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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA VICTOR FIORI AUGUSTO Para além dos preconceitos: as implicações da negação do livre- arbítrio na filosofia política de Espinosa São Paulo 2018

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

VICTOR FIORI AUGUSTO

Para além dos preconceitos: as implicações da negação do livre-

arbítrio na filosofia política de Espinosa

São Paulo

2018

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VICTOR FIORI AUGUSTO

Para além dos preconceitos: as implicações da negação do livre-

arbítrio na filosofia política de Espinosa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Filosofia do Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo, para obtenção do título de Mestre em

Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Luís

César Guimarães Oliva

São Paulo

2018

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convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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AUGUSTO, V. F. Para além dos preconceitos: as implicações da negação do livre-arbítrio

na filosofia política de Espinosa. 2018. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2018.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)

Prof. Dr. Fernando Bonadia de Oliveira

Instituição: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Prof. Dr. Homero Silveira Santiago.

Instituição: Universidade de São Paulo (USP)

Presidente da banca: Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva

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“(...) diremos com plena certeza de não podermos ser seriamente

contraditados por ninguém: que toda criança, todo adulto, todo

jovem e finalmente todo homem maduro é o puro produto do

mundo que o alimentou e o educou em seu seio, um produto

fatal, involuntário, e consequentemente, irresponsável.”

(BAKUNIN, Federalismo, socialismo e antiteologismo, p. 87)

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Luís César Guimarães Oliva, pela orientação ética, rigorosa e paciente na

Iniciação Científica e no Mestrado.

Ao professor Fernando Bonadia de Oliveira, pela amizade, pelo constante aprendizado

filosófico e pedagógico e pela participação no exame de qualificação e na banca de defesa.

Ao professor Homero Silveira Santiago, por ensinar filosofia de maneira filosófica e

pela participação no exame de qualificação e na banca de defesa.

Ao professor Douglas Ferreira Barros, pela participação na banca de defesa.

Ao Grupo de Estudos Espinosanos da USP, pelas reflexões constantes e por

demonstrarem que seriedade acadêmica e alegria não são coisas contraditórias.

Às amigas e aos amigos espinosanos de fora de São Paulo, pelos bons encontros.

Aos meus pais Alberto e Marcia, pelo apoio constante e por terem me ensinado, desde

cedo, a importância da solidariedade.

Aos colegas do corpo editorial dos Cadernos de Ética e Filosofia Política,

companheiras e companheiros de resistência, por fazerem da academia um lugar mais humano

e divertido.

Ao Centro Acadêmico de Filosofia (CAF), pelo aprendizado político e pelas

experiências democráticas.

Aos amigos e amigas valinhenses, por tudo que compartilhamos e por buscarem fazer

da cidade de Valinhos um local onde há vida cultural e resistência.

Aos alunos e alunas do Novo Anglo Vinhedo, pelo convívio alegre e por reforçarem

cotidianamente a ideia de que a prática político-pedagógica não pode se alicerçar no

autoritarismo punitivo.

Às funcionárias e funcionários do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, cujo

trabalho foi essencial para a concretização desta pesquisa.

Ao CNPq, pelo apoio financeiro que, parcialmente, tornou possível este trabalho.

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SUMÁRIO

RESUMO / 8

ABSTRACT / 9

INTRODUÇÃO / 10

CAPÍTULO 1. A CRÍTICA DE ESPINOSA À LIBERDADE DA VONTADE (ÉTICA II,

PROPOSIÇÕES 48 E 49) / 14

CAPÍTULO 2. A CRÍTICA DA LIBERDADE DA VONTADE NA FILOSOFIA DE

THOMAS HOBBES E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E POLÍTICAS / 35

2.1. A crítica de Hobbes ao livre-arbítrio / 37

2.2. Implicações jurídicas e políticas da negação hobbesiana do livre-arbítrio / 44

CAPÍTULO 3. DIREITO NATURAL E POLÍTICA: ESPINOSA CONTRA HOBBES /

48

3.1. A correspondência entre Espinosa e Jelles / 48

3.2. Direito natural e vida em sociedade / 50

3.3. A fundamentação espinosana do direito de punir / 57

CAPÍTULO 4. PUNIÇÃO E POLÍTICA EM ESPINOSA / 60

CONCLUSÃO / 67

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS / 75

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RESUMO

AUGUSTO, V. F. Para além dos preconceitos: as implicações da negação do livre-arbítrio

na filosofia política de Espinosa. 2018. 80 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2018.

O objetivo deste trabalho é investigar as implicações políticas da negação do livre-arbítrio da

vontade na filosofia de Bento de Espinosa. Trata-se de compreender como é possível pensar a

vida em sociedade sem recorrer à livre vontade humana para punir os atos contrários aos

direitos comuns. Se o ser humano possui livre-arbítrio para fazer ou deixar de fazer algo, isto

é, se a vontade é causa total das ações humanas, é compreensível que as pessoas sejam

punidas por suas ações que são prejudiciais à liberdade comum, já que poderiam

perfeitamente ter escolhido agir de outra forma. Contudo, em uma filosofia como a

espinosana, para a qual a liberdade da vontade não passa de um preconceito e para a qual tudo

ocorre necessária e não contingentemente, é preciso indagar qual a melhor maneira de lidar

com as injustiças que causam danos aos cidadãos.

Palavras-chave: Espinosa, livre-arbítrio, política, direito natural, direito penal.

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ABSTRACT

AUGUSTO, V. F. Beyond prejudices: implications of the denial of the free will in

Spinoza’s political philosophy. 2018. 80 f. Thesis (Master Degree) – Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São

Paulo, São Paulo, 2008.

The aim of this research is to investigate the political implications of the denial of the

free will in Spinoza’s philosophy. Our goal is to understand how is it possible to think

about social life without having to resort to human free will to punish the acts that are

contrary to the common rights. If human beings have the free will to do or to avoid

doing something, that is, if the will is the total cause of human actions, it is

comprehensible that a person is punished for acting against the common freedom,

because the person could have chosen otherwise. However, in a philosophy like that of

Spinoza, in which the freedom of the will is just a prejudice and everything happens

necessarily, not contingently, we must inquire what is the best way to deal with the

injustices that do harm to the citizens.

Keywords: Spinoza, free will, politics, natural right, criminal law.

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INTRODUÇÃO

Os filósofos da Antiguidade greco-romana não chegaram a formular o que

podemos chamar de uma teoria do livre-arbítrio. Esse, ao menos, é o parecer de

Thomas Hobbes que lemos no início das Questões acerca da liberdade, necessidade e

acaso (1656). Ali, com efeito, Hobbes afirma que os filósofos antigos problematizaram

se todas as coisas acontecem por necessidade ou se algumas delas ocorrem por acaso,

mas nunca questionaram se algo vem a ser a partir do livre-arbítrio da vontade humana.

Assim como os pensadores da antiguidade, os primeiros cristãos também não teriam

elaborado uma doutrina do livre-arbítrio. Paulo de Tarso, por exemplo, sustentou que

todas as ações derivam tão somente da irresistível vontade divina, não havendo ação

alguma que deriva da vontade daquele que quer (Romanos, IX, 16). De acordo com a

interpretação hobbesiana, os “doutores da Igreja Romana”, algum tempo após o início

do cristianismo, foram os primeiros a isentar a vontade humana do domínio da vontade

divina, defendendo que “não apenas o homem, mas também sua vontade é livre, e

determinada a esta ou aquela ação não pela vontade de Deus, nem por causas

necessárias, mas pelo poder da própria vontade”1.

Vai também nesse sentido a interpretação de Christopher Kluz. Depois de buscar

por uma teoria do livre-arbítrio em Platão, em Aristóteles, em Epicuro e no pensamento

estoico, Kluz conclui que a formulação sistemática de tal teoria tem sua origem na

tradição cristã e nos problemas filosóficos por ela envolvidos2. A mais influente

formulação da teoria do livre-arbítrio (“talvez a primeira”, nas palavras de Kluz), pode

ser encontrada no texto De libero arbitrio voluntatis (Sobre o livre-arbítrio da vontade),

escrito por Agostinho de Hipona (Santo Agostinho, doutor da igreja romana) entre

aproximadamente 386 e 395 d.C.3.

1 HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions concerning Liberty, Necessity, and

Chance”. In: Hobbes and Bramhall on Liberty and Necessity (edited by Vere Chappell). New York:

Cambridge University Press, 1999, p. 70. 2 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics: Spinozistic Interventions in the

Contemporary Discussions of Responsibility. PhD Dissertation – Faculty of the James T. Laney School of Graduate Studies. Emory University, Atlanta. 2012, p. 4-7. Ao escrever sobre o livre-arbítrio e a liberdade

cristã, o historiador da filosofia Étienne Gilson notou que “por mais elaborada que fosse a teoria

aristotélica da escolha, concebida como uma decisão da vontade consecutiva a uma deliberação racional,

permanece, todavia, um fato que Aristóteles não falou nem de liberdade nem de livre-arbítrio.” (GILSON,

E. The Spirit of Mediaeval Philosophy. Translated by A. H. C. Downes. New York: Charles Scribner’s

Sons, 1940, p. 307). 3 Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy, verbete Saint Augustine. Disponível em

http://plato.stanford.edu/entries/augustine/#Bib. Acesso em 12/01/2016; O’DONNEL, James J. Augustine

– Selected Bibliography. Disponível em http://faculty.georgetown.edu/jod/twayne/twaynebib.html. Ver

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De acordo com a leitura de Kluz, Agostinho entendia a vontade como uma

faculdade da qual são dotados os seres humanos e que, sendo livre, tem em si mesma o

poder de eleger arbitrariamente entre esta ou aquela possibilidade alternativa de ação ou

escolha. Sendo uma faculdade dada aos humanos por Deus, a vontade é boa e deve se

conduzir em direção ao próprio Deus, o bem imutável. Contudo, a libido e o desejo

corrompem a vontade humana, fazendo com que ela se volte para bens mutáveis, tendo

assim origem o pecado4. Se esse redirecionamento da vontade fosse entendido como um

movimento determinado pela ordem natural, Deus, o criador e ordenador da natureza,

seria de alguma forma culpado pelas faltas humanas e pelo mal, ao passo que as ações

humanas pecaminosas seriam desculpáveis5, já que, conforme afirma Agostinho, “se

esse movimento de se voltar para os bens mutáveis existe, vindo da natureza ou devido

à necessidade, ele não pode de modo algum ser culpável”6, pois nada poderíamos fazer

para evitá-lo.

De acordo com Marilena Chaui, ao interpretar a distinção aristotélica entre o

necessário, o possível e o contingente, a tradição metafísica cristã “identificou o que é

‘por natureza’ com o que acontece ‘por necessidade’ e o que é ‘por vontade’ com o que

acontece ‘por liberdade’”7, identidade essa que atravessa a argumentação agostiniana no

De libero arbitrio, conforme se pode ver no texto de Agostinho citado acima e também

no seguinte trecho:

também OLIVEIRA, N. de A. “Introdução”. In: AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995,

p. 11. 4 Cabe notar que, segundo a interpretação agostiniana de Étienne Gilson, a causa do pecado

original foi o orgulho. Cf. GILSON, E. Introdução ao estudo de santo Agostinho. Tradução: Cristiane

Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006, p. 286, nota 36. Gerald Bonner

concorda com essa interpretação de Gilson, e esclarece que o orgulho consiste no “desejo de um ser

criado de se levantar em oposição ao seu Criador” (BONNER, G. Freedom and necessity: St. Augustine’s

teaching on divine power and human freedom. Washington D.C.: Catholic University of America Press,

2007, p. 3). 5 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 6-7. 6 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. Tradução, organização, introdução e notas: Nair de Assis

Oliveira. Revisão: Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995, p. 148. 7 CHAUI, M. Da metafísica do contingente à ontologia do necessário: Espinosa. In: OLIVA, L.

C. G. Necessidade e contingência na modernidade. São Paulo: Editora Barcarolla, 2009, p. 27. Conforme esclarece Marilena Chaui, “nas Categorias e na Física, Aristóteles concebe o necessário como aquilo que

não depende de uma decisão voluntária, mas decorre da própria phýsis; em contrapartida, o possível é

aquilo que depende de uma decisão voluntária ou de uma escolha entre alternativas contrárias, escolha

feita em vista de um fim visado pela vontade do agente; o contingente, por sua vez, é [aquilo] que não

depende nem da phýsis nem da vontade, mas acontece quando duas séries causais, cada qual dotada de

seu próprio sentido e fim, acidentalmente se encontram (o contingente é o encontro fortuito de

causalidades independentes). Aristóteles dizia que o necessário e o contingente não estão em nosso poder;

e que o possível é exatamente o que está em nosso poder e nele se alicerça a liberdade.” (CHAUI, M. Da

metafísica do contingente..., op. cit., p. 27, nota 1, acréscimo nosso).

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Resta, portanto, que seja próprio da vontade aquele movimento pelo qual ela se afasta do

Criador e dirige-se às criaturas, para usufruir delas. Se, pois, ao declarar esse movimento

culpável (e para ti apenas duvidar disso parecia irrisório), certamente, ele não é natural, mas voluntário. Aliás, assemelha-se, de fato, ao movimento que arrasta a pedra para

baixo, sob este aspecto que, assim como tal movimento é próprio da pedra, assim também

é próprio da alma. Mas diferencia-se nisto, que a pedra não possui o poder de reter o movimento que a arrasta, e ela pode não o querer. Ela não é arrastada ao abandono dos

bens superiores para escolher os inferiores. Assim, o movimento da pedra é natural e o da

alma, voluntário. (AGOSTINHO, O livre-arbítrio, op. cit., p. 149-150).

A ênfase na vontade como liberum arbitrium era de fundamental importância

para que Agostinho não contradissesse a doutrina cristã do pecado – segundo a qual os

seres humanos são moralmente responsáveis ou culpados pelos pecados que cometem8 –

e para que Deus não fosse considerado responsável pela maldade observada no mundo9.

Em suma, pode-se dizer que o conceito agostiniano de livre-arbítrio aparece para dar

conta de duas questões doutrinais, a saber, livrar Deus de qualquer culpa e tornar os

homens culpáveis por suas ações.

Notemos, ainda que de passagem, que a questão do livre-arbítrio é das mais

complexas dentro do pensamento agostiniano. Se, no De libero arbitrio, escrevendo

contra os maniqueus, Agostinho enfatiza a liberdade da vontade humana para escolher

entre o bem e o mal, em obras posteriores, o bispo de Hipona sublinhou que, por si só, a

humanidade decaída só pode fazer o mal, sendo necessária a ação da graça divina para

que se possa fazer o bem. De qualquer forma, interessa-nos ressaltar aqui que o

enfraquecimento da vontade depois da queda seria já um reflexo da punição divina pelo

pecado de Adão, o qual foi criado totalmente bom e pecou voluntariamente, tendo a

humanidade participado desse pecado original10

.

