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ENSINO DE PROJETO ARQUITETÔNICO UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DIDÁTICAS NO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ EMERSON JOSÉ VIDIGAL

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  • ENSINO DE PROJETO ARQUITETNICOUM ESTUDO SOBRE AS PRTICAS DIDTICAS NO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    EMERSON JOS VIDIGAL

  • EMERSON JOS VIDIGAL

    ENSINO DE PROJETO ARQUITETNICO:

    UM ESTUDO SOBRE AS PRTICAS DIDTICAS NO CURSO DE ARQUITETURA E

    URBANISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    Tese de doutorado apresentada ao Curso de

    Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo

    da Universidade de So Paulo como requisito

    parcial obteno do grau de doutor.

    Orientadora: Prof. Dra. Marlene Yurgel

    SO PAULO

    2010

  • Reviso

    Maria Cristina Prigo

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Vidigal, Emerson Jos.

    Ensino de projeto arquitetnico: um estudo sobre as prticas didticas no

    curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal do Paran /

    Emerson Jos Vidigal, 2010.

    330 f. : il.

    Orientador: Marlene Yurgel

    Tese (Doutorado)Universidade de So Paulo USP. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, So Paulo, 2010

    1. Projeto. 2. Arquitetura. 3. Ensino. 4. Metodologia. Universidade de

    So Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

  • Giovana.

  • agradecimentos

    Marlene, pela serenidade e sabedoria com as quais colaborou

    para a concluso deste trabalho. Nas nossas conversas sempre

    foi possvel entrar em contato com a sua inteligncia convicta

    de arquiteta e de professora.

    Andrea Berriel, por ter me substitudo nas aulas da UFPR para

    que eu tivesse mais tempo para a concluso do texto.

    Aos professores da FAU-USP com quem troquei idias a

    respeito do ensino de projeto: Lcio Gomes Machado, Arnaldo

    Martino, Celso Lamparelli, Jlio Katinsky e Carlos Faggin. Pode

    ser que vocs no se lembrem do seu aluno, mas estas nossas

    conversas esto presentes de alguma forma nas pginas desta

    tese.

    Aos estudantes e professores que se dispuseram a participar

    das pesquisas de campo de modo voluntrio. Sem essa

    colaborao ficaria impossvel obter os dados presentes neste

    trabalho.

    Cludia Arcipreste, talvez a pesquisadora mais citada neste

    trabalho, pela troca de idias nas conversas pessoais ou por

    email. Considero o seu trabalho um dos melhores que j li sobre

    o assunto.

    A todos os amigos e companheiros de trabalho e tomara que no me esquea de citar ningum Alessandro, Andrea,

    Andrezza, Artur, Dario, Eron, Rodrigo, que me auxiliaram de

    alguma forma, mesmo que indiretamente.

    Aos professores de projeto, com quem enfrento a tarefa de me

    tornar educador, e aos coordenadores de curso por entenderem

    o meu eventual afastamento nas atividades acadmicas

    realizadas no perodo entre 2009-2010. Brulio, Carlos, Gislene,

    Josilena, Malu, Orlando, Paulo e Silvana.

    Aos meus pais e ao meu irmo pelo interesse que sempre

    demonstraram quanto ao andamento da pesquisa.

    Sem a ajuda dessas pessoas, esse texto seria ainda mais

    imperfeito do que j .

    Obrigado.

  • Aprender a angustiar-se uma aventura que todos tm de experimentar

    Soren Kierkegaard

  • 1

    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................................... 4

    1 - PRESSUPOSTOS E PROBLEMTICA DO ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA .................... 11

    1.1 UMA NOO DE ARQUITETURA ............................................................................................ 11

    1.2 O PROJETO DO EDIFCIO ...................................................................................................... 17

    1.3 O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA EM ATELI .......................................................... 23

    1.4 DESAFIOS DIDTICOS NO CAMPO DE ESTUDO DO ENSINO DE PROJETO ARQUITETNICO .. 30

    1.4.1 Sobre O Currculo De Uma Disciplina E O Papel Da Intuio Em Projeto .......................... 30

    1.4.2 Sobre Metodologias E Contedos No Ateli .................................................................... 35

    1.4.3 Sobre A Interdisciplinaridade Em Arquitetura E Os Processos Avaliativos Em Projeto ...... 39

    1.4.4 Sobre O 'Mundo Real Da Prtica' E A Relao Entre Educadores E Educandos No Ateli . 45

    2 - UMA PESQUISA DE CAMPO - O ENSINO DE PROJETO NA UFPR ............................................... 54

    2.1 BREVE PANORAMA HISTRICO DO ENSINO DE PROJETO..................................................... 54

    2.2 PRELDIO: A PESQUISA COM PROFESSORES REALIZADA DURANTE O MESTRADO ............ 58

    2.3 A PESQUISA DE CAMPO COM ESTUDANTES DA UFPR ......................................................... 60

    2.3.1 O Modelo Adotado Para A Pesquisa ............................................................................... 61

    2.3.2 A Estrutura Do Questionrio ........................................................................................... 65

    2.3.3 As Respostas Obtidas Na Pesquisa De Campo ............................................................... 71

    3 - A PROBLEMTICA DO ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA: interpretao da pesquisa

    de campo luz das teorias do ensino de projeto............................................................................ 89

    3.1 TRABALHANDO A INTERDISCIPLINARIDADE ......................................................................... 89

    3.2 - O ESCLARECIMENTO DO CONTEDO E METODOLOGIA NO ATELI DE PROJETOS ............. 93

    3.3 - DISTANCIAMENTO/APROXIMAO ENTRE O ATELI E A REALIDADE PROFISSIONAL ....... 108

    3.4 - OBJETIVIDADE NA AVALIAO DO APRENDIZADO ........................................................... 116

    3.5 O CLIMA EM SALA DE AULA E A RELAO PROFESSOR - ESTUDANTE ............................. 120

    4 - ORGANIZAO TERICA E APLICAO DE UMA METODOLOGIA: bases para o

    desenvolvimento de uma disciplina de projeto de arquitetura ..................................................... 130

    4.1 ORGANIZAO DO ESPAO DE APRENDIZAGEM DO ATELI ............................................... 130

    4.1.1 Mtodos Possveis ...................................................................................................... 131

  • 2

    4.1.2 Contedos Possveis ................................................................................................... 133

    4.1.3 Procedimentos Avaliativos Possveis............................................................................ 135

    4.1.4 Relao Entre Professor E Estudante ........................................................................... 137

    4.2 O PLANO DE ENSINO .......................................................................................................... 139

    4.2.1 Intenes A Partir Da Pesquisa De Campo ................................................................... 139

    4.2.2 Objetivos Da Disciplina ................................................................................................ 141

    4.2.3 O Contrato De Aprendizagem ....................................................................................... 143

    5 - RESULTADOS ALCANADOS NA APLICAO DE UMA METODOLOGIA PILOTO E AVALIAO

    DO ENSINO APRENDIZADO ........................................................................................................... 148

    5.1 DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA - RELATO DOS EXERCCIO E TEMTICA DAS AULAS. . 148

    5.2 A AVALIAO DA DISCIPLINA REALIZADA PELOS ESTUDANTES ........................................ 168

    5.3 RELATO DE UMA EXPERINCIA POSTERIOR ....................................................................... 178

    CONSIDERAES FINAIS E CONCLUSO...................................................................................... 182

    BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................. 178

  • 3

    RESUMO

    O objeto de estudo desse trabalho o ensino de projeto de arquitetura abordado a partir

    dos procedimentos didticos adotados na disciplina de ateli. A inteno trabalhar a disciplina de

    projeto investigando-a de dentro para fora, focando essencialmente as prticas adotadas no

    cotidiano da sala de aula de ateli. Entende-se assim que o enfoque no parta do ponto de vista de

    uma retrospectiva histrica e, tampouco, procure abordar os problemas desse ensino somente a

    partir da estrutura curricular do curso de arquitetura.

    Um dos objetivos centrais propor novos caminhos para a atividade didtica de projeto

    levando em conta a reflexo sobre a teoria pertinente ao campo. Entende-se que o ateli deve

    tornar-se um espao aberto de discusso entre os indivduos, ao mesmo tempo em que se

    procura recuperar o ateli universitrio de arquitetura como espao de produo e amadurecimento

    do projeto.

    Utilizando a escola de arquitetura da UFPR como objeto de estudo, o trabalho se

    desenvolve atravs de pesquisas de campo qualitativas envolvendo estudantes e professores.

    Ao final, sugerem-se alternativas aos modelos de ensino-aprendizado mais praticados no

    contexto atual, nacional e estrangeiro, de modo a incrementar a qualidade e organizar o espao

    didtico do ateli de projetos arquitetnicos.

  • 4

    ABSTRACT

    The object of this work is to study the architectural design education approached from the

    teaching procedures adopted in the discipline workshop. The intention is to work design studio

    investigating it from the inside out, focusing essentially on the practices daily adopted in classroom

    studio. It is understood so that the focus will not depart from the standpoint of a historical

    retrospective, and even will not to seek to the problems of teaching only from the curricular

    structure of the architecture course.

    A central objective is to propose new ways for the design studio teaching activity taking

    into account the reflection on the theory relevant to the field. It is understood that the workshop

    should become a place in which happen an open discussion between individuals, while it seeks to

    recover the studio college of architecture as space for production and maturation of the project.

    Using the architecture school at UFPR as research object, the work evolves through

    qualitative field research involving students and teachers.

    Finally, we suggest alternatives to models of teaching and learning more practiced in the

    current context, in order to increase the quality and organize the space of teaching- learning in

    architectural design studio.

  • 5

    INTRODUO

    O tema central do presente trabalho o ensino de projeto de arquitetura. Nesse sentido,

    pode-se afirmar que se trata de um texto elaborado para professores de projeto, em primeiro lugar,

    mas tambm para alunos, arquitetos e pesquisadores do ensino de reas relacionadas

    arquitetura.

    Ensinar a fazer um projeto de arquitetura desafiador para qualquer professor. Ainda mais

    quando se leva em considerao o fato de que, antes de se tornar professor de projeto, o educador

    se forma arquiteto e urbanista.

    Assim como ocorre em qualquer ensino profissional, est claro que o entendimento da

    prtica da profisso arquitetnica em si no garante que o professor saiba promover a qualidade

    do ensino-aprendizado do projeto. preciso ir alm, em busca de conhecimentos que permitam

    compreender de modo mais amplo o universo didtico das disciplinas superiores com carter

    prtico-profissional.

