofo eacute perceber o fato dele apresentar a sua visatildeo mais profunda da Phyacutesis em

total consonacircncia com a linguagem poeacutetica que desempenhou um lugar de destaque

dentro da cultura grega Ela era a palavra que visava organizar a vida helecircnica e

suprir a curiosidade em torno desses questionamentos mais baacutesicos da existecircncia

humana Como ressaltamos anteriormente a poesia era o meio pelo qual os

helecircnicos conseguiram desenvolver para reorganizar a sua sociedade apoacutes o

tenebroso episoacutedio histoacuterico que culminou no decliacutenio da civilizaccedilatildeo micecircnica146

Esse periacuteodo que eacute conhecido pelos historiadores como a idade das trevas eacute o

momento de uma profunda transformaccedilatildeo social e poliacutetica que teve para muitos

especialistas (SNODGRASS 2000) a sua origem em uma infortuita equaccedilatildeo que

parte de causas humanas e naturais147 Essas importantes transformaccedilotildees foram

τὴν (sc τὴν οὐλὴν ) ἀπονίζουσα φρασάmicroην 2375 with a part τὸν δὲ φράσατο προσιόντα Il 10339 cf 23453 later c gen χειmicroῶνος Arat 745 ποmicroπᾶς Theoc 284 rarely c part ψυχὰν αιδᾳ τελέων οὐ φράζεται marks not that he will die Pi I 168 5 watch guard [ὀρσοθύρην] Od 22129 6 beware of ξύλινον λόχον Orac ap Hdt 357 freq in imper φράζευ κύνα cave canem Ar Eq 1030 (hex) φράσσαι κυναλώπεκα microή σε δολώσῃ ib 1067 (hex) φράζεο δή microὴ microάρψῃ Id Pax 1099 (hex) cf Call LavPall 52 c inf φράζου microὴ πόρσω φωνεῖν S El 213 (lyr) abs φράζου take care A Eu 130 (Perh cf Lith girdziugrave I hear inf girdēti ) 145 Vide os seguintes fragmentos DK (219 50 72) 146 Iniacutecio do periacuteodo preacute-homeacuterico 147 Em torno dessa questatildeo haacute diversos estudos que tentatam entender esse processo de transformaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dessa importante cultura preacute-helecircnica Esses estudos arqueoloacutegicos concentram-se em analisar os seguintes materiais arqueoloacutegicos os registros do Linear A e B os afrescos deixados nas paredes fragmentos de ceracircmica e de objetos de uso cotidiano encontrados nas antigas ruiacutenas que formava o esplendoroso palaacutecio de Micenas Para muitos especialistas a duas principais causas do colapso da civilizaccedilatildeo micecircnica parte de causas naturais como o surgimento de terremoto e maremoto e de causas humanas como a guerra e a superpopulaccedilatildeo que forccedilou o deslocamento (diaacutesporaδιασπορά dispersatildeo) apoacutes a invasatildeo doacuterica que obrigou muitas famiacutelias que residiam na parte continental onde estava localiazada a releza de Micenas a se espalharem para outras localidades da bacia do mar Mediterracircneo Esse fato caracteriza-se por um lado como o fim da Era do Bronze e por outro como o iniacutecio do periacuteodo Preacute-Homerico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo pois acreditamos que o processo do amplo desenvolvimento subjetivo da cultura

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posteriormente essenciais para a construccedilatildeo da mentalidade cultural da civilizaccedilatildeo

helecircnica Um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo apoacutes a fragmentaccedilatildeo e

dispersatildeo da populaccedilatildeo micecircnica pelo Mediterracircneo eacute o processo de total

isolamento cultural que culminou entre outras ocorrecircncias no abandono da

opulecircncia do modo de vida micecircnico e do uso da escrita A guerra a destruiccedilatildeo e

a fome produziram marcas profundas na subjetividade dos sobrevintes da antiga

cultura micecircnica Esses estranhos fatos possibilitaram o desenvolvimento da

tradiccedilatildeo oral atraveacutes do uso da mitologia poesia e do aperfeiccediloamento das teacutecnicas

mnemocircnicas atraveacutes da muacutesica148 Posteriormente pretendemos investigar149 como

esse conhecimento musical foi essencial para conservar e transmitir o legado

cultural desses povos predecessores que ajudaram a construir a mentalidade

helecircnica Mesmo sem utilizar a escrita os gregos conseguiram desenvolver uma

capacidade mnemocircnica tatildeo eficiente que posteriormente eacute possiacutevel identificarmos

a sua utilidade e emprego no desenvolvimento da Retoacuterica Poliacutetica Filosofia e da

Literatura

helecircnica parte desse contexto Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto indicamos a leitura do seguinte livro SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 148Μουσικήmousikeacute ldquoArte das musasrdquo Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto que para noacutes eacute essencial para a compreensatildeo do desenvolvimento do subjetivo da cultura helecircnica 149 Vide o capiacutetulo III

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3 Poesia memoacuteria e verdade

31 A palavra entre os homens e deuses

Como foi exposto anteriormente o homem desde seus primoacuterdios teve a

pretensatildeo de desvendar a linguagem da Natureza 150 para buscar respostas sobre a

sua origem Para Platatildeo (Teeteto 155 d) e Aristoacuteteles (Met A 982 b) por exemplo

a Filosofia nasce nesse momento quando ele experimenta o primeiro espanto 151

que surge do reconhecimento152 da grandiosidade existencial das forccedilas 153 que

compotildee o mundo A partir disso surgiu toda uma tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que teria

como expoentes os poetas Hesiacuteodo e Homero que foram responsaacuteveis por

estabelecer os primeiros pilares da cultura grega Esses homens tinham o poder

divino de traduzir essas forccedilas 154 que ecoavam pela imensidatildeo do mundo antigo

Essa poesia trazia consigo aleacutem da finalidade de responder essas questotildees sobre as

nossas origens o objetivo de ajudar a construir um meio para a orientaccedilatildeo e

organizaccedilatildeo social e poliacutetica do homem grego antigo155 Todo o legado cultural era

conservado e transmitido pela voz dos aedos que eram os uacutenicos instrumentos de

comunicaccedilatildeo responsaacutevel por manter a consciecircncia histoacuterica do seu proacuteprio povo

150 A palavra grega phyacutesis (Φύσις) pode ser traduzida por natureza mas seu significado eacute mais amplo Este termo refere-se tambeacutem agrave realidade natildeo aquela pronta e acabada mas a que se encontra em movimento e transformaccedilatildeo a que nasce e se desenvolve o fundo eterno perene imortal e impereciacutevel de onde tudo brota e para onde tudo retorna Nesse sentido a palavra significa gecircnese origem e manifestaccedilatildeo Saber o que eacute a Physis assim levanta a questatildeo da origem de todas as coisas a sua essecircncia que constitui a realidade e que se manifesta no movimento da vida Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o primeiro capiacutetulo desse presente trabalho 151 θαυmicroάζωthaumazo 152 ἀναγνώρισιςanagnoacuterisis 153 Para GMA Grube satildeo essas forccedilas (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) que ultrapassam a esfera da mortalidade humana que o grego antigo chama deus (θεόςtheos) Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do seguinte livro GRUBE G M A Platorsquos Thought Indianapolis Hackett 1980 154 Vide o iniacutecio do capiacutetulo anterior 155 Sobre essa questatildeo Jean-Pierre Vernant em um beliacutessimo artigo intitulado como ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo(A bela morte e o cadaacutever ultrajado) diz ldquoMas para que a honra heroica permaneccedila viva no coraccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores como que receba a marca de sua chancela eacute necessaacuterio que a funccedilatildeo poeacutetica mais que objeto de divertimento tenha conservado um papel educativo e formador que atraveacutes dela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um esse conjunto de saberescrenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura Somente a poesia eacutepica devido ao seu estatuto e agrave sua funccedilatildeo pode conferir ao desejo de gloacuteria impereciacutevel que domina o heroacutei essa base institucional e essa legitimaccedilatildeo social sem as quais ele natildeo passaria de uma fantasia subjetiva Para mais informaccedilotildees vide VERNANT JP ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo Journal de Psychologie 2-3 (1980) pp 220-221

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Eacute atraveacutes dos versos desses filhos das Musas156 que o homem grego podia

transcender os limites do espaccedilo e do tempo e acessar todo o seu distante passado

que era presentificado atraveacutes de imagens reconstruiacutedas pela audiccedilatildeo que foram

fundamentais para moldar o futuro da cultura helecircnica157 Com isso o poeta passa

a ser uma figura de grande importacircncia e prestiacutegio dentro da sociedade grega antiga

Na primeira obra de Hesiacuteodo por exemplo o conteuacutedo dessa poesia fala sobre

o surgimento dos deuses158 O poeta usa a linguagem miacutetica para declamar de modo

estruturado a genealogia das divindades que pairavam por toda Heacutelade No seu livro

conhecido como a Teogonia Hesiacuteodo desenvolve atraveacutes de sua narrativa a

primeira ideia de causalidade que temos notiacutecia (TORRANO 1991) e que

posteriormente seraacute utilizada como base para os filoacutesofos que surgiratildeo escrevendo

sobre as cosmogonias159 referentes agrave Phyacutesis

A Teogonia narra sobre quatro geraccedilotildees de deuses que satildeo responsaacuteveis por

todas as coisas viventes que satildeo nomeadas pelos seguintes nomes Caos Terra

Taacutertaro e Eros Mesmo sem comprovaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo durante muito tempo

essa era a explicaccedilatildeo utilizada pelos gregos para estruturar todo o seu conhecimento

histoacuterico e poliacutetico-social Como consequecircncia disso a Paideacuteia (educaccedilatildeo) tinha

como obrigaccedilatildeo de repassar esse conhecimento de forma oral para cada jovem

156 ΜοῦσαιMousai 157 Platatildeo (Timeu ndash 20 e) 158 O professor GM A Grube em seu famoso livro ldquoPlatorsquos Thoughtrdquo chama a nossa atenccedilatildeo para uma importante observaccedilatildeo feita pelo filoacutelogo alematildeo Wilamowitz sobre a palavra deus (θεόςtheos) Para o scholar os gregos usavam esse termo como uma noccedilatildeo fundamentalmente predicativa Em comparaccedilatildeo aos cristatildeos e judeus por exemplo quando eles dizem que ldquoDeus eacute amorrdquo ou que ldquoDeus eacute bomrdquo apontam para uma existecircncia de um ser ldquodesconhecidordquo e consequentemente fazem um juiacutezo qualitativo em torno desse termo colocando ldquoamorrdquo ldquobemrdquo e ldquobelordquo como seus atributos Para um grego essa ordem era completamente inversa pois ao dizer por exemplo que o ldquoAmor eacute deusrdquo ou a ldquoBeleza eacute deusrdquo o grego natildeo estaria apenas pressupondo a existecircncia de uma divindade antropomoacuterfica oculta mas tambeacutem falando sobre algo acerca do ldquoAmorrdquo e da ldquoBelezardquo como realidades natildeo antropomorfizadas que natildeo podem ser negadas e nem confundidas com os cultos religiosos E segundo o professor Grube o sujeito do seu juiacutezo a coisa pela qual se fala encontra-se no mundo que conhecemos e o pensamento pagatildeo estava focado nessa ideia Ao dizer que o ldquoAmor eacute deusrdquo os gregos queriam expressar fundamentalmente o caraacuteter sobre humano de algo que natildeo estaacute sujeito agrave morte ou destruiccedilatildeo e que escapa sobretudo do domiacutenio dos homens Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como FERNANDES Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013 159 O pensamento cosmogocircnico eacute definido como uma tentativa de explicaccedilatildeo sobre a origem do mundo atraveacutes de mitos Enquanto que o pensamento cosmoloacutegico que segundo os relatos antigos teria surgido com o filoacutesofo Tales de Mileto eacute caracterizado como uma tentativa hipoteacutetica de formulaccedilotildees conceituais que visa uma explicaccedilatildeo mais clara e objetiva da Phyacutesis

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grego Alguns seacuteculos depois surgiram pensadores que comeccedilaram a colocar em

xeque esse conhecimento tradicional poeacutetico160 A partir de algumas duacutevidas sobre

a origem do conhecimento do poeta grego surgem as seguintes questotildees como

posso ter certeza da veracidade das palavras de Hesiacuteodo Quais satildeo as provas que

servem para sustentar esses argumentos Nossos sentidos 161 Nossa razatildeo162 O

senso comum163 O que eacute a verdaderevelaccedilatildeo164 Tais perguntas foram de extrema

importacircncia para o nascimento de uma postura criacutetica entre os gregos que foi

fundamental para o desenvolvimento do ceticismo165 posteriormente

Marcel Detienne (DETIENNE 1967) sob a influecircncia estruturalista de Leacutevi-

Strauss166 construiu uma interessante pesquisa que visa compreender esse periacuteodo

de rupturatransiccedilatildeo167 entre a tradiccedilatildeo miacutetica e o pensamento racional Essa

postura criacutetica que determina o surgimento de uma forma de pensar mais criacutetica e

elaborada nasce em um contexto social poliacutetico e econocircmico bem especiacutefico a

160 Para John Burnet (BURNET 1930) isso ocorre quando os gregos comeccedilam a se distanciar da visatildeo tradicional mito-poeacutetica Ele parece sugerir no livro algo semelhante ao que antecedeu o periacuteodo Moderno Ou seja esses pensadores provocaram uma crise (κρίσιςkrisis separaccedilatildeodistinccedilatildeo) que possibilitou um questionamento generalizado sobre todos os valores difundidos pela poesia antiga ocasionando uma ruptura radical (tese do milagre grego) que possibilitou diversas mudanccedilas na cultura grega sobretudo no campo eacutetico poliacutetico e pedagoacutegico Nos diaacutelogos de Platatildeo tambeacutem podemos encontrar uma atitude semelhante em relaccedilatildeo aos seus predecessores e coetacircneos Mas esse ponto infelizmente natildeo ganhou a devida atenccedilatildeo do helenista 161 αισθήσειςaisthesis 162 νοῦςnous 163 δόξαdoxa 164 Em nossa abordagem natildeo vamos traduzir o termo aleacutetheia (ἀλήθεια) por ldquoverdaderdquo para natildeo cairmos nas armadilhas que esse termo grego impotildee aos tradutores desavisados pois o sentido que o termo verdade ganha entre os modernos ndash que se contrapotildee agrave mentira ndash natildeo eacute o mesmo que encontramos na literatura antiga No proacutelogo da Teogonia eacute possiacutevel encontrarmos uma formulaccedilatildeo bem interessante apresentada em versos por Hesiacuteodo em torno desse problema ldquoαἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν ἄρνας ποιmicroαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο τόνδε δέ microε πρώτιστα θεαὶ πρὸς microῦθον ἔειπον Μοῦσαι Ὀλυmicroπιάδες κοῦραι ∆ιὸς αἰγιόχοιο ποιmicroένες ἄγραυλοι κάκ᾽ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον ἴδmicroεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύmicroοισιν ὁmicroοῖα ἴδmicroεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωmicroεν ἀληθέα γηρύσασθαιrdquo Elas [as Musas] certa vez a Hesiacuteodo ensinaram belo canto Ovelhas ele apascentando sob o Heacutelicon divino E a mim antes de tudo as deusas estas palavras dirigiram As Musas olimpiacuteades filhas de Zeus que tem a eacutegide Pastores agrestes maus oproacutebios ventres soacute sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autecircnticas e sabemos quando queremos verdades proclamarrdquo Hesiacuteodo Teogonia 22-28 Para mais informaccedilotildees vide a seguinte obra HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo PauloIluminuras 1991 165 Ou como o proacuteprio termo skeacutepsis (Σκῆψις) aponta seraacute que o ceticismo natildeo poderia ter surgido nesse momento de criacutetica agrave tradiccedilatildeo 166 Voltaremos a falar desse grande antropoacutelogo no momento que formos abordar o problema da escrita na sociedade grega 167 Para Burnet houve uma ruptura que possibilitou o surgimento do pensamento racional E no caminho oposto segue o helenista Cornford que defende uma continuidade histoacuterica (transiccedilatildeo) entre o pensamento miacutetico e racional

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partir do desaparecimento (crisetransiccedilatildeo) 168 da figura do deacutespota169 que daacute ensejo

ao surgimento da cidade170 atraveacutes da valorizaccedilatildeo da oralidade como um

instrumento de poder poliacutetico que eacute essencialmente marcado pela forccedila da

persuasatildeo171que determina a partir de um confronto acirrado172 de ideias todas as

decisotildees dentro desse novo espaccedilo social173 (VERNANT 1962)

Eacute nesse ponto que o helenista francecircs tenta buscar o sentido da palavra

aleacutetheia174 a partir das mudanccedilas que ocorreram durante o decorrer da histoacuteria

grega O seu foco primordial eacute rastrear as linhas de forccedilas que formam o leacutexico

desse termo tatildeo complexo para noacutes Para obter ecircxito em sua pesquisa Detienne

aplica o meacutetodo de anaacutelise lexicoloacutegica estrutural no intuito de alcanccedilar as relaccedilotildees

de oposiccedilatildeo e associaccedilatildeo dentro do campo semacircntico entre esses dois periacuteodos

Nessa direccedilatildeo ele percebe uma diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior da sociedade

grega de modo progressivo entre dois tipos de discursos a palavra (loacutegosdiscurso)

do historiador Tuciacutedides e o texto do poeta Hesiacuteodo A diferenccedila que reside entre

ambas eacute que o texto do historiador parece ter sido orientado pelos fatos (realismo)

que satildeo oriundos da sua observaccedilatildeo empiacuterica que fundamenta o meacutetodo cientiacutefico

e simultaneamente marca o seu distanciamento com a tradiccedilatildeo miacutetica 175 Enquanto

168 Esse momento de crisetransiccedilatildeo segundo Vernant acontece no momento em que a Greacutecia rompe as suas ligaccedilotildees comerciais com o Oriente O ldquomarrdquo que outrora era uma fonte de expansatildeo torna-se nesse periacuteodo uma terriacutevel barreira Isolada sobre si mesma o que restou da grande civilizaccedilatildeo micecircnica retorna para uma economia agriacutecola apenas para manter a subsistecircncia do seu povo Esse eacute o mundo homeacuterico Natildeo haacute nesse momento uma divisatildeo de trabalho e nem um corpo vasto de matildeo de obra servil Com isso o grande aacutenax cai e daacute lugar a um grupo de homens conhecidos como basileus (βασιλεύς) Esse grupo passa a ser responsaacutevel por todas as funccedilotildees poliacuteticas e religiosas dentro desse novo espaccedilo social E esse eacute um dos pontos que sustenta a tese do helenista para o surgimento ou desenvolvimento do pensamento racional entre os gregos 169 ἄναξaacutenax 170 πόλιςpoacutelis 171 πειθώpeithoacute 172 ἀγώνagoacuten 173 Posteriormente veremos como essa caracteriacutestica foi importante para a constituiccedilatildeo da polis Essa experiecircncia pode ter exercido uma forte influecircncia na formaccedilatildeo da dialeacutetica a partir do surgimento da agoniacutestica Infelizmente Vernant natildeo fala sobre essa questatildeo mas podemos sugerir essa hipoacutetese a partir dos elementos que o helenista apresenta em seu livro De qualquer modo eacute notoacuterio que essa nova forma de pensar tenha se desenvolvido e se ampliado dentro de um contexto democraacutetico mas para noacutes isso natildeo eacute suficiente para comprovar que a Filosofia teria surgido com a Democracia dentro da Greacutecia pois haacute diversos autores como Plutarco (De Iside et Osiride 9) e Dioacutegenes de Laeacutercio (DL I-X) entres outros antigos que mencionam a existecircncia da Filosofia em um periacuteodo anterior no Antigo Egito Aliaacutes eacute importante ressaltar que no iniacutecio do seu livro (DL I-I) Dioacutegenes faz questatildeo de afirmar que a Filosofia tem origem estrangeira 174 ἀλήθεια 175 Esse rigor na elaboraccedilatildeo da obra eacute visto por muitos especialistas como o iniacutecio da historiografia como uma ciecircncia

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que a loacutegica poeacutetica de Hesiacuteodo176 reside na forccedila da verossimilhanccedila177

ambiguidade e imaginaccedilatildeo No interior do texto hesioacutedico178 parece natildeo haver uma

diferenciaccedilatildeo clara entre verdade e falsidade179 mas entre verdade e memoacuteria 180

Ou seja o discurso poeacutetico parece natildeo ter a pretensatildeo de ser claro e fidedigno aos

fatos como o que ocorre nos textos de Tuciacutedides mas que se coloca como verdade

por ser oriunda do mundo divino A famosa obra do historiador intitulada como ldquoA

Histoacuteria da Guerra do Peloponesordquo eacute marcada por uma ordenaccedilatildeo cronoloacutegica

entre os acontecimentos que datildeo para os leitores um panorama preciso dos fatores

que desencadearam a guerra Enquanto que o tempo poeacutetico estaacute mergulhado em

uma instacircncia que reuacutene em si em um uacutenico instante o presente o futuro181 e o

passado182 Nesse sentido a poesia em seus primoacuterdios atua como uma expressatildeo

imageacutetica183 da eternidade184 que abrange a plenitude do momento da criaccedilatildeo que

escapa da compreensatildeo dos mortais185 Ela eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo

(linguagem) e manutenccedilatildeo (memoacuteria) da proacutepria realidade que se daacute atraveacutes da

revelaccedilatildeo das musas186 Somente o poeta inspirado187 pode acessar esse domiacutenio

pois ele eacute a uacutenica conexatildeo entre o mundo divino 188 e humano

176 Posteriormente veremos que a poesia de Hesiacuteodo jaacute apresenta profundas mudanccedilas em relaccedilatildeo aos seus predecessores que foram importantes para o surgimento do trabalho desenvolvido por Tuciacutedides 177 Platatildeo (Timeu -29 c) Eacute nesse ponto que Platatildeo afirma que o discurso (λόγοςlogos) eacute uma ldquoimagemrdquo que copia o seu modelo (εἰκότας ἀνὰ λόγον τε ἐκείνων ὄνταςeikotas ana logon te ekeinocircn ontas) e nesse sentido ele reconhece a importacircncia do mito para expressatildeo do pensamento 178 Veremos posteriormente que essa comparaccedilatildeo soacute vale para a Teogonia pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta desenvolve um tipo de texto mais claro que seraacute um referencial para todos os escritores que surgiratildeo a partir do seacuteculo V 179 ἀληθεία και ψεύδουςaleacutetheia kai pseudos 180ἀληθεία και microνήmicroηaleacutetheia kai mneme Vide TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Pag 29 181 αἰώνaion Platatildeo (Timeu -37 e) 182 Hesiacuteodo (Teogonia-26-8) ldquopor cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre a cantarrdquo TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 183 Vide o primeiro capiacutetulo 184 Platatildeo (Timeu -37 d) 185 Heraacuteclito (Diels-Kranz fragmento 22 B1) 186 Vide o primeiro capiacutetulo da seguinte monografia ldquoΡεριαδο a poesia como potecircncia de criaccedilatildeo e expressatildeo da vidardquo Uerj 2008 187 Platatildeo (Fedro ndash 245 a) Nesse diaacutelogo Soacutecrates afirma que o verdadeiro poeta eacute aquele que estaacute tomado pelo deliacuterio (microανίαmania) A teacutecnica (τέχνηtechneacute) segundo o filoacutesofo natildeo tem nenhuma serventia para a verdadeira poesia Esse eacute um dos criteacuterios que Platatildeo vai utilizar para criticar e consequentemente expulsar os maus poetas da sua Repuacuteblica 188 E dizei-me agora Musas habitantes do Olimpo ndash pois sedes voacutes deusas presentes por toda parte e conheceis tudo natildeo ouvimos mais que um ruiacutedo e noacutes nada sabemos () A multidatildeo natildeo

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Atraveacutes da etimologia da palavra Poesia 189 podemos estabelecer uma

conexatildeo com essa experiecircncia criadora O verbo poieacuteo190 que forma o radical do

termo traz o sentido de fazer construir e criar Logo a criaccedilatildeo eacute a palavra chave

que daacute sentido e apresenta a accedilatildeo primordial da linguagem que tem por essecircncia

estabelecer a comunicaccedilatildeo que eacute fundamental para a nossa vida em uma sociedade

organizada191 Sem ela a nossa existecircncia natildeo seria possiacutevel Como foi dito por noacutes

anteriormente192 essa experiecircncia singular do sagrado traz consigo a capacidade de

explorar infinitas possibilidades que satildeo construiacutedas pelo pensamento que vatildeo (re)

configurando a cada instante o nosso mundo E eacute por ela que o homem vai tomando

e ampliando a sua consciecircncia de si e de todas as coisas que estatildeo ao seu redor

Nesse sentido a aleacutetheia surge na poesia de Homero e Hesiacuteodo como uma forccedila de

revelaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da proacutepria Phyacutesis193 O natildeo-esquecimento assinala uma

relaccedilatildeo direta com a funccedilatildeo mnemocircnica exercida pela poesia dentro de uma

sociedade oral Ou seja ela eacute a uacutenica responsaacutevel por manter e conservar todos os

coacutedigos eacuteticos morais poliacuteticos e religiosos que satildeo rememorados e repassados em

contos e cantos pelos aedos Portanto o significado de aleacutetheia estaacute implicado nesse

periacuteodo ao desejo coletivo de preservaccedilatildeo desses coacutedigos que formam a base

cultural e que sobrevivem atraveacutes da memoacuteria do poeta194

Mesmo com o advento e a expansatildeo do uso da escrita - que para alguns

especialistas como Eric Havelock (HAVELOCK 1982) teria afetado radicalmente

a praacutetica oral - essa atividade sagrada ainda perdurou por bastante tempo entre os

poderia eu enumeraacute-la nem denominaacute-la mesma que tivesse dez liacutenguas dez bocas e um coraccedilatildeo incansaacutevel um coraccedilatildeo de bronze em meu peito Iliacuteada de Homero apud Detienne 1988 p 15 189 ποίησιςpoiesis No grego esse termo carrega os seguintes significados fabricaccedilatildeo confecccedilatildeo e construccedilatildeo 190 ποιέω 191 Eacute o que diz Aristoacuteteles em seu livro (Pol- 1252 a e 1252 b 13-4) E eacute por causa dessa capacidade natural de comunicaccedilatildeo que o homem eacute considerado pelo filoacutesofo como um animal poliacutetico (άνθρωπος φύσει πολιτικόν ζώον anthropos physei politikon zoon) 192 Vide o primeiro capiacutetulo 193 Eacute importante ressaltar que apenas o livro ldquoTeogoniardquo traz essas caracteriacutesticas mais tradicionais da poesia arcaica pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo encontramos um trabalho mais elaborado que se distancia totalmente da tradiccedilatildeo homeacuterica 194 Diferentemente da modernidade a poesia desempenhava um papel funcional e didaacutetico entre os gregos

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gregos195 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade196

Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano

Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia

no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar197 as

singularidades existentes entre Esparta e outras cidades198 O mais interessante eacute

que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros

e sucessores do poeta Creoacutefilo199 alguns textos contendo diferentes partes das obras

poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses

textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer200 que ele ordenou que essas

obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de

195 No periacuteodo poacutes-micecircnico a escrita ressurge com a funccedilatildeo de publicidade e era compartilhada de forma coletiva O seu uso natildeo seraacute mais restrito a um grupo de escribas que tinha por obrigaccedilatildeo contabilizar e controlar toda a produccedilatildeo de alimentos que eram fornecidas pelos agricultores sob o controle do anaacutex Nesse novo contexto por volta do seacuteculo IX aC ela reaparece como um instrumento de divulgaccedilatildeo das leis Logo o seu uso foi compartilhando de modo coletivo entre os cidadatildeos para o conhecimento e cumprimento das decisotildees que eram tomadas por seus governantes E a partir desse contexto eacute bem provaacutevel que os gregos possam ter evoluiacutedo intelectualmente Aliaacutes Eric Havelock desenvolve a sua tese de que a grande Literatura Grega se expandiu por causa desse novo uso da escrita em cima dessa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 196 Vidas Paralelas (em grego Βίοι Παράλληλοι Bioi paralleloi) eacute uma reuniatildeo de vaacuterias biografias de homens ilustres da Greacutecia e da Roma Antiga que foram escritas pelo historiador e bioacutegrafo Plutarco A obra tal como a conhecemos hoje em dia tem 23 pares de biografias Cada livro possui uma biografia de um homem ilustre grego e outro romano O primeiro par conhecido Epaminondas - Cipiatildeo o Africano infelizmente esse texto foi perdido Haacute uma ediccedilatildeo rara brasileira que foi baseada na traduccedilatildeo de Jacques Amyot (importante tradutor francecircs do seacuteculo XVI que foi grande amigo do filoacutesofo Montaigne) Para mais informaccedilotildees vide Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 197 ldquo assim como um meacutedico que compara corpos saudaacuteveis com corpos doentes ele poderia estudar as diferenccedilas entre seus modos de vida e seus respectivos governosrdquo (Plutarch Lyc ndash 43) 198 Essa praacutetica parece ter sido algo muito comum na educaccedilatildeo de vaacuterias personalidades na antiguidade Importantes figuras como Tales Soacutelon Pitaacutegoras Empeacutedocles Platatildeo entre diversos outros tinham por haacutebito viajar no intuito de estudar outras culturas Essa eacute mais uma prova do intercacircmbio da cultura helecircnica com outros povos A formaccedilatildeo intelectual dos antigos era tambeacutem baseada nessas viagens que possibilitaram uma ampla abertura para o crescimento cultural dos gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro

ROMILLY Jacqueline de ldquoPourquoi la Gregravecerdquo Paris Eacuted de Fallois 1992 199 Creophylus of ChiosSamos ou Ios segundo a doxografia antiga teria sido um importante poeta eacutepico grego que foi amigo de Homero e responsaacutevel por difundir as suas obras para posteridade (Plat Rep 600 c Plut Lyc 4 Heracleid Pont Poet Fragm 2 Iamblich Vit Pythag ii 9 Strab xiv) O poema eacutepico Oichalia ou Oichalias halosis o que eacute atribuiacutedo a ele segundo a tradiccedilatildeo teria sido recebido de Homero como um presente ou como um dote junto com sua esposa (Vide Caliacutemaco Epigrama 6 Proclus ap Hephaest P466 Ed Giasford Schol ad Plat p 421 ed Bakker Suidas sv) 200 No texto grego a expressatildeo (πρὸς ἡδονὴν καὶ ἀκρασίαν proacutes edonen kai akrasian ao prazer e agrave licenccedila) apresenta dois termos distintos (prazer e licenccedila ndash para o segundo muitos tradutores escolheram essa palavra para passar o sentido de akrasia - natildeo ter comando sobre si mesmo ndash que estaacute contido na frase) com o intuito de destacar o efeito de ecircxtase sentido por Licurgo ao ler os textos homeacutericos

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preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco

ainda ressalta que nessa eacutepoca201 os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar

escassos E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o

legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo

entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica

como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica202 E por uacuteltimo eacute importante

ressaltar que essa memoacuteria que foi preservada trazia consigo um dos sentidos do

termo aleacutetheia (natildeo esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os

seacuteculos VIII e V

Todavia esse uacuteltimo testemunho de Plutarco abre para outro grande problema

para noacutes por que seraacute que a obra de Homero estava desaparecendo na eacutepoca de

Licurgo Quais foram os fatores que desencadearam esse processo Haacute diversas

hipoacuteteses que tentam responder essa questatildeo Uma delas eacute apresentada por

Havelock que defende que o ressurgimento da escrita na sociedade grega teria

produzido um efeito radical na antiga praacutetica oral que era a base pedagoacutegica da

cultura grega203 Se de fato isso ocorreu eacute bem provaacutevel que esse foi um processo

progressivo e de simbiose pois como apresentamos anteriormente o proacuteprio

Plutarco nos lembra de que a escrita foi uma ferramenta uacutetil para que Licurgo

pudesse conservar e reunir todas as partes da obra homeacuterica Logo essas

transformaccedilotildees podem ter sido motivadas por outros fatores como a crise religiosa

-sobretudo aquela que era sustentada pela teologia homeacuterica- social204 poliacutetica e a

201 Os relatos sobre essa questatildeo cronoloacutegica satildeo imprecisos O proacuteprio Plutarco (Ac 46 ndash 120 d C) no iniacutecio do seu texto sobre a vida de Licurgo (Plu Lyc13) ressalta que havia diversos relatos contraditoacuterios e o seu trabalho foi reuni-los com o propoacutesito de manter a memoacuteria do ilustre espartano O que podemos supor das informaccedilotildees que foram obtidas eacute que Licurgo pode ter vivido entre os seacuteculos VIII e V O aspecto mais importante na declaraccedilatildeo de Plutarco eacute a constataccedilatildeo do progressivo desaparecimento das obras de Homero nesse periacuteodo Haacute diversas teses que tentam explicar esse fato atraveacutes da transiccedilatildeo entre a oralidade e a escrita (HAVELOCK 1982) De qualquer forma essa eacute uma informaccedilatildeo valiosa para os helenistas que estudam o alcance da obra de Homero e a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita na antiguidade 202 Vide Platatildeo (Rep 599 d) 203 Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 204 Como veremos posteriormente eacute bem provaacutevel que tivesse ocorrido uma crise social entre a classe aristocraacutetica e a dos trabalhadores (artesatildeos e campesinos) O aparecimento do poeta Hesiacuteodo apresenta vaacuterios indiacutecios para essa possiacutevel crise E para essa direccedilatildeo interpretativa encontramos o apoio dos helenistas Werner Jaeger e Jean-Pierre Vernant O historiador Moses Finley afirma que com o aparecimento da polis a populaccedilatildeo agraacuteria natildeo vivia em uma propriedade isolada mas ela tambeacutem fazia parte do espaccedilo da polis De qualquer modo isso talvez tenha sido mais um fator para a instauraccedilatildeo da crise social Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989

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disseminaccedilatildeo do uso da escrita entre as classes mais baixas Aliaacutes essa uacuteltima

hipoacutetese pode ser corroborada com o exemplo do proacuteprio Hesiacuteodo que se apresenta

como um poeta205 de origem modesta que cuidava do seu rebanho na encosta do

monte Heacutelicon206 Atraveacutes de uma de suas obras mais importantes intitulada como

Trabalho e os dias 207 podemos constatar que o foco da sua poesia natildeo eacute o mesmo

que o do seu predecessor Homero Enquanto que esse uacuteltimo estava empenhado em

realccedilar as caracteriacutesticas do nobre aristocraacutetico como um modelo para o homem

grego atraveacutes da imagem do heroacutei (JAEGER 1936) que busca a sua imortalidade

atraveacutes de uma morte gloriosa208 Hesiacuteodo estaacute preocupado em mostrar o valor do

trabalho como um instrumento para formaccedilatildeo humana Essa nova proposta

pedagoacutegica traz consigo grandes mudanccedilas dentro da estrutura social dos gregos

que podem ser localizadas em vaacuterios textos da Literatura grega O comedioacutegrafo

Aristoacutefanes por exemplo em uma de suas peccedilas209 apresenta para o seu puacuteblico

uma breve anaacutelise sobre o conteuacutedo que era ensinado por quatros importantes poetas

da Greacutecia210 e entre eles podemos encontrar esse traccedilo que marca a poesia desse

famoso campesino

205 Para esse ponto irei vamos nos basear em uma comunicaccedilatildeo que foi apresentada em 2011 na Semana dos Alunos de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Puc intitulada ldquoO canto de resistecircncia do Rouxinol sob as garras afiadas do Falcatildeo na idade do Ferro A poesia de Hesiacuteodo e seu desdobramento eacutetico-poliacutetico na Greacuteciardquo Nela eacute possiacutevel notar a diferenccedila entre a poesia homeacuterica e hesioacutedica Enquanto que na poesia de Homero vemos a elevaccedilatildeo de fundamentos de um ideal da classe aristocraacutetica onde seus versos formam a base para uma cultura que contempla a coragem e a determinaccedilatildeo entre os mais fortes com o surgimento de Hesiacuteodo esse paradigma se inverte a poesia se torna uma voz dos menos favorecidos e se faz presente dentro da polis como um importante canal de comunicaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo difundindo assim os preceitos dos camponeses para todos os gregos A partir dessa constataccedilatildeo foi traccedilado um paralelo entre os dois poetas e a suas respectivas influecircncias no campo eacutetico-social na Greacutecia antiga 206 Monte Heacutelicon (Ἑλικών ou Ηλικών transl Helikon [monte] tortuoso de ηλιξ heacutelix espiral em grego moderno Ελικώνας Elikoacutenas) eacute uma montanha na regiatildeo de Teacutespias na Beoacutecia Greacutecia que foi muito cultuada na mitologia grega Com uma altitude de 1749 metros acima do niacutevel do mar localiza-se proacuteximo ao Golfo de Corinto Esse eacute o lugar que Hesiacuteodo teria recebido das musas o canto sobre a origem dos deuses Aliaacutes o poeta Caliacutemaco conta uma histoacuteria similar a de Hesiacuteodo e situa no Heacutelicon o episoacutedio no qual Tireacutesias encontra Atena se banhando e acaba ficando cego poreacutem recebe o dom da profecia Vide hino V de Caliacutemaco em The Greek Anthology With an English Translation by W R Paton In five volumes London William Heinemann New York G P Putnams Sons MCMXVI The Loeb Classical Library 1916 207 Posteriormente veremos que esse trabalho foi um ldquodivisor de aacuteguasrdquo dentro da Literatura grega antiga 208 Vide o exemplo do heroacutei Aquiles na Iliacuteada (Canto XXII ndash 304-5) de Homero 209 Aristoacutefanes (As ratildes 1030-1036) 210 Essa passagem de Aristoacutefanes eacute de extrema importacircncia para os estudiosos da Paideia antiga pois a impressatildeo que temos eacute que no periacuteodo do comedioacutegrafo ndash no seacuteculo IV a C- cada poeta era responsaacutevel por um conteuacutedo especiacutefico dentro da educaccedilatildeo grega Esse programa pedagoacutegico estava divido nos seguintes pontos agricultura guerra religiatildeo sabedoria oracular orientaccedilatildeo moral e o conhecimento da medicina Haacute ainda mais duas outras hipoacuteteses que natildeo podem ser descartadas 1) cada um desses programas poderia estar a serviccedilo apenas da educaccedilatildeo de seus

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[1030] Eacutesquilo211 - Ora aiacute tens o tipo de assuntos com que se devem preocupar os poetas Senatildeo observa bem como desde

o princiacutepio os verdadeiramente bons se mostraram uacuteteis Orfeu ensinou-nos a celebrar os misteacuterios e a evitarmos os sacrifiacutecios Museu a cura das doenccedilas e os oraacuteculos Hesiacuteodo o trabalho da terra as estaccedilotildees das colheitas e as tarefas agriacutecolas e o divino Homero onde foi ele buscar fama e gloacuteria senatildeo agraves coisas uacuteteis que ensinou estrateacutegia coacutedigo militar equipamentos dos guerreiros212

Nesse sentido encontramos uma mudanccedila de paradigma que se opera no

interior da sociedade grega que reflete uma crise na estrutura social helecircnica A sua

poesia ruacutestica de origem campesina exprime o heroiacutesmo de uma classe social mais

humilde que trava uma luta diaacuteria e silenciosa com a terra dura que abastece todos

os nobres que vivem no conforto dos seus palaacutecios Ao olharmos a topologia da

Greacutecia com mais atenccedilatildeo encontramos um terreno muito acidentado com vales

estreitos que satildeo entrecortados por montanhas Esses fatores dificultavam o

cultivo213 e a sobrevivecircncia de uma cultura que era baseada atraveacutes da agricultura

de subsistecircncia e do pastoreio O historiador Heroacutedoto214 relembra esse fato em um

diaacutelogo entre o rei persa Xerxes e o grego Demarato que narra entre outras coisas

sobre a pobreza e as dificuldades enfrentadas pelo povo grego

respectivos membros 2) numa cultura extremamente agoniacutestica eacute bem provaacutevel que esses poetas disputassem entre si o cargo de grande pedagogo da Greacutecia E talvez seja por isso que o comedioacutegrafo apresente todos esses grupos em sua peccedila pois eles formavam a sua plateia como um todo De qualquer modo natildeo temos provas suficientes para validar essa tese apenas algumas pistas Vale ressaltar que a poesia eacute vista no debate entre Eacutesquilo e Euriacutepides como algo utilitaacuterio e didaacutetico Isso eacute algo irrefutaacutevel dentro desse contexto histoacuterico E mais o seu valor precisa ser avaliado a partir desse criteacuterio que visa o aperfeiccediloamento do homem grego Na Repuacuteblica Platatildeo vai utilizar esse mesmo crivo para estabelecer os pilares da sua polis ideal Logo seraacute necessaacuterio o filoacutesofo fazer uma anaacutelise minuciosa de toda a poesia do seu tempo para estabelecer uma nova proposta pedagoacutegica Aliaacutes dentro da peccedila de Aristoacutefanes esse eacute o leitmotiv que conduz a trama no submundo O diaacutelogo entre os dois poetas traacutegicos Esquilo e Euriacutepides eacute observado pelo deus Dioniso que eacute a divindade que representa o teatro Ele eacute o juiz da ldquodisputardquo - agon - entre esses dois importantes poetas traacutegicos Posteriormente voltaremos a falar sobre esse caraacuteter agoniacutestico dentro da educaccedilatildeo grega 211 Eacutesquilo estaacute no inferno junto com Euriacutepides e o deus Dioniso A cataacutebase - do grego κατὰ baixo βαίνω ir - corresponde a qualquer forma de descida no grego Na mitologia o termo eacute usado para se referir agrave descida ao inferno o mundo dos mortos esse eacute o cenaacuterio utilizado por Aristoacutefanes pois na mitologia antiga esse era o lugar onde vaacuterios personagens buscavam conhecimento Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do interessante livro do professor Eudoro de Sousa Vide SOUSA E Cataacutebases estudos sobre viagens aos infernos na Antiguidade Satildeo Paulo Annablume Claacutessica 2013 212 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e comentaacuterio de Maria de Faacutetima Silva ldquoSeacuterie Autores Gregos e Latinosrdquo editora Annablume 2014 213 Vide Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso livro I -II) 214 Heroacutedoto (Hist VII-CII)

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[CII] ldquoPois bem senhor mdash tornou Demarato mdash jaacute que assim o desejais dir-vos-ei a verdade e natildeo duvideis jamais daqui por diante de quem usar da mesma linguagem Os Gregos tecircm sido criados na escola da pobreza e a virtude215 a ela se junta filha da temperanccedila e das leis estaacuteveis dando-nos armas contra a pobreza e a tirania Os Gregos que habitam as regiotildees vizinhas aos Doacuterios mdash para citar apenas esses como exemplo mdash sempre se houveram com dignidade bravura e nobreza drsquoalma sendo por isso dignos de todos os louvores Ouso afirmar senhor que eles natildeo soacute natildeo ouviratildeo as vossas propostas que tecircm por fim submeter a Greacutecia como estaratildeo decididos a ir ao vosso encontro e oferecer-vos batalha mesmo que os outros povos gregos disso se abstenham Quanto ao seu nuacutemero senhor qualquer que ele seja natildeo influiraacute na sua decisatildeo de resistir Tivessem eles um exeacutercito de apenas mil homens e nem por isso deixariam de oferecer-vos combaterdquo

Esse relato apresenta para noacutes um panorama geral da vida do homem do

campo que encontramos na descriccedilatildeo feita por Hesiacuteodo Atraveacutes do texto do poeta

podemos localizar o ponto exato de distanciamento dos ideais aristocraacuteticos que satildeo

defendidos por Homero e o momento em que a poesia passa a ser um veiacuteculo de

contestaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de uma classe de trabalhadores que vive distante do centro 216

Eacute importante ressaltar que essas inovaccedilotildees trazidas por Hesiacuteodo foram feitas

a partir da estrutura tradicional da poesia homeacuterica que era utilizada por diversos

rapsodos como Iacuteon217 O alcance e a aceitaccedilatildeo do seu trabalho dependiam

fundamentalmente do pleno domiacutenio das regras de composiccedilatildeo oral que passam

pelo conhecimento da mitologia das teacutecnicas de construccedilatildeo mnemocircnica e dos

esquemas riacutetmicos como os hexacircmetros dactiacutelicos218 que formam a estrutura da

eacutepica antiga Sem o conhecimento dessas teacutecnicas dificilmente o poeta poderia

obter ecircxito em seu objetivo Para operar a desconstruccedilatildeo ele precisa partir do

215 Excelecircncia (ἀρετή arete) 216 Estamos partindo do pressuposto que nesse periacuteodo jaacute houvesse uma espeacutecie de espaccedilo (preacute-polis) ldquocentralizadordquo que foi passando por diversas modificaccedilotildees ateacute o momento do surgimento da polis Eacute importante ressaltar que natildeo encontramos o termo polis nos escritos de Homero e Hesiacuteodo Todavia isso natildeo nos fornece o direito de afirmar que nesse periacuteodo natildeo existisse uma distinccedilatildeo espacial entre os habitantes que viviam nos campos e aqueles que habitavam em um espaccedilo ldquocomumrdquo perto dos templos religiosos 217 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 218 Hexacircmetro datiacutelico (do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida(s)) ou hexacircmetro heroacuteico eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica tanto grega quanto latina como por exemplo a Iliacuteada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgiacutelio Eacute a mais importante forma meacutetrica usada na poesia eacutepica da Greacutecia Antiga

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interior da tradiccedilatildeo utilizando as mesmas armas do seu oponente219 de modo

metoacutedico Com isso o poeta vai inserindo as suas novas alteraccedilotildees de forma e

conteuacutedo no modelo tradicional poeacutetico para afirmar o seu distanciamento da obra

homeacuterica220 e demarcar a sua posiccedilatildeo como um pretendente ao cargo de educador221

da Greacutecia222 Logo essas mudanccedilas natildeo ocorreram de modo radical mas de forma

sutil e progressiva223 Essa competiccedilatildeo acirrada entre esses dois poetas apresenta

para noacutes outra caracteriacutestica importante que marcou de modo determinante esse

periacuteodo de transiccedilatildeocrise na cultura helecircnica o espiacuterito agonistico

Os gregos descobriram uma forma genuiacutena para superar e elevar ao maacuteximo

os limites da nossa passageira e fraacutegil existecircncia E isso ocorre atraveacutes da poesia

que tem o poder de transformar toda a negatividade e o sofrimento em belas

imagens apoliacuteneas que passam a serem utilizadas como um modelo eacutetico atraveacutes da

arte que atua como um dispositivo necessaacuterio para orientar a vida humana Segundo

Nietzsche (NIETZSCHE 1870) os helenos possuiacuteam uma capacidade singular de

sentir o sofrimento e de saber reconhecer 224 o quatildeo miseraacutevel eacute a vida dos mortais

E com essa triste constataccedilatildeo poderiam facilmente seguir o caminho do pessimismo

e da negaccedilatildeo da vida como outrora seguiu o seu mestre Arthur Schopenhauer Mas

eacute exatamente aiacute que o povo heleno demonstra a sua maior grandeza ao converter

toda a negatividade do mundo em uma potecircncia criadora A arte e a religiatildeo

surgem para os gregos com a funccedilatildeo de tornar a nossa existecircncia suportaacutevel A

poesia de Homero e Hesiacuteodo atua como filtros que decantam a tristeza e a dor obtida

por experiecircncias traacutegicas do passado em imagens profundamente belas e uacuteteis A

religiatildeo apoliacutenea por exemplo eacute um modo eficaz de divinizar todas essas forccedilas

219 Utilizando os mitos e a crenccedila do povo campesino como meio de expressatildeo para alcanccedilar a adesatildeo dos seus pares 220 Algo similar ocorreu com o grande poeta Dante Alighieri na composiccedilatildeo da ldquoDivina comeacutediardquo pois ele natildeo quis escrever a sua obra em latim ndash que era liacutengua dos nobres e intelectuais da sua eacutepoca - mas utilizando o italiano vulgar E com isso Dante e posteriormente Petrarca ao se distanciarem da tradiccedilatildeo culta que vigorava naquele periacuteodo ajudaram a construir os fundamentos da liacutengua italiana atual Curiosamente esse mesmo fato ocorre na poesia de Hesiacuteodo diante da tradiccedilatildeo da sua eacutepoca Pois como veremos a seguir nesse presente trabalho ele foi responsaacutevel por diversas transformaccedilotildees no interior da cultura helecircnica 221 Vide Platatildeo (Rep 607 a) e tambeacutem DK (Xenoacutefanes - frag 10) 222 Vide o primeiro capiacutetulo 223 Vide os seguintes livros ldquoTeogoniardquo e tambeacutem ldquoTrabalhos e os diasrdquo Haacute diversas diferenccedilas que foram registradas por vaacuterios especialistas entre essas duas obras Para noacutes isso demonstra o distanciamento de Hesiacuteodo em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica que estaacute em plena consonacircncia com as mudanccedilas que ocorreram nesse periacuteodo de transiccedilatildeo e crise na Greacutecia 224 Vide o primeiro capiacutetulo

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225 que estatildeo acima do nosso controle em arqueacutetipos que refletem as qualidades e

defeitos inerentes agrave condiccedilatildeo humana Em alguns fragmentos dos filoacutesofos preacute-

socraacuteticos eacute possiacutevel encontrarmos ecos dessa experiecircncia agoniacutestica que foi

profundamente importante para o nascimento da Filosofia e do Teatro Heraacuteclito226

por exemplo foi um dos primeiros filoacutesofos a ldquoreconhecerrdquo a guerra como um

princiacutepio regulador de todas as coisas

ldquoo combate eacute de todas as coisas pai de todas rei e uns revelou deuses outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo227

E ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes nasce a mais bela

harmonia e tudo segundo a discoacuterdiardquo 228

Essa identificaccedilatildeo com um tipo de experiecircncia que afirma a oposiccedilatildeo entre

duas229 ou mais ldquoforccedilasrdquo como algo afirmativo eacute uma qualidade que parece ter

surgido em uma eacutepoca bem remota no pensamento dos gregos pois em Homero e

Hesiacuteodo eacute possiacutevel encontrarmos resquiacutecios dessa ideia230 Na Iliacuteada por exemplo

podemos notar que os cantos eacutepicos exaltam as accedilotildees dos guerreiros que buscam a

imortalidade atraveacutes de uma morte gloriosa Nesse contexto a morte e o sofrimento

ganham caracteriacutesticas positivas que insuflam o desejo de superaccedilatildeo e nobreza na

alma helecircnica Para Homero o homem adquire a sua dignidade e respeito quando

225 Vide o primeiro capiacutetulo 226 Posteriormente veremos como Heraacuteclito tambeacutem foi um grande criacutetico da tradiccedilatildeo homeacuterica Com isso encontramos mais outro exemplo desse caraacuteter agoniacutestico que marcou o pensamento antigo De qualquer modo eacute necessaacuterio ressaltar que essa ideia segundo Nietzsche jaacute poderia ser encontrada na poesia de Homero 227 DK (Heraacuteclito-Frag IX 9) 228 ἔριςeris Aristoacuteteles (Eacutetica Nic VIII 2 1155 b 4) A deusa Eacuteris eacute conhecida na mitologia como a deusa da discoacuterdia Em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo e na ldquoTeogoniardquo o poeta Hesiacuteodo fala da sua importacircncia e da sua origem Esse eacute outro ponto que ele segue a tradiccedilatildeo homeacuterica pois eacute nele que a deusa aparece pela primeira vez citada em um texto escrito 229 Essa experiecircncia agoniacutestica eacute tatildeo marcante que podemos encontraacute-la como uma ferramenta linguiacutestica que foi utilizada na retoacuterica claacutessica com o nome de Oxiacutemoro (do grego ὀξύmicroωρον composto de ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) Ela eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo ou locuccedilatildeo palavras que exprimem conceitos contraacuterios Vide os fragmentos de Heraacuteclito 230 Eacute importante ressaltar que o primeiro a trazer essa ideia a partir das consideraccedilotildees de Nietzsche foi Homero Em seguida veremos que Hesiacuteodo parte dessa tradiccedilatildeo mas com um sentido bem distinto do seu antecessor

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atua com extrema bravura durante os combates 231 Nesse sentido o poeta tem

como dever escrever os seus atos que serviratildeo de modelo para a educaccedilatildeo militar

dos jovens nobres Eacute atraveacutes dessa experiecircncia que o homem pode se aproximar do

Olimpo tornando-se um heroacutei imortal Dentro desse novo contexto o termo

disputa232 passa a pautar todas as experiecircncias e atividades da cultura grega Como

vimos anteriormente a poesia deu um caraacuteter de positividade a uma experiecircncia de

horror que eles conheciam profundamente atraveacutes de inuacutemeras guerras travadas na

antiguidade

ldquoO Terror e o Temor Acorriam (a Discoacuterdia sanha que natildeo cessa irmatilde soacutecia de Ares matador-de-gente desponta diminuta e cresce e entesta com o ceacuteu e calca a terra dor e furor pelas tropas lanccedilando) Quando guerreiros enfim se datildeo de encontro frente agrave frente e os broqueis se entre batem e se entre chocam o vigor das lanccedilas dos homens todo-bronze encouraccedilados contra os escudos bojudos como umbigos ergue-se um tumulto de gritos de dor e de triunfo dos que vatildeo trucidando e dos que estatildeo morrendo e o sangue jorra sobre a terra e a inundardquo233

O impulso de destruiccedilatildeo eacute agora domesticado e desconstruiacutedo em prol da

afirmaccedilatildeo da existecircncia que tem a competiccedilatildeo como o criteacuterio que estimula a

superaccedilatildeo de si a partir do dialogo estabelecido com os outros 234 Em todas as

expressotildees do pensamento antigo encontramos reflexos dessa experiecircncia

agoniacutestica que marca de modo determinante a Educaccedilatildeo (παιδείαpaideia) e o

surgimento da polis Para os gregos esse modelo pedagoacutegico era necessaacuterio para

estimular o aperfeiccediloamento em todos os niacuteveis da sociedade235

Na Paideacuteia Jaeger ressalta que eacute possiacutevel encontramos os rastros de diversos

dialetos antigos nos poemas homeacutericos que apontam que esse patrimocircnio foi

231 Nos proacuteximos paraacutegrafos veremos como essa palavra foi importante para estimular a evoluccedilatildeo do homem dentro da cultura grega 232 ἀγώνaacutegon 233 Homero (Iliacuteada - IV 440-443) Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 234 A alteridade que abrange natildeo apenas os indiviacuteduos mas a proacutepria phyacutesis 235 Os jogos oliacutempicos eacute um exemplo dessa experiecircncia agoniacutestica Os gregos inventaram os agones que eram competiccedilotildees de cunho religioso como o atletismo teatro muacutesica poesia e pintura com o intuito de cultuarem os deuses e os heroacuteis miacuteticos A poesia tambeacutem tinha a responsabilidade de manter essa experiecircncia viva dentro da memoacuteria coletiva helecircnica Essa foi a forma encontrada para superar esse sentimento de relatividade que estava imanente ao processo de transformaccedilatildeo e decadecircncia do tempo (vide Heraacuteclito e Protaacutegoras) Com isso eles conseguiram a imortalidade superando com intensa beleza os limites de nossa existecircncia fraacutegil e mortal

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constituiacutedo com a ajuda de vaacuterios povos Essa contribuiccedilatildeo coletiva na composiccedilatildeo

desses poemas orais pode ter sido uma causa importante para estabelecer uma

unificaccedilatildeo pelo idioma entre essas polis que foram surgindo em vaacuterios pontos do

Mediterracircneo e da Europa236 De qualquer modo eacute praticamente impossiacutevel

sabermos com precisatildeo como isso ocorreu de fato Os escassos relatos que temos

natildeo podem nos passar muitas informaccedilotildees sobre as suas origens Alguns

testemunhos fornecidos por Heroacutedoto Tuciacutedides Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e

Plutarco nos datildeo algumas pistas de como eram constituiacutedas essas cidades-

estados237 Dentro desses relatos conseguimos obter algumas informaccedilotildees preciosas

de cidades como Esparta por exemplo Aliaacutes depois de Atenas ela foi uma das

mais importantes polis do mundo antigo Segundo o depoimento de Xenofonte238

os lacedemocircnios foram homens extremamente virtuosos ateacute o momento da sua ruiacutena

que foi causada pela corrupccedilatildeo dos seus membros239 A sua enorme admiraccedilatildeo pelo

regime poliacutetico espartano demonstra para noacutes uma insatisfaccedilatildeo latente com os

rumos que democracia estava tomando em Atenas Esse descontentamento aliaacutes

era compartilhado por filoacutesofos como Platatildeo e Soacutecrates240 O jornalista americano

236 Pausacircnias (Descda Greacutecia -1041) apresenta alguns pontos determinantes para a constituiccedilatildeo de uma polis condiccedilotildees sociais culturais e poliacuteticas Referente agrave sua arquitetura ela deve conter praccedilas templos e teatro Enquanto que Aristoacuteteles (Pol1330 a34) dizia que a constituiccedilatildeo da polis depende de quatro pontos fundamentais sauacutede defesa beleza e adequaccedilatildeo agrave atividade poliacutetica Segundo Finley o termo polis era utilizado pelos antigos com dois sentidos O primeiro para a cidade em sentido estrito e o segundo no sentido poliacutetico Para Platatildeo e Aristoacuteteles a polis surge devido agrave incapacidade das duas formas de associaccedilatildeo humana (famiacutelia e o agrupamento de parentesco maior) Com o objetivo de alcanccedilar a plenitude existencial de seus cidadatildeos eles constroem um espaccedilo autossuficiente e autaacuterquico O historiador ainda acrescenta que mesmo os agricultores que viviam distante da cidade (centro urbano) fazia parte dessa unidade que forma a polis Todavia isso natildeo isenta o fato de ter havido ndash como apresentamos anteriormente- uma luta de classes - entre ricos e pobres ndash no interior da polis As discussotildees ocorriam em torno da propriedade e posse das terras entre aqueles que eram fazendeiros-fidalgos (que viviam no conforto da cidade) e os lavradores que sobreviviam a duras penas na regiatildeo rural Ou seja entre homens que viviam no oacutecio e outros que trabalhavam para sustentar essa mordomia Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989 237 Dioacutegenes de Laeacutercio (DL V-27) menciona uma obra de Aristoacuteteles conhecida na antiguidade pelo seguinte nome ldquoConstituiccedilotildees de 158 Cidades em geral e em particular das democraacuteticas oligaacuterquicas aristocraacuteticas e tiracircnicasrdquo Atraveacutes desse tiacutetulo podemos tirar duas informaccedilotildees valiosiacutessimas para o estudo dessas cidades-estados A primeira eacute a informaccedilatildeo da existecircncia de 158 polis ateacute o periacuteodo do filoacutesofo A segunda eacute o fato de haver pelo menos quatro formas de governo que eram aplicadas nessas cidades Essa obra poderia fazer parte dos estudos do filoacutesofo sobre a poliacutetica que incluem tambeacutem o livro da Constituiccedilatildeo dos Atenienses que vamos analisar em seguida 238 Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios I-1) em Xeacutenophon Oeuvres complegravetes trad Pierre Chambry Garnier-Flammarion 3 vol 1967 239 Ibidem Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios XIV-3 ) 240 Na Repuacuteblica sobretudo no livro VIII Platatildeo faz diversas criacuteticas ao regime democraacutetico ateniense

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IF Stone (STONE 1988) em seu famoso livro sobre o julgamento de Soacutecrates

investigou esse ponto que foi determinante para o processo que foi levantado contra

o filoacutesofo Nesse momento em Atenas havia ainda uma divergecircncia poliacutetica

antiga241 entre a definiccedilatildeo de cidadania entre os gregos O problema girava em torno

das seguintes questotildees a cidadania deveria ser restrita como na oligarquia ou

aberta como na democracia A polis deve ser governada pela minoria ou maioria

Pelos ricos ou pelos pobres Essas questotildees geravam intensos debates entre

diversos pensadores na antiguidade Podemos ter uma ideia dessa tensatildeo242 nas

paacuteginas dos textos escritos por Aristoacuteteles na Poliacutetica e na Constituiccedilatildeo dos

atenienses Nas obras de Platatildeo e Xenofonte243 eacute possiacutevel constatar que Soacutecrates

era um grande criacutetico dos dois modelos apresentados por seus conterracircneos pois

para ele a cidade natildeo deve ser governada pela maioria ou minoria mas por aquele

que sabe 244 E essa postura criacutetica e o seu envolvimento pessoal com figuras

polecircmicas como Alcibiacuteades e Criacutetias245 foram responsaacuteveis por influenciar a

decisatildeo de vaacuterios atenienses no desfecho do julgamento que culminou na sua

sentenccedila de morte Para muitos helenistas essa histoacuteria apresentou para o mundo

uma grande ironia que teve um desfecho traacutegico pois o projeto pedagoacutegico

socraacutetico que era fundamentado na anaacutelise de todas as opiniotildees (doxa) e que visava

o aperfeiccediloamento dos cidadatildeos fora o que mais causava incocircmodo entre os

atenienses naquele momento Muitos homens e jovens estavam completamente

cegos e surdos por causa do efeito ilusoacuterio provocado pela persuasatildeo sofiacutestica246 A

morte do filoacutesofo eacute um retrato do desequiliacutebrio que se alastrava dentro do sistema

poliacutetico ateniense

241 Vide Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses livro II) 242 Como foi dito por noacutes no primeiro capiacutetulo desse presente trabalho essa tensatildeo social era um fenocircmeno que foi apontado por Hesiacuteodo e posteriormente por Aristoacuteteles 243 Platatildeo (Repuacuteblica e Poliacutetico) e Xenofonte (Memoraacuteveis e a constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios) 244 Vide Platatildeo (Rep V - 473 d) 245 O poliacutetico Alcibiacuteades foi acusado de traiccedilatildeo e o segundo foi responsaacutevel pelo golpe contra Atenas conhecido como a tirania dos trintas tiranos Para mais informaccedilotildees vide Xenofonte (Memoraacuteveis - 111 e 1212-16) Platatildeo (Apol - 33a-b) Dioacutegenes Laeacutercio (DL - 240) 246 Some-se a isso a imagem negativa pintada por Aristoacutefanes que foi um nobre comedioacutegrafo que prezava pela tradiccedilatildeo e rechaccedilava qualquer novidade no acircmbito da Educaccedilatildeo e da Cultura Em uma das suas peccedilas mais famosas conhecida desde a antiguidade sob o nome de ldquoAs nuvensrdquo o escritor mira a sua criacutetica corrosiva em direccedilatildeo da sofiacutestica Curiosamente ele elenca Soacutecrates como um daqueles homens responsaacuteveis pela decadecircncia ateniense Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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32 Entre a oralidade e a escrita

Nesse periacuteodo a praacutetica oral comeccedila a disputar espaccedilo com as inuacutemeras

possibilidades oferecidas por esse importante instrumento de comunicaccedilatildeo Antes

da reintroduccedilatildeo da escrita a oralidade era o uacutenico suporte utilizado para que a

realeza micecircnica pudesse organizar e controlar suas financcedilas (VERNANT 1962)

Para Milman Parry (PARRY 1971) as obras de Homero foram construiacutedas a partir

de uma composiccedilatildeo oral extremamente sofisticada Caso ele esteja certo podemos

supor que a poesia homeacuterica pode ter sido fruto de um tempo onde esse sistema de

comunicaccedilatildeo ainda era desconhecido ou pouco utilizado como suporte mnemocircnico