8 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 7. De acordo com Étienne

Gilson, “Agostinho não para de afirmar que o erro original foi um efeito do livre-arbítrio do homem e,

portanto, deve ser imputado primeiramente à sua vontade”, pois “o movimento que separou o homem de

seu fim veio somente do próprio homem.” (GILSON, E. Introdução ao estudo de santo Agostinho, op.

cit., p. 285-286). Vale lembrar aqui que, no Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche argumenta que a doutrina

da vontade como livre-arbítrio “foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer

achar culpado. (...) Os homens foram considerados “livres” para poderem ser julgados, ser punidos – ser

culpados (...). O cristianismo é uma metafísica do carrasco...” (NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos

ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 46). Para uma análise da crítica de Nietzsche ao livre-arbítrio, ver

SILVA, V. da. “A crítica nietzscheana ao livre-arbítrio”. Labirinto – Revista eletrônica do Centro de

Estudos do Imaginário, ano V, n. 7 – jan.-jun. de 2005. 9 Nas palavras de Nair Assis de Oliveira, o livro agostiniano De libero arbitrio tinha a intenção

de “refutar os maniqueus, os quais negam o livre-arbítrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a

responsabilidade pelo mal e pelo pecado” (OLIVEIRA, N. de A. “Introdução”, op. cit., p. 17). 10 Cf. GILSON, E. Introdução ao estudo de santo Agostinho, op. cit., p. 286-291; BONNER, G.

Freedom and necessity, op. cit., p. 25. Um estudo detalhado sobre as mudanças pelas quais passou o

conceito agostiniano de livre-arbítrio pode ser visto em MARQUES, M. J. B. O livre-arbítrio em

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A teoria do livre-arbítrio formulada por Agostinho, após ser desenvolvida na

filosofia medieval (sobre a qual exerceu grande influência11

), será herdada pelos

filósofos do século XVII, sendo essa doutrina comumente aceita ainda nos dias de

hoje12

. Contudo, essa liberdade atribuída à vontade torna-se um problema para boa parte

dos pensadores seiscentistas, pois, herdeiros de Galileu e de sua concepção de que a

natureza opera conforme leis necessárias matematicamente explicáveis, eles se deparam

com uma ideia de vontade humana que escapa à necessidade natural13

.

Se a liberdade da vontade é o fundamento da responsabilidade moral dos agentes

ou aquilo que os torna culpáveis por seus atos, longe de se restringir a um debate

meramente metafísico, a discussão acerca do livre-arbítrio envolve questões jurídicas e

políticas importantes. Conforme Velthuysen adverte Espinosa na Carta 42, se todas as

coisas, inclusive a vontade humana, ocorrem necessariamente, não resta lugar algum

para a esperança da recompensa ou para o medo do castigo, que seriam incapazes de

alterar a conduta humana14

. Na Carta 57, Tschirnhaus indaga: se nossa vontade não é

livre, mas somos coagidos pelas causas externas, como é possível adquirir o hábito da

virtude? A falta do livre-arbítrio não significa que toda malícia é escusável?15

Já na

Carta 74 da correspondência espinosana, Oldenburg procura explicar a Espinosa quais

são as opiniões por este expressas no Tratado Teológico-político que, segundo alguns

leitores da obra, parecem solapar a prática da virtude religiosa. Entre essas opiniões,

está a ideia de que uma necessidade fatal, tal como aquela que Espinosa parece afirmar,

derruba os fundamentos das leis, da virtude e da religião, não deixando lugar algum para

a culpa e para a punição e tornando inúteis e insustentáveis as recompensas e as penas16

.

Agostinho. 241 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo, São Paulo. 2012. 11 “(...) foi imensa a influência operada por meio deste diálogo filosófico [i.e., o De libero

arbitrio] no transcurso dos séculos. Não há escritor, em toda a Idade Média, que fale ou trate da questão

do livre-arbítrio e do pecado que não tenha ido beber nesta fonte agostiniana.” (OLIVEIRA, N. de A.

“Introdução”, op. cit., p. 21, acréscimo nosso). De acordo com Étienne Gilson, assim como as morais

concebidas pelos ditos “padres da igreja” (entre eles, Agostinho), as morais cristãs elaboradas no medievo

também “têm sua base necessária na doutrina de um indestrutível livre-arbítrio.” (GILSON, The Spirit of

Mediaeval Philosophy, op. cit, p. 322). 12 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 7. 13 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 8; RODRIGUES, J. Identidade

entre ideia e volição: a crítica à imagem do livre-arbítrio em Espinosa. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.

2013, p. 9. 14 SPINOZA, B. Correspondencia. Traducción, introducción y notas de Atilano Domínguez.

Madrid: Alianza Editorial, 1988, p. 273-274. 15 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 334. 16 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 389.

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Antes de buscarmos compreender as respostas de Espinosa a seus

correspondentes e de que maneira sua refutação da liberdade da vontade humana incide

sobre seu pensamento político, vejamos de que maneira nosso filósofo critica a ideia de

livre-arbítrio.

1. A CRÍTICA DE ESPINOSA À LIBERDADE DA VONTADE

(ÉTICA II, PROPOSIÇÕES 48 E 49)

Se levarmos em conta que a crítica à liberdade humana entendida como livre

vontade, além de estar presente na Ética e na Correspondência de Espinosa (essa crítica

pode ser vista, aliás, já na primeira carta de Espinosa que lemos na sua

Correspondência, a Carta 2, de 1661), pode ser encontrada também no Breve tratado

(BT), considerado a primeira exposição sistemática da filosofia espinosana17

, e no

Tratado político (TP)18

, última obra de Espinosa, que permaneceu inacabada devido à

morte do filósofo em 1677, podemos afirmar sem exagero que a crítica ao livre-arbítrio

perpassa toda a obra espinosana.

A Ética é comumente considerada o texto que traz a exposição sistemática e

acabada da filosofia de Espinosa. Na parte II dessa obra, intitulada “Da natureza e

origem da mente”, o filósofo se debruça detidamente sobre a questão da vontade. As

duas proposições que encerram a segunda parte da Ética – nomeadamente, as

proposições 48 e 49 – contêm, nas palavras de Pierre Macherey, “uma reflexão crítica

sobre o tema tradicional da distinção das faculdades da alma, isto é, o intelecto e a

vontade”19

. Robert Misrahi entende que a proposição 48 e seu escólio mostram a

impossibilidade de se afirmar a vontade como faculdade, constituindo uma “crítica da

ideia de faculdade” que será crucial para a refutação da teoria cartesiana do erro que

Espinosa apresentará a partir da proposição 4920

. Juarez Rodrigues observa que as duas

proposições em questão têm por objetivo “denunciar a passividade tanto do intelecto

17 A crítica espinosana à liberdade da vontade no Breve tratado pode ser vista em BT, I, 6 (leia-se

Breve tratado, primeira parte, capítulo 6) e BT, II, 16. Estima-se que o Breve tratado foi composto entre

1656 e 1662. Sobre isso, ver ESPINOSA, B. Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Prefácio de Marilena Chaui, introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu,

tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2012, p. 14 e p. 32. 18 A refutação do livre-arbítrio encontra-se no capítulo II (sobretudo nos artigos 6 e 7) do Tratado

político. 19 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La deuxième partie – La realité

mentale. Paris: Presses Universitaires de France, 1997, p. 161. 20 Cf. SPINOZA, B. Éthique. Introduction, traduction, notes et commentaires, index de Robert

Misrahi. Paris-Tel-Aviv: Éditions de l’éclat, 2005, p. 395, nota 79.

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quanto das ideias cartesianas”; para ele, ao demonstrar a identidade entre ideia e

volição, Espinosa afasta a explicação do juízo que precisa recorrer a duas faculdades

mentais distintas (i.e., vontade e intelecto)21

.

A fim de compreendermos a crítica espinosana à liberdade da vontade,

analisaremos aqui essas duas proposições que encerram a Ética II. Trata-se de mostrar,

por um lado, quais os argumentos utilizados por Espinosa para demonstrar a falsidade

da livre vontade que as pessoas imaginam possuir; por outro lado, busca-se apontar o

que Espinosa entende por vontade ou volição e quais as causas que a determinam.

Recorreremos pontualmente a outros textos de Espinosa a fim de elucidar alguns

detalhes de nossa investigação.

Segundo a proposição 48 da Ética II, “na mente, não há nenhuma vontade

absoluta, ou seja, livre”, sendo a mente determinada “a querer isso ou aquilo por uma

causa, que também é determinada por outra, e esta de novo por outra, e assim ao

infinito” (EII, P48). Espinosa começa a demonstração dessa proposição afirmando que

“a mente é um modo de pensar certo e determinado”, afirmação essa que se apoia em

EII, P11, onde já se demonstrara que o ser atual da mente humana consiste

primeiramente na “ideia de uma coisa singular existente em ato” (EII, P11). De acordo

com EII, def. 7, uma coisa singular é uma coisa finita que tem existência determinada, e

essa coisa singular da qual a mente humana é ideia não é senão o corpo humano, “um

modo certo da extensão, existente em ato” (EII, P13). Ora, sendo um modo certo e

determinado do atributo pensamento, isto é, sendo ela mesma uma coisa singular, a

mente não pode ser considerada “causa livre de suas ações, ou seja, não pode ter uma

faculdade absoluta de querer e não querer” (EII, P48, dem.), pois já se demonstrou na

Ética I que somente Deus é causa livre, uma vez que somente ele existe e age apenas

pela necessidade de sua natureza (EI, P17, corol. 2). Assim, é a partir de sua concepção

da mente humana como ideia de uma coisa singular existente em ato (a saber, o corpo

humano) ou como modo finito do atributo pensamento que Espinosa conclui que não há

na mente nenhuma vontade livre ou absoluta. Cabe notar, além disso, que a primeira

parte da Ética já esclarecera que a vontade, quer seja concebida como finita ou como

infinita, “não pode ser chamada causa livre, mas somente necessária” (EI, P32), pois,

devido à sua condição modal, a vontade deve ser determinada a existir e a operar por

outra causa que não ela própria (EI, P32, dem.). Conforme aponta Marilena Chaui,

21 RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 13.

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“Espinosa se debruça (...) sobre o que significa, para a vontade, ser um modo e é de sua

condição modal que ele concluirá que ela não pode ser uma causa livre”22

.

A concepção espinosana de que não há na mente uma vontade absoluta ou livre

levanta uma questão, cuja resposta pode ser vista no trecho final da demonstração da

proposição 48 da Ética II: se a mente humana não possui uma vontade livre para querer

isso ou aquilo, como explicar que nossa mente seja de fato determinada a querer isso ou

aquilo? Ora, sendo a mente humana um modo, sua essência não envolve existência

necessária (isto é, ela não é causa de si23

), e sendo finita, é forçoso concluir que a mente

é necessariamente determinada a existir e operar pelo infinito nexo das causas, devendo

assim “ser determinada a querer isso ou aquilo por uma causa, que também é

determinada por outra, e esta de novo por outra, etc.” (EII, P48, dem.)24

. Essa causa que

determina a mente a querer algo é necessariamente um modo finito do atributo

pensamento, pois uma modificação finita como a mente humana só pode ser

determinada a existir e operar se o for por outra modificação finita (EI, P28), e só pode

ser afetada ou causada por outras modificações do mesmo atributo do qual ela é modo

(EII, P6), a saber, o atributo pensamento.

Vemos assim, a partir da proposição 48 da Ética II, que conceber a vontade

como uma faculdade absoluta ou livre que a mente humana tem de querer e não querer é

concebê-la abstratamente, como se a vontade humana agisse de maneira separada e

independente do nexo infinito das causas finitas, como se a mente fosse um “império

22 CHAUI, M. Da metafísica do contingente, op. cit., p. 73. 23 “Por causa de si entendo isso cuja essência envolve existência, ou seja, isso cuja natureza não

pode ser concebida senão existente” (EI, def. 1). 24 De acordo com o que Espinosa escreve no Breve tratado, “É certo que o querer particular deve

ter uma causa exterior pela qual exista, pois como a existência não pertence à sua essência, então deve

existir necessariamente pela existência de outra coisa” (BT, II, 16, nota do parágrafo 3). Conforme aponta

Emanuel Fragoso, “porque não possuem a existência necessária, as coisas singulares ou toda coisa que é

finita e tem uma existência determinada não pode existir e nem ser determinada a agir se não é

determinada a existir e a agir por outra causa além delas mesmas” (FRAGOSO, E. A. da R.

“Considerações acerca da teoria dos modos na Ética de Spinoza”. Semina: Ciências Sociais e Humanas.

Londrina-PR, v. 22, p. 35-38, set. 2001, p. 36). Esta é também a interpretação de Pierre Macherey, que

especifica que, dentro do vocabulário conceitual de Espinosa, o termo “agir” (agere) é reservado apenas

“às ações de uma coisa livre, determinada a agir por sua só natureza”, ao passo que o termo “operar”

(operari) concerne mais propriamente às coisas que são externamente determinadas (MACHEREY, P.

Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 372). Essa distinção conceitual é introduzida na definição 7 da Ética I, onde lemos: “É dita livre essa coisa que existe a partir da só necessidade de sua natureza e

que determina-se por si só a agir. Porém, necessária, ou antes coagida, aquela que é determinada por

outro a existir e a operar de maneira certa e determinada” (EI, def. 7, grifos nossos). Já a expressão

“infinito nexo das causas” (infinitus causarum nexus) aparece em EV, P6, dem. para designar a atividade

causal descrita por Espinosa em EI, P28: “Qualquer singular, ou seja, qualquer coisa que é finita e tem

existência determinada, não pode existir nem ser determinado a operar, a não ser que seja determinado a

existir e operar por outra causa, que também seja finita e tenha existência determinada e por sua vez esta

causa também não pode existir nem ser determinada a operar a não ser que seja determinada a existir e

operar por outra que também seja finita e tenha existência determinada, e assim ao infinito” (EI, P28).