    Nas duas ltimas dcadas, no Brasil, tem crescido o interesse pelo debate em torno das

    questes relacionadas ao ensino de projeto de arquitetura.

    Professores da rea, em diversas escolas brasileiras, tm procurado aprofundar os

    estudos sobre esse campo, a partir da organizao de eventos relacionados ao tema os

    congressos Projetar, ocorridos na ltima dcada, so um exemplo disso e, dessa forma, tem

    crescido o nmero de publicaes a respeito do assunto.

    Frequentemente, nesses eventos e nos artigos que abordam o tema, esto presentes ou

    referenciados pesquisadores estrangeiros e professores de escolas sediadas em pases onde essa

    discusso sobre os problemas do ensino de projeto de arquitetura ocorre num horizonte de tempo

    mais amplo do que as recentes duas dcadas de reflexo acadmica do tema no Brasil.

    O interesse por essa discusso parte, em geral, de pesquisadores que so arquitetos por

    formao e sentem a necessidade de aprimorar-se no universo da disciplina e capacitar-se para

    um desempenho mais efetivo na docncia. Grande parte desses arquitetos busca realizar seus

    mestrados e doutorados como uma maneira de organizar o conhecimento cientfico de modo a

    melhorar suas prprias aulas.

    Apesar desse novo interesse em aprimoramento, comum no ensino do projeto de

  • 6

    arquitetura que se reproduzam prticas didticas apreendidas pelos professores quando ainda

    eram estudantes. Essa espcie de continuum dos procedimentos reproduz-se como modelo ao

    longo de cada gerao de professores e alunos, mesmo que, muitas vezes, conforme esta

    pesquisa procura explorar, esses hbitos acabem por reproduzir modelos que contm mais falhas

    do que acertos.

    O entendimento mais amplo das questes relacionadas a esse tipo de ensino-

    aprendizado, buscando principalmente referncias em escolas estrangeiras, de modo a contrapor

    com o quadro nacional do campo, uma das tarefas a que se prope esta tese.

    A partir da, entende-se que a ampliao do universo de abordagens e prticas em

    relao problemtica desse tipo de ensino possa servir para estruturar novas maneiras de pensar

    o ambiente de ensino e produo de projetos nas nossas universidades.

    Ao longo do texto ocorrem referncias diretas dissertao que precede esta tese. Em

    grande parte, o presente trabalho decorrncia da pesquisa realizada anteriormente sobre o ensino

    de projeto nas escolas de arquitetura de Curitiba1

    , e muitas das questes debatidas aqui so

    consequncia dessa investigao feita anteriormente com professores de projeto de arquitetura

    entre 2001 e 2003.

    O fato da dissertao de mestrado anterior ter trabalhado com uma pesquisa de campo

    somente com professores, justifica, no presente trabalho, a necessidade de aprofundar a

    investigao junto aos estudantes de arquitetura. Desde o princpio, ento, muito antes da deciso

    de qual seria o enfoque desta pesquisa, tm-se em mente a ideia de questionar e ouvir os

    estudantes para compreender qual sua viso sobre os problemas do ensino de projeto,

    contrapondo sua opinio a dos professores questionados na dissertao.

    Muitos dos aspectos aprofundados na dissertao como, por exemplo, o histrico desse

    tipo de ensino, culminando nas escolas paranaenses com foco principal na Universidade Federal

    do Paran, no so retomados na ntegra no presente trabalho. A opo aqui por aprofundar as

    prticas didticas dos atelis de projeto de arquitetura na UFPR em seu cotidiano recente,

    buscando compreender, para alm dos fatos histricos ou curriculares, como essas prticas

    podem ganhar qualidade a partir de seus procedimentos didticos e aes educativas ocorridas

    em sala de aula.

    1

    VIDIGAL, E. J. Um estudo sobre o ensino de projeto de arquitetura em Curitiba. Dissertao (Mestrado) FAU / USP, So Paulo, 2004.

  • 7

    O primeiro captulo aborda as noes elementares de arquitetura, de projeto e de ensino,

    em funo da temtica proposta para a pesquisa, observada a partir do ponto de vista do

    pesquisador. A interpretao de definies escolhidas desses conceitos permite o posicionamento

    do objeto dentro do campo de pesquisa ao mesmo tempo em que constri um quadro de

    referncia que serve de pano de fundo metodologia adotada. Alm das definies dessas noes

    elementares, nesse captulo caracterizada e explorada a problemtica do ensino de projeto de

    arquitetura atual, de modo a subsidiar a construo da pesquisa de campo investigativa, ou seja,

    constri-se a ideia de um universo a explorar no questionamento dos estudantes em campo.

    Sendo assim, a descrio dos procedimentos didticos numa aula de ateli tradicional permite o

    levantamento das deficincias desse tipo de ensino quando se compara o quadro atual das escolas

    de arquitetura com a produo terica de autores nacionais e estrangeiros sobre o tema.

    Assume-se inicialmente que a finalidade da arquitetura construir edifcios ou espaos

    abertos que possam ser utilizados e habitados pelo homem. Alm de sua dimenso humana,

    explora-se a noo de que a arquitetura indissocivel de sua tectnica, ou dimenso construtiva.

    O projeto entendido como documento produzido a partir da ao do arquiteto quando

    planeja a execuo de uma obra, interpretando e solucionando problemas pertinentes a

    determinado contexto tecnolgico/ambiental e a um programa de necessidades, este ltimo fruto

    da discusso com o cliente.

    A ao do projetista pensada na reflexo sobre a prtica, utilizando-se de

    conhecimentos de origem terica ou prtica para chegar sntese de soluo arquitetnica.

    Ao final do primeiro captulo, procura-se estruturar um panorama da problemtica desse

    tipo de ensino, fundamental para conduzir a investigao realizada na pesquisa de campo.

    O segundo captulo trata da elaborao da pesquisa de campo. Aborda-se a metodologia

    para a construo do questionrio, descrevendo o porqu da escolha dessa modalidade para

    investigar os problemas do ateli de projeto junto aos alunos. A ideia que esse captulo

    estabelea a relao de continuidade entre a pesquisa de campo realizada com professores por

    ocasio do mestrado e o presente trabalho.

    Na construo do questionrio com estudantes, procura-se, no entanto, direcionar a

  • 8

    investigao de acordo com pesquisas atuais no campo da educao, principalmente a partir das

    discusses realizadas nos eventos como o Projetar, bem como de acordo com autores centrais

    para o campo, como Schon e Boutinet, por exemplo. A partir da leitura e interpretao da teoria

    colocada por esses autores, entende-se a necessidade de organizar linhas tericas de investigao

    que estruturam o questionrio.

    Nesse mesmo captulo descreve-se a sequncia de aes concretizadas na pesquisa de

    campo propriamente dita, em forma de relato.

    Depois da elaborao do questionrio, este submetido a um teste com determinado

    nmero de alunos. Somente aps as correes necessrias, aplica-se a verso definitiva com um

    universo maior de estudantes.

    Os dados so tabulados e contrapostos a pesquisas realizadas por outros autores, bem

    como comparados s respostas dadas por professores de projeto na dissertao. A anlise das

    respostas dos alunos rene um conjunto de problemas centrais do ensino de projeto na UFPR, que

    explorado e interpretado teoricamente no terceiro captulo.

    O terceiro captulo aprofunda a discusso problemtica do ensino de projeto de

    arquitetura, iniciada ao final do primeiro captulo. A retomada dessas questes aps a aplicao do

    questionrio com os estudantes tem por finalidade interpretar a pesquisa de campo luz das

    teorias do ensino de projeto. No se trata de construir um estado da arte do ensino de projeto de

    arquitetura atual, mas de problematizar as questes prprias desse campo, detectadas na pesquisa

    de campo, levando em conta as teorias sobre o ensino de projeto estudadas por autores como:

    Phillippe Boudon, Hlio Pin, Cludia Arcipreste, Donald Schn, Ashraf Salama, Jeffrey Karl

    Ochsner, entre outros.

    Da reinterpretao terica de determinadas questes problemticas estabelecem-se

    pontos de referncia didticos passveis de serem utilizados na construo do plano de trabalho

    para uma determinada disciplina de projeto de arquitetura.

    O quarto captulo trata da organizao, em torno dos pontos de referncia abordados nos

    captulos anteriores, de uma metodologia de ensino de projeto em uma situao piloto.

    A partir da problematizao e das diretrizes identificadas no desenvolvimento do quadro

  • 9

    terico, organiza-se um plano de trabalho ou contrato de aprendizagem para uma disciplina de

    projeto do quinto ano da UFPR.

    O quinto captulo relata a experincia de aplicao, ao longo de um semestre letivo, da

    metodologia de ensino de projeto proposta. Passo a passo so descritos os procedimentos

    didticos de cada aula, baseados na teoria discutida nos captulos anteriores.

    So apresentados tambm os resultados do trabalho de cada estudante ao longo das

    aulas e ao final do curso, descrevendo as aes dos indivduos nesse processo.

    Alm disso, esse captulo aborda a avaliao final, realizada por professores e alunos,

    sobre o andamento do semestre. Essa avaliao baseada na elaborao de um novo

    questionrio, atravs do qual os estudantes podem se manifestar sobre a metodologia utilizada. A

    concluso do captulo interpreta as opinies dos estudantes, sugerindo possveis correes para

    os problemas apontados.

    Nesse mesmo captulo relatada a experincia mais recente (primeiro semestre de 2010)

    da aplicao das teorias-objeto desta tese, aprofundadas e revistas na construo e aplicao de

    um plano de ensino para uma disciplina de projeto de 2. ano na UFPR.

    As temticas exploradas no presente trabalho tratam a disciplina de projeto de arquitetura

    focando seus contedos e mtodos de ensino. Nesse sentido, investiga-se a necessidade de

    contedos tericos estruturados em conjunto com as prticas de sala de aula, questionando-se

    sobre como a teoria de projeto e os contedos advindos de outras matrias (teoria e tecnologia,

    por exemplo) interferem no processo de ensino-aprendizado do projeto de edificaes.

    Para isso, alm das pesquisas de campo investigativas, o trabalho prope a

    experimentao de novas prticas de ensino utilizadas por educadores como Boudon (2000) e

    Pin (2006), entre outros, no contexto do curso da UFPR. O objetivo disso verificar como esses

    recursos didticos agem na qualidade de ensino de projeto, pondo prova a pertinncia dos

    modelos atuais empregados nessa escola.