Todavia eacute notoacuterio que posteriormente a escrita comeccedila a atuar de modo mais amplo

dentro da sociedade grega E graccedilas a ela eacute que hoje podemos ter acesso a diversas

obras do passado Como vimos anteriormente247 Licurgo jaacute aparece em um periacuteodo

no qual a escrita estava sendo utilizada com a funccedilatildeo de salvar as composiccedilotildees orais

que estavam desaparecendo na antiguidade248 Eacute a partir desses indiacutecios eacute que

podemos rastrear o processo revolucionaacuterio que esse instrumento propiciou aos

gregos

Entre os seacuteculos VII e V eacute possiacutevel encontrar os primeiros documentos

escritos249 de cunho privado poliacutetico e religioso A Literatura escrita comeccedila a se

difundir consideravelmente em todas as partes da Greacutecia Em seu livro

Xenofonte250 relata um importante incidente que demonstra para noacutes a raacutepida

difusatildeo de obras escritas na antiguidade Ele narra que em sua eacutepoca ocorreu um

naufraacutegio de um navio que continha uma consideraacutevel carga de livros 251 Essa

suacutebita proliferaccedilatildeo literaacuteria aponta para um novo tempo em que o letramento e a

escrita jaacute natildeo eram apenas restritos ao ciacuterculo da aristocracia Isso reforccedila a nossa

hipoacutetese inicial de que esse fator pode ter desencadeado um processo de

247 Vide o subcapiacutetulo anterior 248 Esse depoimento de Plutarco revela dois fatos a deterioraccedilatildeo da teologia homeacuterica e da tradiccedilatildeo oral 249 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 18-19 250 Vide Xenofonte (Anaacutebase 7514) 251 βίβλοςbiblos

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conscientizaccedilatildeo coletiva que surge a partir do desgaste da antiga tradiccedilatildeo homeacuterica

Aliaacutes o mau uso dessa ferramenta despertou severas criacuteticas de Platatildeo252 Por volta

do seacuteculo IV aC a escrita vinha sendo utilizada intensamente dentro de vaacuterios

setores da sociedade grega inclusive no processo educacional A criacutetica do filoacutesofo

parece revelar uma proliferaccedilatildeo sem controle de inuacutemeros textos que estavam sendo

veiculados sem o rigor criacutetico que o seu mestre tanto prezava Essa propagaccedilatildeo

desmedida de opiniotildees253estava gerando um terriacutevel efeito colateral no sistema

poliacutetico social grego Algo similar ao que ocorre em nossa atual sociedade com o

jornalismo e a imprensa em geral

Contudo eacute importante ressaltar que no periacuteodo claacutessico ainda existia um grande

descompasso entre a atividade de ler e escrever Havia uma desigualdade entre os

nuacutemeros de leitores e escritores254 que era resultado da tensatildeo existente entre a

oralidade e escrita e do processo confuso de alfabetizaccedilatildeo que teria sido iniciado

por Soacutelon em Atenas255 A leitura de algum texto entre os seacuteculos V e IV ainda era

feita por escravos instruiacutedos assim como o trabalho de contabilidade feito pelos

escribas na antiga realeza micecircnica Eacute provaacutevel que o processo de alfabetizaccedilatildeo do

povo seguisse algum padratildeo especiacutefico que permitisse apenas um acesso miacutenimo

atraveacutes da leitura das obrigaccedilotildees e dos direitos256 Eacute notoacuterio que por volta do seacuteculo

V aC o processo de formaccedilatildeo de uma parte dos jovens era privado257 e tinha a

finalidade de formar bons oradores para os debates que ocorriam na Aacutegora258 Esse

era um tipo de conhecimento que natildeo era acessiacutevel para o povo pois aleacutem de caro

era uma poderosa ferramenta de ascensatildeo poliacutetica e social De todo modo essa

instruccedilatildeo estava disponiacutevel ao lado daquela educaccedilatildeo baacutesica oferecida pelo

252 Platatildeo (Fedro - 274c-275b) 253 δόξα doxa 254 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 14 255 Havelock sugere que esse processo de alfabetizaccedilatildeo possa ter ocorrido a partir do seacuteculo VI aC no periacuteodo de atuaccedilatildeo de Soacutelon Mas o mesmo ressalta que isso eacute apenas uma suposiccedilatildeo que se baseia em passagens de alguns diaacutelogos de Platatildeo (Prot 325 e ndash 326c-e e Caacutermides 159 c) em um periacuteodo bem posterior a Soacutelon Contudo baseado nas informaccedilotildees de Xenofonte sobre a Constituiccedilatildeo de Esparta eacute bem provaacutevel que houvesse um ensino oferecido pelo Estado em Atenas Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 pp 213 nota 4 256 Ibidem 257 Ou seja ele era adquirido para todos que pudessem pagar o serviccedilo oferecido pelos sofistas 258 Aacutegora (ἀγορά assembleia lugar de reuniatildeo derivada de ἀγείρω reunir) Espaccedilo comum onde os cidadatildeos se reuniam para discutir sobre questotildees poliacuteticas

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Estado259 Logo os sofistas surgiram com o intuito de suprir uma necessidade social

e poliacutetica que surgiu nesse momento de abertura democraacutetica em Atenas

Para o historiador Rosalind Thomas (THOMAS 1992) os padrotildees que

determinavam a utilizaccedilatildeo da escrita e da oralidade eram totalmente distintos dos

que satildeo empregados por noacutes atualmente A antiga retoacuterica por exemplo ainda se

baseava na forccedila da oralidade que ainda era responsaacutevel por decidir as questotildees

mais importantes no acircmbito juriacutedico poliacutetico social e pedagoacutegico Logo a escrita

parece travar um conflito direto com essa antiga praacutetica260 Aleacutem de Platatildeo o sofista

Alcidamas pupilo de Goacutergias foi um grande expoente da retoacuterica grega que

tambeacutem teceu diversas criacuteticas ao papel desempenhado pela escrita em seu

tempo261 Essa tensatildeo existente entre essas formas de comunicaccedilatildeo sinaliza dois

importantes fatos para noacutes o primeiro eacute a disseminaccedilatildeo do letramento entre as

vaacuterias classes sociais Essa inclusatildeo parece estar a serviccedilo do novo modelo da

constituiccedilatildeo poliacutetica que surgiu apoacutes o decliacutenio da monarquia Ou seja essa praacutetica

eacute empregada apenas para que todos os cidadatildeos possam respeitar a legislaccedilatildeo que

comeccedila a entrar em vigor quando as decisotildees satildeo expostas no Poacutertico Real262

Todavia isso natildeo impede que essa praacutetica posteriormente venha desempenhar

outras funccedilotildees dentro da sociedade grega

O uacuteltimo ponto surge de um argumento ex silentio eacute provaacutevel que o contato

com o letramento pelo acircmbito juriacutedico possa ter despertado nas classes mais

humildes a iniciativa de usar esse novo instrumento como uma ferramenta de

expressatildeo conscientizaccedilatildeo e de denuacutencia263 Essa forccedila silenciosa de resistecircncia

pode ter sido uma das causas para estimular o surgimento de um pensamento mais

criacutetico que foi capaz de efetuar uma grande revoluccedilatildeo dentro da cultura helecircnica

259 Gramaacutetica Aritmeacutetica e Ginaacutestica 260 No caso de Platatildeo o tipo de composiccedilatildeo escrita mimetiza a primazia da oralidade Essa carateriacutestica eacute um fator que natildeo pode ser omitido pelos estudiosos pois Platatildeo eacute um dos que demarca atraveacutes de sua obra a ldquocriserdquo entre esses dois meios de expressatildeo na antiguidade 261 Para mais informaccedilotildees sobre esse interessante sofista recomendamos a leitura do seguinte livro Alcidamas ldquoThe Works and Fragmentsrdquo (Greek Texts) by John Muir 1 edition First published in 2001 262 Στοά ΒασίλειοςStoaacute Basileios 263 Essa nossa hipoacutetese eacute traccedilada a partir da obra de Hesiacuteodo Para mais informaccedilotildees vide o seguinte artigo ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo revista IacutetacaUfrj 2015

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Logo podemos supor que a decadecircncia da teologia homeacuterica possa ter levado o

enfraquecimento dessa tradiccedilatildeo que se sustentava na forccedila da oralidade dos antigos

rapsodos E isso pode ter gerado uma abertura que propiciou o acesso de um nuacutemero

maior de pessoas as teacutecnicas mnemocircnicas e de composiccedilatildeo que foram essenciais

para a elaboraccedilatildeo de uma prosa poeacutetica que marcou determinantemente a cultura

grega264

A expansatildeo dessas artes que antes estavam sob o domiacutenio exclusivo da

aristocracia guerreira desencadeou diversas transformaccedilotildees que afetaram

diretamente a subjetividade coletiva grega Vimos anteriormente265 que o aedo era

o uacutenico responsaacutevel pela funccedilatildeo de comunicaccedilatildeo e memoacuteria na antiga civilizaccedilatildeo

micecircnica Apoacutes o advento do alfabeto o pensamento grego vai se desenvolvendo

simultaneamente com as mudanccedilas trazidas pela crise Essa nova linguagem

atravessa a realidade do indiviacuteduo que comeccedila a expressar seus valores e anseios

que agora natildeo satildeo mais pautados apenas nos deuses mas naquele que passa a ser a

medida de todas as coisas o homem266 Essa eacute a nova realidade que vai orientar a

Poesia e a Filosofia desse tempo Essa criatura mortal adquire o poder de domesticar

o loacutegos (o fogo ndash mito de Prometeu) 267 para atender as necessidades que surgem

dentro desse novo espaccedilo social e poliacutetico Nesse momento a palavra ganha uma

vestimenta mais soacutebria fixa e objetiva E nesse sentido a poesia de Hesiacuteodo foi

uma influecircncia determinante para alavancar essas grandes mudanccedilas dentro da

sociedade grega

264 E que propiciou que a poesia fosse praticada por homens do campo como Hesiacuteodo 265 Vide o primeiro capiacutetulo 266 Vide Protaacutegoras (DK - Fr B I) 267 Esse mito de Hesiacuteodo jaacute traz algumas ideias que refutam a teologia homeacuterica Para o grande Protaacutegoras essa dimensatildeo metafoacuterica engloba entre outras coisas a capacidade de astuacutecia (Μῆτιςmeacutetis) e de adaptaccedilatildeo sob condiccedilotildees hostis que foi importante para a evoluccedilatildeo da humanidade atraveacutes da manipulaccedilatildeo e desenvolvimento do loacutegos E eacute nesse momento que ele retoma o pensamento do grande Heraacuteclito pois o ldquofogordquo (πυράpyraacute) para o efeacutesio eacute a proacutepria imagem do Logos que estaacute presente em todas as coisas a partir de uma ldquomedidardquo (microέτρονmetron) Assim como fizera Heraacuteclito outrora Protaacutegoras opera uma brilhante transposiccedilatildeo entre Loacutegos (λόγος) e Deus (θεόςTheos) como uma convenccedilatildeo (νόmicroοςnomos) que foi criada pelos homens Ou seja o deslocamento feito pelo sofista eacute genial pois a ideia que estaacute subtendida no mito agora eacute atraveacutes da forccedila do loacutegos o homem se torna a medida de todas as coisas (πάντων χρηmicroάτων microέτρον έστιν άνθρωποςpanton chrematon metron estiacuten anthropos) Coincidentemente Heraacuteclito e Hesiacuteodo satildeo dois autores que influenciaram esse sofista Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do primeiro capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013

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Em Os trabalhos e os dias podemos encontrar um dos primeiros recortes

histoacutericos que foi efetuado pelo poeta Esse texto apresenta a imagem do tempo

presente que marca esse contraste com a tradiccedilatildeo homeacuterica Em seus versos haacute um

retrato quase jornaliacutestico268 das mazelas vivenciadas pelo seu povo Essa

abordagem eacute projetada com um olhar criacutetico e incisivo que denuncia a pressatildeo

exercida pelos nobres sobre o povo mais humilde Diferentemente de Homero o

poeta fala atraveacutes da primeira pessoa269 pois nomeia se a si mesmo no seu canto

que apresenta o nascimento dos deuses 270 Nesse momento ele fala sobre a sua

proacutepria experiecircncia existencial em um tempo e lugar determinados Essa sua

assinatura eacute o que tenta fornecer o tom de veracidade 271 que o seu relato visa passar

Com isso ele inaugura um sentido historiograacutefico que foi essencial para o

desenvolvimento da prosa que vamos encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides

posteriormente Uma tendecircncia individualizadora que natildeo pode ser confundida em

hipoacutetese alguma com a nossa experiecircncia moderna272 Pelo contraacuterio em Hesiacuteodo

esse traccedilo marcante eacute a proacutepria imagem da conquista da autonomia da subjetividade

coletiva dos trabalhadores humildes O poeta reuacutene em si mesmo o grito de dor do

povo e o expressa de modo exemplar em seus versos para que os mesmos

trabalhadores possam encontrar um alento uma voz que clama por justiccedila e

igualdade e que serve de apoio para enfrentar seus opressores com coragem e

prudecircncia Para isso o poeta precisa desenvolver um encadeamento loacutegico

especiacutefico que visa desconstruir o ideal aristocraacutetico homeacuterico e pontuar as accedilotildees

injustas praticadas contra o seu povo e expressaacute-las de um modo coerente E eacute nesse

sentido que o seu trabalho seraacute uma importante referecircncia para o surgimento da

prosa aacutetica

268 Uma abordagem factual 269 Eacute importante ressaltar aqui que o uso da primeira pessoa desempenha uma funccedilatildeo inovadora dentro da antiga poesia Primeiro porque Hesiacuteodo parece ter a intenccedilatildeo de demarcar uma diferenciaccedilatildeo entre o seu trabalho e dos outros poetas Em segundo lugar o poeta utiliza a sua poesia como um instrumento que expressa a exploraccedilatildeo sofrida pelo seu povo 270 Hesiacuteodo (Teogonia ndash v 25) 271 O sentido de verdade aqui eacute de algo que natildeo pode ser esquecido 272 Como o cogito ergo sum de Descartes Essa tendecircncia que vemos em Hesiacuteodo tem o sentido de unificaccedilatildeo de toda uma consciecircncia coletiva de um determinado grupo social que claramente se opotildee como foi exposto anteriormente a classe aristocraacutetica que foi educada pela poesia homeacuterica Ao trazer esse clamor para a primeira pessoa ele impotildee ao seu relato um tom factual que eacute importante para tornar veriacutedico o seu relato

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Com a dessacralizaccedilatildeo do poder poliacutetico a prosa surge como uma expressatildeo

inovadora ao lado da divulgaccedilatildeo das leis escritas273 Para o sucesso de tal objetivo

se faz necessaacuterio um texto que possa transmitir de modo direto os novos ideais e

normas atraveacutes de proposiccedilotildees claras e universalmente vaacutelidas Esse texto tem o

intuito de ser acessiacutevel para todos os membros da polis Eacute nesse ponto que podemos

identificar mais um traccedilo que nos permite ver o distanciamento com a tradiccedilatildeo

poeacutetica anterior Mas eacute importante ressaltar que esse fenocircmeno natildeo ocorreu de

modo radical Pelo contraacuterio ele coexistiu com as outras formas de expressatildeo que

ainda era cultividas pela tradiccedilatildeo popular De qualquer modo essa novidade

promoveu muita polecircmica entre os intelectuais do periacuteodo claacutessico Para

entendermos esse ponto eacute necessaacuterio levarmos em consideraccedilatildeo a crise de valores

que a antiga tradiccedilatildeo homeacuterica sofreu a partir dessas mudanccedilas poliacuteticas Eacute o que

veremos a seguir no proacuteximo paraacutegrafo

A criacutetica e a investigaccedilatildeo 274satildeo as palavras-chave que contribuiacuteram para a

substituiccedilatildeo da antiga eacutetica da nobreza homeacuterica que utilizava a fama e o prestiacutegio

social dos heroacuteis275 como paracircmetro supremo para julgar as accedilotildees do homem276 O

fracasso dessa experiecircncia fez surgir um espiacuterito criacutetico que age como um vigia 277

permanente de todas as accedilotildees e palavras Ou seja a sua funccedilatildeo eacute impedir os

excessos e as injusticcedilas Um censor 278 Logo o poetafiloacutesofo desempenha o papel

de porta voz desses anseios coletivos e de criacutetico e contraditor da opiniatildeo comum 279 Por fim eacute importante ressaltar que essa caracteriacutestica soacute eacute possiacutevel quando a

escrita surge como um instrumento publicitaacuterio para a divulgaccedilatildeo das leis Essa

nova experiecircncia poeacutetica ronda como uma sombra que age como um espelho que

273 A poesia de Soacutelon jaacute traz essa influecircncia da poesia hesioacutedica Infelizmente essa questatildeo natildeo poderaacute ser abordada nesse presente trabalho mas pretendemos no futuro desenvolver uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo poeacutetica entre Hesiacuteodo e Soacutelon dentro desse contexto de crise social 274 Essas palavras trazem o comeccedilo da experiecircncia ceacutetica O verbo σκέπτοmicroαι (skeacuteptomai) que vem do grego para dar surgimento ao termo ceticismo traz em seu radical o substantivo skeacutepsis que significa ldquopercepccedilatildeo pela vistardquo ldquoobservaccedilatildeordquo e ldquoconsideraccedilatildeordquo O verbo skeacuteptomai eacute tambeacutem ainda empregado com os sentidos figurados de ldquoexaminarrdquo ldquomeditarrdquo e ldquorefletirrdquo Esses termos satildeo como pontos cardeais de grande importacircncia para o surgimento do pensamento filosoacutefico 275 Vide as epopeias homeacutericas 276 Vide o caso de Ciacutelon Curiosamente apoacutes o seu fracassado golpe o povo se rebelou de modo violento contra os nobres 277 Como um catildeo (κυνικός kynikos igual a um catildeo κύων kyocircn) 278 ψόγοςpsoacutegos Esse termo em grego tambeacutem traz o sentido de censura Eacute um termo muito utilizado no acircmbito da retoacuterica antiga Vide Demoacutestenes 279 δόξαdoxa Para esse caso podemos utilizar o papel desempenhado pelo grande Soacutecrates

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reflete as tensotildees e injusticcedilas da sociedade Eacute nesse tempo que tambeacutem vemos surgir

agrave beleza do Teatro antigo pois ele atua nesse mesmo sentido como um poderoso

promotor280 puacuteblico que defende os interesses coletivos da sociedade a partir da

visatildeo panoracircmica do poeta O palco eacute uma espeacutecie de ensaio que antecipa as

reflexotildees que poderatildeo estar presentes nas futuras discussotildees que ocorreratildeo nas

assembleias Sendo assim o Teatro atua como uma espeacutecie de agente regulador

subjetivo281 que expotildee para a cidade os seus pontos mais conflitantes que precisam

ser discutidos julgados e alterados para preservar a harmonia da instituiccedilatildeo

Apoacutes a grande crise social a nova organizaccedilatildeo do Estado foi obrigada a pocircr

em praacutetica um sistema de coacutedigo juriacutedico que respeitasse o direito de todos os seus

membros Essa mudanccedila foi responsaacutevel para o surgimento de um novo tipo de

cidadatildeo ndash no sentido pleno do termo ndash que precisa aprender a respeitar as leis para

manter a organizaccedilatildeo da polis pois a sua realizaccedilatildeo individual dependente

fundamentalmente dessa lei universal (∆ίκηDike) que manteacutem o equiliacutebrio de todas

as partes (classes) que compotildee a cidade

280 Eacute aquele que sempre expotildee para o puacuteblico ldquojulgarrdquo (corte) uma situaccedilatildeo conflitante (drama) 281 Eacute o instrumento disponiacutevel que nos faz pensar sobre as questotildees cruciais para a cidade grega nesse contexto

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4 Mythos Eacutepos e Loacutegos

41 Mito e poesia

A ordem disposta entre esses termos que configura o tiacutetulo desse presente

capiacutetulo natildeo eacute de modo algum casual ou arbitraacuteria282 Essas trecircs importantes

palavras na liacutengua grega referem-se ao ato de criaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo humana283

que abarcam o surgimento da tradiccedilatildeo oral ateacute o advento da escrita284 Como foi

exposto no primeiro capiacutetulo o espanto285 despertado atraveacutes das forccedilas

naturais286 que revela a presenccedila da Phyacutesis apresenta a necessidade287 de

comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo288 para a manutenccedilatildeo da existecircncia humana em todos os

seus aspectos Em detrimento desse fato e a partir dos fragmentaacuterios registros

histoacutericos gregos escritos e do mais variado legado arqueoloacutegico que pode ser

obtido atraveacutes da Arquitetura Escultura e Pintura podemos estabelecer uma fraacutegil

tentativa de esboccedilar um mapeamento289 cronoloacutegico e semacircntico do uso dessas

282 Para Fernand de Saussure a liacutengua pode ser analisada como uma realidade autocircnoma em um determinado contexto histoacuterico sem a necessidade de avaliar o seu processo de desenvolvimento Segundo a sua teoria a realidade linguiacutestica do falante pode ser definida a partir do seu proacuteprio uso (O filoacutesofo britacircnico John Langshaw Austin parte desse mesmo pressuposto para a sua ldquoteoria dos atos de falardquo) Para tal objetivo o filoacutesofo linguista elabora dois importantes conceitos para esse estudo o primeiro eacute o de Sincronia No qual determina certas caracteriacutesticas de uma liacutengua em um recorte temporal especiacutefico (analisa por exemplo as variaccedilotildees sociais regionais e situacionais) que se formula atraveacutes de uma regularidade e homogeneidade pertencente a um contexto histoacuterico definido O segundo eacute o de Diacronia Esse conceito eacute responsaacutevel por apontar as inuacutemeras mudanccedilas que uma liacutengua sofre durante o decorrer histoacuterico de uma cultura Esse processo eacute interessante por rastrear as suas principais variaccedilotildees desde a sua origem ateacute o seu uso atual Ao decorrer desse capiacutetulo vamos utilizar esses dois dispositivos com o intuito de analisar o uso desses termos entre a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita entre os gregos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro SAUSSURE F de ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 283 Sobre esse ponto vide o capiacutetulo I 284 Para noacutes esse ponto eacute essencial para compreender o processo de transformaccedilatildeo do pensamento grego A escrita na realeza micecircnica segundo os estudos arqueoloacutegicos realizados a partir do Linear B que era utilizado para o controle da produccedilatildeo agriacutecola Apoacutes o decliacutenio monaacuterquico e o surgimento das primeiras polis aparece com um sentido totalmente distinto o de publicizaccedilatildeo das leis Sobre esse ponto vide os comentaacuterios do helenista francecircs Jean Pierre Vernant no capiacutetulo II do seguinte livro ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 285 θαῦmicroα 286 ἀθάνατοι 287 Ανάγκη 288 ποιεῖν 289 Ou seja natildeo pretendemos estabelecer nesse presente trabalho uma linha evolutiva entre esses termos O nosso objetivo visa localizar o uso deles em diversos contextos distintos da historiografia

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formas de expressatildeo que antecedem o diaacutelogo como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico

Essa constataccedilatildeo eacute do nosso grande interesse por apresentar alguns dos meandros

do desenvolvimento do proacuteprio pensamento grego antigo290 De um modo natildeo

linear 291 veremos que essa segunda premissa eacute o fundamento para a primeira No

longo processo de construccedilatildeo cultural cada uma dessas palavras contribuiacutera para a

formaccedilatildeo da subjetividade coletiva que auxiliou na formaccedilatildeo do espaccedilo social

poliacutetico religioso pedagoacutegico e juriacutedico em cada contexto histoacuterico grego

Para muitos scholars como o britacircnico John Burnet (BURNET 1892) eacute

possiacutevel traccedilar uma linha evolutiva que parte do pensamento miacutetico-poeacutetico ateacute o

momento em que o homem grego alcanccedilou a sua maioridade racional atraveacutes do

Loacutegos292

grega antiga atraveacutes da relaccedilatildeo da tradiccedilatildeo oral e o novo uso dado agrave escrita a partir do surgimento da Democracia 290 No famoso ldquocurso de linguiacutestica geralrdquo Fernand de Saussure aplica essa abordagem que foi nomeada de linguiacutestica histoacuterica para estudar a evoluccedilatildeo de uma determinada liacutengua Para mais informaccedilotildees vide SAUSSURE F de Curso de Linguiacutestica Geral 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 Paacuteg 8 291 Ao contraacuterio de muitos especialistas que seguem a posiccedilatildeo do escolar britacircnico John Burnet natildeo acreditamos que haja um deslocamento evolutivo entre esses termos Para a maioria dos defensores dessa posiccedilatildeo o mito tem origem ldquoreligiosardquo enquanto que o loacutegos eacute o momento que o homem alcanccedila a sua plenitude racional mas isso eacute um ledo engano Infelizmente essa posiccedilatildeo eacute ineficiente para dar conta dessa problemaacutetica Um dos exemplos que essa posiccedilatildeo natildeo explica eacute o uso que Platatildeo e outros pensadores sobretudo no acircmbito da Literatura fazem do mito durante e depois do periacuteodo claacutessico Eacute inegaacutevel que a apariccedilatildeo e o uso de cada um deles passou por consideraacuteveis mudanccedilas semacircnticas que desempenharam uma complexa repercussatildeo na funccedilatildeo cognitiva e na produccedilatildeo subjetividade do homem grego desde do periacuteodo micecircnico ateacute o claacutessico Logo A interpretaccedilatildeo de cada um desses termos necessita ser cautelosamente estudada a partir do seu respectivo contexto histoacuterico Posteriormente veremos que a ortodoxia de muitos helenistas e linguistas acabou impedindo uma visatildeo mais ampla sobre esse problema E isso ocorreu por descartarem algumas contradiccedilotildees que para noacutes eacute salutar para promover um estudo mais abrangente sobre essa questatildeo na antiguidade Uma delas eacute o fato de o mito ter surgido no acircmbito oral enquanto que o uso do loacutegos que muitos helenistas - vide o exemplo do proacuteprio Burnet - aplicam para os primeiros prensadores preacute-socraacuteticos como um discurso mais ldquosoacutebriordquo e ldquocoerenterdquo aparece no choque entre a tradiccedilatildeo oral e a novidade da escrita Esse ponto necessita ser levado em consideraccedilatildeo para um estudo mais aprofundando em torno desse tema A partir disso a nossa pretensatildeo eacute tentar estabelecer uma ordem diacrocircnica de uso desses termos ndash tendo como pano de fundo o momento de transiccedilatildeo entre a oralidade e escrita - sem estabelecer um juiacutezo de valor entre eles dentro do pensamento grego Ainda sobre essa grande celeuma entre os mais diversos especialistas dentro dos estudos sobre a linguiacutestica eacute importante destacar o trabalho desenvolvido por Jacques Derrida em torno desse problema no seu livro chamado Gramatologia Para o filoacutesofo todos os estudos relacionados a esse tema de um modo geral surgem quando o conceito de ciecircncia eacute forjado a partir da fonetizaccedilatildeo da escritura que ocorre com o surgimento do loacutegos Em um momento oportuno voltaremos a essa questatildeo 292 Nesse contexto especiacutefico o termo apresenta o sentido de razatildeo que se distanciou do seu antagonista o mito

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ldquoFoi somente apoacutes se desarticularem a visatildeo tradicional do mundo e as normas costumeiras de vida que os gregos comeccedilaram a sentir as necessidades que as filosofias da natureza e da conduta procuram satisfazer Tais necessidades natildeo se fizeram sentir de imediato As maacuteximas ancestrais de conduta natildeo foram seriamente questionadas ateacute a antiga visatildeo da natureza desaparecer Por isso os primeiros filoacutesofos ocuparam-se principalmente com especulaccedilotildees sobre o mundo ao seu redor No devido tempo criou-se a Loacutegica para atender a uma nova necessidade O empenho na investigaccedilatildeo cosmoloacutegica trouxera agrave luz uma ampla divergecircncia entre a ciecircncia e o senso comum Este problema exigia uma soluccedilatildeo e aleacutem disso obrigava os filoacutesofos a estudar meios de defender seus paradoxos dos preconceitos do natildeo-cientiacutefico Mais tarde o interesse preponderante por problemas loacutegicos levantou a questatildeo da origem e da validade do conhecimento ao passo que mais ou menos na mesma eacutepoca a desarticulaccedilatildeo da moral tradicional deu origem agrave Eacutetica O periacuteodo que antecede a ascensatildeo da Loacutegica e da Eacutetica tem portanto um caraacuteter especiacutefico e eacute adequado trataacute-lo separadamenterdquo293

Mas essa posiccedilatildeo natildeo eacute satisfatoacuteria para explicar a amplitude que o

pensamento miacutetico-poeacutetico desempenhou ateacute o periacuteodo romano294 Como podemos

ver nessa passagem que foi citada anteriormente essa hipoacutetese elaborada pelo

ilustre professor britacircnico sugere um caminho ascensional que se fundamenta no

distanciamento entre esses modos de expressatildeo a partir de uma posiccedilatildeo antagocircnica

e de inferioridade em relaccedilatildeo ao Loacutegos295 Infelizmente essa via mascara o valor do

pensamento miacutetico-poeacutetico como uma forma de saber extremamente relevante que

surgiu durante a tradiccedilatildeo oral para o povo helecircnico Posteriormente296 teremos a

oportunidade de analisar algumas peculiaridades desse fato que foi reconhecido

atraveacutes da manifestaccedilatildeo da Poesia Retoacuterica Teatro e da proacutepria Filosofia que

juntas satildeo expressotildees maacuteximas do valor intelectual que pode ser mensurado atraveacutes

do legado da Literatura297 e de outras expressotildees artiacutesticas que fizeram da Greacutecia

o modelo cultural do nosso mundo Ocidental desde do periacuteodo preacute-homeacuterico Eacute

importante ressaltar que todas as sociedades antigas em algum momento histoacuterico

utilizaram esse tipo peculiar de expressatildeo para reunir e manter as impressotildees mais

importantes sobre as nossas origens298 No caso grego eacute possiacutevel encontrarmos

293 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Pp 21 294 Sobre esse ponto vide a seguinte obra VEYNE Paul ldquoAcreditavam os gregos em seus mitosrdquo Satildeo Paulo Brasiliense 1983 295 Na Gramatologia Jacques Derrida vai tecer durar criacuteticas a esse pressuposto que foi seguido por muitos especialistas que estudam esse tema 296 No capiacutetulo IV 297 Dentro desse contexto incluiacutemos a tradiccedilatildeo oral ateacute o surgimento das primeiras obras escritas 298 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide a leitura do seguinte livro GRIMAL P ldquoA Mitologia Gregardquo Satildeo Paulo Brasiliense 1987

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outras aplicaccedilotildees A antiga realeza micecircnica por exemplo utilizou o recurso miacutetico

para a fundamentaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do poder monaacuterquico atraveacutes de algumas

famiacutelias que tinha uma relaccedilatildeo consanguiacutenea com os deuses Ou seja aleacutem do

caraacuteter histoacuterico que eacute atribuiacutedo por muitos antropoacutelogos o mito nesse caso eacute

utilizado para reivindicar tiacutetulos de nobreza para algumas famiacutelias e cidades Esse

tipo de aplicaccedilatildeo nos demonstra o seu caraacuteter plaacutestico e de utilidade para a

organizaccedilatildeo social como um todo ao lado da Poesia

42 Mito e espanto

A forccedila e beleza do discurso299 foi uma heranccedila que foi obtida a partir da

sofisticaccedilatildeo e primazia da fala que foi ampliada dentro do periacuteodo oral Essa

caracteriacutestica foi tatildeo marcante que se perdurou mesmo depois do seu esgotamento

como instrumento de transmissatildeo e conservaccedilatildeo cultural ateacute o auge da escrita

durante o periacuteodo claacutessico No discurso do estadista ateniense Peacutericles que foi

registrado pelo historiador Tuciacutedides300 por volta do ano 431 aC eacute possiacutevel

notarmos o fasciacutenio que bela fala produzia nos ouvidos dos atenienses

A maioria daqueles que falaram neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso agrave cerimocircnia tradicional considerando justo celebrar com palavras os mortos na guerra em seus funerais A mim todavia ter-me-ia parecido suficiente tratando-se de homens que se mostraram corajosos em atos manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos - honras como as que hoje presenciastes nesta cerimocircnia fuacutenebre do Estado - em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependecircncia do maior ou menor talento oratoacuterio de um soacute homem Eacute realmente difiacutecil falar com propriedade numa ocasiatildeo em que natildeo eacute possiacutevel avaliar a credibilidade das palavras do orador O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensaraacute talvez que natildeo foi feita a devida justiccedila em face de seus proacuteprios 299 Μύθος Έπος και λόγος Dentro dessa perspectiva vide a famosa oraccedilatildeo fuacutenebre de Peacutericles que estaacute registrada no livro II (35-46) sobre a ldquoA guerra do Peloponesordquo do historiador Tuciacutedides Mesmo sendo um discurso oral esse pronunciamento eacute oriundo de uma formulaccedilatildeo escrita Para esse assunto vide o seguinte livro HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Traduzido por Enid Abreu Dubraacutenzsky Campinas SP Papirus 1996 300 Vide nota anterior Esse texto eacute de grande importacircncia histoacuterica por revelar natildeo apenas a sobriedade da fala que foi esculpida pela beleza retoacuterica desse periacuteodo mas a consciecircncia de cidadania que foi elevada pelo auge do regime democraacutetico e imperialista de Atenas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CANFORA Luciano ldquoO mundo de Atenasrdquo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2015

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desejos e de seu conhecimento dos fatos enquanto outro menos informado ouvindo falar de um feito aleacutem de sua proacutepria capacidade seraacute levado pela inveja a pensar em algum exagero De fato elogios a outras pessoas satildeo toleraacuteveis somente ateacute onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menccedilatildeo estaacute ouvindo quando vatildeo aleacutem disto provocam a inveja e com ela a incredulidade Seja como for jaacute que nossos antepassados julgaram boa esta praacutetica tambeacutem devo obedecer agrave lei e farei o possiacutevel para corresponder agrave expectativa e agraves opiniotildees de cada um de voacutesrdquo301

A grande novidade desse momento eacute que a fala soacutebria do estadista eacute fruto da

reinserccedilatildeo da escrita que possibilitou uma imensa transformaccedilatildeo dentro do

contexto soacutecio-poliacutetico grego durante o auge do processo democraacutetico no periacuteodo

claacutessico302 Para avaliarmos algumas caracteriacutesticas desse fato no campo da

subjetividade coletiva podemos destacar a notaacutevel coerecircncia entre as partes desse

precioso discurso fuacutenebre que foi declamado com o intuito de consolar os

atenienses e de buscar apoio poliacutetico para o projeto imperialista de Peacutericles dentro

e fora de Atenas303 A escrita agrave serviccedilo da fala desempenha nesse momento aleacutem

de reforccedilar a publicidade das ideias difundidas no conteuacutedo dessa peccedila oratoacuteria304

tem por objetivo produzir um efeito de comoccedilatildeo e apoio atraveacutes da persuasatildeo

produzida a partir do encadeamento entre vaacuterias ideias que esse discurso propotildee aos

seus respectivos ouvintes de modo grandiloquente305 Essa experiecircncia de domiacutenio

da fala que aparece no periacuteodo oral foi ampliada e refinada dentro do acircmbito

301 Tuciacutedides ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo (livro II ndash 35) 302 Sobre essa questatildeo vide o seguinte livro HAVELOCK ERIC A ldquoA Revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturaisrdquo Trad Ordep Joseacute Serra Satildeo Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 303 Na ldquoGenealogia da Moralrdquo Nietzsche revela na sua primeira dissertaccedilatildeo (cap 11) as intenccedilotildees que estatildeo subtendidas nesse discurso de Peacutericles que foram registradas por Tuciacutedides Para essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NIETZSCHE F ldquoA genealogia da Moralrdquo (traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 304 O helenista Conford vai analisar as intenccedilotildees fictiacutecias e histoacutericas de Tuciacutedides ao escrever o seu livro que conteacutem esse discurso fuacutenebre de Peacutericles Para mais informaccedilotildees vide CORNFORD Francis Macdonald ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Philadelphia University of Pennsylvania 1971 305 Esse discurso pode ser divido em dois niacuteveis o primeiro sentido busca a comoccedilatildeo e o apoio dos atenienses e aliados enquanto que o segundo visa mostrar o poderio beacutelico ateniense para intimidar os inimigos e as outras cidades que ainda natildeo haviam assumido apoio direto ao projeto militar e poliacutetico de Peacutericles Vale lembrar que essa peccedila oratoacuteria carrega os grandes traccedilos da influecircncia sofistica de Protaacutegoras de Abdera e da arte do escultor Fiacutedeas Algumas das suas obras mais famosas na antiguidade se destacaram pelo poder de distorccedilatildeo da realidade com o intuito de fornecer ao espectador um profundo prazer esteacutetico O uso desse tipo de recurso anuncia a intenccedilatildeo do artista que se coaduna com a pedagogia do movimento sofiacutestico de produzir comoccedilatildeo atraveacutes do espanto Nesse sentido ambas seguem o mesmo fundamento da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que pode ser encontrada nas obras homeacutericas Para mais informaccedilotildees vide o segundo ensaio chamado ldquoThe spirit of art of Pheidiasrdquo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 Paacuteg 42

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militar pedagoacutegico teatral e juriacutedico306 A organicidade e clareza eram pontos

essenciais para a desenvoltura e eficiecircncia de todos os rapsodos tragedioacutegrafos e

comedioacutegrafos antigos Logo o uso da teacutecnica da grafia alfabeacutetica possibilitou um

domiacutenio ainda maior na composiccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo puacuteblica desses artesatildeos da

fala 307 Essa novidade oriunda do advento da escrita teria surgido por volta do

seacuteculo VIII aC e durante um determinado periacuteodo dividiu o espaccedilo com a antiga

oralidade que era o instrumento principal para conservaccedilatildeo e transmissatildeo cultural

Mas antes de abordarmos esse ponto vamos rastrear as evidecircncias que antecederam

esse fato no mundo grego

Os dois primeiros termos que expressam o ato de fala estatildeo voltados

diretamente para a tradiccedilatildeo oral que foi determinante para organizaccedilatildeo cultural

helecircnica 308 Dentro desse contexto o pensamento miacutetico e eacutepico foi responsaacutevel

por formular as primeiras concepccedilotildees de linguagem que revelam o profundo

conhecimento e desenvolvimento das teacutecnicas mnemocircnicas essenciais para a

manutenccedilatildeo e sobrevivecircncia cultural na antiguidade Essa caracteriacutestica pode ser

obtida no antigo culto das musas que eram as divindades responsaacuteveis pela

perpetuaccedilatildeo da memoacuteria309 Satildeo elas que no mundo homeacuterico constroem e

estabelecem a compreensatildeo das forccedilas que organizam o nosso mundo (SVENBRO

1976) Essa concepccedilatildeo tem o poder de fundamentar o conhecimento necessaacuterio para

306 Eacute possiacutevel encontramos nesse discurso de Peacutericles todos esses aspectos reunidos Eacute importante ressaltar que antes mesmo da reinserccedilatildeo da escrita o ritmo e a melodia da muacutesica davam ao discurso poeacutetico o sentido e a coesatildeo necessaacuteria para promover a simpatia e prazer aos ouvintes atraveacutes dos seus respectivos metros Posteriormente essas caracteriacutesticas ainda vigoravam na prosa aacutetica que escritores dramaturgos oradores professores e poliacuteticos utilizavam nesse periacuteodo Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista Iacutetacaufrj 2015 307 Vide os apontamentos de Aristoacuteteles sobre esse tema na Poeacutetica e Retoacuterica Eacute importante destacar que houve uma grande polecircmica em torno dessa questatildeo entre os defensores da tradiccedilatildeo oral e daqueles que pautavam os seus trabalhos como os filoacutesofos logoacutegrafos e sofistas atraveacutes do uso de textos escritos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 308 Sobre esse ponto vide as consideraccedilotildees que estatildeo no primeiro e no segundo capiacutetulo desse presente trabalho 309 Μοῦσαι (Moũsai) satildeo divindades responsaacuteveis pela inspiraccedilatildeo simboacutelica no campo da muacutesica arte literatura e ciecircncia na mitologia grega O mais interessante eacute que todas as concepccedilotildees filosoacuteficas antigas sobre a origem da muacutesica satildeo fundamentadas a partir dessa heranccedila da tradiccedilatildeo oral Ora esse detalhe eacute de extrema importacircncia por apresentar a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo miacutetica para o desenvolvimento da muacutesica e filosofia entre os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GRIMAL Pierre ldquoDicionaacuterio da mitologia grega e romanardquo Traduccedilatildeo de Victor Jabouille 3 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 Em um importante artigo chamado ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo o helenista alematildeo Friedrich Solmsen aponta algumas diferenccedilas entre o uso dessas divindades invocadas por esses dois poetas na tradiccedilatildeo antiga Para mais informaccedilatildeo vide o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954

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os gregos dentro desse contexto histoacuterico Ao fornecer aos homens uma

possibilidade de compreensatildeo do mundo as musas datildeo sentido para a existecircncia

humana na organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica da realeza micecircnica (GERNET 1982)

Todas as expressotildees do pensamento nesse momento satildeo pautadas atraveacutes da sua

forccedila persuasiva e expressiva emitidas pela fala divina do aedo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOacute Musas me dizei moradoras do Olimpo divinas todo-presentes todo-sapientes (noacutes nada mais sabendo soacute a fama ouvimos) quais eram hegemocircnicos guiando os Dacircnaos os priacutencipes e os chefes O total de nomes da multidatildeo nem tendo dez bocas dez liacutenguas voz inquebraacutevel peito brocircnzeo eu saberia dizer se as Musas filhas de Zeus porta-escudo oliacutempicas natildeo derem agrave memoacuteria ajuda renomeando-me os nomes Soacute direi o nuacutemero das naves e os navarcas que assediaram Troia Pemeleu Protoeacutenor Lito Arcesilau mais Clocircnio iam agrave testa dos Beoacutecios de Aacuteulide peacutetrea de Hiacuteria de Esqueno Escolo e de Eteono milmontanhosa Teacutespio Graia Micalesso vasta em planiacutecies de Harma de Ileacutessio de Eritras os de Eleona Peteona Hila de Ocaleia Medeona bem-construiacuteda Tisbe columbaacuterio riquiacutessimo e os de Eutreacutessio de Copas e os vindos de Coroneia e de Haliarto verdejante e os de Plateia e Glissa os de Hipotebas poacutelis bem-construiacuteda os de Onquesto veneranda bosque de Posecircidon esplecircndido e os de Arna riquiacutessima em pacircmpanos de Nisa divina e Mideia e os de Anteacutedon extremo ponto na fronteira Cento e cinquenta naves da Beoacutecia e nelas em cada barco cento e vinte homens de guerraOs nativos de Aspleacutedon de Orcocircmeno Miacutenias Ascaacutelafos e Iaacutelmeno comandam filhos de Astiacuteoque com Ares (o deus alcanccedilara a virgem casta no alto do palaacutecio de Aacutector o Azeide onde agraves ocultas no leito a possuiacutera esses em fila enchiam trinta naves cocircncavas310rdquo

310 HOMERO Iliacuteada canto II v 484-515 ἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαιὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν πληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνω οὐδ᾽ εἴ microοι δέκα microὲν γλῶσσαι δέκα δὲ στόmicroατ᾽ εἶεν φωνὴ δ᾽ ἄρρηκτος χάλκεον δέ microοι ἦτορ ἐνείη εἰ microὴ Ὀλυmicroπιάδες Μοῦσαι ∆ιὸς αἰγιόχοιο θυγατέρες microνησαίαθ᾽ ὅσοι ὑπὸ Ἴλιον ἦλθον ἀρχοὺς αὖ νηῶν ἐρέω νῆάς τε προπάσας Βοιωτῶν microὲν Πηνέλεως καὶ Λήϊτος ἦρχον Ἀρκεσίλαός τε Προθοήνωρ τε

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A partir dessa passagem que se encontra no segundo livro da Iliacuteada de

Homero podemos compreender a importacircncia dessas divindades para o

desenvolvimento do processo de subjetividade coletiva grega No iniacutecio dos versos

o poeta ressalta que elas satildeo as responsaacuteveis por guiar os gregos atraveacutes do

conhecimento que eacute fornecido atraveacutes da memoacuteria311 Sendo assim nos deparamos

com a uacutenica via possiacutevel para ultrapassar o limite que separa o mundo divino e

humano A manifestaccedilatildeo dessa verdade ocorre entre o movimento freneacutetico da

melodia da voz e do corpo312 que materializa em um uacutenico instante313 a presenccedila

dessas forccedilas que organizam o mundo atraveacutes dessas imagens glorificadas no

tempo

ldquoQuando Aquiles por exemplo presta um grande juramento sua palavra eacute inseparaacutevel de um gesto e de um comportamento solidaacuteria agrave virtude do cetro que a confunde com a afirmaccedilatildeo oracular A todo momento a linguagem verbal se entrelaccedila com a linguagem gesticular quando Althaiacutea amaldiccediloa o seu filho sua maldiccedilatildeo eacute palavra e postura toda encolhida ela bate com forccedila no chatildeo para suscitar a Eriacutenia vingadora Eacute a atitude do corpo que confere sua potecircncia agrave palavra uma palavra que aliaacutes se identifica com a obscura figura de Eriacutenia Na suacuteplica a palavra se faz silecircncio eacute o corpo que fala sozinho atraveacutes de uma espeacutecie de prostraccedilatildeo cujas significaccedilotildees satildeo muacuteltiplas estado de luto atitude do morto nos infernos do condenado do candidato agrave purificaccedilatildeo ou agrave iniciaccedilatildeo Quando brota a voz tira sua forccedila do comportamento gesticular Todos estes comportamentos sociais satildeo siacutembolos eficazes que agem diretamente em virtude de sua potecircncia proacutepria o gesto da matildee o cetro a oliveira guarnecida com latilde satildeo o espaccedilo central de uma potecircncia religiosa A palavra eacute da mesma ordem como a matildeo que daacute que recebe que toma como o bastatildeo que Κλονίος τε οἵ θ᾽ Ὑρίην ἐνέmicroοντο καὶ Αὐλίδα πετρήεσσαν Σχοῖνόν τε Σκῶλόν τε πολύκνηmicroόν τ᾽ Ἐτεωνόν Θέσπειαν Γραῖάν τε καὶ εὐρύχορον Μυκαλησσόν οἵ τ᾽ ἀmicroφ᾽ Ἅρmicro᾽ ἐνέmicroοντο καὶ Εἰλέσιον καὶ Ἐρυθράς οἵ τ᾽ Ἐλεῶν᾽ εἶχον ἠδ᾽ Ὕλην καὶ Πετεῶνα Ὠκαλέην Μεδεῶνά τ᾽ ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Κώπας Εὔτρησίν τε πολυτρήρωνά τε Θίσβην οἵ τε Κορώνειαν καὶ ποιήενθ᾽ Ἁλίαρτον οἵ τε Πλάταιαν ἔχον ἠδ᾽ οἳ Γλισᾶντ᾽ ἐνέmicroοντο οἵ θ᾽ Ὑποθήβας εἶχον ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Ὀγχηστόν θ᾽ ἱερὸν Ποσιδήϊον ἀγλαὸν ἄλσος οἵ τε πολυστάφυλον Ἄρνην ἔχον οἵ τε Μίδειαν Νῖσάν τε ζαθέην Ἀνθηδόνα τ᾽ ἐσχατόωσαν τῶν microὲν πεντήκοντα νέες κίον ἐν δὲ ἑκάστῃ κοῦροι Βοιωτῶν ἑκατὸν καὶ εἴκοσι βαῖνον οἳ δ᾽ Ἀσπληδόνα ναῖον ἰδ᾽ Ὀρχοmicroενὸν Μινύειον τῶν ἦρχ᾽ Ἀσκάλαφος καὶ Ἰάλmicroενος υἷες Ἄρηος οὓς τέκεν Ἀστυόχη δόmicroῳ Ἄκτορος Ἀζεΐδαο παρθένος αἰδοίη ὑπερώϊον εἰσαναβᾶσα Ἄρηϊ κρατερῷ ὃ δέ οἱ παρελέξατο λάθρῃ τοῖς δὲ τριήκοντα γλαφυραὶ νέες ἐστιχόωντο Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 311 No grego o jogo entres esses termos eacute bem perceptiacutevel ldquoἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαι ὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανrdquo 312 Atraveacutes do canto e danccedila ou seja entre a voz (focirclegoalma) e o movimento do corpo (mundo sensiacutevel) Na sequecircncia veremos que esse importante detalhe tambeacutem natildeo passou despercebido aos olhos de Marcel Detienne em ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo No quarto capiacutetulo (A ambiguidade da palavra) ele expotildee uma anaacutelise que reforccedila o que foi dito por noacutes anteriormente 313 Νῦν (nun) significa ldquoagorardquo (adveacuterbio temporal) e o ldquotempo presenterdquo

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afirma o poder como os gestos de imprecaccedilatildeo ela eacute uma forccedila religiosa que age em virtude de sua proacutepria eficaacutecia A palavra que o adivinho o poeta e o rei de justiccedila pronunciam natildeo consiste em algo fundamentalmente diferente da proclamaccedilatildeo do vingador ou das imprecaccedilotildees de um moribundo dirigidas a seus assassinos Eacute o mesmo tipo de palavra maacutegico-religiosa314rdquo

Homero deixa o frenesi guiar as suas palavras que antes mesmo de descrever

o incidente que indica o nuacutemero de naus que atacaram Troacuteia apresenta quase

visualmente para noacutes uma evocaccedilatildeo315 uma prece que parece ser algo de praxe

entre os antigos aedos316 que tem o poder de materializar essas forccedilas divinas no

mundo humano Esse ritual indica a relaccedilatildeo religiosa que pode ter nascido apoacutes o

primeiro espanto diante da grandiosidade da phyacutesis que lhe trouxe a primeira

verdade aos homens a inteligiacutevel fronteira entre o mundo dos mortais e imortais

O conteuacutedo dessa experiecircncia eacute transmitido de modo equacircnime que passa a ser

reconhecido entre todos os membros da comunidade pelo encantamento dos versos

do poeta que era considerado entre seus pares como um artiacutefice divino Como foi

exposto por Marcel Detienne anteriormente essa palavra ganha consistecircncia no

diaacutelogo estabelecido com o corpo que eacute o receptaacuteculo sensiacutevel para a manifestaccedilatildeo

de toda ordem divina sobre o mundo humano317 Toda beleza harmocircnica da voz seraacute

simultaneamente manifesta no ritmo do gestual corporal da danccedila ambas atividades

formam o primor do mais alto valor da cultura helecircnica que se manteve ativa mesmo

depois do decliacutenio do teatro na antiguidade

314 Vide DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap IV (Ambiguidade da Palavra) pag 33 315 Significa literalmente chamar para fora Enquanto que invocaccedilatildeo eacute o contraacuterio ou seja chamar os deuses para dentro Ambos os termos vecircm do termo latino ldquovocarerdquo (chamar) 316 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo v 22-34 e o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954 317 Mais um ponto de convergecircncia ndash ou mera coincidecircncia - entre o pensamento miacutetico-poeacutetico e filosoacutefico A relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias pode ser encontrada nos fragmentos de pitagoacutericos como Alcmeacuteon (DK 24 B4) Empeacutedocles (DK 31B17) e no Timeu de Platatildeo (34 c) aos poucos vamos coletando e expondo esses indiacutecios que demostram o diaacutelogo profiacutecuo entre a filosofia e a poesia na antiguidade

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43 Mito accedilatildeo e verdade

A arte do bem falar era algo essencial na formaccedilatildeo dos homens responsaacuteveis

pela atividade poliacutetica A excelecircncia entre o falar e o fazer era respaldada no modelo

heroico fornecido pela poesia homeacuterica O valor de verdade e honestidade do

orador era forjado pelos seus grandes feitos que eram imortalizados pelos aedos e

reconhecidos por todos os membros da comunidade Nesse caso a guerra318 era o

espaccedilo que fornecia ao homem da realeza o direito de falar e ser respeitado por

todos os gregos Mas esse direito soacute era concedido atraveacutes das conquistas oriunda

dos campos de batalhas no qual cada vitoacuteria era a ratificaccedilatildeo do seu parentesco

divino319 e que fornecia ao mesmo tempo a justificaccedilatildeo necessaacuteria para manter a

sua respectiva soberania poliacutetica Nesse sentido eacute possiacutevel encontrarmos o embriatildeo

para a noccedilatildeo que o filoacutesofo italiano Giambattista Vico vai nomear de verum

factum320 e que de modo conceitual foi aplicada na antiguidade por pensadores de

diferentes correntes como Xenoacutefanes321 e Aristoacuteteles322 Ambos cada um ao seu

318 No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 319 Atraveacutes das vitoacuterias e dos belos feitos Os jogos oliacutempicos por exemplo eacute uma praacutetica que manteacutem acesa essa moral heroica que podemos encontrar na pedagogia homeacuterica Todos os esportes carregam a essecircncia agoniacutestica que sempre foi exaltada como maacuteximo valor pela cultura grega na antiguidade Nesse sentido as Oliacutempiadas tambeacutem desempenhavam uma funccedilatildeo pedagoacutegica que servia para incutir essa moral guerreira Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo neste presente capiacutetulo 320 Essa importante expressatildeo viquiana surgiu a partir do estudo do desenvolvimento de algumas culturas da antiguidade Para Vico a accedilatildeo eacute uma parte da razatildeo e portanto depende essencialmente da certeza da manifestaccedilatildeo do seu agente Ou seja a verdade eacute uma conversatildeo entre razatildeo accedilatildeo e efetivaccedilatildeo Esse eacute o seu criteacuterio de verdade O seu objetivo epistemoloacutegico e hermenecircutico eacute deslocar a esfera da accedilatildeo para o acircmbito conceitual Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros ldquoDe Antiquiacutessima Italorum Sapientiardquo (A Antiga Sabedoria dos Italianos) e ldquoScienza Nuovardquo (Ciecircncia Nova) 321 Xenoacutefanes de Coacutefon elegias (DK 21 B1 Ateneu X 462 c) (ldquoἀλλ᾿ εἰκῆι microάλα τοῦτο νοmicroίζεται οὐδὲ δίκαιον προκρίνειν ώmicroην τῆς ἀγαθῆς σοφίης οὔτε γὰρ εἰ πύκτης ἀγαθὸς λαοῖσι microετείη οὔτ᾿ εἰ πενταθλεῖν οὔτε παλαισmicroοσύνην οὐδὲ microὲν εἰ ταχυτῆτι ποδῶν τόπερ ἐστὶ πρότιmicroον ῥώmicroης ὅσσ᾿ ἀνδρῶν ἔργ᾿ ἐν ἀγῶνι πέλει τοὔνεκεν ἂν δὴ microᾶλλον ἐν εὐνοmicroίηι πόλις εἴη) ldquoLogo nem havendo entre o povo um bom pugilista nem havendo um bom no pentatlo nem no pugilato ou pela velocidade dos peacutes que mais pelo vigor fiacutesico merece honra entre as accedilotildees dos homens nos jogos natildeo eacute por isso que a cidade viveria em uma bela ordemrdquo nossa traduccedilatildeo 322 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro VI 1139) (ldquoἕν τι microέρος τοῦ λόγον ἔχοντος ληπτέον ἄρ᾽ ἑκατέρου τούτων τίς ἡ βελτίστη ἕξις αὕτη γὰρ ἀρετὴ ἑκατέρου ἡ δ᾽ ἀρετὴ πρὸς τὸ ἔργον τὸ οἰκεῖον τρία δή ἐστιν ἐν τῇ ψυχῇ τὰ κύρια πράξεως καὶ ἀληθείας αἴσθησις νοῦς ὄρεξις τούτων δ᾽ ἡ αἴσθησις οὐδεmicroιᾶς ἀρχὴ πράξεως δῆλον δὲ τῷ τὰ θηρία αἴσθησιν microὲν ἔχειν πράξεως δὲ microὴ κοινωνεῖν ἔστι δ᾽ ὅπερ ἐν διανοίᾳ κατάφασις καὶ ἀπόφασις τοῦτ᾽ ἐν ὀρέξει δίωξις καὶ φυγή ὥστ᾽ ἐπειδὴ ἡ ἠθικὴ ἀρετὴ ἕξις προαιρετική ἡ δὲ προαίρεσις ὄρεξις βουλευτική δεῖ διὰ ταῦτα microὲν τόν τε λόγον ἀληθῆ εἶναι καὶ τὴν ὄρεξιν ὀρθήν εἴπερ ἡ προαίρεσις σπουδαία καὶ τὰ αὐτὰ τὸν microὲν φάναι τὴν δὲ διώκειν αὕτη microὲν οὖν ἡ διάνοια καὶ ἡ ἀλήθεια πρακτική τῆς δὲ θεωρητικῆς διανοίας καὶ microὴ πρακτικῆς microηδὲ ποιητικῆς τὸ εὖ καὶ κακῶς τἀληθές ἐστι καὶ ψεῦδος τοῦτο γάρ ἐστι παντὸς

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modo refletem esse importante traccedilo do ideal de formaccedilatildeo do homem antigo que

se faz na efetivaccedilatildeo de suas accedilotildees no mundo323 atraveacutes da linguagem

O termo que eacute utilizado pelo poeta para descrever esse processo comunicativo

entre os antigos estaacute contido nessa passagem que pertence ao segundo livro da

Iliacuteada Nela o poeta emprega o verbo mytheacuteomai324 para o ato de fala325 que conduz

essa experiecircncia original da linguagem no qual se fundamenta toda a tradiccedilatildeo oral

Dentro dessa mesma passagem podemos tambeacutem notar que essa accedilatildeo estaacute associada

de modo reciacuteproco agrave audiccedilatildeo326 nomenclatura327 conhecimento328 e gloacuteria329 A

proximidade relacional entre esses termos sugere que esse conjunto terminoloacutegico

forma a imagem da faculdade de criaccedilatildeo330 e expressatildeo que eacute amparada pela forccedila

divina de Mnemosyne a deusa da memoacuteria331 responsaacutevel por guardar o

διανοητικοῦ ἔργον τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁmicroολόγως ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ πράξεως microὲν οὖν ἀρχὴ προαίρεσιςmdashὅθεν ἡ κίνησις ἀλλ᾽ οὐχ οὗ ἕνεκαmdashπροαιρέσεως δὲ ὄρεξις καὶ λόγος ὁ ἕνεκά τινοςrdquo) ldquoSatildeo trecircs os itens na alma que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo inteligecircncia e desejo Entre eles a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio de accedilatildeo alguma como eacute evidente pelo fato de que os animais tecircm sensaccedilatildeo mas natildeo tecircm parte na accedilatildeo Aquilo que no pensamento eacute afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo no desejo eacute procurar ou evitar Consequentemente dado que a virtude do caraacuteter eacute uma habilitaccedilatildeo relativa ao propoacutesito e dado que o propoacutesito eacute um desejo deliberado eacute preciso por isso que o raciociacutenio seja verdadeiro e que o desejo seja correto ndash se o propoacutesito for virtuoso ndash e que o raciociacutenio afirme as mesmas coisas que o desejo procura Eacute nisso pois que consiste o pensamento realizador de accedilatildeo e a verdade realizadora de accedilatildeo Do pensamento teoacuterico isto eacute que natildeo leva nem agrave accedilatildeo nem agrave produccedilatildeo a boa e a maacute condiccedilatildeo consistem no verdadeiro e no falso (pois eacute essa a funccedilatildeo de toda a parte pensante) Mas da parte pensante que produz accedilatildeo a boa condiccedilatildeo consiste na verdade em acordo com o desejo corretordquo) Traduccedilatildeo de Lucas Angioni 323 No discurso fuacutenebre de Peacutericles que se encontra na histoacuteria da guerra do Peloponeso de Tuciacutedides (II 41 1-2) o grande estadista ateniense afirma que a ldquoverdade estaacute na accedilatildeotrabalhordquo (ἔργων ἐστὶν ἀλήθειαergon estiacuten aleacutetheia) Nessa expressatildeo podemos destacar a relaccedilatildeo entre aleacutetheia (natildeo esquecimentoverdade) e ergon (accedilatildeotrabalhofazer) que vem do projeto pedagoacutegico homeacuterico e hesiodico Nesse sentido a retoacuterica polida de Peacutericles - que se projeta como uma fala universal- estava bem atenta aos diferentes perfis soacutecio-poliacuteticos que ela deveria abranger No proacuteximo capiacutetulo vamos analisar o choque entre esses dois projetos pedagoacutegicos que revela a crise poliacutetica que se instaurou em Atenas apoacutes a queda da realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista IacutetacaUfrj 2015 324 Vide Homero Iliacuteada livro II (v 489) ldquoπληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνωrdquo ldquoPlethyn d ouk an ego mythesomai oud onomenordquo posteriormente voltaremos a analisar essa importante evidecircncia da tradiccedilatildeo oral na literatura antiga 325 Vide o emprego do termo (γλῶσσαιglossai) liacutenguas no verso 489 326 No emprego do verbo ἀκούοmicroενakouacutemen para o ato de ouvir 327 Para o ato de nomear (ὀνοmicroήνωonomeacuteno) Dentro desse ato como vimos nas consideraccedilotildees sobre o Craacutetilo de Platatildeo subtende-se que o poeta tambeacutem eacute uma figura responsaacutevel pela nominaccedilatildeo das coisas dentro desse contexto histoacuterico 328 No emprego do verbo (ἴστέisteacute) que eacute oriundo do verbo (οἶδαoida) para o ato de conhecer 329 O termo (κλέοςkleacuteos) gloacuteria que nesse contexto oral carrega tambeacutem o sentido de ouvir e de transmitir algum relato (mito) Vide Lidell amp Scott Posteriormente falaremos mais sobre esse ponto 330 ΠοίησιςPoieacutesis 331 ΜνηmicroοσύνηMnemosyne a divindade que personifica a memoacuteria e matildee das nove musas

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conhecimento de todas as coisas Dentro dessa tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que apresenta

a genealogia dos deuses332 eacute possiacutevel encontrarmos a configuraccedilatildeo natildeo apenas da

ordem divina mas da proacutepria estruturaccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem e da

racionalidade humana que se expressa atraveacutes da oralidade

Nesse contexto o mito que estaacute contido no radical desse verbo eacute algo

essencial para a organizaccedilatildeo cultural helecircnica sob as leis natildeo escritas333 dos deuses

que se comunicam com os mortais atraveacutes da fala inspirada334 Em seu livro sobre

o conceito de Phyacutesis para os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Gerard Naddaff (NADAFF

1992) apresenta uma hipoacutetese muito interessante sobre a utilidade dos mitos para

os gregos Aleacutem de todos os aspectos mnemocircnicos que ressaltamos na nossa tese

ele acrescenta mais trecircs caracteriacutesticas que aceitamos como razoaacuteveis para a

importacircncia do uso desse meio de expressatildeo para os gregos vejamos a seguir

anthropogocircnico335 sociogocircnico336 e politogocircnico337 Esses trecircs pontos satildeo oriundos

das cosmogonias miacuteticas que foram a base conceitual para os primeiros filoacutesofos

Para o professor lusitano Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) essa experiecircncia da

linguagem eacute algo excepcional que evidencia o entrelaccedilamento do homem com a

Natureza Ela assinala o exato instante que a observaccedilatildeo desses fenocircmenos naturais

passa a ocupar o seu pensamento de modo integrado e reflexivo Logo o ato de

criaccedilatildeo e expressatildeo ganham forma simultaneamente quando o mundo humano se

expande atraveacutes das inuacutemeras faces da poesia E eacute nesse interstiacutecio que ele se depara