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num império”, para empregar uma expressão utilizada por Espinosa no prefácio da

terceira parte da Ética. De fato, no interior do espinosismo, “o homem não é um ser

destacado da natureza à qual pertence”25

, mas sim uma pars naturae, uma parte da

natureza, o que não pode ser ignorado quando se pretende compreender em que consiste

a vontade e como ela é determinada a operar. Aqui já podemos vislumbrar que, se não

faz sentido falar da vontade como uma faculdade livre, a liberdade humana, de acordo

com a filosofia de Espinosa, não pode consistir no livre-arbítrio. Conforme observa

Pierre Macherey,

(...) o exercício do que se costuma chamar de vontade está sempre submetido às

determinações exteriores, o que impede de reconhecer nesse exercício as características próprias a uma ação verdadeiramente livre. [...] se o ser humano é capaz de agir

livremente, isso não pode se dar por causa desse poder de decisão do qual ele é creditado,

já que esse poder nunca é inteiramente livre.26

No escólio que se segue à proposição 48, Espinosa mostra que aquilo que fora

demonstrado anteriormente em relação à vontade vale também para as outras supostas

faculdades mentais absolutas, donde ser preciso afirmar que “não se dá na mente

nenhuma faculdade absoluta de inteligir, desejar, amar, etc.”; sendo assim, é preciso

concluir que estas faculdades e outras semelhantes “ou são inteiramente fictícias”, não

correspondendo a nenhuma coisa realmente existente, “ou não são nada além de entes

metafísicos, ou seja, universais” (EII, P48, esc.), formados por abstração a partir de

modos de pensar singulares.

Cabe notar de passagem que, a esta altura da Ética, Espinosa já realizara uma

crítica das noções ditas “universais” em EII, P40, esc. 1. Estas seriam imagens comuns

ou universais que têm origem na fraqueza de nosso corpo. De fato, a mente humana é

capaz de imaginar “distintamente em simultâneo tantos corpos quantas imagens possam

ser formadas simultaneamente em seu próprio corpo”. Quando o número de imagens

que nosso corpo pode formar distintamente e ao mesmo tempo é superado, nossa mente

torna-se incapaz de imaginar as mínimas diferenças dos singulares e o seu número

determinado, e imagina distintamente “apenas aquilo em que todos convêm enquanto o

corpo é por eles afetado”; assim, cada pessoa, de acordo com sua disposição corporal,

forma uma imagem universal distinta – por exemplo, conforme foi afetada, pode

considerar que o homem é “um animal bípede, sem plumas”, ao passo que outra

conceberá o homem como “um animal racional” (EII, P40, esc. 1).

25 RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 62. 26 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 370.

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Contudo, ao afirmar em EII, P48, esc. que faculdades mentais absolutas ou livres

como vontade, intelecto, desejo, etc., se não são completas ficções, não passam de

“entes metafísicos, ou seja, universais”, a crítica espinosana parece recair sobre

universais formados especificamente a partir de ideias ou modos particulares de pensar

(como volições, intelecções, desejos, etc.), e não a partir de imagens corporais. De

qualquer forma, essa crítica às faculdades mentais absolutas e a crítica às imagens

universais que encontramos em EII, P40, esc. 1 têm algo em comum, pois, nos dois

casos, trata-se da formação de ideias universais e abstratas a partir de modos

singulares27

. Assim, “o intelecto e a vontade estão para essa ou aquela ideia, ou para

essa ou aquela volição, da mesma maneira que a pedridade para essa ou aquela pedra,

ou o homem para Pedro e Paulo” (EII, P48, esc.). Conforme Espinosa já afirmara no

Breve tratado, “porque o homem tem ora essa ora aquela vontade, faz um modo

universal em sua mente e o denomina vontade, como também a partir deste ou daquele

homem faz uma ideia do homem” (BT, II, 16, §4); vai também nesse sentido o texto da

Carta 2 a Oldenburg (1661), onde Espinosa diz que “entre a vontade e esta ou aquela

volição há a mesma relação que entre a brancura e este ou aquele branco, a humanidade

e este ou aquele homem”28

.

Uma vez que os universais não passam de ficções ou entes metafísicos, segue-se

que eles não podem ser causa de nenhum efeito. Essa ideia, que está implícita no escólio

da proposição 48, aparece claramente nos dois textos anteriores à Ética que citamos

acima: na Carta 2, lemos que “é tão impossível considerar a vontade como causa desta

ou daquela volição como considerar que a humanidade é causa de Pedro e de Paulo”29

;

já no BT, Espinosa afirma que, sendo a vontade tão somente “uma ideia de tal ou qual

querer e, portanto, unicamente um modo de pensar, um ente de razão e não um ente real,

então nada pode ser causado por ela, nam ex nihilo nihil fit [porque nada vem do nada]”

(BT, II, 16, §4). Ao entender a vontade como um universal ou um ente de razão,

Espinosa esvazia de sentido a questão que versa sobre a liberdade da vontade: uma vez

que “a vontade não é uma coisa na Natureza, mas uma simples ficção, (...) não é preciso

perguntar se a vontade é livre ou não” (Idem)30

.

27 Cf. MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 375. 28 ESPINOSA, B. de. Correspondência. Coleção Os Pensadores. 1ª edição. São Paulo: Abril

Cultural, 1973, p. 376. 29 Idem, ibidem. 30 Wim Klever procurou mostrar que o pensamento espinosano exerceu grande influência sobre

muitos pontos do pensamento de John Locke, apontando várias semelhanças textuais entre os dois

autores. Alguns vestígios da Carta 2 e do BT poderiam ser encontrados no Ensaio sobre o entendimento

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Depois de apontar que as faculdades mentais absolutas ou são ficções ou não

passam de abstrações formadas a partir de ideias singulares, Espinosa afirma já ter

explicado, no apêndice da Ética I, “a causa por que os homens pensam ser livres” (EII,

P48, esc.). No apêndice em questão, vemos Espinosa convocar “ao exame da razão” (ad

examen rationis) os preconceitos que podem impedir a compreensão daquilo que fora

demonstrado anteriormente na Ética I, a saber, o que é Deus e quais as suas

propriedades. Todos esses preconceitos dependem de um só, o preconceito dito

“finalista”, segundo o qual

(...) os homens comumente supõem todas as coisas naturais agirem, como eles próprios,

em vista de um fim; mais ainda, dão por assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas para algum fim certo: dizem, com efeito, que Deus fez tudo em vista do homem, e

o homem, por sua vez, para que o cultuasse (EI, apêndice).

Para mostrar, no apêndice, a causa por que a maioria dos seres humanos aceita

esse preconceito e por que todos propendem naturalmente a ele, bem como para expor a

falsidade do preconceito finalista e como dele se originam outros preconceitos (sobre

bem e mal, pecado e mérito, beleza e feiura e congêneres), Espinosa não parte da

natureza da mente humana (o que, aliás, só seria possível a partir da segunda parte da

Ética, pois é nela que se discorre acerca “da natureza e origem da mente”, como indica

seu título), mas sim de um fundamento que todos são coagidos a admitir, a saber, “todos

os homens nascem ignorantes das causas das coisas, e (...) todos têm o apetite de buscar

o que lhes é útil, sendo disto conscientes” (EI, apêndice). Segue-se deste fundamento a

causa por que os homens se imaginam livres: é justamente por serem conscientes de

seus apetites e volições, mas ignorarem completamente as causas que os dispõem a

querer e apetecer, que os seres humanos conjecturam serem livres31

, como se suas

volições não fossem determinadas por nada além de sua livre vontade. Essa mesma

causa será reafirmada em EII, P35, esc., onde lemos que os homens imaginam que são

humano de Locke, tendo o pensador inglês compreendido também como “inteiramente imprópria” a

questão sobre se a vontade do homem é ou não livre. Essa discussão está muito além dos objetivos

visados pelo presente trabalho, mas recomendamos que o leitor interessado na relação Espinosa-Locke

confira o intrigante O spinozismo disfarçado de Locke (a proximidade entre Espinosa e Locke acerca da

impertinência da questão sobre a liberdade da vontade pode ser vista em KLEVER, W. “O spinozismo

disfarçado de Locke [parte 1]”. Tradução de Victor Fiori Augusto, revisão técnica de Fernando Bonadia

de Oliveira e nota introdutória de Fernando Bonadia de Oliveira e Victor Fiori Augusto. Revista Conatus:

Filosofia de Spinoza. Fortaleza-CE, v. 7, n. 13, julho de 2013, p. 81-110, p. 88-89). 31 EI, apêndice.

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livres porque são “cônscios de suas ações e ignorantes das causas pelas quais são

determinados” (EII, P35, esc.)32.

Voltemos ao escólio da proposição 48 da Ética II. Depois de remeter o leitor ao

apêndice da Ética I, onde se demonstrara por que razão os homens julgam serem livres,

Espinosa distingue os conceitos de vontade e desejo antes de prosseguir suas

demonstrações, embora ele não esclareça por que motivo essa distinção é necessária.

Espinosa diz entender por vontade “a faculdade de afirmar e negar” ou, mais

especificamente, “a faculdade pela qual a mente afirma ou nega algo ser verdadeiro ou

falso”, que é diferente do desejo, “pelo qual a mente apetece ou tem aversão às coisas”

(EII, P48, esc.). Essa distinção parece restringir a vontade a uma esfera mental

propriamente cognitiva de afirmação e negação da verdade ou da falsidade das ideias,

afastando-a de um campo mental mais ligado à prática e às escolhas vitais e que diria

respeito ao desejo. Contudo, essa cisão entre duas esferas mentais distintas, uma

cognitiva ou teórica e outra prática ou da ação, realmente existe? Não sendo faculdades

absolutas, mas sim entes universais que não se distinguem das ideias singulares a partir

das quais são formados, poderiam as volições e os desejos singulares, enquanto

referidos à mente humana, ser algo fora das ideias das coisas?

A distinção espinosana entre vontade e desejo também pode ser encontrada no

Breve tratado, onde Espinosa afirma que a vontade “é somente a ação do intelecto pela

qual afirmamos ou negamos algo de uma coisa, sem ter em conta o bom ou o mau”, ao

passo que o desejo “é uma forma [disposição] na mente para perseguir ou realizar uma

coisa, tendo em conta o bom e o mau que se veem nela” (BT, II, 16, §8). Contudo,

diferentemente da Ética, o BT nos oferece uma pista acerca do motivo pelo qual essa

distinção entre vontade e desejo é adotada por Espinosa, trazendo mesmo um capítulo

32 Na terceira parte da Ética, Espinosa nos diz que “a própria experiência, não menos claramente

que a razão, ensina que os homens creem-se livres só por causa disto: são cônscios de suas ações e

ignorantes das causas pelas quais são determinados” (EIII, P2, esc.). Tal observação pode ser vista

também no prefácio da Ética IV, onde Espinosa nos lembra de que já disse muitas vezes ao longo dessa

sua obra que os homens são “certamente cônscios de suas ações e de seus apetites, mas ignorantes das

causas pelas quais são determinados a apetecer algo” (EIV, prefácio). Nesse mesmo sentido, vale citar um

trecho da Carta 58 a Schuller (outubro de 1674): “(...) concebe agora, se te apraz, uma pedra que, enquanto continua em movimento, é capaz de pensar e saber que ela está se esforçando tanto quanto pode

para continuar a se mover. Esta pedra, visto que está consciente apenas de seu próprio esforço, e de modo

nenhum indiferente a ele (& minimè indifferens), acreditará que é completamente livre e que a causa de

perseverar no movimento é unicamente porque quer e nenhuma outra causa. E esta é aquela liberdade

humana que todos se vangloriam de possuir, e que consiste apenas no fato de que os homens são

conscientes de seus apetites, mas ignoram as causas por que são determinados” (SPINOZA, B. “Carta

LVIII (outubro de 1674)”. Tradução de Samuel T. Ferreira e revisão técnica de Emanuel Angelo da

Rocha Fragoso. Revista Conatus: Filosofia de Spinoza. Fortaleza-CE, v. 7, n. 13, julho de 2013, p. 77-79,

p. 78, grifos nossos).

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(II, 17) que versa sobre a diferença entre ambos os conceitos. Nesse capítulo em

questão, Espinosa afirma que o desejo, conforme a definição aristotélica, parece ser um

gênero que abarca sob si duas espécies, sendo a vontade, chamada pelos latinos de

voluntas, uma dessas espécies. Aristóteles teria entendido que o desejo (ou cupiditas,

em sua versão latina) abrange todas nossas inclinações, quer sejam ao bem, quer ao mal.

A boa vontade ou voluntas seria a inclinação somente ao bem ou tida sob a aparência do

bem, ao passo que a má vontade ou voluptas seria a inclinação ao mal ou aquela

inclinação que vemos em outra pessoa a algo mau. Ora, ao restringir a vontade à ação

intelectual pela qual a mente afirma ou nega algo de alguma coisa, e isso sem ter em

conta a inclinação ao bem ou ao mal, Espinosa retira a vontade do campo abarcado pelo

desejo, afastando-se da posição aristotélica que entendia por vontade ou voluntas “o

apetite ou a atração que se tem sob a aparência do bem” (BT, II, 17, §2). Assim,

conforme as palavras de Espinosa, a inclinação ou disposição da mente, que diria

respeito tão somente ao desejo, “não é para afirmar ou negar algo, mas somente para

alcançar algo sob a aparência do bem e fugir de algo sob a aparência do mal”. Podemos

depreender então, a partir do BT, que a distinção operada por Espinosa entre vontade e

desejo pode ter a intenção de marcar seu distanciamento em relação à concepção de

Aristóteles33

, afastando assim o escrúpulo do leitor afeito à tradição aristotélica.

Além disso, com sua distinção entre vontade e desejo, Espinosa também marca

claramente seu distanciamento em relação ao pensamento cartesiano34

, pois, de acordo

com Descartes, a vontade não é apenas uma faculdade de afirmar e negar, mas inclui

também o desejo, entenda-se: a vontade, que para Descartes é livre e distinta do

intelecto, consiste somente em que “podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é,

afirmar ou negar, perseguir ou fugir) (...) de tal maneira que não sentimos

absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto”35

, de sorte que “desejar,

abominar (aversari), afirmar, negar, duvidar são diversos modos de querer (diversi modi

volendi)”36

.

33 Se a leitura que Espinosa faz da concepção aristotélica de vontade e desejo encontra

fundamentos nos textos de Aristóteles, é algo de que não nos ocuparemos aqui. Recomenda-se que o

leitor interessado nesse ponto confira o comentário de Atilano Domínguez que se encontra em sua

tradução espanhola do Breve tratado, onde se afirma que essa interpretação espinosana se faz “quiçá com

mais intenção polêmica que rigor histórico” (SPINOZA, B. Tratado Breve. Traducción, prólogo y notas

de Atilano Domínguez. Madrid: Alianza Editorial, 1990, p. 247, nota 188). 34 Cf. RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 63. 35 DESCARTES, R. Meditações. Coleção Os Pensadores. 3ª edição. São Paulo: Abril Cultural,

1983, p. 118, grifos nossos. 36 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, artigo 32.