    Uma vez que a pesquisa sobre ensino de projeto no Brasil e especificamente no Paran

    ainda recente, mais do que estabelecer dados precisos, este trabalho pretende contribuir como um

    incio de investigao sobre o fenmeno desse tipo de ensino em Curitiba. A partir dessa

  • 10

    perspectiva, entende-se que a escolha por um universo pequeno de amostragem permite

    aprofundar determinadas leituras que a generalizao dos indivduos no permitiria, como, por

    exemplo, as relaes entre professores e alunos e os problemas que se reproduzem dentro do

    ambiente de determinada escola e que, de alguma maneira, se assemelham ou se diferenciam do

    universo do campo da arquitetura.

    Mesmo que compreenda-se o alcance limitado da amostragem e das questes tratadas,

    embora entenda-se as vantagens de se trabalhar com pequenos grupos, espera-se que outras

    questes sobre a teoria do conhecimento da rea possam ser aprofundadas em trabalhos futuros.

  • 11

    1 PRESSUPOSTOS E PROBLEMTICA DO ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA

    Com a finalidade de fundamentar a discusso a que se prope este trabalho, cujo objeto o

    ensino de projeto de arquitetura, faz-se necessrio o posicionamento com relao a alguns pressupostos

    iniciais, nesse caso, conceitos ou definies de: arquitetura, projeto de arquitetura e ensino de

    arquitetura.

    Procurando explicar esses pressupostos a partir de certo ponto de vista, busca-se um

    posicionamento do pesquisador frente s questes essenciais do campo do ensino da arquitetura e

    urbanismo.

    Ao tratar da noo de arquitetura, procura-se desmistificar a viso do arquiteto como um

    profissional ligado genialidade ou uma espcie de artista de talento nato. Considera-se tambm o

    objeto de trabalho da arquitetura como sendo o espao do edifcio construdo, ou seja, no somente o

    projeto como processo, mas tambm sua finalidade principal que se realiza na construo.

    Antes de entrar na problemtica desse tipo de ensino, procura-se traar analogias entre esse

    ensino e o escolar/tradicional.

    Admite-se tambm que a prtica do arquiteto distinta daquela desenvolvida pelo professor e

    pelos estudantes de projeto em sala de aula. Apesar disso, entende-se necessria a abordagem da

    questo da concepo no projeto em ateli na sua relao com a prtica profissional.

    Por fim, o captulo explora o objeto desta pesquisa e conclui-se com um breve posicionamento

    sobre a questo das metodologias de ensino e de projeto.

    1.1 UMA NOO DE ARQUITETURA

    O arquiteto, como profissional que pensa o espao, em essncia um prestador de servios

    comunidade. Ele um profissional chamado a planejar e organizar o espao construdo em funo das

    demandas sociais, prprias da sua poca e do lugar onde vive. Assume-se ento que o espao constitui

    o objeto central de trabalho do arquiteto.

    Definir arquitetura enquanto campo de trabalho converte-se numa tarefa difcil uma vez que a

  • 12

    profisso constitui-se num campo multidisciplinar tratado, por vezes, dentro das cincias sociais e, por

    outras, no campo das tecnologias ou mesmo das artes. Essa ambiguidade contida na ideia de uma

    profisso situada entre arte e tcnica torna difcil tambm sua compreenso por parte da sociedade. Por

    conta disso, neste trabalho, prefere-se encarar essa duplicidade arte e tcnica como parte do carter

    multidisciplinar que cerca determinadas profisses. No entanto, alm de levar em conta essa

    ambiguidade, importante, nesta pesquisa, o entendimento de que uma escola de arquitetura forma um

    arquiteto como profissional prestador de servios sociedade.

    Sobre isso, Renzo Piano (2005) aponta:

    A arquitetura um ofcio de servio, pois isso o que : um servio. A arquitetura um ofcio

    complexo porque o momento expressivo formal um momento de sntese fecundado por tudo

    aquilo que se encontra por trs da arquitetura: a histria, a sociedade, o mundo real das

    pessoas, suas emoes, esperanas e desejos; a geografia e a antropologia, o clima, a cultura

    de cada pas onde se vai trabalhar; e, de novo, a cincia e a arte. A arquitetura tambm um

    trabalho artstico, embora ao mesmo tempo seja um trabalho cientfico; este justamente seu

    feito distintivo2

    .

    Piano acredita que o trabalho dos arquitetos intimamente ligado aos demais profissionais do

    servio, como os funcionrios pblicos, os mdicos, os advogados, os varredores de rua, entre outros.

    A escolha dessa definio de arquitetura, tratada como servio, tem a inteno de desmitificar a imagem

    que a sociedade e os prprios arquitetos tm de um profissional artista, genial, dotado de caractersticas

    mpares. Essas vises, mesmo tendo a funo de caracterizar o profissional, agem tambm no sentido

    de distanci-lo ainda mais da sociedade.

    Dentro desse entendimento acredita-se que a arquitetura trata-se de um ofcio da prtica, uma

    profisso relacionada ao de pensar o espao e, consequentemente, pensar a sua construo.

    Essa abordagem est relacionada diretamente ao objeto de estudo central do trabalho, ou seja,

    o ensino de projeto de arquitetura. Um ensino baseado na ao representada pela prtica de elaborar

    projetos.

    Quando se busca uma definio ampla do que seria arquitetura, comum, nos ensaios

    acadmicos, recorrer-se ao trinmio Vitruviano: Firmitas, Utilitas e Venustas3

    .

    2

    PIANO, R. La responsabilidad del arquitecto. Entrevista a Renzo Cassigoli. Barcelona: GG, 2005.

    3

    [...] essas coisas sero realizadas de modo a que se tenham presentes os princpios da solidez (firmitas), da utilidade (utilitas) e da beleza (venustas). O princpio da solidez estar presente quando for feita a escavao dos fundamentos at o

    cho firme e se escolherem diligentemente e sem avareza as necessrias quantidades de materiais. O da funcionalidade, por

    sua vez, ser conseguido se for bem realizada e sem qualquer impedimento a adequao do uso dos solos, assim como uma

    repartio apropriada e adaptada ao tipo de exposio solar de cada um dos gneros. Finalmente, o princpio da beleza ser

    atingido quando o aspecto da obra for agradvel e elegante e as medidas das partes corresponderem a uma equilibrada lgica

  • 13

    Dividida racionalmente dessa forma solidez, utilidade e beleza a arquitetura parece ganhar

    completude e ao mesmo tempo complexidade. A necessidade de soluo da forma, da funo e da

    construo no pensamento do espao certa. No entanto, a subdiviso em conceitos racionaliza algo

    que deveria ser pensado como um todo, como um campo do conhecimento amplo, mas no indefinido.

    Entendendo a arquitetura subdividida em campos de trabalho, a partir da trade vitruviana,

    podemos compreender que forma, funo e construo renem em si respectivamente as artes, as

    cincias sociais e as tecnologias, voltando assim, mais uma vez, questo da multidisciplinaridade,

    caracterstica da profisso.

    Nessa tentativa de englobar diversos campos do conhecimento, corre-se o risco de se definir a

    arquitetura tentando ampliar sua abrangncia. Definies desse tipo, apesar de mostrarem o alcance do

    trabalho do arquiteto, correm o risco de se estruturarem como a ideia de Lcio Costa (1995):

    [...] Pode-se definir arquitetura como construo concebida com a inteno de ordenar e

    organizar plasticamente o espao, em funo de uma determinada poca, de um determinado

    meio, de uma determinada tcnica e de um determinado programa4

    .

    Apesar da aparente ambiguidade dessa definio, Lcio Costa consegue aqui sintetizar os

    elementos vitruvianos em torno da questo construtiva, acrescentando o meio e a poca para situar o

    exerccio da profisso no espao-tempo, definindo assim o lugar da arquitetura. Os aspectos sociais

    no esto ausentes, quando ele coloca a noo de programa, mas a nfase construtiva arquitetura como

    construo sobressai.

    Assume-se que no trecho arquitetura como construo concebida o termo construo refere-

    se coisa e no a um processo, ou seja, a arquitetura entendida no objeto materializado edifcio.

    Para efeito de posicionamento frente a uma viso sobre a profisso, neste trabalho, assume-se

    que a arquitetura se manifesta plenamente no espao construdo, realizado, concretizado. Com isso, o

    ensino do pensar esse objeto necessariamente concreto torna-se desafiador, uma vez que no ambiente

    universitrio difcil levar a cabo qualquer iniciativa de construir algo real, material e habitvel. Mesmo

    que a arquitetura se manifeste na obra construda, na escola o aluno no tem acesso a essa

    concretizao de obra edificada em completude. Da o papel importante dos documentos que compem

    o projeto arquitetnico como meio de se compreender e estudar os problemas referentes concepo do

    espao.

    de comensurabilidade, em: VITRVIO. Tratado de arquitetura. So Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 82. 4

    COSTA, L. Registro de uma vivncia. So Paulo: Empresa das Artes, 1995. p. 246.

  • 14

    Assumir que a arquitetura se manifesta no espao construdo no significa, portanto,

    desconsiderar a contribuio que obras no construdas, realizadas somente em projeto, tm no debate

    dessa rea. Na histria, h exemplos de projetos nunca construdos que tiveram papel importante para a

    discusso da arquitetura, haja vista os projetos de Le Corbusier no concludos ou os projetos de

    tienne-Louis Boulle. Entende-se que estes projetos fazem parte da construo cultural prpria da

    arquitetura mas, como no foram construdos, habitados, vivenciados no dia a dia, no podem ser

    considerados propriamente arquitetura. Esses projetos servem ento como objetos de estudo, para

    compreenso da cultura arquitetnica, mas no como espaos passveis de serem vivenciados.

    Uma vez que se assume essa ideia de arquitetura como construo, restringe-se o papel do

    projeto e dos sistemas de ensino como um meio para se atingir o objetivo de concretizar.

    Kenneth Frampton (2008) defende esse ponto de vista: a arquitetura deve necessariamente

    expressar-se na forma estrutural e construtiva5.

    Admitindo-se que a possibilidade de expresso da arquitetura est conectada forma estrutural

    e construtiva, pode-se afirmar que a construo do edifcio possibilita a materializao dessa forma, bem

    como a sua experincia espacial posterior pelos usurios.

    No faz sentido ento pensar o objeto arquitetnico para no ser construdo e, alm disso,

    certo que sua experincia espacial real s existe quando da sua concluso, permitindo estud-lo de

    modo global.