332 Ou Teogonia Vide o livro homocircnimo de Hesiodo 333 Vide a seguir passagem de Antiacutegona de Soacutefocles onde eacute empregada essa expressatildeo que revela uma crise entre as leis humanas e divinas entre phyacutesis e nomos a partir do verso 455 (ὥστ᾽ ἄγραπτα κἀσφαλῆ θεῶν νόmicroιmicroα δύνασθαι θνητὸν ὄνθ᾽ ὑπερδραmicroεῖνoacutest agrapta kasphaleacute teon noema dynasthai) 334 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo (533d534e) nessa obra eacute exposta a imagem do poeta inspirado que vem dessa tradiccedilatildeo oral mais antiga Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo claacutessico a funccedilatildeo poeacutetica foi passando por diversas transformaccedilotildees A criacutetica de Platatildeo eacute direcionada agrave poesia que eacute construiacuteda atraveacutes de uma techneacute Essa corrente teria sido iniciada com o poeta liacuterico Simocircnides de Ceos que cobrava por seus versos e defendia o caraacuteter artificial da palavra poacuteetica Diante de uma concepccedilatildeo que foi muito difundida no periacuteodo claacutessico atraveacutes das obras de Phiacutedias a pintura era considerada como uma ilusatildeo ou coacutepia da realidade Para ele a pintura eacute poesia silenciosa enquanto que a poesia eacute a pintura que fala Notem que haacute uma aproximaccedilatildeo intencional entre os olhos e ouvidos Dois importantes sentidos que representam por um lado a tradiccedilatildeo oral e por outro o momento da reinserccedilatildeo da escrita e do auge das artes plaacutesticas Simocircnides pode tambeacutem ter contribuiacutedo para o surgimento do movimento sofiacutestico em Atenas pois para muitos autores antigos como Plutarco ele teria influenciado Goacutergias Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Sofistas ldquoTestimonios y fragmentosrdquo Trad Antonio Melero Bellido Madrid Gredos 1996 335 Relativo agraves criaccedilotildees humanas 336 Relativo agrave organizaccedilatildeo das sociedades humanas 337 Relativo agraves praacuteticas soacutecio-poliacuteticas

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com o drama original que obriga a agir de modo incisivo para poder afirmar a sua

proacutepria existecircncia nesse mundo

Como foi exposto no iniacutecio desse capiacutetulo eacute inegaacutevel que a maioria das

culturas antigas levantaram inuacutemeras questotildees que se expressam de diferentes

formas nessa importante praacutetica coletiva oral pois o homem eacute um ser movido por

esse anseio de conhecer o mundo que lhe abarca Esse fenocircmeno investigativo natildeo

eacute um privileacutegio exclusivo do advento da escrita E esses registros natildeo podem ser

interpretados unicamente como expressotildees de praacuteticas ritualiacutesticas no acircmbito da

religiatildeo Aliaacutes o professor Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) ressalta que a

mitologia natildeo deve ser compreendida como algo encerrada em si mesma Logo a

religiatildeo natildeo pode ser concebida como a sua essecircncia mas com um dos seus

inuacutemeros acidentes338 Dentro da tradiccedilatildeo oral o aedo por um lado eacute o

instrumento vivo que estabelece a conexatildeo com as forccedilas divinas e por outro atua

como um legislador e pedagogo agrave serviccedilo da realeza Ou seja ele pertence agrave classe

aristocraacutetica que utiliza os mitos entoados natildeo apenas para o acircmbito religioso mas

para a fundamentaccedilatildeo poliacutetica juriacutedica pedagoacutegica e social do seu povo Tendo

em vista esse fato o conteuacutedo miacutetico desempenha uma ampla gama de funccedilotildees de

acordo com cada contexto histoacuterico Portanto essa eacute a conclusatildeo que chegamos

apoacutes o levantamento desses estudos Dentro de toda tradiccedilatildeo oral o mito aparece

como uma expressatildeo central na construccedilatildeo cultural nos primoacuterdios da formaccedilatildeo da

mentalidade helecircnica

Em geral todas as civilizaccedilotildees antigas utilizavam esse recurso com o mesmo

objetivo339 de estruturaccedilatildeo cultural As primeiras cosmogonias por exemplo

carregavam essas caracteriacutesticas apresentadas que datildeo o fundamento necessaacuterio

para a tese defendida pelo helenista americano Naddaff Como apresentamos

anteriormente o mito tambeacutem desempenhava a funccedilatildeo de atender as demandas

soacutecio-poliacuteticas de cada comunidade helecircnica A organizaccedilatildeo e o equiliacutebrio da

antiga sociedade micecircnica por exemplo estava respaldada nos conteuacutedos que eram

338 Parafraseando Aristoacuteteles que diz ldquoo ser se diz de muitas maneirasrdquo podemos afirmar ldquoo mito se diz de muitas maneirasrdquo Para esse caso a conceituaccedilatildeo de substacircncia aristoteacutelica nos ajuda a compreender esse ponto que o professor Eudoro de Sousa estaacute destacando nessa passagem Para mais informaccedilotildees indicamos a leitura do seguinte livro SOUSA E ldquoMitologiardquo Lisboa Guimaratildees 1984 339 Vide o iniacutecio desse presente capiacutetulo e os relatos de Heroacutedoto sobre a sociedade egiacutepcia no seu livro chamado ldquoHistoacuteriasrdquo (Ἰστορἴαι historiai)

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repassados e mantidos em versos nos movimentos da danccedila dos ritos e nas

inuacutemeras obras esculpidas em maacutermore e pedra que serviam para facilitar a

memorizaccedilatildeo e efetivaccedilatildeo do controle poliacutetico pelo apelo auditivo e visual e que

culminava na heranccedila cultural de mais alto valor que deveria ser transmitida agraves

proacuteximas geraccedilotildees340 Logo todas as narrativas miacuteticas forneciam a mateacuteria prima

da poesia e da arte tradicional que era difundida e protegida atraveacutes dos ritos e

obrigaccedilotildees controladas pela aristocracia real E mesmo com a queda da realeza

micecircnica (VERNANT 1962) e as inuacutemeras transformaccedilotildees que ocorreram durante

esse momento de transiccedilatildeo algumas dessas praacuteticas lituacutergicas341 se mantiveram

durante o periacuteodo homeacuterico ateacute depois do claacutessico342

340 Para essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 341 Λειτουργίαleitourgia O vocaacutebulo Liturgia em grego formado pelas raiacutezes (leit- que vem de laoacutes povo) e - urgia (trabalho ofiacutecio) significa serviccedilo ou trabalho puacuteblico Para mais informaccedilotildees sobre esse vocaacutebulo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott λειτουργ-ία ἡ anterior Att λητ- IG 22114014 (386 BC) - em Atenas e em outros lugares (por exemplo Siphnos Isoc 1936 Mitylene Antipho 577) serviccedilo puacuteblico executado por cidadatildeos particulares agraves suas proacuteprias custas E 442 Lys 2119 etc λ ἐγκύκλιοι ordinaacuterias isto eacute anuais liturgias D 2021 λειτουργίαι microετοίκων opp πολιτικαἰ ib 18 II qualquer serviccedilo puacuteblico ou trabalho Phib 1784 (iii BC) etc in ἐπὶ τῶν λειτουργιῶν τεταγmicroένος em um exeacutercito o oficial que superintendia os operaacuterios carpinteiros etc Plb 3934 οἱ ἐπί τινα λ Idπεσταλmicroένοι Id 10165 geralmente dever militar UPZ 1525 (pl Ii BC) 2 geralmente qualquer serviccedilo ou funccedilatildeo ἡ πρώτη φανερὰ τοῖς ζῴοις λ διὰ τοῦ στόmicroατος οὖσα Arist PA 650a9 cf 674b9 20 IA 711b30 φιλικὴν ταύτην λ Luc Sal 6 3 serviccedilo ministraccedilatildeo ajuda 2 EpCor 912 Ep Phil 230 III serviccedilo puacuteblico dos deuses αἱ πρὸς τοὺς θεοὺς λ Arist Pol 1330a13 αἱ τῶν θεῶν θεραπεῖαι καὶ λ DS 121 cf UPZ 1717 (ii BC) PTeb 30230 (i AD) etc o serviccedilo ou ministeacuterio dos sacerdotes LXX Nu 825 Ev Luc 123 342 Para Vernant apoacutes a decadecircncia micecircnica ocorreram inuacutemeras transformaccedilotildees no modo de vida grego Entre elas estaacute a recusa da opulecircncia dos antigos funerais dos membros da antiga aristocracia real pois essa praacutetica produzia uma sensaccedilatildeo de diferenccedila social entre as pessoas ao fomentar inveja e desavenccedilas desnecessaacuterias que ameaccedilavam a harmonia social Logo esse indiacutecio pode ter sido um dos fatores para um novo tipo de organizaccedilatildeo poliacutetica que estimula a agoniacutestica ateacute mesmo no campo verbal De qualquer modo o poder da palavra como algumas praacuteticas sobretudo religiosas se mantiveram mesmo depois da queda da monarquia micecircnica Para mais informaccedilotildees vide o IV capiacutetulo (O universo espiritual da polis) do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000

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44 Mito e religiatildeo

Segundo o cientista poliacutetico francecircs Durkheim (DURKHEIM1912) as mais

elementares construccedilotildees mitoloacutegicas satildeo produtos que recobrem um fundo de

crenccedilas que constitui a base que auxiliou a edificaccedilatildeo dos mais diversos sistemas

religiosos na antiguidade No caso grego haacute uma enorme dificuldade de

entendermos essa questatildeo com o nosso olhar que eacute marcado pela nossa tradiccedilatildeo

judaico-cristatilde Eacute inegaacutevel que a experiecircncia mito-poeacutetica esteja intimamente

relacionada com a religiatildeo mas o nosso grande problema eacute aceitar uma ordem de

valor na qual o mito estaria subordinado a ele com esse uacutenico propoacutesito O primeiro

ldquoespantordquo que todos os antigos apontam para o despertar humano e que culminou

no nascimento da proacutepria Filosofia tambeacutem pode ter sido a origem dessa separaccedilatildeo

entre duas instacircncias que teria sido responsaacutevel pela origem da Religiatildeo Nesse

caso a linha entre Religiatildeo e Filosofia eacute mais tecircnue do que podemos imaginar De

qualquer modo um ponto que todos os helenistas - independentemente de suas

teorias - estatildeo de acordo eacute no caso grego a experiecircncia mito-poeacutetica estaacute totalmente

relacionada com essas criaccedilotildees do pensamento humano que surgiram frente agrave

complexidade e grandiosidade da Phyacutesis Desse modo nos deparamos com mais

uma evidecircncia que reforccedila a tese apresentada por Naddaff anteriormente Pois o

domiacutenio do sagrado como um segredo insondaacutevel foi o objeto de desejo tanto dos

aedos e quanto dos primeiros filoacutesofos Cada um a seu modo se colocaram como os

responsaacuteveis por determinar esse limite entre o mundo dos mortais e imortais

Logo a tradiccedilatildeo miacutetica natildeo pode ser interpretada apenas associada agraves praacuteticas

religiosas primitivas Por tanto se faz necessaacuteria uma abordagem que possa

contemplar esse outro aspecto que apresentamos a partir de uma nova perspectiva

que estabeleccedila o seu lugar de valor como uma consistente praacutetica sapiencial343 que

343 Vide os fragmentos da poesia cosmoloacutegica mais antiga de Orfeu Museo e Epimecircnides curiosamente esses trecircs satildeo considerados na antiguidade como filoacutesofos e poetas Para os dois primeiros em alguns fragmentos encontramos o termo aedos (ἀοιδός) para classificaacute-los Esse eacute um importante indiacutecio que aponta a relaccedilatildeo entre a praacutetica sapiencial primitiva e a poesia oral O ponto em comum entre esses aspectos que podemos provisoriamente destacar eacute o papel desempenhado pela muacutesica que flutua entre o caraacuteter miacutestico e filosoacutefico Posteriormente pretendemos expor algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto No caso de Epimecircnides que fecha essa

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foi responsaacutevel por ampliar o processo de subjetividade coletiva helecircnica durante

esse momento histoacuterico Mesmo com essas ressalvas temos a consciecircncia de que

haacute ainda uma forte resistecircncia pela tradiccedilatildeo de especialistas que estudam essa

questatildeo pois muitos pesquisadores hesitam em aceitar uma nova abordagem que

tente encontrar a razatildeo do uso do conteuacutedo mito-poeacutetico em outras esferas da

sociedade grega A nossa intenccedilatildeo eacute de explorar essa via que foi esquecida para

uma atualizaccedilatildeo exegeacutetica em torno dessas questotildees que ainda carecem de razoaacuteveis

esclarecimentos

No caso da religiatildeo esse problema ainda eacute mais complexo pois mesmo com

a queda da realeza micecircnica e do periacuteodo de laicizaccedilatildeo344 que ganhou espaccedilo na

constituiccedilatildeo das primeiras polis com o advento da Democracia na Greacutecia o

fenocircmeno religioso ainda exercia uma profunda influecircncia na mentalidade coletiva

helecircnica345 Contudo haacute uma pergunta que precisa ser respondida como esse fato

foi possiacutevel A uacutenica teoria que poderiacuteamos utilizar para nos aproximar de uma

hipoacutetese aceitaacutevel seria uma concepccedilatildeo de religiatildeo que natildeo fosse imutaacutevel e

acompanhasse as diversas transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que ocorreram na Greacutecia

E nessa direccedilatildeo temos uma importante pista que talvez possa nos ajudar a

compreender esse problema Para Louis Gernet (GERNET 1968) por exemplo o

culto dionisiacuteaco346 parece ter sido uma praacutetica que natildeo pertencia a religiatildeo oficial e

triacuteade de filoacutesofos poetas miacutesticos vale lembrar uma impressionante histoacuteria que se encontra no livro de Dioacutegenes de Laeacutercio sobre a vida de Soacutelon (DL livro I) no qual narra que o poeta miacutestico foi chamado para extirpar uma terriacutevel praga em solo ateniense Independentemente do grau de veracidade o detalhe que destacamos eacute a sua atuaccedilatildeo desses saacutebios no campo social que se coaduna com o papel desempenhado pelos antigos aedos na antiga realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro DIELS Hermann e KRANZ Walther ldquoI Presocraticirdquo 3a ed Trad Giovanni Reale et al Milano Bompiani 2006 344 Ou processo de desconstruccedilatildeo da religiatildeo vigente Eacute notoacuterio que mesmo com o surgimento do regime democraacutetico houve uma abertura e transformaccedilatildeo dos antigos ritos pois eles nunca deixaram de existir na mentalidade grega Talvez fosse necessaacuterio reformular essa questatildeo a partir do sincretismo que eacute um traccedilo marcante da proacutepria formaccedilatildeo cultural grega que dialoga com a esfera poliacutetica eacutetica educativa e juriacutedica helecircnica 345 Haja vista os inuacutemeros processos de impiedade que foi noticiado em diversos relatos antigos Os filoacutesofos sofistas e poliacuteticos eram as figuras que mais sofriam em decorrecircncia desse problema Curiosamente o periacuteodo que esses intelectuais foram mais perseguidos foi o democraacutetico Logo eacute importante levar esse detalhe em consideraccedilatildeo na interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo sobretudo quando o filoacutesofo-poeta tece as suas duras criacuteticas ao regime democraacutetico (Vide a Repuacuteblica e as Leis) que foi responsaacutevel por condenar agrave morte o seu mestre Soacutecrates A necessidade de uma grande reforma poliacutetica e pedagoacutegica em Atenas surgiu da anaacutelise histoacuterica das organizaccedilotildees poliacuteticas gregas 346 E aqui poderiacuteamos citar o exemplo da religiatildeo oacuterfica e da confraria pitagoacuterica

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tradicional da antiga aristocracia grega347 Sendo de origem oriental e campesina

posteriormente foi absorvido para o seio dos rituais tradicionais controlados pela

aristocracia para fins administrativos Esse detalhe natildeo pode ser ignorado pois

revela o caraacuteter plaacutestico das praacuteticas religiosas helecircnicas Eacute provaacutevel que esse tipo

de fenocircmeno fosse moldado a partir de fortes pressotildees sociais e poliacuteticas de origem

interna e externa por toda extensatildeo territorial grega348 Curiosamente a experiecircncia

miacutetica tambeacutem parece ter sofrido diversas transformaccedilotildees para atender outras

demandas que surgiram no interior da vida helecircnica Por conseguinte eacute possiacutevel

que haja relaccedilatildeo entre esses indiacutecios mas essa pesquisa nos faria tomar um caminho

que nos distanciaria demais do presente objetivo349

De qualquer modo eacute importante ressaltar que para alguns antropoacutelogos como

Leacutevi-Strauss (STRAUSS 1964) o mito eacute um termocircmetro que podemos utilizar para

medir essas mudanccedilas que acompanharam a histoacuteria e o processo subjetivo coletivo

de qualquer povo Eacute notoacuterio que a formaccedilatildeo cultural helecircnica foi marcada por outros

povos egressos mais antigos como os grupos eacutetnicos da Europa e da Aacutesia que

ficaram conhecidos como indo-europeus Logo para se fazer um estudo minucioso

347 Segundo Louis Gernet o ritual dionisiacuteaco natildeo estaacute em hipoacutetese alguma relacionado com a realeza e nem com o antepassado das famiacutelias nobres ou com a formaccedilatildeo das cidades apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica Essa praacutetica religiosa teve origem entre os primeiros agricultores que viviam distante do palaacutecio e da parte territorial mais nobre da Greacutecia A Anthesteria (Ἀνθεστήρια Anthestếria de ἄνθος anthos flor portanto a festa das flores) eacute uma antiga festividade grega celebrada em honra do deus Dioniacutesio Esse evento de origem camponesa estaacute entre as mais tiacutepicas que foram preservadas na antiguidade e que aparece no calendaacuterio de Atenas e vaacuterias outras cidades Elas acontecem do deacutecimo primeiro ao deacutecimo terceiro dia do mecircs de anestesia o oitavo mecircs do calendaacuterio aacutetico (o uacuteltimo mecircs do ano antes de 1ordm de marccedilo comeccedilando o ano novo e o periacuteodo de guerra) correspondendo no calendaacuterio gregoriano no final de fevereiro e no iniacutecio de marccedilo Essas caracteriacutesticas alimentam a hipoacutetese da influecircncia estrangeira que foi essencial para o sincretismo grego desde o periacuteodo arcaico Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro LOUIS Gernet et ANDREacute Boulanger ldquoLe Geacutenie grec dans la religionrdquo Paris Albin Michel 1970 348 De modo anacrocircnico podemos pensar como ocorreu essa mudanccedila A expansatildeo do cristianismo que aconteceu entre o seacuteculo I e III em Roma que antes era uma cultura pagatilde foi posteriormente aceita como uma religiatildeo oficial atraveacutes de um decreto assinado pelo imperador Constantino Talvez algo similar possa ter acontecido entre os gregos antes da intervenccedilatildeo de Soacutelon Nesse sentido eacute bem provaacutevel que a religiatildeo dionisiacuteaca tenha sido assimilada como uma expressatildeo legiacutetima do estado Mesmo sendo uma divindade antagonista de Apolo Dioniacutesio representa uma forccedila de purificaccedilatildeo que era benfazeja para o cultivo agraacuterio das classes mais baixas Assim podemos concluir que a antiga organizaccedilatildeo poliacutetica administrada pela classe aristocraacutetica sentiu a necessidade de promover essa abertura por algum tipo de crise ou pressatildeo social Eacute importante ressalta por uacuteltimo que por causa do abastecimento agriacutecola oferecido por esses trabalhadores mais humildes a nobreza tenha recuado Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoAnthropologie de la Gregravece antiquerdquo preacuteface de Jean-Pierre Vernant Paris Flammarion 1982 349 Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo vide os seguintes livros DETIENNE Marcel ldquoA invenccedilatildeo da mitologiardquo Brasiacutelia EDUNB Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1992 E VERNANT J P ldquoMito e sociedade na Greacutecia Antigardquo 2ordf ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1999

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sobre esse problema seria necessaacuterio analisar esses aspectos em outras culturas orais

antigas a partir de suas respectivas praacuteticas linguiacutesticas350 poliacuteticas religiosas e

artiacutesticas que estejam relacionadas ao uso da mitologia para esses fins Como foi

ressaltado por noacutes anteriormente no iniacutecio desse presente capiacutetulo a tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica natildeo pode ser considerada como uma instacircncia independente ou estanque

(GRIMAL 1987) pois ela acompanha todo o processo de desenvolvimento

humano nos seus mais diferentes contextos de atuaccedilatildeo que atravessa desde da

origem da Religiatildeo ateacute as primeiras praacuteticas sapienciais que foram importantes para

o desenvolvimento da Linguagem Educaccedilatildeo Direito Literatura Arte e Filosofia

no mundo antigo

45 Mito e a voz

Haacute vaacuterios sentidos para esse termo o emprego mais antigo que encontramos

estaacute na poesia homeacuterica como expusemos anteriormente351 e ele estaacute associado ao

nosso ato de fala O mito eacute a palavra que designa o pensamento que se exprime

atraveacutes da liacutengua de modo literal e natural352 Como uma histoacuteria espontacircnea e

350 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro BENVENISTE E ldquoLe vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes 1 Eacuteconomie parenteacute socieacuteteacute 2 Pouvoir droit religionrdquo Paris Eacuteditions de Minuit 1969 351 Vide Homero Iliacuteada (livro II v 489) 352 Esse eacute o seu sentido originaacuterio que encontramos no dicionaacuterio Lydell amp Scott microῦθος ὁ palavra fala freq em Hom e outros Poetas em sg e pl πος καὶ microῦθος Od 11561 opp ἔργον microύθων τε ῥητῆρ ἔmicroεναι πρηκτῆρά τε ἔργων Il 9443 cf 19242 esp mera palavra microύθοισιν opp ἔγχεϊ 18252 ἔργῳ κοὐκέτι microύθῳ A Pr 1080 (anap) Etc - em relaccedilotildees especiais 2 discurso puacuteblico micro Odνδρεσσι microελήσει Od 1358 microύθοισιν σκολιοῖς Hes Op 194 microύθου ἐπισχεσίη a apresentaccedilatildeo de um fundamento Od 2171 πρὶν ἂν ἀmicroφοῖν micro ἀκούσῃς οὐκ ἂν δικάσαις Ar V 725 microύθοισι κεκάσθαι para ter habilidade na fala Od 7157 3 conversa principalmente em pl 4214 239 etc 4 coisa disse fato mateacuteria microῦθον δέ τοι οὐκ ἐπικεύσω ib 744 τὸν ὄντα micro Enguia 346 ameaccedila comando ἠπείλησεν microῦθον Il 1388 cf 25 1683 cobrar missatildeo 9625 conselho conselho 7358 5 coisa pensamento palavra natildeo dita propoacutesito design 1545 (pl) microύθων οὓς microνηστῆρες ἐνὶ φρεσὶ βυσσοδόmicroευον Od 4676 cf 777 ἔχετ ἐν φρεσὶ microῦθον 15445 5χε σιγῇ micro ἐπίτρεψον δὲ θεοῖσι 19502 cf 11442 mateacuteria θεοῖσι microῦθον ἐπιτρέψαι 22289 microῦθον microυθείσθην τοῦ εἵνεκα λαὸν ἄγειραν o motivo 3140 6 dizendo κατὰ τὸν ἡmicroέτερον micro Pl Epin 980a οὐκ ἐmicroὸς ὁ micro ἀλλ E Fr 484 cf Pl Smp 177a Ligue Lav 56 Ph 1601 Plu 2661a viu proveacuterbio τριγέρων micro τάδε φωνεῖ A Ch 314 (anap) 7 conversa de homens boato ἀγγελίαν τὰν ὁ microέγας micro Sέξει S Aj 226 (lyr) Cf 188 (lyr Pl) E IA 72 relatoacuterio mensagem S Tr 67 (pl) E Ion 1340 II conto histoacuteria narrativa Od 394 4324 S Ant 11 etc em Hom como o λόγος posterior sem distinccedilatildeo de verdadeiro ou falso micro παιδός ou sobre ele Od 11492 na Trageacutedia Ἀκούσει microῦθον ἐν βραχεῖ λόγῳ(χρόνῳ cod M) A Pers 713 microύθων τῶν Λιβυστικῶν Id Pe 1391 em Prosa τὸν εἰκότα micro a mesma histoacuteria como lihood pl Ti 29d prov Μ πώλετο seja de uma histoacuteria que nunca chega ao fim ou de um contado para aqueles que natildeo ouvem Cratin 59 Crates Com 21 pl Th 164d cf R 621b Lg 645b Phlb 14a micro ἐσώθη esse eacute o fim da histoacuteria Phot 2 ficccedilatildeo (opp Λόγος verdade histoacuterica) Pi O 129 (pl) N 723 (pl) Pl Phd 61b Prt 320c 324d etc 3 geralmente ficccedilatildeo micro

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orgacircnica que natildeo tem a necessidade de verificaccedilatildeo factual353 pois dentro dessa

especiacutefica conjuntura oral o criteacuterio de verdade estava totalmente subordinado agrave

memoacuteria que era validada atraveacutes do desempenho persuasivo do aedo ao revelar

para o mundo a palavra ambiacutegua dos deuses e a accedilatildeo do homem nobre que tinha

alcanccedilado o seu respeito atraveacutes de suas conquistas no campo de batalha atraveacutes da

eacutepica homeacuterica354 Dentro desse contexto esses dois traccedilos eram relacionaacuteveis a

partir do horizonte divino que era o paracircmetro fundamental para a construccedilatildeo

mimeacutetica do horizonte humano355 A expressatildeo dessa ldquoverdaderdquo pode ser obtida

atraveacutes de vaacuterias perspectivas Uma delas que gostariacuteamos de salientar pode ser

fornecida atraveacutes dos jogos Oliacutempicos que nasceu a partir do mito de Heacuteracles356

Phδιοι Phld Po 55 lenda mito Hdt 245 pl R 330d Lg 636c etc ὶ περὶ θεῶν micro Epicur Ep 3p65 U τοὺς micro τοὺς ἐπιχωρίους γέγραφεν SIG 3827 (Delos iii aC) 4 professada obra de ficccedilatildeo histoacuteria infantil faacutebula Pl R 377a das faacutebulas de Esopo Arist Mete 356 b11 5 enredo de uma comeacutedia ou trageacutedia Id Po 1449b5 1450a4 1451a16 III = στάσις Panyas em CollAlex p249 vl em Batr 135 cf microυθιήτης 353 Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo preacute-homeacuterico o poeta ou aedo era o paracircmetro para a noccedilatildeo de verdade que estava associada ao sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo Para mais informaccedilotildees vide o segundo capiacutetulo do seguinte livro DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap II (A memoacuteria do Poeta) pag 15 354 Vide Iliacuteada (Livro IX 443 ndash 455) ldquoOacute luminoso Aquiles se de fato tens o retorno na mente se das naus velozes natildeo queres afastar o fogo vorador possuiacutedo de ira como poderei quedar-me sem ti abandonado Peleu domador-de-corceacuteis quando haacute tempo da Ftia te mandou a Agamecircmnon enviou-me contigo eras muito jovem inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da aacutegora onde os nobres formam-se Por isso me mandou para que te fizesse na oratoacuteria eminente eficiente nas obras Sem ti natildeo ficaria filho mesmo que um deus desvestir do meu corpo a senescecircncia prometesse e a flor dos anos restituir-me quando deixei - mulheres lindas - a Heacutelade fugindo de meu pai o Ormeniacuteade Amintor com o qual brigara disputando-lhe a platino loura pulcra amante por ele em desfavor da esposa preferida Rogara-me minha matildee que a outra eu possuiacutesse insuflando oacutedio ao velho Coisa que fiz obedecendo Deu-se conta o pairdquo Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 355 Nas Leis (livro IV 716 c) Platatildeo parte dessa mesma constataccedilatildeo que tambeacutem pode ser encontrada em outras obras como Timeu no qual apresenta uma relaccedilatildeo proporcional entre o homem cidade e cosmos A figura do demiurgo eacute um espelho para o homem pois nessa idealizaccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer a construccedilatildeo de um caminho seguro para encontrar a plenitude existencial tatildeo almejada Curiosamente eacute possiacutevel perceber que esse artificie divino carrega traccedilos humanos (Timeu - 37 c7) que fazem jus aquela passagem biacuteblica encontrada no livro do Gecircnesis (126) que afirma que o homem eacute feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus Nesse sentido o filoacutesofo poeta parece retomar e reformular esse ideal da sua linhagem nobre que surgiu antes mesmo do periacuteodo preacute-homeacuterico De um modo geral o seu pensamento sempre dialogou com a tradiccedilatildeo Eacute importante ressaltar que mesmo em sua uacuteltima fase de vida Platatildeo nunca deixou de demonstrar o seu profundo respeito pela tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica As suas criacuteticas agrave poesia satildeo formuladas a partir do efeito colateral que ela produziu durante o surgimento da Democracia atraveacutes de Simocircnides de Ceos e do surgimento do movimento pedagoacutegico sofiacutestico 356 Eacute importante salientar que para muitos estudiosos havia uma atividade na civilizaccedilatildeo minoica que eacute muito similar aos jogos oliacutempicos pois ela combinava esporte danccedila e atletismo como parte de suas cerimocircnias religiosas puacuteblicas Aleacutem de outros elementos que pretendemos apresentar em momento oportuno como a proacutepria origem mito de Heacuteracles e da sua importacircncia no periacuteodo eacutepico eacute provaacutevel que essas atividades se perpetuaram atraveacutes da tradiccedilatildeo oral apoacutes a queda da civilizaccedilatildeo micecircnica durante o periacuteodo das trevas dos povos remanescentes que ajudaram a formar posteriormente a cultura grega Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto gostariacuteamos de recomendar

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Esse festival foi criado para prestigiar os deuses atraveacutes do ritual que exalta a

lembranccedila dos grandes heroacuteis miacuteticos357 e manter acesa a beleza das accedilotildees desses

homens superiores em astuacutecia inteligecircncia forccedila e coragem Os poetas tinham o

dever de imortalizaacute-los atraveacutes dessas virtudes cardeais Enquanto Homero canta

os feitos de seus heroacuteis a poesia de Piacutendaro de Tebas homenageava a vitoacuteria dos

grandes competidores358 Assim como a poesia esse certame era responsaacutevel por

delimitar a fronteira entre o espaccedilo humano e divino e o espanto359 primordial que

elevou o espiacuterito humano atraveacutes da accedilatildeo bela que construiu uma forma de

afirmaccedilatildeo existencial a partir do reconhecimento da nossa mortalidade A

excelecircncia360 e a sabedoria praacutetica361 eram os traccedilos de uma pedagogia362 que tinha

como objetivo fornecer ao indiviacuteduo os meios para alcanccedilar a sua plenitude

existencial363 atraveacutes do respeito e desenvolvimento de suas aptidotildees que deveriam

estar agrave serviccedilo do bem maacuteximo da comunidade364 Essa bela accedilatildeo deveria ser

alcanccedilada no acircmbito da guerra poliacutetica assembleias e nos jogos O ideal de beleza 365 e coragem366 estavam inseridos em todas essas expressotildees da cultura helecircnica

Foi a partir dessa noccedilatildeo que surgiu a possibilidade da construccedilatildeo de uma moral que

pudesse realizar em grau maacuteximo a harmonia entre o mundo humano e o cosmos

divino E para a execuccedilatildeo desse objetivo encontramos uma coleccedilatildeo de mitos em

torno da figura de Heacuteracles367 As narrativas que envolvem o seu nome eacute sem duacutevida

alguma um dos legados da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica de maior repercussatildeo e atuaccedilatildeo

no mundo antigo Basta lembrar que aventuras protagonizadas pelo heroacutei perdurou

a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 357 Nesse ponto podemos sublinhar a importacircncia do mito para o nascimento da competiccedilatildeo oliacutempica 358 Vide as odes oliacutempicas de Piacutendaro 359 Θαύmicroα thaacuteuma 360 Αρετές areteacutes 361 Φρόνησις phroacutenesis Vide a Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1214- a33-b35) 362 Παιδεία paideacuteia 363 Eὐδαιmicroονία eudaimonia 364 Κοινωνία koinonia 365 Kαλός καγαθός kaloacutes kagathoacutes 366 Ανδρείαandreia 367 Vide a obra de Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 8 Nesse livro haacute uma compilaccedilatildeo sobre os principais mitos desse importante heroacutei grego que no periacuteodo latino ficou conhecido sob a alcunha de Heacutercules No item sobre a relaccedilatildeo entre mito e epos pretendemos apresentar mais algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia dessa temaacutetica para a cultura helecircnica na antiguidade

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do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute ser importado para ser utilizado como figura lendaacuteria

dentro da mitologia romana368

Na obra do historiador grego Diodoro de Siciacutelia que se chama ldquoBiblioteca

histoacutericardquo que foi escrita por volta do seacuteculo I aC nos deparamos com diversas

passagens no qual o proacuteprio autor chama a nossa atenccedilatildeo para as vaacuterias incoerecircncias

entre esses relatos miacuteticos mas essa objeccedilatildeo natildeo ofusca o valor dessa tradiccedilatildeo oral

pois ela ainda exercia uma grande relevacircncia para a educaccedilatildeo dos antigos Diodoro

chega a justificar para seus leitores que no teatro nos deparamos com vaacuterias

histoacuterias fantasiosas de centauros e de outros seres maacutegicos e nem por isso

deixamos de aplaudir e de honrar as divindades Nesse sentido podemos claramente

perceber o seu esforccedilo de conciliar a tradiccedilatildeo miacutetica com o rigor histoacuterico que

comeccedilou a ser cobrado a princiacutepio com a obra a ldquoHistoacuteria da guerra de

Peloponesordquo de Tuciacutedides369 Esse detalhe natildeo pode passar despercebido entre noacutes

pois revela que mesmo no periacuteodo romano a mitologia ainda vigorava com muita

forccedila entre o mundo grego e romano No caso de Heraacutecles os seus doze trabalhos

foram utilizados para incutir os ideais de coragem e persistecircncia na pedagogia

helecircnica e latina Esses valores idealizados eram projetados em todas as atividades

que perpassava o aspecto militar da educaccedilatildeo homeacuterica ateacute a importacircncia do

trabalho fomentado pela poesia hesiodica Eacute sob essa perspectiva que podemos

encontrar o caraacuteter plaacutestico da mitologia que pocircde ser explorado infinitamente por

diversos poetas e aedos para vaacuterios fins No caso do mito de Heacuteracles por exemplo

um desses usos mais antigos culminou na fundaccedilatildeo dos jogos Oliacutempicos na

Greacutecia370 E como foi exposto por noacutes anteriormente esse festival puacuteblico tinha o

objetivo de estimular em todos os homens essa afirmaccedilatildeo de excelecircncia atraveacutes da

accedilatildeo efetiva que tem o objetivo de zelar o equiliacutebrio social e poliacutetico da civilizaccedilatildeo

368 E nesse momento nos deparamos in loco com a prova do uso da tradiccedilatildeo mito poeacutetica que perdurou ateacute o periacuteodo heleniacutestico 369 O helenista britacircnico Francis Cornford natildeo pensa desse modo Ele afirma que a nossa historiografia moderna projetou de modo anacrocircnico e equivocado os nossos criteacuterios de cientificidade sobre a obra do ilustre grego pois Tuciacutedides natildeo conhecia o conceito de causalidade histoacuterica E nesse sentido temos que estudar a sua obra a partir do seu respectivo contexto histoacuterico que estava vinculada diretamente a mentalidade traacutegica das peccedilas de Eacutesquilo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro CORNFORD F M ldquoThucydides Mythistoricusrdquo London 1907 370 Vide Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 14

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helecircnica Esse foi o caminho construiacutedo para a manutenccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses

povos

Nesse sentido o atletismo371 foi a atividade que materializou esse ensejo

coletivo Ele se tornou o siacutembolo maacuteximo da cultura grega que foi responsaacutevel por

carregar esse legado da educaccedilatildeo aristocraacutetica mais antiga A competiccedilatildeo372 foi um

traccedilo tatildeo marcante que essa experiecircncia ficou eternizada em um ritual ciacutevico para

lembrar a importacircncia dessa atividade na formaccedilatildeo humana atraveacutes da Paideacuteia

(Educaccedilatildeo)373 Em cada prova esse contato com o mundo divino eacute rememorado e

reafirmado entre seus inuacutemeros competidores O homem atraveacutes do seu esforccedilo

fiacutesico e mental pode alcanccedilar o seu valor quando ultrapassa os seus proacuteprios

limites que foram impostos a priori pela natureza Esse gesto magnifico - que eacute

atualmente compartilhado entre diversas culturas em nosso mundo ndash tem o poder

de aproximar o homem dos deuses em cada recorde alcanccedilado Um degrau de

ascensatildeo que eleva o atleta e lhe fornece as devidas honras e gloacuterias que eacute obtida

pela accedilatildeo vitoriosa que abrange do campo individual ao coletivo374 Ou seja

somente atraveacutes da bela accedilatildeo no terreno da disputa o competidor ndash e o guerreiro -

pode estabelecer um diaacutelogo no qual resulta o seu reconhecimento e valor dentro

371 Esse termo traz em seu radical o sentido de combate competiccedilatildeo e disputa Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott ἀθλ-έω athleacuteo Ion impf ἀέθλεον Hdt 167 7212 aor ἤθλησα (v infr) pf ἤθληκα Plu Demetr 5mdash Med aor ἐνηθλησάmicroην AP 7117 (Zenod)mdash Pass pf κατήθληmicroαι Suid (ἆθλος ἆθλον)mdashforma comum dos estrangeiros usado por Homero somente no aoristo Particiacutepio Λαοmicroέδοντι ἀθλήσαντε tendo contenda com ele Il 7453 πολλάπερ ἀθλήσαντα tendo paacutessdo por muitas lutas 1530 contenda em batalha Hdt 7212 πρός τινα 167 ἀ ἄθλους ἀ κατὰ τὴν ἀγωνίαν Pl Ti 19c and b cf Lg 830a ἤθλησα κινδυνεύmicroατα have engaged in perilous struggles S OC 564 φαῦλον ἀθλήσας πόνον E Supp 317 ἀ τῷ σώmicroατι Aeschin 2147 II Para ser um atleta e disputar nos jogos Simon 149 CIG 2810b (Aphrodisias) III Realizar jogos ἐπ αρχεmicroόρῳ B 812 372 Αγώνεςagones 373 Para mais informaccedilotildees vide os seguintes livros ROCHA PEREIRA MARIA H ldquoEstudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Irdquo Cultura Grega Lisboa 2006 E ANDRONICOS E (e outros) ldquoJogos Oliacutempicos na Greacutecia Antigardquo Ed Odysseus 2004 374 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo Ou seja ela eacute (ενέργεια τισ εστιν eneacutergeia tis estiacuten) uma atividade e natildeo uma possessatildeo Eacute importante ressaltar que para o filoacutesofo macedocircnio essa conquista eacute algo que abrange do campo coletivo ao individual A diferenccedila que encontramos sobre essa questatildeo entre o periacuteodo homeacuterico e claacutessico eacute o fato de que para Homero a moral natildeo eacute autocircnoma pois ainda estaacute subserviente da vontade dos deuses No caso de Aristoacuteteles ela eacute imanente ao homem e surge como decorrecircncia da atividade poliacutetica que visa estabelecer a harmonia na polis Somente nela o indiviacuteduo pode realizar as suas competecircncias em maacuteximo grau para encontraacute-la e compartilhaacute-la para o equiliacutebrio total da cidade e consequentemente encontrar a sua plenitude existencial Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SNELL Bruno ldquoA descoberta do espiacuteritordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1992 E ARISTOTLE ldquoNicomachean Ethicsrdquo Loeb Classical Library Trans H Rackham Rev ed Cambridge Mass 1934

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da imortalidade que foi recebida como uma daacutediva dos deuses pelo canto dos

poetas no mundo humano Exatamente como ocorreu no mito de Heacuteracles Atraveacutes

dessa perspectiva podemos reconhecer a eficaacutecia do poder materializador da

mitologia ao transformar homens em seres quase divinos que ganharatildeo a sua

imortalidade375 e fama atraveacutes de suas accedilotildees que seratildeo expostas e cantadas como

modelo para as geraccedilotildees vindouras Eacute unicamente nesse contexto que a tradiccedilatildeo

mito-poeacutetica revela o seu maacuteximo valor e alcance na vida dos mortais

Mas antes desse momento de gloacuteria coletiva a accedilatildeo criadora eacute soprada da

alma para os laacutebios do aedo Esse som produzido por esse gesto poeacutetico estaacute no

termo myacutetha376 que eacute o uso mais antigo para phoneacute377 o som da voz responsaacutevel

375 E natildeo-esquecimento na histoacuteria humana 376 Μύθα myacutetha Som da voz 377 Para mais informaccedilotildees obre esse termo vide o dicionaacuterio do Lidell amp Scott φων-ή ἡ som tom prop o som da voz seja de homens ou animais com pulmotildees e garganta (ἡ φωνὴ ψόφος τίς ἐστιν ἐmicroψύχου Arist de An 420b5 cf 29 HA 535a27 PA 664b1) opp φθόγγος (v φθόγγος 11) I principalmente de seres humanos fala voz enunciaccedilatildeo φ Ilρρηκτος Il 2490 ἀτειρέα φ 17555 φ δέ οἱ αἰθέρ ἵκανεν do grito de guerra de Ajax 15686 do grito de guerra de um exeacutercito Τρώων καὶ αχαιῶν φ δεινὸν ἀϋσάντων 14400 pl dos gritos de pessoas do mercado X Cyr 123 τόνος τῆς φ Identidade Cyn 620 D 18280 Aeschin 3209 ὀξεῖα βαρυτέρα λεία τραχεῖα φ Pl Ti 67b φ microαλακή Nu 979 (anap) microιαρά ἀναιδής Id Eq 218 638 com Verbos φωνὴν ῥῆξαι Hdt 185 Ar Nu 357 (anap) φ Hέναι Hdt 22 423 Pl Phdr 259d etc φ Eσει E HF 1295 προίεσθαι Aeschin 223 Xρθροῦν X Mem 1412 διαρθρώσασθαι Pl Prt 322a Aντείνασθαι Aeschin 2157 φ ῖπαρεῖ D 19336 ῇωνῇ com a voz em voz alta Il 3161 Pi P 929 εἶπε τῇ φωνῇ τὰ ἀπόρρητα Lys 651 διὰ ζώσης φωνῆς Anon GeogEpit 1p488M microιᾷ φ com uma voz Luc Nigr 14 ἀπὸ φωνῆς c gen ditado por Choerob em Thd 1103 tit Marin em EucDat p234 M Olymp em Grg p 1 N Pall no Hp 21 D pl Αἱ φ as notas da voz Pl Grg 474e σχήmicroασι καὶ φωναῖς Arist Rh 1306a32 prov ῇωνῇ ὁρᾶν de um homem cego S OC 138 (anap) πᾶσαν τὸ λεγόmicroενον φ ἱέντα ou seja usando todos os esforccedilos Pl Lg 890d cf Euthd 293a πάσας ἀφιέναι φωνάς Id R 475a D 18195 ἀωνὰς ἀπρεπεῖς προίεντο PTeb 80215 (ii B C) 2 o grito de animais como de suiacutenos catildees bois Od 10239 1286 396 de jumentos Hdt 4129 do rouxinol canccedilatildeo Od 19521 νθρωπος πολλὰς φωνὰς ἀφίησι τὰ δὲ ἄλλα microίαν Arist Pr 895a4 3 qualquer som articulado opp ruiacutedo inarticulado (ψόφος) κωκυmicroάτων S Ant 1206 ὥσπερ φωνῆς οὔσης κατὰ τὸν ἀέρα πολλάκις καὶ λόγου ἐν τῇ φωνῇ Trama 6412 στοιχεῖόν ἐστι φ ἀδιαίρετος Arist Po 1456b22 tambeacutem especialmente de vogal op para de consoantes Pl Tht 203b Arist HA 535a32 na criacutetica literaacuteria de som opp significados Ph Po 520 (pl) 21 4 de sons feitos por objetos inanimados principalmente Poeta κερκίδος S S Fr 595 συρίγγων E Tr 127 (lyr) αὐλῶν Mnesim 456 (anap) raro no iniacutecio da prosa φργάνων φωναί Pl R 397a LXX Ex 2018 ροντῆς ib Ps 103 (104) 7 ὐ φ αὐτοῦ ὡς φ ὑδάτων πολλῶν Apoc 115 5 geralmente som definido como ἀὴρ πεπληγmicroένος πληγὴ ἀε ρος Zeno Stoic 121 Chrysippib 243 II faculdade de fala discurso εἰ φωνὴν λάβοι S El 548 παρέσχε φωνὴν τοῖς ἀφωνήτοις τινά Id OC 1283 2 linguagem hdt 4114 117 ἀνθρωπηίη Id 255 ἀγνῶτα φ βάρβαρον A Ag 1051 φωνὴν ἥσοmicroεν Παρνησίδα Id CH 563 cf E Or 1397 (lyr) Th 65 757 X Cyn 23 pl Ap 17d etc τῶν βαρβάρων πρὶν microαθεῖν τὴν φ Identidade Th 163b κατὰ τὴν αττικὴν τὴν παλαιὰν φ Identidade Cra 398d cf 409e III frase dizendo τὴν Σιmicroωνίδου φ Identidade Prt 341b ἡ τοῦ Σωκράτους φ Plu 2106b cf 330f etc de foacutermulas στοιχειώmicroατα καὶ φ Epicur Ep 1p4U cf SentVat 41 (= Metrod Fr 59) αἱ σκεπτικαὶ φ SE P 114 cf jul Ou 5162b etc IV relatoacuterio rumor LXX Ge 4516 b mensagem Sammelb 725221 (iii iv A D) V fala alta se gabando Epicur SentVat 45

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pela comunicaccedilatildeo entre homens e deuses O vocaacutebulo My378 no dicionaacuterio Liacutedell amp

Scott que estaacute presente na raiz da palavra mito musa379 e no verbo myacutetheomai380

corresponde em sua forma mais elementar na literatura helecircnica ao murmuacuterio feito

pelos laacutebios Esse som primaacuterio eacute o ponto inaugural que assinala o comeccedilo dessa

experiecircncia expressiva e criativa do homem do periacuteodo preacute-homeacuterico381 na

linguagem A voz antes mesmo de formular uma palavra expressa a forccedila da vida382

que ecoa no corpo como uma espeacutecie de possessatildeo divina atraveacutes do espanto Esse

ruiacutedo confuso antes mesmo de encontrar a melodia e o ritmo da muacutesica em nosso

batimento cardiacuteaco que ampliou o desenvolvimento cultural grego apoacutes essa

descoberta talvez tenha se originado como uma resposta ao momento em que o som

do trovatildeo383 mar384 e o do vento385 tenham despertado os sentidos desse homem

para esses fenocircmenos naturais Aos poucos ele vai percebendo que o ritmo que se

impotildee ao seu redor e no seu proacuteprio corpo lhe revela o pulsar majestoso da vida386

378 Μῦ τό nome da letra micro IG 2432124 (iv B C) Epigr ap Ath 10454f Hellad ap Phot Bibl p530 B etc 2 microῦ ou microὺ microῦ para representar um som de murmuacuterio feito com os laacutebios microῦ λαλεῖν para murmurar Hippon 80 (dubl l) para imitar o som de soluccedilos microὺ microῦ microὺ microῦ Ar Eq 10 379 Natildeo eacute fortuita a relaccedilatildeo entre esses termos Como foi visto anteriormente as musas satildeo as entidades divinas fundamentais para o processo de conhecimento comunicaccedilatildeo memoacuteria e educaccedilatildeo grega Eacute importante ressaltar que o verbo ldquoiniciarrdquo tambeacutem eacute oriundo desse mesmo radical (Vide o dicionaacuterio Lidell amp Scott para esse termo microύησις [υ] myacuteesis εως ἡ iniciaccedilatildeo Androt 34 OGI 7647 (Pergam Ii B C) Herm em Phdr p158 A etc em pl Ph 1156 Plu 2169d SIG 126727 (Ios iii A D) Iamb VP 1774) 380 Homero Iliacuteada (livro II v 489) Como foi exposto anteriormente essas divindades satildeo responsaacuteveis por ldquoiniciarrdquo ou ldquoensinarrdquo aos homens as coisas mais belas e uacuteteis para a sua sobrevivecircncia Nesse sentido a arte das musas que no grego corresponde ao termo mousikeacute (microουσικὴ) refere-se aos conjuntos de atividades que o homem precisava praticar para encontrar a sua plenitude existencial 381 Segundo os arqueoacutelogos e historiadores que tratam dessa questatildeo da formaccedilatildeo cultural grega durante o periacuteodo preacute-homeacuterico os primeiros habitantes indo-europeus que eram formados por tribos de origem ariana (aqueus jocircnios eoacutelios e por uacuteltimo os doacuterios) apareceram por volta de 1200 aC a 1100 aC e atraveacutes do processo de mesticcedilagem formaram as primeiras civilizaccedilotildees neoliacuteticas gregas que foram responsaacuteveis por inaugurar a civilizaccedilatildeo helecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E KIRK G S ldquoHomer and the Oral Traditionrdquo Cambridge 1976 382 Para a fonoaudiologia a voz eacute o som produzido utilizando as cordas vocais O pulmatildeo eacute o oacutergatildeo responsaacutevel por gerar a corrente de ar necessaacuteria para esse processo Curiosamente o elemento primordial para o filoacutesofo preacute-socraacutetico Anaxiacutemenes era o focirclego (πνεῦmicroαpneuma) que era considerado ateacute pelos estoicos como a forccedila criadora da vida 383 Ζεύς Zeus eacute o pai dos deuses (πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε pater andron te theon te) O soberano uacutenico do Olimpo que reina sobre as demais divindades na mitologia grega Eacute o deus dos ceacuteus raios relacircmpago que mantecircm a ordem e justiccedila do mundo 384 Ποσειδῶν Poseidōn eacute o deus do mar 385 Αίολος Aiacuteolos eacute o senhor dos ventos 386 Atraveacutes do reconhecimento da existecircncia da alma Para Erwin Rohde o culto das almas foi a forma mais antiga de religiatildeo em diversos povos antigos No caso dos gregos o helenista alematildeo vai estudar esse fenocircmeno a partir dos poemas homeacutericos e de Piacutendaro e dos fragmentos doxograacuteficos sobre o orfismo e o pitagorismo antigo Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura

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e de sua conexatildeo com o mundo que parte de uma forccedila invisiacutevel que ordena e

estabelece a ordem entre todas as coisas387 A partir desses indiacutecios apresentados

natildeo podemos em hipoacutetese alguma subestimar o papel desempenhado pela mitologia

na tradiccedilatildeo oral Dentro desse contexto o mito foi essencial para efetivaccedilatildeo

existencial da cultura helecircnica Mesmo com o advento da escrita posteriormente e

a expansatildeo da ciecircncia e da filosofia que se fundamenta atraveacutes do seu rigor factual

o recurso miacutetico ainda era utilizado por diversos intelectuais em suas obras durante

e depois do periacuteodo claacutessico (VEYNE 1984) Por conseguinte essa evidecircncia natildeo

pode ser ignorada nos estudos que abordam o desenvolvimento da mentalidade

grega na antiguidade

46 Mito e muacutesica

O primeiro som ouvido e posteriormente exprimido pela voz humana e das

musas estaacute contido no radical da palavra mito Como foi exposto por noacutes

anteriormente388 a tradiccedilatildeo oral se desenvolveu atraveacutes do domiacutenio da arte sonora

que foi essencial para o processo de comunicaccedilatildeo e conhecimento da tradiccedilatildeo preacute-

homeacuterica389 Dentro desse contexto a muacutesica sem duacutevida alguma eacute um dos eixos

do seguinte livro ROHDE Erwin ldquoPsyche The Cult of Souls and the Belief in Immortality among the Greeksrdquo trans from the 8th edn by W B Hillis London Routledge amp Kegan Paul 1925 387 Vide a poesia ldquoRerum naturardquo de Lucreacutecio que expressa esse cosmo em versos O helenista britacircnico James Adam ao avaliar a dimensatildeo do pensamento platocircnico na antiguidade cita um poema beliacutessimo chamado ldquoOde Intimations of Immortality from Recollections of early childhoodrdquo do grande poeta romacircntico escocecircs William Wordsworth que expressa de modo sublime o espanto da natureza sobre o homem primitivo que teria dado o iniacutecio para a elevaccedilatildeo da cultura grega em seus primoacuterdios Vide ADAM James ldquoThe Vitality of Platonismrdquo Cambridge University Press 1911 paacuteg 8 388 Vide 33 389 Eacute importante ressaltar que dentro desse contexto oral esses dois termos satildeo praticamente sinocircnimos Nesse presente capiacutetulo podemos constatar que o criteacuterio de verdade e conhecimento estava associado ao grau de utilidade que um determinando tipo de conteuacutedo desempenhava na antiga sociedade grega Logo o mito que foi em muitos casos utilizados para a justificaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do poder real em outros contextos era utilizado para educaccedilatildeo dos jovens e propagaccedilatildeo dos valores da realeza Nessa raacutepida anaacutelise podemos apontar pelo menos quatro tipos de aplicaccedilatildeo Posteriormente veremos que a arte sonora jaacute fazia parte da preacute-histoacuteria grega atraveacutes das culturas ciclaacutedicas minoica e micecircnica Mesmo depois da idade das trevas apoacutes a invasatildeo doacuterica esse tipo de conhecimento natildeo desapareceu da mentalidade dos grupos remanescentes que posteriormente ajudaram a constituir a cultura helecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto indicamos a leitura do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998

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de relaccedilatildeo entre o mundo divino e humano Ou seja ela eacute o viacutenculo390 entre o

homem e a phyacutesis Em todos os mitos relacionados agrave muacutesica391 na antiguidade eacute

possiacutevel detectar a presenccedila da conexatildeo entre a comunicaccedilatildeo memoacuteria criaccedilatildeo e

o conhecimento de modo sub-reptiacutecio em suas mais diversas apariccedilotildees na literatura

e nas artes plaacutesticas Como foi exposto anteriormente392 as musas satildeo as principais

divindades que representam essas funccedilotildees cognitiva dentro da tradiccedilatildeo mito-

poeacutetica A presenccedila desses arqueacutetipos nesse contexto revela uma estrutura muito

bem organizada que apresenta natildeo apenas o fasciacutenio mas o valor dessa atividade

na vida cotidiana grega desde a sua origem

De um modo geral na mitologia esse fenocircmeno de caracteriacutesticas muacuteltiplas

carrega um poder de unidade como acontece com a alma humana393 Esse poder de

coesatildeo eacute algo inerente agrave proacutepria Natureza que foi explorado posteriormente pela

maioria dos pensadores conhecidos como preacute-socraacuteticos Para Aristoacuteteles394 por

exemplo a muacutesica eacute o som da vida que se origina na voz humana395 e todos os

instrumentos que foram criados para imitar a voz cantando satildeo meios artificiais para

copiaacute-la Os padrotildees meloacutedicos da liacutengua grega eram utilizados para acentuar

significado agraves palavras (LEVIN 2009) Esse importante recurso foi criado durante

o periacuteodo de desenvolvimento do pensamento miacutetico-poeacutetico que possibilitou o

fundamento da cultura oral A partir dessa descoberta o filoacutesofo muacutesico

peripateacutetico Aristoxeno396 afirmava em seus estudos sobre a muacutesica e a harmonia

que havia uma espeacutecie de melodia no discurso cotidiano397 Essa caracteriacutestica

390 Para o grande filoacutesofo italiano Giordano Bruno o viacutenculo eacute pensado como a ordem de articulaccedilotildees de afecccedilotildees entre noacutes e o mundo e vice-versa E esse exerciacutecio de reconhecimento impotildee ao homem um novo olhar sobre a proacutepria natureza Ou seja ele apreende que ele eacute um microcosmo dentro de um macrocosmo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro BRUNO Giordano ldquoTratado da Magiardquo Satildeo Paulo Editora Martins Fontes 2008 391 Μουσικήmousikeacute a ldquoarte das musasrdquo 392 Vide 32 393 Na antiguidade os pitagoacutericos acreditavam que havia uma harmonia entre a alma e o corpo Vide os argumentos de Siacutemias e Cebes apresentados para Soacutecrates na prisatildeo sobre esse ponto Vide Platatildeo Feacutedon (84c-88b) 394 Vide Aristoacuteteles (De anima 420 b 5 -6) 395 Eis o viacutenculo exposto por Giordano Bruno 396 Aristoxeno Elementa harmocircnica (Livro I 2) 397 λογωδές τι microέλος logodeacutes ti melos Curiosamente em uma obra pouco conhecida chamada ldquoDo universo ou do mundordquo (Περὶ κοσmicroου peri kosmou 396 b-20) que eacute atribuiacuteda a Aristoacuteteles mas para muitos especialistas ela foi escrita por algum disciacutepulo peripateacutetico haacute uma passagem que vemos uma niacutetida aproximaccedilatildeo entre a muacutesica e o ato de fala vejamos a seguir ldquo a muacutesica mistura notas agudas e graves longas e curtas fazendo de diferentes sons uma uacutenica harmonia A gramaacutetica mistura vogais e consoantes como consequecircncia disso ela cria a sua arte O mesmo eacute falado pelo obscuro Heraacuteclito conjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente

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remonta direto a uma praacutetica discursiva que se baseava na linguagem musical

Nesse sentido para os falantes da liacutengua grega antiga distorcer algum acento tocircnico

era o mesmo que cometer um terriacutevel erro gramatical que implicaria em um ato

falho398 na praacutetica discursiva Um exemplo disso pode ser percebido quando

comeccedilamos a estudar o koineacute399 e o grego aacutetico400 e nos deparamos com duas

palavras que possuem a mesma grafia401 como vida e arco mas seus respectivos

significados satildeo totalmente distintos a partir da pronunciaccedilatildeo e tonicidade Logo

esse indiacutecio eacute a prova que confirma a sofisticaccedilatildeo e o amplo desenvolvimento

racional helecircnico que jaacute existia durante esse momento histoacuterico402 Aliaacutes a nossa

hipoacutetese eacute que esse passo ocorreu atraveacutes do aperfeiccediloamento de suas praacuteticas

discursivas

No caso do idioma grego nota-se que a praacutetica oral foi importante natildeo

apenas para o amplo desenvolvimento da muacutesica403 mas da proacutepria formulaccedilatildeo de

sua gramaacutetica404 Pois como relata Aristoxeno a muacutesica estava agrave serviccedilo da

consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo esse registro revela que os estudos referentes ao ato de comunicaccedilatildeo estavam em total sintonia com as teorias mais antigas sobre o fenocircmeno musical entre os gregos Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo nesse presente capiacutetulo 398 Eacute um deslize na fala na memoacuteria ou na escrita Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro FREUD Sigmund ldquoSobre a psicopatologia da vida cotidianardquo Em Ediccedilatildeo Standard Brasileira das Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud Vol VI Rio de Janeiro Imago 1970 399 Ελληνιστική ΚοινήHellenistikeacute Koineacute Esse idioma antecedeu o grego moderno e desenvolveu-se a partir do dialeto aacutetico e era praticado na regiatildeo da Aacutetica (onde se encontra Atenas) embora tenha grande influecircncia de elementos do antigo jocircnico 400 O aacutetico eacute o dialeto utilizado pela maioria dos grandes escritores do periacuteodo claacutessico como Tuciacutedides e Aristoacuteteles Posteriormente ele foi a base para a formaccedilatildeo de um dialeto mais popular que foi chamado de koineacute Vide a nota anterior 401 βίος και Βιός biacuteos kai bioacutes vide o fragmento 48 de Heraacuteclito no qual o filoacutesofo poeta brinca com essa semelhanccedila para apontar a relaccedilatildeo dos contraacuterios que se se aproximam como a morte e a vida O arco que eacute um instrumento de caccedila para subsistecircncia humana tambeacutem eacute utilizado em outro contexto para tirar vidas na guerra ou seja para produzir a morte Simultaneamente o arco e a vida carregam uma linha esticada que vive sempre em tensatildeo como a noccedilatildeo de harmonia que foi explorada por Pitaacutegoras No caso de Heraacuteclito essa tensatildeo eacute resultado da harmonia das forccedilas contraacuterias Essa proximidade sonora quanto semacircntica eacute explorada pelo filoacutesofo poeta para demonstrar a riqueza da linguagem grega que estaacute na poesia e no iniacutecio da filosofia grega 402 Ao contraacuterio do que afirmam alguns helenistas esse periacuteodo foi essencial para o desenvolvimento da racionalidade grega O nosso grande equiacutevoco talvez seja desconsideraacute-lo no processo que foi importante para o surgimento da Filosofia 403 Ou vice-versa Vide os comentaacuterios de Sexto Empiacuterico em ldquoContra os professoresrdquo (livro VI 1) sobre esses pontos Como foi ressaltado pelo filoacutesofo ceacutetico esse termo tem pelo menos trecircs sentidos que satildeo utilizados entre os gregos na antiguidade 404 Arte de ler e escrever Eacute importante ressaltar que na antiguidade havia uma grande polecircmica sobre a definiccedilatildeo de gramaacutetica que nesse periacuteodo se confundia com a filologia No livro ldquoContras os professoresrdquo (livro I 42) Sexto Empiacuterico esboccedila em termos gerais os meandros desse problema para os antigos Curiosamente quando ele inicia a sua investigaccedilatildeo ldquocontra os gramaacuteticosrdquo no capiacutetulo 42 ele questiona o ar de superioridade que essa ciecircncia possui em relaccedilatildeo as outras A partir

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poesia405 O uso da tonicidade nos indica que a marcaccedilatildeo silaacutebica foi aplicada para

a metrificaccedilatildeo e versificaccedilatildeo poeacutetica visando a excelecircncia expressiva Logo

podemos pressupor que o estudo da harmonia natildeo era algo de cunho meramente

teoacuterico406 mas estava voltado para a necessidade da praacutetica comunicativa que

desempenhou uma ampla gama de funccedilotildees durante o periacuteodo homeacuterico ateacute o

claacutessico407

Ao nos depararmos com essas evidecircncias expostas anteriormente chegamos a

uma conclusatildeo a natureza semacircntica das palavras dos poetas e dos primeiros

filoacutesofos estavam voltadas para a audiccedilatildeo atraveacutes desses acentos tocircnicos que eram

oriundos de uma sofisticada teacutecnica oral Os ouvidos dos antigos gregos estavam

altamente treinados para perceber as mais sutis nuances tocircnicas que eram essenciais

para a perfeita compreensatildeo do conteuacutedo sonoro da canccedilatildeo como da fala

ordinaacuteria408 Nesse sentido eacute possiacutevel aferir a importacircncia vital da muacutesica no

processo de comunicaccedilatildeo durante e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico Os recursos

que foram desenvolvidos para alcanccedilar a eficiecircncia comunicativa certamente eram

voltados para a estruturaccedilatildeo meloacutedica e riacutetmica em torno da tonalidade que

possibilitaram agrave poesia o uso como instrumento primordial de organizaccedilatildeo cultural

atraveacutes da oralidade e esse atributo revela o imenso desenvolvimento cognitivo

coletivo Como foi exposto anteriormente a tradiccedilatildeo mito-poeacutetica participou

da leitura do seu texto podemos extrair algumas evidecircncias 1) A superestimaccedilatildeo da gramaacutetica revela a importacircncia que a retoacuterica desempenhava ateacute o periacuteodo de Sexto Esse ponto pode ser subtendido quando o filoacutesofo ceacutetico menciona a passagem das Sirenes no livro da Odisseia de Homero (Odisseia canto XII 184-91) Esse mito remonta direto ao periacuteodo oral no qual o poder do canto era um phaacutermakon (remeacutedio e veneno) pois pode ser usado de modo beneacutefico ao apontar o limite humano ou tambeacutem levar os navegantes imprudentes agrave morte quando utilizado de modo equivocado Graccedilas aos conselhos (conhecimento) de Circe (divindade) o astuto heroacutei utiliza com prudecircncia um artifiacutecio(techneacute) para superar esse poder da natureza Logo o poder da techneacute humana eacute fornecida pelos deuses como no mito de Protaacutegoras Eacute possiacutevel tambeacutem interpretar esse mito como uma criacutetica do poder desmedido desempenhado pela antiga poesia atraveacutes da fala persuasiva que estava atrelada agrave vontade do rei que era representaccedilatildeo do mundo divino e posteriormente com o surgimento da atividade retoacuterica durante o periacuteodo democraacutetico Talvez apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica esse tipo de autoridade teria sido colocado em xeque Basta notar a criacutetica que Homero faz ao rei ilegiacutetimo na Iliacuteada (vide o proacuteximo capiacutetulo desse presente trabalho) De qualquer modo esse eacute mais um indiacutecio que nos apresenta o valor que a muacutesica desempenhou para os antigos 2) no capiacutetulo 43 Sexto Empiacuterico destaca que os gramaacuteticos atraveacutes dos mitos e histoacuterias ostentam a sua habilidade no tratamento dos dialetos e nas regras de recitaccedilatildeo Ou seja tenta excitar os ouvintes para a sua importacircncia Esse eacute o ponto que chama atenccedilatildeo para a investigaccedilatildeo do filoacutesofo ceacutetico 405 Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18) 406 Essa era a criacutetica que Aristoxeno fazia aos platocircnicos por estudar a muacutesica atraveacutes da teoria Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Aristoxeno ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro II 30) 407 Vide os inuacutemeros estudos sobre a muacutesica na antiguidade a partir das listas apresentadas por Dioacutegenes de Laecircrtios 408 Vide os comentaacuterios de Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo (Livro I 18)