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Cremos que a distinção que encontramos no escólio da proposição 48 entre

vontade e desejo pode ser explicada também a partir do fato de que, nesse momento da

Ética, Espinosa ainda não adentrou a exposição do campo afetivo (por exemplo, do

apetite e da aversão às coisas, referidos ao desejo no escólio citado) que nosso

conhecimento ou nossas ideias envolvem, o que acontecerá a partir da parte III do livro

em questão, intitulada “Da origem e natureza dos afetos”. Pode ser por esse motivo que

o filósofo se restringe, no final da Ética II, ao estudo da vontade ou das volições,

buscando compreender “se as próprias volições são algo além das próprias ideias das

coisas” ou “se se dá na mente outra afirmação e negação além daquela envolvida pela

ideia enquanto é ideia” (EII, P48, esc.).

De fato, dentro do espinosismo, não faz sentido distinguir em nosso campo

mental um modo de funcionamento exclusivamente cognitivo ou volitivo e outro

exclusivamente prático ou desiderativo. Nas palavras de Pierre Macherey, Espinosa

procurará mostrar na proposição 49 da Ética II que

(...) o fato de formar ideias dentro de certas condições determinadas bem poderia esgotar

totalmente a realidade de nosso campo mental, sem que seja preciso buscar nele outros

modos de funcionamento que, por razões completamente independentes daquelas que dão conta do uso teórico do pensamento, explicariam o desenvolvimento prático de nossas

condutas, isto é, de nosso desejo e, consequentemente, de nossa vontade de agir em tal ou

tal sentido.37

Em relação à investigação sobre se há na mente alguma volição (i.e., afirmação e

negação) além daquela que a ideia enquanto ideia envolve, Espinosa pede para que o

leitor veja a proposição 49 e a definição 3 da Ética II, a fim de que “o pensamento não

descaia em pinturas” (ne cogitatio in picturas incidat) (EII, P48, esc.). Quando não se

compreende que a ideia é um conceito do pensamento ou da mente, que nossa mente

forma por ser uma coisa pensante38

, pode-se confundir a ideia com as “imagens tais

quais as que se formam no fundo do olho e, se quiseres, no meio do cérebro” (Idem).

Espinosa visa esclarecer aqui que as ideias não são meras imagens ou representações

mentais das coisas, cópias mais ou menos perfeitas dos objetos aos quais correspondem

e às quais a mente estaria em posição de passividade e ofereceria como que um

“receptáculo ocasional”39

, tal como uma tela que recebe traços e cores. Uma ideia não é

37 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 376. 38 “Por ideia entendo o conceito da mente, que a mente forma por ser coisa pensante” (EII, def.

3). 39 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 377. Sobre o afastamento da

concepção espinosana de ideia em relação àquela de Descartes, para o qual, por exemplo, a ideia possuiria

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“algo mudo, ao feitio de uma pintura num quadro”, mas sim “um modo de pensar, quer

dizer, o próprio inteligir” (EII, P43, esc.). As ideias são atos de pensamento ou ações

mentais que envolvem em si mesmas afirmação ou negação, como se demonstrará na

proposição 49. É justamente para enfatizar que a ideia é uma produção da mente que

Espinosa, ao definir o que é uma ideia, prefere o termo “conceito” ao vocábulo

“percepção”, pois “o nome percepção parece indicar que a mente padece o objeto. Já

conceito parece exprimir a ação da mente” (EII, def. 3, explicação).

De acordo com a proposição 49, “na mente não é dada nenhuma volição, ou seja,

afirmação e negação afora aquela envolvida pela ideia enquanto é ideia” (EII, P49).

Como já se demonstrara na proposição 48, não há na mente nenhuma faculdade absoluta

ou livre de querer e não querer, mas somente volições singulares, o que equivale a dizer

que na mente há apenas “esta e aquela afirmação, e esta e aquela negação” (EII, P49,

dem). Espinosa propõe então que se conceba uma volição singular, escolhendo como

exemplo aquele modo de pensar através do qual a mente afirma que a soma dos três

ângulos do triângulo é igual a dois retos. Através deste exemplo, mostra-se que essa

afirmação não pode ser nem ser concebida sem o conceito ou a ideia de triângulo e,

inversamente, a ideia de triângulo não pode ser nem ser concebida sem tal afirmação,

donde ser necessário concluir, a partir de EII, def. 240

, que essa volição singular (i.e., a

soma dos ângulos internos do triângulo iguala dois retos) pertence à essência da ideia ou

do conceito de triângulo e não é nada além dessa ideia. Assim, toda e qualquer volição

“nada é senão a ideia” (Idem).

À demonstração da proposição 49, segue-se um corolário que extrai uma

importante consequência dessa demonstração precedente, a saber, “vontade e intelecto

são um só e o mesmo” (EII, P49, corol.). Espinosa já demonstrou, na proposição 48 e no

seu escólio, que a vontade não é senão uma noção universal formada a partir das

volições singulares; da mesma forma, o intelecto não é nada além de um universal

formado a partir das ideias singulares. Ora, se uma volição singular, de acordo com a

proposição 49, não é nada além de uma ideia singular, é preciso concluir que vontade e

intelecto são uma só e a mesma coisa (EII, P49, corol., dem.). Assim, os nomes vontade

e intelecto designam a mesma potência da mente de formar ideias, isto é, de afirmar ou

uma função representativa e haveria uma passividade da mente no processo de conhecer, ver

RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 67-69. 40 “Digo pertencer à essência de uma coisa aquilo que dado, a coisa é necessariamente posta e,

tirado, a coisa é necessariamente suprimida; ou aquilo sem o que a coisa não pode ser nem ser concebida

e, vice-versa, que sem a coisa não pode sem nem ser concebido” (EII, def. 2).

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negar algo acerca de uma coisa, e são apenas “dois nomes diferentes para uma mesma

coisa, a atividade do pensamento que constitui a natureza da mente”41

.

Diferentemente de Espinosa, Descartes entendia intelecto e vontade como duas

faculdades mentais efetivamente distintas, sendo aquele finito e esta infinita. Segundo o

pensador francês, para que um juízo seja produzido, é necessário o concurso dessas duas

faculdades: o intelecto percebe as ideias das coisas (ideias estas que, consideradas em si

mesmas, são algo mudo que não envolve afirmação ou negação) e a vontade assegura

ou nega o que é percebido. Assim, nós erramos quando estendemos nossa livre vontade

a coisas que não inteligimos clara e distintamente42

. Ao recusar a diferença entre

intelecto e vontade e ao identificar ideia e volição, a filosofia espinosana recusa também

a teoria cartesiana do erro, pois errar não é dar o assentimento da vontade a ideias

confusas e mutiladas. Esse é certamente um dos motivos pelos quais Espinosa inicia o

escólio que se segue à proposição 49 afirmando ter suprimido “a causa que comumente

se estabelece para o erro” (EII, P49, esc., ab initio). Os homens não erram porque

querem ou, o que é o mesmo, porque fazem mau uso de seu livre-arbítrio, mas sim

porque suas ideias, pelas quais procuram explicar as coisas, estão privadas do

conhecimento necessário para explicá-las por completo ou adequadamente.

A fim de mostrarmos de que maneira a filosofia espinosana explica a falsidade

sem recorrer à distinção cartesiana entre intelecto e vontade, é necessário retomarmos,

ainda que brevemente, aquilo que foi demonstrado entre as proposições 32 e 35 da Ética

II. De acordo com a proposição 32, “todas as ideias, enquanto referidas a Deus, são

verdadeiras”. Para demonstrar essa tese, Espinosa recorre a EII, P7, corol. e EI, axioma

6. O corolário da proposição 7 afirma a igualdade em Deus entre sua potência de pensar

e sua potência atual de agir. Tudo o que se segue formalmente da ação dos infinitos

41 MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 383. 42 “(...) olhando-me mais de perto e considerando quais são meus erros (que apenas testemunham

haver imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de

conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é, de meu

entendimento e conjuntamente de minha vontade. Isto porque, só pelo entendimento, não asseguro nem

nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que posso assegurar ou negar. (...) Donde

nascem, pois meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o

entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo” (DESCARTES, R. Meditações, op. cit., p. 117 e p. 119). Ver também DESCARTES, R. Princípios da

filosofia, I, artigos 31-35 e RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 12. Conforme

observa Juarez Rodrigues, o intelecto é para Descartes a faculdade passiva de conceber, “pois concebe as

ideias sem afirmar ou negar a verdade de seu conteúdo, isentando-se de erro” (RODRIGUES, J.

Identidade entre ideia e volição, op. cit., p. 32). Quanto à liberdade da vontade, Descartes entende que ela

é evidente por si (per se notam): “(...) que haja liberdade em nossa vontade, e [que], a nosso arbítrio,

possamos assentir ou não assentir a muitas coisas é a tal ponto manifesto que deve ser enumerado entre as

primeiras e mais comuns noções (primas & maxime communes notiones) que nos são inatas”

(DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, artigo 39, acréscimo nosso).

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atributos que constituem a essência divina, segue-se também objetivamente da ideia de

Deus no atributo pensamento, e isso de acordo “com a mesma ordem e a mesma

conexão” (EII, P7, corol.), havendo em Deus uma conveniência total entre ideias e

ideados. Ora, conforme afirma o axioma 6 da Ética I, “a ideia verdadeira deve convir

com seu ideado”. Assim, uma vez que, em Deus, todas as ideias convêm com seus

ideados, todas elas devem ser ditas verdadeiras enquanto a ele referidas.

Já a proposição 33 afirma não haver nada de positivo nas ideias pelo que estas

sejam ditas falsas. A demonstração dessa proposição baseia-se na impossibilidade de

haver um modo positivo de pensar que constitua a forma da falsidade ou do erro. De

fato, tal ideia ou modo de pensar não pode se dar em Deus, pois, conforme a P32,

enquanto referidas a Deus, todas as ideias são verdadeiras; além disso, conforme já se

demonstrara em EI, P15, todas as coisas são em Deus, nada podendo ser ou ser

concebido fora dele. Assim, não podendo existir em Deus nem fora dele, é impossível

haver algo de positivo nas ideias pelo que sejam ditas falsas (EII, P33, dem.).

Passando à proposição 34, temos que “toda ideia que em nós é absoluta, ou seja,

adequada e perfeita, é verdadeira”. Para demonstrar esse ponto, Espinosa apoia-se, num

primeiro momento, em EII, P11, corol., sobre o qual nos deteremos brevemente.

Afirma-se ali que a mente humana, ideia de uma coisa singular existente em ato, é parte

do intelecto infinito de Deus e, por isso, dizer que nossa mente percebe algo equivale a

dizer que Deus, enquanto constitui a essência de nossa mente ou enquanto é explicado

pela natureza dela, “tem esta ou aquela ideia” (EII, P11, corol.). Este é o fundamento

ontológico do conhecimento verdadeiro ou adequado, pois, sendo a mente humana uma

modificação singular que exprime a essência da substância infinita, é tão necessário que

sejam verdadeiras as ideias que têm por causa a mente humana quanto é necessário que

sejam verdadeiras as ideias produzidas pelo intelecto infinito43

. Esse corolário, por outro

lado, oferece também o fundamento ontológico do conhecimento inadequado ou falso44

,

pois, quando se diz “que Deus tem esta ou aquela ideia não apenas enquanto constitui a

natureza da mente humana, mas enquanto, em simultâneo com a mente humana, tem

também a ideia de outra coisa”, deve-se dizer que “a mente percebe a coisa

parcialmente, ou seja, inadequadamente” (EII, P11, corol.). Abordaremos essa questão

43 “(...) nossa mente, enquanto percebe verdadeiramente uma coisa, é parte do intelecto infinito

de Deus (...); e por isso é tão necessário que as ideias claras e distintas da mente sejam verdadeiras como

as ideias de Deus” (EII, P43, esc., in fine). 44 Cf. CHAUI, M. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. Volume II: Liberdade.

São Paulo: Companhia das Letras, 2016, cap. 2, p. 146-149.

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da inadequação adiante (ao analisarmos EII, P35), pois a demonstração de EII, P34, que

nos interessa aqui, recorre somente ao trecho do corolário da P11 que fundamenta

ontologicamente o conhecimento verdadeiro.

O primeiro momento da demonstração da P34 retoma então a tese segundo a

qual “quando dizemos dar-se em nós uma ideia adequada ou perfeita, nada outro

dizemos senão que em Deus, enquanto constitui a essência de nossa mente, dá-se uma

ideia adequada e perfeita” (EII, P34, dem.). A partir daí, no segundo momento da

demonstração, Espinosa recorre à P32, que afirma serem verdadeiras todas as ideias

enquanto referidas a Deus, evidenciando assim que as ideias que em nós são adequadas

devem também ser ditas verdadeiras.

Mas, nesse contexto, como compreender a falsidade? Eis o objeto da proposição

35, segundo a qual “a falsidade consiste na privação de conhecimento que as ideias

inadequadas, ou seja, mutiladas e confusas, envolvem”. Vimos anteriormente, conforme

a proposição 33, que não há nada de positivo nas ideias que constitua a forma do erro ou

da falsidade. Espinosa acrescenta, na demonstração da P35, que “a falsidade não pode

consistir na privação absoluta (com efeito, não os corpos, mas as mentes são ditas errar

e se equivocar [falli]), nem também na ignorância absoluta, pois ignorar e errar são

diversos”. A falsidade não pode ser uma total ausência de pensamento ou de ideias, pois

é algo que diz respeito a estas últimas (são as mentes que se equivocam, que concebem

ideias falsas). Além disso, quando ignoramos totalmente uma coisa, nada afirmamos ou

negamos acerca dela, isto é, não formamos nenhuma ideia a respeito da coisa ignorada,

sendo assim descabida a equivalência entre ignorância absoluta e erro ou falsidade. A

falsidade deve consistir, portanto, “na privação de conhecimento que o conhecimento

inadequado, ou seja, as ideias inadequadas e confusas das coisas envolvem” (EII, P35,

dem.).

De acordo com a quarta definição da segunda parte da Ética, ideia adequada é

aquela que, “enquanto é considerada em si, sem relação ao objeto, tem todas as

propriedades ou denominações (proprietates, sive denominationes) intrínsecas da ideia

verdadeira”. Partindo dessa definição, podemos depreender, pela negativa, que é

inadequada a ideia que não dá conta de explicar completamente aquilo de que é ideia, já

que ela carece ou está privada de alguma denominação ou propriedade necessária para

tanto. Retomando o fundamento ontológico do conhecimento inadequado que se

encontra em EII, P11, corol. (ao qual aludimos acima), compreende-se que a mente

humana erra quando percebe algo parcialmente (ex parte), isto é, quando a ideia que

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nela se forma não têm como causa Deus apenas enquanto constitui a essência da mente

humana, mas também enquanto ele tem a ideia de outra coisa, ideia esta cujas

propriedades intrínsecas seriam necessárias para que se tivesse conhecimento adequado

ou total da coisa percebida.