    Apesar dos sistemas de representao virtual do objeto arquitetnico terem evoludo

    consideravelmente nas duas ltimas dcadas, por conta dos recursos computacionais, ainda no temos

    condies de experimentar o espao construdo da mesma maneira em que isso ocorre quando

    visitamos um edifcio.

    Afinal, o que se defende com essa constatao o entendimento de que a arquitetura trata-se

    de algo realizado na obra concreta, no canteiro acabado. Fato esse que influencia o arquiteto em seu

    processo de concepo e, quando isso ocorre, afeta tambm a maneira como definimos essa profisso

    e ensinamos as necessrias competncias e habilidades na escola. Sobre essa questo temos ainda o

    ponto de vista de Pin (2006):

    A construo a condio da arquitetura e a tectonicidade um valor inequvoco dos seus

    produtos: qualquer edifcio melhora substancialmente ao atender aos aspectos construtivos que

    5

    FRAMPTON, Kenneth. Rappel lordre: argumentos em favor da tectnica. In: NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura. So Paulo: CosacNaify, 2008. p. 558.

  • 15

    foram previstos para a sua realizao [...]6

    .

    Mesmo a definio Vitruviana trata arquitetura como Aedificatio, composta pelos trs princpios

    j citados. A arquitetura ento amplia sua significao para o campo da cultura tectnica.

    Nesse sentido, Hlio Pin, no eplogo de seu livro Teoria do projeto, como veremos adiante,

    considera que a adoo de um sistema construtivo a primeira ao do processo de conceber em

    arquitetura.

    Seja o ato construtivo a primeira ao ou no, a discusso em torno do entendimento da

    arquitetura como obra construda se torna mais ampla quando se recorre questo da relao entre arte

    e tcnica nesse campo de trabalho.

    Sobre isso, Teixeira (2005)7

    cita Edgar Graeff, na obra Arte e tcnica na viso do arquiteto

    (1995), acreditando existir um divrcio entre a concepo-projeto da obra e sua realizao-construo.

    Para Graeff, o divrcio entre arte e tcnica na arquitetura comea com o distanciamento entre teoria e

    prtica, o desenho/proposta terica e a construo/realizao prtica da obra, vale dizer, do espao.

    O distanciamento do arquiteto do canteiro de obras tem origens histricas na passagem da

    Idade Mdia ao Renascimento. Como este trabalho no se prope ao enfoque histrico, trata-se ento de

    entender o que significa o desligamento do canteiro de obras para a produo arquitetnica atual, na sua

    relao com o ensino de projeto, questo abordada nos prximos captulos.

    Outra maneira de posicionar-se frente a uma noo de arquitetura relacion-la questo do

    espao habitvel.

    Para Heidegger h uma conexo clara entre a construo e o pensamento. Em seu ensaio,

    Construir, habitar, pensar, de 1951, o filsofo alemo traa uma analogia entre os verbos em alemo

    bau (construir) e bin (ser/estar).

    Nesse ensaio ele coloca:

    Parece que s possvel habitar o que se constri. Este, o construir, tem aquele, o habitar,

    como meta. [...] As construes que no so uma habitao ainda continuam a se determinar

    pelo habitar uma vez que servem para o habitar do homem. Habitar seria, em todo caso, o fim

    que se impe a todo construir. Habitar e construir encontram-se, assim, numa relao de meios

    e fins. Pensando desse modo, porm, tomamos habitar e construir por duas atividades

    separadas, o que no deixa de ser uma representao correta. As relaes essenciais no se

    deixam, contudo, representar adequadamente atravs do esquema meio-fim. Construir no ,

    6

    PIN, H. Teoria do projeto. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006. p. 126.

    7

    TEIXEIRA, K. A. Ensino de projeto: integrao de contedos. Tese (Doutorado) FAU / USP, So Paulo, 2005.

  • 16

    em sentido prprio, apenas meio para uma habitao. Construir j em si mesmo habitar8

    .

    O texto esclarece que a finalidade da construo tambm o habitar, mas, alm disso,

    Heidegger defende que o ato de construir em si mesmo habitar. Essa interpretao filosfica da

    questo construtiva aproxima ainda mais a definio de arquitetura da noo de espao construdo.

    Habitar utilizar, morar, percorrer um espao, tornar ntima a experincia humana em relao

    arquitetura. Construir, seja meio ou fim, o que diz respeito ao arquiteto quando atua, mesmo que

    atravs do desenho, no projeto.

    Sobre essa questo da habitao, Cristian Cox (2005) acredita que os encargos propostos ao

    arquiteto pelo cliente so bastante objetivos. Ele divide o exerccio do pensar a arquitetura em duas fases,

    a primeira delas a que ele chama de fase de inteligncia do problema. Nessa fase de abordagem inicial

    do problema surgem questes bastante bsicas. Entre essas questes bsicas, a primeira que Cox

    discute a necessidade de habitabilidade na obra de arquitetura.

    Esse termo habitabilidade est diretamente ligado s questes como a finalidade da

    edificao, seu uso especfico. Isso tem tambm parentesco com as noes da comodidade e

    funcionalidade de Vitrvio.

    O autor acredita que a qualidade da obra de arquitetura depende de trs fatores bsicos:

    qualidade da habitabilidade especfica,

    qualidade da estratgia formal,

    coerncia entre ambas as qualidades9

    .

    A viso de Cox encadeia-se com a de Heidegger e Pin e vai alm quando aborda a relao

    entre estratgia formal e habitabilidade.

    Entende-se ento, no presente trabalho, que a arquitetura o espao habitvel construdo pelo

    homem. Espao pensado na relao de unicidade entre forma, funo e construo.

    Acredita-se tambm que, conforme citado anteriormente, como campo disciplinar, a arquitetura

    rene qualidades pertinentes tanto ao pensamento tcnico quanto artstico.

    Com a inteno de situar o campo terico disciplinar da arquitetura, recorre-se ento a alguns

    8

    HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. Traduo de: Marcia S Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Prourb - FAU /

    UFRJ, 2006. p. 126. [Bauen, Wohnen, Denken] (1951) Conferncia pronunciada por ocasio da Segunda Reunio de Darmastad, publicada em Vortge und Aufstze, G. Neske, Pfullingen, 1954. 9

    COX, C. F. El orden complejo de la arquitectura. Santiago: Imprenta Salesianos, 2005 p. 62.

  • 17

    autores que apresentaram definies clssicas desse objeto de estudo.

    As noes de arquitetura que possuem maior familiaridade com a dimenso prtica do projeto

    de edifcios e, consequentemente, com os seus processos de ensino-aprendizagem, refletem as vises

    colocadas acima, bem como aproximam o ofcio dessa atividade ideia da prestao de servios.

    Das inmeras definies de arquitetura no tratadas neste trabalho, entende-se que as mais

    teis e pertinentes em relao ao que se pretende discutir so aquelas que relacionam a arquitetura com

    as noes de: servio, construo e espao habitvel.

    Para se compreender o enfoque pretendido com esse texto, necessrio ter em conta que a

    nebulosidade, muitas vezes presente nos processos de entendimento do pensar a arquitetura, decorre,

    no s das questes filosficas particulares ao campo profissional do servio prestado pelo arquiteto,

    mas tambm do distanciamento existente entre o pensar essa atividade em sua relao com a ideia de

    concretizao ou, mais precisamente, de materializao do edifcio.

    Assumindo-se essa caracterstica como uma verdade implcita arquitetura possvel ento

    entender como trabalhar no ensino-aprendizado dessa profisso.

    1.2 O PROJETO DO EDIFCIO

    Projeto significa plano, intento, desenho. Algo que se planeja, premedita, e organiza para se

    executar uma ao futura.

    A palavra que designa a ao de projetar, na sua etimologia em lngua portuguesa, significa

    lanar para adiante.

    Nas noes colocadas acima est presente a ideia de um futuro que se planeja.

    Isso significa que a ao do projeto no se esgota em si mesma, mas pressupe um

    acontecimento futuro cuja finalidade, pelo menos no caso da arquitetura, construir o espao habitvel.

    Pode-se afirmar ento que a ao de construir organizada pelo ato de projetar.

    Conforme afirmado anteriormente, assume-se que a arquitetura a obra construda. Sendo

    assim, o projeto define o conjunto de aes que devem ser levadas a cabo para que essa construo

  • 18

    concreta possa existir. Apesar de ser atual o uso da expresso arquitetura virtual, no nesse sentido

    que procura-se abordar a ideia de projeto neste trabalho.

    Considera-se ento que a etapa de elaborao intelectual da arquitetura a qual chamada de

    projeto aquela sobre a qual o estudante se debrua durante a maior parte do tempo em uma escola

    de arquitetura. O projeto tambm a atividade mais frequente entre os profissionais formados em

    arquitetura e urbanismo. importante ter em conta que, apesar do tempo e energia utilizados na

    elaborao intelectual, a finalidade construtiva o resultado esperado dessas operaes projetuais.

    Tomam-se, a princpio, algumas definies de projeto para a evoluo dessa discusso.

    A primeira delas, alm de visitar os significados da palavra projeto, estabelece distines entre

    o ato intelectual de conceber o projeto e a sua realizao.

    Nessa definio, Jean-Pierre Boutinet (2002) reconstri a histria da palavra projeto na lngua

    francesa:

    [...] faremos isso, primeiramente, considerando em nossa prpria lngua todos os sinnimos de

    projeto, tais como desgnio, inteno, finalidade, objetivo, alvo, planejamento e programa. Em

    seguida, deveremos estabelecer uma comparao entre o que a nossa lngua diz do projeto e o

    que dizem as lnguas vizinhas. Nesse sentido, o italiano progetto que parece mais prximo do

    francs projet, porque recobre diferentes acepes, principalmente o propsito (inteno), o

    disegno (esquema), o piano (plano); a nica nuance que parece trazer o italiano a oposio

    entre o progetto (atividade intelectual de elaborao do projeto) e a progettazione (atividade de

    realizao do projeto). No que concerne ao ingls e ao alemo, ambos opem, de um modo um

    tanto dualista, o projeto-desgnio ao projeto-programa atravs, respectivamente, dos termos

    purpose e project em ingls, e entwurf e projekt em alemo10

    .

    Destaca-se no texto de Boutinet a diferenciao no italiano das fases de elaborao e realizao

    do projeto. Dessa diviso pode-se considerar que a arquitetura suporta a duplicidade da relao

    projeto/ao, projeto/realizao, constantes no processo de elaborao intelectual do projeto de

    arquitetura.