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ativamente desse processo durante todo periacuteodo monaacuterquico ateacute o arcaico409 O

caraacuteter elementar das narrativas miacuteticas sugere um encadeamento loacutegico que

deveria ser correspondente ao modo e arranjo musical mais simplificado para

cumprir de modo eficaz o seu objetivo pedagoacutegico e lituacutergico410 Todas as funccedilotildees

da vida grega eram acompanhadas pela muacutesica (LEVIN 2009) Do casamento agrave

guerra o ritmo e a melodia ditavam o comportamento em cada ocasiatildeo especiacutefica

seja em momentos de paz entre rituais e festividades ciacutevicas ou de guerra Entre

todas as classes pertencentes a estrutura do corpo social grego esse fenocircmeno

ocorria tanto de maneira deliberada ou involuntaacuteria nas diferentes cidades que

formavam o territoacuterio helecircnico411

[TUCIacuteDIDES Histoacuteria da guerra do Peloponeso] ainda no mesmo inverno os atenienses purificaram Delos em obediecircncia a algum oraacuteculo Jaacute houvera anteriormente uma purificaccedilatildeo feita pelo tirano Pisiacutestratos mas apenas na parte da cidade visiacutevel do santuaacuterio e natildeo em toda a ilha desta vez a purificaccedilatildeo foi total e feita da seguinte maneira os tuacutemulos sitiados em Delos foram todos removidos e foi expressamente proibido deixar que algueacutem morresse na ilha ou laacute tivesse filhos a partir dessa ocasiatildeo em tais casos ter-se-ia de passar para Recircneia A distacircncia entre Delos e Recircneia eacute tatildeo curta que

409 Os periacuteodos da Greacutecia antiga satildeo divididos de um modo feral entre as seguintes fases Preacute-homeacuterico (seacuteculos XX - XII aC) homeacuterico (seacuteculos XII - VIII aC) arcaico (seacuteculos VIII - VI aC) e claacutessico (seacuteculos V - IV aC) 410 Em relaccedilatildeo as obrigaccedilotildees ritos e festividades de cada sociedade Segundo Louis Gernet essas atividades foram importantes para manter o equiliacutebrio da sociedade E no caso grego o direito sacro precedeu o direito civil no periacuteodo preacute-homeacuterico E como foi exposto por noacutes anteriormente a poesia desempenhava a tarefa de manter viva essas praacuteticas que visavam a soberania da realeza e manutenccedilatildeo do equiliacutebrio social Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Paris Flammarion 2007 411 Sobre esse aspecto podemos citar as celebraccedilotildees dos rituais dionisiacuteacos que segundo os antigos tinha o poder de levar os participantes ao deliacuterio Na guerra os militares iam para o campo de batalha acompanhados de muacutesicos para essa referecircncia vide os comentaacuterios do jurista romano Aulius-Gellius em ldquoNoites aacuteticasrdquo (Livro I cap 11 1-4) no qual ressalta que os antigos aqueus combatiam em silecircncio (Homero Iliacuteada canto III 1-10) enquanto que os troianos entravam em campo de batalha de modo estridente como os paacutessaros Aliaacutes nessa passagem da Iliacuteada sob a bela imagem poeacutetica pintada por Homero podemos pressupor que nesse tempo os troianos jaacute utilizavam esse recurso musical na guerra Eacute provaacutevel que no caso dos aqueus esse haacutebito tenha sido inserido posteriormente por influecircncia dos troianos ou de outros povos da Aacutesia Menor como os liacutedios e egiacutepcios na Aacutefrica (vide a passagem de grande importacircncia para noacutes relatada por Heroacutedoto em Histoacuterias livro II LX Dentro desse contexto citado pelo historiador eacute possiacutevel que o conhecimento teoacuterico desenvolvido por Pitaacutegoras sobre a harmonia possa ter sido trazido do Egito) Desde dos primoacuterdios os gregos foram fascinados por esse fenocircmeno que abrangia a instacircncia fiacutesica e espiritual pois era considerado uma manifestaccedilatildeo divina que exercia efeito sobre o caraacuteter humano Diferentemente de noacutes os gregos natildeo utilizavam a muacutesica como uma mera atividade de lazer (vide Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso livro V 70) Pelo contraacuterio ela fazia parte de todos os fenocircmenos culturais militares e ateacute mesmo epistemoloacutegicos Sendo tratada como uma expressatildeo divina responsaacutevel pela criaccedilatildeo da natureza humana atraveacutes da cosmologia matemaacutetica e filosofia Dentro da mitologia haacute vaacuterias ocorrecircncias que abordam esses aspectos Anteriormente citamos uma passagem de Odisseu com as Sirenes no livro da Odisseia (canto XII 184-91) de Homero Haacute ainda o mito de Orfeu e das musas que tratam dessa experiecircncia essencial para a vida helecircnica que se iniciou na sua preacute-histoacuteria e que perdurou ateacute o periacuteodo claacutessico

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Poliacutecrates tirano de Samos durante algum tempo muito poderoso no mar e senhor de todas as ilhas inclusive Recircneia pocircde ligaacute-la a Delos por uma corrente apoacutes havecirc-la consagrado a Apolo Deacutelio Pela primeira vez apoacutes a purificaccedilatildeo os atenienses celebraram laacute as Deacutelias um festival quinquenal No passado jaacute houvera em Delos uma grande reuniatildeo perioacutedica de iocircnios e dos ilheacuteus vizinhos eles compareciam agrave reuniatildeo com as mulheres e filhos como fazem os iocircnios de hoje nas cerimocircnias de Eacutefesos nela jaacute se realizavam competiccedilotildees de ginaacutestica e muacutesica e as cidades enviavam coros Homero mostra claramente que as reuniotildees eram assim nos versos seguintes de seu Hino a Apolo

Teu coraccedilatildeo encontra mais encanto em Delos Febo quando os iocircnios de rasantes tuacutenicas se juntam

em tua rua com seus filhos e suas esposas no pugilismo eles competem e no canto e danccedila dizendo o teu sagrado nome antes de comeccedilar

Homero mostra igualmente nos versos seguintes tirados do mesmo hino que tambeacutem havia concursos musicais e que os interessados iam competir em Delos apoacutes mencionar o coro das mulheres de Delos ele termina o seu elogio com estes versos onde faz menccedilatildeo a si mesmo

Vamos Que Apolo esteja a meu favor junto com Aacutertemis A todas voacutes estou rendendo as minhas homenagens

mas peccedilo-vos que logo mais penseis em mim de novo quando outro vate natural tambeacutem de nossa terra e tatildeo sofrido quanto eu sou vier e perguntar-vos Qual dos poetas em competiccedilatildeo aqui donzelas vos traz cantos mais doces e de vosso agrado

Dizei-lhe entatildeo com o pensamento em noacutes e todas juntas Eacute o homem cego morador em Quios escarpada

Este eacute o testemunho de Homero quanto agrave existecircncia em Delos desde os tempos antigos de uma grande reuniatildeo e festa os ilheacuteus e os atenienses continuaram a enviar seus coros com oferendas mas as competiccedilotildees e a maior parte das cerimocircnias foram suspensas como costuma acontecer nos tempos de calamidades ateacute que finalmente na ocasiatildeo mencionada acima os atenienses restabeleceram os concursos e introduziram uma competiccedilatildeo hiacutepica esta antes inexistente412

Esse relato do historiador Tuciacutedides eacute uma das provas mais contundentes para

analisar o grau de relevacircncia que a muacutesica desempenhou desde o periacuteodo homeacuterico

O ponto mais notaacutevel eacute o fato dessa experiecircncia ter afetado de maneira irreversiacutevel

o processo de subjetividade coletiva que foi responsaacutevel pelas grandes mudanccedilas e

avanccedilos culturais dentro da histoacuteria grega Eacute bem provaacutevel como sugere a

professora Flora (LEVIN 2009) que os gregos possuiacutessem por causa dessa

412 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (livro III capiacutetulo 104) Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

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caracteriacutestica o ouvido absoluto413 que era estimulado desde a infacircncia para captar

as mais sutis variaccedilotildees tonais414 Essa capacidade pode ter sido conquistada atraveacutes

de uma incessante praacutetica auditiva que deveria ser iniciada na infacircncia Eacute importante

ressaltar que este tipo de educaccedilatildeo dos sentidos natildeo tinha apenas o objetivo voltado

para o acircmbito da comunicaccedilatildeo mas tambeacutem era essencial para a caccedila e a guerra

Podemos pressupor essa hipoacutetese atraveacutes das evidecircncias que encontramos em vaacuterias

tribos de nativos americanos (BROWN1999) Percebe-se que em muitas dessas

culturas aacutegrafas os seus respectivos membros eram conhecedores da arte de

rastreamento415que consistia no niacutevel inicial em um profundo (re) conhecimento

dos vestiacutegios inorgacircnicos e orgacircnicos de animais plantas e do proacuteprio meio

ambiente que eacute considerado como um cosmo organizado416 Para o aprimoramento

dessa arte eacute essencial que se pratique desde cedo o estiacutemulo de todos os sentidos

A eficiecircncia desses rastreadores residia basicamente em dois eixos o primeiro

estava voltado para a capacidade de identificar os mais sutis sons sabores e rastros

para poder recriar o que aconteceu em determinado ambiente observado Esse tipo

de conhecimento em um niacutevel bem mais avanccedilado fornecia ao homem antigo a

capacidade de previsatildeo417 ou seja a habilidade de prever acontecimentos

413 Eacute a capacidade de identificaccedilatildeo das notas musicais sem a necessidade de uma referecircncia tonal Segundo os estudos apresentados por Aristoxeno em ldquoElementa harmocircnicardquo podemos notar o interesse pelos estudos musicais por causa da relaccedilatildeo da muacutesica com a fala cotidiana Esse detalhe deixa evidente que a questatildeo gira em torno do aperfeiccediloamento comunicativo que foi algo almejado desde o periacuteodo oral 414 Haacute uma passagem de Heraacuteclito que pode ser encontrada na obra de Clemente de Alexandria que se chama ldquoStromatardquo (livro II 24) no qual o filoacutesofo preacute-socraacutetico diz ldquoNatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo Esse fragmento do pensador efeacutesio aponta para a importacircncia do aprimoramento dos sentidos para a ampliaccedilatildeo do nosso ato de comunicaccedilatildeo Como aponta o professor e helenista Alexandre Costa a intenccedilatildeo dessa passagem seria de subordinar o conhecimento da fala a capacidade de percepccedilatildeo que para Heraacuteclito parece ser tatildeo importante como a nossa faculdade racional Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro HERAacuteCLITO ldquoHeraacuteclito fragmentos contextualizadosrdquo Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 Paacuteg 53 415 Esse tipo de habilidade foi desenvolvido por necessidade no homem primitivo para coletar alimentos sobretudo em situaccedilotildees totalmente desfavoraacuteveis A geografia do territoacuterio grego demonstra que os primeiros grupos humanos que se instalaram na regiatildeo tiveram que lutar duramente para manter a sua subsistecircncia Esse fato por si soacute jaacute indica a busca de um aprimoramento teacutecnico dos sentidos para a defesa e a caccedila 416 O estudo e observaccedilatildeo da Natureza Ou seja essa caracteriacutestica natildeo estaacute presente apenas nos gregos Ela pode ser encontrada em muitas tribos ateacute os dias de hoje Esse fato eacute de extrema importacircncia para os estudos antropoloacutegicos e sociais para entendermos o processo de desenvolvimento da subjetividade dessas culturas antigas 417 Para Francis Cornford o filoacutesofo eacute herdeiro do poeta e vidente O nosso grande problema eacute entender o que significa o termo filoacutesofo pois as palavras saacutebio e sofista como poeta eram amplamente utilizadas na antiguidade para as atividades sapienciais Outra hipoacutetese defendida eacute o grau de proximidade que haacute entre a religiatildeo e ciecircncia Para o helenista natildeo haacute separaccedilatildeo entre elas A imaginaccedilatildeo poeacutetica eacute vista como um importante recurso hipoteacutetico que tem o poder de transcender

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futuros418 atraveacutes da leitura dos rastros dispostos no meio ambiente419 Para o

filoacutesofo britacircnico-americano Peter Carruthers (CARRUTHERS 2006) essas

capacidades cognitivas empregadas na arte do rastreamento satildeo as mesmas

utilizadas na pesquisa cientiacutefica Independentemente de qual seja o ambiente o

laboratoacuterio ou o campo em ambas atividades a reflexatildeo420 eacute algo imprescindiacutevel

para resoluccedilatildeo de problemas O cientista ou iacutendio emprega a observaccedilatildeo dessas

evidecircncias na natureza para estabelecer um caminho seguro para a compreensatildeo e

atuaccedilatildeo sobre ela Nesse caso a analogia proposta pelo professor Carruthers eacute

muito benvinda para o nosso presente trabalho pois revela os meandros de uma

atividade sapiencial de caraacuteter pragmaacutetico421 que se aproxima do meacutetodo cientiacutefico

moderno

o campo individual para o universal e que pode ser encontrada em ambas atividades Em divergecircncia com a teoria platocircnica da reminiscecircncia (vide Platatildeo Meacutenon 81a5 ndash 86c3) a teoria empiacuterica do conhecimento defende todas as noccedilotildees gerais como construccedilotildees do indiviacuteduo que partem de outras impressotildees sensoriais semelhantes Esse eacute o caminho que foi seguido por Aristoacuteteles (vide Aristoacuteteles Metafiacutesica IV 5-6) pois a generalizaccedilatildeo eacute oriunda da experiecircncia para encontrar o conhecimento com a apreensatildeo decorrente da razatildeo ou causa Neste estudo tambeacutem aparece o embate entre o vidente e o filoacutesofo O ponto central dessa discussatildeo parte do processo que culminou na condenaccedilatildeo de Soacutecrates Cornford apresenta as bases para a formulaccedilatildeo de sua hipoacutetese atraveacutes do diaacutelogo de Platatildeo chamado Eutifron e algumas passagens que podem ser obtidas no diaacutelogo Poliacutetico para trazer algumas hipoacuteteses sobre o processo e da atuaccedilatildeo da religiatildeo na organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do Estado Segundo a sua posiccedilatildeo o filoacutesofo grego natildeo era totalmente ceacutetico pois acreditava em um poder de previsatildeo (πρόληψις (proleacutepsis preconcepccedilatildeo e antecipaccedilatildeo que vem de προλαmicroβάνωprolambaacuteno pegar antecipadamente) que era fornecido por seu daimon Nesse sentido ele expotildee a contradiccedilatildeo de seus acusadores que afirmavam sobre o seu ateiacutesmo O ponto desse embate apresenta algumas caracteriacutesticas importantes o primeiro eacute o fato de a religiatildeo ter uma grande influecircncia sobre a organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica do estado ainda no periacuteodo claacutessico A partir desse contexto eacute possiacutevel entendermos o processo movido contra o filoacutesofo pois o posicionamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo aos deuses oliacutempicos nos parece ser exatamente igual a de Protaacutegoras e Epicuro Apesar disso segundo a imagem esculpida por Platatildeo ele admitia esse poder visionaacuterio do daimon como uma intuiccedilatildeo necessaacuteria para as tomadas de decisatildeo Essa posiccedilatildeo foi retirada do diaacutelogo Eutifron De qualquer modo natildeo sabemos ateacute que ponto Soacutecrates estava usando a sua famosa ironia sobre esse ponto Seja como for a sua postura sapiencial eacute muito similar ao pajeacute entre os iacutendios Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do capiacutetulo V do seguinte livro CORNFORD F M ldquoPrincipium Sapientiaerdquo As origens do pensamento filosoacutefico grego Traduccedilatildeo Maria Manuela Rocheta dos Santos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1952 418 Dentro desse contexto podemos destacar a classe sapiencial do poetas oraacuteculos e sacerdotes que atuaram em todas as culturas na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NK CHADWICK ldquoPoetry and Prophecyrdquo Cambridge 1942 419 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros BROWN T ldquoThe Science and Art of Trackingrdquo New York Berkley Books 1999 E o quarto capiacutetulo intitulado The roots of scientific reasoning infancy modularity and the art of trackingrdquo em CARRUTHERS P STICH S SIEGAL M ldquoThe Cognitive Basis of Science Cambridge University Press 2002 420 E a especulaccedilatildeo 421 Haacute muitas obras que destacam esse fato na antiguidade Na biblioteca histoacuterica (livro I ndash 12) por exemplo Diodoro de Siciacutelia afirma que o trabalho dos autores antigos merece reconhecimento entre todos os homens porque suas obras oferecem sem perigo o ensinamento do conveniente que

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A inferecircncia a partir desses elementos observaacuteveis visa suprir uma demanda

que surge de acordo com cada circunstacircncia O acuacutemulo dessa experiecircncia obtida

no contato diaacuterio com o meio ambiente eacute mantido e transmitido entre seus pares em

qualquer cultura pois ela eacute responsaacutevel por estabelecer uma profunda intimidade

entre o homem e a natureza atraveacutes da praacutetica adquirida na experiecircncia que visa

manter o bem-estar coletivo Como foi exposto anteriormente por noacutes422 o sentido

de verdade no periacuteodo claacutessico para pensadores como Aristoacuteteles estava voltado

para a efetividade A eficaacutecia de qualquer meacutetodo empregado423 estaacute amplamente

afinada com o sucesso e a sua aplicabilidade deveria estar agrave disposiccedilatildeo do bem da

comunidade de um modo geral A luta pela sobrevivecircncia nos primoacuterdios

impulsionou o homem primitivo a desenvolver as suas capacidades de percepccedilatildeo e

reflexatildeo para assegurar a proacutepria estabilidade do seu povo Logo as antigas praacuteticas

sapienciais estavam apontando o caminho que a ciecircncia iria tomar posteriormente

pois satildeo oriundas do criteacuterio de observaccedilatildeo experimentaccedilatildeo e anaacutelise de dados

que eram praticados por diversas culturas na antiguidade No caso grego esse fato

natildeo foi diferente sabe-se que ateacute o periacuteodo claacutessico424 o conhecimento

desenvolvido pela intelectualidade antiga apresentava um caraacuteter pragmaacutetico que

seguia esses mesmos preceitos que podem ser encontrados em muitas civilizaccedilotildees

antigas

A miscigenaccedilatildeo cultural eacute uma caracteriacutestica que eacute ressaltada por muitos

intelectuais do mundo antigo e contemporacircneo como um fator marcante na

constituiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo helecircnica e de outros povos na antiguidade425 Essa

oferece a mais bela experiecircncia aos seus leitores e o aprendizado pela experimentaccedilatildeo (ἡ microὲν γὰρ ἐκ τῆς πείρας ἑκάστου microάθησις microετὰ πολλῶν πόνων καὶ κινδύνων ποιεῖ τῶν χρησίmicroων ἕκαστα διαγινώσκειν καὶ διὰ τοῦτο τῶν ἡρώων ὁ πολυπειρότατος microετὰ microεγάλων ἀτυχηmicroάτων πολλῶν ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω ἡ δὲ διὰ τῆς ἱστορίας περιγινοmicroένη σύνεσις τῶν ἀλλοτρίων ἀποτευγmicroάτων τε καὶ κατορθωmicroάτων ἀπείρατον κακῶν ἔχει τήν διδασκαλίαν) essa caracteriacutestica foi algo marcante ateacute o periacuteodo heleniacutestico 422 Em 33 423 No acircmbito militar e poliacutetico 424 Durante esse periacuteodo comeccedila a surgir entre os intelectuais uma grande discussatildeo em torno da importacircncia praacutetica da Filosofia para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ARISTOacuteTELES ldquoProteacutepticordquo Em Aristotelis fragmenta selecta (ed por W D Ross) Oxford 1955 425 Vide o primeiro capiacutetulo chamado The rise of Mycenae do seguinte livro KIRK G S ldquoThe Songs of Homerrdquo Cambridge 1962 E Heroacutedoto Histoacuteria capiacutetulo XLII mdash ldquoTodos aqueles que erigiram templos a Juacutepiter Tebano ou que satildeo de Tebas natildeo imolam absolutamente carneiros nem sacrificam outros animais senatildeo cabras Realmente nem todos os Egiacutepcios adoram os mesmos deuses natildeo rendem todos o mesmo culto a Iacutesis e a Osiacuteris que na opiniatildeo deles satildeo o mesmo que Baco Contrariamente os que possuem um templo em Mecircndis e satildeo conhecidos pela designaccedilatildeo de

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capacidade de adaptaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de haacutebitos de outras culturas sempre esteve

entre os gregos mesmo antes de sua formaccedilatildeo atraveacutes das civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica426 Posteriormente esse traccedilo tornou-se uma regra para o

desenvolvimento espiritual na antiguidade atraveacutes do comeacutercio e da diplomacia no

mundo mediterracircneo antigo427 A maioria dos grandes intelectuais gregos trazem

esse ponto em comum com outras culturas Heroacutedoto por exemplo com o intuito

de construir a sua narrativa alega ter viajado para muitas cidades428 Esse

conhecimento empiacuterico foi essencial para a expansatildeo cultural grega e ampliaccedilatildeo do

criteacuterio criacutetico sobre a origem e a validade do conhecimento429 que apareceu

durante o periacuteodo claacutessico430 Logo podemos supor que o conhecimento musical

adquirido durante a tradiccedilatildeo oral possa ter vindo de outros povos que estabelecia

relaccedilatildeo com os gregos antes e depois do periacuteodo preacute-homeacuterico431 Em seguida

Mendeacutesios imolam ovelhas e poupam as cabras Os Tebanos e todos os que como eles se abstecircm de sacrificar ovelhas assim procedem em virtude de uma lei motivada pelo seguinte fato Heacutercules segundo contam desejava ardentemente ver Juacutepiter mas esse deus natildeo queria ser visto Por fim como Heacutercules natildeo deixava de fazer solicitaccedilotildees nesse sentido Juacutepiter recorreu a um artifiacutecio matou um cordeiro cortou-lhe a cabeccedila e colocando-a agrave frente da sua revestiu-se da latilde apresentando-se assim a Heacutercules Eacute por essa razatildeo que as estaacutetuas de Juacutepiter no Egito representam o deus com uma cabeccedila de cordeiro O referido costume passou dos Egiacutepcios aos Amocircnios Estes constituem uma colocircnia de Egiacutepcios e Etiacuteopes e a liacutengua que falam eacute uma mistura dos idiomas dos dois povos Creio mesmo que se chamam Amocircnios pelo fato de os Egiacutepcios darem o nome de Aacutemon a Juacutepiter Eacute portanto por esse motivo que os Tebanos consideram os cordeiros animais sagrados e natildeo os sacrificam absolutamente exceto no dia da festa de Juacutepiter sendo essa a uacutenica ocasiatildeo em que eles imolam um dos aludidos animais e da mesma maneira pela qual Juacutepiter procedera revestem com a pele do cordeiro a estaacutetua do deus aproximando-a da de Heacutercules Feito isso todos os que se encontram em torno do templo batem no peito deplorando a morte do animal sepultando-o em seguida numa urna sagrada Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 426 Essas trecircs culturas satildeo consideradas pelos especialistas como precursoras da civilizaccedilatildeo helecircnica na antiguidade Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E CASTLEDEN Rodney ldquoMycenaeans life in bronze age Greecerdquo Routledge Press London 2005 427 Vide o mapa do mundo mediterracircneo nos anexos 428 Vide a seguinte obra PLUTARCO ldquoPlutarch livesrdquo Traduccedilatildeo de Bernadotte Perrin Cambridge Massachusetts e London England Harvard University Press Loeb Classical Library 1948 429 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Paacuteg 21 430 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro ROMILLY Jacqueline de ldquoLa construction de la veacuteriteacute chez Thucydiderdquo Paris Julliard 1990 431 Segundo Diacuteogenes de Laeacutercio o estudo da filosofia por exemplo comeccedilou entre os baacuterbaros Independentemente da imensa polecircmica que ateacute hoje essa passagem levanta o que gostariacuteamos de destacar dentro desse contexto eacute o aspecto de assimilaccedilatildeo de outras culturas que muitos intelectuais associam agrave cultura grega E isso aconteceu de vaacuterios modos viagens comerciais e diplomaacutetica Eacute notoacuterio que essa atividade era muito comum O filoacutesofo Tales de Mileto - entre outros como o grande Pitaacutegoras ndash eacute mencionado pelo bioacutegrafo como tendo feito vaacuterias viagens na antiguidade Mas a nossa hipoacutetese caminha na direccedilatildeo de que a muacutesica foi uma atividade que veio atraveacutes da influecircncia ainda mais antiga dessas culturas que antecederam os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse

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teremos a oportunidade de encontrar um desses contatos descritos de modo

minucioso por um grego sobre algumas caracteriacutesticas da vida dos egiacutepcios que foi

uma cultura que exerceu bastante influecircncia sobre o povo helecircnico

[Heroacutedoto Histoacuterias II LX] A vida em Bubaacutestis por ocasiatildeo das festividades transforma-se por completo Tudo eacute alegria buliacutecio e confusatildeo Nos barcos engalanados singrando o rio em todas as direccedilotildees homens mulheres e crianccedilas munidos em sua maioria de instrumentos musicais predominantemente a flauta enchem o ar de vibraccedilotildees sonoras do ruiacutedo de palmas de cantos de vozes de ditos humoriacutesticos e agraves vezes injuriosos e de exclamaccedilotildees sem conta Das outras localidades ribeirinhas afluem constantemente novos barcos igualmente enfeitados e igualmente pejados de pessoas de todas as classes e de todos os tipos ansiosas por tomar parte nos folguedos homenagear a deusa e imolar em sua honra grande nuacutemero de viacutetimas que trazem consigo e previamente escolhidas Enquanto dura a festa natildeo cessam as expansotildees de alegria as danccedilas e as libaccedilotildees No curto periacuteodo das festividades consome-se mais vinho do que em todo o resto do ano pois para ali se dirigem segundo afirmam os habitantes cerca de setecentas mil pessoas de ambos os sexos sem contar as crianccedilas432 A partir desse relato de Heroacutedoto podemos notar natildeo apenas o seu olhar de

admiraccedilatildeo sobre outra cultura estrangeira mas como a muacutesica tambeacutem fazia parte

do cotidiano da vida dos egiacutepcios Para o professor alematildeo Geoffrey Stephen Kirk

(KIRK 1962) ao analisar os vestiacutegios da arquitetura e da ceracircmica da antiga

civilizaccedilatildeo minoica433 que antecedeu a sociedade micecircnica apoacutes a invasatildeo doacuterica

ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro LAEcircRTIOS Dioacutegenes ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury Brasiacutelia UNB 1988 432 Traduccedilatildeo de Pierre Henri Larcher 433 A civilizaccedilatildeo minoica eacute apontada pelo britacircnico Arthur Evans como uma cultura matriarcal pois a mulher desempenhava uma posiccedilatildeo de destaque na sociedade e desenvolvia vaacuterias funccedilotildees no acircmbito religioso administrativo e poliacutetico atraveacutes da classe sacerdotal que fazia parte da realeza Ateacute um determinado periacuteodo histoacuterico foi um povo considerado paciacutefico e politeiacutesta A ideia mais importante dessa cultura residia no fato que a mulher era um componente fundamental para a harmonia soacutecio-poliacutetica da sociedade Eacute provaacutevel que essa caracteriacutestica tenha sido absorvida dos remanescentes da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica que foi a sua predecessora Um traccedilo marcante desse fenocircmeno que pode ser encontrada em ambas as culturas eacute o fato do mais importante siacutembolo religioso de culto era uma deusa que se chamava Potnia (Πότνια θηρώνPotnia theron ndash ldquoa senhora dos animaisrdquo) Curiosamente esse epiacuteteto pode ser localizado no canto XXI vv 470 da Iliacuteada de Homero no qual percebe-se que eacute atribuiacutedo agrave deusa Aacutertemis Posteriormente esse mito parece ter sido a influecircncia para a construccedilatildeo arquetiacutepica de Perseacutefone (Kore) a divindade relativa aos misteacuterios de Elecircusis A partir dessas evidecircncias apresentadas podemos encontrar como a mitologia dessas culturas predecessoras dos gregos ainda foram utilizadas para a religiatildeo grega a muacutesica e a construccedilatildeo da literatura homeacuterica Aliaacutes em muitos momentos da obra platocircnica (vide Timeu 108 d) eacute possiacutevel identificarmos a presenccedila dessa influecircncia cultural ciclaacutedica e minoica no que tange sobretudo agrave mousikeacute (arte das musas) que se conservou mesmo depois do periacuteodo das trevas atraveacutes da mitologia Para mais informaccedilatildeo sobre essas questotildees recomendamos a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first

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eacute possiacutevel detectar a influecircncia de outras culturas que estabeleceram contato direto

atraveacutes do comeacutercio exterior com esse povo Segundo Kirk a influecircncia egiacutepcia foi

a mais marcante E ela pode ser reconhecida atraveacutes da arquitetura metalurgia e

do artesanato minoico434 Esse encontro teria ocorrido por volta do ano 2000 e 1600

aC aleacutem da arte a escrita435 e modo de organizaccedilatildeo palaciana centralizada trazia

diversas semelhanccedilas com as culturas hitita e egiacutepcia Em algumas tumbas grandes

e monumentais que foram descobertas pelos arqueoacutelogos satildeo indicativos de um

povo que tinha um conceito bem articulado de vida apoacutes a morte436 Todavia natildeo

haacute documentos que revelem com precisatildeo o cacircnone da teologia minoica Todas as

hipoacuteteses apresentadas sobre esse ponto se baseiam em evidecircncias que podem ser

encontradas no Egito437 e em alguns afrescos e ceracircmicas que foram retiradas das

developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 434 Essas caracteriacutesticas podem ser observadas nos mais variados vestiacutegios de ceracircmicas metalurgia e da arquitetura minoica que demonstram natildeo apenas o intercacircmbio cultural mas a influecircncia da cultura egiacutepcia que se iniciou durante o desenvolvimento da cultura ciclaacutedica Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 435 O grande arqueoacutelogo inglecircs Arthus Evans encontrou algumas inscriccedilotildees em pedras que chamou a sua atenccedilatildeo pela similaridade com os hieroacuteglifos egiacutepcios Aleacutem de apontar essa semelhanccedila eacute bem provaacutevel que a escrita chamada de Linear A tenha sido desenvolvida sob a influecircncia egiacutepcia O uso de sinais lineares como marcas de pedreiros artesatildeos ou de proprietaacuterios foi difundido em todo o Mediterracircneo Oriental na antiguidade e haacute exemplos disso no iniacutecio da Creta minoica O uso mais especial de tais sinais lineares como marcas de artesatildeos estaacute bem estabelecido no periacuteodo de construccedilatildeo do palaacutecio denominado meacutedio minoico I e apresenta semelhanccedilas aos signos lineares e alfabetiformes de obras de artesatildeos egiacutepcios sob a XII dinastia A liacutengua que tem sido chamada Linear A foi encontrada em muitos dos tabletes inscritos desenterrados em todo o mundo minoico A segunda liacutengua usada pelos minoicos a Linear B foi decifrada por Michael Ventris que descobriu em 1952 que a linguagem era uma versatildeo inicial do grego Os textos dos tabletes Linear B revelam muitos detalhes da vida minoica mas sem conseguir decifrar Linear A alguns aspectos da vida minoica permanecem na mais total obscuridade Esses textos ainda confundem os estudiosos em mais um aspecto pois eles nos deram uma imagem clara do sistema numeacuterico minoico Era um sistema decimal simples que natildeo conhecia o uso do zero curiosamente esse mesmo sistema era empregado pelos antigos egiacutepcios Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952 E CHADWICK John ldquoThe Decipherment of Linear Brdquo Cambridge University Press first printed 1958 reprinted 2000 436 Mais um aspecto que podemos encontrar na mitologia sobretudo atraveacutes do mito de Orfeu 437 As descobertas em tuacutemulos egiacutepcios incluem representaccedilotildees de embarcaccedilotildees minoicas particularmente uma foca que era um animal muito representado na arte minoica aparece em algumas pinturas de tuacutemulos egiacutepcios Os navios minoicos variavam em tamanho de embarcaccedilotildees costeiras bastante modestas a navios maiores com um mastro no meio sustentando por uma vela Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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ruiacutenas do palaacutecio minoico que foi localizado apoacutes as escavaccedilotildees na cidade de Creta

A nossa grande questatildeo eacute saber como e quando a muacutesica comeccedilou a desempenhar

um papel determinante na vida helecircnica Para esse estudo eacute necessaacuterio voltarmos o

nosso olhar investigativo para as trecircs culturas que ajudaram a construir a

mentalidade helecircnica antes da idade das trevas438 que satildeo as civilizaccedilotildees ciclaacutedica

minoica e micecircnica O grande legado dessas culturas apoacutes o fim da idade do

bronze de alguma forma sobreviveu atraveacutes do imaginaacuterio coletivo desses

membros remanescentes da civilizaccedilatildeo micecircnica que foi drasticamente dizimada

com a invasatildeo doacuterica A hipoacutetese aceita por muitos historiadores e arqueoacutelogos eacute

de que esses habitantes que se assentavam com as suas respectivas famiacutelias sob o

domiacutenio da realeza micecircnica que era localizada na parte que hoje eacute conhecida como

a Greacutecia continental439 foram obrigados a se deslocarem para outras imediaccedilotildees da

bacia do Mediterracircneo440 Para o professor Anthony Snodgrass (SNODGRASS

2000) o aumento populacional nessa regiatildeo pode ter sido um dos fatores que

acarretou a dispersatildeo desses habitantes para aacutereas mais escassas de recursos Seja

como for esse episoacutedio que ficou conhecido como a primeira diaacutespora grega441 e

foi responsaacutevel por uma profunda transformaccedilatildeo na estrutura soacutecio-poliacutetica da

antiga civilizaccedilatildeo micecircnica

Antes dessa grande mudanccedila ocorrida apoacutes esse deslocamento populacional

que culminou na aproximaccedilatildeo dos quatros principais grupos eacutetnicos442 que

formaram a base inicial da cultura helecircnica a idade de bronze443 destacou-se por

ser um periacuteodo de grande opulecircncia que pode ser constatado atraveacutes das suntuosas

438 A Idade das trevas na Greacutecia (1200 ndash 800 aC) eacute um periacuteodo posterior ao da invasatildeo dos doacutericos no qual toda a rica estrutura comercial e urbana que tinham sido construiacutedas durante o periacuteodo micecircnico A Idade das Trevas eacute caracterizada pela inutilizaccedilatildeo da escrita durante trecircs seacuteculos aproximadamente e pela reconstruccedilatildeo da sociedade grega posteriormente Para alguns especialistas que seguem a linha evemerista (Evecircmero foi um escritor e hermeneuta grego da eacutepoca heleniacutestica que foi considerado como o pai da corrente hermenecircutica conhecida como evemerismo que defendia que os deuses da mitologia satildeo representaccedilotildees de personagens histoacutericas) o pouco que se sabe desse periacuteodo pode ser obtido nas obras de Homero 439 Vide o mapa da regiatildeo no anexo 440 Ibidem 441 ∆ιασπορά diaacutespora Deslocamento Para as ocorrecircncias desse termo na liacutengua grega vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott διασπορ-ά ἡ (διασπείρω) scattering dispersion Plu 21105 a LXX Je 157 δ ψυχική Ph 2426 2 collectively = οἱ διεσπαρmicroένοι LXX De 2825 EvJo 735 pl LXX Ps 146(147)2 442 A saber Aqueus Jocircnios Eoacutelios e Doacutericos Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the Twelfth and Eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 443 A idade do Bronze entre os anos de 3000 ndash 1200 a C

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construccedilotildees arquitetocircnicas e o aprimoramento da metalurgia Esse fato revela que

durante um determinado periacuteodo essas culturas predecessoras dos gregos

alcanccedilaram um amplo desenvolvimento econocircmico tecnoloacutegico e cultural

A primeira grande cultura de destaque dessa eacutepoca foi a chamada cultura

ciclaacutedica O pouco que sabemos sobre ela aponta para um tipo de sociedade que

passou por diversas transformaccedilotildees ao longo de sua histoacuteria444 A elegacircncia das

esculturas de maacutermores foi sem duacutevida alguma um dos seus maiores destaques

durante o seu florescimento cultural que ocorreu aproximadamente entre o ano de

2700 e de 2400 antes de Cristo Eacute notoacuterio entres todos os historiadores que essa

civilizaccedilatildeo promoveu uma profunda sofisticaccedilatildeo artiacutestica que pode ser captada

atraveacutes das representaccedilotildees em pinturas que revelam a vida cotidiana que nos ajudam

a compreender um pouco dos aspectos da organizaccedilatildeo social religiosa e poliacutetica

desse periacuteodo Para a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule alguns desses

materiais encontrados indicam a influecircncia estrangeira que certamente se deu

atraveacutes do comeacutercio445 A sua localizaccedilatildeo geograacutefica446 permitia estabelecer contato

com a Aacutefrica e a Anatoacutelia que pode ser mensurado atraveacutes de objetos que foram

encontrados por arqueoacutelogos no Egito e Mesopotacircmia que confirma essa influecircncia

estrangeira (VERMEULE 1964) Algumas dessas esculturas nos revela que os seus

artesatildeos jaacute utilizavam meacutetodos elaborados com a utilizaccedilatildeo de riscadores e

compassos para dividir os segmentos no maacutermore com maacutexima precisatildeo para

produzir o efeito de bi dimensionalidade em suas obras447 Esse detalhe revela a

sofisticaccedilatildeo da arte ciclaacutedica que acompanhou a expansatildeo cultural dessa regiatildeo Em

1840 os arqueoacutelogos encontraram na ilha de Santorini atual Itaacutelia uma escultura

datada do segundo periacuteodo ciclaacutedico que foi nomeada como ldquoO tocador de

444 Periacuteodos da cultura ciclaacutedica Antigo I 31003000 ndash 2650 aC Grota-Pelos Ciclaacutedico Antigo II 2650 - 24502 400 aC Ceros-Siros Ciclaacutedico Antigo III 24502400 - 22002 150 aC Kastri Ciclaacutedico Antigo III BCiclaacutedico Meacutedio I 20502000 - 19001 850 aC Filaacutecopi Ciclaacutedico Meacutedio II 19001850 - 1700 aC (Influecircncia minoica) ciclaacutedica Meacutedio III 1700 - 1 675 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente I 1675 - 1 500 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente II 1500 - 1 450 aC (Influecircncia minoica) Ciclaacutedico Recente III 1450 - 1100 aC (Influecircncia micecircnica) 445 A configuraccedilatildeo fiacutesica dessa regiatildeo facilitava a navegaccedilatildeo para distribuiccedilatildeo e recepccedilatildeo dos produtos manufaturados atraveacutes do comeacutercio Eacute obvio que essa caracteriacutestica permitiu o intercacircmbio cultural que possibilitou uma expansatildeo sociocultural desses povos na antiguidade Vide o mapa no anexo 446 Na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas na bacia do Mediterrecircno 447 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964

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harpardquo448 que prova a aplicaccedilatildeo da praacutetica musical449 de um instrumento de cordas

Nesse sentido podemos supor que esse conhecimento foi um legado que certamente

foi transmitido para a cultura minoica e depois para a micecircnica que surgiu

primeiramente na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas450

A civilizaccedilatildeo minoica foi denominada com esse nome apoacutes as descobertas

efetuadas a partir das expediccedilotildees arqueoloacutegicas da equipe de pesquisa do professor

britacircnico Arthur Evans na regiatildeo de Creta451 Segundo Tuciacutedides452 no primeiro

livro sobre a ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo e de acordo com a tradiccedilatildeo

oral453 Minos foi o primeiro a ter se estabelecido na regiatildeo das ilhas ciclaacutedicas

atraveacutes de um poder naval454 sendo o primeiro a conquistar todos os pontos da

regiatildeo que no seu tempo ficou conhecida como o mar helecircnico455 A denominaccedilatildeo

dessa nova formaccedilatildeo que se destacou nessa regiatildeo eacute uma cultura que dominou e

absorveu a antiga cultura ciclaacutedica A fama de sua conquista pode ser reconhecida

atraveacutes dos mitos mais antigos que relatam as suas faccedilanhas na antiguidade

448 Vide os anexos 449 Posteriormente pretendemos desenvolver esse ponto para analisar a consequecircncia do conhecimento musical para o desenvolvimento da tradiccedilatildeo oral e do processo subjetivo helecircnico na antiguidade 450 E mais uma vez nos deparamos com as seguintes questotildees 1) como esse conhecimento foi adquirido em uma eacutepoca tatildeo remota do passado grego 2) como essa atividade permaneceu entre os gregos mesmo depois da queda da realeza micecircnica A nossa hipoacutetese comeccedila aqui a ganhar mais forccedila com esses achados arqueoloacutegicos pois eacute bem provaacutevel que as teacutecnicas musicais foram essenciais para o aprimoramento mnemocircnico da tradiccedilatildeo oral que facilitou a difusatildeo da mitologia e da poesia no mundo helecircnico 451 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 452 Tuciacutedides Histoacuteria da guerra do Peloponeso (1-4) 453 No grego ele utiliza dois verbos ldquoconhecerrdquo( ἴσmicroεν ismen que vem de οἶδαoida) eldquoouvirrdquo (ἀκοήakoeacute) que se aproxima dessa noccedilatildeo ldquoΜίνως γὰρ παλαίτατος ὧν ἀκοῇ ἴσmicroεν ναυτικὸν ἐκτήσατο καὶ τῆς νῦν Ἑλληνικῆς θαλάσσης ἐπὶ πλεῖστον ἐκράτησε καὶ τῶν Κυκλάδων νήσων ἦρξέ τε καὶ οἰκιστὴς πρῶτος τῶν πλείστων ἐγένετο Κᾶρας ἐξελάσας καὶ τοὺς ἑαυτοῦ παῖδας ἡγεmicroόνας ἐγκαταστήσας τό τε λῃστικόν ὡς εἰκός καθῄρει ἐκ τῆς θαλάσσης ἐφ᾽ ὅσον ἐδύνατο τοῦ τὰς προσόδους microᾶλλον ἰέναι αὐτῷrdquo ldquoMinos foi o mais antigo de todos os personagens tradicionalmente conhecidos a ter uma frota e a conquistar grande parte do hoje chamado mar helecircnico tornando-se o senhor das ilhas Ciacutecladas e primeiro colonizador da maior parte delas expulsando os caacuteries e estabelecendo nelas os seus proacuteprios filhos como governantes Ele tambeacutem tentou numa sequecircncia natural livrar os mares tanto quanto possiacutevel da pirataria para receber com maior seguranccedila os tributos que lhe eram devidosrdquo Traduccedilatildeo de Mario da Gama Kury 454 ΘάλασσακρατίαThalassacracia 455 Bacia do Mediterracircneo

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[Homero Odisseacuteia XI] ldquoProle de Zeus avisto Minos Cetro de ouro na matildeo Prerrogativa sua era sentado fazer valei a lei aos mortos que sentados indagam-lhe a sentenccedila no Hades largos-poacuterticos456

Essa passagem que estaacute localizada no deacutecimo primeiro canto da Odisseia

parece fazer jus a imagem de grande rei que foi apresentada por Tuciacutedides em seu

relato sobre a guerra do Peloponeso Como foi exposto por noacutes anteriormente457

para os gregos do periacuteodo heroico ateacute o claacutessico a verdade eacute construiacuteda atraveacutes das

accedilotildees vitoriosas458 Nesse sentido o soacutebrio discurso de Tuciacutedides e a poesia

encantadora de Homero parecem carregar esse ponto em comum Mesmo com

todas as suas diferenciaccedilotildees de forma e conteuacutedo ambas satildeo expressotildees oriundas

da tradiccedilatildeo oral que imortalizou certos fatos histoacutericos que foram essenciais para o

futuro desdobramento da formaccedilatildeo cultural helecircnica Entre a distacircncia da realidade

promovida pela beleza da linguagem mito poeacutetica mais antiga e a proximidade

factual do relato da novidade da prosa aacutetica reside o interesse de buscar e preservar

a tradiccedilatildeo gloriosa de um passado que eacute aceita com muito orgulho como modelo

que deve ser seguido e difundido para as geraccedilotildees vindouras459 Dentro da tensatildeo

existente entre esses dois meios de expressatildeo do pensamento humano eacute possiacutevel

456 Homero Odisseia canto XI (568-71) ldquoἔνθ᾽ ἦ τοι Μίνωα ἴδον ∆ιὸς ἀγλαὸν υἱόν χρύσεον σκῆπτρον ἔχοντα θεmicroιστεύοντα νέκυσσιν ἥmicroενον οἱ δέ microιν ἀmicroφὶ δίκας εἴροντο ἄνακτα ἥmicroενοι ἑσταότες τε κατ᾽ εὐρυπυλὲς Ἄϊδος δῶrdquo Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Eacute importante ressaltar que a arqueoacuteloga americana Emily Vermeule evita utilizar a obra homeacuterica como uma fonte histoacuterica para estudar as civilizaccedilotildees na Idade de Bronze pois segundo a sua visatildeo o trabalho oral do poeta estaacute pelo menos um seacuteculo de distacircncia da cultura micecircnica Seja como for para o presente trabalho partirmos da hipoacutetese de que a obra homeacuterica mesmo sendo de cunho poeacutetico e sem pretensatildeo de ser um relato histoacuterico nos moldes de uma ciecircncia moderna nos apresenta inuacutemeros indiacutecios para nos aproximar da atmosfera contextual desse determinado periacuteodo Logo ela eacute uma fonte indispensaacutevel Para o presente trabalho aleacutem de sua obra estamos recorrendo haacute outras escassas fontes disponiacuteveis atraveacutes de estudos comparativos sobre os siacutetios arqueoloacutegicos afrescos e de peccedilas de maacutermore bronze e ouro Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 457 Em 33 Mito accedilatildeo e verdade 458 Verum factum Vide as nossas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo no capiacutetulo 33 459 Esse tipo de intenccedilatildeo eacute a base que fundamenta a tese apresentada por Conford no qual afirma que o trabalho de Tuciacutedides ao contraacuterio do que dizem muitos historiadores ainda estaacute totalmente subordinado ao contexto mito-poeacutetico atraveacutes de alguns paradigmas que podem ser encontrados nos dramas de Eacutesquilo Para o helenista o historiador grego nutre um discurso tendencioso a partir da perspectiva ateniense e haacute diversas discrepacircncias em seu relato Logo a sua concepccedilatildeo histoacuterica que foi muito apreciada por historiadores modernos precisa ser revista agrave luz de outras evidecircncias de fontes contemporacircneas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CORNFORD F M 1907 ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Ed London Arnold 1907

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extrairmos importantes informaccedilotildees sobre esse obscuro momento da histoacuteria grega

Como foi visto anteriormente nesse presente capiacutetulo o proacuteprio Tuciacutedides que eacute

destacado por muitos helenistas e historiadores como modelo de um pensamento

criacutetico refinado460 ainda recorre a essas fontes oriundas da mitologia e da tradiccedilatildeo

oral para compreender esse turvo passado dos gregos Logo o nosso trabalho

investigativo precisa atuar com o mesmo cuidado criacutetico dos ceacuteticos antigos Nesse

sentido vale ressaltar os resquiacutecios desse importante meio de expressatildeo ainda em

vigor no pensamento grego do periacuteodo claacutessico

Eacute sabido que historicamente o primeiro filoacutesofo a desenvolver um estudo

especiacutefico sobre a teoria acuacutestica por volta do seacuteculo 6 aC teria sido Pitaacutegoras de

Samos461 A sua concepccedilatildeo surgiu duzentos anos depois das epopeias homeacutericas

que jaacute apresentavam um imenso aprimoramento riacutetmico e meloacutedico na metrificaccedilatildeo

poeacutetica Contudo nos deparamos com uma dificuldade imensa em nomeaacute-lo como

o responsaacutevel por essa importante atividade na antiguidade Podemos supor a partir

desses indiacutecios apresentados atraveacutes da eacutepica homeacuterica que jaacute houvesse uma ampla

gama de estudos que deveriam estar voltados para o aprimoramento praacutetico das

teacutecnicas de composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em puacuteblico Aleacutem disso tambeacutem havia

como defende Milman Parry (PARRY1971) vaacuterias foacutermulas mnemocircnicas como o

uso de epiacutetetos que fornecia aos aedos e rapsodos mais liberdade nas performances

460 Uma contraposiccedilatildeo agrave tese apresentada por Conrford pode ser encontrada na seguinte obra ROMILLY Jacqueline de ldquoHistoacuteria e razatildeo em Tuciacutedidesrdquo Brasiacutelia UNB 1998 461 Eacute importante ressaltar que a figura de Pitaacutegoras estaacute rodeada de muitas polecircmicas A sua fama reputaccedilatildeo entre os antigos no entanto se baseia em algumas ideias muito influentes que ateacute hoje natildeo foram totalmente compreendidas Essas ideias de um modo geral incluem as seguintes caracteriacutesticas (1) as da metafiacutesica do nuacutemero e da concepccedilatildeo de que a realidade incluindo a muacutesica e a astronomia eacute em seu niacutevel mais profundo de natureza matemaacutetica (2) o uso da filosofia como um meio de purificaccedilatildeo espiritual (3) o destino celestial da alma e a possibilidade de sua ascensatildeo agrave uniatildeo com o divino (4) o apelo a certos siacutembolos agraves vezes miacutesticos como os tetraktys a seccedilatildeo aacuteurea e a harmonia das esferas (5) o teorema de Pitaacutegoras e (6) a exigecircncia de que os membros da seita pitagoacuterica mantenha sigilo sobre os seus estudos Colocando ecircnfase em certas experiecircncias internas e verdades intuitivas reveladas apenas aos iniciados o pitagorismo parece ter desenvolvido um subjetivismo dirigido pela alma alheio agrave corrente principal do pensamento grego preacute-socraacutetico centralizado na costa jocircnica da Aacutesia Menor que estava preocupado em determinar qual eacute o elemento essencial de todas as coisas Em contraste com esse naturalismo jocircnico o pitagorismo era semelhante agraves tendecircncias vistas em religiotildees de misteacuterio como o orfismo que muitas vezes alegava alcanccedilar atraveacutes do ecircxtase induzido uma percepccedilatildeo espiritual da origem e natureza divinas da alma Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto recomendamos a leitura do seguinte livro RIEDWEG C ldquoPythagoras His life teaching and influencerdquo Translated by Steven Rendall with Christoph Riedweg and Andreas Schatzmann Ithaca NY Cornell University Press 2005

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ao vivo462 Logo nos deparamos com indiacutecios dessa atividade bem antes da

apariccedilatildeo do filoacutesofo grego

Os estudos histoacutericos indicam que esse fenocircmeno surgiu durante o

desenvolvimento da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica463 Haacute diversos mateacuterias arqueoloacutegicos

desse periacuteodo que foram encontrados que revelam que a praacutetica musical que

inicialmente se deu atraveacutes do uso da voz464 para o canto Posteriormente eacute notaacutevel

o emprego de instrumentos de sopro cordas e percussatildeo para acompanhaacute-la Aliaacutes

em Tebas foi encontrado uma tabuinha em Linear B que apresenta uma lista de

vaacuterios tocadores de lira (YOUNGER 1998) que certamente trabalhavam para

realeza com o intuito de auxiliar diversos rituais fuacutenebres e ciacutevicos Segundo o

professor americano John Younger as descobertas de instrumentos musicais

similares em outros siacutetios arqueoloacutegicos demonstram que a lira pode ter sido

introduzida pelos egiacutepcios pois ela foi encontrada durante o reino de Akhenaton

entre os anos de 1367 ndash 1350 aC Logo nos deparamos com mais uma prova que

demonstra o processo de intercacircmbio cultural que houve entre esses povos na

antiguidade Como foi ressaltado anteriormente465 por Heroacutedoto466 a muacutesica

acompanhava os egiacutepcios em inuacutemeras atividades Na descriccedilatildeo de sua viagem ele

ressalta o uso de vaacuterios instrumentos musicais entre as pessoas das classes mais

baixas A uacutenica diferenccedila que pode ser detectada entre essas culturas que

dialogavam com os predecessores dos gregos em relaccedilatildeo agrave praacutetica musical pode

ser medida atraveacutes da tonalidade atraveacutes da divisatildeo sonora em tetracordes467 de

uma quarta ou de um intervalo proacuteximo dele como uma oitava Eacute provaacutevel que no

Egito usasse a muacutesica egeia mais baixa com tons mais espaccedilados com o intervalo

de uma quarta O som de um modo geral para os ouvintes eacute considerado pelos

462 Esse ponto seraacute analisado por noacutes posteriormente nesse presente trabalho 463 Vide a nossa tabela cronoloacutegica em nossos anexos 464 Vide Aristoacuteteles De anima (420 b 5-20) Uma questatildeo que o filoacutesofo destaca nessa passagem eacute a relaccedilatildeo da voz (φωνήphoneacute) e a alma (ψυχῆςpsycheacute) A alma representa o movimento da vida que eacute notado atraveacutes do uso da voz Todos os instrumentos inventados nasceram com o intuito de imitar esse poder inato do homem A muacutesica eacute um fenocircmeno fiacutesico que depende de vibraccedilotildees que se propagam no ar como a voz e que segundo o filoacutesofo serve para expressar o pensamento de modo perfeito 465 Vide o capiacutetulo 36 466 Heroacutedoto Histoacuterias ( livro II cap LX) 467 Tetracordes em geral eacute uma seacuterie de quatro tons que preenchem um intervalo de quarta justa numa frequecircncia de proporccedilatildeo 43 Na muacutesica moderna o termo eacute usado para qualquer segmento de escala ou seacuterie tonal que composto a partir de quatro notas Esse termo eacute de origem grega e refere-se literalmente as quatro cordas Ou seja tem relaccedilatildeo com os instrumentos musicais como a lira harpa ou a ciacutetara que eram utilizados pelos antigos

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especialistas como robusto com uma qualidade melismaacutetica468 de caraacuteter penta

tocircnico Esse estilo tinha a caracteriacutestica de ser uma muacutesica hipnoacutetica que era

utilizada em diversos rituais para levar os seus ouvintes ao estado de ecstasy469 e

esse tipo de som pode ser encontrado na regiatildeo do Oriente Proacuteximo Segundo o

professor Younger470 a muacutesica produzida durante a idade do bronze pelas culturas

que habitavam na bacia do mar Egeu desperta o interesse de vaacuterios especialistas

que entre eles estaacute o musicoacutelogo britacircnico Martin L West que escreveu uma obra

sobre o iniacutecio da muacutesica claacutessica ocidental a partir da origem egeia471

Eacute importante ressaltar que nenhuma composiccedilatildeo antiga dessas culturas

sobreviveu pois o Linear B natildeo era utilizado para esse fim Como foi exposto

anteriormente esse tipo de escrita tinha a finalidade de registrar e controlar toda a

produccedilatildeo agraacuteria Mas o Linear A parece ter sido utilizado para outros fins

(YOUNGER 1998) durante o seu uso pela civilizaccedilatildeo minoica O fato desse tipo

de escrita ter sido encontrado em outros suportes eacute possiacutevel especularmos que tenha

sido usado para escrever muacutesicas O disco de argila chamado Phaistos472 no qual

ambos os lados carregam uma inscriccedilatildeo em espiral de pictogramas aparentemente

natildeo relacionado com o Linear A pode ter sido uma gravaccedilatildeo de um poema de algum

tipo riacutetmico que carregava a repeticcedilatildeo de refrotildees O professor grego-britacircnico

Gareth Owens a partir dos estudos de traduccedilatildeo desses idiomas pictoacutericos mais

antigos que ele desenvolveu junto com o especialista britacircnico John Coleman em

foneacutetica da universidade de Oxford diz ter solucionado esse enigma Segundo

Owens o disco circular de argila conteacutem uma oraccedilatildeo para a deusa matildee da

civilizaccedilatildeo minoica que segundo a sua traduccedilatildeo de um lado conteacutem a histoacuteria de

uma mulher graacutevida e do outro apresenta a histoacuteria de uma mulher que estaacute prestes

a dar agrave luz A prece deve ser lida seguindo a espiral pois caminha na direccedilatildeo circular

468 Eacute a teacutecnica de transformar a siacutelaba de um texto que sempre representa uma nota durante a execuccedilatildeo sonora durante o canto Esse tipo de teacutecnica pode ser encontrado no canto gregoriano e na muacutesica hindu e muccedilulmana 469 Certamente esse tipo de muacutesica tem relaccedilatildeo direta com os misteacuterios eleusianos orfismo e o ritual dionisiacuteaco 470 Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 471 Sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra WEST ML ldquoAncient Greek Musicrdquo Oxford Clarendon Press 1992 472 O famoso disco de Phaistos foi encontrado em 1908 e foi descoberto pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier desde entatildeo os especialistas tentam desvendar o seu conteuacutedo O disco eacute datado do ano 1700 aC e foi encontrado nas ruiacutenas do palaacutecio minoico de Phaistos na costa sul de Creta

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do disco de fora para o centro Como se o poeta ou escriba estabelecesse um

ritmo constante com suas marcaccedilotildees de tempo e tonalidade numa espeacutecie de

partitura primitiva que deveria guiar os muacutesicos a reproduzirem de modo fidedigno

a canccedilatildeo original que foi estabelecida pelo compositor divino Se ele estiver correto

em sua traduccedilatildeo essa eacute a prova cabal de um dispositivo utilizado para o registro de

uma informaccedilatildeo que deveria ser mantida para a posteridade e que foi encontrado

no palaacutecio minoico de Creta473 durante a idade do bronze como um protoacutetipo de

um disco de vinil A partir dessas evidecircncias podemos postular a possibilidade da

existecircncia de uma praacutetica literaacuteria altamente evoluiacuteda e que foi encontrada antes

do periacuteodo homeacuterico

As imagens que estatildeo descritas em cada lado formariam uma mensagem

sagrada que condiz com a religiatildeo desse periacuteodo no qual a mulher desempenhava

uma alta importacircncia dentro da cultura minoica na regiatildeo de Creta474 O artefato em

si pode ser dividido de modo ordenado em duas partes complementares que

podemos nomeaacute-las para fins exegeacuteticos de A e B pois cada lado apresenta um dos

estaacutegios do processo de florescimento da vida que estava associado com as

divindades femininas nesse contexto histoacuterico (CASTLEDEN 1990) Essa eacute uma

beliacutessima imagem que poderia ser contemplada como uma uacutenica peccedila sonora que

se realizava entre esses dois momentos quando estabelecemos um encadeamento

serial que tem a capacidade de espacializar essa experiecircncia religiosa que ocorre

na relaccedilatildeo entre os dois lados e nela podemos encontrar atraveacutes da coacutepula475 o

equiliacutebrio da vida que se manifesta com a sua mais bela dinacircmica e fluidez

representada atraveacutes do fenocircmeno fiacutesico da muacutesica Esse disco representaria a

proacutepria imagem do tempo e a relaccedilatildeo entre o plano inteligiacutevel e sensiacutevel que pode

ser encontrada na religiatildeo minoica e que posteriormente ecoou atraveacutes da tradiccedilatildeo

oral na mitologia para os gregos do periacuteodo homeacuterico A grande matildee era

473 Vide a tabela cronoloacutegica em nossos anexos 474 Uma reminiscecircncia dessa concepccedilatildeo pode ser encontrada nas odes do poeta tebano Piacutendaro (Odes nemeacuteia VI) ldquo ἓν ἀνδρῶν ἓν θεῶν γένος ἐκ microιᾶς δὲ πνέοmicroεν microατρὸς ἀmicroφότεροι διείργει δὲ πᾶσα κεκριmicroένα δύναmicroις ὡς τὸ microὲν οὐδέν ὁ δὲ χάλκεος ἀσφαλὲς αἰὲν ἕδος microένει οὐρανόςrdquo ldquoUma soacute de homens uma soacute raccedila de deuses de uma soacute matildee respiramos ambos distantes todavia todo o poder que as difere de forma que uma eacute nada mas sede sempre intreacutepido permanece brocircnzeo o ceacuteurdquo Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros CASTLEDEN Rodney ldquoMinoans Life in Bronze Age Creterdquo Routledge Press London 1990 E ldquoMycenaeans Life in Bronze Age Greecerdquo Routledge Press London 2005 475Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo

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considerada a divindade mais importante entre eles pois ela simbolizava vida

fertilidade e abundacircncia da Natureza Nos afrescos e ceracircmicas que essa deusa

aparece eacute possiacutevel notar a sua imponecircncia e espirito acolhedor diante dos seus

suacuteditos que em muitas representaccedilotildees satildeo de figuras animalescas e humanas

(MARINATOS 2010) A sua imagem maternal revela a natureza provedora que eacute

responsaacutevel pelo equiliacutebrio e prosperidade da comunidade Em outras apariccedilotildees o

machado duplo e o sol estatildeo ao seu lado O primeiro como o instrumento uacutetil para

manter a subsistecircncia atraveacutes da caccedila e a construccedilatildeo de utensiacutelios domeacutesticos De

outro uma arma de defesa e combate Enquanto que o sol representa o

florescimento da vida e do tempo Essas caracteriacutesticas revelam o poder dualista

da deusa que estaacute de um lado entre a fertilidade e a guerra e de outro entre o

mundo humano e divino Ou seja todos esses atributos inerentes agrave proacutepria Natureza

Em vaacuterios afrescos encontrados vemos que esse ritual em sua homenagem eacute

acompanhado por muacutesicos476 Esse fato revela o seu grau de importacircncia dentro da

civilizaccedilatildeo minoica

Eacute importante ressaltar que esses dois siacutembolos477 satildeo pertencentes a escrita

pictoacuterica minoica que eacute similar aos hieroacuteglifos egiacutepcios (EVANS 1952) Em todas

essas culturas antigas que utilizavam essa forma de expressatildeo os ideogramas

possuiacuteam um valor conceitual que eacute associado ao seu valor foneacutetico Ou seja os

sinais expostos no disco de argila de Phaistos por exemplo auxilia o leitor a

compreender imediatamente o conceito atraacutes de cada imagem exposta de modo

organizado O formato solar desse artefato tambeacutem remete diretamente aos

atributos da deusa que foram mencionados anteriormente Essa peccedila como um todo

representa o aacutepice que a civilizaccedilatildeo minoica alcanccedilou antes de seu total decliacutenio O

arqueoacutelogo britacircnico Arthur Evans identificou atraveacutes das escavaccedilotildees no siacutetio de