O escólio da proposição 17 da Ética II também nos ajuda a compreender melhor

a ideia de que a falsidade é privação de conhecimento. Espinosa esclarece ali que as

imagens das coisas são “as afecções do corpo humano cujas ideias representam os

corpos externos como que presentes a nós, ainda que não reproduzam as figuras das

coisas”, e acrescenta que a mente é dita imaginar quando contempla os corpos como

presentes (EII, P17, esc). A mente humana, como mostramos anteriormente, é ideia do

corpo humano, e ela necessariamente percebe ou tem ideia de tudo o que acontece no

seu objeto, o corpo45

. Contudo, envolvendo não somente a natureza do corpo humano,

mas também, simultaneamente, a natureza dos corpos externos pelos quais ele é afetado

(EII, P16), as ideias das afecções corporais não implicam o conhecimento adequado ou

completo dos corpos externos (EII, P25), já que, neste caso, “estas afirmações que a

mente produz apenas envolvem a natureza das coisas, porém, não explicam a natureza

delas”46

. Isso não quer dizer, entretanto, que as imaginações da mente, consideradas em

si mesmas, contenham algum erro: quando imaginamos um objeto pelo qual fomos uma

vez afetados e, simultaneamente, sabemos que esse objeto não está realmente presente,

não nos equivocamos. Assim, a mente não erra simplesmente por imaginar, mas apenas

enquanto se considera que ela carece ou está privada “da ideia que exclui a existência

das coisas que imagina presentes a si” (EII, P17, esc.), o que está de acordo com a tese

espinosana segundo a qual a falsidade consiste na privação de conhecimento que as

ideias inadequadas envolvem.

Uma vez que a falsidade consiste na privação que as ideias inadequadas

envolvem, Espinosa pode afirmar, no escólio da proposição 49, que “a ideia falsa,

enquanto é falsa, não envolve certeza”. Se, por um lado, a falsidade consiste na

“privação de certeza” que o conhecimento inadequado envolve, por outro lado, a certeza

não deve ser compreendida como ausência ou “privação de dúvida”, pois as

denominações intrínsecas da ideia verdadeira são algo positivo, são afirmações ou atos

de inteligir que a ideia, enquanto ideia, envolve, e é nessa positividade que consiste a

45 “O que quer que aconteça no objeto da ideia que constitui a mente humana deve ser percebido

pela mente humana, ou seja, dessa coisa dar-se-á necessariamente na mente a ideia” (EII, P12). 46 RODRIGUES, J. Identidade entre ideia e volição..., op. cit., p. 71.

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certeza. Assim, não se pode dizer que aquele que tem uma ideia falsa e não duvida dela

está certo, mas somente que não duvida. Uma vez que a ideia adequada, conforme

mostramos acima, é aquela que contém em si mesma a explicação completa daquilo de

que é ideia, Espinosa não precisa fundamentar a certeza em nenhum critério exterior à

própria ideia (a conveniência entre a ideia e o ideado, por exemplo47

). A verdade ou a

ideia verdadeira é norma de si mesma (norma sui), e está para a ideia falsa “assim como

o ente para o não-ente” (EII, P43, esc.).

Os partidários do livre-arbítrio, por exemplo, ignorando as causas que nos

determinam a querer isso ou aquilo, não estão certos, mas apenas não duvidam de sua

tese, pois estão privados do conhecimento necessário para compreender que a vontade

livre é uma ficção. Conforme aponta Espinosa, a experiência fornece motivos para

colocar em xeque o livre-arbítrio da vontade, já que ela permite perceber que “fazemos

muitas coisas das quais depois nos arrependemos, e que, frequentemente, ao nos

defrontarmos com afetos contrários, vemos o melhor e seguimos o pior” (EIII, P2, esc.).

Contudo, dominados pelo preconceito, os que imaginam agir pela liberdade da vontade

parecem ter fechado os olhos aos ensinamentos da experiência, e, assim,

(...) sua ideia de liberdade é esta: não conhecem nenhuma causa de suas ações. Com efeito, isso que dizem, que as ações humanas dependem da vontade, são palavras das

quais não têm nenhuma ideia (EII, P35, esc.).

Na sequência do escólio da P49, a fim de aprofundar a explicação dessa

proposição, Espinosa pede para que o leitor observe atentamente a distinção que existe

entre ideias, imagens e palavras, uma vez que a confusão desses conceitos impediria a

compreensão da doutrina espinosana sobre a vontade, a qual seria “cabalmente

necessário conhecer tanto para a especulação quanto para que a vida seja sabiamente

instituída”48

. Quando as ideias são confundidas com as imagens das coisas, que se

formam em nós a partir do encontro do nosso corpo com outros, acaba-se por crer que

as ideias das coisas de que não podemos formar uma imagem semelhante não são

propriamente ideias, mas tão somente ficções forjadas por nossa livre vontade. Mas isso

seria considerar as ideias “quais pinturas mudas num quadro”, ignorando o que já fora

demonstrado pela P49, a saber, que a ideia é um conceito formado pela mente e envolve

em si mesma afirmação ou negação.

47 Após sua definição de ideia adequada, Espinosa esclarece que mencionou nessa definição as

denominações ou propriedades intrínsecas da ideia verdadeira a fim de excluir a “conveniência da ideia

com seu ideado”, denominação ou propriedade extrínseca da ideia (EII, def. 4, explicação). 48 Retomaremos esse ponto adiante.

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Já aqueles que confundem as ideias com as palavras, signos corporais pelos quais

significamos as coisas, creem que “podem querer contra o que sentem, quando o fazem

somente por palavras”, pois não distinguem com o devido cuidado as afirmações

meramente verbais e as afirmações conceituais envolvidas pelas ideias. Para emendar os

preconceitos que advêm da confusão entre ideias, imagens e palavras, Espinosa adverte

que tanto as imagens quanto as palavras são constituídas apenas pelos movimentos dos

corpos e só envolvem o conceito de extensão; não podem, portanto, causar nada nas

ideias, já que estas são modos de pensar que envolvem somente o conceito de

pensamento (EII, P49, esc.).

Feitas essas observações, Espinosa passa a responder a quatro objeções que os

adversários poderiam lançar contra sua doutrina acerca da vontade. Dessas quatro

objeções e respostas, nos deteremos apenas sobre a segunda e a quarta, que nos

interessam diretamente por colocarem em questão a liberdade da vontade humana, ao

passo que as outras duas, que não abordaremos aqui, dizem respeito mais

especificamente à suposta diferença que existiria entre intelecto e vontade.

De acordo com a segunda objeção encontrada no escólio da P49, a experiência

ensina claramente que temos o poder de “suspender nosso juízo para não assentirmos a

coisas que não percebemos”, o que se confirmaria também pelo fato de que só se pode

dizer que uma pessoa se engana enquanto ela assente ou dissente, e não enquanto

simplesmente percebe algo. Exemplificando, parece possível forjar um cavalo alado

sem afirmar que ele existe, e essa ficção não envolve erro algum. O engano ocorre

apenas quando, tendo a ideia de um cavalo com asas, concede-se, ao mesmo tempo, por

meio de um ato voluntário, que esse ser é dado na natureza. A experiência comprovaria,

assim, que a vontade ou “faculdade de assentir” (voluntas, sive facultas assentiendi) é

livre e diferente do intelecto, faculdade de formar ideias49

.

Em resposta a essa objeção, Espinosa nega que os homens tenham o livre poder

de suspender o juízo, pois a suspensão do juízo, em vez de ser uma vontade livre, é uma

percepção ou uma ideia pela qual se afirma não conhecer adequadamente aquilo que é

percebido. A fim de esclarecer sua tese, Espinosa recorre a dois exemplos. O primeiro é

o da criança que imagina um cavalo alado e não percebe nada além dele. Conforme

expusemos anteriormente, imaginar é contemplar os corpos externos como que

49 Conforme observado por Pierre Macherey, essa objeção traz argumentos que foram

desenvolvidos por Descartes em suas Meditações metafísicas. Cf. MACHEREY, P. Introduction à

l’Éthique de Spinoza, op. cit., p. 396, nota 1 e DESCARTES, R. Meditações, op. cit., p. 120.

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presentes, o que equivale a dizer que, quando a mente imagina, ela contempla tais

corpos como existentes em ato, e isso até o corpo ser “afetado por uma afecção que

exclua a existência ou a presença” do corpo imaginado (EII, P17). Assim, uma vez que

a imaginação do cavalo alado envolve a existência do mesmo, e visto que a criança nada

percebe além dele, “ela necessariamente o contemplará como presente” e “não poderá

duvidar da existência dele, ainda que não esteja certa disso” (EII, P49, esc.), pois carece

de uma causa para duvidar que ele exista. Além disso, deve-se dizer que a criança não

tem do cavalo alado uma ideia verdadeira, a qual envolveria a certeza de que ele não

existe.

O segundo exemplo utilizado por Espinosa diz respeito à experiência cotidiana

dos sonhos. Todos devem conceder que não temos o livre poder para suspender o juízo

enquanto sonhamos, isto é, não temos a liberdade de deixar de sonhar com aquilo que

sonhamos ver. Contudo, “acontece que também nos sonhos suspendamos o juízo,

quando sonhamos que estamos a sonhar”, o que comprova que não é a livre vontade que

ocasiona a suspensão do juízo (Idem).

Espinosa concede que não nos enganamos enquanto percebemos (como

mencionamos anteriormente, a partir de EII, P17, esc., as imaginações mentais não

contêm em si mesmas nada de erro), mas nega que a percepção ou a ideia não envolve

afirmação alguma, pois perceber ou formar a ideia de um cavalo alado não é senão

afirmar que o cavalo tem asas. A mente só pode duvidar da existência daquilo que

imagina ou negar essa mesma existência por meio de outra ideia ou percepção, e não

pela ação de uma livre vontade que, distinta do intelecto, negaria as ideias mudas por

ele formadas. Dessa forma, demonstra-se que a experiência da suspensão do juízo não

comprova a liberdade da vontade nem a diferença entre vontade e intelecto, mas pode

ser claramente explicada sem que seja necessário recorrer a essas teses.

Se, com efeito, a mente não percebesse nada além do cavalo alado, contemplá-lo-ia como

presente a si, e não teria causa alguma para duvidar de sua existência nem faculdade alguma de dissentir, a menos que a imaginação do cavalo estivesse unida a uma ideia que

suprime a existência dele, ou que a mente percebesse ser inadequada a ideia que tem do

cavalo alado e, então, ou negaria necessariamente a existência desse cavalo ou dela duvidaria necessariamente (EII, P49, esc.).

A quarta objeção à doutrina espinosana da vontade pretende evidenciar a

absurdidade implicada pela tese segundo a qual o homem não se determina a agir por

meio de sua livre vontade, pois, se o homem não possuísse essa liberdade para se

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autodeterminar, assemelhar-se-ia mais propriamente a uma besta do que a um ser

humano.

(...) se o homem não operar pela liberdade da vontade, que acontecerá, então, se estiver

em equilíbrio como o asno de Buridan? Perecerá de fome e de sede? Se eu o conceder,

parecerá que concebo não um homem, mas um asno ou a estátua de um homem; e se eu o

negar, então ele se determinará a si próprio e, por conseguinte, tem a faculdade de ir e fazer tudo que quiser (EII, P49, esc.).

A ideia do asno de Buridan50

é a de que um asno pereceria de fome se fosse

colocado à mesma distância de dois feixes iguais de feno, pois ele não conseguiria

decidir qual dos dois comeria. Para Espinosa, um homem colocado nessa mesma

situação de equilíbrio, isto é, um homem “que nada percebe senão a sede e a fome, tal

comida e tal bebida a igual distância dele”, morrerá de fome e de sede, por não poder

determinar-se a ir em direção a um dos objetos de preferência ao outro. Nesse exemplo,

as ideias das causas externas que determinam a querer a bebida ou a comida têm a

mesma força (i.e., a potência volitiva ou de afirmação e negação que essas ideias

envolvem é idêntica), e o homem, não tendo nenhuma outra ideia ou percepção, também

não tem como afirmar ou negar algo diferente, vendo-se constrangido a permanecer

nesse equilíbrio paralisante.

Uma vez que não há na mente nenhuma volição além daquela que a ideia

enquanto é ideia envolve (EII, P49), o homem do exemplo citado acima só poderia ser

determinado a querer antes a bebida ou a comida por meio de outra ideia, pois só uma

volição diferente poderia levá-lo a pender mais para um objeto do que para outro. Uma

vez que o livre-arbítrio humano não passa de uma ilusão, tal homem em nada diferiria

de um asno que fosse posto em situação semelhante. Deveríamos ainda considerá-lo um

homem? Espinosa diz não saber como estimá-lo, da mesma forma que não sabe como

estimar “aquele que se enforca e (...) as crianças, os estultos, os insanos, etc.” (EII, 49,

esc.), seres que, por estarem grandemente à mercê das causas externas, são figuras que

exemplificam a impotência humana. A resposta de Espinosa a essa objeção evidencia

que, no interior do espinosismo, o homem, tal como os outros seres, é uma parte da

50 O asno de Buridan tira seu nome do filósofo francês Jean Buridan, que foi mestre e reitor da

Universidade de Paris no século XIV e discípulo de Guilherme de Ockham. O paradoxo envolvido pelo

asno de Buridan tem uma história antiga, que remonta aos primórdios da filosofia ocidental. Recomenda-

se que o leitor interessado nessa história confira as indicações que se encontram no verbete “asno de

Buridan” em MORA, J. F. Dicionário de Filosofia, tomo I (A-D). São Paulo: Edições Loyola, 2000, p.

207. Conforme observa Pierre Macherey (MACHEREY, P. Introduction à l’Éthique de Spinoza, op. cit.,

p. 400, nota 1), o caso do asno de Buridan foi discutido também na modernidade por filósofos como

Descartes e Leibniz.

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natureza, não gozando assim de nenhum estatuto ontológico privilegiado (como uma

livre vontade para se autodeterminar, por exemplo).

Citamos acima um trecho em que Espinosa afirma que seria “cabalmente

necessário conhecer” sua doutrina sobre a vontade “tanto para a especulação quanto

para que a vida seja sabiamente instituída” (EII, P49, esc.). Em relação à especulação,

podemos depreender, a partir do prefácio da Ética III, que imaginar o homem como um

ser dotado de livre-arbítrio e que está fora da potência comum da natureza é colocar um

obstáculo à compreensão da verdadeira natureza e força dos afetos e do real poder da

mente humana para moderá-los. De acordo com Christopher Kluz,

Espinosa reconhece a fonte do grande fracasso em tratar o estudo dos seres humanos

como um estudo de apenas outra parte da natureza, que segue as leis naturais tal como as

outras partes da natureza; essa fonte é a crença humana no livre-arbítrio, a qual, para Espinosa, baseia-se numa ilusão ou imaginação.