    No mesmo texto, antes de apresentar as analogias lingusticas, Boutinet apresenta sua prpria

    definio de projeto:

    [...] o projeto pode ser definido como conceito dotado de propriedades lgicas a serem

    explicitadas em suas conexes com a ao a ser conduzida. Mas, ao mesmo tempo, o projeto

    aparece como figura que remete a um paradigma, simbolizando uma realidade que parece

    preexistir e escapar-nos: aquela de uma capacidade a ser criada, de uma mudana a ser

    operada. O projeto seria, ento, o avatar individual e coletivo de um desejo primitivo de

    apropriao. Essa figura aparece constantemente como intermitente: toda realizao do projeto

    10

    BOUTINET, J-P. Antropologia do projeto. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 33, grifos do autor.

  • 19

    se torna realidade e, portanto, destruio da figura que ele encarna. Esse projeto-figura, cujos

    contornos deveremos esboar, na maneira como impe um certo tipo de presena, remete a

    uma dupla ausncia: a da ordem a eliminar e a de uma ordem a fazer advir, ambas fruto dessa

    ausncia fundadora que todo desejo expressa11

    .

    A primeira noo estabelecida pelo autor a da mudana a ser operada. Assume-se ento que

    algo existe e que uma ao ou conjunto de aes alteraro essa pr-existncia. Segundo Boutinet, isso

    ocorre atravs daquilo que ele chama de desejo primitivo de apropriao.

    O que Boutinet destaca so as duas ausncias fundadoras expressas pelo desejo de

    apropriao: a ordem a eliminar e a ordem a fazer advir. Na mente do projetista, uma vez iniciado o

    processo de projeto, nem a ordem existente a ser eliminada nem a ordem futura ainda no

    concebida existem de fato.

    As primeiras anlises sobre o conjunto de problemas de um determinado projeto fazem deixar

    de existir a situao dada, ao mesmo tempo em que ainda no so a sntese, nem a resposta ao

    problema proposto de incio. Essa dupla ausncia potencializa ento a sensao de ansiedade pela

    soluo que acompanha o processo at que se concluam as etapas subsequentes e a realizao da obra.

    Essa inquietude, provocada pelo projeto, potencializa a preocupao com o resultado a que se

    pretende. A angstia que o processo origina est na raiz da reflexo proposta por Heidegger:

    O projeto traduz a capacidade de devir do homem, o que ele pode ser em razo de sua

    liberdade; porm, esse projeto marcado pelo abandono, sentindo-se ameaado pelo

    anonimato, pelo abandono s condies impostas, pela possibilidade de se estar altura do

    que quer ser. A preocupao traduz justamente essa inquietao contnua e angustiada de no tombar na facticidade, de manter suficientemente distncia projeto e queda.

    A preocupao (Sorge) comporta, ento, trs momentos essenciais atravs dos quais passa

    inevitavelmente toda a existncia:

    - o projeto (Entwurf);

    - o abandono (Geworfenheit);

    - a queda (Verfallen)12

    .

    Podem-se interpretar as questes apontadas por Heidegger, partindo-se do pressuposto de que

    a reflexo colocada acima nos descreve angstias e preocupaes presentes, de modo anlogo, na

    figura do projeto.

    O abandono e a queda so imagens fortes que podem significar momentos de incerteza diante

    daquilo que se deseja. A queda prpria do lanar-se adiante, ao inerente ao projeto que traz consigo

    11

    Ibid. p. 27.

    12

    Ibid. p. 50.

  • 20

    a inquietao contnua e a angstia, estas, prprias da existncia humana e dos seus desejos. O

    abandono a exigncia, que o projeto coloca, de deixar para trs uma realidade em troca de outra ainda

    no presente.

    Nesse sentido, vale relembrar o que j tinha sido apontado na dissertao de mestrado que

    precede este trabalho de doutoramento:

    O projeto traz consigo esse paradoxo: necessrio lanar-se adiante, mesmo com a incerteza

    e a angstia provocadas pela antecipao de uma queda, para realizar a inteno, aquilo que se

    quer ser13

    .

    Apesar disso, o projeto traz consigo tambm a ideia de liberdade, permitindo ao ser humano

    superar a si mesmo e se construir a partir dessa conscincia de que algo falta, est ausente e

    potencializa a mudana da situao existente.

    A figura que prevalece a do homem que deseja superar-se e se construir, ou seja, um projeto

    que d a liberdade de lanar-se na auto-realizao a partir da conscincia da falta. Projeta-se,

    porque h falta, demanda e necessidade de alguma coisa. Existe aqui, uma forte relao entre a

    falta e o desejo.

    [...] H sempre uma inteno que preside o gesto projetual e normalmente desencadeia o

    processo. O desejo pessoal e/ou o coletivo ditam essa inteno, esse desgnio. [...]

    [...] no projetar sempre h uma carga de expectativa naquilo que se prope e do que ainda no

    existe, gerando-se angstias prprias do lanar-se adiante. Na arquitetura, isso se potencializa

    em torno das questes relativas inveno e criao do objeto de arte [...] No ensino de

    arquitetura, tanto para professor quanto para aluno, o medo do abandono e da queda so

    figuras freqentes e intrnsecas ao projetar14

    .

    Essa atitude de posicionar-se sobre o no existente gera expectativas que, por um lado,

    estimulam o andamento do trabalho e, por outro, podem gerar ansiedade provocada pelo medo do

    desconhecido. Em alguns casos pode significar uma espcie de travamento, de medo do papel em

    branco que paralisa o projetista, no caso o arquiteto, mas principalmente o estudante. [...] e o trabalho

    do arquiteto consiste em dar medida a todo objeto que no existe ainda15.

    A preocupao gerada pela atividade de projeto, discutida por Heidegger, reaparece nessas

    descries do processo de projeto estabelecidas por Boudon (2000). Ele insere nesse debate a questo

    da abstrao, esta, parte tambm da problemtica da avaliao dos trabalhos dos estudantes a ser

    explorada mais adiante.

    13

    VIDIGAL, E. J. Um estudo sobre o ensino de projeto de arquitetura em Curitiba. Dissertao (Mestrado) FAU / USP, So Paulo, 2004. p. 16.

    14

    Ibid. p. 16-17.

    15

    BOUDON, P. Enseigner la conception architecturale: cours d'architecturologie. Paris: Editions de La Villette, 2000. p. 104.

  • 21

    Quando concebe, o arquiteto elabora intelectualmente o espao arquitetnico e tende assim

    constitu-lo como uma abstrao. Mas essa abstrao relaciona-se necessariamente com a

    realidade futura do espao arquitetnico: ele pensado como realidade sensvel dotada de

    qualidades e propriedades particulares. Dito de outra maneira, a noo de espao arquitetural

    rene abstrao e substncia16

    .

    Atrelada figura do projeto, alm das questes da abstrao e da substncia, apontadas por

    Boudon, est a relao entre as ideias de subjetividade/objetividade. Nas tomadas de deciso em projeto

    e, por consequncia, nos processos avaliativos da qualidade dos projetos essa relao entre o que

    objetivo e o que subjetivo est bastante presente.

    Isso se acentua na finalizao do trabalho de arquitetura, ou seja, na realizao da obra

    construda. Elvan Silva (1985) acredita que a diviso social do trabalho na construo constitui um dos

    complicadores na definio do papel do arquiteto perante o projeto.

    Como sabido, existe um fenmeno chamado diviso social do trabalho, que determina que

    o arquiteto no seja, ele prprio, o executor de sua obra: ele a concebe, mas compete a

    terceiros a tarefa de materializ-la. a que se localiza o primeiro nvel de comunicao das

    intenes arquitetnicas. [...] Na realidade, o projeto de arquitetura tambm um elemento de

    comunicao, mas sua necessidade transitria, pois ele apenas um meio para se

    concretizar a obra, e sua utilidade desaparece com a concluso das operaes construtivas17

    .

    Esse autor divide tambm, a exemplo do que acontece em Boutinet (2002), quanto busca a raiz da palavra projeto na lngua italiana, a atividade de elaborao

    intelectual do projeto, separando-a da atividade de construo.

    A concepo do arquiteto, que se d no plano das imagens mentais, no se transforma diretamente na obra, que se verifica no plano do mundo concreto. Entre

    concepo e obra interpe-se a etapa projetual, cuja finalidade fixar, atravs de um conjunto de smbolos, os traos da concepo, isto , das imagens

    mentais18.

    Desse modo, na diviso social do trabalho de arquitetura atuam, entre outros sujeitos, de um

    lado, o operrio no canteiro de obras e, do outro lado, o arquiteto e os demais projetistas. De um extremo

    ao outro dessa cadeia o projeto de arquitetura se transforma at sua concretizao. possvel afirmar

    que, de certo modo, o projeto funciona como uma espcie de obra aberta19, ou seja, a centralizao da

    tomada de decises nas mos do arquiteto uma utopia. Na realidade, h uma espcie de idealismo na

    16

    Ibid. p. 62.

    17

    SILVA, E. Arquitetura e semiologia. Porto Alegre: Sulina, 1985. p. 110.

    18

    Ibid. p. 112.

    19

    A ideia de obra aberta relaciona-se ao projeto que concebido como sistema de projetao aberto a necessidades no

    previstas numa determinada etapa na qual ele concebido. Uma obra aberta deve trabalhar ideias como a polivalncia e a

    semipermanncia dos espaos, por exemplo. Entende-se tambm obra aberta como aquela que permite a livre contribuio

    dos indivduos que a criam em conjunto ou que a utilizaro futuramente.

  • 22

    viso de que o arquiteto, atravs do projeto, controla as operaes de modo global. Ele o grande

    responsvel, mas o nmero de outros agentes envolvidos at a execuo do edifcio faz com que essa

    tomada de decises caiba a vrias equipes. Alm disso, dentro do prprio trabalho de elaborao

    intelectual do projeto h divises:

    O processo de projeto consiste, na realidade, em uma srie de fases sucessivas em que a

    passagem de uma seguinte se apia em um juzo esttico subjetivo realizado sobre a

    primeira, de modo que o itinerrio depende da estratgia a que os sucessivos juzos do lugar.

    A estrutura da atividade descrita pelo programa estabelece um quadro de possibilidades

    formais que se sobrepem s que o lugar sugere e permite: o juzo do autor atua sobre esses

    dois mbitos de formalidade possvel, propondo uma estrutura. Tal proposta se submete

    verificao tanto do programa como das condies do lugar; dessa confrontao surgem

    modificaes da proposta que podem afetar tanto o modo de estruturar a atividade como a

    incidncia do edifcio no stio. Dessas revises pode-se depreender uma modificao da

    proposta que sugere um modo diferente de se pensar a atividade, o que, por sua vez, sugere

    uma mudana no domnio da sntese formal. E assim sucessivamente, at que se chegue a

    uma proposta que satisfaa todas as variveis em jogo20

    .