Creta que diversos ideogramas minoicos foram utilizados em trabalhos artiacutesticos no

interior do palaacutecio e em outros objetos de uso domeacutestico Ele notou que muitos

deles eram empregados com o mesmo valor simboacutelico que era utilizado na escrita

egiacutepcia478 Ora esse fato apresenta mais um ponto de conexatildeo entre essas duas

476 Vide os nossos anexos 477 Vide a escrita minoica no disco de argila de Phaistos nos anexos 478 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro EVANS Arthur ldquoScripta Minoa the written documents of Minoan Crete with special reference to the archives of Knossosrdquo Ed By Oxford At the Claredon press 1952

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culturas Nas fontes analisadas de modo comparativo pode-se averiguar que a

figura do sol desempenhou uma funccedilatildeo crucial na religiatildeo egiacutepcia atraveacutes do deus

Raacute Supreendentemente esse mesmo siacutembolo entre os minoicos ficou associado agrave

divina grande matildee que foi nomeada posteriormente de Potnia Theron479 a rainha

das feras Nesse sentido podemos acompanhar como uma importante divindade

minoica se manteve pelo menos em sua essecircncia arquetiacutepica incoacutelume na

mitologia grega mesmo depois do retrocesso cultural que foi produzido durante a

idade das trevas As divindades femininas de Atenas Reia Hera e Aacutertemis satildeo

exemplos de como essa antiga deusa solar sobreviveu no inconsciente coletivo

desses remanescentes que foram importantes para a formaccedilatildeo da base cultural

helecircnica (CHADWICK 1976)

Ao analisarmos algumas pinturas desse periacuteodo podemos supor que o mito

das musas e de Orfeu possa ter partido desse contexto cultural mais antigo das

civilizaccedilotildees ciclaacutedica e minoica que utilizavam esse meio artiacutestico totalmente

vinculado com o acircmbito religioso soacutecio-poliacutetico pedagoacutegico e juriacutedico Eacute notoacuterio

que essas culturas apresentavam o fenocircmeno da muacutesica como uma manifestaccedilatildeo

divina que era fundamento para outras atividades que tinha por objetivo manter o

equiliacutebrio soacutecio-poliacutetico entre todas as camadas que formavam a sociedade O poeta

que obtivesse a sua gloacuteria era considerado como aquele que pode transitar como

Orfeu entre o mundo humano e divino Uma prova desse encantamento que

ultrapassa a esfera humana e que marcou profundamente o processo de

subjetividade coletivo grego pode ser encontrado como tema central no diaacutelogo Iacuteon

de Platatildeo no qual o filoacutesofo apresenta uma interessante discussatildeo para saber se a

poesia eacute fruto do conhecimento humano ou da inspiraccedilatildeo divina480 Dentro desse

contexto histoacuterico poacutes homeacuterico em que a trama se baseia eacute possiacutevel detectar o

aparecimento da figura do rapsodo que apresentava poemas que natildeo era de sua

autoria e sem o acompanhamento musical481 Desde os primoacuterdios a figura de

479 Πότνια ΘηρῶνPotnia Theron 480 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo Eacute importante ressaltar que o pano de fundo desse cenaacuterio no qual o diaacutelogo se desenvolve estaacute tambeacutem a questatildeo entre a relaccedilatildeo entre a phyacutesis e nomos (φύσις και νόmicroος) ou seja o debate entre a lei da natureza e a lei da convenccedilatildeo humana Essa era uma polecircmica que despertou o interesse dos pensadores entre os seacuteculos 4 e 5 na Greacutecia a partir das reflexotildees que tinha a figura do homem como tema central 481 Essa eacute uma diferenccedila crucial em relaccedilatildeo a atividade poeacutetica que podemos encontrar na maioria do material arqueoloacutegico analisado dessas antigas civilizaccedilotildees que foram predecessoras dos gregos O acompanhamento instrumental fazia parte do trabalho desses artistas De um lado temos a

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destaque era o aedo482 que declamava seus proacuteprios versos eacutepicos em diversos

cantos da Greacutecia As caracteriacutesticas que satildeo apresentadas entre esses dois ourives

da palavra demonstram o processo de transformaccedilatildeo que a proacutepria poesia estava

atravessando com a expansatildeo da reinserccedilatildeo do uso da escrita (HAVELOCK 1996)

que deu a possibilidade para a reconfiguraccedilatildeo do processo de subjetividade coletivo

grego Nesse sentido o ofiacutecio do aedo representa o primeiro estaacutegio do

desenvolvimento racional e cultural grego pois ele eacute responsaacutevel por manter todo

o legado mais importante de seu povo atraveacutes do amplo desenvolvimento musical

que estava agrave serviccedilo do processo de memorizaccedilatildeo e encantamento utilizando como

conteuacutedo todos os acontecimentos mais marcantes do passado O segundo

momento que ocorreu o aparecimento da figura do rapsodo entre os seacuteculos V e

IV aC apresenta uma mudanccedila em que a literatura escrita passa influenciar as

praacuteticas de recitaccedilatildeo que acompanham esse novo contexto soacutecio-poliacutetico e cultural

grego Ou seja a tecnologia escrita foi interpretada por muitos pensadores como

Platatildeo483 e Alcidamas484 como um meio artificial e mimeacutetico que se chocou com

essa tradiccedilatildeo oral mais antiga que era focada na inspiraccedilatildeo divina que foi ampliada

pelo poder magnifico das leis musicais Eacute importante ressaltar que esse modelo mais

antigo estabelece relaccedilatildeo direta com a capacidade de memorizaccedilatildeo e raciociacutenio

que foi essencial para desenvolvimento da geometria e matemaacutetica dessas

sociedades

No diaacutelogo Fedro de Platatildeo essa novidade era concebida por Soacutecrates como

uma espeacutecie de ilusatildeo de conhecimento que parte do distanciamento entre os

manifestaccedilatildeo divina que surge pela capacidade de memorizaccedilatildeo e encantamento coletivo e pelo outro a capacidade humana de criaccedilatildeo atraveacutes da tecnologia que eacute representada na construccedilatildeo desses instrumentos que tinham desde a sua origem apresentar o diaacutelogo entre o mundo humano e divino Como ressaltamos anteriormente esse legado pode ser encontrado na mitologia que auxiliou os gregos na construccedilatildeo de sua sociedade apoacutes a idade das trevas atraveacutes da tradiccedilatildeo oral 482 Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Liddell amp Scott Αἰδώς aidoacutes ἀοιδός [α] ὁ ( ἀείδω ) cantor menestrel bardo Il 24720 Od 3270 al Hes Th 95 Op 26 Sapph 92 etc ἀ ἀνήρ Od 3267 θεῖος ἀ 417 887 al τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀ Hdt 124 πολλὰ ψεύδονται ἀ Arist Metaph 983a4 cgen γόων χρησmicroῶν ἀοιδός E HF 110 Heracl 403 πρᾶτος ἀ of the cock Theoc 1856 2 fem songstress πολύϊδρις ἀ Id 1597 of the nightingale Hes Op 208 of the Sphinx S OT 36 E Ph 1507 (lyr) ἀοιδὸς Μοῦσα Id Rh 386 (lyr) 3 encantador S Tr 1000 II as Adj melodioso musical ἀοιδοτάταν ὄρνιθα E Hel 1109 (lyr) cf Theoc 127 Call Del 252 IG 12(2)443 2 Pass = ἀοίδιmicroος famous πολλὸν ἀοιδοτέρη Arcesil ap DL 430 III = εὐνοῦχος Hsch cf δοῖδος 483 Vide Platatildeo Fedro (275 a ) 484 Vide Alcidamas sobre os sofistas

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interlocutores485 Logo o meacutetodo maiecircutico socraacutetico dentre desse novo contexto

estava completamente ameaccedilado Por essa perspectiva eacute possiacutevel compreendermos

o fato de o filoacutesofo nunca ter escrito uma uacutenica linha A filosofia para ele eacute

fundamentalmente calcada no processo dialoacutegico que necessita do contato entre

duas almas de modo ativo como uma praacutetica existencial de cunho eacutetico epistecircmico

poliacutetico e pedagoacutegico O seu grande disciacutepulo Platatildeo carrega essa marca de modo

paradoxal ao escrever seus diaacutelogos A escrita platocircnica eacute a imagem do diaacutelogo oral

que eacute o meacutetodo deixado pelo seu mestre para a busca de conhecimento que soacute pode

ocorrer no encontro entre duas almas Dentro dessa concepccedilatildeo eacute importante

ressaltar que o processo subjetivo eacute atravessado pela troca incessante e essencial

com o outro pois o diaacutelogo natildeo repassa para o indiviacuteduo um conhecimento acabado

Pelo contraacuterio ele eacute resultado de um esforccedilo e colaboraccedilatildeo muacutetuo que parte da

duacutevida e da busca compartilhada Nesse sentido eacute possiacutevel como ressalta o

helenista francecircs Pierre Hadot (HADOT 1995) compreendermos o motivo pelo

qual Platatildeo jamais escreveu utilizando a primeira pessoa do singular Ao contraacuterio

de outros pensadores do seu periacuteodo o filoacutesofo sempre afirmou atraveacutes da premissa

socraacutetica do natildeo saber a nossa incapacidade de realizar qualquer atividade sem o

auxiacutelio do outro Como ressaltamos em nossa introduccedilatildeo esse caminho filosoacutefico

eacute baseado na constataccedilatildeo da necessidade do outro que atravessa essencialmente a

natureza humana desde a sua origem Dentro desse debate produzido durante o

periacuteodo claacutessico nos deparamos com o choque entre a antiga tradiccedilatildeo oral que era

fundamentada atraveacutes do conhecimento musical da poesia e com o novo uso da

teacutecnica escrita que comeccedila a atuar como o principal instrumento de armazenamento

informacional Essa transformaccedilatildeo modificou de modo irreversiacutevel o processo de

subjetividade grego Uma nova mentalidade comeccedila a ser desenhada no qual essa

tradiccedilatildeo oral de um modo geral comeccedila a ser colocada em xeque pelos seus

detratores O efeito desse desgaste resultou no discurso em prosa que podemos

encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides No iniacutecio da Poeacutetica486 haacute uma passagem

interessante em que Aristoacuteteles demarca esse distanciamento entre esses dois

485 Ou seja o diaacutelogo presencial natildeo pode acontecer dentro desse novo contexto Esse ponto eacute importante para apresentar o caraacuteter pragmaacutetico que o meacutetodo dialoacutegico representava em uma cultura que foi criada a partir da tradiccedilatildeo oral 486 Vide Aristoacuteteles Poeacutetica (1447 b)

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importantes meios expressivos do pensamento grego487 A sua abordagem

sistematizadora e perspicaz eacute de grande ajuda para detectarmos algumas

caracteriacutesticas dessa nova forma de expressatildeo que eacute derivada da antiga arte das

musas488

Em todas as culturas que antecederam esse momento encontramos inuacutemeras

provas de atividades artiacutesticas que comprovam o grande desenvolvimento do

processo de subjetividade preacute-grego atraveacutes da muacutesica A nossa hipoacutetese busca o

seu fundamento na concepccedilatildeo musical que parte da afinaccedilatildeo489 que surge da tensatildeo

dos instrumentos de cordas e que opera de modo relacional e comparativo Ou

seja duas importantes atribuiccedilotildees de nossa capacidade cognitiva que aponta para

um amplo desenvolvimento intelectual A noccedilatildeo de harmonia490 que na liacutengua

grega apresenta o sentido de ajuste e concoacuterdia antes mesmo de Pitaacutegoras e

Heraacuteclito essas importantes noccedilotildees jaacute estavam sendo estudadas e utilizadas por

todos os poetas e muacutesicos da idade do bronze com o intuito de alcanccedilar a excelecircncia

487 O termo empregado no texto grego eacute λόγοςloacutegos Posteriormente apresentaremos algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto

488 Μουσικήmousikeacute 489 Ato de ajustar aumentando ou diminuindo a tensatildeo das cordas Natildeo sabemos ao certo quando isso ocorreu na antiguidade mas uma coisa eacute certa natildeo foi Pitaacutegoras o primeiro a ter feito isso A natildeo ser que a cronologia que muitos historiadores apresentam ao seu respeito esteja equivocada Seja como for a sua teoria pode ter sido aprimorada a partir dessas descobertas musicais que ele certamente adquiriu com os sacerdotes egiacutepcios 490 Ἁρmicroονίαharmonia Na mitologia eacute uma divindade responsaacutevel pela concoacuterdia Para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott ἁρmicroονία ἡ ( ἁρmicroόζω ) meios de uniatildeo fixaccedilatildeo γόmicroφοις microιν καὶ ἁρmicroονίῃσιν ἄρηρεν Od 5248 ὄφρ ἂν ἐν ἁρmicroονίῃσιν ἀρήρῃ ib 361 2 articulaccedilatildeo como entre as pranchas de um navio τὰς ἁ ἐν ὦν ἐπάκτωσαν τῇ βύβλῳ vedar as junccedilotildees com papiros Hdt 296 τῶν ἁρmicroονιῶν διαχασκουσῶν Ar Eq 533 tambeacutem em alvenaria αἱ τῶν λίθων ἁ DS 28 cf Paus 888 9337 3 Em anatomia sutura Hp Off 25 Oss 12 uniatildeo de dois ossos por mera justaposiccedilatildeo Gal 2737 tambeacutem no plural ajustes πόρων Epicur Fr 250 4 Estrutura ῥηγνὺς ἁρmicroονίαν λύρας S Fr 244 βοός Philostr Im 116 esp do quadro humano ἁρmicroονίην ἀναλυέmicroεν ἀνθρώποιο Ps-Phoc 102 νεύρων καὶ κώλων ἔκλυτος ἁ AP 7383 ( Phil ) τὰς ἁ διαχαλᾷ τοῦ σώmicroατος Epicr 219 b da mente δύστροπος γυναικῶν ἁdo temperamento perverso das mulheres E Hipp 162 (lyr) c estrutura do universo CorpHerm 114 II Convecircnio acordo in pl microάρτυροι καὶ ἐπίσκοποι ἁρmicroονιάων Il 22255 III governo estabelecido ordem τὰν ∆ιὸς ἁ A Pr 551 (lyr) IV Na muacutesica afinar ἁ τόξου καὶ λύρας Heraclit 51 cf Pl Smp 187a daiacute meacutetodo de afinaccedilatildeo musical escala Philol 6 etc Nicom Harm 9 esp oitava ἐκ πασῶν ὀκτὼ οὐσῶν [φωνῶν] microίαν ἁ συmicroφωνεῖν Pl R 617b ἑπτὰ χορδαὶ ἡ ἁ Arist Metaph 1093a14 cf Pr 919b21 of the planetary spheres in Pythag theory Cael 290b13 Mu 399a12 etc 2 Geralmente muacutesica αὐτῷ δὲ τῷ ῥυθmicroῷ microιmicroοῦνται χωρὶς ἁ Id Po 1447a26 3 especial tipo de escala modo ἁ Λυδία Pi N 446 Αἰολίς or -ηις PratinLyr 5 Lasus I cf Pl R 398e al Arist Pol 1276b8 1341b35 etc b esp Escala enarmocircnica Aristox Harm pI M Plu 21135a al 4 ἁρmicroονίαν λόγων λαβών um devido arranjo das palavras fit to be set to music Pl Tht 175e 5 intonation or pitch of the voice Arist Rh 1403b31 6 metaph De pessoas coisas harmonia concoacuterdia Pl R 431e etc V personificado como uma figura miacutetica hAp 195 Hes Th 937 etc Philos like φιλότης princiacutepio de uniatildeo opp Νεῖκος Emp 1222 cf 273 VI Pythag Nome para trecircs Theol Ar 16 VII Nome de um remeacutedio Gal 1361 nome de um gesso Paul Aeg 362

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expressiva Logo podemos concluir que essa atividade que foi explorada por esses

pensadores gregos posteriormente tambeacutem foi uma heranccedila oriunda da tradiccedilatildeo

oral

A teoria mais importante da muacutesica grega antiga que foi reconhecida entre os

especialistas parte da teoria harmocircnica de Pitaacutegoras que seguia uma concepccedilatildeo

geomeacutetrica491 Em resposta direta a esse pressuposto a formulaccedilatildeo de Aristoxeno

que foi desenvolvida posteriormente era fundamentalmente empiacuterica ou seja o

criteacuterio de seu estudo estava voltado para o surgimento desse fenocircmeno fiacutesico em

nossos sentidos E segundo a professora Flora (LEVIN 2009) foram essas duas

concepccedilotildees que estabeleceram o paracircmetro para a ciecircncia da melodia em nosso

mundo Ocidental Desde a antiguidade a muacutesica estabelece uma espeacutecie de imagem

que apresenta o universo em movimento que sintetiza o proacuteprio processo da vida

Eacute importante ressaltar que para o pitagorismo a descoberta dessas leis natildeo

escritas que governam a nossa realidade tem uma dimensatildeo idecircntica agrave constituiccedilatildeo

do processo musical e da arte como um todo492 Desse modo podemos encontrar

mais um elemento de afinidade com o desenvolvimento racional que foi essencial

para o surgimento da ciecircncia e filosofia ateacute o periacuteodo renascentista Ao intuir a

essecircncia da muacutesica como nos apresenta as doxografia pitagoacuterica493 como uma lei

superior invisiacutevel que ordena o mundo sensiacutevel estamos aptos para reconhecer uma

lei universal que governa essa estrutura composta de vaacuterias partes mas natildeo como

uma realidade autocircnoma e isolada e sim como algo pertencente agrave um todo orgacircnico

estruturado A descoberta dessa ordem musical da Natureza reflete-se na religiatildeo

matemaacutetica geometria arte poliacutetica educaccedilatildeo e na filosofia Dentro desse

contexto o mito expande a sua atuaccedilatildeo nos mais variados campos Do encanto da

fala ou a fala cantada em um dos seus muacuteltiplos usos surge para ampliar o

horizonte da criaccedilatildeo helecircnica agrave serviccedilo da poesia eacutepica e a formaccedilatildeo das crianccedilas494

491 Sobre esse ponto recomendamos leitura do seguinte livro LEVIN RF ldquoGreek Reflections on the nature of musicrdquo Cambridge University Press 2014 492 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GHYKA Matila ldquoEstheacutetique des proportions dans la nature et dans les artsrdquo Editeacute par Paris Editions Gallimard 1927 493 Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros HUFFMAN C ldquoPhilolaus of Croton Pythagorean and Presocraticrdquo Cambridge University Press 1993 e IAMBLICHUS ldquoOn the Pythagorean Way of Liferdquo The translation by J Dillon and J Hershbell Atlanta Scholars Press 1991 494 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro II e III) e Aristoacuteteles Poliacutetica (livro VIII) Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo

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com as dramatizaccedilotildees que facilitavam o processo pedagoacutegico Esse recurso trazia

em seu bojo os elementos necessaacuterios para o amplo desenvolvimento individual que

era alcanccedilado atraveacutes da ampliaccedilatildeo da percepccedilatildeo visual auditiva mnemocircnica

criativa emocional e afetiva495 que eram necessaacuterios para a construccedilatildeo e equiliacutebrio

do homem grego na vida poliacutetica e militar496 o desenvolvimento desse processo de

formaccedilatildeo psicoloacutegica foi tatildeo importante que posteriormente alcanccedilou a sua

plenitude maacutexima atraveacutes da sofisticaccedilatildeo pedagoacutegica apresentada pelo Teatro497

Na antiguidade haacute um consenso que apresenta Pitaacutegoras como o primeiro

pensador a elaborar uma teoria sobre a muacutesica Mas posteriormente muitos

estudiosos da escola platocircnica e aristoteacutelica se interessaram por esse assunto

durante e apoacutes o periacuteodo claacutessico498 Esse interesse pode ser considerado como

mais uma evidecircncia para a importacircncia desses estudos no acircmbito da epistemologia

antiga Natildeo podemos esquecer que em seus uacuteltimos momentos na prisatildeo Soacutecrates

menciona a relaccedilatildeo entre a muacutesica e a filosofia499 Em algumas horas antes do

filoacutesofo tomar a cicuta revela aos seus companheiros que devido a um sonho

recorrente ele foi impulsionado a cultivar a arte das musas A partir disso ele

compocircs algumas poesias inspirado nas faacutebulas de Esopo500 que foi um poeta

495 Παθηmicroαpathema No tratado intitulado ldquoDa interpretaccedilatildeordquo (livro I 16 a) Aristoacuteteles destaca o papel das afecccedilotildees no processo da linguagem humana Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega παθ-ηmicroα ατος τό dat pl παθηmicroάτοις com Adesp 283 (Aetol De acordo com Eust 27942 176136) - o que acontece com um sofrimento infortuacutenio S Tr 142 Th 448 etc τὸ π τοῦ Χριστοῦ a paixatildeo de Cristo 2 EpCor 15 de boa fortuna χαῖρε παθὼν τὸ π (deificaccedilatildeo) Orph Pe 32f principalmente em pl Hdt 8136 etc παθήmicroαθ ἅπαθον S OC 361 ἀκούσια π opp ἑκούσια καὶ ἐκ προνοίας ἀδικήmicroατα Antipho 127 τὰ δέ microοι π microαθήmicroατα γέγονε meus sofrimentos foram minhas liccedilotildees (cf πάθος 12) Hdt 1207 cf Ar ordm 199 pl Smp 222b II emoccedilatildeo ou condiccedilatildeo afeto π τῆς ψυχῆς εἶναι τὴν σωφροσύνην οὐ microάθηmicroα X Cyr 3117 cf Pl Phd 79d opp ποίηmicroα Id Sph 248b τὸ τῆς ἑτέρας χειρὸς π Enredo 492 mas nos primeiros escritores principalmente em pl afeiccedilotildees sentimentos opp ποιήmicroατα Pl R 437b τὰ περὶ τὸ σῶmicroα π Identidade Phlb 33d σα διὰ τοῦ σώmicroατος π ἐπὶ τὴν ψυχὴν τείνει Id Th 186c π ν τῇ ψυχῇ γιγνόmicroενα Id R 511d παθήmicroασιν ὑπηρετεῖν obedeccedilam aos sentimentos Arist Pol 1254b24 opp ἤθη ἕξεις Id Rh 1396b33 cf Po 1449b28 2 Medic Pl Problemas sintomas Hp VM 2 Epid 2224 π καὶ νοσήmicroατα Pl R 439d cf 389c III em pl incidentes acontecimentos τὰ ἐν ∆οδυσσείᾳ π ib 393b πάντα εἴδη καὶ π πολιτειῶν Id Lg 681d 2 incidentes ou mudanccedilas de corpos materiais τὰ οὐράνια π Identidade Ion 531c cf Phd 98a τὰ τῆς σελήνης π Arist Metaf 982b16 cf Mete 363a24 365a12 3 em Loacutegica incidentes propriedades ou acidentes Pl Phdr 271b Prm 141d 157b Arist APo 76b13 Cael 310a20 τὰ π τὰ αἰσθητά de cor etc Id Sens 445b4 496 No proacuteximo capitulo veremos que a atuaccedilatildeo militar estava inteiramente vinculada a vida poliacutetica entre os gregos 497 Vide a Poacuteetica de Aristoacuteteles (1447 a 10025) 498 Vide De institutione musica de Boeacutecio 499 Vide Platatildeo Feacutedon (57 a - 65 c ) 500 Escritor grego (620 aC ndash 564 aC ) de origem africana () que teria sido o inventor da faacutebula Segundo Heroacutedoto (Histoacuterias II 134) Esopo foi escravo do filoacutesofo Xanto e foi condenado agrave morte

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escravo que teria sido condenado agrave morte injustamente501 As suas faacutebulas que

tinha uma caracteriacutestica eacutetico-moral foram um importante trabalho de expressatildeo

poeacutetico que era utilizado para fins pedagoacutegicos Esse dado curioso fornece vaacuterias

pistas que apontam para a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo antiquiacutessima grega que sempre

esteve voltada para o desenvolvimento do processo subjetivo coletivo grego que

podemos encontrar algumas evidecircncias na mitologia e nas obras de Platatildeo502

47 Eacutepos 503

Como foi exposto anteriormente no primeiro capiacutetulo esse eacute o segundo

importante termo encontrado na liacutengua grega que se refere ao ato de expressatildeo

humano504 De um modo geral a poesia eacutepica ganhou notoriedade a partir da obra

injustamente Talvez seja por isso que Soacutecrates de maneira irocircnica tenha mencionado o poeta escravo por causa desse julgamento equivocado e pelo teor eacutetico-moral e alegoacuterico de suas obras na antiguidade 501 Ibidem 502 Vide o diaacutelogo Feacutedon e a Repuacuteblica de Platatildeo 503 Em outros capiacutetulos desse presente trabalho vamos apresentar algumas caracteriacutesticas que tem relaccedilatildeo direta com esse meio de expressatildeo A partir disso o presente subcapiacutetulo focaraacute em alguns aspectos formais e histoacuterico que visam expor a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral 504 Para mais informaccedilotildees vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott para as ocorrecircncias de uso desse termo na liacutengua grega Ἔπος mais antigo ϊέπος SIG 9 (v infr) etc εος τό (Skt vaacutecas palavra hino cf εἶπον) I palavra παύρῳ ἔπει em poucas palavras Pi O 1398 ἐπέων κόσmicroος Parm 852 Democr 21 ἔπους σmicroικροῦ χάριν S OC 443 λόγοι ἔπεσι κοσmicroηθέντες Th 367 geralmente aquilo que eacute pronunciado em palavras fala conto ἔπος ἐρέειν Il 383 etc φάσθαι Xenoph 73 Parm 123 etc ao lado de microῦθος Od 4597 11561mdashUsos especiais 1 Canccedilatildeo acompanhada de muacutesica 891 17519 2 Palavra prometida promessa Il 88 τελέσαι ἔπος fulfil keep ones word 1444 cf A Pr 1033 3 Palavra na eacutepoca conselho Il 1216 2807 Od 18166 etc freq in Trag E Hel 513 etc 4 Palavra de uma divindade oraacuteculo Od 12266 Hdt 113 etc 5 Falar proveacuterbio τὸ παλαιὸν ἔπος Id 751 cf Ar Av 507 6 palavra opp ato ἔπε ἀκράαντα palavras sem efeito opp ἔτυmicroα Od 19565 cf E HF 111 (lyr) opp ἔργον Il 15234 Od 2272 etc cf 111 αἴτε ϊέπος αἴτε ϊάργον SIG 9 (Elis vi BC) opp βίη Il 15106 opp χεῖρες 177 (pl) 7 Assunto de uma fala menssagem 11652 17701 S OT 1144 etc II Uso posteriores 1 Juntou-se com ἔργον or πρᾶγmicroα Heraclit 1 A Pers 174 (troch) Ar Eq 39 etc ἔργῳ τε καὶ ἔπει Pl Lg 879 c ἅmicroα ἔπος τε καὶ ἔργον ἐποίεε Hdt 3134 χρηστὰ ἔργα καὶ ἔπεα ποιέειν Id 190 2 κατ ἔπος palavra por palavra κατ ἔ βασανιεῖν φησι τὰς τραγῳδίας Ar Ra 802 3 πρὸς ἔπος para a primeira palavra Luc Ep Sat 37 b palavra em troca de palavra ἀmicroείβεσθαι ἀποκρίνεσθαι of an oracle Id Alex 19 Philops 38 ἔ δ ἀmicroείβου πρὸς ἔ A Eu 586 cf Ar Nu 1375 Pl Sph 217d c οὐδὲν πρὸς ἔ to no purpose Ar Ec 751 tambeacutem nada a proacutesito ἐὰν microηδὲν πρὸς ἔ ἀποκρίνωmicroαι Pl Euthd 295c cf Luc Herm 36 τί πρὸς ἔπος Pl Phlb 18d 4 ὡς ἔπος εἰπεῖν quase praticamente qualificando uma expressatildeo muito absoluta esp com πᾶς and οὐδείς (sem metaacuteforas) Pl Ap 17a Phd 78e Grg 456a al Arist Metaph 1009 b16 Pol 1252 b29 D 947 etc opp ὄντως or ἀκριβεῖ λόγῳ Pl Lg 656e R 341b posteriormente ὡς ἔ ἐστὶν εἰπεῖν POxy 6714 (iv AD) in Trag ὡς εἰπεῖν ἔ A Pers 714 (troch) E Heracl 167 Hipp 1162 once in Pl Lg 967b (svl) 5 ἑνὶ ἔπει em uma palavra brevemente ἑνὶ ἔπεϊ πάντα συλλαβόντα λέγειν Hdt 382 III De palavras isoladas esp com ref para etimologia ou uso Id 230 Ar Nu 638 Pl Prt 339 a etc ὀρθότης ἐπῶν = ὀρθοέπεια (qv) Ar Ra 1181 ἄριστ ἐπῶν ἔχον ib 1161 IV in pl epic poetry opp microέλη (lyric poetry) ἰαmicroβεῖα διθύραmicroβοι etc ῥαπτῶν ἐπέων ἀοιδοί Pi N 22 τὰ Κύπρια ἔπεα Hdt 2117 cf Th 13

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homeacuterica505 e hesioacutedica506 se focircssemos atribuir uma uacutenica caracteriacutestica agrave epopeia

poderiacuteamos afirmar que ela estaacute voltada para registrar a excelecircncia da accedilatildeo

humana507 diante das dificuldades para manter a sobrevivecircncia em um mundo

completamente hostil marcado essencialmente pela guerra Todas as experiecircncias

satildeo reunidas com o intuito de organizar um banco mnemocircnico que pode ser

utilizado para a sua orientaccedilatildeo social e poliacutetica Eacute importante ressaltar que esse tipo

de gecircnero natildeo era de uso exclusivo dos gregos (KIRK 1962) Em outras

civilizaccedilotildees muito mais antigas como o povo hitita por exemplo eacute possiacutevel

encontramos esse gecircnero sendo utilizado para fins religiosos e militares508

As obras dos dois poetas gregos mais famosos Homero e Hesiacuteodo se apoiam

em uma tradiccedilatildeo oral extremamente antiga para a construccedilatildeo de suas narrativas

poeacuteticas que seguem agrave risca uma estruturaccedilatildeo meloacutedica e meacutetrica que foi

desenvolvida atraveacutes do aperfeiccediloamento das teacutecnicas musicais que foram essecircncias

para a sua longevidade e efetividade na cultura grega509 Como foi exposto por noacutes

anteriormente510 esses poetas deram continuidade a uma atividade mnemocircnica que

tinha uma funccedilatildeo determinante na estruturaccedilatildeo social poliacutetica e pedagoacutegica dos

gregos Dentro do estudo desenvolvido na Poeacutetica o filoacutesofo macedocircnio expotildee que

todas as composiccedilotildees poeacuteticas independentemente do gecircnero se caracterizavam

por meio do ritmo das palavras511 e da harmonia de modo separado ou

combinado512 E elas tem por dever imitar as accedilotildees excelentes513 atraveacutes da palavra

X Mem 143 Pl R 379 a etc ἔπεά τε ποιεῖν πρὸς λύραν τ ἀείδειν Theoc Ep 216 νικήσας ἔπος IG 31020 ποητὴς ἐπῶν ib 731979 (Orchom Boeot) cf OGI 5137 (Egypt iii BC) b geralmente poesia ateacute letras Alcm 25 (prob) Pi O 38 etc c linhas versos esp de linhas faladas no drama Ar Ra 862 956 etc sg verso linha de poesia Hdt 429 Pl Min 319 d conjunto de versos Id R 386 c Hdt 7143 d linhas escritas microυρίων ἐπῶν microῆκος Isoc 12136 ἐν ὅλοις ἑπτὰ ἔπεσι παραδραmicroεῖν de um histoririador Luc HistConscr 28 505 Eacute importante ressaltar que as duas epopeias da Iliacuteada e Odisseia representam dois momentos distintos dentro da histoacuteria da poesia heroica grega No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essas diferenccedilas que encontramos nessas duas obras 506 Ibidem 507 Na Poeacutetica (1448 a ndash 26) Aristoacuteteles afirma que a epopeia eacute a imitaccedilatildeo de homens que se destacam por sua excelecircncia (ἀρετή aretecirc) Logo podemos encontrar a partir dessa passagem o caraacuteter pedagoacutegico e axioloacutegico da antiga poesia eacutepica 508 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros GEORGE A RldquoThe Babylonian Gilgamesh Epicrdquo Oxford 2003 E BOWRA Cecil Maurice ldquoHeroic Poetryrdquo London Macmillan 1952 509 Vide o subcapiacutetulo anterior 510 Ibidem 511 No texto grego observamos que o filoacutesofo natildeo utiliza o termo ἔπος eacutepos mas λόγος loacutegos No proacuteximo subcapiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 512 Aristoacuteteles Poeacutetica (livro I 1447 a 20 ndash 25) 513 Excelecircncia ἀρετή aretecirc

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e melodia514 Nesse sentido nos deparamos com o caraacuteter de interdependecircncia

reciacuteproco entre a palavra e a muacutesica Em outro livro chamado Problemas515 ele

deixa subtendido que o diaacutelogo entre esses dois termos estaacute totalmente voltado para

a proacutepria estruturaccedilatildeo do idioma grego Todas as formas literaacuterias criadas

acompanham indissociavelmente esse processo de desenvolvimento musical Ou

seja a melodia estaacute voltada para o aspecto foneacutetico que visa encontrar a excelecircncia

expressiva nos olhos516 e ouvidos dos gregos

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees de como era a formaccedilatildeo desses

primeiros aedos Para o helenista britacircnico Geoffrey Stephen Kirk (KIRK 1962)

esses primeiros poetas tinha uma plena aceitaccedilatildeo entre todas as camadas sociais

dos membros da realeza ateacute a populaccedilatildeo mais humilde A sua hipoacutetese eacute

fundamentada pela anaacutelise da poesia heroica iugoslava517 e algumas partes da

Odisseia que apresentam o profundo respeito que figuras como Phemius518 e

Demoacutedoco519 exerciam naquele periacuteodo Uma caracteriacutestica desse tipo de

composiccedilatildeo era o uso dos epiacutetetos atraveacutes do uso de substantivos de modo repetitivo

que tinha a finalidade de realccedilar alguma qualidade de algum personagem

importante como eacute o caso de figuras como Aquiles520 e Odisseu521 na Iliacuteada Vale

ressaltar que esse recurso tambeacutem era utilizado para destacar lugares objetos e

certas situaccedilotildees que deveriam ser mantidas para facilitar o processo mnemocircnico do

aedo que tinha que recordar milhares de versos sem a ajuda da teacutecnica escrita

durantes as suas apresentaccedilotildees puacuteblicas522 Natildeo haacute duacutevida de que esse tipo de

capacidade para alcanccedilar a sua maacutexima excelecircncia necessitava ser praticada

514 Μελοποι-ια ἡ melopoia Fazer poemas liacutericos ou muacutesica geralmente muacutesica Arist Po 1450b16 Pol 1341b24 Aristox Harm p38 M Phld Mus p31 K Ocell 48 Cleonid Harm 14 AristidQuint 112 II Composiccedilatildeo musical ao contraacuterio de sua praacutetica Pl Smp 187d cf R 404 d para mais informaccedilatildeo sobre esse termo recomendamos a leitura do dicionaacuterio de Liddell amp Scott 515 Vide Aristoacuteteles Problemas (livro XIX 20) 516 Com a encenaccedilatildeo teatral e dos grandes oradores como Goacutergias 517 Esse trabalho foi analisado de modo primoroso no seguinte livro CHADWICK H Munro and Nora ldquoThe Growth of Literaturerdquo In 3 vols Cambridge 1932 518 Vide Homero Odisseia (Canto I 325 ndash 345) 519 Ibidem (Canto VIII 62-68) Essa passagem eacute importante pois revela que a funccedilatildeo do aedo era sempre acompanhada pelo som da ciacutetara E como foi exposto no subcapiacutetulo anterior essa praacutetica eacute extremamente antiga na preacute-histoacuteria grega 520 O melhor dos aqueus 521 O muito astuto 522 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura da introduccedilatildeo do seguinte livro Barnabeacute Pajares A ldquoFragmentos de Eacutepica Griega Arcaicardquo Madrid Editorial Gredos1979

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exaustivamente desde a infacircncia e eacute bem provaacutevel que houvesse uma espeacutecie de

confraria do tipo sacerdotal que era muito comum nessas culturas do periacuteodo de

bronze523 para organizar e preparar os jovens mais aptos para exercer essa

atividade divina dentro do palaacutecio Todavia eacute importante ressaltar que natildeo haacute

muitas fontes disponiacuteveis que possam afirmar com seguranccedila como e quando esse

tipo de atividade surgiu no mundo antigo

Essa tradiccedilatildeo milenar a partir do seacuteculo VIII e VII comeccedila a receber outros

traccedilos para atender de modo exemplar as novas configuraccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que

se expande com a reinserccedilatildeo do uso da escrita524 Consequentemente esse

importante meio de expressatildeo se reconfigurou atraveacutes da criaccedilatildeo de novos gecircneros

ateacute desparecer completamente da literatura grega (KIRK 1962) por causas sociais

e histoacutericas Mas eacute importante ressaltar que essas transformaccedilotildees natildeo ocorreram

de modo uniforme em todas as partes da Greacutecia pois em cada cidade havia um

legado eacutepico especiacutefico para suprir a demanda soacutecio-poliacutetica e pedagoacutegica local525

Esse fato demonstra natildeo apenas o poder de plasticidade mas tambeacutem o alcance e

vigor da poesia homeacuterica que persistiu durante um longo periacuteodo em territoacuterio grego

e romano526 Na parte formal desse gecircnero podemos destacar o uso recorrente do

verso em hexacircmetro dactiacutelico e a fraseologia tradicional que lhe impocircs sentido e

beleza O conteuacutedo abrangia uma temaacutetica bem variada a partir da assinatura de

523 Vide nossos anexos 524 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar as singularidades existentes entre Esparta e outras cidades O mais interessante eacute que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros e sucessores do poeta Creoacutefilo alguns textos contendo diferentes partes das obras poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer que ele ordenou que essas obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco ainda ressalta que nessa eacutepoca os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar escassos Eacute bem provaacutevel que essa tradiccedilatildeo estivesse comeccedilando a cair em desuso E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica E por uacuteltimo vale mencionar que essa memoacuteria preservada trazia consigo um dos sentidos do termo aleacutetheia (natildeo-esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os seacuteculos VIII e V Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 525 Ibidem 526 Vide a Eneida que foi um poema eacutepico latino escrito por Virgiacutelio no seacuteculo I aC que foi altamente influenciada pela epopeia homeacuterica

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cada poeta e regiatildeo527 Por um lado haacute o legado deixado do ciclo eacutepico que eacute uma

reuniatildeo de diversas epopeias que se caracterizou por manter algum elo de

continuidade e com a inserccedilatildeo proposital de alguns hiatos que fornecia ao rapsodo

um espaccedilo de liberdade criativa no qual fornecia a oportunidade de preenchecirc-los a

partir do seu interesse ou motivaccedilatildeo especiacutefica528 Dentro desse contexto haacute ainda

a poesia eacutepica de cunho genealoacutegico que apresentava uma espeacutecie de

sistematizaccedilatildeo do mito que expotildee as transformaccedilotildees e ateacute a configuraccedilatildeo atual do

mundo529 um exemplo claro pode ser encontrado no mito das cinco raccedilas de

Hesiacuteodo530 no qual eacute possiacutevel identificar uma espeacutecie de ordenamento cronoloacutegico

que certamente foi baseado nas antigas narrativas orais que estavam disponiacuteveis em

seu tempo Diante disso surge as seguintes questotildees que geram debates

interminaacuteveis entre os especialistas 1) o que de fato constituiu a idade heroica531

mencionada pelo poeta 2) podemos compreendecirc-la a partir de certas condiccedilotildees

soacutecio-poliacuteticas que podem ter ocorrido entre a idade do bronze e das trevas 3) o

elemento histoacuterico factual eacute essencial para o desenvolvimento da narrativa heroica

dos antigos aedos A disposiccedilatildeo metoacutedica que o poeta organizou entre cada fase do

seu mito nos leva a tendecircncia de aceitarmos a sua exposiccedilatildeo como uma histoacuteria

vaacutelida pois dentro desse contexto a palavra do poeta natildeo poderia ser de forma

alguma colocada em duacutevida

Logo esse tipo de narrativa pocircde ser utilizado para diferentes fins

Posteriormente a palavra do poeta comeccedilou a ser utilizada como justificaccedilatildeo de

algum parentesco divino para fornecer privileacutegios poliacuteticos532 ou ateacute mesmo

construir a imagem negativa de alguma personalidade ou cidade Certamente esse

era um dos pontos que levou Platatildeo533 a condenar a poesia em seu tempo com todas

527 Ibidem 528 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 529 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo 530 Vide o Trabalho e os dias de Hesiacuteodo 531 Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (versos 156) 532 Eacute criacutevel que esse tipo de atitude tambeacutem ocorresse em seus primoacuterdios para a fundamentaccedilatildeo divina durante as teocracias em vaacuterias outras civilizaccedilotildees Mas com a abertura poliacutetica ocorrida na Greacutecia apoacutes o periacuteodo arcaico No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo indicamos a leitura do seguinte livro DETIENNE M ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 533 Vide Platatildeo Goacutergias (501 d ndash 502 c) Nessa passagem podemos encontrar uma criacutetica do filoacutesofo sobre o uso do acompanhamento musical que estava sendo utilizado para agradar a plateia Esse fato indica essas transformaccedilotildees que indicamos anteriormente

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as suas forccedilas pois o efeito colateral desse tipo de distorccedilatildeo que aparece apoacutes a

perda do seu caraacuteter sagrado produziu um terriacutevel efeito 534 em todo territoacuterio grego

A condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte eacute um exemplo claro de como a funccedilatildeo poeacutetica

tornou-se uma arma perigosa nas matildeos ou bocas erradas Logo o filoacutesofo teve que

passar pelo seu crivo criacutetico toda a obra de Homero pois todos os artiacutefices da

palavra buscavam no primeiro pedagogo grego a sua inspiraccedilatildeo e apoio

Consequentemente todo o aspecto solene da poesia que era voltado para uma

praacutetica de cunho sagrado e milenar comeccedila a perder a sua roupagem divina e

adquiriu uma forma mais humanizada a partir das transformaccedilotildees poliacuteticas que

comeccedilaram a ocorrer apoacutes a idade das trevas Durante o periacuteodo claacutessico por

exemplo essa atividade jaacute trazia em seu bojo diversas inovaccedilotildees que estavam

modificando o seu antigo caraacuteter pedagoacutegico para um instrumento de mera

publicidade nas matildeos de oradores profissionais que cobravam pelas apresentaccedilotildees

em puacuteblico O surgimento do movimento sofista que eacute um reflexo da abertura

democraacutetica que ocorreu em algumas cidades como Atenas tambeacutem foi um fator

relevante para a remodelaccedilatildeo de sua forma e uso A proacutepria atividade dos rapsodos

que jaacute natildeo utilizavam acompanhamento musical em suas apresentaccedilotildees eacute fruto

dessas novas transformaccedilotildees culturais e econocircmicas E essa eacute sem duacutevida uma das

caracteriacutesticas mais importantes que podemos detectar desse processo de

distanciamento da praacutetica dos antigos aedos535 desde a sua origem

Outra temaacutetica que estava associada nesse tipo de expressatildeo poeacutetica satildeo as

viagens como a epopeia da Odisseia de Homero que foi protagonizada pelo grande

heroacutei de Iacutetaca o astuto Odisseu Aliaacutes esse tipo de gecircnero eacute sem duacutevida o primeiro

road movie536 que teve origem nos contos populares que desempenhou tambeacutem uma

importante funccedilatildeo didaacutetica entre os gregos Dentro desse contexto o ordenamento

serial eacute estabelecido com uma precisatildeo topograacutefica e histoacuterica537 tatildeo

impressionante que no ano de 1870 o arqueoacutelogo alematildeo Heinrich Schliemann a

534 Vide a comeacutedia As nuvens de Aristoacutefanes Nessa obra o comedioacutegrafo pintou uma imagem negativa da figura de Soacutecrates que para o proacuteprio foi determinante para a sua condenaccedilatildeo agrave morte Nesse sentido Platatildeo como grande pensador criacutetico que era sentiu a necessidade de analisar esse efeito colateral da poesia de modo minucioso em seu tempo em diaacutelogos como o Iacuteon Goacutergias e a Repuacuteblica 535 Vide Homero Odisseia (Canto VIII 62-68) 536 No cinema eacute um gecircnero no qual um filme se desenvolve a partir de alguma viagem 537 Como uma narrativa popular

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partir da descriccedilatildeo minuciosa oferecida pelos versos de Homero conseguiu

localizar um siacutetio arqueoloacutegico na regiatildeo da Turquia que teria sido o cenaacuterio onde

ocorreu a guerra de Micenas contra Troacuteia Esse tipo de descoberta levou o

arqueoacutelogo alematildeo a defender a tese do valor histoacuterico da obra homeacuterica538

Independentemente das inuacutemeras polecircmicas em torno dessas questotildees que

foram levantadas a poesia eacutepica originalmente foi aprimorada para atender uma

demanda coletiva539 ateacute o momento de se tornar uma referecircncia para o surgimento

de outros gecircneros na literatura grega Na sua origem essa narrativa tinha como

espelho a experiecircncia da violecircncia que foi obtida nos campos de batalha A accedilatildeo

vitoriosa era contrastada com as inuacutemeras derrotas E a partir dessa constataccedilatildeo a

poesia vai pavimentando todo um horizonte possiacutevel para a instauraccedilatildeo de uma

sociedade forte e proacutespera atraveacutes das cinzas do passado A coragem e a nobreza

eram fomentadas no caso homeacuterico para incutir nas almas uma disposiccedilatildeo afetiva

que deveria guiar a moral da cultura helecircnica com o intuito de encontrar a harmonia

necessaacuteria para encontrar o equiliacutebrio social e poliacutetico A poesia heroica estabelece

o seu imperativo categoacuterico para apresentar essas virtudes cardeais que satildeo

esculpidas por cada aedo em suas respectivas sociedades Mas para o seu alcance

efetivo o poeta precisa estar afinado com o seu contexto histoacuterico de origem O

conhecimento do passado ou pelo menos dos fatos mais marcantes apontam as

suas diretrizes fundamentais O encantamento e o vigor de cada obra composta satildeo

o resultado das lembranccedilas amargas e vitoriosas que repousam nas almas de cada

homem que compartilham o desejo de superaccedilatildeo em prol de um futuro promissor

Nesse sentido o poeta eacute o termocircmetro das tensotildees sociais e poliacuteticas O seu ofiacutecio

eacute intermediar todos os conflitos e devolver para o povo uma obra que possa se

538 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro SCHLIEMANN H ldquoIacutetaca o Peloponeso e Troia pesquisas arqueoloacutegicasrdquo Traduccedilatildeo Cyntia Baumgart Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1992 Nesse sentido para quem defende o valor factual da narrativa homeacuterica poderaacute aceitar a narrativa de Hesiacuteodo como veriacutedica 539 Ou atender uma determinada classe ou famiacutelia poliacutetica E esse eacute tambeacutem um traccedilo que vem desde a realeza minoica e micecircnica Com as inuacutemeras transformaccedilotildees sociopoliacuteticas na Greacutecia houve uma abertura cultural que promoveu o acesso dessa atividade para as classes emergentes que podemos encontrar por exemplo no valor vinculado ao trabalho que foi desenvolvido por Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias Haacute ainda uma grande polecircmica em saber como esses antigos aedos eram preparados para exercer esse ofiacutecio Eacute bem provaacutevel que houvesse uma formaccedilatildeo bem riacutegida para a escolha desses mestres da verdade Seja como for posteriormente essa atividade vai perdendo aos poucos o seu caraacuteter sagrado para se tornar uma profissatildeo de uso particularizado que promovia genealogias em troca de dinheiro Logo para avaliarmos essa atividade poeacutetica eacute muito importante estabelecer o recorte do contexto histoacuterico

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utilizada para educar os homens de modo eficiente e belo no caminho da virtude

Com o passar do tempo essa forccedila propulsora da accedilatildeo humana vai se

transformando em um novo tipo de discurso540 que seraacute a marca dos novos

pedagogos que vatildeo disputar de modo feroz a coroa do grande aedo Homero na

Greacutecia arcaica

48 Loacutegos 541

Apoacutes as turbulentas mudanccedilas oriundas da idade das trevas os remanescentes

da antiga civilizaccedilatildeo micecircnica experimentaram a mesma sensaccedilatildeo que um dia o

grande Priacuteamo sentiu quando viu todo o seu legado que foi construiacutedo pelos seus

antepassados ser consumido pelo fogo O espanto produzido nesse instante antes

da morte natildeo passou despercebido pelo olhar perspicaz de Aristoacuteteles542 Esse

mesmo elemento divino que segundo o mito de Protaacutegoras543 o grande titatilde

Prometeu roubou para oferecer aos homens que eram desprovidos de habilidades

em relaccedilatildeo aos outros animais544 Sem esse tipo de instrumento a humanidade natildeo

teria nenhuma chance na luta por sua sobrevivecircncia no mundo De modo alegoacuterico

esse mito fornece uma explicaccedilatildeo da origem humana de modo amplamente

estruturado O ponto interessante eacute que o fogo reuacutene em si o poder de criaccedilatildeo e

destruiccedilatildeo que satildeo caracteriacutesticas inerentes da proacutepria Natureza545 linguagem546 e

da razatildeo547 Aliaacutes um pouco antes do sofista o filoacutesofo Heraacuteclito afirmara548 a

relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que satildeo aspectos desse elemento primordial549

540 Λόγοςloacutegos 541 Nos primeiros capiacutetulos do presente trabalho esse termo tambeacutem foi abordado pois era impossiacutevel analisar determinados ponto da histoacuteria do pensamento grego sem mencionaacute-lo 542 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1100 a ndash 5) 543 Vide Platatildeo Protaacutegoras (320 c) 544 Ibidem 545 Φύσις phyacutesis 546 Vide Sexto Empiacuterico Contra os professores ( livro I 42) 547 Λόγοςloacutegos 548 Vide Diels-Krans Heraacuteclito fragmento 30 549 Aρχή archeacute ndash origem comeccedilo Para os antigos filoacutesofos preacute-socraacuteticos a archeacute eacute o elemento primordial que deveria participar de todos os processos da existecircncia no mundo Para Heraacuteclito por exemplo o fogo era um elemento puro que deveria fazer parte de todas as coisas Enquanto que para o filoacutesofo Tales de Mileto esse elemento essencial era a aacutegua Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do nosso presente trabalho

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que originou todas as coisas A forccedila que eacute utilizada na guerra550 em grandes escalas

para gerar a morte eacute em contrapartida a mesma que fornece a vida atraveacutes do calor

do sol e quando bem dominada para o uso da metalurgia Ao domesticaacute-la o

homem pocircde utilizaacute-la para inuacutemeros fins atraveacutes do desenvolvimento da

tecnologia551 no mundo antigo Desde do primeiro espanto que despertou no

homem primitivo uma capacidade de reflexatildeo sobre a sua fraacutegil condiccedilatildeo mortal552

a sua forma de olhar a natureza natildeo foi a mesma Desde entatildeo a sua trajetoacuteria foi

construiacuteda a partir do bom uso dessa daacutediva divina que abrange o nosso modo de

expressatildeo e accedilatildeo que deve sempre buscar a excelecircncia553atraveacutes da vida em

comunidade

Mas essa foi uma conquista que foi adquirida com o passar de inuacutemeras

experiecircncias amargas e vitoriosas desde a sua preacute-histoacuteria que marcou

profundamente o processo de subjetividade coletivo (FINLEY 1990) Para os

gregos do periacuteodo homeacuterico por exemplo todos os barcos os utensiacutelios de

ceracircmica instrumentos musicais e as ferramentas que foram deixadas por seus

predecessores eram como fotogramas deixados por seus ancestrais de grandes

gloacuterias As enormes paredes das fortalezas preacute-histoacutericas foram explicadas pelos

gregos como um trabalho realizado pelo engenho dos Ciclopes554(WEDEKING

1968) e a duacutevida que paira sobre esse ponto eacute saber qual seria a real motivaccedilatildeo para

a construccedilatildeo desse tipo de relato555 Seja como for as imagens esculpidas parecem

visar uma forma de expressatildeo espantosa556 que certamente foram uacuteteis para

repassaacute-las de modo eficiente atraveacutes da memoacuteria das crianccedilas557 O mais

550 Os militares gregos utilizavam armas incendiaacuterias no campo de batalha no acircmbito terrestre e naval Para mais informaccedilotildees vide Tuciacutedides ldquoA guerra do Peloponesordquo (livro IV cap 100) Esse tipo de ambiente marcado pela guerra que encontramos na epopeia homeacuterica certamente influenciou o pensamento de muitos pensadores antigos como Anaximandro de Mileto Vide Diels-Krans Anaximandro fragmento 1 551 Τέχνες techneacute 552 Vide os nossos apontamentos no primeiro capiacutetulo 553 Ἀρετή aretecirc 554 Vide Homero Odisseia (Canto IX) 555 A nossa hipoacutetese eacute que esse tipo de relato poderia ser utilizado para facilitar o processo mnemocircnico entre as crianccedilas Posteriormente veremos uma importante passagem de Platatildeo na Repuacuteblica no qual o filoacutesofo revela a utilidade desse meio de expressatildeo no processo educativo 556 O mesmo efeito que as faacutebulas de Esopo despertam nas crianccedilas 557 Esse tipo de procedimento estaacute descrito de modo minucioso no livro II da Repuacuteblica (377 a ndash e) por Platatildeo Para o filoacutesofo essa eacute uma forma eficiente de moldar o caraacuteter das crianccedilas Nesse sentido a poesia ou educaccedilatildeo musical eacute apresentada como um instrumento uacutetil para atender essa finalidade Independentemente da sua criacutetica agrave poesia que aparece nesse contexto ele natildeo descarta o uso das faacutebulas para fins pedagoacutegicos E esse certamente eacute um traccedilo que vem da pedagogia da

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interessante eacute poder notar a riqueza de rastros histoacutericos que posteriormente

tornaram-se a mateacuteria prima de uma remodelaccedilatildeo que apresenta o poder da razatildeo

criadora helecircnica para a construccedilatildeo de um novo horizonte

A arquitetura dos grandes palaacutecios multicoloridos onde restos visiacuteveis de sua

antiga imponecircncia estavam ainda preservados foi uma heranccedila inspiradora para a

narrativa da poesia homeacuterica que reuniu todas essas lembranccedilas materiais e que

sem sombra de duacutevida foi essencial para a reconfiguraccedilatildeo cultural helecircnica tendo

o conflito como o pano de fundo desse cenaacuterio558 Nesse sentido eacute possiacutevel detectar

o esforccedilo para a conservaccedilatildeo dessa memoacuteria viva559 que engloba natildeo apenas o

espaccedilo fiacutesico mas as inuacutemeras guerras vivenciadas que foram uacuteteis na elevaccedilatildeo de

uma nova forma de organizaccedilatildeo social que partiu do olhar atencioso sobre o seu

rico passado para a pavimentaccedilatildeo do presente e do futuro Logo era necessaacuterio

revisitar continuamente essas lembranccedilas pois ameaccedila de uma nova cataacutestrofe era

algo permanente entre os remanescentes da cultura micecircnica

A precauccedilatildeo depois de uma terriacutevel experiecircncia oriunda da guerra ou de

ordem natural promoveu um choque que deixou profundas marcas no corpo social

sobrevivente E a partir disso era necessaacuterio estabelecer uma forma narrativa mais

enxuta que trouxesse a economia e a frieza da loacutegica militar para o seio da sociedade

como um todo No qual a precisatildeo factual e a objetividade agissem juntas como um

criteacuterio essencial para a construccedilatildeo soacutelida de todo legado cultural necessaacuterio para

manter a sobrevivecircncia do povo Como foi exposto por noacutes anteriormente560 a

literatura grega em seus primoacuterdios foi marcada por um tipo de transmissatildeo verbal

que natildeo impedia nem facilitava561 a transmissatildeo de informaccedilotildees emoccedilotildees ou ideias

(COLE 1991) Posteriormente com a reconfiguraccedilatildeo poliacutetica durante o periacuteodo

arcaico comeccedilou a surgir entre os gregos uma preocupaccedilatildeo mais riacutegida em relaccedilatildeo

tradiccedilatildeo oral Ou seja nos deparamos com mais um elemento que prova um elo de continuidade a partir da tradiccedilatildeo antiga durante o periacuteodo claacutessico [Rep 377α] ldquoπαιδευτέον δ᾽ ἐν ἀmicroφοτέροις πρότερον δ᾽ ἐν τοῖς ψευδέσιν οὐ microανθάνω ἔφη πῶς λέγεις οὐ microανθάνεις ἦν δ᾽ ἐγώ ὅτι πρῶτον τοῖς παιδίοις microύθους λέγοmicroεν τοῦτο δέ που ὡς τὸ ὅλον εἰπεῖν ψεῦδος ἔνι δὲ καὶ ἀληθῆ πρότερον δὲ microύθοις πρὸς τὰ παιδία ἢ γυmicroνασίοις χρώmicroεθα ἔστι ταῦτα τοῦτο δὴ ἔλεγον ὅτι microουσικῆς πρότερον ἁπτέον ἢ γυmicroναστικῆς ὀρθῶς ἔφηrdquo Por uacuteltimo eacute importante ressaltar que no texto grego eacute possiacutevel notarmos que o filoacutesofo considera essa ferramenta pedagoacutegica utilizando as faacutebulas (παιδίοις microύθους) como a primeira parte da educaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica (microουσικῆς) 558 Vide o subcapiacutetulo anterior 559 Os materiais arqueoloacutegicos 560 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 561 Vide o caraacuteter hermeacutetico dos antigos oraacuteculos

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ao controle do meio de transmissatildeo da informaccedilatildeo que pudesse evitar interpretaccedilotildees

equivocadas e superar o choque contraditoacuterio de ideologias562 Como explicitou

Jean-Pierre Vernant (VERNANT 1962) com o surgimento da polis entre os

seacuteculos VIII e VII o homem grego se depara com uma extraordinaacuteria valorizaccedilatildeo

da palavra em relaccedilatildeo aos outros instrumentos de poder Ou seja ela ganha uma

roupagem nova para impor o seu controle das principais funccedilotildees do Estado Nesse

momento o poder de comunicaccedilatildeo foi exaltado mais uma vez apresentando

algumas carateriacutesticas que contribui fielmente ao seu novo contexto

O mito e o eacutepos que antes representavam em sua mais distante origem uma

forma de accedilatildeo e expressatildeo que estava calcada na forccedila da memoacuteria presente na

tradiccedilatildeo oral comeccedila apresentar sinais de desgaste a partir da nova remodelaccedilatildeo

poliacutetica e cultural que ocorreu no periacuteodo arcaico Dentro desse novo contexto

surge o terceiro termo irmatildeo que possibilitou aos gregos uma capacidade de

expressatildeo mais metoacutedica e soacutebria chamada loacutegos563 que adiciona mais um

importante capiacutetulo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo helecircnica Antes desse momento a

palavra do aedo estava envolvida em uma ritualidade compatiacutevel com o caraacuteter

sagrado e fechado que era vinculado ao poder teocraacutetico das antigas realezas Com

a sua decadecircncia ela reaparece afirmando o confronto de ideias que necessita seguir

os criteacuterios da argumentaccedilatildeo e persuasatildeo564 O puacuteblico tornou-se o soberano que

vai decidir entre os dois argumentos conflitantes na praccedila puacuteblica A verdade seraacute

o fruto doce saboreado pelo vencedor Nesse novo espaccedilo o termo loacutegos vai

coexistir de modo ambiacuteguo em um primeiro momento com o mito e o eacutepos565 e

no discurso dos primeiros filoacutesofos e retoacutericos

562 Vide a obra de Tuciacutedides 563 Para mais informaccedilotildees sobre a ocorrecircncia de uso desse termo na liacutengua grega vide o nosso anexo Na obra homeacuterica soacute haacute apenas duas ocorrecircncias do uso desse termo A primeira aparece na Iliacuteada (canto XV vv 393) e na Odisseia (canto I vv 56) Dentro desses dois contextos o poeta parece utilizar esse substantivo com o sentido de discurso Para o ato de fala ele utiliza eacutepos e mito A partir de Hesiacuteodo eacute que o termo loacutegos parece ganhar uma carga semacircntica similar aos outros termos Vide Hesiacuteodo Os trabalhos e os dias (vv 106-107) Nesse contexto o poeta campesino utiliza o termo de modo diferenciado Aliaacutes dentro das suas obras disponiacuteveis encontramos a recorrecircncia do uso desse termo em cinco momentos na Teogonia (vv 229 890) e Os trabalhos e os dias (vv 78 106 789) De modo comparativo eacute perceptiacutevel que entre as obras dos dois poetas haacute um aumento gradativo do uso e o deslocamento semacircntico 564 Nesse sentido ela ainda guarda importantes caracteriacutesticas da antiga tradiccedilatildeo oral Sobre esse assunto gostariacuteamos de indicar a leitura do seguinte livro COLE Thomas ldquoThe Origins of Rhetoric in Ancient Greecerdquo Baltimore Johns Hopkins UP 1991 565 Vide os nossos apontamentos nas notas anteriores

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Eacute importante ressaltar que a origem desse termo na liacutengua grega ainda

fomenta inuacutemeros debates pois o sentido atribuiacutedo na antiguidade eacute extensamente

amplo 566 Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1992) o limite semacircntico entre

esses termos na antiguidade eacute muito controverso mas pode ser localizado com um

novo sentido pela primeira vez na doxografia preacute-socraacutetica em um fragmento do

poeta filoacutesofo Xenoacutefanes de Coacutelofon567 que parece estabelecer uma sutil

diferenciaccedilatildeo para delimitar a fronteira entre o mundo humano e divino568 A partir

do seu estudo sobre a Natureza ele tornou-se um criacutetico contumaz da religiatildeo

tradicional e popular Talvez tenha sido junto com Heraacuteclito um dos primeiros

pensadores a agir de modo contundente contra o senso comum da eacutepoca569 Eacute

importante ressaltar que esse fenocircmeno entre os primeiros filoacutesofos natildeo ocorreu de

modo uniforme Em Empeacutedocles570 por exemplo nota-se que o filoacutesofo de

Agrigento ainda continua estabelecendo o diaacutelogo entre todos esses termos em sua

obra Para Jean Bollack (BOLLACK 1965) os deuses satildeo utilizados de modo

simboacutelico para caracterizar os elementos primordiais da Natureza De qualquer

modo o filoacutesofo poeta italiano em seus fragmentos ainda ecoa o encantamento

solene das antigas musas que eram autoridades invocadas para validar esse tipo de

discurso na esfera religiosa Mesmo que possamos identificar como afirma Jean

Bollack o rigor e a estruturaccedilatildeo encadeada entre suas ideias natildeo podemos deixar

de verificar o uso da mesma linguagem poeacutetica homeacuterica para expressar a sua visatildeo

sobre a Natureza571

566 Ibidem 567 Vide Diels-Krans Xenoacutefanes fragmento I 13- 4 568 A expressatildeo in loco eacute ldquoευφηmicroοις microυθοιζ και καθαροισι λογοιςrdquo 569 Esse tipo de postura posteriormente influenciou a escola socraacutetica e epicurista 570 Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura da seguinte obra BOLLACK J ldquoEmpeacutedoclerdquo (Volumes 1ndash4) Paris Les Editions Minuit 1965ndash1969 571 Vide as nossas consideraccedilotildees no primeiro capiacutetulo

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5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo

51 A fala livre

A liberdade de fala foi um dos pontos cruciais no surgimento e

desenvolvimento da polis na Greacutecia entre os seacuteculos VII e VI Nesse momento a

palavra572 que antes era o instrumento que atuava na esfera religiosa para o

controle e organizaccedilatildeo da realeza micecircnica apoacutes a sua queda passa a ser o

fundamento que vai orientar a vida poliacutetica dessa nova sociedade que surge das suas

ruiacutenas O seu poder miacutestico encantatoacuterio e curador de outrora vai sugerir um

discurso mais soacutebrio que ainda traz em seu bojo algumas dessas caracteriacutesticas que

se somam a uma poderosa capacidade de conexatildeo entre as almas que seraacute utilizada

com o objetivo de fundar o pilar da Democracia em Atenas573 Sem esse poder de

adesatildeo a base dessa nova organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica estaria totalmente

comprometida

Segundo Marcel Detienne (DETIENNE 1967) apoacutes a queda do impeacuterio

micecircnico essa palavra maacutegico-religiosa foi sendo substituiacuteda gradativamente pela

palavra-diaacutelogo A diferenccedila fundamental que existe entre esses dois tipos de

experiecircncia da fala (eposmythos e logos) eacute que enquanto a primeira estava

vinculada a uma esfera religiosa que expressava valores simboacutelicos onde a sua

eficaacutecia era atemporal como uma daacutediva oriunda do mundo divino concedida para

alguns poucos mortais a palavra-diaacutelogo que eacute diametralmente oposta assinala o

processo de laicizaccedilatildeo ou distanciamento que marca esse periacuteodo de transiccedilatildeo entre

duas formas de organizaccedilatildeo poliacutetica que ocorreu entre o periacuteodo micecircnico e o iniacutecio

572 Havia trecircs termos para expressar o ato de falar na antiguidade Epos Mythos e Logos (Μύθος έπος και λόγος) Os dois primeiros satildeo utilizados no periacuteodo homeacuterico enquanto que o segundo surge no periacuteodo que a Filosofia comeccedila a dar os seus primeiros passos 573 A retoacuterica surgiraacute nesse momento para desempenhar a funccedilatildeo de coesatildeo e adesatildeo poliacutetica Para Pierre Vidal-Naquet a relaccedilatildeo entre a assembleia e o povo comeccedila em 650 em Esparta a partir dos relatos de Plutarco vida de Licurco cap 6 e tambeacutem do poeta Tirteu fragmento 4 Vide Pierre Vidal Naquet ldquoOs gregos os historiadores a democraciardquo pp 173 Todavia o nosso presente recorte contextual baseia-se em sua maior parte sobre a experiecircncia ateniense

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das primeiras polis Esse tipo de logos se inscreve agora no tempo histoacuterico574 que

estaacute vinculado diretamente agrave accedilatildeo que constitui a organizaccedilatildeo do mundo humano

sem a interferecircncia divina Apoacutes a retirada de todas as suas caracteriacutesticas maacutegico-

religiosas essa palavra torna-se um bem puacuteblico e ganha uma autonomia que visa

atender aos interesses desse novo grupo social que foi formado por uma casta de

homens especialistas na arte da guerra575 que passa a atuar de modo efetivo nas

deliberaccedilotildees das questotildees poliacuteticas nesse novo espaccedilo social Esses guerreiros

desempenhavam desde a antiga monarquia micecircnica a funccedilatildeo de proteger e

defender os interesses da realeza Antes essa funccedilatildeo estava concentrada apenas nas

matildeos do rei576 pois ele era o uacutenico que detinha o total comando do exeacutercito real

Posteriormente essa responsabilidade passa a ser designada para as matildeos de um

general577 e a partir dessa transferecircncia ocorre uma profunda transformaccedilatildeo no

574 Sobre esse ponto o exemplo mais notaacutevel eacute o surgimento da obra de Tuciacutedides Diferentemente do seu predecessor Heroacutedoto o seu livro ldquoA histoacuteria da guerra do Peloponesordquo inaugura uma visatildeo mais soacutebria sobre o passado e um distanciamento do pensamento miacutetico Para Vernant (Origens do pensamento grego cap III) eacute nesse momento que o homem toma consciecircncia da distinccedilatildeo entre o passado e o presente Ou seja haacute uma mudanccedila no aspecto psicoloacutegico Esse tambeacutem eacute o periacuteodo que desaparece o rei divino e surge uma diferenccedila intransponiacutevel entre a esfera humana e divina E satildeo esses os aspectos que apontam para uma nova configuraccedilatildeo soacutecio-poliacutetica que se distacircncia dos antigos misteacuterios e que possibilita o surgimento do loacutegos e da polis Vale lembrar que esse distanciamento natildeo foi integral A classe aristocraacutetica ainda utilizava a teologia homeacuterica para garantir o funcionamento da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Posteriormente essa conduta vai gerar uma terriacutevel crise social entre os gregos 575 Para os gregos a guerra eacute um fenocircmeno natural (Φύσιςphyacutesis) do mundo As suas cidades-estados (polis) eram organizadas em pequenos grupos que brigavam entre si para manter a sua independecircncia e afirmar a sua supremacia Logo a guerra torna-se uma expressatildeo normal de rivalidade que era importante para modular a relaccedilotildees poliacuteticas (interna e externa) entre os gregos O espiacuterito de luta eacute o paracircmetro primordial para os mais diversos aspectos da civilizaccedilatildeo helecircnica entre eles os principais satildeo 1) na relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos 2) entre as famiacutelias 3) os estados 4) nos jogos oliacutempicos 5) no tribunal 6) nos debates da assembleia 7) na Educaccedilatildeo 8) no campo de batalha No proacuteprio idioma podemos encontrar indiacutecios de como os gregos reconhecem esse importante fenocircmeno da guerra (poacutelemos πόλεmicroος eacuteris Ἔρις e neikos Νεῖκος) Aliaacutes o confronto entre duas forccedilas eacute apresentado por Anaximandro e tambeacutem o poeta Hesiacuteodo apresenta a guerra como as raiacutezes do mundo (Os trabalhos e os dias v15 e 20) e que o grande Heraacuteclito celebra como pai e rei de todo o universo (fragmento 53) Para mais informaccedilotildees sobre esses pontos recomendamos a leitura do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 576 Haacute dois termos utilizados para rei e eles satildeo Anaacutex (ἄναξ) e Basileus (βασιλεύς) O primeiro que eacute mais arcaico refere-se ao periacuteodo micecircnico onde o rei tinha o total poder poliacutetico militar e religioso nas suas matildeos Ele tinha natildeo apenas o controle do poder poliacutetico mas tambeacutem o poder agriacutecola e de todo o rebanho Esse termo foi encontrado por um grupo de arqueoacutelogos pela primeira vez nas pequenas tabuinhas chamadas ldquoLinear Brdquo Esses achados continham registros contaacutebeis da produccedilatildeo agriacutecola da civilizaccedilatildeo micecircnica Em Homero esses dois termos satildeo utilizados em diversos momentos do poema Curiosamente anaacutex que eacute o termo mais arcaico eacute utilizado para referir-se ao rei dos reis- ou chefe de homens-Agamecircmnon (Vide Iliacuteada canto I v 5) E a partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer uma hierarquia entre o emprego semacircntico desses dois termos O primeiro como mais antigo e mais poderoso eacute o soberano que estaacute acima de todos os outros basileus 577 Polemarkhos (πολεmicroαρχος)

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interior da organizaccedilatildeo da antiga monarquia micecircnica Na Iliacuteada de Homero578

que parece retratar um periacuteodo histoacuterico posterior579 eacute possiacutevel encontrar ecos

dessa crise de poder que ocorreu na realeza e que perdurou ateacute o iniacutecio do

surgimento das primeiras polis Esse fato natildeo passou despercebido aos olhos atentos

da poesia homeacuterica No canto I por exemplo podemos encontrar logo no iniacutecio

dos primeiros versos do poema uma terriacutevel desavenccedila entre o rei dos reis (anaacutex)

Agamecircmnon que lidera o povo aqueu contra os troianos e o chefe dos mirmidotildees

o famoso guerreiro Aquiles Essa contenda que chama a nossa atenccedilatildeo ao iniciar a

leitura da obra descreve de modo claro o enfraquecimento do poder do antigo rei

(anaacutex) Em alguns desses memoraacuteveis versos podemos detectar tambeacutem que a

virtude580 para governar outros homens natildeo poder ser fundada apenas no sangue

(genos) como ocorria nos primoacuterdios do periacuteodo arcaico mas em virtudes581 como

a coragem e honra A seguir veremos uma passagem onde a poesia de Homero

utiliza a personagem de Aquiles para demonstrar a covardia e a vileza de um rei

ilegiacutetimo

[HOMERO Iliacuteada] ldquoOlho de catildeo e coraccedilatildeo de cervo Bronco de vinho Nunca ousaste armado com teu povo enfrentar um combate nem seguiste os bravos na luta de emboscadas Tens pavor agrave morte

Mais faacutecil eacute no vasto campo dos Aqueus

esbulhar do seu bem a quem te contradiz

Devora-Povo Rei do Dacircnaos Rei de nada582

O modo ofensivo como Aquiles se dirige a Agamecircmnon nesses versos jaacute

apresenta o natildeo reconhecimento dele como o seu rei Eacute notoacuterio aqui a total falta de

competecircncia do soberano para comandar um de seus subordinados Aleacutem disso

nem mesmo atuando atraveacutes da opressatildeo despoacutetica ele consegue subjugar a vontade

578 HOMERO ldquoIliacuteada canto I 579 Essa eacute a hipoacutetese defendida por Pierre Vidal- Naquet no primeiro capiacutetulo do seguinte livro Le monde drsquoHomegravere Ed Perrin 2002 580 Aretecirc (ἀρετή) 581 Ibidem Aretecirc (ἀρετή) eacute excelecircncia e virtude Ao decorrer da histoacuteria grega esse termo foi assimilando outros sentidos Na sua origem essa palavra estaacute associada a raiz do mesmo termo que originou a palavra aristocracia que carrega consigo os seguintes sentidos superioridade competecircncia e habilidade 582 HOMERO ldquoIliacuteada canto I v 225 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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do nobre guerreiro E isso eacute um erro graviacutessimo que foi exposto de modo alusivo

em diversos pontos do poema homeacuterico Sobretudo em momentos de crise o

governante precisa demonstrar a sua bravura e honra para seus aliados e seus

inimigos pois esses satildeo dois pressupostos sine qua non para o ato de governar e

garantir o bem-estar dos seus suacuteditos O fato de um rei como acontece no caso de

Menelau e de Agamecircmnon depender da forccedila de outro homem para recuperar a

esposa que foi roubada pelo jovem Paacuteris jaacute denota na Iliacuteada uma anomalia que

levou a uma crise institucional que pode ter sido um dos fatores que corroborou

para a dissoluccedilatildeo da realeza micecircnica De qualquer modo eacute importante ressaltar

que esse periacuteodo onde encontramos diversos reis disputando a posse da bela Helena

eacute um momento em que as monarquias - pelo menos no contexto grego - jaacute eram

auxiliadas por conselhos583 que foram formados por outros reis ou chefes de

governo com o intuito de deliberar sobre diversas questotildees estrateacutegicas do acircmbito

poliacutetico e militar Aliaacutes eacute dentro desse contexto que o proacuteprio Agamecircmnon eacute

escolhido para liderar os aqueus na guerra contra Troacuteia que tinha como soberano o

nobre Priacuteamo Ou seja nesse momento natildeo haacute mais a figura de um rei supremo que

toma as decisotildees sozinho Esse talvez seja um dos pontos mais difiacuteceis para a

compreensatildeo desse periacuteodo entre os historiadores pois natildeo temos nenhum registro

contundente que demonstre os motivos pelos quais esse antigo regime entrou em

processo de colapso ou os fatores que deram o ensejo para o surgimento desses

conselhos Aleacutem das obras homeacutericas que mencionamos anteriormente as outras

poucas referecircncias que temos sobre esse momento obscuro da histoacuteria grega satildeo de

autores posteriores oriundos do seacuteculo IV e III aC de qualquer forma esses relatos

satildeo de extrema importacircncia para estabelecermos algumas hipoacuteteses plausiacuteveis No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um dos uacutenicos documentos que temos escritos sobre a

transiccedilatildeo entre esses dois momentos histoacutericos da poliacutetica grega

Aristoacuteteles na Constituiccedilatildeo dos atenienses584 apresenta em detalhes uma

estrutura poliacutetica - anterior ao tempo de Draacutecon ndash que nos ajuda a compreender esse

momento posterior ao absolutismo monaacuterquico e de transiccedilatildeo para a era arcaica

Essa constituiccedilatildeo poliacutetica era organizada em magistraturas que eram fundamentadas

583 Bouleacute (Βουλή) Vide nota 54 584 ARISTOacuteTELES Const dos atenienses 31

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a partir de dois criteacuterios o primeiro era o de ldquonobreza de nascimentordquo (genos)585

e o segundo era o da ldquoboa condiccedilatildeo econocircmicardquo586 Esses mandatos eram vitaliacutecios

mas depois passaram a durar por um periacuteodo de dez anos Os magistrados mais

importantes eram o rei (basileu)587 o general (polemarkhos)588e o arconte589

Atraveacutes dessa descriccedilatildeo de Aristoacuteteles - como noacutes jaacute haviacuteamos anunciado no

paraacutegrafo anterior ndash pode-se verificar que o governo jaacute natildeo estava mais centralizado

na figura de um uacutenico homem O que encontramos nesse momento eacute uma triparticcedilatildeo

do poder poliacutetico Ou seja uma diluiccedilatildeo da estrutura absolutista que era

fundamentada em bases religiosas desde o periacuteodo preacute-homeacuterico Segundo o

585 Esse criteacuterio era determinado por laccedilos de sangue que estavam ligados as principais famiacutelias (genos) que se assentaram nessa regiatildeo no periacuteodo preacute-helecircnico Fustel de Coulanges defende que a formaccedilatildeo familiar surge no acircmbito religioso Ou seja ela eacute mais uma associaccedilatildeo religiosa do que natural (tese de Aristoacuteteles) Para o historiador positivista francecircs a religiatildeo fez com que a famiacutelia formasse um uacutenico corpo nessa e na outra vida Enquanto que o helenista Hammond afirma que a organizaccedilatildeo social da comunidade no periacuteodo arcaico estava fundamentada em uma estrutura racial Logo cada ateniense que tivesse algum grau de parentesco com o rei Iacuteon pertencia ao grupo de philetai (membros dos quatros genos originais conhecidos como philai) phratores (membros das trecircs phratriai que eram divididas cada tribo) gennetai (membros dos genes que eram formadas cada fratria) e por uacuteltimo o oikeioi (membros das famiacutelias associadas por parentescos que formavam os genos que eram estruturadas a partir do oikos ou oikia) Enfim esse era um dos criteacuterios para a formaccedilatildeo da aristocracia que tinha o ldquodireitordquo de participar do conselho do areoacutepago Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros HAMMOND N G L ldquoStudies in greek historyrdquo Oxford1973 paacutegs 105-115 e tambeacutem FUSTEL DE COULANGES ldquoA Cidade Antigardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 paacuteg 44 586 Para esse segundo criteacuterio apontado por Aristoacuteteles haacute duas importantes pistas a primeira estaacute em Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso I -II) que afirma que desde os seus primoacuterdios Atenas sempre foi um lugar extremamente receptivo com os estrangeiros (metecosΜέτοικος) sobretudo com os refugiados que vinham de outras localidades pois eles tambeacutem pagavam altos tributos para permanecerem em Atenas Aliaacutes essa foi uma caracteriacutestica importante para o desenvolvimento econocircmico e social da cidade A segunda estaacute em um fragmento de Filoacutecoro (um antigo atidoacutegrafo) que foi citado por Foacutecio (Suda FGr Hist 328 F 35a) que diz o seguinte em relaccedilatildeo aos orgeones escreveu tambeacutem Filoacutecoro ldquoaos phratores cabe a obrigaccedilatildeo de acolher tanto os orgeones como os homogalaktes aos quais chamamos gennetairdquo Isso prova que havia algumas formas de afiliaccedilatildeo em Atenas que estava baseada em uma hierarquia social para o alcance da plena cidadania O mais interessante nesse fragmento eacute que Filoacutecoro parece nos sugerir que havia um tipo de mecanismo ndash e aqui eacute o ponto que estabelece a relaccedilatildeo com a passagem de Aristoacuteteles - que permitia integrar outras pessoas sem o parentesco sanguiacuteneo Esses homens eram conhecidos por gennetai homogalaktes (pessoas que foram amamentadas como o mesmo leitealimento) Ou seja essa expressatildeo idiomaacutetica indica o fato de haver pessoas que conviviam dentro da sociedade grega com alguns prestiacutegios sociais Certamente esse grupo gozava de vaacuterios privileacutegios em relaccedilatildeo aos outros estrangeiros Suspeitamos que essa filiaccedilatildeo fosse concedida tendo como um dos criteacuterios a condiccedilatildeo econocircmica do meteco 587 Em Homero e Hesiacuteodo tambeacutem eacute possiacutevel encontrar a utilizaccedilatildeo de um termo similar e mais arcaico para rei que eacute anax (ἄναξsenhor) 588 General o senhor da guerra 589 O arconte (arkhonαρχων) chefe era responsaacutevel pela organizaccedilatildeo juriacutedica na antiga Greacutecia Ele era uma espeacutecie de juiz que era ldquoencarregadordquo de estabelecer algumas leis importantes para manter o bom funcionamento dos principais oacutergatildeos do Estado em Atenas Ele tambeacutem participava nas decisotildees nos conselhos (bouleacute) e ao lado do rei conduzia o governo

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filoacutesofo o surgimento da figura do general (polemarkhos)590 marca o primeiro

movimento de transformaccedilatildeo na organizaccedilatildeo da antiga realeza Por uma falta de

ldquovocaccedilatildeordquo o rei ldquotransfererdquo 591 uma parte da sua autoridade para um general592 que

passa a cuidar dos assuntos militares Para ele o surgimento da figura de Iacuteon foi

responsaacutevel pela primeira grande transformaccedilatildeo da constituiccedilatildeo original Deste

modo esse incidente desencadeou um processo de mudanccedila poliacutetica que foi

importante para o surgimento de um governo que fosse organizado a partir de uma

base coletiva que foi constituiacuteda atraveacutes do emprego da palavra-diaacutelogo Mas antes

de falarmos dessa importante inovaccedilatildeo no campo da linguagem que possibilitou

590 Haacute ainda outro termo no grego para chefe do exeacutercito que a palavra estrategos (στρατηγός) No caso do polemarkhos (πολέmicroαρχος) era uma espeacutecie de comandante geral de diversas tropas O termo eacute uma junccedilatildeo de poacutelemos (πόλεmicroος) guerra + arkhon (αρχων) chefe = chefe ou senhor da guerra 591 A nossa hipoacutetese eacute de que essa ldquotransferecircnciardquo de poder possa ter ocorrido em um contexto muito difiacutecil e violento Essa posiccedilatildeo pode ser corroborada a partir das evidecircncias que encontramos nos relatos dos historiadores Heroacutedoto e Tuciacutedides e principalmente na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo de Aristoacuteteles que apresentam essas causas para a crise poliacutetica que surgiu depois desse periacuteodo Eacute possiacutevel que essa antiga realeza sofresse fortes pressotildees internas e externas E esses dois fatores podem ter gerado esse processo que levou o enfraquecimento da antiga monarquia Infelizmente natildeo temos registros doxograacuteficos que forneccedilam informaccedilotildees mais precisas de como e quando isso exatamente ocorreu 592 Esse eacute um ponto de extrema polecircmica entre os historiadores e helenistas pois segundo Aristoacuteteles o primeiro polemarkhos (senhor da guerra) teria sido Iacuteon (rei e fundador da Jocircnia) O nosso maior problema eacute que haacute diversas histoacuterias em torno dessa figura lendaacuteria Ou seja mais uma vez nos deparamos com a antiga confusatildeo existente entre a mitologia e histoacuteria pois ambas se misturam nesse ponto quando tentamos buscar informaccedilotildees mais precisas sobre a sua existecircncia Segundo o texto aristoteacutelico (Cons dos atenienses 32) os atenienses forccedilados pela ldquonecessidaderdquo chamaram o destemido Iacuteon para desempenhar uma funccedilatildeo que antes estava na matildeo do rei A polecircmica surge exatamente nesse momento pois natildeo sabemos em que contexto essa ldquotransiccedilatildeordquo aconteceu e nem as causas que obrigaram o rei abrir matildeo dessa importante funccedilatildeo militar (vide a nota anterior para essa questatildeo) e nem dados adicionais sobre a vida de Iacuteon De qualquer modo o que podemos inferir a partir das informaccedilotildees de Aristoacuteteles eacute que ele possa ter sido um dos atores que ajuda a promover a queda da antiga realeza As nossas maiores duacutevidas satildeo 1) quem foi Iacuteon 2) quem satildeo esses atenienses que clamam sua ajuda 3) seraacute que ele foi um grande guerreiro que saiu do povo A nossa suspeita caminha em direccedilatildeo desse uacuteltimo ponto pois o grande poeta Euriacutepides ndash que eacute conhecido na antiguidade por ter sido um dos primeiros a dessacralizar os mitos - escreveu uma peccedila sobre a sua vida que conta que ele era filho de Apolo mas foi abandonado quando crianccedila por sua matildee que se chamava Creusa Essa mulher era filha de Erecteu que segundo a mitologia foi um antigo rei de Atenas Aliaacutes existe ateacute hoje em Atenas um templo chamado Erecteion que foi feito em sua homenagem O mais curioso eacute que esse templo foi construiacutedo em estilo jocircnico que foi um povo que segundo os antigos historiadores teria sido criado pelo seu neto Iacuteon E mais uma vez a histoacuteria e o mito se confundem aqui De qualquer modo o relato mais concreto que temos sobre a sua vida encontramos em Aristoacuteteles que afirma (Cons dos atenienses ndash 422) que a primeira mudanccedila na constituiccedilatildeo original ocorreu atraveacutes de Iacuteon e de seus companheiros Ou seja eacute bem provaacutevel que esse general fosse originaacuterio de outra classe social que se opusesse ao governo e para essa hipoacutetese temos que nos basear nos textos fornecidos por Euriacutepides e sobretudo Aristoacuteteles Haacute alguns pontos nesses relatos que se coadunam de modo muito estranho Aliaacutes o filoacutesofo ainda acrescenta que o grande polemarco teria reunido as ldquoquatro tribosrdquo que escolheram os seus respectivos representantes De qualquer modo essa eacute uma questatildeo bem interessante para os historiadores pois aborda a distinccedilatildeo entre o mito e histoacuteria para os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro A ANDREWES ldquoThe Greek Tyrantsrdquo London Hutchinson 1956

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uma grande revoluccedilatildeo poliacutetica na Greacutecia eacute preciso apresentar um curioso aspecto

ocorrido nesse periacuteodo que corroborou para essa transformaccedilatildeo que deu a

possibilidade para o surgimento desse novo tipo de logos e ele reside na mudanccedila

de atuaccedilatildeo da casta dos nobres guerreiros nos campos de batalhas

52 A palavra e a bela accedilatildeo

Na poesia homeacuterica podemos encontrar vestiacutegios de uma eacutetica heroica que

ainda estava vinculada aos valores individuais que eram adquiridas em duelos

singulares onde cada participante deveria provar as suas competecircncias militares

para governar e ser respeitado pelos seus pares e suacuteditos (VERNANT 1962) Na

Iliacuteada essas disputas representavam natildeo apenas a sorte dos guerreiros mas o destino

de toda uma naccedilatildeo A habilidade coragem e astuacutecia593 eram qualidades exigidas

entres os homens e observadas e controladas pelos deuses oliacutempicos Aleacutem do poder

mnemocircnico que conserva em si as caracteriacutesticas essenciais para a formaccedilatildeo do

homem antigo (JAEGER 1936) A poesia homeacuterica traz em seu bojo todo o

imaginaacuterio desse pensamento mais arcaico594 que destaca algumas qualidades

morais e espirituais que ganham forma na accedilatildeo e no ethos595 do guerreiro grego de

modo integrado Independentemente da a-historicidade que muitos helenistas596

impotildee a poesia homeacuterica eacute notoacuterio que durante a passagem entre os periacuteodos

593 Techneacute andreas e meacutetis (Tέχνη Ἀνδρέας και Μῆτις) 594 No sentido de mais ldquoantigordquo e natildeo no sentido de periacuteodo histoacuterico 595 Ethos (ἔθος) caraacuteter moral 596 Para o helenista Geoffrey S Kirk (KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92) A eacutepica homeacuterica eacute uma construccedilatildeo ficcional que contecircm contribuiccedilotildees de diferentes periacuteodos histoacutericos que provavelmente pode estar situada entre um periacuteodo de 500 anos ou mais Para ele esse mundo fascinante apresentado pelo poeta natildeo tem semelhanccedila exata com qualquer cenaacuterio histoacuterico (sic) Poreacutem o proacuteprio helenista reconhece que eacute possiacutevel encontrar na literatura homeacuterica vaacuterios elementos que satildeo baseados em fatos histoacutericos que foram comprovados por alguns arqueoacutelogos atraveacutes de um estudo cuidadoso da Iliacuteada e da Odisseia que levaram a encontrar os vestiacutegios da cidade de Troacuteia e Micenas entre outros artefatos de guerra que comprovam alguns aspectos historiograacuteficos que podem ser obtidos atraveacutes dos poemas Logo para noacutes independentemente dessa polecircmica entre especialistas o mais importante eacute analisar uma forma de existir e pensar da cultura grega que pode ser constatada na literatura homeacuterica que pode nos ajudar na compreensatildeo entre a transiccedilatildeo do periacuteodo homeacuterico e arcaico no qual aparece o iniacutecio das primeiras polis

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homeacuterico arcaico e o claacutessico esses valores foram agregando outros contornos e

matizes Um exemplo desse fato pode ser constatado na poesia hesioacutedica que via o

trabalho como o valor mais importante para educaccedilatildeo dos trabalhadores

campesinos597 De qualquer modo desde Homero a Platatildeo podemos encontrar um

ponto em comum que perpassa por todo pensamento poeacutetico e filosoacutefico antigo e

ele reside na eacutetica pedagoacutegica que percorre vaacuterios momentos histoacutericos da cultura

grega que tinha como fundamento a busca pela excelecircncia de todos os seus

concidadatildeos

Desde os primoacuterdios da cultura helecircnica a negaccedilatildeo desse princiacutepio era o

sintoma da total decadecircncia humana No caso homeacuterico todos os valores

apresentados satildeo fortemente marcados pelo o sentido da guerra598 O desejo pela

conquista da honra era algo vital para todos os membros da aristocracia599 Esse

prestiacutegio soacute podia ser obtido atraveacutes do ldquoreconhecimentordquo de uma memoacuteria

coletiva que transmitia aos poetas os nomes de alguns poucos mortais que poderiam

ganhar a imortalidade atraveacutes do elogio ou censura600 A gloacuteria ou desgraccedila era

unicamente alcanccediladas pelas accedilotildees de alguns mortais que posteriormente se

tornariam versos que seriam cantados e declamados entre rapsodos e aedos por toda

a eternidade helecircnica Esses poemas traziam consigo o intuito de serem utilizados

como modelos (paradigmas) para educaccedilatildeo dos jovens aristocratas Curiosamente

esse traccedilo mais antigo da poesia ainda seraacute uma importante referecircncia para os

filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico601 O elogio e a censura se tornaratildeo palavras

chave para a eacutetica filosoacutefica que surge com o objetivo de nortear a vida social dos

atenienses na polis entre o seacuteculo IV e III A seguir veremos in loco uma passagem

no qual o filoacutesofo Aristoacuteteles emprega essas duas noccedilotildees com o intuito de avaliar

as accedilotildees humanas com o objetivo de encontrar o caminho da justa medida602 para

o bem agir

597 HESIacuteODO ldquoOs trabalhos e os diasrdquo (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι Erga kaiacute Hemeacuterai) 598 Πόλεmicroος (poacutelemos) 599 Aristokratiacutea (ἀριστοκρατία) literalmente significa o ldquopoder dos melhoresrdquo o termo vem de ἄριστος (aristos que significa excelente + κράτος (kratos) poder) eacute uma forma de governo na qual o poder poliacutetico eacute exercido por membros da nobreza 600 Έπαινος ή ψόγος (epainos e psoacutegos) elogio e censura 601 Vide as obras de Platatildeo Aristoacuteteles e Isoacutecrates 602 O caminho da ldquojusta medidardquo (microεσοτεσmesotes) ou ldquomeio termordquo que implica numa espeacutecie de sabedoria praacutetica que Aristoacuteteles chama de phronēsis (φρόνησις) Vide Aristoacuteteles (EN II 6 1106

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[ARIST EN] natildeo se censura contudo o homem que se desvia um pouco da bondade quer no sentido do menos quer do mais soacute merece reproche o homem cujo desvio eacute maior pois esse nunca passa despercebido Mas ateacute que ponto um homem pode desviar-se sem merecer censura Isso natildeo eacute faacutecil determinar pelo raciociacutenio como tudo que seja percebido pelos sentidos tais coisas dependem de circunstacircncias particulares e quem decide eacute a percepccedilatildeo Fica bem claro pois que em todas as coisas o meio-termo603 eacute digno louvado mas que agraves vezes devemos inclinar-nos para o excesso e outras vezes para a deficiecircncia Efetivamente essa eacute a maneira mais faacutecil de atingir o meio termo e o que eacute certo604

De qualquer modo a vida honrada e feliz605 eacute uma conquista que soacute pode ser

mensurada depois da morte Na Eacutetica Nicocircmaco por exemplo o filoacutesofo

macedocircnio afirma tambeacutem que soacute eacute possiacutevel analisar se algueacutem foi ou natildeo feliz apoacutes

o teacutermino do seu ciclo de vida Para ele o que torna um homem realmente feliz ndash e

a felicidade606 (eudaimonia) dentro desse contexto cultural eacute sinocircnimo de

nobreza607 - natildeo satildeo as accedilotildees empregadas em determinadas situaccedilotildees da vida mas

em todo o seu conjunto que podem ser avaliadas apenas no post mortem608 O

proacuteprio filoacutesofo reconhece o quatildeo paradoxal eacute essa afirmaccedilatildeo mas para demonstrar

a sua tese Aristoacuteteles cita o exemplo do rei Priacuteamo que depois de uma vida repleta

de belos feitos teve que experimentar na velhice os infortuacutenios que coincidiram com

a morte do seu filho e sucessor ao trono o priacutencipe Heitor e a total destruiccedilatildeo da

a 26) Esse ponto seraacute de extrema importacircncia para Aristoacuteteles no campo eacutetico e poliacutetico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 603 Posteriormente veremos como esse termo eacute central nos estudos sobre poliacutetica em Aristoacuteteles 604 Em ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicomacircco (1109 b 30) Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versatildeo inglesa de W D Ross In Os Pensadores Satildeo Paulo Nova Cultural 1973 v4 Um ponto muito curioso nessa passagem eacute que o filoacutesofo defende categoricamente que o criteacuterio para a avaliaccedilatildeo das accedilotildees depende das circunstacircncias particulares Ou seja se um menino estiver com muita fome o seu ato pode ser justificado pela necessidade de sobrevivecircncia Eacute uma posiccedilatildeo que estaacute muito proacutexima dos grandes sofistas como Protaacutegoras Mas eacute importante ressaltar que para o pensamento socraacutetico-platocircnico as circunstacircncias particulares natildeo podem serem utilizadas como criteacuterio mas sim o ideal de ldquoBemrdquo Dentro dessa concepccedilatildeo mesmo com fome a atitude de roubar seria ainda algo reprovaacutevel Logo a partir dessa constataccedilatildeo percebemos uma importante diferenccedila entre o pensamento socraacutetico-platocircnico e aristoteacutelico 605 A redundacircncia aqui eacute proposital como veremos a seguir 606 Eudaimonia (εὐδαιmicroονία) Plenitude existencial 607 Kalos kai agathos (καλός καi αγαθός) que significa belo e bom ou belo e virtuoso 608 ARISTOacuteTELES Eacutetica Nicocircmaco (Livro VII 1098 a- 18)

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cidade de Troacuteia609 Consequentemente todas essas tristes ocorrecircncias no final de

sua vida produziram uma mudanccedila610 que levou o rei troiano a um fim miseraacutevel

Mas quais foram os erros611 cometidos por Priacuteamo que teriam o conduzido a

esse triste fim612 Essa fascinante questatildeo poderia nos levar a tomar outros

caminhos que fugiriam do nosso presente objetivo Todavia eu natildeo poderia deixar

de assinalar aqui que a eacutetica antiga demonstra que mesmo o menor dos deslizes ndash

como aceitar que seu filho Paacuteris roubasse a esposa do rei espartano Menelau613 ndash

pode se transformar em terriacuteveis cataacutestrofes no futuro A loacutegica da causa e

consequecircncia que posteriormente foi desenvolvida com mais rigor por filoacutesofos

como Platatildeo e Aristoacuteteles parece estar em total consonacircncia com esse princiacutepio

eacutetico fundamentado na guerra que encontramos nos antigos poemas homeacutericos e

nos primeiros filoacutesofos gregos Em Anaximandro por exemplo o embate entre

forccedilas eacute uma das caracteriacutesticas que compotildee uma lei universal que ordena todas as

coisas no mundo sensiacutevel

[Simpl In Phys 24 17] uma outra natureza apeiron de que provecircm todos os ceacuteus e mundos neles contidos E a fonte de geraccedilatildeo das coisas que existem eacute aquela em que a destruiccedilatildeo tambeacutem se verifica segundo a necessidade pois pagam castigo e retribuiccedilatildeo umas agraves outras pela sua injusticcedila de acordo com o decreto do tempo614

Segundo essa sentenccedila o mundo eacute composto de contraacuterios que guerreiam entre

si em todos os instantes A origem e o fim de todas as coisas estatildeo subordinados agrave

lei da necessidade615 e julgadas pelo poder ordenador do tempo que sempre atua no

609 Ibidem (livro IX 1100 a-5) 610 Peripeteia (περιπέτεια) eacute um conceito importantiacutessimo encontrado na Poeacutetica que apresenta o sentido de reviravolta 611 Ibidem Harmaacutertia (άmicroαρτία) erro ou falha 612 Natildeo eacute mera coincidecircncia a relaccedilatildeo entre a Poeacutetica e a Eacutetica a Nicocircmaco pois ambas as obras estudam as accedilotildees (praacutexis πράξις) humanas 613 Eacute importante destacar que esse ato de sequestrar a rainha Helena eacute uma violaccedilatildeo da lei de hospitalidade que havia entre as naccedilotildees no mundo antigo 614 ANAXIMANDRO ( Fragmento 101) Esse fragmento foi retirado do capiacutetulo III do seguinte livro KIRK G S ndash RAVEN JC Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos traduccedilatildeo de C A Louro Fonseca e outros Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 2a ediccedilatildeo 1982 615 Kata ton chreon (κατὰ τὸ χρεών) como podemos notar na sentenccedila o filoacutesofo parece expressar que o mundo sensiacutevel e do vir a ser estatildeo totalmente marcados por essa falta original que eacute a caracteriacutestica de tudo aquilo que eacute mortal e pereciacutevel A relaccedilatildeo entre o ilimitado (apeironἄπειρον) e o limitado (perasπέρας) eacute a mesma entre o mundo divino e o humano nos poemas homeacutericos

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sentido de reparar uma injusticcedila616ou falta617 A maioria dos helenistas que

interpretam essa passagem cosmoloacutegica618 deixam escapar o aspecto antropoloacutegico

que parece ter sido profundamente influenciado pela antiga eacutetica homeacuterica que via

as accedilotildees dos guerreiros dentro da relaccedilatildeo loacutegica do seguinte trinocircmio causa efeito

e consequecircncia Todos os nossos atos estatildeo sob a estrutura riacutegida dessa equaccedilatildeo

Nas duas obras homeacutericas podemos notar que a dinacircmica das accedilotildees eacute regulada pela

ordem da guerra - o conflito entre duas forccedilas619 - que potildee a prova o caraacuteter e a

bravura de cada guerreiro com o intuito de buscar a excelecircncia moral que satildeo

atributos essenciais para a composiccedilatildeo do verdadeiro heroacutei da nobreza grega No

proacuteximo paraacutegrafo veremos um exemplo de como esses duelos individuais estavam

marcados por uma determinada forma de disputa que estava associada como uma

eacutetica guerreira que posteriormente foi alterada para uma forma de combate coletivo

que foi essencial para o surgimento da palavra-diaacutelogo

No Canto III da Iliacuteada podemos encontrar a descriccedilatildeo do combate corpo a

corpo entre Paacuteris e Menelau que o poeta narra em detalhes Mas antes de apresentaacute-

lo eacute importante ressaltar que a guerra nesse periacuteodo tinha que respeitar um coacutedigo

juriacutedico militar bem especiacutefico Havia uma espeacutecie de constituiccedilatildeo internacional

entre as naccedilotildees que estabeleciam determinadas regras e rituais que deveriam ser

seguidas rigorosamente pelas duas partes da contenda No duelo que ocorre no

Canto III essas caracteriacutesticas ritualiacutesticas satildeo destacadas em vaacuterios versos pois

elas compotildeem todo o cenaacuterio para o combate que seraacute deflagrado entre o

representante dos Aqueus o rei Menelau e do outro lado o priacutencipe troiano Paacuteris

Esse duelo tinha o intuito de encerrar a querela em torno da guarda de Helena e

evitar a guerra entre os aqueus e troianos Mas no meio do combate a covardia de

Paacuteris sobressai aos olhos de todos os aqueus e troianos E essa fraqueza abre espaccedilo

para a demonstraccedilatildeo da superioridade de Menelau que parte com toda a sua fuacuteria

na direccedilatildeo do jovem mancebo mas a deusa Afrodite interveacutem620 para o nosso

616 Adikia (Ἀδικία)injusticcedila 617 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta erro ou falha Ela eacute uma caracteriacutestica que marca a mortalidade humana Todas as coisas que tem uma geraccedilatildeo estatildeo sob o domiacutenio dessa ldquolei natildeo escritardquo (agraphos nomos Άγραφος νόmicroος) Vide Soacutefocles Antiacutegona 450-59 618 Eacute importante ressaltar que o modo de expressatildeo desses primeiros filoacutesofos estaacute ainda conectado com a tradiccedilatildeo poeacutetica que tinha uma visatildeo holiacutestica do mundo 619 Conceito que posteriormente seraacute a base para o surgimento do drama como gecircnero literaacuterio 620 Essa intervenccedilatildeo divina eacute vista com muita desconfianccedila por muitos especialistas modernos Por que os deuses intervecircm nas questotildees humanas Posteriormente veremos como esse mundo da

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espanto e faz com que Paacuteris possa escapar ileso do duelo Segundo agraves palavras de

Helena que podem ser encontradas no verso 400 o rei Menelau teria saiacutedo vitorioso

do combate Aliaacutes a proacutepria princesa espartana621 humilha Paacuteris por sua covardia e

culpa a deusa Afrodite por ter intervindo de modo indevido na contenda Helena

reconhece que essa intervenccedilatildeo custaraacute muito caro agrave nobreza troiana

A relaccedilatildeo com o mundo divino eacute outra caracteriacutestica que salta aos nossos olhos

na leitura da Iiacuteada pois todas as personagens da aristocracia tecircm um parentesco

com os deuses622 Isso fica claro na resposta que Paacuteris fornece agrave Helena Segundo

ele o rei Menelau tambeacutem teve o auxiacutelio da deusa Atena Enquanto isso os aqueus

liderados por Agamecircmnon clamam pela vitoacuteria e a devoluccedilatildeo imediata de Helena

nos uacuteltimos versos No iniacutecio do Canto IV encontramos uma espeacutecie de digressatildeo

que apresenta uma reuniatildeo divina623 que tem o intuito de avaliar os pormenores da

contenda entre as duas naccedilotildees E Zeus nesse momento interpela os seus pares com

a seguinte questatildeo ldquoqual curso daremos as coisas Incitar a guerra atroz ou a paz

entre os dois povosrdquo essa indagaccedilatildeo confirma as palavras ditas anteriormente por

nobreza homeacuterica ainda era amparado por essas divindades oliacutempicas que era um traccedilo dessa tradiccedilatildeo oriunda do periacuteodo preacute-homeacuterico Para alguns inteacuterpretes esse fato pode ser compreendido como um eufemismo inserido por Homero para esconder a covardia ou total despreparo de Paacuteris para o duelo com Menelau Haacute ainda a hipoacutetese de que Homero estaria do lado dos troianos De qualquer modo essa instacircncia divina eacute uma questatildeo presente de modo decisivo nas obras homeacutericas Poreacutem ao comparar as duas obras podemos detectar na Odisseacuteia um certo distanciamento entre homens e deuses Esse fato pode ser constatado claramente na postura de Odisseu ao trocar a imortalidade ao lado da deusa Calipso pela vida simples como mortal em Iacutetaca ao lado de sua esposa Peneacutelope 621 Essa passagem mostra que Helena foi uma das primeiras mulheres a levantar a voz em um mundo guerreiro totalmente masculino Isso demonstra que ela natildeo estava vinculada ao papel tradicional que as mulheres desempenhavam nesse periacuteodo na Greacutecia 622 Esse eacute outro aspecto que tem origem no periacuteodo preacute-homeacuterico A relaccedilatildeo da realeza com o mundo divino que ocorre tambeacutem nas culturas egiacutepcia e persa apresenta uma base para a justificaccedilatildeo e validaccedilatildeo do poder poliacutetico Mesmo com a queda da antiga monarquia a Greacutecia de um modo geral continuou utilizando a esfera religiosa para manter e organizar a sua constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Nesse sentido a poesia em seu iniacutecio desempenhou um importante papel de imprimir essa noccedilatildeo no inconsciente coletivo grego atraveacutes dos ritos e foacutermulas que eram entoados maciccedilamente entre a populaccedilatildeo Um dos seus objetivos nesse periacuteodo era impor de modo sutil a adesatildeo dessa noccedilatildeo no espiacuterito das classes mais humildes para facilitar o papel da governabilidade do soberano o rei divino Vale ressaltar por uacuteltimo que na poesia homeacuterica jaacute eacute possiacutevel rastrear o decliacutenio dessa concepccedilatildeo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro GERNET Louis Anthropologie de La Gregravece antique Paris Flammarion 1977 Cap I e II 623 A forma como Zeus se dirige aos seus pares nos leva a crer que jaacute havia o emprego das assembleias (Bouleacute Βουλή) - que eacute um traccedilo caracteriacutestico da formaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da polis - no periacuteodo que esse poema foi composto por Homero Curiosamente essa forma de expressatildeo utilizada por Zeus no Canto IV eacute muito similar ao que filoacutesofo Platatildeo costumava a utilizar em seus diaacutelogos e nas suas aulas (vide Aristoacuteteles Eacutetica Nicocircmaco I IV 5) Essa caracteriacutestica demonstra para noacutes a total sintonia de Platatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica O termo aacutegora (ἀγορά) assembleia lugar de reuniatildeo eacute derivado do verbo agueiro (ἀγείρω) reunir e posteriormente torna-se um espaccedilo de grande importacircncia para a resoluccedilatildeo dos mais diversos problemas dos gregos Podemos encontrar o uso in loco desse verbo no iniacutecio do Canto XX

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Paacuteris sobre a intervenccedilatildeo divina Enquanto que Hera Poseidon Hefesto Teacutetis e

Atenas estavam protegendo Menelau e os aqueus a Deusa Afrodite Apolo Ares

Leto e Aacutertemis formavam o time divino que davam apoio aos troianos Todavia a

intervenccedilatildeo de Afrodite a favor de Paacuteris no ponto mais culminante do duelo eacute tida

como uma manobra repugnante ateacute mesmo no mundo dos mortais Para os aqueus

essa atitude eacute interpretada como uma quebra contratual que foi estabelecida em

comum acordo entre as partes envolvidas624 O duelo deveria ser definido a partir

das habilidades individuais de cada um Mas como vimos anteriormente o

combate contava tambeacutem com a simpatia dos deuses Para muitos leitores esse

uacuteltimo quesito pode ser interpretado como algo do acircmbito casual e do inesperado

que ocorre de modo totalmente acidental Eacute importante ressaltar que os deuses no

mundo homeacuterico natildeo parecem atuar como meras hipoacutestases625 dos sentimentos

humanos Pelo contraacuterio elas satildeo a expressatildeo do mundo dos imortais atraveacutes dessas

forccedilas sobre-humanas como o destino626 e a sorte627 que atuam independentemente

da nossa vontade mas que podem ou natildeo serem decisivas ateacute mesmo no campo de

batalha De qualquer modo essa forma de disputa individual era uma prova no qual

as accedilotildees de cada guerreiro necessitavam levar esse ponto em extrema

consideraccedilatildeo628 O melhor guerreiro natildeo eacute aquele considerado mais forte ou fraco

natildeo apenas do ponto de vista fiacutesico ou mental mas aquele que sabe melhor agir sob

qualquer tipo de circunstacircncia ao saber equilibrar os dois mais importantes traccedilos

624 Os ritos descritos no canto III deixam claro que o duelo natildeo deveria ter a intervenccedilatildeo divina Todas as oferendas destinadas aos deuses trazem esse propoacutesito bem expliacutecito a vitoacuteria deveria ser decidida no fio das espadas mas a deusa Afrodite interveacutem e muda o rumo do combate Haacute ainda outro aspecto importantiacutessimo que o poeta parece sugerir sub-repticiamente em seus versos por um lado ele apresenta mesmo de modo tiacutemido o distanciamento entre o mundo humano e divino nessa elaboraccedilatildeo ritualiacutestica e por outro que esse distanciamento natildeo eacute fruto de uma deliberaccedilatildeo humana Essa uacuteltima hipoacutetese pode ser confirmada com a assembleia divina que ocorre no iniacutecio do canto IV 625Hipostatizar eacute interpretar como uma existecircncia real algo oriundo da abstraccedilatildeo Ou seja afirmar algo abstrato como algo material Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo indicamos o seguinte artigo KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 93 626 As moiras (Μοῖραι) na mitologia grega satildeo as trecircs irmatildes responsaacuteveis pelo destino humano e divino Eram trecircs mulheres com um aspecto fuacutenebre que tinham a funccedilatildeo de fabricar tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos deuses e homens Durante esse importante ofiacutecio as moiras utilizavam uma espeacutecie de Roda da Fortuna que era um tear utilizado para se tecer os fios As voltas da roda posicionam o fio de cada indiviacuteduo em sua parte mais alta ou em sua parte menos desejaacutevel que era o fundo que representavam os momentos de boa ou maacute sorte dos homens e dos deuses 627 Tykhe (Τύχη) sorte Na mitologia grega ainda havia uma divindade chamada Moros que era responsaacutevel pela sorte e destino dos deuses e homens Ele eacute um daimon filho de Nix (noite) na Teogonia de Hesiacuteodo 628 Essa separaccedilatildeo entre o mundo mortal e dos imortais pode ser configurada dentro desse contexto que deu ensejo para o nascimento do traacutegico

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da alma humana a emoccedilatildeo e a razatildeo629 que para o poeta ambas tecircm a sua sede no

coraccedilatildeo (SNELL 2001) O resultado desse caacutelculo apresentaraacute escolhas que podem

levar agraves accedilotildees que daratildeo o sentido da vitoacuteria ou fracasso em qualquer disputa O

exemplo desse pressuposto eacutetico homeacuterico pode ser encontrado na histoacuteria do

proacuteprio Aquiles que teve uma vida curta mas ganhou a imortalidade e gloacuteria

atraveacutes das suas atitudes Em nenhum momento da sua histoacuteria ele agiu motivado

pelo descontrole ou desmedida630 Mesmo sendo um mortal ele pocircde se destacar

entre todos os homens justamente por saber refrear os seus impulsos631 Mesmo a

sua tatildeo famosa ldquoirardquo 632 que eacute cantada no iniacutecio da Iliacuteada pelas musas natildeo eacute de

modo algum fortuita Pelo contraacuterio dentro da construccedilatildeo da eacutepica homeacuterica esse

sentimento de revolta estaacute condicionado a uma espeacutecie de lei divina - como foi visto

anteriormente em nossa anaacutelise sobre o aspecto eacutetico do fragmento de Anaximandro

- que age contra qualquer tipo de atitude que viole ou ameace o equiliacutebrio da

sociedade humana (MUELLNER 1996) Nesse sentido a ira de Aquiles quando

aplicada na medida exata torna-se uma forccedila benfazeja pois ela visa reparar uma

injusticcedila ocorrida anteriormente com a morte de seu querido amigo Paacutetroclo Esse

aspecto de respeito ao outro que marca a eacutetica no periacuteodo claacutessico fica ainda mais

evidente para noacutes quando comparamos as atitudes desse nobre guerreiro com a de

outros personagens como o rei Agamecircmnon e o priacutencipe Paacuteris pois esses dois satildeo

retratados por Homero como homens egoiacutestas que satildeo movidos por suas paixotildees

mais baixas

No caso do priacutencipe troiano mesmo com o auxiacutelio divino o jovem Paacuteris natildeo

pocircde evitar o triste legado de um covarde que alcanccedilou a sua maacute reputaccedilatildeo quando

ajudou a levar a cidade dos seus pais agraves cinzas Haacute ainda mais um agravante que eacute

o fato de ter assassinado o melhor dos homens o grande guerreiro Aquiles com

629 Em Homero os dois termos correspondentes em grego satildeo Thymoacutes (θυmicroός) e nous (νοῦς) O primeiro carrega diversos sentidos no periacuteodo homeacuterico mas no geral ele estaacute voltado para as emoccedilotildees na acepccedilatildeo mais recorrente do termo Enquanto que nous desempenha a capacidade de abstraccedilatildeo atraveacutes das ldquoimagensrdquo 630 Hybris (ὕϐρις) 631 Vide Iliacuteada canto I 632 Mecircnis (Μῆνις) No dicionaacuterio Liddel amp Scott esse termo aparece com o sentido de indignaccedilatildeo Para noacutes essa interpretaccedilatildeo sobretudo no contexto da eacutepica homeacuterica eacute mais coerente com a construccedilatildeo moral proposta pelo poeta Esse sentimento de revolta que eacute provocado por uma circunstacircncia injusta indigna ou revoltante traz em seu bojo a importacircncia da amizade para a construccedilatildeo soacutecio-poliacutetica da cultura helecircnica que seraacute de extrema importacircncia para a construccedilatildeo eacutetica da falange hoplita no qual o guerreiro corajoso eacute aquele que daria a vida para proteger o seu companheiro de armas Posteriormente voltaremos a essa questatildeo

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uma flecha e natildeo com uma espada em punho firme Esses exemplos satildeo mais que

suficientes para a sua condenaccedilatildeo no tribunal do poeta que expotildee graciosamente o

preccedilo que deve ser pago por aqueles que satildeo controlados por suas emoccedilotildees de modo

desmedido Eacute essa a imagem que o poema homeacuterico imortalizou para a posteridade

grega a de um rei incompetente que eacute guiado por sua vilania e de um jovem

impulsivo e fraco que natildeo foi adequadamente educado Um rei e um priacutencipe Essas

duas figuras simbolizam dois importantes aspectos da vida humana e poliacutetica no

mundo da aristocracia Em relaccedilatildeo a Paacuteris que representa a juventude que eacute uma

fase intermediaacuteria entre a infacircncia e a vida adulta a criacutetica do poeta parece atuar de

modo mais incisivo Pois o jovem mesmo com a sorte divina que herdou dos seus

antepassados natildeo foi suficientemente prudente e por conta das suas paixotildees pocircs

em decliacutenio toda a estrutura soacutecio-poliacutetica de sua cidade natal Portanto a educaccedilatildeo

homeacuterica tinha como pressuposto as seguintes liccedilotildees para todos os gregos

primeiramente formar os melhores homens com o intuito de garantir a felicidade

(eudaimonia) plena da cidade que soacute pode ser adquirida atraveacutes de uma boa

conduta Em um segundo momento a poesia atuaria como um instrumento um

espelho retrovisor que visava evitar que os jovens seguissem o mesmo destino do

priacutencipe Paacuteris ou do rei Agamecircmnon que satildeo cada um ao seu modo os dois

exemplos paradigmaacuteticos de desmedida que geram todas as injusticcedilas naquele

contexto soacutecio-poliacutetico Ou seja um jovem nobre mal-educado no passado poderaacute

ser no futuro um peacutessimo governante Para termos uma noccedilatildeo da importacircncia que

os gregos davam para o processo de formaccedilatildeo dos poliacuteticos o bioacutegrafo e historiador

Plutarco no livro X da Moralia633 afirma que sem educaccedilatildeo634 jamais um homem

poderaacute se tornar um bom governante Aliaacutes ele eacute o mesmo que afirma a importacircncia

da poesia antes mesmo do estudo da filosofia para a formaccedilatildeo dos jovens da

aristocracia do seu tempo635 O objetivo de ambas deve auxiliar os jovens a alcanccedilar

a sua maturidade para o alcance de uma vida plena636 em conformidade com os

633 Em PLUTARCO Moralia livro X (728 a) ldquoPara os governantes mal-educadosrdquo (Πρὸς ἡγεmicroόνα ἀπαίδευτον) 634 Apaideutos (απαίδευτος) 635 Em PLUTARCO Moralia livro I 636 Philosophia biou kybernetes (Φιλοσοφία Βίου Κυβερνήτης) o amor pela sabedoria eacute o guia da vida Eacute atraveacutes desse famoso epiacuteteto que Pierre Hadot vai defender a tese de que as escolas filosoacuteficas na antiguidade tinham o objetivo de buscar a melhor alternativa para o homem alcanccedilar a sua plenitude existencial

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princiacutepios que regem a harmonia da cidade637 Logo os exemplos retirados das

eacutepicas homeacutericas ateacute o periacuteodo heleniacutestico deveriam seguir essa orientaccedilatildeo

pedagoacutegica Mas eis que surge mais uma questatildeo como a poesia homeacuterica poderia

ser tatildeo eficiente na educaccedilatildeo dos jovens nobres Como vimos anteriormente o

olhar arguto da poeacutetica homeacuterica apresenta a junccedilatildeo de dois ciclos da formaccedilatildeo

humana a saber a juventude e a maturidade pois ambas satildeo complementares no

processo de construccedilatildeo do homem poliacutetico na aristocracia grega de um modo geral

e que tem como ideal comparativo a imagem do nobre Aquiles que serve como um

paradigma eacutetico entre as personagens do rei Agamecircmnon e do priacutencipe Paacuteris Para

o sucesso de tal objetivo o poeta tinha que contrapor em seus versos os viacutecios e

virtudes que se expressavam nas accedilotildees de cada um desses personagens que

representam a nobreza que tem o poder sobre o destino de cada cidade E satildeo essas

caracteriacutesticas que fazem jus ao seu famoso epiacuteteto que podemos encontrar na

Repuacuteblica de Platatildeo638 que diz que poeta eacute o primeiro educador dos gregos Antes

mesmo do grande filoacutesofo ateniense ele jaacute expunha em versos os efeitos das accedilotildees

que natildeo foram devidamente refletidas Ao apresentar esse desvio atraveacutes do seu

espelho literaacuterio ele tambeacutem aponta uma direccedilatildeo que deveraacute ser seguida para

encontrar o alcance da gloacuteria eterna dos mortais639 Talvez seja esse o maior legado

que a poesia homeacuterica forneceraacute aos poetas traacutegicos posteriormente demonstrar o

637 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica (livro III 1288 a-b) O filoacutesofo afirma nessa passagem que um dos seus interesses visa encontrar qual eacute o melhor tipo de constituiccedilatildeo poliacutetica Na primeira parte do estudo ele observa que a virtude do homem do cidadatildeo e da cidade satildeo totalmente equivalentes entre si E ele parte a sua afirmaccedilatildeo da seguinte premissa eacute evidente que do mesmo modo o homem e pelos mesmos meios que homem se torna bom tambeacutem se pode constituir uma cidade aristocraacutetica ou monaacuterquica de modo que a educaccedilatildeo e os costumes que fazem um homem bom seratildeo mais ou menos as mesmas que satildeo utilizadas para um homem tornam-se apto para ser um homem de Estado ou rei A partir disso podemos notar como a eacutetica e poliacutetica estatildeo sob o mesmo diapasatildeo 638 PLATAtildeO Repuacuteblica livro X 606 C 639 A busca pela gloacuteria (κλέος kleacuteos) ou notoriedade era algo tatildeo importante para os gregos que haacute um fragmento de Heraacuteclito que expressava essa caracteriacutestica do mundo antigo ldquoas musas jocircnicas dizem expressamente que a massa e os aparentemente saacutebios seguem os aedos do povo e baseiam-se em seus costumes mesmo cientes de que muitos satildeo os maus poucos os bons e que soacute os melhores a gloacuteria perseguem Uma soacute coisa contra todas as outras escolhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzinada como o gadordquo (Frag XXIX ndash Clemente de Alexandria Stromata V 59) retirado do seguinte livro HERAacuteCLITO Fragmentos Contextualizados Ed Biliacutengue trad e comentaacuterios Alexandre Costa Rio de Janeiro Difel 2002 Eacute importante lembrar que o radical dessa palavra segundo Lidell amp Scott estaacute associado ao ato de ouvir Ou seja esse termo carrega implicitamente o significado de ldquoouvir algo ao seu respeitordquo A partir disso eacute possiacutevel constatar a profunda importacircncia da tradiccedilatildeo oral Sobretudo nesse contexto em que Heraacuteclito faz menccedilatildeo a esse fato em sua sentenccedila Pois como vimos anteriormente a uacutenica forma de alcance dessa gloacuteria eacute atraveacutes do canto dos aedos e rapsodos Neste sentido o fragmento de Heraacuteclito eacute de extrema importacircncia para compreendermos o sentido que carrega a gloacuteria para os antigos gregos

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encadeamento dos fatos e as motivaccedilotildees que movem cada uma das personagens na

trama construiacuteda pelos deuses E consequentemente obter uma espeacutecie de cosmo

visatildeo sobre as falhas no sentido da incapacidade dos homens em reconhecer o que

eacute realmente certo atraveacutes de uma orientaccedilatildeo precisa atraveacutes desse espelho poeacutetico

Aliaacutes Aristoacuteteles afirma na Poeacutetica640que a falha641 na trageacutedia natildeo eacute oriunda de

um desvio moral mas de uma deficiecircncia da proacutepria natureza humana642 No

capiacutetulo seis ele acrescenta ainda que a definiccedilatildeo traacutegica ocorre atraveacutes da accedilatildeo

Dito de outro modo eacute atraveacutes da accedilatildeo que unicamente o homem pode se reconhecer

como tal De qualquer modo a sua posiccedilatildeo estaacute em consonacircncia com uma ideia

que podemos encontrar na eacutepica homeacuterica que afirma que os homens satildeo apenas

meros joguetes nas matildeos das forccedilas divinas Logo se faz necessaacuterio desenvolver

uma cartografia para navegar no mar tempestuoso da vida Sem ela o homem

estaria totalmente agrave deriva e desprotegido como uma crianccedila perdida na selva O

famoso preceito deacutelfico que dizia ldquoconhece-te a ti mesmordquo que influenciou

posteriormente o pensamento socraacutetico jaacute apontava um imperativo eacutetico que

mostrava que o homem deveria voltar-se unicamente para uma reflexatildeo sobre as

suas proacuteprias accedilotildees com o objetivo de alcanccedilar a sua plenitude existencial Esse eacute

o caminho que os gregos antigos construiacuteram para natildeo mergulharem numa vida

totalmente niilista Aliaacutes essa preocupaccedilatildeo pode tambeacutem ser encontrada nas mais

diversas obras da literatura antiga Logo foi importante que o homem grego

descobrisse uma forma de afirmar a sua existecircncia mediante uma das uacutenicas

verdades que de fato podemos conhecer nesse mundo a natureza humana eacute mortal

Nesse sentido ao expor os problemas da relaccedilatildeo entre homens e deuses Homero

torna-se a mais importante referecircncia para a construccedilatildeo da mentalidade grega e ateacute

mesmo para o pensamento eacutetico que seraacute desenvolvido pelos tragedioacutegrafos

comedioacutegrafos sofistas e filoacutesofos no periacuteodo claacutessico

640 ARISTOacuteTELES Poeacutetica cap XIII 641 Harmaacutertia (άmicroαρτία) falta ou erro 642 A partir dessa afirmaccedilatildeo eacute possiacutevel extrair uma concepccedilatildeo de traacutegico do pensamento do filoacutesofo Essa eacute uma posiccedilatildeo muito discutiacutevel mas natildeo eacute em hipoacutetese alguma descartaacutevel Natildeo eacute porque natildeo encontramos nenhuma teoria sobre essa questatildeo ndash strictu sensu - nas obras de Aristoacuteteles que poderemos afirmar categoricamente como querem alguns alematildees como Albin Lesky que natildeo haja uma teoria sobre o pensamento traacutegico na antiguidade Em nosso proacuteprio trabalho apresentamos alguns elementos que vatildeo desde a obra homeacuterica que podem nos ajudar a encontrar uma teoria para defender uma posiccedilatildeo contraacuteria A seguir apresentaremos mais alguns importantes indiacutecios para essa hipoacutetese

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O autocontrole das emoccedilotildees643 era outro aspecto evidenciado por Homero ao

se referir a nobreza dos grandes heroacuteis na sua eacutepica pedagoacutegica Em diversos pontos

da Iliacuteada o poeta ressalta essa atitude como uma virtude que ajudava a compor a

beleza do melhor dos aqueus o valente Aquiles644 Essa disposiccedilatildeo espiritual estava

reciprocamente em conexatildeo com as habilidades645 de combate necessaacuterias para

qualquer guerreiro atraveacutes do manuseio de armas como a espada escudo e a lanccedila

Mas dentro desse contexto da eacutepica homeacuterica uma das qualidades de maior

destaque para a classe dos nobres que satildeo apresentadas pelo poeta inclui o domiacutenio

da arte de equitaccedilatildeo Para termos uma noccedilatildeo da dimensatildeo dessa importacircncia basta

constatar que dois dos termos mais recorrentes na Iliacuteada eacute o uso do verbo domar646

que eacute empregado justamente para ressaltar a capacidade humana de domesticar um

dos animais essenciais para a vida dos gregos - e que eacute outro termo de maior

destaque no poema - o cavalo647 Em quase todos os cantos o poeta ressalta a

relevacircncia do emprego desse mamiacutefero em vaacuterios aspectos da cultura helecircnica A

sua maior influecircncia foi no acircmbito econocircmico e militar Os altos custos para manter

e domesticar esses animais restringia a arte de equitaccedilatildeo para os poucos

proprietaacuterios de terras que pertenciam agrave classe dos nobres648 E esse fato eacute mais um

indiacutecio que corrobora a hipoacutetese que apresentamos anteriormente de que a epopeia

homeacuterica era um projeto pedagoacutegico que estava voltado essencialmente para uma

elite aristocraacutetica que estava no controle do poder econocircmico e que de certa forma

ainda guardava laccedilos sanguiacuteneos e afetivos com a constituiccedilatildeo poliacutetica anterior ao