51

A fim de mostrar quanto o conhecimento de sua doutrina da vontade pode

contribuir para o uso da vida, afastando assim o escrúpulo do leitor desconfiado dela,

Espinosa indica, no final do escólio da proposição 49, quatro utilidades que advêm do

conhecimento de sua doutrina.

A primeira dessas utilidades diz respeito à relação entre conhecimento, felicidade

e ação. Ao demonstrar que a vontade humana não possui nenhum poder absoluto de

autodeterminação, a doutrina espinosana da vontade ensina que agimos “pelo só

comando de Deus”, isto é, que as ações humanas não escapam à necessidade da

natureza divina, da qual participamos “tanto mais quanto mais perfeitas são as ações que

efetuamos e quanto mais entendemos Deus” (EII, P49, esc.). Esse primeiro ensinamento

apontado por Espinosa permite observar seu afastamento em relação à tradição cristã de

pensamento. Para Agostinho de Hipona, por exemplo, é correto dizer que os seres

humanos (como todas as outras coisas) participam da perfeição de Deus, mas este é

concebido como um ser transcendente (isto é, separado das criaturas e do mundo que

criou), e tal participação ocorre apenas porque os humanos foram por ele criados –

ocupando lugar privilegiado na criação, acima das plantas e dos minerais e abaixo

somente dos anjos e de Deus –, e não porque são uma expressão imanente dos atributos

que constituem a essência divina, tal como ocorre na filosofia espinosana52

. Já na

51 KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 52. 52 Sobre a participação das criaturas em Deus segundo Agostinho, ver SANTOS, D. N. “O

conceito de beatitude em Santo Agostinho”. Filogênese – Revista eletrônica de pesquisa na graduação

em Filosofia. Marília-SP, v. 1, nº 1, 2008, p. 25-34, p. 28.

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passagem bíblica da queda do primeiro homem (Gênesis, cap. 3), pode-se ver que o

desejo de conhecer (ou de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal), em vez

de tornar Adão mais perfeito e aproximá-lo de Deus, é contrário à vontade divina, sendo

assim causa do pecado original que corrompe a vontade humana e afasta o ser humano

de seu criador.

Opondo-se à tradição cristã, Espinosa, a partir do primeiro ensinamento

decorrente de sua doutrina da vontade, conclui que

(...) essa doutrina, além de tornar o ânimo tranquilo de todas as maneiras, também nos ensina em que consiste nossa suma felicidade, ou seja, beatitude, a saber, no só

conhecimento de Deus, pelo qual somos induzidos a fazer somente aquilo que o

amor e a piedade aconselham (suadent). Donde entendemos claramente o quanto se afastam da verdadeira apreciação (aestimatione) da virtude aqueles que, fazendo da

virtude e das melhores ações suma servidão, esperam por isso ser distinguidos por

Deus com supremas recompensas, como se a própria virtude e o serviço a Deus não

fossem a própria felicidade e a suma liberdade (EII, P49, esc.).

A compreensão de que todas as ações humanas, mesmo aquelas que indicam a

impotência ou inconstância de alguém, têm como causa a “potência comum da

natureza” – e não algum vício (como uma vontade corrompida) inerente à natureza

humana, não sendo esta uma coisa decaída e lamentável e sim algo que expressa de

maneira certa e determinada a potência de Deus53

– é útil por tranquilizar o ânimo e por

permitir que entendamos que a felicidade humana consiste apenas no conhecimento de

Deus, conhecimento este que nos leva a praticar ações que não são contrárias ao bem

comum, já que tudo o que ele nos induz a fazer está plenamente de acordo com aquilo

que nos sugerem o amor e a piedade.

Uma vez que intelecto e vontade são uma só e a mesma coisa (EII, P49, corol.), a

excelência de nossas ações não pode ter por base apenas o bom uso da vontade, como se

esta independesse do nosso conhecimento da realidade. A relação apontada por

Espinosa entre a vida feliz e virtuosa e o conhecimento de Deus mostra que a virtude

não se confunde com a submissão a regras e normas cuja razão ignoramos, nem com a

obediência cega e sofrida a preceitos morais supostamente divinos na esperança de

prêmios e recompensas incertos. Ao contrário, conforme observa Marilena Chaui,

Espinosa explicita

(...) o engano da imagem da virtude como corretivo da culpa pelos desvios da vontade que, por isso, deveria submeter-se a mandamentos divinos para a

mortificação do corpo e da alma, pondo o ânimo em estado de contínuo

53 Cf. EIII, prefácio.

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desassossego e esperando dessa “suma servidão” receber de Deus “supremas

recompensas, como se a própria virtude e o serviço a Deus não fossem a própria

felicidade e a suma liberdade”.54

A segunda utilidade para o uso da vida que advém da concepção de Espinosa

sobre a vontade consiste no ensinamento que ela nos fornece acerca de como devemos

nos portar em relação às coisas que escapam à nossa potência, isto é, as ditas “coisas da

fortuna”, que “não seguem de nossa natureza”, mas sim de causas que só conhecemos

parcial ou inadequadamente, donde essas coisas nos parecerem casuais ou contingentes.

Paradoxalmente, o sentimento ou a experiência da contingência, representada

pela figura da fortuna, é necessária para os seres humanos, já que somos seres finitos

que não podem conhecer em sua totalidade o nexo infinito de causas que determinam a

existência e operação de todas as coisas singulares55

. Entretanto, uma vez que a filosofia

espinosana nos ensina que tudo o que acontece segue da necessidade da natureza divina

“com a mesma necessidade com que da essência do triângulo segue que seus três

ângulos são iguais a dois retos”, compreendemos que as coisas que nos afetam (de

maneira útil ou prejudicial) e que não seguem da necessidade de nossa natureza não são

frutos de uma divindade caprichosa como a fortuna, que escolheria nos prejudicar ou

beneficiar56

. Por esse motivo, as coisas que não estão em nosso poder não nos devem

perturbar, mas “devemos esperar e suportar com ânimo igual as duas faces da fortuna”

(EII, P49, esc.).

A terceira e a quarta contribuições da doutrina espinosana da vontade para o uso

da vida dizem respeito à vida social e à sociedade comum, respectivamente.

IIIº Essa doutrina contribui para a vida social enquanto ensina a não ter por

ninguém ódio, desprezo, escárnio, cólera ou inveja. Ademais, enquanto ensina cada

um a contentar-se com o que tem e a auxiliar o próximo, não por misericórdia feminina, nem por parcialidade, nem por superstição, mas pela só condução da

razão, segundo o que exigem o tempo e o assunto, como mostrarei na Quarta Parte.

IVº Finalmente, essa doutrina contribui muito para a sociedade comum, enquanto

ensina de que maneira devem ser governados e conduzidos os cidadãos, a saber, para que não sejam servos, mas para que façam livremente o que é melhor. (EII,

P49, esc.)

54 CHAUI, M. A nervura do real..., Vol. II, op. cit., cap. 3, p. 277. 55 Cf. CHAUI, M. A nervura do real..., Vol. II, op. cit., cap. 3, p. 280. 56 Se compreendermos que Espinosa entende por superstição a “crença numa potência distante e

separada, capaz de bens e males incompreensíveis e prodigiosos” (CHAUI, M. A nervura do real..., Vol.

II, op. cit., cap. 3, p. 280-281), podemos afirmar que a doutrina espinosana da vontade contribui para que

não sejamos seres supersticiosos. Espinosa discorre de maneira detalhada sobre a superstição no apêndice

que se segue à primeira parte da Ética e no prefácio do Tratado Teológico-político (TTP).

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Uma vez que essas duas últimas utilidades apontadas por Espinosa podem ser

mais claramente compreendidas à luz das questões abordadas na quarta parte da Ética e

na política espinosana, voltaremos a elas ao analisarmos essas questões. Contudo, não

podemos deixar de notar aqui que, ao apontar que sua doutrina da vontade contribui

para a vida social e para a sociedade comum, o próprio Espinosa deixa claro que essa

doutrina, longe de ter um alcance meramente especulativo e individual, tem também

implicações práticas e políticas relevantes.

2. A CRÍTICA DA LIBERDADE DA VONTADE NA FILOSOFIA

DE THOMAS HOBBES E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E

POLÍTICAS

Mostramos anteriormente como Espinosa refuta a ideia de que os seres humanos

são dotados de uma vontade livre. Esta ideia, conforme procuramos evidenciar em

algumas passagens, encontra-se presente na filosofia de Descartes57

, importante

pensador moderno cuja obra Espinosa conhecia bem, a ponto de ter podido demonstrar

geometricamente as teses centrais do cartesianismo nos Princípios da filosofia

cartesiana (PFC), publicados em 1663. Se, por um lado, a negação do livre-arbítrio

marca uma ruptura entre a filosofia de Espinosa e aquela de Descartes, por outro lado,

esse ponto do pensamento espinosano parece aproximá-lo de outro filósofo da

modernidade, a saber, Thomas Hobbes, o qual também rejeitou a liberdade da vontade

humana58

.

Espinosa tinha familiaridade com o pensamento de Hobbes, e isso é algo que

podemos depreender a partir de pelo menos dois dados: primeiro, a obra hobbesiana

Elementa Philosophica De Cive (1647) constava entre os livros da biblioteca de

57 Essa é também a interpretação de Christopher Kluz. Para ele, ainda que Descartes tenha

argumentado que quanto mais a escolha voluntária é determinada pelo intelecto, tanto mais livre ela é, a

filosofia cartesiana manteve a ideia de vontade como liberum arbitrium. Cf. KLUZ, C. R. Determinism,

Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 9-10. 58 “Hobbes e Espinosa certamente pertencem à mais penetrante e radical crítica filosófica da livre

vontade (free will) como liberum arbitrium no século dezessete, e eles são os primeiros deterministas

filosóficos sistemáticos do início do período moderno.” (GOLDENBAUM, U.; KLUZ, C. “Introduction”.

In: GOLDENBAUM, U.; KLUZ, C. (eds.). Doing without Free Will: Spinoza and Contemporary Moral

Problems. Lanham, MD: Lexington Books, 2015, p. xi-xxviii, p. xix).

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Espinosa59

; em segundo lugar, no início da Carta 50 (1674) a Jarig Jelles, Espinosa

explicita a diferença existente entre ele e Hobbes no que diz respeito à política60

.

Tu me perguntas qual é a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha.

Respondo-te: a diferença é que mantenho sempre o direito natural e que considero que o

magistrado supremo, em qualquer cidade, só tem direitos sobre os súditos na medida em

que seu poder seja superior ao deles; coisa que sempre ocorre no estado natural.61

Assim como aconteceu com Espinosa, Hobbes também foi alvo de críticas por

ter negado o livre-arbítrio da vontade humana, o que aparece de maneira clara na

discussão que Hobbes travou com o bispo John Bramhall. Contudo, diferentemente de

Espinosa, Hobbes expôs de maneira sistemática o que pensava sobre punições e

recompensas, discorrendo sobre sua natureza, seu fundamento e sua finalidade; além

disso, as respostas de Hobbes às questões jurídicas e políticas que, em razão de sua

negação do livre-arbítrio, foram levantadas por Bramhall, são mais detalhadas que

aquelas fornecidas por Espinosa no tocante ao mesmo problema62

. Por isso, e tendo em

vista a diferença que Espinosa apresenta na Carta 50 entre seu pensamento político e o

de Hobbes, entendemos que a filosofia hobbesiana pode constituir um profícuo ponto de

partida para, comparativamente, explicitarmos as implicações políticas da negação do

livre-arbítrio no pensamento político espinosano.

Com esse intuito, analisaremos a seguir, ainda que de modo geral, como se dá a

negação do livre-arbítrio no pensamento hobbesiano. Feito isso, procuraremos mostrar

também de que maneira Hobbes compreende as punições e recompensas, evidenciando

59 Para o inventário com a descrição completa dos livros contidos na biblioteca de Espinosa, ver

http://www.iliesi.cnr.it/perl/pagina_xhtml.pl?scelta=21&par1=biblioteca_spinoza&operatore=uguale&par

2=si&inventario=no. Acesso em 12 de janeiro de 2016. 60

Além desses dois dados, pode-se citar um terceiro, já que Espinosa aponta outra diferença entre

seu pensamento e aquele de Hobbes na anotação XXXIII do TTP. Cf. ESPINOSA, B. de. Tratado

Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. 2ª edição. São Paulo: Martins

Fontes, 2008, p. 241. A Carta 50 e essa anotação do TTP contêm as únicas referências nominais que

Espinosa faz a Hobbes em toda sua obra. 61 ESPINOSA, B. de. Correspondência, op. cit., p. 398. 62 Discordamos, nesse ponto, da interpretação de Christopher Kluz. Para ele, Espinosa foi “o

primeiro filósofo a lidar com as questões sobre o livre-arbítrio que ainda hoje preocupam os filósofos”, a

saber, a compatibilidade entre livre-arbítrio e determinismo e a possibilidade tanto da liberdade humana quanto da responsabilidade moral (KLUZ, C. R. Determinism, Freedom, and Ethics..., op. cit., p. 3). Para

justificar sua tese, Kluz afirma que “embora outros, mais notavelmente Hobbes, tenham entendido a

ameaça que o determinismo colocou ao entendimento tradicional do livre-arbítrio, Espinosa foi o

primeiro filósofo a tratar dessas questões de maneira sistemática” (Idem, p. 3, nota 6). Contudo, Kluz não

analisa em momento algum de seu texto a abordagem hobbesiana, ignorando completamente a discussão

entre Hobbes e Bramhall, na qual, conforme buscaremos mostrar a seguir, as tais questões “que ainda

hoje preocupam os filósofos” são tratadas sistematicamente. Nossa discordância se justificará

posteriormente, ao analisarmos as respostas de Espinosa às questões jurídicas e políticas que lhe foram

colocadas por alguns de seus correspondentes por causa de sua negação do livre-arbítrio.

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como o filósofo inglês, em sua discussão com Bramhall, defende não haver nenhuma

contradição entre a aplicação de penas e prêmios e sua doutrina da vontade.