    Pin acredita que, no projeto, a passagem de uma fase outra se apoia no que ele chama de

    juzo esttico subjetivo. Embora essa crena acentue o carter subjetivo das decises projetuais, o autor

    aponta que ao confrontar as decises formais ao lugar, o arquiteto prope uma estrutura ao seu projeto.

    Essa estrutura ento submetida a revises at alcanar uma sntese de proposio.

    Atravs do desenho o arquiteto opera sobre determinadas condicionantes em busca de uma

    sntese propositiva que responda aos grandes problemas apresentados em funo do programa, das

    peculiaridades do lugar e dos recursos tecnolgicos disponveis. Essa ideia de sntese em projeto

    explorada nos captulos posteriores.

    Entende-se, neste trabalho, o projeto como construo cultural e como objeto central do

    trabalho do arquiteto enquanto profissional.

    O abstrato e a substncia coexistem na figura do projeto, bem como as dicotomias das

    relaes entre arte e tcnica; concepo e realizao; esprito e matria.

    Por conta das condies inerentes ao projeto, conforme citado anteriormente, frequentemente a

    atividade projetual caracteriza-se pela ausncia fundadora ligada ideia de realizao futura do que se

    pensa no presente. Ou seja, o fato de que se inventa algo inexistente um objeto do qual no se tem

    ideia de totalidade pr-estabelecida gera, por vezes, preocupao, angstia e ansiedade nos agentes

    envolvidos em sua concepo, o que prprio das aes criadoras do esprito humano. Em relao s

    20

    PIN, H. Teoria do projeto. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006. p. 48.

  • 23

    questes abordadas no presente trabalho, cabe entender como essas demandas agem em sala de aula,

    principalmente em relao aos estudantes que ainda no dominam as peculiaridades do projetar.

    1.3 O ENSINO DE PROJETO DE ARQUITETURA EM ATELI

    Por se tratar de uma atividade que ligada aprendizagem do ato intelectual de pensar a

    construo dos edifcios e seus espaos, o ensino de projeto em arquitetura tem diferenas significativas

    em relao aos demais tipos de ensino prtico.

    Muitas dessas diferenas se estruturam na prpria caracterizao do campo de conhecimento

    da arquitetura, como a relao entre arte e tcnica, por exemplo. Outras distines esto inseridas dentro

    das peculiaridades que a figura do projeto encarna, conforme j discutido no captulo anterior.

    Por conta disso, entre outras questes, o ensino de projeto em ateli tem caractersticas

    singulares. Trata-se, sem dvida, de uma disciplina diversa das demais do mbito universitrio, com

    parentesco relacionado ao ensino das artes visuais, mas tambm ligada intimamente s praticas

    tecnolgico/cientficas com o carter de experimentao laboratorial.

    Pode-se ento afirmar que desde o espao fsico da sala de aula de projeto o ateli (ou

    estdio) possuidor de caractersticas distintas das salas de aula do ensino tradicional e que o qualificam

    como espao de produo at os procedimentos didticos das aulas, baseadas nos atendimentos e no

    trabalho dos estudantes sobre determinados exerccios de projeto, tm qualidades distintas das

    atividades de ensino convencionais.

    Um curso de projeto estruturado tradicionalmente a partir de um exerccio de projeto um

    tema a ser trabalhado pelos alunos durante determinado perodo. Esse tema tem particularidades

    como: um terreno, um contexto (em geral urbano), um programa de necessidades (a natureza da

    atividade desenvolvida no espao), uma escala (desde um projeto pequeno at edifcios grandes e

    complexos), entre outras. A divulgao desse tema no incio do curso seguida, de modo geral, por uma

    pesquisa realizada pelos alunos e/ou aulas expositivas preparadas pelos professores para introduzir o

    problema de projeto.

    Geralmente, a partir da concluso dessa abordagem inicial o estudante comea a desenvolver

    seu projeto, individualmente ou em equipe, com a orientao dos professores em ateli. O projeto

  • 24

    desenvolvido em etapas ou ciclos que correspondem em sua concluso a uma entrega de projeto.

    Uma aula tradicional de projeto baseia-se ento, na maior parte do tempo, no procedimento

    conhecido como assessoria ou orientao. Essa atividade consiste, principalmente, em conversas entre

    professores e alunos sobre os problemas enfrentados no processo de projeto. Pode-se adotar um

    sistema individualizado, no qual o estudante discute o seu projeto com o professor o mais comum

    ou, pode-se utilizar a discusso aberta do trabalho de cada aluno diante de toda a turma. Esta ltima

    alternativa, inclusive, tem se mostrado frequente nas escolas de arquitetura brasileiras, face dificuldade

    enfrentada colocada pela proporo cada vez maior de estudantes em relao a um nmero reduzido de

    docentes.

    O conjunto de autores abordados na dissertao que precede esta tese colabora com a

    caracterizao desse ensino, situando seu campo terico na teoria do conhecimento e apontando as

    peculiaridades do ensino de projeto na sua relao com a didtica tradicional. Retomam-se no presente

    texto algumas consideraes tericas desses autores visitados anteriormente, entre os quais podemos

    destacar Ochsner, Schn e Martinez, e somam-se outros pesquisadores com a finalidade de atualizar o

    campo de discusso dessa problemtica.

    A princpio, em seus trabalhos, alguns desses pesquisadores caracterizam esse tipo de ensino

    em ateli antes de aprofundar as problemticas pertinentes ao campo. Entende-se que esta maneira de

    estruturar o pensamento seja til tambm neste trabalho.

    O pesquisador americano Jeffrey Ochsner (2000) caracteriza esse tipo de ensino quando fala

    sobre os procedimentos utilizados em uma disciplina de projeto (estdio), comparando-o a outras

    disciplinas escolares:

    A necessidade e o tempo de envolvimento que o estdio requisita o resultado da natureza

    daquilo que nele trabalhado. O projeto de um edifcio um tipo de problema mutivarivel que

    no pode ser resolvido por um processo de deduo lgica ou atravs da aplicao de uma

    srie de frmulas que foram aprendidas. Em outros cursos universitrios, quando o problema

    lanado, os estudantes sabem que uma soluo ou uma classe de solues j foi em algum

    momento determinada. Quando os problemas so apresentados, eles so normalmente

    resolvidos aplicando-se um corpo de conhecimentos ao projeto de acordo com um mtodo

    aprendido. Ao contrrio, o ateli de projeto oferece problemas sem resultados conhecidos.

    Alguns aspectos tcnicos do problema de projeto podem ser previstos dentro de certos limites

    (por isso temos estudos de tipologias, composio e similares), mas a soluo precisa

    esperada deve ser original. Ao mesmo tempo, h questes como a habitabilidade, o uso do

    espao e aqui h a responsabilidade de um contexto maior (seja o cliente, a situao fsica ou a

    condio scio-cultural) que no so encontrados no mesmo nvel nas aulas de arte, por

    exemplo. Por isso, o ateli de arquitetura raramente comparvel a qualquer coisa que o

  • 25

    estudante j tenha experimentado em outro ambiente educacional21

    .

    Comparado a outras modalidades do ensino superior, o ensino de projeto de arquitetura se

    diferencia no somente nos aspectos metodolgicos, mas tambm nos objetivos disciplinares.

    Em geral, considera-se o grande objetivo de uma disciplina prtica na escola de arquitetura

    treinar o estudante na habilidade de fazer projetos. J a metodologia aplicada consiste basicamente em

    elaborar exerccios de projeto que, em geral, simulam a atividade prtica de um arquiteto no dia a dia em

    seu escritrio.

    Como Ochsner aponta, existe uma complexidade peculiar aos problemas da edificao que

    permeia as tomadas de deciso em projeto. Quando essas complexidades abrangem, alm do projeto do

    edifcio em si, tambm os mtodos de ensino, a dificuldade de sistematizar conhecimentos torna-se

    significativa.

    Pode-se afirmar a partir disso, e da leitura da teoria existente, que, em ateli, nem os processos

    de projeto nem os percursos do ensino do projeto se estruturam de forma linear. Entende-se que os

    procedimentos de projetar e de ensinar podem ser organizados de diversas formas. No caso dos

    mtodos de ensino, possvel afirmar que h analogias, entre as metodologias clssicas do ensino

    bsico, com dois tipos de programao propostas por Skinner e Crowder, a programao linear e a

    programao ramificada.

    Skinner trabalha o que pode ser chamado em termos didticos de programao linear. Segundo

    Marques (1973), Na programao linear o aluno conduzido passo a passo rumo s aprendizagens

    definidas pelos objetivos do programa. Graficamente poder-se-ia representar assim:

    A cada etapa do trabalho chega-se a uma nica soluo possvel a partir da qual se desenvolve

    a etapa posterior.

    J Crowder entende o processo de outra maneira, baseada em ramificaes.

    Na programao ramificada, chamada algumas vezes de programao intrnseca, utilizam-se

    mltiplas escolhas em cada resposta solicitada do aluno. Cada resposta leva o estudante a

    trabalhar um material especificamente preparado para ele, [...]. Graficamente poder-se-ia

    21

    OCHSNER, J. K. Behind the Mask: A Psychoanalytic Perspective on Interaction in the Design Studio. Journal of

    Architectural Education, Harvard Press, Maio 2000, p. 195. Traduzido do ingls.

  • 26

    representar assim22

    .

    No ensino de arquitetura, os objetivos disciplinares procuram se organizar estruturados em um

    currculo linear, de modo que os contedos ganhem complexidade com o passar dos semestres letivos.

    J o processo de pensar a arquitetura ocorre de uma maneira mais prxima ao esquema ramificado. Ou

    seja, no projeto cada problema pode encontrar mais de uma resposta como soluo possvel, e a cada

    nova resposta surgem novas ramificaes. Nesse percurso, impossvel saber de antemo qual o

    resultado final, a no ser quando se alcana a sntese de respostas ao problema proposto de incio. De

    fato, no se trata de um processo matemtico com apenas uma resposta possvel mas de algo amplo e

    menos lgico.

    Esse descompasso entre processo de ensino e processo de projeto est no cerne de grande

    parte da problemtica desse ensino.