643 Sophrosyne (Σωφροσύνη) era considerada por muitos gregos como uma espeacutecie de daimon que estimulava o autocontrole Enquanto que deusa Afrodite ficou conhecida na antiguidade como uma divindade responsaacutevel por fomentar as paixotildees desenfreadas Vide o caso do sequestro de Helena por Paacuteris que culminou com a destruiccedilatildeo da cidade de Troacuteia na Iliacuteada 644 Vide Iliacuteada (canto I v 340) Homero nesses versos apresenta a ponderaccedilatildeo do bravo Aquiles mediante a covardia de Agamecircmnon que envia um grupo de soldados agrave sua tenda para sequestrar a sua companheira a jovem Briseida que foi conquistada pelo nosso heroacutei em um butim 645 Teacutecnica (τέχνη) teacutechne Esse termo remete para qualquer procedimento que busca um determinado resultado 646 Damazo (δαmicroαζω) submeter ao julgo domar amansar e domesticar No caso passivo haacute tambeacutem o significado de forccedilado ou seduzido 647 Hippos (Ἵππος) cavalo 648 Vide a obra de Xenofonte ldquoDa equitaccedilatildeo ou arte da cavalariardquo (22-3) Nesse livro o escritor grego ressalta que a arte da equitaccedilatildeo era uma atividade praticada apenas pelos membros da elite ateniense que pertenciam a uma minoria que detinha o poder poliacutetico militar e econocircmico da polis Esse traccedilo eacute de extrema importacircncia para noacutes pois isso prova que mesmo com a queda da realeza micecircnica um pequeno grupo de guerreiros que certamente eram oriundos da antiga realeza micecircnica distribuiu o poder atraveacutes de uma divisatildeo que levava em consideraccedilatildeo a condiccedilatildeo econocircmica de seus membros pois esse aspecto eacute essencial sobretudo nesse periacuteodo para o cidadatildeo poder desempenhar a atividade militar que era o fundamento do controle poliacutetico vide o caso de Peacutericles que era liacuteder poliacutetico e estratego (general) de Atenas Posteriormente voltaremos a comentar esse ponto

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surgimento da Democracia na Greacutecia A arte de equitaccedilatildeo eacute uma heranccedila que une

esses dois momentos poliacuteticos na histoacuteria grega e esse fato pode ser verificado em

diversos exemplos da mitologia helecircnica que abrange do periacuteodo arcaico ateacute o

claacutessico no qual podemos verificar a relaccedilatildeo de vaacuterias divindades oliacutempicas com

esse precioso animal Eacute oacutebvio que os antigos aedos ajudaram a propagar admiraccedilatildeo

do cavalo no imaginaacuterio popular grego com o intuito de imprimir respeito aos que

detinham o controle dessa daacutediva divina649 Em vaacuterios mitos650 eacute possiacutevel detectaacute-

lo numa posiccedilatildeo privilegiada que concomitantemente revelava natildeo apenas o seu

valor mas tambeacutem o prestiacutegio e a destreza do seu condutor o nobre cavaleiro que

carregava a habilidade de domesticaacute-lo e de tecirc-lo como um aliado na frente de

batalha O caso mais emblemaacutetico que os gregos criaram para imortalizar essa

imagem idealizada estaacute contido no mito do centauro Quiacuteron651 Essa figura lendaacuteria

que eacute metade homem e outra metade cavalo eacute a siacutentese perfeita que simboliza o

prestiacutegio que a arte da equitaccedilatildeo exercia entre a nobreza grega Essa criatura era

tida como uma das mais famosas e saacutebias entre a classe dos centauros na mitologia

Em detrimento disso a sua filiaccedilatildeo estaacute associada ao panteatildeo dos deuses oliacutempicos

que formam a religiatildeo difundida pela nobreza A sua sabedoria lhe conferiu o ofiacutecio

de ser o maior educador entre os seres mitoloacutegicos gregos Xenofonte que eacute

conhecido por ter sido mercenaacuterio e disciacutepulo de Soacutecrates ndash e pertencente a uma

das famiacutelias mais influentes em Atenas652 - escreveu um livro intitulado Sobre a

649 Podemos encontrar em vaacuterios mitos a imagem do cavalo relacionado com o mundo divino e dotados de poderes especiais a seguir apresentaremos alguns exemplos 1) Quiacuteron um centauro filho de Cronos que atuou como tutor de Aquiles 2) Pegasus o cavalo alado filhos de Poseidon e Medusa Mais tarde ele foi transformado por Zeus na constelaccedilatildeo de Peacutegaso O cavalo desempenhou um papel central nos grandes festivais ciacutevicos no mundo antigo como os jogos de Panathenaicos em Atenas e os Jogos Oliacutempicos em Olympus onde participava de corridas de carros e corridas individuais No quinto seacuteculo em Tebas o poeta liacuterico Piacutendaro imortaliza as vitoacuterias dos cavalos e cavaleiros nos jogos Iacutestmicos Olimpo Piacuteticos O entusiasmo ateniense para o cavalo tambeacutem foi ressaltado em muitos edifiacutecios civis e religiosos que estavam cobertos com pinturas e esculturas de cavaleiros e cenas de batalha Todos esses indiacutecios coletados na arte e arquitetura satildeo importantes para noacutes pois apresentam as proezas dos guerreiros gregos na batalha natildeo apenas durante o periacuteodo arcaico mas tambeacutem no periacuteodo claacutessico e heleniacutestico Eacute possiacutevel encontrar vaacuterias obras que relatam essa faceta por exemplo a sepultura estela de Dexileos (3943 BC) que mostra o jovem cavaleiro em batalha em um cavalo de elevaccedilatildeo com o inimigo debaixo dele encolhido Da mesma forma satildeo famosas as representaccedilotildees de Alexandre o Grande e seu famoso cavalo Bucephalos como a do par montando para a batalha no Alexander Mosaico na Casa do Fauno Pompeacuteia Essas diversas representaccedilotildees do cavalo tem o intuito de demonstrar sua importacircncia na guerra e a centralidade desta criatura na vida ciacutevica religiosa e econocircmica da cidade 650 Vide nota anterior 651 Quiacuteron foi um centauro que atuou como o educador de Aquiles Neste sentido a mitologia grega foi muito eficiente para imprimir os valores da aristocracia atraveacutes dos aedos e rapsodos 652 Em ESTREBAtildeO Geografia Livro IX Capiacutetulo 2 7 Nessa passagem o geografo relata a batalha de Deacutelio que ocorreu por volta de 424 aC no qual os atenienses satildeo derrotados pelas tropas tebanas

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caccedila no qual enumera vinte e uma figuras lendaacuterias que foram educadas por esse

centauro No capiacutetulo I aleacutem dele nomear todos os heroacuteis que tiveram Quiacuteron como

pedagogo ele tambeacutem fornece uma preciosa informaccedilatildeo ao apresentar o conteuacutedo

programaacutetico e pedagoacutegico para a classe dos cavaleiros em Atenas Para se tornar

um bom heroacutei o jovem nobre deveria estudar as seguintes especialidades artes de

caccedila combate equitaccedilatildeo e muacutesica Podemos notar que todas essas disciplinas

estavam vinculadas agrave formaccedilatildeo militar e poliacutetica Ambas essenciais para o domiacutenio

poliacutetico do acircmbito interno e externo da poliacutetica grega

Na listagem apresentada por Xenofonte sobre os alunos ilustres de Quiacuteron eacute

possiacutevel encontrarmos o nome do guerreiro Aquiles Essa relaccedilatildeo pedagoacutegica e

poeacutetica natildeo eacute de modo algum fortuita Vimos anteriormente como Aquiles

representava o modelo de heroacutei na eacutepica homeacuterica Logo era de extrema

importacircncia para fundamentar esse projeto pedagoacutegico voltado para a nobreza que

esse mito de Quiacuteron fosse esculpido de modo que estivesse associado intimamente

agrave imagem de Aquiles para surtir o efeito esperado de persuasatildeo e respeito por um

lado no imaginaacuterio dos jovens nobres e por outro na populaccedilatildeo com o intuito de

imprimir submissatildeo agrave classe dominante A partir dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel

compreendermos a utilizaccedilatildeo da mitologia para controle e produccedilatildeo de

subjetividade653 Uma das funccedilotildees da poesia desde o periacuteodo preacute-homeacuterico era de

publicizar atraveacutes de teacutecnicas mnemocircnicas e meloacutedicas esses ideais difundidos

pela aristocracia que sempre esteve presente na antiga realeza Logo a estrutura do

poder vigente durante esse periacuteodo que abrange da monarquia micecircnica ateacute o iniacutecio

do surgimento da Democracia pode ser representada e inserida no inconsciente

coletivo grego atraveacutes da poesia na reuniatildeo de apenas duas imagens a do homem

nobre e do cavalo Satildeo esses dois iacutecones654 unidos que simbolizam o poder militar

poliacutetico e econocircmico de mais alto valor da cultura helecircnica

Apoacutes uma retirada em massa dos sobreviventes atenienses o filoacutesofo Soacutecrates teria socorrido Xenofonte que teria caiacutedo do seu cavalo 653 Para Guattari cada indiviacuteduo ou grupo social cria o seu proacuteprio sistema de modelizaccedilatildeo da subjetividade Ou seja uma espeacutecie de cartografia que eacute desenvolvida a partir de inscriccedilotildees cognitivas miacuteticas ritualiacutesticas sintomatoloacutegicas a partir da qual ele demarca a sua posiccedilatildeo como homem no mundo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide GUATTARI F ldquoCaosmose um novo paradigma esteacuteticordquo Satildeo Paulo Editora 34 1992 654 Esse termo vem de eikon (εἰκών) e significa uma representaccedilatildeo imageacutetica Para a semiologia e a semioacutetica o iacutecone eacute um signo que representa outro objeto por semelhanccedila

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A faccedilanha em torno desse lendaacuterio animal marca uma forma de combate que

foi imortalizada por Homero e que tambeacutem fez parte da construccedilatildeo imageacutetica

efetuada pela casta guerreira que assumiu o lugar do rei (aacutenax) com a queda da

antiga realeza micecircnica Esses haacutebeis condutores de carros que satildeo conhecidos

como os primeiros cavaleiros (hippeis)655 de combate na Greacutecia era uma

importante heranccedila de uma estrateacutegia militar que marcou a construccedilatildeo da eacutepica e

da consciecircncia coletiva grega pelo menos dentro do acircmbito da aristocracia que

eram responsaacuteveis por imprimir seus valores para o resto da populaccedilatildeo Segundo o

helenista britacircnico Geoffrey Kirk (KIRK 1962) esses primeiros carros de

combates surgiram no contexto preacute-helecircnico a partir do contato comercial com

algumas culturas da Aacutesia Menor como a civilizaccedilatildeo Hitita por volta do seacuteculo XVI

aC esses povos teriam sido os primeiros a utilizar esses animais nos campos de

batalha Devido aos altos custos na criaccedilatildeo desses animais a arte da equitaccedilatildeo ficou

restrita agrave nobreza

Como vimos anteriormente a construccedilatildeo do heroacutei homeacuterico era baseada em

habilidades individuais que eram decisivas natildeo apenas no campo de batalha mas

para a formaccedilatildeo do homem poliacutetico656 No livro IV da Poliacutetica Aristoacuteteles afirma

que as primeiras constituiccedilotildees baseavam o seu poder militar na cavalaria que era

mantida por uma oligarquia formada por poucos nobres E a partir dessa constataccedilatildeo

podemos encontrar mais um elemento que comprova a relaccedilatildeo dessa classe com o

poder poliacutetico657 Posteriormente com a necessidade de utilizaccedilatildeo da infantaria658

a base estrutural que formava o poder do Estado foi ampliada Natildeo sabemos de fato

como essa transformaccedilatildeo ocorreu mas encontramos alguns indiacutecios fornecidos pelo

proacuteprio filoacutesofo659 que indica que a pressatildeo popular pode ter sido um dos fatores

655 Hippeis (ἱππεύς) cavaleiros que formavam a cavalaria militar grega 656 Para o cientista poliacutetico inglecircs Ernest Barker o sentido do valor do indiviacuteduo foi uma caracteriacutestica do desenvolvimento do pensamento poliacutetico grego antigo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 2 657 Vide ARISTOacuteTELES Poliacutetica livro IV 1289 b 658 Ibidem livro III 1280 a nessa passagem o filoacutesofo afirma categoricamente que o desequiliacutebrio entre ricos (minoria) e pobres (maioria) eacute o que vai gerar o deslocamento de poder entre a oligarquia e a democracia A maioria massacrada pela opressatildeo de poucos estimula o processo de disputa de poder poliacutetico com a classe de nobres E com a necessidade de regimentos para o pronto emprego na guerra com outros povos eacute oacutebvio que a aristocracia teve que ceder agraves pressotildees populares Em contrapartida a classe aristocraacutetica abre esse espaccedilo poliacutetico com a prerrogativa de que esses novos membros pudessem participar ativamente na formaccedilatildeo de regimentos para a atuaccedilatildeo na guerra 659 As inuacutemeras derrotas sofridas pelos gregos podem ter sido um dos motivos para ceder agraves pressotildees populares

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que corroborou para essa abertura poliacutetica atraveacutes da necessidade do proacuteprio

governo depender do auxiacutelio cada vez maior de combatentes de outras classes

sociais para compor as fileiras para o emprego na guerra

53 A fala compartilhada

A mudanccedila para essa nova forma de combate ocorre a partir do iniacutecio de VII

a C (ANDREWES 1956) quando os gregos comeccedilaram a utilizar formaccedilatildeo em

falange660 com o uso de armaduras mais pesadas na infantaria e esse poderoso

agrupamento militar era conhecido na antiguidade como a formaccedilatildeo de combate

hoplita As caracteriacutesticas de maior destaque dessa mudanccedila de atuaccedilatildeo no campo

de batalha estatildeo nos seguintes quesitos novo tipo de lanccedila transformaccedilatildeo no

formato do escudo e na formaccedilatildeo de combate em grupo Ao inveacutes de basear a forccedila

da estrateacutegia militar em lutadores individuais como podemos verificar em algumas

partes da Iliacuteada esses guerreiros operavam de modo coletivo atraveacutes da formaccedilatildeo

de um bloco uacutenico Na forma de combate antiga o guerreiro carregava lanccedilas

sobressalentes que eram lanccediladas agrave uma certa distacircncia na direccedilatildeo do seu oponente

A espada soacute era utilizada em um combate mais proacuteximo se por acaso essa teacutecnica

natildeo surtisse o efeito esperado E por esse motivo a armadura para a sua defesa nesse

periacuteodo natildeo era tatildeo elaborada como na forma de combate hoplita Apenas o seu

escudo era a sua maior proteccedilatildeo e ele tinha na parte interna um uacutenico suporte para

apoiar a matildeo que estava conectada a uma espeacutecie de correia que estava amarrada

no pescoccedilo do guerreiro e que ligava ateacute a parte interna do escudo Se fosse

necessaacuterio o combatente poderia deixar a proteccedilatildeo do escudo para penduraacute-lo pela

sua cinta e ter as suas matildeos livres ou se porventura decidir fugir ele poderia

tambeacutem utilizaacute-lo apoiado no cinto para proteger as suas costas durante o

deslocamento A seguir veremos uma descriccedilatildeo da forma de combate antiga que foi

apresentada por Homero no canto XXIII da Iliacuteada Esse duelo entre Diomedes e

660 Phaacutelax (φάλαγξ) Essa eacute uma importante e antiga taacutetica militar de guerreiros que formam um bloco retangular que caminha em direccedilatildeo dos seus inimigos com o intuito de esmaga-los com as lanccedilas e escudos

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Ajax eacute uma simulaccedilatildeo de combate que faz parte dos ritos fuacutenebres dedicados agrave

memoacuteria de Paacutetroclo que foi morto pelas matildeos de Heitor

[HOMERO Iliacuteada] ldquoConvido dois guerreiros dos melhores ambos revestido de arnecircs portando armas de bronze pontiagudo a provar-se um ao outro perante o povo Aquele que primeiro a pele do outro esflorar atraveacutes da couraccedila tirando lhe sangue escuro este a traacutecia espada ganharaacute cravejada de prata por mim conquistada a Asteropeu beliacutessima ambos pugnaratildeo pelo arnecircs de Sapeacuterdon com banquete esplecircndido na tenda honrarei Disse O Telamocircnio Aacutejax se apresenta um gigante Diomedes Tideide fortiacutessimo tambeacutem Os dois em armas saem cada um do lado para o centro convergindo aacutevidos de lutar com mirada veloz De espanto os Aqueus todos pasmam Um contra o outro avanccedilam se acometem trecircs vezes trecircs vezes se entrechocam No escudo panequilibrado Aacutejax golpeia e natildeo chega a atingir a pele encouraccedilada do Tideide este por cima da mega-adarga estava por ferir a gorja do outro com a fulgente lanccedila Ciosos de Aacutejax os Dacircnaos clamam pela suspensa da lide pedindo precircmio igual a ambos Mas ao Tideide Aquiles deu a megaespada com o talim e bainha bem-lavrados Aquiles na arena potildee como disco massa de ferreiro grosseiro lanccedilando-a Eeciatildeo provava a sua forccedila O Peleide depois de ter matado enviou agraves naus o disco mais outros bens Ereto diz para os Argivos apresentem-se aqueles agrave prova concorrer Se o que venccedila possuir feacuterteis fartas glebas mas afastadas ferro por um lustro natildeo vai faltar Pastor ou lavrador agrave polis natildeo teraacute de compra-lo haacute de sobrardquo661

O caraacuteter ritualiacutestico desse duelo revela uma forma de combate que estava

totalmente centrada nas aptidotildees de cada indiviacuteduo No caso da nova formaccedilatildeo em

falange a armadura utilizada para defesa era muito mais elaborada e

consequentemente tambeacutem mais pesada E isso tirava a agilidade do combatente

em um combate de plano mais aberto A peccedila principal nessa nova indumentaacuteria

para guerra era uma couraccedila de metal - ou tiras de metal- que eram totalmente presas

661 HOMERO Iliacuteada canto XXIII v 800-835 Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos

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entre si e que cobriam o peito e a maior parte da barriga A grande novidade estava

na constituiccedilatildeo e no uso do escudo Nesse novo emprego o escudo natildeo tinha um

suporte de ligaccedilatildeo que era conectado no pescoccedilo como vimos anteriormente Na

posiccedilatildeo normal ele apenas cobria o lado esquerdo do corpo do guerreiro pois a

outra parte era utilizada para proteger o lado direito do outro companheiro de armas

que permanecia ao seu lado em uma perfeita linha defensiva O sucesso dessa

estrateacutegia consistia em manter a linha unida a todo custo

Com essa nova taacutetica os guerreiros hoplitas precisavam trabalhar

harmoniosamente em grupo para formar uma espeacutecie de muro intransponiacutevel

durante as incursotildees na frente de batalha Outra caracteriacutestica desse novo escudo

era o fato de ele natildeo proteger totalmente o corpo do usuaacuterio Ou seja ele era um

fardo que precisava ser carregado para manter a proteccedilatildeo do seu companheiro e a

formaccedilatildeo firme na linha de frente Se porventura um dos hoplitas tivesse a triste

ideia de fugir ou fraquejar em algum momento ele seria responsaacutevel por colocar

em risco toda a formaccedilatildeo da falange662 A lanccedila que antes era utilizada como um

projeacutetil durante as incursotildees em campo aberto nessa nova taacutetica de combate eacute

utilizada de forma firme na altura que possa atingir o pescoccedilo do oponente na linha

de frente dessa formaccedilatildeo Se por acaso a lanccedila falhar o guerreiro ainda tem a sua

disposiccedilatildeo uma espada curta que pode ser empregada numa circunstacircncia em que o

inimigo esteja mais proacuteximo para um combate corpo-a-corpo

A diferenccedila mais notaacutevel entre as duas formas de combate eacute que o hoplita soacute

pode combater dentro dessa linha de formaccedilatildeo Logo para o sucesso dessa taacutetica eacute

fundamental o perfeito entrosamento entre os membros dessa nova formaccedilatildeo de

combate Outro detalhe notaacutevel eacute que a seguranccedila de cada guerreiro reside na

responsabilidade de todos os membros componentes da linha Essa caracteriacutestica

que se fundamenta na confianccedila e o respeito pelo outro inaugura uma nova

concepccedilatildeo de coragem que seraacute exaltada por poetas como Tirteu e Platatildeo663 O

662 Vide em HEROacuteDOTO ldquoHistoacuteriasrdquo livro IX cap 70 o relato do historiador sobre o que acontecia com um combatente que agia de modo covarde em Esparta 663 Vide PLATAtildeO ldquoLaquesrdquo (181e-183d) Nesse diaacutelogo aleacutem do filoacutesofo apresentar o conceito de coragem (andreiaανδρεια) ele tambeacutem fala sobre a importacircncia desse tipo de treinamento militar (hoplomakhiacuteaὁπλοmicroαχία) na formaccedilatildeo dos jovens atenienses Esse registro eacute de extrema relevacircncia para noacutes pois apresenta alguns pontos sobre essa forma de combate militar Na ldquoRepuacuteblicardquo Livro IV (429 a) o filoacutesofo discorre sobre o conceito de coragem Em DL ldquoVidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo livro II cap V 2 podemos encontrar a famosa histoacuteria de bravura de Soacutecrates que foi

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homem corajoso dentro desse novo contexto natildeo eacute aquele antigo heroacutei homeacuterico

que prova as suas capacidades singulares no campo de batalha mas naquele que

natildeo recua e que se manteacutem firme na sua posiccedilatildeo protegendo o seu companheiro a

todo custo664 O objetivo dessa nova taacutetica era desarticular as fileiras inimigas mas

para isso ocorrer com maacutexima eficiecircncia era necessaacuteria muita praacutetica de trabalho

em equipe E essa caracteriacutestica eacute responsaacutevel por propiciar uma grande

transformaccedilatildeo nas praacuteticas sociais dos helenos

O antigo meacutetodo de combate que vimos anteriormente nas exposiccedilotildees sobre a

eacutepica homeacuterica estava marcado pela habilidade individual de cada guerreiro665

Mesmo dentro de um combate em massa algum bravo militar como Aquiles por

exemplo poderia atirar a sua lanccedila na direccedilatildeo de um uacutenico inimigo e apoacutes essa

investida e caso esse primeiro ataque natildeo obtivesse ecircxito o duelo era definido

corpo-a-corpo atraveacutes de uma luta entre espadas Dentro desse contexto a

indumentaacuteria para combate tinha que ser mais leve para dar flexibilidade e

velocidade no campo de batalha Eacute importante ressaltar que esse artifiacutecio descrito

nos poemas homeacutericos natildeo apresenta apenas uma construccedilatildeo poeacutetica para dar

destaque aos seus heroacuteis mas ela revela uma forma de combate que antecede ao

periacuteodo de surgimento da formaccedilatildeo em falange da infantaria hoplita A questatildeo que

surge para noacutes eacute quando esse tipo de combate apareceu entre os gregos

Para o historiador inglecircs Antony Andrewes (ANDREWES1956) esse tipo de

formaccedilatildeo taacutetica teria sido utilizado pela primeira vez no iniacutecio do seacuteculo VII no sul

da Greacutecia na regiatildeo do Peloponeso O helenista apoia a sua hipoacutetese em algumas

pinturas antigas e nos fragmentos escritos de Arquiacuteloco e Tirteu666 Esses dois

poetas descrevem algumas cenas em seus versos que fornecem algumas evidecircncias

sobre o emprego da indumentaacuteria hoplita As mudanccedilas ocorridas nessas duas

formas de combate tambeacutem trazem no seu bojo profundas mudanccedilas no contexto

tambeacutem citada por Estrebatildeo Para os fragmentos de Tirteu vide TIRTEU fr 5 que estaacute no seguinte livro BARNSTONE WILLIS ldquoGreek Lyric Poetryrdquo Introduction by William McCulloh New York Bantam Classics 1962 paacuteg 18 664 Ibidem 665 Vide o subcapiacutetulo anterior 666 Sobre esses dois poetas haacute dois livros que apresentam de modo cuidadoso os seus respectivos fragmentos O primeiro eacute BRUNHARA R ldquoAs Elegias de Tirteurdquo Satildeo Paulo Editora Humanitas 2014 E o segundo CORREcircA Paula da Cunha ldquoArmas e Varotildees a guerra na liacuterica de Arquiacutelocordquo Satildeo Paulo Editora Unesp 1998

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soacutecio-poliacutetico grego Como foi visto anteriormente o meacutetodo individual de

combate estaacute inteiramente voltado para o meacutetodo militar da aristocracia no qual a

massa do povo eacute de pouca importacircncia e a responsabilidade dos combates eacute

efetuada unicamente por uma classe de especialistas militares oriundos da nobreza

que podem arcar com as despesas dos equipamentos necessaacuterios para a guerra

Enquanto que o meacutetodo taacutetico da falange precisa de uma base mais ampla um maior

nuacutemero de combatentes treinados e acostumados a atuar de modo coletivo E nesse

contexto natildeo haacute mais espaccedilo para as proezas individuais que antes representava o

ideal de coragem para a nobreza A relaccedilatildeo hieraacuterquica que antes era totalmente

verticalizada nessa nova forma de combate necessita do diaacutelogo e do muacutetuo

respeito entre os irmatildeos de armas Caso contraacuterio seria impossiacutevel estabelecer uma

uniatildeo entre todos os membros da falange

Infelizmente natildeo temos muitas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre a origem

dessa taacutetica entre os gregos mas no periacuteodo claacutessico os hoplitas eram oriundos de

uma espeacutecie de classe meacutedia667 que foi sendo formada por pequenos produtores Haacute

muitas divergecircncias sobre essa questatildeo entres os especialistas de Histoacuteria Antiga668

Eacute notoacuterio que em algumas partes da Iliacuteada669 eacute possiacutevel encontrarmos indicaccedilotildees

sobre o emprego de alguns combates em grupos mas natildeo haacute menccedilatildeo do emprego

dessa estrateacutegia nas obras homeacutericas A partir desses indiacutecios o que podemos

afirmar eacute que esses combates em massas relatados pelo poeta podem ter sido o

embriatildeo para a formaccedilatildeo mais robusta e equipada da famosa falange hoplita

posteriormente De qualquer modo o uacutenico relato que temos mais consistente sobre

essa questatildeo pode ser encontrado em detalhes no livro IV da Poliacutetica de

667 Esse indiacutecio nos leva a hipoacutetese de que o lendaacuterio ldquoreirdquo Iacuteon possa ter sido um guerreiro pertencente a esse grupo 668 Para o antropoacutelogo escocecircs Andrew Lang eacute possiacutevel encontramos combates em massas na Iliacuteada (XII 105 XII 145-52 XIII 126-33 XVI 212-17 e XVII 354-5) mas a questatildeo eacute saber se essa massa empregada era a famosa falange hopliacutetica Infelizmente natildeo eacute possiacutevel encontrarmos nenhum termo em grego nas epopeias homeacutericas que contribua para afirmar categoricamente que havia esse tipo de taacutetica militar durante o periacuteodo homeacuterico A outra hipoacutetese defendida por Helenistas como GS Kirk eacute que os poemas homeacutericos satildeo camadas de vaacuterios periacuteodos histoacutericos Logo essa formaccedilatildeo hopliacutetica pode ter servido como material poeacutetico Vide KIRK GS ldquowar and the warrrior in the homeric poemsrdquo em VERNANT Jean-Pierre (eacuted) Problegravemes de la guerre en Gregravece ancienne Paris-La Haye 1968 pp 92 Para os helenistas Murray (1934) e TBL Webster (1958) as descriccedilotildees de combates em grupos teriam sido interpolaccedilotildees feitas posteriormente pelos escribas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o seguinte livro LANG A ldquoThe world of Homerrdquo London 1910 669 Ibidem

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Aristoacuteteles670 A nossa hipoacutetese caminha na seguinte direccedilatildeo a ascensatildeo econocircmica

pode ter sido um dos fatores que desencadearam essa mudanccedila junto com a

necessidade de criar regimentos de combatentes cada vez maiores para as

campanhas militares e consequentemente surge a demanda de mais homens

treinados na arte da guerra Com as novas taacuteticas militares empregadas por outros

povos nos campos de batalha e as crescentes baixas entre os membros da

aristocracia a antiga forma de combate torna-se obsoleta Logo surge a

necessidade de utilizar uma nova taacutetica mais eficiente que possa agregar mais

combatentes

Nesse sentido as pressotildees internas ndash e externas - somada aos altos custos

humanos e materiais para defender a soberania grega podem ter propiciado essa

fissura na antiga constituiccedilatildeo possibilitando uma organizaccedilatildeo poliacutetica mais aberta e

numerosa Eacute importante ressaltar que os equipamentos utilizados para a guerra natildeo

eram fornecidos pelo estado Logo soacute poderiam participar de qualquer atividade

militar apenas aqueles indiviacuteduos que podiam custear as armaduras e armas para o

combate671 Sobre essa questatildeo o helenista francecircs Jean-Pierre Vernant

(VERNANT 1962) acrescenta que a inclusatildeo desse grupo de produtores na esfera

militar possibilitava automaticamente uma ampla atuaccedilatildeo na esfera poliacutetica como

cidadatildeo Eacute bom lembrar que dentro desse contexto histoacuterico grego as palavras

guerreiro e cidadatildeo satildeo sinocircnimas de poliacutetico672 A partir dessas mudanccedilas jaacute era

possiacutevel prever uma grande transformaccedilatildeo dentro da estrutura sociopoliacutetica da

cidade Pois com a sua necessidade de participaccedilatildeo cada vez mais frequente na

guerra essa classe meacutedia emergente comeccedila agora a reivindicar o seu espaccedilo

poliacutetico dentro das decisotildees do estado E consequentemente essa atitude comeccedila a

desconstruir o monopoacutelio poliacutetico mantido anteriormente pela classe dos

aristocratas que fundamentavam o seu status atraveacutes do parentesco sanguiacuteneo com

a religiatildeo tradicional e que por sua vez mantinha laccedilos com a estrutura da antiga

realeza micecircnica

670 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV 671 Eacute importante notar que o estatuto do cidadatildeo tanto no acircmbito militar e poliacutetico estaacute sempre associado com a emancipaccedilatildeo econocircmica 672 Politeacutes (πολιτης) e politikoacutes (πολιτικός) Notem que ambas as palavras satildeo originadas do mesmo radical

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No capiacutetulo IV do livro da Poliacutetica673 Aristoacuteteles afirma que os homens que

pertenciam a essa classe de aristocratas eram soberbos674 A riqueza desmedida

desse pequeno grupo os tornava cegos e totalmente indiferentes agrave pobreza da

maioria da populaccedilatildeo formada por diversos trabalhadores manuais Muito antes de

Marx o filoacutesofo jaacute diagnosticava que essa caracteriacutestica negativa que demonstra

pretensatildeo de superioridade sobre os outros homens era o ponto que gerava

desequiliacutebrio dentro da estrutura sociopoliacutetica grega Para uma classe que detinha

o controle econocircmico e poliacutetico total da cidade isso era um grave erro Some-se a

isso o fato do total desrespeito ndash e despreparo para os mais diversos encargos

poliacuteticos e juriacutedicos - que gerava os mais diversos abusos propiciados pelas regalias

desfrutadas agraves custas do suor do povo A partir dessa constataccedilatildeo Aristoacuteteles no

livro da Retoacuterica675 estabelece uma importante distinccedilatildeo sobre o conceito de

nobreza Para ele haacute uma diferenccedila essencial entre a nobreza de estirpe e a de

caraacuteter A primeira eacute uma espeacutecie de heranccedila convencional (nomos) repassada

pelos antepassados aos seus familiares e que segundo ele tem o poder de

enfraquecer o espiacuterito gerando ambiccedilatildeo e desprezo pelos seus proacuteprios semelhantes

Ou seja esse eacute um tipo de status que natildeo deveria ser herdado por ningueacutem A

verdadeira nobreza eacute aquela oriunda de qualidades naturais (phyacutesis) dispostas em

cada indiviacuteduo e que se expressa atraveacutes de uma boa conduta Infelizmente natildeo era

isso o que o ocorria no passado pois a maioria dos nobres de estirpe eram pessoas

totalmente despreziacuteveis676 Esse orgulho desmedido acabava alimentando a

ambiccedilatildeo desenfreada nos espiacuteritos desses jovens Pois eles ao herdarem o nome e

os bens de suas respectivas famiacutelias tornavam-se pessoas totalmente egoiacutestas e

indiferentes ao sofrimento alheio E mais o acuacutemulo de riquezas comeccedila a atuar

como um paracircmetro valorativo para as demais questotildees da sociedade como por

exemplo o direito de participar como membro da forccedila militar Pois tudo parece

ser comprado atraveacutes da forccedila do dinheiro inclusive a fama e o poder Logo a

luxuacuteria e a ostentaccedilatildeo de poucos afetavam diretamente o senso eacutetico da maioria dos

miseraacuteveis que se amontoavam em diversas partes da cidade Por volta do seacuteculo

673 ARISTOacuteTELES Poliacutetica cap IV (1289 b e 1295b) 674 Sobre a soberba dos ricos vide PLATAtildeO Leis cap V (742 e) ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 16 (1390 b35) 675 Ibidem 676 ARISTOacuteTELES Retoacuterica cap II 15 Vide o nosso comentaacuterio sobre as personagens de Agamecircmnon e Paacuteris

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VII e VI essa crise vai eclodir em uma terriacutevel guerra civil que soacute poderaacute ser

atenuada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon677

Vimos anteriormente que essa criacutetica agrave nobreza de sangue jaacute estava contida

de modo sutil nas obras homeacutericas atraveacutes da relaccedilatildeo entre as personagens de

Aquiles Agamecircmnon e Paacuteris O filoacutesofo macedocircnio parece seguir essa mesma

orientaccedilatildeo sobretudo quando avalia os diversos tipos de constituiccedilotildees poliacuteticas

gregas Eacute importante notarmos que desde Homero ateacute Aristoacuteteles a organizaccedilatildeo

poliacutetica da cidade representa um modo de vida que tem a excelecircncia como um ideal

Logo o cuidado com os outros membros passa a ser algo vital para o bom

funcionamento do estado grego que eacute a expressatildeo de um todo orgacircnico678 A

plenitude existencial de cada indiviacuteduo depende fundamentalmente do equiliacutebrio

pleno da cidade Por isso que filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles tratam a ciecircncia

poliacutetica da sua eacutepoca a partir de uma perspectiva eacutetica679 Por esse prisma eacute possiacutevel

compreendermos a importacircncia do legado homeacuterico para o Teatro e a Filosofia

pois nele podemos encontrar uma visatildeo do homem na plenitude de suas accedilotildees e

relaccedilotildees no meio ambiente em que vive Quando esses pequenos produtores

comeccedilam a ascender economicamente uma nova etapa da histoacuteria poliacutetica grega

comeccedila a ser escrita e declamada Na obra Os trabalhos e os dias do poeta Hesiacuteodo

podemos acompanhar os pormenores dessas transformaccedilotildees que ocorreram no

interior da sociedade helecircnica que impulsionaram esse processo de distanciamento

dos valores da aristocracia Esses trabalhadores que eram explorados comeccedilam a se

organizar em grupos com o intuito de romper os grilhotildees Nesse sentido a poesia

hesioacutedica desempenha dois papeacuteis importantiacutessimos o primeiro eacute de expor a

exploraccedilatildeo sofrida pelos nobres e o segundo estabelecer uma espeacutecie de adesatildeo

entre todas as viacutetimas que sofriam com a exploraccedilatildeo e a escravidatildeo Eacute bem provaacutevel

que esses pequenos produtores que ascenderam economicamente tivessem uma

677 Sobre essa questatildeo vide o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 678 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro I 2 (1253 a 2) III 6 (1278 b 20) Para o filoacutesofo a organizaccedilatildeo da polis eacute uma criaccedilatildeo natural Logo o homem eacute por natureza um animal poliacutetico (zoon politikon ζῷον πολιτικόν) 679 Esse ponto eacute mais um indiacutecio que corrobora a tese de Pierre Hadot que afirma que a praacutetica filosoacutefica atual eacute totalmente distorcida em relaccedilatildeo ao periacuteodo antigo Para essa questatildeo vide o seguinte livro HADOT P ldquoQuest-ce que la philosophie antiquerdquo Paris Gallimard 1995 E tambeacutem BARKER Ernest ldquoGreek Political Theory Plato and his predecessorsrdquo New York Taylor and Francis 1951 cap1 paacuteg 6

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relaccedilatildeo de proximidade muito maior com esses outros trabalhadores manuais do

que com os oligarcas Nesse sentido eacute bem provaacutevel que esse pequeno grupo

tomasse a frente nas reivindicaccedilotildees e no diaacutelogo com os bem-nascidos

Na visatildeo de Aristoacuteteles680 a sociedade helecircnica era composta basicamente

entre ricos pobres e outras pessoas que viviam em uma posiccedilatildeo intermediaacuteria681

Os primeiros estatildeo armados enquanto que a maioria que pertence ao segundo grupo

natildeo possui armas e consequentemente natildeo tem acesso ao poder militar Essa

camada da populaccedilatildeo era formada basicamente por trabalhadores manuais

campesinos artesatildeos e pequenos comerciantes O mais espantoso eacute que essa

multidatildeo natildeo tinha acesso agrave cidadania Logo natildeo tinha o direito de utilizar a

palavra682 para reivindicar as suas demandas Pois como o proacuteprio Aristoacuteteles

apresenta no livro IV da Poliacutetica683 ser cidadatildeo eacute todo aquele que pode participar

ativamente do processo de manutenccedilatildeo do governo Mas o que esses trabalhadores

representavam para a sociedade grega Eacute o que vamos investigar no proacuteximo

paraacutegrafo

No livro III ele formula essa questatildeo de modo retoacuterico ao indagar se os

trabalhadores manuais poderiam ser considerados como cidadatildeos684 ldquoComo esses

trabalhadores natildeo satildeo escravos ou estrangeiros em que categoria poderiacuteamos

classificaacute-losrdquo Na sequecircncia desse capiacutetulo ele tenta encontrar um meio termo

para encontrar uma resposta loacutegica atraveacutes de uma formulaccedilatildeo que visa apresentar

vaacuterias categorias de cidadatildeo De qualquer modo a sua argumentaccedilatildeo natildeo soluciona

o problema exposto O que podemos extrair das suas reflexotildees eacute que o criteacuterio

econocircmico utilizado pela oligarquia685 no lugar da virtude686 eacute o que vai determinar

o acesso dessa minoria ao poder militar que simultaneamente vai aplicar essa

prerrogativa para justificar o controle poliacutetico da cidade Essa distorccedilatildeo vai gerar

uma tensatildeo entre uma minoria que defende esse tipo de constituiccedilatildeo e uma maioria

680 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV 681 Meacuteson (microέσον) E mais uma vez nessa passagem surge a nossa hipoacutetese eacute bem possiacutevel que a figura de Iacuteon tenha surgido dentro desse contexto Mesmo sem Aristoacuteteles citaacute-lo a partir das informaccedilotildees que ele fornece nas suas duas obras (Poliacutetica e a Constituiccedilatildeo dos atenienses) indiacutecios que alimentam a nossa teoria 682 Loacutegos (λόγος) 683 Ibidem livro IV (1283 b) 684 Ibidem livro III (1277 b) 685 Uma plutocracia 686 ἀρετήaretecirc

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de pobres que vai reagir de modo violento apoacutes um longo periacuteodo de escravidatildeo

por diacutevidas ateacute resultar em um novo modelo poliacutetico denominado democracia que

alcanccedilou a sua plenitude apoacutes as reformas do legislador Clistenes Na argumentaccedilatildeo

aristoteacutelica essa nova forma de constituiccedilatildeo eacute um efeito colateral da primeira Ou

seja ela surge de um erro provocado pelos oligarcas Logo ambas natildeo expressam

em sua totalidade a justiccedila suprema em que uma constituiccedilatildeo ideal deveria se pautar

Ele reconhece que nos dois sistemas poliacuteticos o criteacuterio de justiccedila eacute parcial pois

natildeo funciona para todos mas apenas para aqueles que satildeo considerados iguais687

A sua anaacutelise epistemoloacutegica parece estar em total consonacircncia com as criacuteticas que

o seu mestre Platatildeo apresenta sobre esses modelos poliacuteticos no livro VI VII e IV

da Repuacuteblica688 Para o mestre da academia todas as constituiccedilotildees689 poliacuteticas tem

um ciclo vital como qualquer ser vivo690 Ou seja um comeccedilo meio e fim Um

momento de pleno vigor e outro de decadecircncia A oligarquia e a democracia satildeo

degeneraccedilotildees oriundas da aristocracia Utilizando uma formulaccedilatildeo apresentada por

Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias691 ele declara que essa discoacuterdia entre os

nobres e o povo que ele denomina em termos assaz poeacuteticos como uma batalha

entre a raccedila de ferro e de bronze satildeo motivadas pela ganacircncia e o lucro692 Para

Platatildeo assim como Aristoacuteteles a constituiccedilatildeo ideal deveria ser norteada693 pela

virtude As indagaccedilotildees que o filoacutesofo-poeta apresenta na sua Repuacuteblica por

exemplo tentam buscar uma nova forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que respeite esse

princiacutepio para formaccedilatildeo harmocircnica da cidade Eacute notoacuterio que a sua tentativa de

instalar esse governo em Siracusa foi um tremendo fracasso694 Ateacute o periacuteodo

claacutessico a constituiccedilatildeo poliacutetica grega sobretudo em Atenas que mais vigorou foi o

regime democraacutetico que possibilitou a participaccedilatildeo da maioria excluiacuteda na

constituiccedilatildeo oligaacuterquica Eacute importante ressaltar que esse tipo de constituiccedilatildeo

687 ἴσοςisos esse radical vai gerar o termo isonomia (ἰσονοmicroία) Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo ἰσονοmicro-ία Ion -ιη ἡ equal distribution equilibrium balance δυνάmicroεων Alcmaeon 4 cf Ti Locr 99b Epicur Fr 352 II equality of political rights Hdt 380 142 ἰ ποιεῖν Id 537 opp δυναστεία Th 478 ἰ πολιτική Id 382 ἰ ἐν γυναιξὶ πρὸς ἄνδρας καὶ ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας Pl R 563b 688 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo livro VI (488 a-489 a) VIII (544 c ndash 562 a) e IX 689 Seguindo a ordem estabelecida por Platatildeo no livro VIII Aristocracia Timocracia oligarquia democracia e tirania 690 Eacute a partir dessa constataccedilatildeo que Aristoacuteteles vai desenvolver a sua tese da polis como algo natural e tambeacutem do homem como um animal poliacutetico 691 Erga kaiacute Hemeacuterai (Ἔργα καὶ Ἡmicroέραι) 692 PLATAtildeO ldquoRepuacuteblicardquo VIII (547 b) 693 Ibidem livro VIII (556 a-b) 694 PLATAtildeO ldquoCarta VIIrdquo

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tambeacutem sofreu diversas modificaccedilotildees que satildeo expostas e analisadas no livro da

Poliacutetica por Aristoacuteteles

Para o filoacutesofo macedocircnio essa classe meacutedia formada por pequenos

produtores que estava em uma zona intermediaacuteria entre nobres e pobres seraacute em

sua visatildeo695 a mais apta a estabelecer um governo justo para todos os indiviacuteduos na

cidade Mas o ponto central para a nossa presente anaacutelise eacute que ele reconhece que

a durabilidade do regime democraacutetico eacute totalmente dependente da intervenccedilatildeo da

classe meacutedia696 pois esse elemento intermediaacuterio eacute muito mais numeroso e

consistente ao estabelecer a uniatildeo entre ambos os lados - os ricos e pobres - com o

objetivo de evitar que se produzam excessos contraacuterios Para justificar a sua tese o

estagirita tem em mente o terriacutevel incidente que levou Atenas a uma das mais

sangrentas guerras civis que ocorreu entre os seacuteculos VII e VI Por isso que ele

destaca que os melhores legisladores gregos satildeo Soacutelon Licurgo e Carondas697 pois

todos esses homens citados aleacutem de possuiacuterem uma nobreza genuiacutena de caraacuteter

eles tambeacutem se destacaram por atuar com extrema eficiecircncia e coragem em

momentos de crise698 O detalhe mais importante eacute que todos esses poliacuteticos eram

oriundos dessa bendita classe intermediaacuteria Essa explanaccedilatildeo a favor desse regime

poliacutetico a partir do auxiacutelio desses homens do centro ndash que eacute embasada na cuidadosa

anaacutelise histoacuterica efetuada pelo filoacutesofo - indica para noacutes que a grande revoluccedilatildeo699

que ocorreu atraveacutes da reforma hopliacutetica por volta dos seacuteculos VIII e VII pode estar

relacionada com o surgimento do proacuteprio processo democraacutetico A nossa hipoacutetese

695 Vide ARISTOacuteTELES ldquoPoliacuteticardquo livro IV (1295 b) 696 Ibidem livro IV (1296 a) 697 Soacutelon foi um poeta legislador responsaacutevel por estabelecer a primeira base para a fundaccedilatildeo do regime democraacutetico em Atenas Carondas foi um legislador da cidade de Catacircnia na Siacutecilia sul da Itaacutelia por volta do seacuteculo VII aC Licurgo foi um dos espartanos mais famosos na antiguidade Aleacutem de estabelecer o coacutedigo juriacutedico e educacional de Esparta ele tambeacutem foi responsaacutevel por resgatar as obras de Homero que estavam desaparecendo em sua eacutepoca Para mais informaccedilatildeo vide o livro de Plutarco sobre a sua vida 698 Eacute estranho notar que Aristoacuteteles natildeo menciona o legislador Clistenes dentro desse contexto As reformas de Clistenes satildeo mencionadas de modo sucinto na primeira parte da Constituiccedilatildeo dos atenienses 699 Sobre esse ponto haacute duas teses que seguem em direccedilotildees opostas a primeira eacute a que defende que esse processo ocorreu de forma lenta e gradual Para essa linha exegeacutetica vide o seguinte livro M Finley ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 Enquanto que a segunda interpretaccedilatildeo defende que houve de fato uma revoluccedilatildeo a partir do desenvolvimento da tecnologia na aacuterea militar Para essa interpretaccedilatildeo vide as contribuiccedilotildees de Claude Mosseacute no seguinte livro C Mosseacute ldquoA Greacutecia Arcaica de Homero a Eacutesquilordquo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo M Detienne ldquoLa phalange problegravemes et controversiesrdquo in JP Vernant (Ed) Problegravemes de la guerre en Gregravece Ancienne Paris Eacuteditions EHESS 1985 pp 119-142

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fundamenta-se em dois importantes detalhes fornecidos pelo proacuteprio Aristoacuteteles O

primeiro eacute que a conduta desses grandes homens estava em total consonacircncia com

o ideal de respeito e confianccedila pelo outro que torna um paradigma valorativo e

normativo para todos os gregos ateacute o periacuteodo claacutessico e que tem origem nessa nova

forma de combate hoplita O segundo aspecto e natildeo menos importante eacute o fato de

esses homens serem extremamente respeitados pelos oligarcas e o povo Caso

contraacuterio seria praticamente impossiacutevel solucionar a crise existente entre esses dois

grupos sociais que representavam os pontos mais extremos da cidade Essa

intermediaccedilatildeo foi importante para formaccedilatildeo de uma forccedila militar mais consistente

e numerosa700 Esse aspecto foi responsaacutevel por promover uma abertura poliacutetica que

pode ter sido condicionada como apontamos anteriormente por fatores de ordem

interna e externa Para o primeiro que foi amplamente exposto nos paraacutegrafos

anteriores refere-se ao fato de essa minoria explorar de forma vil a maioria dos

trabalhadores humildes que sustentavam a estrutura econocircmica da cidade Segundo

as fontes fornecidas por Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo701 e

Dioacutegenes de Laeacutercio702 os trabalhadores do campo viviam nas terras desses nobres

de modo muito precaacuterio Em contrapartida esses campesinos tinham que pagar

altiacutessimas taxas para poderem trabalhar no campo Com a dificuldade de plantio

essas famiacutelias criavam altiacutessimas diacutevidas para manter o cultivo e a sua proacutepria

subsistecircncia E para piorar os nobres obrigavam esses trabalhadores a assinarem

um pacto no qual a garantia desse acordo era selada com a proacutepria vida Ou seja

todos aqueles que natildeo pudessem pagar as suas diacutevidas tornavam-se escravos dos

seus credores que os mantinham como um servo permanente em seus lares ou

entatildeo eram postos agrave venda como mercadorias para outras cidades Muitos desses

trabalhadores eram obrigados a entregarem os seus proacuteprios filhos e esposas para

quitarem as suas diacutevidas Essa situaccedilatildeo ficou insustentaacutevel e gerou uma terriacutevel

guerra civil que soacute pocircde ser solucionada com a intervenccedilatildeo do poeta legislador

Soacutelon

700 E mais uma vez nos vem agrave lembranccedila do lendaacuterio rei general Iacuteon que eacute mencionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles na ldquoConstituiccedilatildeo dos ateniensesrdquo com um dos responsaacuteveis por modificar a constituiccedilatildeo original 701 ARISTOacuteTELES ldquoConstituiccedilatildeo dos Ateniensesrdquo (63) Sobre essa questatildeo vide tambeacutem o seguinte artigo EMERSON F ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj Ed 28 2015 702 DIOacuteGENES DE LAEacuteRCIO ldquoVida e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustresrdquo livro I (53)

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[PLUTARCO Vida de Soacutelon cap IV] ldquoEnquanto maus existem que enriquecem Haacute muitos bons que pobres permanecem Todavia trocar a nossa bondade natildeo desejamos pela vil maldade Pois a virtude eacute firme e perduraacutevel Mas a riqueza incerta e transmudaacutevel703rdquo

Os fatores de ordem externa referem-se agraves constantes guerras entre as

cidades704 vizinhas e as inuacutemeras tentativas de invasotildees de diversos povos como

os persas O mais interessante nesses uacuteltimos aspectos apresentados eacute que essas

cidades que constantemente brigavam entre si em determinado momento se

juntaram para formar um exeacutercito de coalizatildeo contra um inimigo comum705 E esse

fator eacute tambeacutem apontado por vaacuterios helenistas (EHRENBERGER 1968) como um

dos responsaacuteveis para o surgimento do tipo singular de formaccedilatildeo sociopoliacutetica da

polis A partir dessas uacuteltimas consideraccedilotildees eacute possiacutevel nos aproximar na medida

do possiacutevel da mentalidade voltada especificamente para o acircmbito da guerra que

teve as suas maiores mudanccedilas entre o periacuteodo homeacuterico e arcaico

A grande novidade que surge entre essas duas etapas histoacutericas eacute a criaccedilatildeo da

falange hopliacutetica A nova formaccedilatildeo que estabelece uma formaccedilatildeo em linha de

escudos inaugura uma nova concepccedilatildeo de coragem que estaacute totalmente em

consonacircncia com a postura dos homens do meio que foram essenciais para

estabelecer uma uniatildeo poliacutetica na Greacutecia Vimos anteriormente que no periacuteodo

homeacuterico o valor do guerreiro aristocraacutetico estava totalmente voltado para as

faccedilanhas de cunho individual A coacutelera guerreira706 que era inspirada por alguma

703 PLUTARCO ldquoVida dos Homens Ilustresrdquo Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 704 Eacute importante ressaltar que estamos utilizando o sentido de ldquocidaderdquo na sua forma mais ampla que corresponde a um conglomerado de pessoas que habitam no mesmo espaccedilo 705 EHRENBERG Victor ldquoFrom Solon to Socratesrdquo London Methuen 1968 Cap III 706 Lyssa (λύσσα) eacute uma espeacutecie de fuacuteria guerreira Vide Liddel amp Scott λύσσ-α Att λύττα ἡ raiva fuacuteria em Hom sempre de raiva marcial κρατερὴ δέ ἑ λ δέδυκεν Il 9239 λ ἔχων ὀλοήν ib 305 λ δέ οἱ κῆρ αἰὲν ἔχε κρατερή 21542 2 apoacutes Hom furiosa loucura frenesi como foi causada pelos deuses como a de 10 λύσσης πνεύmicroατι microάργῳ A Pr 883 (ANAP) de Orestes Id CH 287 E Ou 254 etc dos Proetides B 10102 de frenesi Baco ἐλαφρὰ λ E Ba 851 θοαὶ Λύσσας κύνες das Fuacuterias ib 977 (LYR) λύσσῃ παράκοπος Ar ordm 680 Strengthd λ microανιάς S Fr 9414 λύττα ἐρωτική Pl Lg 839a λ sozinho de fuacuteria amor Theoc 347 simplesmente raiva Phld IR p77 W fanatismo περὶ τὰς αἱρέσεις Gal 8148 (pl) 3 personificada Λύσσα a deusa da loucura E HF 823 II a raiva em catildees X Uma 5726 Arist HA 604a5 Gal 1296 em cavalos Porph Abst 37 2 o verme sob a liacutengua dos catildees removido da crenccedila de que ela produz raiva Plin HN 29100

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divindade oliacutempica era o leitmotiv para realizaccedilatildeo de atitudes heroicas no campo

de batalha Esse furor despertava uma espeacutecie de ecstasy707 no espiacuterito do

combatente que se lanccedilava de modo totalmente impulsivo e insano em direccedilatildeo do

inimigo Por isso que nesse contexto a coragem estava totalmente centrada no

destaque das accedilotildees individuais Sob outra perspectiva totalmente distinta a falange

hoplita operava na guerra Para eles a coragem natildeo estava mais focada no destaque

pessoal mas na forccedila coletiva A coacutelera beacutelica eacute substituiacuteda pela prudecircncia708 e o

autocontrole Dentro desse novo contexto o domiacutenio dos impulsos709 passa a ser

algo essencial para o estabelecimento de uma moral no qual o sentido de coragem

seraacute pautado no ideal de respeito e solidariedade O primeiro registro histoacuterico

escrito dessa mudanccedila que temos notiacutecia pode ser localizado na obra de

Heroacutedoto710 que foi escrita por volta do seacuteculo IV ac No livro IX o historiador

relata a famosa batalha entre os 300 espartanos contra o exeacutercito persa Nessa

ocasiatildeo o exeacutercito espartano mesmo estando em menor nuacutemero se manteve

totalmente unido e firme na sua posiccedilatildeo como um bloco monoliacutetico formado por

homens e escudos sem recuar da sua posiccedilatildeo no combate Segundo Heroacutedoto

houve apenas um guerreiro espartano chamado Aristodemo que foi humilhado por

seus pares por ter abandonado a formaccedilatildeo durante o combate nas Termoacutepilas Apoacutes

essa censura e com o intuito de reparar a sua falta ele acaba cometendo outro erro

707 Vide Lidell amp Scott Ekstasis (ἔκστασις) εως ἡ (ἐξίστηmicroι) deslocamento ἄρθρων Hp Arte 56 πᾶσα κίνησις ἔ ἐστι τοῦ κινουmicroένου Arist reitor 406b13 mudanccedila εἰς ἀντικείmicroενα Id GA 768a27 αἱ κακίαι ἐ Identidade Ph 247a3 ἔ ἐστιν ἐν τῇ γενέσει τὸ παρὰ φύσιν τοῦ κατὰ φύσιν Id Cael 286a19 ἔ τῆς φύσεως degenerescecircncia Thphr CP 316 opp στάσις Plot 632 o movimento para o exterior ἔ ἀπὸ τοῦ παράγοντος Dam Pr 97 bis ἔ εἰς τὸ ἔξω ib 401 [Σῶmicroα] ἐν ἐκστάσει λαβὸν τὴν ὑπόστασιν Porph Enviei 36 diferenciaccedilatildeo ἔ καὶ πιῆθος Plot 6717 αἱ εἰς πλῆθος ἐ Procl em Ti 2203 D II ficando de lado Arist Rh 1361a37 (pl) b = Lat cessio bonorum 20ii9 CPR (iii dC) ἔ χρηmicroάτων Porph Abst 153 um imposto sobre as cessotildees BGU 9146 (AD ii) PLond 23052 (PTeb P184 ii) 2 distraccedilatildeo da mente de terror espanto raiva etc Hp APH 75 Prorrh 29 ἔ σιγῶσα Id Coac 65 ἔ microανική Arist Gato 10A1 ἔ τῶν λογισmicroῶν Plu Sol 8 Plot νοῦ 537 τὰ microηδὲ προσδοκώmicroεν ἔκστασιν φέρει Men 149 cf Epit 472 Epicur Fr 113 εἰς ἔ ἄγειν Longin 14 3 entrancement espanto Ev Luc 526 EvMarc 542 4 trance ActAp 1010 2217 ecstasy Plot 6911 ἔ καὶ microανία Herm Em PhDr p103A b excitaccedilatildeo de embriaguez Corn ND 30 708 Sophosyne (σωφροσύνη) Vide Lidell amp Scott σωφροσύνη [υ] Dor σωφρον-ύνα Ep e poeta σαοφροσύνη (como em Hom e na poesia depois IG 22363211 3753) ἡ bom juiacutezo prudecircncia discriccedilatildeo Od 2313 em pl ib 30 a forma comum pela primeira vez em Thgn 379 701 1138 Epich 101 αἰδὼς σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει Th 184 σ λαβεῖν Id 864 sanidade opp microανία X Mem 1116 cf ActAp 2625 2 moderaccedilatildeo nos desejos sensuais autocontrole a temperanccedila Democr 210 AR Nu 962 (ANAP) Pl 563 (ANAP) E 1131 Pl PhDr 237e etc σ τὸ κρατεῖν ἡδονῶν καὶ ἐπιθυmicroιῶν Id Smp 196C σ τὸ περὶ τὰς γυναῖκας (sc ἔργον) Arist Pol 1263b9 cf PT 1117b23 Pl Phd 68c R 430E sq 1 EpTi 29 3 em um sentido poliacutetico uma forma moderada de governo Th 864 709 Eacute importante ressaltar que essas caracteriacutesticas podem ser encontradas em Homero 710 Heroacutedoto ldquoHistoacuteriasrdquo IX 70

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ainda mais grave lanccedila-se na direccedilatildeo do inimigo de modo totalmente impulsivo e

egoiacutesta Em detrimento dessa sua impostura ele natildeo obteve as honras fuacutenebres que

os outros guerreiros espartanos receberam apoacutes a morte711 Esse importante registro

revela uma profunda mudanccedila na eacutetica guerreira que ocorreu entre o periacuteodo

homeacuterico e arcaico que vai modular o comportamento sociopoliacutetica dos gregos

Essa nova concepccedilatildeo de coragem revela que o valor de cada indiviacuteduo soacute pode ser

manifestado dentro da reuniatildeo do seu respectivo grupo O desejo de vitoacuteria sobre o

inimigo soacute pode ser obtido atraveacutes da forccedila da amizade712 e do espiacuterito de

comunidade713 A partir dessa perspectiva nos deparamos com a total rejeiccedilatildeo dos

antigos valores aristocraacuteticos Esse indiacutecio indica que a pressatildeo para ocorrer essas

mudanccedilas possam ter sido impulsionadas pelo povo com o auxiacutelio desses homens

do meio A ostentaccedilatildeo e a soberba tornam-se praacuteticas odiosas porque podem

provocar a inveja que levaraacute ao desequiliacutebrio dentro da proacutepria estrutura

sociopoliacutetica da cidade

Essa nova mentalidade inaugura na historiografia grega uma nova forma de

comunicaccedilatildeo que se distanciaraacute da palavra maacutegico-religiosa714oriunda do periacuteodo

micecircnico O processo de laicizaccedilatildeo que ocorre simultaneamente ao lado dessa nova

concepccedilatildeo de combate em grupo torna possiacutevel o surgimento da palavra-diaacutelogo

pois ela eacute diametralmente oposta agrave forma verticalizada e fechada da palavra

maacutegico-religiosa Natildeo havia reciprocidade no ato de comunicaccedilatildeo no periacuteodo da

realeza micecircnica mesmo com a mudanccedila da organizaccedilatildeo poliacutetica esse pequeno

grupo que chegou ao controle da cidade ainda se apoiava nas antigas tradiccedilotildees da

nobreza palaciana Com as draacutesticas mudanccedilas que o ocorreram na mentalidade

grega o processo de comunicaccedilatildeo foi tornando-se mais aberto e plural715 Nesse

sentido a concepccedilatildeo de combate hoplita foi responsaacutevel por promover uma

proximidade entre os homens que soacute pocircde ser alcanccedilada a partir do momento em

que a cidade rompe os laccedilos com os valores da classe aristocraacutetica E essa mudanccedila

711 Ibidem 712 Philia (φιλiacuteα) 713 Koinonia (κοινωνία) 714 Vide o capiacutetulo 1 715 Vide o subcapiacutetulo 37

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vem atraveacutes da nova concepccedilatildeo de coragem que eacute regida pela forccedila da solidariedade

e do diaacutelogo

O ato de compartilhar os despojos de guerra que podemos ver em detalhes na

Iliacuteada de Homero716 eacute uma antiga praacutetica que contribui para o estabelecimento de

viacutenculos de proximidade e respeito muacutetuo entre os guerreiros Essa experiecircncia na

cultura grega foi tatildeo marcante que o surgimento da assembleia717 que surgiu nas

discussotildees entre os guerreiros no campo de batalha acompanharaacute o

desenvolvimento espacial da proacutepria cidade Diferentemente da organizaccedilatildeo

poliacutetica palaciana a nova organizaccedilatildeo arquitetocircnica vai estabelecer uma praccedila no

centro que seraacute aberta a todos os cidadatildeos Essa caracteriacutestica revela a importacircncia

que a palavra compartilhada e discutida ganha na vida do povo helecircnico A praccedila

de reuniatildeo torna-se um centro essencial que nortearaacute os rumos da vida poliacutetica da

polis atraveacutes do diaacutelogo da argumentaccedilatildeo e confronto de ideias No qual a

palavra718 compartilhada atuaraacute como um instrumento poliacutetico Ela seraacute a expressatildeo

da proacutepria soberania grega atraveacutes da democracia e da filosofia socraacutetico-platocircnica

716 Vide Canto I 717 Ekklesia (Εκκλησία) e Aacutegora (ἀγορά) 718 Λόγος Loacutegos Vide os nossos anexos

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Consideraccedilotildees finais

O fim uacuteltimo de toda investigaccedilatildeo filosoacutefica deve contribuir para o

desenvolvimento progressivo de formas melhores para a existecircncia humana719 A

eudaimonia para um autecircntico filoacutesofo grego antigo720 como Platatildeo consiste

exatamente em olhar para o mundo como um imenso espelho721 que reflete a sua

proacutepria imagem que se forma na multiplicidade de cores e texturas que estatildeo

escondidas na beleza invisiacutevel que talvez tenhamos a chance de encontraacute-la quando

estabelecemos uma relaccedilatildeo harmocircnica com o outro atraveacutes do diaacutelogo722 A partir

do acircmbito individual nos deparamos com o movimento que nos impulsiona agrave busca

do conhecimento que em um primeiro momento ocorre de modo solitaacuterio a partir

do reconhecimento de nossa ignoracircncia e que posteriormente mostra ao indiviacuteduo

a sua pobreza e incompletude Essa atitude eacute essencial por um lado para o homem

reconhecer a importacircncia do seu semelhante que segundo Aristoacuteteles723 eacute uma lei

natural que nos obriga a viver em comunidade de modo justo e equilibrado E por

outro essa busca abre o campo de possibilidades que demarca o proacuteprio horizonte

que estabelece a divisatildeo entre o mundo divino e humano

Segundo o filoacutesofo macedocircnio o nosso caraacuteter724 se revela em nossas

accedilotildees725 Logo o nosso senso moral precisa estar afinado com a razatildeo para que

possamos escolher o melhor caminho existencial possiacutevel Nesse sentido a

educaccedilatildeo desempenha uma das mais importantes funccedilotildees na construccedilatildeo de

qualquer sociedade pois eacute ela que fornece ao indiviacuteduo o conhecimento

fundamental para a realizaccedilatildeo de tal objetivo atraveacutes da organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica

Para os gregos a sua pedagogia partiu de todas as experiecircncias que se formaram a

partir das inuacutemeras trageacutedias humanas e naturais Elas formam a mateacuteria prima