2.1. A crítica de Hobbes ao livre-arbítrio

Conforme aponta Yara Frateschi63

, a questão do livre-arbítrio, abordada de

maneira ampla por Hobbes em sua discussão com John Bramhall, bispo da igreja

anglicana, não é aprofundada naquela que é considerada a obra maior de Hobbes, a

saber, o Leviatã (1651). Sempre que há uma referência ao problema do livre-arbítrio

nesta última obra, Hobbes procura chamar a atenção de seu leitor para o “caráter

absurdo” da questão. No capítulo VIII, por exemplo, ele afirma que os textos que os

escolásticos dedicaram ao livre-arbítrio (free-will)64

, bem como à transubstanciação, à

trindade, à natureza de Cristo, etc., não contêm senão absurdidades, isto é, palavras que

reunidas umas às outras não significam coisa alguma65

.

Já no capítulo XXI do Leviatã, Hobbes chama a atenção do leitor para o abuso

de linguagem que a palavra livre-arbítrio envolve. Com efeito, após apresentar o que

entende propriamente por “liberdade” (Liberty, or Freedom) – a saber, a ausência de

impedimentos externos ao movimento –, Hobbes afirma que os vocábulos “livre e

liberdade” (free, and liberty) só são devidamente empregados quando se aplicam a um

corpo, pois “o que não se encontra sujeito ao movimento não se encontra sujeito a

impedimentos”, e só está sujeito ao movimento aquilo que é corpo. Por esse motivo,

tendo em vista que a vontade (will) não é corpo, a expressão livre vontade ou “livre-

arbítrio” (free-will) é abusiva66

. Esse trecho ilumina algo que Hobbes já expusera

63

FRATESCHI, Y. “A negação do livre arbítrio e a ação do soberano sobre a vontade dos súditos

segundo Hobbes”. Cadernos Espinosanos IV, p. 27-39, 1998, p. 27. 64 A tradução literal da expressão “free-will” seria “livre-vontade”, já que “vontade” traduz “will”

e “livre” traduz “free”. Mas, uma vez que, na tradução latina do Leviatã, Hobbes emprega “Liberum

arbitrium” (ver, por exemplo, HOBBES, T. Opera Philosophica quae latine scripsit omnia in unum

corpus nunc primum collecta, vol. 3 [1841], p. 160 e p. 499) como equivalente a “free-will”, optamos por

traduzir esta expressão por “livre-arbítrio”, opção que se justifica também porque a crítica hobbesiana se

dirige à ideia de vontade entendida como livre-arbítrio que fora consagrada pela tradição filosófica e

teológica anterior a ele. Preferimos “livre-arbítrio” (com hífen) a “livre arbítrio” por se tratar da grafia dicionarizada e mais usual do termo.

65 HOBBES, T. Leviatã, cap. VIII, p. 54 (sempre que citarmos algum trecho do Leviatã, nos

referiremos à paginação da tradução desta obra para a língua portuguesa realizada por João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva [HOBBES, T. Leviatã. Coleção Os Pensadores. 1ª edição. São

Paulo: Abril Cultural, 1974]). A definição hobbesiana de absurdo ou absurdidade (absurdity) pode ser

vista no capítulo V do Leviatã. 66 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXI, p. 133. Cf. FRATESCHI, Y. “A negação do livre arbítrio...”,

op. cit., p. 27-28; “Liberdade e Livre-arbítrio em Hobbes”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência,

Série 3, v. 17, n. 1, p. 109-124, jan.-jun. 2007, p. 110 e DIEHL, F. L. de O. Sentidos de liberdade em

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anteriormente no Leviatã (capítulo V), onde ele afirma que falar de livre-arbítrio (free

will) ou de “qualquer coisa livre, mas livre de ser impedida por oposição”, é proferir

palavras absurdas ou sem significação alguma67

.

No capítulo XLVI do Leviatã, intitulado “Das trevas resultantes da vã filosofia e

das tradições fabulosas”, Hobbes critica a explicação escolástica para a causa da

vontade:

Quanto à causa da vontade para fazer qualquer ação particular, a qual se chama volitio,

atribuem-na à faculdade, isto é, à capacidade em geral que os homens têm para quererem

umas vezes uma coisa, outras vezes outra, a qual é chamada voluntas, fazendo da potência (power) a causa do ato. Como se se atribuísse como causa dos bons e maus atos

dos homens sua capacidade (ability) para praticá-los. (HOBBES, T. Leviatã, cap. XLVI,

p. 395-396, tradução modificada)

Os escolásticos, julgando que a causa dos atos volitivos particulares (volitiones)

é a vontade (voluntas) ou a faculdade em geral de querer isso ou aquilo, teriam

sustentado que nossas volições são atualizações de nossa própria vontade em potência;

além disso, sustentaram uma absurda doutrina do livre-arbítrio, a qual defende a

existência de “uma vontade do homem não sujeita à vontade de Deus”68

. Para Hobbes,

essas teses escolásticas acerca da vontade apenas comprovam que “os escritos dos

escolásticos (School-divines) nada mais são, em sua maioria, do que torrentes

insignificantes de estranhas e bárbaras palavras”69

.

Feitas essas considerações acerca da negação hobbesiana do livre-arbítrio no

Leviatã, passemos à discussão entre Hobbes e Bramhall. Em 1645, o marquês de

Newcastle convidou Thomas Hobbes e John Bramhall para sua residência em Paris, a

fim de que tivessem uma discussão filosófica acerca da liberdade humana. Hobbes e

Bramhall – que, assim como Newcastle, eram monarquistas então exilados por conta da

guerra civil inglesa – sustentavam visões bastante distintas sobre o assunto proposto, e

do debate entre os dois surgiram os textos hobbesianos Sobre liberdade e necessidade

(Of Liberty and Necessity, publicado em 1654 sem o consentimento de Hobbes) e

Questões acerca da liberdade, necessidade e acaso (The Questions concerning Liberty,

Necessity, and Chance, publicado em 1656)70

.

Hobbes. 266 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo, São Paulo. 2015, p. 57-58. 67 HOBBES, T. Leviatã, cap. V, p. 33. 68 HOBBES, T. Leviatã, cap. XLVI, p. 396. 69 HOBBES, T. Leviatã, cap. XLVI, p. 399. 70 Cf. CHAPPELL, V. “Introduction”. In: Hobbes and Bramhall on Liberty and Necessity (edited

by Vere Chappell). New York: Cambridge University Press, 1999, p. ix-xxiii, p. ix-x; FOISNEAU, L.

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Neste último texto, Hobbes escreve um prefácio “ao leitor” no qual, além de

resumir o conteúdo da obra, resume as diferenças entre suas teses e as defendidas por

Bramhall.

(...) ambos mantêm que os homens são livres para fazer como querem e para se abster como querem. As coisas em que eles discordam são que um [i.e., Hobbes] sustenta que

não está agora no poder de um homem escolher a vontade que ele deverá ter dentro em

pouco (the will he shall have anon); que o acaso não produz nada; que todos os eventos e ações têm suas causas necessárias; que a vontade de Deus faz a necessidade de todas as

coisas. O outro [i.e., Bramhall], ao contrário, mantém que o homem não apenas é livre

para escolher o que irá fazer, mas [é livre] também a vontade para escolher o que ela

quererá; que, quando um homem quer uma boa ação, a vontade de Deus concorre com a dele, de outro modo não; que a vontade pode escolher se ela quererá ou não; que muitas

coisas vêm a ocorrer sem necessidade, por acaso; que, embora Deus conheça previamente

(foreknow) que uma coisa acontecerá, todavia, não é necessário que essa coisa acontecerá, visto que Deus não vê o futuro como em suas causas, mas como presente. Em suma,

ambos aderem à Escritura, mas um deles é um instruído escolástico (learned School-

divine), o outro é um homem que não admira muito esse tipo de instrução (learning) (HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions...”, op. cit., p. 69, acréscimos

nossos).

A fim de explicitarmos a crítica hobbesiana ao livre-arbítrio e como a posição de

Hobbes acerca dessa questão diverge da de Bramhall, vejamos primeiro como a vontade

é definida por Hobbes. No parágrafo vinte e sete de seu texto Sobre liberdade e

necessidade, Hobbes afirma que “em todas as deliberações, quer dizer, em toda

sucessão alternada de apetites contrários, o último [apetite] é aquele que chamamos de

vontade”71

. O capítulo VI do Leviatã traz essa mesma ideia, pois lemos ali que, “na

deliberação, o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou à omissão

desta (immediately adhering to the action, or to the omission thereof)” é aquilo que

chamamos de vontade, sendo esta “o ato (não a faculdade) de querer”72

. Em suma,

podemos dizer que a vontade é para Hobbes o último apetite ou aversão na

deliberação73

.

“Introduction”. In: HOBBES, T. Les questions concernant la liberté, la nécessité et le hasard. Paris:

VRIN, 1999, p. 7-34, p. 7 e HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions concerning Liberty,

Necessity, and Chance”, op. cit., p. 70-71. 71 HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise Of Liberty and Necessity”. In: Hobbes and Bramhall on

Liberty and Necessity, op. cit., p. 37 (acréscimo nosso). 72 HOBBES, T. Leviatã, cap. VI, p. 41 (grifos no original). 73 Essa concepção de vontade pode ser vista também em outros textos hobbesianos. Veja-se, por

exemplo, o capítulo XII dos Elementos da lei (“Na deliberação, o último apetite, bem como o último

medo, é chamado de vontade” [HOBBES, T. “Selections from The Elements of Law”. In: Hobbes and

Bramhall on Liberty and Necessity, op. cit., p. 91]) e o capítulo XI do De homine (“O último apetite (seja

de fazer ou de omitir), aquele que conduz imediatamente à ação ou à omissão, é propriamente chamado

de vontade” [HOBBES, T. “Selections from De homine”. In: Hobbes and Bramhall on Liberty and

Necessity, op. cit, p. 97]).

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A compreensão dessa definição hobbesiana da vontade depende do

esclarecimento de três conceitos que ela envolve, a saber, apetite, aversão e deliberação.

A explicação desses três conceitos, por sua vez, exige a elucidação de alguns pontos

fundamentais do pensamento hobbesiano.

De acordo com a filosofia de Hobbes exposta no Leviatã, cada um de nossos

pensamentos, considerado de maneira isolada, é uma representação ou aparência de

algum acidente de um corpo que nos é exterior (também chamado de objeto), causada

pela pressão ou pelo movimento dos objetos nos nossos órgãos sensoriais (olhos,

ouvidos, língua, etc.). A imagem ou ilusão originária que a coisa exterior causa em nós

chama-se sensação74

, a qual se distingue da imaginação porque esta última denomina

mais propriamente a “sensação diminuída (decaying sense)” ou obscurecida75

. Temos

então que a sensação é “o movimento provocado nos órgãos e partes inferiores do corpo

do homem pela ação das coisas que vemos, ouvimos, etc.”, ao passo que a imaginação é

“apenas o resíduo (relics)” desse mesmo movimento que permanece (obscurecido) após

a sensação76

.

Cabe notar que, para Hobbes, toda imagem em nós diz respeito ao movimento

das partes internas do corpo humano, pois o movimento (das coisas externas) só pode

produzir movimento (em nosso corpo). Sendo o pensamento, considerado isoladamente,

uma imagem ou representação, segue-se que os pensamentos são movimentos corporais

e não coisas imateriais77

.

Hobbes concebe a existência de dois tipos de movimento que são peculiares aos

animais, a saber, o movimento vital e o movimento voluntário ou animal. O movimento

vital é aquele que “começa com a geração e continua sem interrupção durante toda a

vida”, tal como a respiração, o pulso, a nutrição, a excreção e outros movimentos

similares que não necessitam da “ajuda da imaginação” para se realizarem. Já os

movimentos ditos “voluntários” dizem respeito à movimentação de qualquer dos

membros do corpo tal como imaginada anteriormente pela mente (andar, falar, etc.).

Sendo a imaginação o resíduo dos movimentos que os corpos externos provocam em

nosso corpo, deve-se concluir que ela é “a primeira origem interna de todos os

74 HOBBES, T. Leviatã, cap. I, p. 13-14. 75 HOBBES, T. Leviatã, cap. II, p. 15. Para Hobbes, imaginação e memória são uma só e a

mesma coisa, já que ambos os conceitos designam a sensação diminuída. O termo “imaginação” é

utilizado “quando se quer exprimir a própria coisa (isto é, a própria ilusão)”, ao passo que se recorre à

palavra “memória” quando se tem a intenção de expressar a diminuição da sensação e “significar que a

sensação é evanescente, antiga e passada” (Idem, cap. II, p. 16). 76 HOBBES, T. Leviatã, cap. VI, p. 36. 77 Cf. CHAPPELL, V. “Introduction”, op. cit., p. xii.

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movimentos voluntários”, e esses “pequenos inícios do movimento” dentro do corpo

humano, antes de aparecerem na fala, no andar e em outras ações visíveis, são

chamados de “esforço” (endeavour).

Já podemos compreender agora os três conceitos que a definição hobbesiana de

vontade envolve, nomeadamente, apetite, aversão e deliberação. Quando o esforço vai

em direção àquilo que o causou, chama-se “apetite ou desejo”, ao passo que o esforço é

denominado “aversão” quando vai no sentido de evitar algo78

. A deliberação, por sua

vez, designa “todo o conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos, que se vão

desenrolando até que a ação seja praticada ou considerada impossível”79

, sendo a

esperança o apetite relacionado à opinião de conseguir o que se deseja, enquanto o

medo designa a aversão ligada à opinião de dano proveniente do objeto80

. Cabe notar

que não se delibera sobre coisas passadas, pois estas não podem ser mudadas, bem

como não há deliberação sobre coisas consideradas impossíveis, já que tal deliberação

seria inútil.

Quando uma pessoa delibera sobre o que deve ou não deve fazer, ela nada faz

senão considerar se seria melhor para si fazer ou não fazer o que está em questão, isto é,

imagina as consequências boas e más que se seguiriam de uma ação ou omissão81

. A

última consideração ou imaginação que se dá na cadeia deliberativa, isto é, o último

apetite ou aversão na deliberação, que antecede o agir ou o omitir e que conduz a ele, é

justamente aquilo que Hobbes chama de vontade, conforme a definição que expusemos

acima e cujo significado podemos entender mais claramente agora. Tendo exposto o que

Hobbes entende por vontade, passemos agora à crítica ao livre-arbítrio tal como ela

aparece na discussão entre o filósofo inglês e John Bramhall.