    Alm do descompasso existente entre o projeto e a obra construda, j citado anteriormente,

    caracteriza-se ento uma nova ciso: entre o processo do projetar e a maneira de ensinar a projetar.

    Esta ltima organizada de modo linear, enquanto os problemas de projeto tm carter multivarivel.

    O mtodo de ensino usualmente utilizado em ateli parte do princpio de que o professor ir

    atuar sobre a ao do prprio aluno. Ou seja, o professor trabalha orientando a produo que o aluno

    desenvolve em cada etapa do processo de projeto. Como esse processo no segue uma linearidade, a

    cada momento surgem novas questes no projeto do estudante que sozinho ele no sabe como resolver.

    O professor atua ento como orientador do trabalho do estudante. Partindo da sua experincia

    acadmica e profissional, ele instrui o aluno sobre os prximos passos que ele pode dar, incentivando ir

    adiante ou rever o percurso em busca de outras direes.

    Donald Schn (2000) descreve o ateli da seguinte maneira:

    22

    MARQUES, J. C. A aula como processo. Porto Alegre: Globo, 1973. p. 03.

  • 27

    Os atelis, em geral, so organizados em torno de projetos gerenciveis de design, assumidos

    individual ou coletivamente, mais ou menos padronizados de forma similar a projetos tirados da

    prtica real. Com o passar do tempo, eles criaram seus prprios rituais, como demonstraes

    dos coordenadores, sesses de avaliao de projetos e apresentaes para bancas, todos

    ligados a um processo central de aprender atravs do fazer23

    .

    Trata-se, portanto, de um processo de aprendizado baseado no saber fazer. O autor defende que

    esse tipo de ensino baseado naquilo que se denomina prtica reflexiva, ou seja, o estudante aborda o

    projeto, auxiliado pelo professor, num processo de reflexo-na-ao. Isso significa que o aluno aprende a

    refletir sobre o ato de projetar, buscando uma autonomia na construo de um mtodo de trabalho

    prprio.

    Conforme citado na dissertao que precede o presente trabalho:

    O ateli seria organizado, ento, para trabalhar exerccios de projeto vinculados de alguma

    maneira com a prtica profissional cotidiana do arquiteto e simulando os aspectos envolvidos

    na discusso da arquitetura. interessante perceber que Schn coloca aqui a questo do

    aprender atravs do fazer. Esse ponto a principal diferena entre o ensino de outras

    disciplinas e o ensino do projeto. Nesse processo, professor e aluno assumem papis

    diferenciados daqueles assumidos nas disciplinas escolares/universitrias tradicionais. O aluno

    tem uma participao fundamental no seu prprio aprendizado, e o professor serve como

    interpretador das dificuldades e problemas vividos pelo aluno24

    .

    Schn (2000) acredita que o professor de projeto tem funo semelhante ao treinador de um

    time quando se dirige aos seus atletas. Dessa maneira, deve ento servir mais como um orientador,

    atuando na potencializao dos conhecimentos que o aluno j possui. Papel bem distinto da noo

    clssica do professor como transmissor do conhecimento.

    Ele acredita que a aula de projeto deveria ser baseada no que ele classifica como uma

    epistemologia da prtica. O ensino prtico engloba, para ele, caractersticas especficas, que fazem sua

    distino em relao ao ensino tradicional:

    Uma aula prtica um ambiente projetado para a tarefa de aprender uma prtica. Em um

    contexto que se aproxima de um mundo prtico, os estudantes aprendem fazendo, ainda que

    sua atividade fique longe do mundo real do trabalho. Eles aprendem assumindo projetos que

    estimulam e simplificam a prtica ou projetos reais sob uma superviso minuciosa. [...]

    Quando uma estudante inicia uma aula prtica, apresentam-se a ela, implcita ou

    explicitamente, certas tarefas fundamentais. Ela deve aprender a reconhecer a prtica

    competente. Ela deve construir uma imagem dessa prtica, uma apreciao de seu lugar na

    relao com essa prtica e um mapa do caminho por onde ela pode chegar, de onde est, at

    23

    SCHN, D. Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre: ARTMED, 2000. p. 45. Adaptado a partir do original.

    24

    VIDIGAL, E. J. Op. Cit. p. 35.

  • 28

    onde quer estar. Ela deve aceitar os pressupostos implcitos daquela prtica: que existe uma

    prtica, que boa o suficiente para ser aprendida, que ela capaz de aprend-la e que

    representada, em suas caractersticas essenciais, pela aula prtica. Ela deve aprender a

    prtica do ensino prtico suas ferramentas, seus mtodos, seus projetos e suas possibilidades e assimilar, prtica, sua imagem emergente de como ela pode aprender melhor o que quer

    25

    .

    O autor admite o fato de que a atividade de projeto no ateli se constitui num simulacro, distante

    do que ele classifica como mundo real do trabalho. Dessa forma, o carter de simulao, apesar de

    permitir experimentos inviveis na vida profissional, distancia, na opinio de Schon, o trabalho do

    estudante da realidade.

    O reconhecimento, por parte do estudante, de que h uma prtica competente que passvel de

    aprendizado fundamental para desencadear esse tipo de ensino. Alm disso, na viso de Schn, o

    estudante precisa construir um mapa do caminho que sirva para conectar sua situao atual at o local

    onde ele deseja chegar. Esse mapa do caminho reconecta a figura do aprender com a do fazer projeto.

    O mapa do caminho encarna ento a figura do projeto pessoal do estudante, funcionando como um

    mecanismo de construo de uma espcie de mtodo individual.

    Trata-se ento de um ensino ancorado no ato processual de elaborao do objeto arquitetnico,

    conforme nos apresenta Merlin (2004):

    Em outros termos, todo projeto pautado em princpios constitutivos, recorrentes em

    situaes diversas, propostos por arquitetos de culturas e mesmo de pocas diferentes.

    Partindo desse pressuposto, o ensino de projeto deve ser centrado na identificao, anlise e

    exerccio prtico desses princpios, cuja maior importncia recai na compreenso do processo

    de elaborao/fabricao do objeto arquitetnico e no no produto obtido em si. Isso se justifica na medida em que, no projeto desenvolvido numa escola de arquitetura, o que est em

    jogo no a construo de uma obra e sim a construo de um estudante, futuro projetista26

    .

    Apesar de parecerem duas foras essencialmente distintas, para que o ensino seja eficaz, tanto

    a ideia de que arquitetura obra construda, quanto a noo de que estamos construindo estudantes

    devem coexistir. Uma vez que o ensino de projeto trabalha a simulao e tem carter processual,

    preciso tambm ter como foco as questes construtivas para poder ancorar o exerccio de projeto no

    mundo real da prtica.

    Martinez (2000), alm de discutir o aprender fazendo, reafirma o papel das disciplinas de

    projeto como espinha dorsal do curso:

    25

    SCHN, D. Op. Cit. p. 40.

    26

    MERLIN, J. R. Ensino e prtica do projeto. Tese (Doutorado) FAU / USP, So Paulo, 2004. p. 102.

  • 29

    Essa disciplina o tronco do currculo porque os arquitetos desenham edifcios, e o ateli de

    projeto o local onde aprendem a desenh-los: a parcela mais especfica da formao.

    Porm essa matria no contm uma doutrina explcita, um aprender fazendo em um duplo

    sentido: primeiro, aprende-se a desenhar objetos desenhando objetos; segundo, aprende-se

    sobre algo no prprio exerccio desse algo. O decisivo, ento, no possuir conhecimentos,

    mas sim exercit-los e exibi-los implicitamente nos resultados. Supe-se que o exerccio de

    desenho realizado est respaldado pelos conhecimentos sobre a arquitetura e sobre o

    desenhar, mas no de forma explcita27

    .

    Mesmo tendo em conta que o ensino de projeto difere do ensino tradicional e do carter no

    linear da tomada de decises em arquitetura, o conhecimento da rea se organiza de forma a orientar os

    estudantes e professores nos requisitos mnimos a serem alcanados nas disciplinas.

    O fato do pensamento sobre o projeto no estar estruturado de forma linear, no significa que o

    seu ensino no possa ser organizado dessa forma.

    Bruner (1998) defende a importncia de se conferir uma estrutura, interna disciplina, que

    esclarea e oriente o ensino-aprendizado de modo a realizar a transferncia de princpios e atitudes

    bsicas pertinentes quela rea do conhecimento. Ele acredita que essa estrutura est ligada aos

    conhecimentos mais bsicos de determinado campo de ensino. Esse autor defende a ideia de que o

    conhecimento deve estruturar-se de forma a se conectar com outros tipos de conhecimento. Noes

    bsicas so fundamentais no ensino-aprendizado de cada campo do conhecimento e, segundo Bruner,

    so necessrias no incio desse processo:

    Consiste inicialmente na aprendizagem inicial, no de uma habilidade, mas de uma noo, que

    pode ser usada como base para reconhecer problemas subseqentes, como casos especiais

    da idia inicialmente dominada. Esse tipo de transferncia encontra-se no centro do processo

    educacional o contnuo alargamento e aprofundamento do conhecimento, em termos de idias bsicas e gerais

    28

    .

    Essa organizao de ideias bsicas norteadoras, explicada por Bruner, serve, quando se trata

    do ensino de projeto, para reordenar as diferenas, j citadas anteriormente, presentes nas atividades de

    elaborao intelectual do projeto como construo da realidade e do projeto como processo de ensino-

    aprendizado. No fundo, os dois processos caminham para a mesma sntese.

    As diferenas entre o ensino de projeto em ateli e as demais disciplinas de nvel superior

    apontadas at ento procuram traar um panorama desse tipo de ensino e explicar a noo do que o

    ensino prtico.

    27

    MARTINEZ, A. C. Ensaio sobre o projeto. Braslia: Editora UnB, 2000. p. 55, grifos do autor.

    28

    BRUNER, J. O processo da educao. Lisboa: Edies 70, 1998. p. 39.

  • 30

    Diversas abordagens a respeito desse tipo de ensino esto sendo testadas nas faculdades

    brasileiras e estrangeiras. Essas abordagens contribuem para caracterizar as mudanas pelas quais o

    ateli de projeto tem passado. O trabalho de Salama (1995) uma das fontes que explicam essa

    situao em diferentes escolas de arquitetura no mundo. Esse autor investiga o ateli de projetos em dez

    diferentes universidades pelo mundo. Alguns dos mtodos investigados por ele sero objetos de

    discusso nos prximos captulos.