719 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 720 Na Eacutetica a Nicocircmaco (livro I7 - 1098 a 16-18) Aristoacuteteles afirma que a plenitude existencial (Eὐδαιmicroονία Eudaimonia) resulta de um aprendizado (microάθεσις maacutethesis) somado ao exerciacutecio (ἄσκησις aacuteskesis) com o objetivo de afirmar alguma excelecircncia (ἀρετή areteacute) do indiviacuteduo 721 Razatildeoreflexatildeo 722 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e) 723 Vide Aristoacuteteles Poliacutetica (livro II 1103b ndash 10 e 25) Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo recomendamos a leitura de nossa introduccedilatildeo 724 ἔθοςeacutethos 725 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (livro I 10 94 a)

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para a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prezasse pelo fundamento da Beleza que

atuou como um criteacuterio existencial As grandes conquistas e dissabores dos povos

predecessores em seu passado mais remoto foram determinantes para a reuniatildeo de

um imenso banco mnemocircnico que foi uacutetil para a reconfiguraccedilatildeo da cultura helecircnica

apoacutes o longo - e traacutegico - periacuteodo conhecido como a idade das trevas Antes

surgiram trecircs importantes culturas que participaram de modo ativo na reuniatildeo

dessas lembranccedilas que foram empregues na estruturaccedilatildeo cultural grega a saber a

civilizaccedilatildeo ciclaacutedica minoica e micecircnica

Com o amplo trabalho efetuado pelos arqueoacutelogos antropoacutelogos e

historiadores foi possiacutevel encontrarmos uma vasta gama de materiais orgacircnicos e

inorgacircnicos que nos permitiram analisar de perto algumas caracteriacutesticas dessas

sociedades que foram catalogadas e registradas em diversas obras Infelizmente

algumas dessas importantiacutessimas fontes que foram inspiradoras para o iniacutecio dessa

presente pesquisa estavam no antigo Museu Nacional que deveria ser protegido

como um tesouro de maacuteximo valor pelo ministeacuterio da educaccedilatildeo e cultura De modo

inexplicaacutevel todo o nosso vastiacutessimo legado histoacuterico que abrangia objetos de

importantes civilizaccedilotildees antigas que foram reunidas pela famiacutelia imperial foram

consumidos pelo fogo O mesmo poder divino que outrora destruiu a cidade de

Troacuteia veio para nos mostrar que estamos agindo de modo imprudente e desmedido

Diante de tal trageacutedia foi possiacutevel nos aproximar da mesma sensaccedilatildeo de vazio que

outrora devastou Priacuteamo e que nos faz repensar toda a nossa vida em um uacutenico

instante Esse espanto que surge diante do noacutes eacute o mesmo responsaacutevel pelo

nascimento da filosofia726

Segundo Platatildeo e Aristoacuteteles o processo produzido pelo thaacuteuma faz

reconhecer a nossa ignoracircncia que estaacute atrelada diretamente com a nossa fraacutegil

condiccedilatildeo de seres mortais diante das forccedilas dos imortais A filosofia para esses

pensadores eacute fundamentalmente marcada por esse processo social e dialoacutegico que

necessita do contato entre duas almas727 de modo ativo como uma praacutetica

existencial que estaacute conectada com a esfera eacutetica epistecircmica poliacutetica juriacutedica e

pedagoacutegica Diante das consideraccedilotildees apresentadas no segundo capiacutetulo728

726 Vide o nosso primeiro capiacutetulo 727 Esse mesmo processo pode ser aplicado ao processo de intercacircmbio cultural 728 Vide o subcapiacutetulo 2 1 intitulado A palavra entre os homens e deuses

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pudemos avaliar como o processo reflexivo estava em total sintonia com a luta pela

sobrevivecircncia humana Logo nos deparamos que esse importante processo

intelectual natildeo surgiu como um passe de maacutegica durante o periacuteodo arcaico na

Greacutecia729 E a partir dessas evidecircncias que esses autores antigos fornecem em suas

respectivas obras formamos o nosso itineraacuterio investigativo que nos levou para um

territoacuterio temporal que ainda eacute desconhecido entre muitos estudantes da aacuterea da

filosofia antiga

Durante o desenvolvimento desse presente trabalho foi necessaacuterio questionar

por exemplo como ocorreu esse processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva

helecircnica E como foi exposto por noacutes anteriormente a nossa cartografia precisou

criar um caminho metodoloacutegico e estrateacutegico que nos levou diretamente para o

periacuteodo preacute-histoacuterico grego Atraveacutes do meacutetodo comparativo pudemos avaliar a

imensa riqueza dos materiais arqueoloacutegicos disponiacuteveis que foram descobertos

inicialmente pelos estudos do alematildeo Heinrich Schliemann e o britacircnico Arthur

Evans Consequentemente essas provas foram cotejadas ao lado da extensa

tradiccedilatildeo mito-poeacutetico que construiu um legado importante que reuacutene em suas

narrativas os traccedilos mais essecircncias dessas culturas predecessoras que foram

selecionadas com precisatildeo para a elevaccedilatildeo de sua proacutepria identidade cultural que

foi mantida pela poesia E nesse sentido a obra de Homero e Hesiacuteodo foram

basilares para avaliar a importacircncia desse legado que foi construiacutedo atraveacutes da

tradiccedilatildeo oral

A primeira evidecircncia que encontramos no meio desse caminho foi o caraacuteter

de mesticcedilagem730 que eacute um traccedilo diga-se de passagem detectaacutevel em todas as

culturas que antecederam os gregos Outro ponto interessante que encontramos no

decorrer desse estudo foi a descoberta que nos mostrou que a mitologia helecircnica

foi constituiacuteda durante um longo processo que se iniciou na preacute-histoacuteria grega

(NILSSON 1973) ou seja um periacuteodo muito mais recuado do que aquele

denominado por alguns historiadores como a fase preacute-homeacuterica A partir dessa

constataccedilatildeo eis que surge a seguinte questatildeo como foi possiacutevel diante de vaacuterios

processos de transiccedilatildeo e decliacutenio algumas carateriacutesticas culturais desses povos mais

antigos sobreviverem atraveacutes da mitologia ateacute depois do periacuteodo claacutessico E esse

729 Vide a tese do milagre grego defendida pelo classicista escocecircs John Burnet 730 Cruzamento eacutetnico

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problema foi um dos pontos centrais e mais interessantes que foi exposto em nossa

tese Primeiramente porque atraveacutes dele podemos compreender a grandiosidade e

a singularidade do processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega O mito

eacutepos loacutegos e o diaacutelogo satildeo os principais aspectos do longo e complexo processo de

expressatildeo e reflexatildeo que passa por diversas transformaccedilotildees para corresponder

eficientemente a cada um dos seus respectivos contextos histoacutericos Ao analisarmos

esses modos foi possiacutevel delinear a grandiosidade e a riqueza desse imenso legado

que estaacute reunido na obra homeacuterica e hesiodica

A figura responsaacutevel por manter e proteger esse tesouro humano era o aedo

A sua fama e gloacuteria ao contraacuterio dos nossos poetas modernos que se destacam

atraveacutes de suas criaccedilotildees que tentam buscar algo novo era construiacuteda na utilizaccedilatildeo

desse material tradicional mais antigo de modo original e encantador A assinatura

dos grandes aedos como Homero surgia a partir de uma releitura minuciosa de todo

esse banco mnemocircnico que permitia uma identificaccedilatildeo imediata entre todos os seus

respectivos ouvintes Nesse sentido o pleno domiacutenio das regras musicais foi

essencial para o alcance desse objetivo de manter todo o precioso legado cultural

vivo entre seus pares Esse fenocircmeno de origem divina731 para os gregos surgiu na

remota civilizaccedilatildeo ciclaacutedica e foi expandida na civilizaccedilatildeo minoica e micecircnica e

exerceu uma profunda influecircncia no processo de subjetividade grego

O uso de instrumentos musicais revela o domiacutenio de um profundo

conhecimento da harmonia que eacute uma lei necessaacuteria para ordenar o encadeamento

dos acordes que ocorre na relaccedilatildeo ou seja no diaacutelogo entre o uso da voz e dos

instrumentos musicais732 Nesse sentido nos deparamos com mais uma evidecircncia

que prova que esse tipo de estudo eacute bem anterior ao surgimento da teoria harmocircnica

de Pitaacutegoras733 E eis que surge a questatildeo como poderiacuteamos avaliar o valor desse

antigo conhecimento na cultura grega O valor dessa heranccedila pode ser mensurado

atraveacutes da estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica que acompanhou todo o processo de

731 Ou seja natildeo humana 732 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (108 b) 733 A nossa hipoacutetese eacute de que o grandes Pitaacutegoras e outros importantes pensadores desse fenocircmeno fiacutesico como Aristoxeno partiram desse imenso legado para o desenvolvimento dos seus respectivos estudos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide o nosso terceiro capiacutetulo

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florescimento literaacuterio grego O hexacircmetro dactiacutelico734 por exemplo aleacutem de

fornecer um mecanismo eficiente para as apresentaccedilotildees puacuteblicas dos aedos

tambeacutem estabelecia o proacuteprio sentido da poesia heroica A muacutesica como o

diaacutelogo735 opera por esse jogo de contraste 736 entre a tensatildeo e o ajuste entre o

ritmo e a melodia Essas satildeo as mesmas leis do pensamento que estatildeo na concepccedilatildeo

original do diaacutelogo que encontramos nas obras de Platatildeo737

Dentro desse contexto podemos nos aproximar desse magniacutefico mecanismo

que revela o processo de construccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem grega que

foi aprimorada atraveacutes da muacutesica Como foi exposto em diversas partes desse

presente trabalho a fala extraordinaacuteria inspirada pelos deuses foi o criteacuterio inicial

para a organizaccedilatildeo do mundo ordinaacuterio humano Vale ressaltar que essa capacidade

foi esculpida e ampliada em seu mais extenso uso dentro da tradiccedilatildeo oral que

exerceu a sua posiccedilatildeo de destaque ateacute o ressurgimento da escrita no periacuteodo arcaico

Como ressaltou a professora Flora em sua pesquisa sobre a muacutesica helecircnica

(LEVIN 2014) os gregos podem ter desenvolvido desde a infacircncia uma capacidade

extraordinaacuteria que foram encontradas em outras culturas aacutegrafas738 do ouvido

absoluto e relativo Pois para o alcance da excelecircncia e efetividade739 dessa

atividade se faz necessaacuterio uma educaccedilatildeo que fosse voltada para expandir a

capacidade dos sentidos que foi responsaacutevel por ampliar o processo subjetivo

coletivo grego E essa faceta tambeacutem era empregada natildeo apenas no processo

comunicativo mas sobretudo para a formaccedilatildeo militar

Uma importante referecircncia que corrobora com essa hipoacutetese pode ser

encontrada no segundo livro da Repuacuteblica740 no qual o filoacutesofo afirma que a poesia

fazia parte do primeiro processo musical que se iniciava na infacircncia antes da

734 Hexacircmetro dactiacutelico do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida Eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico utilizado na cultura oral Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica grega e latina 735 A muacutesica assim como o diaacutelogo necessita estabelecer esse contato entre duas almas para encontrarem o seu proacuteprio sentido expressivo 736 O uso do Oxiacutemoro (ὀξύmicroωρον esse termo que eacute formado por ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) ou paradoxismo eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo palavras que exprimem ideias contraacuterias Ela eacute considerada uma figura de linguagem que eacute um traccedilo que encontramos na muacutesica que marcou - como foi ressaltado por noacutes anteriormente - profundamente o processo de subjetividade grego Vide os fragmentos de Heraacuteclito 737 Vide Platatildeo Primeiro Alcebiacuteades (132 d ndash 135 a) e Teeteto (144 e 146 a 190 a) 738 Vide as nossas consideraccedilotildees no subcapiacutetulo 36 739 Vide as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto em nosso primeiro capiacutetulo 740 Vide Platatildeo Repuacuteblica (377 a) e as nossas consideraccedilotildees sobre esse ponto no subcapiacutetulo 37

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ginaacutestica741 Nesse sentido ele acompanhou todos os meandros dessa antiga

tradiccedilatildeo pedagoacutegica para desenvolver criticamente o seu meio de expressatildeo

filosoacutefico atraveacutes do diaacutelogo que por outro lado eacute a imagem de sua proacutepria

pedagogia Esse meio de expressatildeo ganha a sua plenitude apoacutes a abertura

democraacutetica742 que possibilitou entre os cidadatildeos o uso de um importante

instrumento linguiacutestico que visava manter a sua proacutepria soberania poliacutetica atraveacutes

do ideal de igualdade

741 Na antiguidade era os dois principais toacutepicos da formaccedilatildeo pedagoacutegica grega 742 A partir da intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon e das reformas de Clistenes

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9 Anexos

Mapa Grego ndash Idade do Bronze

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Tabela Cronoloacutegica

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O tocador de harpa

O tocador de harpa (Badisches Landesmuseum Karlsruhe Alemanha inventaacuterio B 864 maacutermore H 135 cm L 57 cm D 109 cm) essa eacute uma figura da civilizaccedilatildeo ciclaacutedica idade do bronze do iniacutecio do periacuteodo ciacuteclico II que foi encontrada no iniacutecio do seacuteculo 19 em uma sepultura na ilha grega de Santorini e posteriormente foi comprada em 1840 por F Maler na Itaacutelia e desde 1853 estaacute na coleccedilatildeo do Badisches Landesmuseum

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Disco de Phaistos

Esse artefato foi encontrado no palaacutecio minoico de Phaistos pelo arqueoacutelogo italiano Luigi Pernier em 1908 Essa peccedila pertence ao meio ou final do periacuteodo de Bronze

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Sacerdotiza minoica

Figura de um ritual (idade do Bronze) que foi encontrada Sarcoacutefago de Hagia Triada que pertencia a realeza minoica A foacuterminx era um instrumento similar agrave ciacutetara Poreacutem esse instrumento aleacutem de menor tinha um som menos robusto do que a ciacutetara O usos desses dois instrumentos aparecem nos poemas homeacutericos

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As ocorrecircncias do termo loacutegos na liacutengua grega

Λόγος ὁ verbal noun of λέγω (B) with senses corresponding to λέγω (B) II and III (on the various senses of the word v Theo Sm pp7273 H AnOx 4327 ) common in all periods in Prose and Verse exc Epic in which it is found in signf derived from λέγω (B) 111 cfinfr VI 1 a I computation reckoning (cf λέγω (B) II) 1 account of money handled σανίδες εἰς ἃς τὸν λ ἀναγράφοmicroεν IG 12374191 ἐδίδοσαν τὸν λ ib 2322 λ δώσεις τῶν microετεχείρισας χρηmicroάτων Hdt 3142 cf 143 οὔτε χρήmicroατα διαχειρίσας τῆς πόλεως δίδωmicroι λ αὐτῶν οὔτε ἀρχὴν ἄρξας οὐδεmicroίαν εὐθύνας ὑπέχω νῦν αὐτῆς Lys 2426 λ ἀπενεγκεῖν Arist Ath 541 ἐν ταῖς εὐθύναις τοῦ τοιούτου λ ὑπεχέτω Pl Lg 774b τὸν τῶν χρηmicroάτων λ παρὰ τούτων λαmicroβάνειν D 847 ἀδικήmicroατα εἰς ἀργυρίου λ ἀνήκοντα Din 160 συνᾶραι λόγον microετά τινος settle accounts with EvMatt 1823 etc δεύτεροι λ a second audit CodJust 14261 ὁ τραπεζιτικὸς λ banking account Theo Sm p73 H metaph οὐκ ἂν πριαίmicroην οὐδενὸς λ βροτόν S Aj 477 b public accounts i e branch of treasury ἴδιος λ in Egypt OGI 1882 1893 66938 also as title of treasurer ib 4084 Str 17112 ὁ ἐπὶ τῶν λ IPE 229 A ( Panticapaeum ) δηmicroόσιος λ = Lat fiscus OGI 66921 (Egypt i AD ) etc (but later = aerarium CodJust 1515 ) also Καίσαρος λ OGI 66930 κυριακὸς λ ib 18 2 generally account reckoning microὴ φῦναι τὸν ἅπαντα νικᾷ λ excels the whole account ie is best of all S OC 1225 (lyr) δόντας λ τῶν ἐποίησαν accounting for ie paying the penalty for their doings Hdt 8100 λ αἰτεῖν Pl Plt 285e λ δοῦναι καὶ δέξασθαι Id Prt 336c al λαmicroβάνειν λ καὶ ἐλέγχειν Id Men 75d παρασχεῖν τῶν εἰρηmicroένων λ Id R 344d λ ἀπαιτεῖν D 3015 cf Arist EN 1104a3 λ ὑπέχειν δοῦναι D 1995 λ ἐγγράψαι Id 24199 al λ ἀποφέρειν τῇ πόλει Aeschin 322 cf Eu Luc 162 EpHebr 1317 τὸ παράδοξον τῶν συmicroβεβηκότων ὑπὸ λόγον ἄγειν Plb 15342 λ ἡ ἐπιστήmicroη πολλὰ δὲ ὁ λ the account is manifold Plot 694 ἔχων λόγον τοῦ διὰ τί an account of the cause Arist APo 74b27 ἐς λ τινός on account of ἐς χρηmicroάτων λ Th 346 cf Plb 5896 LXX 2 Ma 114 JRS 18152 ( Jerash ) λόγῳ c gen by way of CodJust 325 al κατὰ λόγον τοῦ microεγέθους if we take into account his size Arist HA 517b27 πρὸς ὃν ἡmicroῖν ὁ λ EpHebr 413 cf DChr 31123 3 measure tale (cf infr 111 ) θάλασσα microετρέεται ἐς τὸν αὐτὸν λ ὁκοῖος πρόσθεν Heraclit 31 ψυχῆς ἐστι λ ἑαυτὸν αὔξων Id 115 ἐς τούτου (sc γήραος ) λ οὐ πολλοί τινες ἀπικνέονται to the point of old age Hdt 399 cf 79 β ὁ ξύmicroπας λ the full tale Th 756 cf EpPhil 415 κοινῷ λ νοmicroίσαντα common measure Pl Lg 746e sum total of expenditure IG 42(1)103151 (Epid iv BC ) ὁ τῆς οὐσίας λ = Lat patrimonii modus CodJust 151220 4 esteem consideration value put on a person or thing (cf infr VI 2 d) οὗ πλείων λ ἢ τῶν ἄλλων who is of more worth than all the rest Heraclit 39 βροτῶν λ οὐκ ἔσχεν οὐδέν A Pr 233 ου σmicroικροῦ λ S OC 1163 freq in Hdt Μαρδονίου λ οὐδεὶς γίνεται 8102 τῶν ἦν ἐλάχιστος ἀπολλυmicroένων λ 4135 cf E Fr 94 περὶ ἐmicroοῦ οὐδεὶς λ Ar Ra 87 λόγου οὐδενὸς γίνεσθαι πρός τινος to be of no account repute with Hdt 1120 cf 4138 λόγου ποιήσασθαί τινα make one of account Id 133 ἐλαχίστου πλείστου λ εἶναι to be highly lowly esteemed Id 1143 3146 but also λόγον τινὸς ποιεῖσθαι like Lat rationem habere alicujus make account of set a value on Democr 187 etc usu in neg statements οὐδένα λ ποιήσασθαί τινος Hdt 14

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cf 13 Plb 21149 etc λ ἔχειν Hdt 162 115 λ ἴσχειν περί τινος Pl Ti 87c λ ἔχειν περὶ τοὺς ποιητάς Lycurg 107 λ ἔχειν τινός D 18199 Arist EN 1102b32 Plu Phil 18 (but also have the reputation of v infr VI 2 e) ἐν οὐδενὶ λ ποιήσασθαί τι Hdt 350 ἐν οὐδενὶ λ ἀπώλοντο without regard Id 970 ἐν σmicroικρῷ λ εἶναι Pl R 550a ὑmicroεῖς οὔτ ἐν λ οὔτ ἐν ἀριθmicroῷ Orac ap Sch Theoc 1448 ἐν ἀνδρῶν λ [εἶναι] to be reckoned count as a man Hdt 3120 ἐν ἰδιώτεω λόγῳ καὶ ἀτίmicroου reckoned as EusMynd Fr 59 σεmicroνὸς εἰς ἀρετῆς λ καὶ δόξης D 19142 II relation correspondence proportion 1 generally ὑπερτερίης λ relation (of gold to lead) Thgn 418 = 1164 πρὸς λόγον τοῦ σήmicroατος A Th 519 κατὰ λόγον προβαίνοντες τιmicroῶσι in inverse ratio Hdt 1134 cf 736 κατὰ λ τῆς ἀποφορῆς Id 2109 τἄλλα κατὰ λ in like fashion Hp VM 16 Prog 17 c gen κατὰ λ τῶν πρόσθεν ib 24 κατὰ λ τῶν ἡmicroερῶν Ar Nu 619 κατὰ λ τῆς δυνάmicroεως X Cyr 8611 ἐλάττω ἢ κατὰ λ Arist HA 508a2 cf PA 671a18 ἐκ ταύτης ἐγένετο ἐκείνη κατὰ λ Id Pol 1257a31 cf εὔλογος sts with ὁ αὐτός added κατὰ τὸν αὐτὸν λ τῷ τείχεϊ in fashion like to Hdt 1186 περὶ τῶν νόσων ὁ αὐτὸς λ analogously Pl Tht 158d cf Prm 136b al εἰς τὸν αὐτὸν λ similarly Id R 353d κατὰ τὸν αὐτὸν λ in the same ratio IG 12768 by parity of reasoning Pl Cra 393c R 610a al ἀνὰ λόγον τινός τινί Id Ti 29c Alc 2145d τοῦτον ἔχει τὸν λ πρὸς ὃν ἡ παιδεία πρὸς τὴν ἀρετήν is related to as Procl in Euc p20 F al 2 Math ratio proportion ( ὁ κατ ἀνάλογον λ λ τῆς ἀναλογίας Theo Sm p73 H) Pythag 2 ἰσότης λόγων Arist EN 113a31 λ ἐστὶ δύο microεγεθω ν ἡ κατὰ πηλικότητα ποιὰ σχέσις Euc 5 Def 3 τῶν ἁρmicroονιῶν τοὺς λ Arist Metaph 985b32 cf 1092b14 λόγοι ἀριθmicroῶν numerical ratios Aristox Harm p32 M τοὺς φθόγγους ἀναγκαῖον ἐν ἀριθmicroοῦ λ λέγεσθαι πρὸς ἀλλήλους to be expressed in numerical ratios Euc SectCan Proeumlm in Metre ratio between arsis and thesis by which the rhythm is defined Aristox Harm p34 M ἐὰν ᾖ ἰσχυροτέρα τοῦ αἰσθητηρίου ἡ κίνησις λύεται ὁ λ Arist de An 424a31 ἀνὰ λόγον analogically Archyt 2 ἀνὰ λ microερισθεῖσα [ἡ ψυχή] proportionally Pl Ti 37a so κατὰ λ Men 3196 πρὸς λόγον in proportion Plb 6303 9153 (but πρὸς λόγον ἐπὶ στενὸν συνάγεται narrows uniformly Sor 19 cf DioclFr 171 ) ἐπὶ λόγον IG 5(1)1428 ( Messene ) 3 Gramm analogy rule τῷ λ τῶν microετοχικῶν τῆς συγκοπῆς by the rule of the participles of syncope Choerob in Theod 175 Gaisf 1377 H εἰπέ microοι τὸν λ τοῦ Αἴας Αἴαντος τουτέστι τον κανόνα AnOx 4328 III explanation 1 plea pretext ground ἐκ τίνος λ A Ch 515 ἐξ οὐδενὸς λ S Ph 731 ἀπὸ παντὸς λ Id OC 762 χὠ λ καλὸς προσῆν Id Ph 352 σὺν ἀφανεῖ λ Id OT 657 (lyr vl λόγων ) ἐν ἀφανει λ Antipho 559 ἐπὶ τοιούτῳ λ Hdt 6124 κατὰ τίνα λ on what ground Pl R 366b οὐδὲ πρὸς ἕνα λ to no purpose Id Prt 343d ἐπὶ τίνι λ for what reason X HG 2219 τὸν λ τοῦτον this ground of complaint Aeschin 3228 τίνι δικαίῳ λ what just cause is there Pl Grg 512c τίνι λ on what account ActAp 1029 κατὰ λόγον ἂν ἠνεσχόmicroην ὑmicroῶν reason would that ib 1814 λ ἔχειν with personal subject εἶχον ἄν τινα λ I (ie my conduct) would have admitted of an explanation Pl Ap 31b τὸν ὀρθὸν λ the true explanation ib 34b b plea case in Law or argument (cf VIII I) τὸν ἥττω λ κρείττω ποιεῖν to make the weaker case prevail ib 18b al Arist Rh 1402a24 cf Ar Nu 1042 (pl) personified ib 886 al ἀmicroύνεις τῷ τῆς ἡδονῆς λ Pl Phlb 38a ἀνοίσεις τοὺς λ αὐτῶν πρὸς τὸν θεόν LXX Ex 1819 ἐχειν λ πρός τινα to have a case ground of action against ActAp 1938 2 statement of a theory argument οὐκ ἐmicroεῦ ἀλλὰ τοῦ λ ἀκούσαντας prob in Heraclit 50 λόγον ἠδὲ νόηmicroα ἀmicroφὶς ἀληθείης discourse and reflection on reality Parm 850 δηλοῖ οὗτος ὁ λ ὅτι Democr 7 οὐκ ἔχει λόγον

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it is not arguable ie reasonable S El 466 Pl Phd 62d etc ἔχει λ D 4432 οὐδεὶς αὐτὰ καταβαλεῖ λ E Ba 202 δίκασον τὸν λ ἀκούσας Pl Lg 696b personified φησὶ οὗτος ὁ λ ib 714d cf Sph 238b Phlb 50a ὡς ὁ λ (sc λέγει ) Arist EN 1115b12 ὡς ὁ λ ὁ ὀρθὸς λέγει ib 1138b20 cf 29 ὁ λ θέλει προσβιβάζειν Phld Rh 141 cf 119 S οὐ γὰρ ἂν ἀκούσειε λόγου ἀποτρέποντος Arist EN 1179b27 λ καθαίρων Aristo Stoic 188 λόγου τυγχάνειν to be explained Phld Mus p77 K ὁ τὸν λ microου ἀκούων my teaching EvJo 524 ὁ προφητικὸς λ collect of VT prophecy 2 EpPet 119 pl ὁκόσων λόγους ἤκουσα Heraclit 108 οὐκ ἐπίθετο τοῖς ἐmicroοῖς λ Ar Nu 73 of arguments leading to a conclusion ( ὁ λ ) Pl Cri 46b τὰ αναξαγόρου βιβλία γέmicroει τούτων τῶν λ Id Ap 26d λ ἀπὸ τῶν ἀρχῶν ἐπὶ τὰς ἀρχάς Arist EN 1095a31 συλλογισmicroός ἐστι λ ἐν ᾧ τεθέντων τινῶν κτλ Id APr 24b18 λ ἀντίτυπός τε καὶ ἄπορος of a self-contradictory theory Plot 687 b ὁ περὶ θεῶν λ title of a discourse by Protagoras DL 954 ὁ αχιλλεὺς λ name of an argument ib 23 ὁ αὐξόmicroενος λ Plu 2559b καταβάλλοντες (sc λόγοι ) title of work by Protagoras SE M 760 λ σοφιστικοί Arist SE 165a34 al οἱ microαθηmicroατικοὶ λ Id Rh 1417a19 etc οἱ ἐξωτερικοὶ λ current outside the Lyceum Id Ph 217b31 al ∆ισσοὶ λ title of a philosophical treatise (= Dialex ) Λ καὶ Λογίνα name of play of Epicharmus quibble argument personified Ath 8338d c in Logic proposition whether as premiss or conclusion πρότασίς ἐστι λ καταφατικὸς ἢ ἀποφατικός τινος κατά τινος Arist APr 24a16 d rule principle law as embodying the result of λογισmicroός Pi O 222 P 135 N 431 πείθεσθαι τῷ λ ὃς ἄν microοι λογιζοmicroένῳ βέλτιστος φαίνηται Pl Cri 46b cf c ἡδονὰς τοῖς ὀρθοῖς λ ἑποmicroένας obeying right principles Id Lg 696c προαιρέσεως [ἀρχὴ] ὄρεξις καὶ λ ὁ ἕνεκά τινος principle directed to an end Arist EN 1139a32 of the final cause ἀρχὴ ὁ λ ἔν τε τοῖς κατὰ τέχνην καὶ ἐν τοῖς φύσει συνεστηκόσιν Id PA 639b15 ἀποδιδόασι τοὺς λ και τὰς αἰτίας οὗ ποιοῦσι ἑκάστου ib 18 [ τέχνη] ἕξις microετὰ λ ἀληθοῦς ποιητική Id EN 1140a10 ὀρθὸς λ true principle right rule ib 1144b27 1147b3 al κατὰ λόγον by rule consistently ὁ κατὰ λ ζῶν Pl Lg 689d cf Ti 89d τὸ κατὰ λ ζῆν opp κατὰ πάθος Arist EN 1169a5 κατὰ λ προχωρεῖν according to plan Plb 1203 3 law rule of conduct ᾧ microάλιστα διηνεκῶς ὁmicroιλοῦσι λόγῳ Heraclit 72 πολλοὶ λόγον microὴ microαθόντες ζῶσι κατὰ λόγον Democr 53 δεῖ ὑπάρχειν τὸν λ τὸν καθόλου τοῖς ἄρχουσιν universal principle Arist Pol 1286a17 ὁ νόmicroος λ ὢν ἀπό τινος φρονήσεως καὶ νοῦ Id EN 1180a21 ὁ νόmicroος ἔmicroψυχος ὢν ἑαυτῷ λ conscience Plu 2780c τὸν λ πρόχειρον ἔχειν precept Phld Piet 30 cf 102 ὁ προστακτικὸς τῶν ποιητέων ἢ microὴ λ κοινός MAnt 44 4 thesis hypothesis provisional ground ὡς ἂν εἰ λέγοι λόγον maintain a thesis Pl Prt 344b ὑποθέmicroενος ἑκάστοτε λ provisionally assuming a proposition Id Phd 100a τὸν τῆς ὁmicroοιότητος λ hypothesis of equivalence Arist Cael 296a20 5 reason ground πάντων γινοmicroένων κατὰ τὸν λ τόνδε Heraclit 1 οὕτω βαθὺν λ ἔχει Id 45 ἐκ λόγου opp microάτην Leucipp 2 microέγιστον σηmicroεῖον οὗτος ὁ λ Meliss 8 [ἐmicroπειρία] οὐκ ἔχει λ οὐδένα ὧν προσφέρει has no grounds for Pl Grg 465a microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης θείας Id Sph 265c ἡ microετα λόγου ἀληθὴς δόξα ( ἐπιστήμη ) Id Tht 201c λόγον ζητοῦσιν ὧν οὐκ ἔστι λ proof Arist Metaph 1011a12 οἱ ἁπάντων ζητοῦντες λ ἀναιροῦσι λ Thphr Metaph 26 6 formula (wider than definition but freq equivalent thereto) term expressing reason λ τῆς πολιτείας Pl R 497c ψυχῆς οὐσία τε καὶ λ essential definition Id Phdr 245e ὁ τοῦ δικαίου λ Id R 343a τὸν λ τῆς οὐσίας ib 534b cf Phd 78d τὰς πολλὰς ἐπιστήmicroας ἑνὶ λ προσειπεῖν Id Tht 148d ὁ τῆς οἰκοδοmicroήσεως λ ἔχει τὸν

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τῆς οἰκίας Arist PA 646b3 τεθείη ἂν ἴδιον ὄνοmicroα καθ ἕκαστον τῶν λ Id Metaph 1006b5 cf 1035b4 πᾶς ὁρισmicroὸς λ τίς ἐστι Id Top 102a5 ἐπὶ τῶν σχηmicroάτων λ κοινός generic definition Id de An 414b23 ἀκριβέστατος λ specific definition Id Pol 1276b24 πηγῆς λ ἔχον Ph 2477 τὸ ᾠὸν οὔτε ἀρχῆς ἔχει λ fulfils the function of Plu 2637d λ τῆς microίξεως formula i e ratio (cf supr II) of combination Arist PA 642a22 cf Metaph 993a17 7 reason law exhibited in the world-process κατὰ λόγον by law κόσmicroῳ πάντα καὶ κατὰ λ ἔχοντα Pl R 500c κατ τὸν ampλταὐτὸν αὖampγτ λ by the same law Epich 17018 ψυχῆς τὸ πᾶν τόδε διοικούσης κατὰ λ Plot 2313 esp in Stoic Philos the divine order τὸν τοῦ παντὸς λ ὃν ἔνιοι εἱmicroαρmicroένην καλοῦσιν Zeno Stoic 124 τὸ ποιοῦν τὸν ἐν [τῇ ὕλῃ] λ τὸν θεόν ibid cf 42 ὁ τοῦ κόσmicroου λ ChrysippStoic 2264 λόγος = φύσει νόmicroος Stoic 2169 κατὰ τὸν κοινὸν θεοῖς καὶ ἀνθρώποις λ MAnt 753 ὁ ὀρθὸς λ διὰ πάντων ἐρχόmicroενος ChrysippStoic 34 so in Plot τὴν φύσιν εἶναι λόγον ὃς ποιεῖ λ ἄλλον γέννηmicroα αὑτοῦ 382 b σπερmicroατικὸς λ generative principle in organisms ὁ θεὸς σπ λ τοῦ κόσmicroου Zeno Stoic 128 usu in pl Stoic 2205 314 al γίνεται τὰ ἐν τῷ παντὶ οὐ κατὰ σπερmicroατικούς ἀλλὰ κατὰ λ περιληπτικούς Plot 317 cf 4439 so without σπερmicroατικός ὥσπερ τινὲς λ τῶν microερῶν CleanthStoic 1111 οἱ λ τῶν ὅλων Ph 19 c in Neo-Platonic Philos of regulative and formative forces derived from the intelligible and operative in the sensible universe ὄντων microειζόνων λ καὶ θεωρούντων αὑτοὺς ἐγὼ γεγέννηmicroαι Plot 384 οἱ ἐν σπέρmicroατι λ πλάττουσι τὰ ζῷα οἷον microικρούς τινας κόσmicroους Id 4310 cf 3216 357 opp ὅρος Id 674 ἀφανεῖς λ τῆς φύσεως Procl in R 118 K τεχνικοὶ λ ib 142 K al IV inward debate of the soul (cf λ ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ διεξέρχεται Pl Tht 189e ( διάλογος in Sph 263e ) ὁ ἐν τῇ ψυχῇ ὁ ἔσω λ (opp ὁ ἔξω λ ) Arist APo 76b25 27 ὁ ἐνδιάθετος opp ὁ προφορικὸς λ Stoic 243 Ph 2154 ) 1 thinking reasoning τοῦ λ ἐόντος ξυνοῦ opp ἰδία φρόνησις Heraclit 2 κρῖναι δὲ λόγῳ ἔλεγχον test by reflection Parm 136 reflection deliberation (cf VI 3 ) ἐδίδου λόγον ἑωυτῷ περὶ τῆς ὄψιος Hdt 1209 cf 34 S OT 583 D 457 microὴ εἰδέναι microήτε λόγῳ microήτε ἔργῳ neither by reasoning nor by experience Anaxag 7 ἃ δὴ λόγῳ microὲν καὶ διανοίᾳ ληπτά ὄψει δ οὔ Pl R 529d cf Prm 135e ὁ λ ἢ ἡ αἴσθησις Arist EN 1149a35 al αὐτῷ microόνον τῷ λ πιστεύειν (opp αἰσθήσεις ) of Parmenides and his school Aristocl ap Eus PE 1417 hence λόγῳ or τῷ λ in idea in thought τῷ λ τέmicroνειν Pl R 525e τῷ λ δύο ἐστίν ἀχώριστα πεφυκότα two in idea though indistinguishable in fact Arist EN 1102a30 cf GC 320b14 al λόγῳ θεωρητά mentally conceived opp sensibly perceived Placit 135 cf DemetrLac Herc 105520 τοὺς λ θεωρητοὺς χρόνους Epicur Ep 1p19U διὰ λόγου θ χ ib p10 U λόγῳ καταληπτός Phld Po 520 etc ὁ λ οὕτω αἱρέει analogy proves Hdt 233 ὁ λ or λ αἱρέει reasoning convinces Id 345 6124 cf Pl Cri 48c (but our argument shows Lg 663d ) also c acc pers χρᾶται ο τι microιν λ αἱρέει as the whim took him Hdt 1132 ἢν microὴ ἡmicroέας λ αἱρῇ unless we see fit Id 4127 cf Pl R 607b later ὁ αἱρῶν λ ordaining reason Zeno Stoic 150 MAnt 25 cf 424 Arr Epict 2220 etc coupled or contrasted with other functions καθ ὕπνον ἐπειδὴ λόγου καὶ φρονήσεως οὐ microετεῖχε since reason and understanding are in abeyance Pl Ti 71d microετὰ λόγου τε καὶ ἐπιστήmicroης opp αἰτία αὐτοmicroάτη of Natures processes of production Id Sph 265c τὸ microὲν δὴ νοήσει microετὰ λόγου περιληπτόν embraced by thought with reflection opp microετ αἰσθήσεως ἀλόγου Id Ti 28a τὸ microὲν ἀεὶ microετ ἀληθοῦς λ opp τὸ δὲ ἄλογον ib 51e cf 70d al λ ἔχων ἑπόmicroενον τῷ νοεῖν Id Phlb 62a ἐπιστήmicroη ἐνοῦσα καὶ ὀρθὸς λ scientific knowledge and right process of thought Id Phd 73a πᾶς λ καὶ πᾶσα ἐπιστήmicroη τῶν καθόλου

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Arist Metaph 1059b26 τὸ λόγον ἔχον Id EN 1102b15 1138b9 al in sg and pl contrasted by Pl and Arist as theory abstract reasoning with outward experience sts with depreciatory emphasis on the former εἰς τοὺς λ καταφυγόντα Pl Phd 99e τὸν ἐν λόγοις σκοπούmicroενον τὰ ὄντα opp τὸν ἐν ἔργοις (realities) ib 100a τῇ αἰσθήσει microᾶλλον τῶν λ πιστευτέον Arist GA 760b31 γνωριmicroώτερα κατὰ τὸν λ opp κατὰ τὴν αἴσθησιν Id Ph 189a4 ἐκ τῶν λ δῆλον opp ἐκ τῆς ἐπαγωγῆς Id Mete 378b20 ἡ τῶν λ πίστις opp ἐκ τῶν ἔργων φανερόν Id Pol 1326a29 ἡ πίστις οὐ microόνον ἐπὶ τῆς αἰσθήσεως ἀλλὰ καὶ ἐπὶ τοῦ λ Id Ph 262a19 microαρτυρεῖ τὰ γιγνόmicroενα τοῖς λ Id Pol 1334a6 ὁ microὲν λ τοῦ καθόλου ἡ δὲ αἴσθησις τοῦ κατὰ microέρος explanation opp perception Id Ph 189a7 ἔσονται τοῖς λ αἱ πράξεις ἀκόλουθοι theory opp practice Epicur Sent 25 in Logic of discursive reasoning opp intuition Arist EN 1142a26 1143b1 reasoning in general ib 1149a26 πᾶς λ καὶ πᾶσα ἀπόδειξις all reasoning and demonstration Id Metaph 1063b10 λ καὶ φρόνησιν Phld Mus p105 K ὁ λ ἢ λογισmicroός ibid τὸ ἰδεῖν οὐκέτι λ ἀλλὰ microεῖζον λόγου καὶ πρὸ λόγου of mystical vision opp reasoning Plot 6910 mdashPhrases κατὰ λ τὸν εἰκότα by probable reasoning Pl Ti 30b οὔκουν τόν γ εἰκότα λ ἂν ἔχοι Id Lg 647d παρὰ λόγον opp κατὰ λ Arist RhAl 1429a29 cf EN 1167b19 cf παράλογος (but παρὰ λ unexpectedly E Ba 940 ) 2 reason as a faculty ὁ λ ἀνθρώπους κυβερνᾷ [ Epich ] 256 [ θυmicroοειδὲς] τοῦ λ κατήκοον Pl Ti 70a [ θυmicroὸς] ὑπὸ τοῦ λ ἀνακληθείς Id R 440d σύmicromicroαχον τῷ λ τὸν θυmicroόν ib b πειθαρχεῖ τῷ λ τὸ τοῦ ἐγκρατοῦς Arist EN 1102b26 ἄλλο τι παρὰ τὸν λ πεφυκός ὃ microάχεται τῷ λ ib 17 ἐναντίωσις λόγου πρὸς ἐπιθυmicroίας Plot 4713(8) οὐ θυmicroός οὐκ ἐπιθυmicroία οὐδὲ λ οὐδέ τις νόησις Id 6911 freq in Stoic Philos of human Reason opp φαντασία Zeno Stoic 139 opp φύσις Stoic 2206 οὐ σοφία οὐδὲ λ ἐστὶν ἐν [τοῖς ζῴοις ] ibid τοῖς ἀλόγοις ζῴοις ὡς λ ἔχων λ microὴ ἔχουσι χρῶ MAnt 623 ὁ λ κοινὸν πρὸς τοὺς θεούς Arr Epict 133 οἷον [εἰκὼν] λ ὁ ἐν προφορᾷ λόγου τοῦ ἐν ψυχῇ οὕτω καὶ αὐτὴ λ νοῦ Plot 513 τὸ τὸν λ σχεῖν τὴν οἰκείαν ἀρετήν (sc εὐδαιmicroονίαν ) Procl in Ti 3334 D also of the reason which pervades the universe θεῖος λ [ Epich ] 257 τὸν θεῖον λ καθ ηράκλειτον δι ἀναπνοῆς σπάσαντες νοεροὶ γινόmicroεθα SE M 7129 (cf infr x) b creative reason ἀδύνατον ἦν λόγον microὴ οὐκ ἐπὶ πάντα ἐλθεῖν Plot 3214 ἀρχὴ οὖν λ καὶ πάντα λ καὶ τὰ γινόmicroενα κατ αὐτόν Id 3215 οἱ λ πάντες ψυχαί Id 3218 V continuous statement narrative (whether fact or fiction) oration etc (cf λέγω (B) 112 ) 1 fable Hdt 1141 Αἰσώπου λόγοι Pl Phd 60d cf Arist Rh 1393b8 ὁ τοῦ κυνὸς λ X Mem 2713 2 legend ἱρὸς λ Hdt 262 cf 47 Pi P 380 (pl) συνθέντες λ E Ba 297 λ θεῖος Pl Phd 85d ἱεροὶ λ of Orphic rhapsodies Suid SV ορφεύς 3 tale story ἄλλον ἔπειmicroι λ Xenoph 71 cf Th 197 etc συνθέτους λ A Pr 686 σπουδην λόγου urgent tidings E Ba 663 ἄλλος λ another story Pl Ap 34e ὁmicroολογούmicroενος ὁ λ ἐστίν the story is consistent Isoc 327 pl histories ἐν τοῖσι ασσυρίοισι λ Hdt 1184 cf 106 299 so in sg a historical work Id 2123 619 7152 also in sg one section of such a work (like later βίβλος ) Id 238 639 cf VI 3d so in pl ἐν τοῖσι Λιβυκοῖσι λ Id 2161 cf 175 522 793 213 ἐν τῷ πρώτῳ τῶν λ Id 536 ὁ πρῶτος λ of St Lukes gospel ActAp 11 in Pl opp microῦθος as history to legend Ti 26e ποιεῖν microύθους ἀλλ οὐ λόγους Phd 61b cf Grg 523a (but microῦθον λέγειν opp λόγῳ ( argument ) διεξελθεῖν Prt 320c cf 324d ) περὶ λόγων καὶ microύθων Arist Pol 1336a30 ὁ λ microῦθός ἐστι Ael NA 434 4 speech delivered in court assembly etc χρήσοmicroαι τῇ τοῦ λ τάξει ταύτῃ Aeschin 357 cf Arist Rh 1358a38 δικανικοὶ λ Id EN 1181a4

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τρία γένη τῶν λ τῶν ῥητορικῶν συμβουλευτικόν δικανικόν ἐπιδεικτικόν Id Rh 1358b7 τῷ γράψαντι τὸν λ Thphr Char 178 cf λογογράφος 11 ἐπιτάφιος λ funeral oration Pl Mx 236b esp of the body of a speech opp ἐπίλογος Arist Rh 1420b3 opp προοίmicroιον ib 1415a12 body of a law opp proem Pl Lg 723b spoken opp written word τὸν τοῦ εἰδότος λ ζῶντα καὶ ἔmicroψυχον οὗ ὁ γεγραmicromicroένος εἴδωλόν τι Id Phdr 276a ὁ ἐκ τοῦ βιβλίου ῥηθεὶς [λ ] speech read from a roll ib 243c published speech DC 4054 rarely of the speeches in Tragedy ( ῥήσεις ) Arist Po 1450b6 9 VI verbal expression or utterance (cf λέγω (B) 111 ) rarely a single word v infr b never in Gramm signf of vocable ( ἔπος λέξις ὄνοmicroα ῥῆmicroα ) usu of a phrase cf I X 3 (the only sense found in Ep ) a pl without Art talk τὸν ἔτερπε λόγοις Il 15393 αἱmicroύλιοι λ Od 156 hMerc 317 Hes Th 890 Op 78 789 Thgn 704 AR 31141 ψευδεῖς Λ personified Hes Th 229 ἀφροδίσιοι λ Semon 791 ἀγανοῖσι λ Pi P 4101 ὄψον δὲ λ φθονεροῖσιν tales Id N 821 σmicroικροὶ λ brief words S Aj 1268 (svl) El 415 δόκησις ἀγνὼς λόγων bred of talk Id OT 681 (lyr) also in sg λέγ εἴ σοι τῷ λ τις ἡδονή speak if thou delightest in talking Id El 891 b sg expression phrase πρὶν εἰπεῖν ἐσθλὸν ἢ κακὸν λ Id Ant 1245 cf E Hipp 514 microυρίας ὡς εἰπεῖν λόγῳ Hdt 237 microακρὸς λ rigmarole Simon 189 Arist Metaph 1091a8 λ ἠρέmicroα λεχθεὶς διέθηκε τὸ πόρρω a whispered message Plot 493 ἑνὶ λόγῳ to sum up in brief phrase Pl Phdr 241e Phd 65d concisely Arist EN 1103b21 (but also = ἁπλῶς περὶ πάντων ἑνὶ λ Id GC 325a1 ) pl λ θελκτήριοι magic words E Hipp 478 rarely of single words λ εὐσύνθετος οἷον τὸ χρονοτριβεῖν Arist Rh 1406a36 οὐκ ἀπεκρίθη αὐτῇ λ answered her not a word EvMatt 1523 c coupled or contrasted with words expressed or understood signifying act fact truth etc mostly in a depreciatory sense λ ἔργου σκιή Democr 145 ὥσπερ microικρὸν παῖδα λόγοις micro ἀπατᾷς Thgn 254 λόγῳ opp ἔργῳ Democr 82 etc νηπίοισι οὐ λ ἀλλὰ ξυmicroφορὴ διδάσκαλος Id 76 ἔργῳ κοὐ λόγῳ τεκmicroαίροmicroαι A Pr 338 cf S El 59 OC 782 λόγῳ microὲν λέγουσι ἔργῳ δὲ οὐκ ἀποδεικνῦσι Hdt 48 οὐ λόγων φασίν ἡ ἀγορὴ δεῖται χαλκῶν δέ Herod 749 οὔτε λ οὔτε ἔργῳ Lys 914 λόγοις opp ψήφῳ Aeschin 233 opp νόῳ Hdt 2100 οὐ λόγῳ microαθών E Heracl 5 ἐκ λόγων κούφου πράγmicroατος Pl Lg 935a λόγοισι εἰς τὸ πιθανὸν περιπεπεmicromicroένα ib 886e cf Luc Anach 19 ἵνα microὴ λ οἴησθε εἶναι ἀλλ εἰδῆτε τὴν ἀλήθειαν Lycurg 23 cf D 3034 opp πρᾶγmicroα Arist Top 146a4 opp βία Id EN 1179b29 cf 1180a5 opp ὄντα Pl Phd 100a opp γνῶσις 2 EpCor 116 λόγῳ in pretence Hdt 1205 Pl R 361b 376d Ti 27a al λόγου ἕνεκα merely as a matter of words ἄλλως ἕνεκα λ ἐλέγετο Id Cri 46d λόγου χάριν opp ὡς ἀληθῶς Arist Pol 1280b8 but also let us say for instance Id EN 1144a33 Plb 10464 Phld Sign 29 MAnt 432 λόγου ἕνεκα let us suppose Pl Tht 191c ἕως λόγου microέχρι λ = Lat verbo tenus Plb 10247 Epict Ench 16 sts without depreciatory force the antithesis or parallelism being verbal (cf word and deed) λόγῳ τε καὶ σθένει S OC 68 ἔν τε ἔργῳ καὶ λ Pl R 382e cf DS 13101 EvLuc 2419 ActAp 722 Paus 2162 ὅσα microὲν λόγῳ εἶπον opp τὰ ἔργα τῶν πραχθέντων Th 122 2 common talk report tradition ὡς λ ἐν θνητοῖσιν ἔην Batr 8 λ ἐκ πατέρων Alc 71 οὐκ ἔστ ἔτυmicroος λ οὗτος Stesich 32 διξὸς λέγεται λ Hdt 332 λ ὑπ Αἰγυπτίων λεγόmicroενος Id 247 νέον [λ ] tidings S Ant 1289 (lyr) τὰ microὲν αὐτοὶ ὡρῶmicroεν τὰ δὲ λόγοισι ἐπυνθανόmicroεθα by hearsay Hdt 2148 also in pl ἐν γράmicromicroασιν λόγοι κείmicroενοι traditions Pl Lg 886b b rumour ἐπὶ παντὶ λ ἐπτοῆσθαι Heraclit 87 αὐδάεις λ voice of rumour B 1444 περὶ θεῶν διῆλθεν ὁ λ ὅτι Th 646 λ παρεῖχεν ὡς Plb 3893 ἐξῆλθεν ὁ λ οὗτος εῖς τινας ὅτι EvJo 2123 cf

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ActAp 1122 fiction EvMatt 2815 c mention notice description οὐκ ὕει λόγου ἄξιον οὐδέν worth mentioning Hdt 428 cf Plb 1248 etc ἔργα λόγου microέζω beyond expression Hdt 235 κρεῖσσον λόγου τὸ εἶδος τῆς νόσου beyond description Th 250 microείζω ἔργα ἢ ὡς τῷ λ τις ἂν εἴποι D 611 d the talk one occasions repute mostly in good sense good report praise honour (cf supr 14 ) πολλὰ φέρειν εἴωθε λ πταίσmicroατα Thgn 1221 λ ἐσλὸν ἀκοῦσαι Pi I 5(4)13 πλέονα λ οδυσσέος ἢ πάθαν Id N 721 ἵνα λ σε ἔχῃ πρὸς ἀνθρώπων ἀγαθός Hdt 75 cf 978 Τροίαν ἧς ἁπανταχοῦ λ whose fame story fills the world E IT 517 οὐκ ἂν ἦν λ σέθεν Id Med 541 less freq in bad sense evil report λ κακόθρους κακός S Aj 138 (anap) E Heracl 165 pl λόγους ψιθύρους πλάσσων slanders S Aj 148 (anap) e λ ἐστί ἔχει κατέχει the story goes c acc et inf ἔστ τις λ τὰν αρετὰν ναίειν Simon 581 cf S El 417 λ microὲν ἔστ ἀρχαῖος ὡς Id Tr 1 λ alone E Heracl 35 ὡς λ A Supp 230 Pl Phlb 65c etc λ ἐστί Hdt 7129 926 al λ αἰὲν ἔχει S OC 1573 (lyr) ὅσον ὁ λ κατέχει tradition prevails Th 110 also with a personal subject in the reverse construction Κλεισθένης λ ἔχει τὴν Πυθίην ἀναπεῖσαι has the credit of Hdt 566 cf Pl Epin 987b 988b λ ἔχοντα σοφίας EpCol 223 vsupr 14 3 discussion debate deliberation πολλὸς ἦν ἐν τοῖσι λ Hdt 859 συνελέχθησαν οἱ Μῆδοι ἐς τὠυτὸ καὶ ἐδίδοσαν σφίσι λόγον λέγοντες περὶ τῶν κατηκόντων Id 197 οἱ Πελασγοὶ ἑωυτοῖσι λόγους ἐδίδοσαν Id 6138 πολέmicroῳ microᾶλλον ἢ λόγοις τὰ ἐγκλήmicroατα διαλύεσθαι Th 1140 οἱ περὶ τῆς εἰρήνης λ Aeschin 274 τοῖς ἔξωθεν λ πεπλήρωκε τὸν λ [Plato] has filled his dialogue with extraneous discussions Arist Pol 1264b39 τὸ microῆκος τῶν λ DChr 7131 microεταβαίνων ὁ λ εἰς ταὐτὸν ἀφῖκται our debate Arist EN 1097a24 ὁ παρὼν λ ib 1104a11 θεῶν ὧν νῦν ὁ λ ἐστί discussion Pl Ap 26b cf Tht 184a MAnt 832 τῷ λ διελθεῖν διϊέναι Pl Prt 329c Grg 506a etc τὸν λ διεξελθεῖν conduct the debate Id Lg 893a ξυνελθεῖν ἐς λόγον confer Ar Eq 1300 freq in pl ἐς λόγους συνελθόντες parley Hdt 182 ἐς λ ἐλθεῖν τινι have speech with ib 86 ἐς λ ἀπικέσθαι τινί Id 232 διὰ λόγων ἰέναι E Tr 916 ἐmicroαυτῇ διὰ λ ἀφικόmicroην Id Med 872 ἐς λ ἄγειν τινά X HG 412 κοινωνεῖν λόγων καὶ διανοίας Arist EN 1170b12 b right of discussion or speech ἢ πὶ τῷ πλήθει λ S OC 66 λ αἰτήσασθαι ask leave to speak Th 353 λ διδόναι X HG 5220 οὐ προυτέθη σφίσιν λ κατὰ τὸν νόmicroον ib 175 λόγου τυχεῖν D 1813 cf Arist EN 1095b21 Plb 18521 οἱ λόγου τοὺς δούλους ἀποστεροῦντες Arist Pol 1260b5 δοῦλος πέφυκας οὐ microέτεστί σοι λόγου TragAdesp 304 διδόντας λ καὶ δεχοmicroένους ἐν τῷ microέρει Luc Pisc 8 hence time allowed for a speech ἐν τῷ ἐmicroῷ λ And 126 al ἐν τῷ ἑαυτοῦ λ Pl Ap 34a οὐκ ἐλάττω λ ἀνήλωκε D 189 c dialogue as a form of philosophical debate ἵνα microὴ microαχώmicroεθα ἐν τοῖς λ ἐγώ τε καὶ σύ Pl Cra 430d πρὸς ἀλλήλους τοὺς λ ποιεῖσθαι Id Prt 348a hence dialogue as a form of literature οἱ Σωκρατικοὶ λ Arist Po 1447b11 Rh 1417a20 cf διάλογος d section division of a dialogue or treatise (cf v 3 ) ὁ πρῶτος λ Pl Prm 127d ὁ πρόσθεν ὁ παρελθὼν λ Id Phlb 18e 19b ἐν τοῖς πρώτοις λ Arist PA 682a3 ἐν τοῖς περὶ κινήσεως λ in the discussion of motion (i e Ph bk 8 ) Id GC 318a4 ἐν τῷ περὶ ἐπαίνου λ Phld Rh 1219 branch department division of a system of philosophy τὴν φρόνησιν ἐκ τριῶν συνεστηκέναι λ τῶν φυσικῶν καὶ τῶν ἠθικῶν καὶ τῶν λογικῶν ChrysippStoic 2258 e in pl literature letters Pl Ax 365b Epin 975d DH Comp 1 21 (but also in pl treatises Plu 216c ) οἱ ἐπὶ λόγοις εὐδοκιmicroώτατοι Hdn 614 Λόγοι personified AP 9171 ( Pall ) VII a particular utterance saying 1 divine utterance oracle Pi P 459 λ microαντικοί Pl Phdr 275b οὐ γὰρ ἐmicroὸν ἐρῶ τὸν λ Pl Ap 20e ὁ λ τοῦ θεοῦ Apoc 12 9 2 proverb

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maxim saying Pi N 96 A Th 218 ὧδ ἔχει λ ib 225 τόνδ ἐκαίνισεν λ ὡς Critias 21 cf Pl R 330a EvJo 437 ὁ παλαιὸς λ Pl Phdr 240c cf Smp 195b Grg 499c Lg 757a 1 EpTi 115 Plu 21082e Luc Alex 9 etc τὸ τοῦ λόγου δὴ τοῦτο Herod 245 cf DChr 6624 Luc JTr 3 Alciphr 356 etc pl Arist EN 1147a21 3 assertion opp oath S OC 651 ψιλῷ λ bare word opp microαρτυρία D 2754 4 express resolution κοινῷ λ by common consent Hdt 1141 al ἐπὶ λ τοιῷδε ἐπ ᾧ τε on the following terms Id 7158 cf 926 ἐνδέξασθαι τὸν λ Id 160 cf 95 λ ἔχοντες πλεονέκτην a greedy proposal Id 7158 freq in pl terms conditions Id 933 etc 5 word of command behest A Pr 17 40 (both pl) Pers 363 ἀνθρώπους πιθανωτέρους ποιεῖν λόγῳ X Oec 139 ἐξέβαλε τὰ πνεύmicroατα λόγῳ EvMatt 816 οἱ δέκα λ the ten Commandments LXX Ex 3428 Ph 1496 VIII thing spoken of subject-matter (cf 1111 b and 2 ) λ τοῦτον ἐάσοmicroεν Thgn 1055 προπεπυσmicroένος πάντα λ the whole matter Hdt 121 cf 111 τὸν ἐόντα λ the truth of the matter ib 95 116 microετασχεῖν τοῦ λ to be in the secret ib 127 microηδενὶ ἄλλῳ τὸν λ τοῦτον ειπῃς Id 865 τίς ἦν λ S OT 684 ( = πρᾶγmicroα 699 ) περί τινος λ διελεγόmicroεθα subject question Pl Prt 314c [ τὸ προοίmicroιον] δεῖγmicroα τοῦ λ case Arist Rh 1415a12 cf 1111b τέλος δὲ παντὸς τοῦ λ ψηφίζονται the end of the matter was that Aeschin 3124 οὐκ ἔστεξε τὸν λ Plb 8125 οὐκ ἔστι σοι microερὶς οὐδὲ κλῆρος ἐν τῷ λ τούτῳ ActAp 821 ἱκανὸς αὐτῷ ὁ λ Pl Grg 512c οὐχ ὑπολείπει [Γοργίαν] ὁ λ matter for talk Arist Rh 1418a35 microηδένα λ ὑπολιπεῖν Isoc 4146 πρὸς λόγον to the point apposite οὐδὲν πρὸς λ Pl Phlb 42e cf Prt 344a ἐὰν πρὸς λ τι ᾖ Id Phlb 33c also πρὸς λόγου Id Grg 459c (s vl) 2 plot of a narrative or dramatic poem = microῦθος Arist Po 1455b17 al b in Art subject of a painting ζωγραφίας λόγοι Philostr VA 610 λ τῆς γραφῆς Id Im 125 3 thing talked of event microετὰ τοὺς λ τούτους LXX 1 Ma 733 cf ActAp 156 IX expression utterance speech regarded formally τὸ ἀπὸ [ψυχῆς] ῥεῦmicroα διὰ τοῦ στόmicroατος ἰὸν microετὰ φθόγγου λ opp διάνοια Pl Sph 263e intelligent utterance opp φωνή Arist Pol 1253a14 λ ἐστὶ φωνὴ σηmicroαντικὴ κατὰ συνθήκην Id Int 16b26 cf DiogBabStoic 3213 ὅθεν (from the heart) ὁ λ ἀναπέmicroπεται Stoic 2228 cf 244 Protagoras was nicknamed λόγος Hsch ap Sch Pl R 600c Suid λόγου πειθοῖ Democr 181 in pl eloquence Isoc 33 911 τὴν ἐν λόγοις εὐρυθmicroίαν Epicur SentPal 5p69 v d M λ ἀκριβής precise language Ar Nu 130 (pl) cf Arist Rh 1418b1 τοῦ microὴ ᾀδοmicroένου λ Pl R 398d ἡδυσmicroένος λ of rhythmical language set to music Arist Po 1449b25 ἐν παντὶ λ in all manner of utterance 1 EpCor 15 ἐν λόγοις in orations Arist Po 1459a13 λ γελοῖοι ἀσχήmicroονες ludicrous improper speech Id SE 182b15 Pol 1336b14 2 of various modes of expression esp artistic and literary ἔν τε ᾠδαῖς καὶ microύθοις καὶ λόγοις Pl Lg 664a ἐν λόγῳ καὶ ἐν ᾠδαῖς X Cyr 1425 cf Pl Lg 835b prose opp ποίησις Id R 390a opp ψιλοmicroετρία Arist Po 1448a11 opp ἔmicromicroετρα ib 1450b15 (pl) τῷ λ τοῦτο τῶν microέτρων (sc τὸ ἰαmicroβεῖον ) ὁmicroοιότατον εἶναι Id Rh 1404a31 in full ψιλοὶ λ prose ib b33 (but ψιλοὶ λ = arguments without diagrams Pl Tht 165a ) λ πεζοί opp ποιητική DH Comp 6 opp ποιήmicroατα ib 15 κοινὰ καὶ ποιηmicroάτων καὶ λόγων Phld Po 57 πεζος λ ib 27 al b of the constituents of lyric or dramatic poetry words τὸ microέλος ἐκ τριῶν λόγου τε καὶ ἁρmicroονίας καὶ ῥυθmicroοῦ Pl R 398d opp πρᾶξις Arist Po 1454a18 dramatic dialogue opp τὰ τοῦ χοροῦ ib 1449a17 3 Gramm phrase complex term opp ὄνοmicroα Id SE 165a13 λ ὀνοmicroατώδης noun- phrase Id APo 93b30 cf Rh 1407b27 expression DH Th 2 Demetr Eloc 92 b sentence complete statement ἄνθρωπος microανθάνει λόγον εἶναί φῃς ἐλάχιστόν τε καὶ πρῶτον Pl Sph 262c λ αὐτοτελής AD Synt

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36 DT 6341 ῥηθῆναι λόγῳ to be expressed in a sentence Pl Tht 202b λ ἔχειν to be capable of being so expressed ib 201e cf Arist Rh 1404b26 c language τὰ τοῦ λ microέρη parts of speech ChrysippStoic 231 SE M 9350 etc τὰ microόρια τοῦ λ DH Comp 6 microέρος λ DT 63326 AD Pron 46 al (but ἓν microέρος ampλττοῦ codgt λόγου one word Id Synt 34010 cf 33422 ) περὶ τῶν στοιχείων τοῦ λ title of work by Chrysippus X the Word or Wisdom of God personified as his agent in creation and world-government ὁ παντοδύναmicroός σου λ LXX Wi 1815 ὁ ἐκ νοὸς φωτεινὸς λ υἱὸς θεοῦ CorpHerm 16 cf Plu 2376c λ θεου δι οὗ κατεσκευάσθη [ὁ κόσmicroος ] Ph 1162 τῆς τοῦ θεοῦ σοφίας ἡ δέ ἐστιν ὁ θεοῦ λ ib 56 λ θεῖος εἰκὼν θεοῦ ib 561 cf 501 τὸν τοmicroέα τῶν συmicroπάντων [θεοῦ] λ ib 492 τὸν ἄγγελον ὅς ἐστι λ ib 122 in NT identified with the person of Christ ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λ EvJo 11 cf 14 1 EpJo 27 Apoc 1913 ὁ λ τῆς ζωῆς 1 EpJo 11

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