    O espao do ensino em ateli varia de curso para curso, nacional e internacionalmente, mas

    pode-se afirmar que se h algo comum nesse campo a ideia de que se aprende refletindo sobre a

    prpria ao de fazer projetos, seja individual ou coletivamente.

    1.4 DESAFIOS DIDTICOS NO CAMPO DE ESTUDO DO ENSINO DE PROJETO ARQUITETNICO

    Na interseco das noes de arquitetura, projeto e ensino, possvel perceber que a

    problemtica do espao de aprendizagem do ateli composta de algumas questes essenciais que se

    pretende abordar no presente trabalho. A partir dos entendimentos do campo de estudo, j colocados na

    viso de alguns autores, percebem-se conjuntos de problemas que so recorrentes na organizao

    desse tipo de ensino. Entre os problemas a serem abordados quando se fala de ensino-aprendizado de

    projeto temos: a organizao interna das disciplinas, o currculo das escolas de arquitetura, o parentesco

    e/ou distanciamento dessa disciplina em relao aos demais tipos de ensino, a integrao de contedos,

    a interdisciplinaridade, a relao professor-aluno, o processo de avaliao em projeto, entre outros.

    Alguns desses temas j foram tratados na dissertao de mestrado que precede esta tese.

    Nesse caso, trata-se de ampliar/atualizar o universo de autores visitados de modo a aprofundar a

    problemtica pertinente ao ensino de projeto.

    1.4.1 Sobre o currculo de uma disciplina e o papel da intuio em projeto

    Apesar das diferenas j citadas, existentes entre as disciplinas tradicionais e o ensino de

    projeto, procura-se explorar parte do conhecimento do campo de estudo da educao em geral, tendo

  • 31

    assim reflexos no ensino em ateli. Embora o presente estudo no aborde diretamente os currculos, mas

    os procedimentos internos s disciplinas de projeto, faz-se necessrio entender, ao menos sumariamente

    como o currculo se estrutura29

    .

    O currculo de arquitetura se organiza, como dissemos, de modo linear, similar aos demais

    cursos universitrios.

    No ponto de vista de Ktia Teixeira (2005), o currculo real se divide em trs perspectivas:

    [...] aquela do currculo oficial referente ao que dito que deve ser ensinado; o currculo manifesto, que diz respeito quilo que se pretende ensinar, e a forma disso ser feito, na viso

    dos professores; e ainda a terceira, o currculo oculto, a perspectiva de quem aprende, que ir

    englobar o contedo de toda a experincia do estudante, a prtica real que determina a sua

    experincia de aprendizado30

    .

    esse currculo oculto, na viso da autora, que congrega expectativas, dificuldades, hbitos,

    referncias, comportamentos e significados, muitas vezes subliminares que tendero, ao final do curso,

    a alcanar um efeito determinado.

    No caso das disciplinas de ateli, por conta do grau de liberdade de proposio do projeto, o

    currculo oculto acaba por vezes se superpondo aos currculos oficial e manifesto, o que pode gerar

    descontinuidades de aprendizado. A mesma autora afirma ser comum que as regras do jogo

    estipuladas no incio de um exerccio sofram alteraes intrnsecas ao prprio ato de projetar, de maneira

    a provocar desvios nos objetivos do projeto. Isso pode significar descontinuidades nos contedos entre

    perodos do curso, dificultando a interdisciplinaridade.

    natural que os contedos das disciplinas se transformem, uma vez que cada turma de

    estudantes traz novas demandas de aprendizado. No entanto preciso respeitar os aspectos que

    conferem estrutura quele aprendizado, ou seja, suas questes essenciais.

    Reforando a opinio de Bruner (1998), j apresentada anteriormente, que entende desse modo

    a construo dos currculos, partindo da estrutura interna das disciplinas:

    [...] o currculo de uma disciplina deve ser determinado pela mais profunda compreenso

    possvel dos princpios subjacentes, que conferem estrutura ao tema. Ensinar determinados

    tpicos ou habilidades, sem clarificar o seu contexto na estrutura fundamental mais alargada de

    um campo do saber, pouco econmico, em vrios sentidos. [...] a aprendizagem que no

    conseguiu atingir ou aprender os princpios gerais pouco recompensada em termos de

    entusiasmo intelectual. [...] o conhecimento adquirido sem estrutura suficiente para se interligar

    29

    Ver estrutura curricular na UFPR anexos 1 e 2. 30

    TEIXEIRA, K. A. Ensino de projeto: integrao de contedos. Tese (Doutorado) FAU / USP, So Paulo, 2005. p. 23.

  • 32

    facilmente esquecido31

    .

    No trecho acima, aparece destacada a ideia de inter-relao dos contedos: a estrutura

    suficiente para se interligar com os demais contedos. Ou seja, caso o conhecimento aprendido numa

    disciplina como sistemas estruturais ou conforto ambiental no seja aproveitado dentro da aula de ateli,

    ele rapidamente cair no esquecimento.

    Alm disso, em muitas situaes a responsabilidade de construir essa interligao recai

    somente sobre o aluno. Nesses casos, geralmente, espera-se que os alunos de talento nato ou

    capacidade de intuio dirijam-se no sentido do aprendizado de modo autnomo.

    Para Bruner, errado olhar a intuio como omeletes feitos sem ovos. O bom intuitivo pode

    ter nascido com qualquer coisa de especial, mas a sua eficincia baseia-se num slido conhecimento

    da matria, numa familiaridade que d intuio algo com que trabalhar32.

    interessante notar que a viso de Bruner, um educador de fora do ambiente da arquitetura,

    sobre o papel da intuio no aprendizado, se fortalece quando analisamos as abordagens desse tema

    propostos por arquitetos.

    Helena Silva (2005), em seu trabalho sobre Abraho Sanovicz, aborda o mesmo assunto

    citando Daher (1984): O arquiteto no desenha sozinho porque no deseja sozinho. No pode desenhar

    a partir do nada, no miniatura de Deus33.

    Essa afirmao ressalta, alm da importncia do trabalho conjunto para alcanar resultados em

    projeto, o fato de que no desenhar a partir do nada significa ter de buscar informaes, referncias,

    bases tericas, ou seja, fundamentar o projeto em algo que tenha sentido e consistncia.

    Falando mais adiante sobre a imaginao no trabalho do arquiteto: [...] A imaginao tica e

    politicamente intencionada a ideologia, e no pode haver projeto sem ideologia34.

    Aqui possvel perceber que a fundamentao do projeto pode obedecer a algo alm da

    intuio pura e simples. Na opinio da autora, a sntese projetual est carregada de decises ticas e

    tambm polticas.

    J Arcipreste (2002) acredita que a escola tende a melhor avaliar a produo artstica quando o

    seu resultado baseado na originalidade, pautada pela singularidade irredutvel.

    31

    BRUNER, J. Op. Cit. p. 49.

    32

    Ibid. p. 68.

    33

    SILVA, H. A. A. Abraho Sanovicz: o projeto como pesquisa. Dissertao (Mestrado) FAU / USP, So Paulo, 2005. p. 248. 34

    Ibid. p. 254.

  • 33

    Falando sobre a exacerbao da capacidade de expresso individual a autora aponta:

    No caso da arquitetura, essa exacerbao, ao contrrio de promover uma formao para a

    criatividade, para a autonomia do estudante necessria em qualquer campo e fundamental para os seus objetivos especficos , induz, muitas vezes, a um reforo da noo de subjetivismo intuitivo. Essa noo traz em si concepes de dom ou talento, como habilidades

    prontas, acabadas algo que se tem ou no, algo que no se constri em processos pedaggicos

    35

    .

    Citando Comas (1986) a autora aponta que, apesar de a intuio desempenhar papel relevante

    na concepo do partido, improvvel que ela brote de um vazio. uma intuio preparada por algum

    conhecimento adquirido com antecedncia, mesmo que do ponto de vista arquitetnico atue de modo

    subliminar.

    Essa nfase nos processos intuitivos encorajaria a um formalismo gratuito no exerccio do

    projeto, exaltando a criatividade e impedindo o debate acerca das questes de ordem esttica, o que

    levaria ao ganho cognitivo do aluno.

    Ktia Teixeira (2005), ao descrever o ensino de projeto e sua relao com as demais

    disciplinas, aponta:

    [...] nem histria nem teoria sero instrumentos de trabalho para o projeto de arquitetura

    (CZAJKOWSKI, 1986). O ensino de projeto ser dependente da capacidade latente, ou da

    intuio, ou do talento de seus estudantes: projeto no se ensina, aprende-se36.

    Nas citaes acima se questiona, recorrentemente, o papel da capacidade de intuio na

    definio da sntese de projeto. Teixeira (2005) acredita que um dos problemas desse tipo de aula que

    a responsabilidade em conectar os contedos adquiridos nas demais disciplinas do curso, integrando-os

    ao projeto, recai principalmente sobre o aluno.

    Alm disso, existe o mito da necessidade de talento nato do educando para desenvolver as

    habilidades e competncias da prtica de projeto. Ou seja, defende-se a ideia, equivocada, em nosso

    entender, de que h habilidades que no sero desenvolvidas pelo estudante que no tiver uma espcie

    de pr-disposio para isso.

    Entre os aspectos recorrentes do ensino de ateli, apontados em sua pesquisa, Teixeira (2005)

    destaca ainda a necessidade de, quando se trata do projeto, trabalhar a sntese dos conhecimentos

    35

    ARCIPRESTE, C. M. A prtica pedaggica do projeto de arquitetura: reflexes a partir dos processos de avaliao da

    aprendizagem. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Educao da UFMG, Belo Horizonte, 2002. p. 64. 36

    TEIXEIRA, K. A. Ensino de projeto: integrao de contedos. Tese (Doutorado) FAU / USP, So Paulo, 2005. p. 53.

  • 34

    analisados, dentro e fora do ateli, ao longo do desenvolvimento do curso de arquitetura.

    Segundo a autora, na grande maioria das escolas estudadas, as disciplinas do curso devem

    orientar seus contedos disciplinares de maneira a convergir para a sua utilizao nas matrias de

    projeto. Com isso, a capacidade de sntese torna-se a principal competncia necessria ao aluno nesse

    campo, uma vez que deve integrar os contedos disciplinares no exerccio do projeto.

    Sobre isso, ela afirma:

    [...] embora seja uma condio compreendida como imprescindvel [a capacidade de sntese],

    ela no verificada, no decorrer dos trabalhos dos estudantes, ao longo dos estudos, na

    medida correspondente nfase que lhe atribuda. A no ser que nos contentemos com os

    resultados geralmente obtidos, que apontam desempen