Conforme afirma Hobbes, “toda a questão do livre-arbítrio está incluída nesta,

‘A vontade determina a si mesma?’”, e a resposta hobbesiana a esta questão é

claramente negativa: “nenhum homem pode determinar sua própria vontade”82

. De fato,

um dos pontos centrais da crítica hobbesiana consiste na ideia de que a vontade possui

causas necessárias pelas quais é determinada a querer ou não querer isso ou aquilo, e

essas causas não têm origem na própria vontade, o que equivale a dizer que ninguém

78 HOBBES, T. Leviatã, cap. VI, p. 36. 79 HOBBES, T. Leviatã, cap. VI, p. 41. 80 HOBBES, T. Leviatã, cap. VI, p. 38. 81 “(...) a deliberação não é senão a imaginação alternada das consequências (sequels) boas e más

de uma ação, ou, o que é a mesma coisa, [não é senão] a esperança e o medo alternados, ou o apetite

alternado, de fazer ou deixar de fazer a ação sobre a qual se delibera” (HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise

Of Liberty and Necessity”, op. cit., p. 37 [acréscimo nosso]). 82 HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions...”, op. cit., p. 72.

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tem a liberdade de escolher a própria vontade83

. É isso que Hobbes tem em mente

quando afirma, no resumo (citado acima) que abre as Questões, que o ser humano não

pode escolher a vontade que terá daqui a pouco tempo. Para Bramhall, ao contrário, a

vontade tem o poder de se autodeterminar, tendo assim “domínio sobre seus próprios

atos para querer ou não querer sem necessitação extrínseca (extrinsical

necessitation)”84

. Isso não quer dizer que, para o bispo, a vontade não está de forma

alguma sujeita a influências externas e anteriores a ela, mas sim que tais influências não

são suficientes para fazê-la agir: em última instância, a operação da vontade é livre

porque “não é necessitada por nenhuma outra causa que não ela mesma”85

.

Outro aspecto importante que leva Hobbes a negar a liberdade da vontade é a

impossibilidade de conciliá-la com o decreto de Deus e com a presciência divina. Se

Deus sabe de antemão que uma coisa ocorrerá, ela deve ocorrer necessariamente e é

impossível que ela não ocorra, donde ser absurdo afirmar que determinado

acontecimento depende do poder que a vontade humana tem de querer ou não querer.

Se, ao contrário, a presciência divina disser respeito a coisas que não se realizarão ou

que poderão não se realizar devido à livre escolha humana, não haverá propriamente

presciência (o que seria uma grande desonra para o poder onisciente divino), já que a

vontade ou o decreto divino estará de alguma forma submetida ao livre-arbítrio

humano86

. Uma vez que se considera que Deus conhece tudo previamente, é preciso

concluir que todas as coisas são necessárias, sendo a presciência de Deus e seu decreto

atos coeternos e, portanto, uma só coisa87

. Entende-se, assim, por que Hobbes contraria

a posição de Bramhall referida no início das Questões, que sustenta que nem todas as

coisas ocorrem necessariamente, mas muitas se dão por acaso, e que a presciência

divina não implica a necessidade dos acontecimentos conhecidos previamente por Deus.

No trecho inicial das Questões que citamos anteriormente, Hobbes também

afirma que tanto ele quanto Bramhall concordam em um ponto, a saber, ambos

sustentam que “os homens são livres para fazer como querem e para se abster como

querem”. Como pode Hobbes declarar que o ser humano, mesmo não possuindo livre-

83 Cf. FOISNEAU, L. “Introduction”, op. cit., p. 11; FRATESCHI, Y. “A negação do livre

arbítrio...”, op. cit., p. 30-31. 84 BRAMHALL, J. “Selections from Bramhall, A Defence of True Liberty”. In: Hobbes and

Bramhall on Liberty and Necessity, op. cit., p. 63. 85 CHAPPELL, V. “Introduction”, op. cit., p. xv. 86 FOISNEAU, L. “Introduction”, op. cit., p. 14 e FRATESCHI, Y. “A negação do livre

arbítrio...”, op. cit., p. 29-30. 87 HOBBES, T. The Questions concerning Liberty, Necessity, and Chance. In: The English

Works of Thomas Hobbes of Malmesbury (edited by Sir William Molesworth), vol. 5, 1841, p. 17-19.

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arbítrio, é livre para fazer ou para se abster de acordo com sua vontade? O

esclarecimento desse ponto exige a compreensão do conceito hobbesiano de liberdade,

que mencionamos brevemente acima a partir do capítulo XXI do Leviatã e que aparece

também na discussão entre o filósofo e o bispo, onde lemos que a liberdade é “a

ausência de todos os impedimentos à ação que não estão contidos na natureza e na

qualidade intrínseca do agente”88

. A partir dessa ideia de liberdade, seria descabido

afirmar que aquele cujas pernas foram amputadas não é livre para caminhar, já que o

impedimento diz respeito à natureza do agente, não se tratando assim de um óbice

externo tal como aquele envolvido pela definição hobbesiana. Ainda de acordo com

essa concepção de Hobbes, se uma pessoa se encontra amarrada, pode-se dizer que ela

carece da liberdade de andar, mesmo que tenha o desejo de fazer uma caminhada89

. Por

outro lado, quando uma pessoa tem vontade de fazer algo e nenhum obstáculo externo a

impede de agir, pode-se dizer que essa ação é livre e voluntária, ainda que a própria

vontade não seja autodeterminada.

Ao definir a liberdade como ausência de impedimento externo ao movimento e

ao recusar o livre-arbítrio, Hobbes defende que o ser humano pode ser livre para fazer

conforme quer, mas não livre para escolher o que quer. Conforme esclarece Yara

Frateschi,

O homem tem a liberdade de fazer o que ele tem a “fantasia” de fazer, embora não esteja

sob sua vontade escolher sua “fantasia” ou sua vontade (...). O “agente livre” não é aquele

que é livre para querer, mas sim aquele que é livre para fazer. E ele só é livre para fazer quando não é impedido por obstáculos exteriores”.

90

Embora a liberdade da vontade seja vista como um absurdo dentro do

hobbesianismo, isso não quer dizer que a liberdade humana é inconcebível, pois quando

alguém não é impedido de fazer aquilo que pode e tem o desejo de realizar, age

livremente. Nas palavras de Hobbes, “um homem livre é aquele que, naquelas coisas

que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem

vontade de fazer.”91

Nesse sentido, Hobbes chega mesmo a identificar os atos livres e os

atos voluntários, afirmando nas Questões: “Eu, de fato, considero todos os atos

voluntários serem livres, e todos os atos livres serem voluntários”92

.

88 HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise Of Liberty and Necessity”, op. cit., p. 38. 89 HOBBES, T. Idem, ibidem. 90 FRATESCHI, Y. “A negação do livre arbítrio...”, op. cit., p. 36, nota 3. 91 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXI, p. 133. 92 HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions...”, op. cit., p. 82.

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2.2. Implicações jurídicas e políticas da negação hobbesiana do livre-arbítrio

A querela entre Hobbes e Bramhall tem nítidas implicações jurídicas e políticas.

Para Bramhall, o necessitarismo hobbesiano leva à destruição da sociedade. Se tudo é

necessário, inclusive a vontade humana, as leis devem ser consideradas injustas, já que

as pessoas não podem escolher livremente se vão obedecê-las ou transgredi-las. Além

disso, a doutrina defendida por Hobbes torna as recompensas e punições tão imerecidas

quanto inúteis, pois impossibilita que os súditos sejam responsabilizados por seus atos,

os quais não decorrem de uma livre decisão da parte deles, mas apenas da necessidade

constrangedora das causas externas e, assim sendo, agir de maneira diferente é algo que

escapa à vontade dos agentes93

.

Contrapondo-se à visão de Bramhall, Hobbes defende que a necessidade de uma

ação não torna injustas as leis que a proíbem. Conforme lemos no Leviatã, justiça e

injustiça são conceitos que só se aplicam aos seres humanos em sociedade, e não fora

dela: “onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”94

. De

acordo com o pensamento hobbesiano, o ser humano, longe de ser um animal político

naturalmente voltado para a sociedade (tal como queria Aristóteles), é um ser que busca

primordialmente conservar a própria existência. No estado de natureza, não havendo um

poder capaz de controlar a todos, cada um tem a liberdade de “usar seu próprio poder,

da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua

vida”95

, sendo essa a definição hobbesiana de direito natural. Da condição natural da

humanidade, segue-se uma guerra generalizada de todos contra todos96

. A fim de pôr

um fim a essa guerra e instituir um poder comum, cada um precisa ceder e transferir a

um homem ou a uma assembleia de homens o seu direito natural de agir como quiser

para preservar a própria vida, autorizando todas as ações do Estado assim instituído97

.

Nesse sentido, afirmar que algo é justo ou injusto é o mesmo que dizer que algo

está ou não de acordo com as leis que regem a vida social. De acordo com o pensamento

93 BRAMHALL, J. “Bramhall’s discourse of liberty and necessity”. In: Hobbes and Bramhall on

Liberty and Necessity, op. cit., p. 4-5. 94 HOBBES, T. Leviatã, cap. XIII, p. 81. Mais adiante no Leviatã, depois de definir o que é a lei

civil, Hobbes esclarece que “as leis são as regras do justo e do injusto, não havendo nada que seja

considerado injusto e não seja contrário a alguma lei” (HOBBES, T. Leviatã, cap. XXVI, p. 165). A ideia

de que não pode haver injustiça onde não há lei civil aparece também na discussão entre Hobbes e

Bramhall, onde o filósofo afirma que “onde não há lei, ali nenhum assassínio nem nenhuma outra coisa

podem ser injustos” (HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise Of Liberty and Necessity”, op. cit., p. 25). 95 HOBBES, T. Leviatã, cap. XIV, p. 82. 96 Cf. HOBBES, T. Leviatã, cap. XIII, p. 78-79. 97 HOBBES, T. Leviatã, cap. XVII, p. 109.

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político hobbesiano, é do poder soberano que emana a justiça, de forma que nada do que

é decretado por esse poder pode ser considerado injusto pelos súditos98

, os quais são

obrigados “a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu

soberano fizer e considerar bom fazer”99

.

Para Hobbes, se um ato é considerado ilegal, a pessoa que o pratica

voluntariamente, mesmo sendo sua vontade determinada por causas necessárias, pode

ser justamente punida, e isso porque a punição funciona como uma causa formadora da

vontade. A ideia de que as punições visam moldar a vontade dos súditos aparece na

própria definição de pena que encontramos no Leviatã:

Uma pena (punishment) é um dano (evil) infligido pela autoridade pública, a quem fez

ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que

assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência. (HOBBES, T. Leviatã, cap. XXVIII, p. 190)

Eis um exemplo hobbesiano: suponhamos que uma lei que proíbe o roubo prevê

como pena a morte e alguém, necessitado a roubar pela força da tentação, é condenado à

pena capital. Ora, pergunta o filósofo, a punição não é uma causa que faz com que os

outros súditos, temerosos, deixem de roubar? Ela não molda sua vontade, conformando-

a à lei civil? Segue-se daí a conclusão de Hobbes: “Fazer a lei é, portanto, fazer uma

causa da justiça e necessitar a justiça; e, consequentemente, não é uma injustiça fazer

uma tal lei.”100

Hobbes entende que o propósito da punição não é causar dano ao delinquente por

causa de sua ação passada, mas sim fazer com que as leis sejam observadas, garantindo

assim a preservação das outras pessoas. As penas não visam o mal que já foi cometido,

mas sim o bem vindouro, isto é, não se trata de punir simplesmente para vingar as

infrações que já ocorreram, mas para prevenir as transgressões futuras101

. Nesse ponto,

o filósofo se afasta novamente de Bramhall, e não deixa de criticá-lo.

98 Cf. HOBBES, T. Leviatã, cap. XVIII, p. 113; FRATESCHI, Y. “Cidadania e liberdade:

Rousseau contra Hobbes”. Revista Discurso (44) 2014, p. 55-78, p. 66; “Liberdade e Livre-arbítrio em

Hobbes”, op. cit., p. 120 e p. 123. 99 HOBBES, T. Leviatã, cap. XVIII, p. 111. 100 HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise Of Liberty and Necessity”, op. cit., p. 25. 101 Conforme Hobbes observa no capítulo XV do Leviatã, quando o castigo não é aplicado

visando “a correção do ofensor ou o exemplo para os outros (direction of others)”, ele é designado mais

propriamente pelo nome de “crueldade” (HOBBES, T. Leviatã, cap. XV, p. 95). No capítulo XXVIII da

mesma obra, o filósofo afirma que “(...) é da natureza das penas (punishment) ter por fim predispor os

homens a obedecer às leis. (...) todo dano (evil) infligido sem intenção ou possibilidade de predispor o

delinquente, ou outros homens, através do exemplo, à obediência às leis, não é pena (punishment), mas

ato de hostilidade, porque sem tal finalidade nenhum dano (hurt) merece receber esse nome. (...) a

finalidade das penas (punishment) não é a vingança, mas o terror” (HOBBES, T. Leviatã, cap. XXVIII, p.

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Parece que ele toma a punição por uma espécie de vingança, e por isso não poderá nunca

concordar comigo, que a tomo por nada mais que uma correção ou um exemplo, que tem por fim moldar e necessitar a vontade à virtude; e não é um homem bom aquele que, ante

qualquer provocação, usa de seu poder, embora seja um poder legalmente obtido, para

afligir outro homem sem este fim de reformar sua vontade ou a dos outros. (HOBBES, T. The Questions concerning Liberty, Necessity, and Chance, op. cit., p. 177)

102

Ainda que a punição vise o bem futuro, poder-se-ia argumentar que é injusto

matar alguém que não podia ter agido de maneira diferente, ainda que sua morte

reforme a vontade dos outros súditos. Hobbes, contudo, defende que “os homens são

mortos de maneira justa, não porque suas ações não são necessitadas”, isto é, não

porque seus atos derivam de uma escolha livre, mas porque eles são (voluntariamente)

nocivos e contrários à preservação alheia, sendo “poupados e preservados” aqueles que

não causam danos aos outros103

.

Vemos assim que, se Bramhall, por um lado, argumenta que a negação do livre-

arbítrio torna injustas e descabidas as punições e recompensas, pode-se afirmar que

Hobbes, ao contrário, entende que as penas são eficazes justamente porque a vontade

não é livre. Quando uma pessoa delibera, ela considera o que seria melhor fazer ou não

fazer, e a vontade, sendo o último apetite ou aversão na deliberação, é o resultado dessa

consideração que antecede imediatamente a ação ou omissão. Ao causar medo (da

punição) e esperança (da recompensa) nos súditos, o Estado influencia e forma a

vontade deles, reforçando assim a obediência civil104

. De acordo com Renato Janine

Ribeiro, o castigo em Hobbes

(...) faz parte duma mecânica social, ao converter o crime em mau negócio, ao combater a

atração do ganho fácil na transgressão. Entra, como aversão, no cálculo das vantagens e

perigos da ilegalidade. Pesa na soma que é a deliberação. Não supõe, o castigo, uma

vontade concebida como faculdade livre, posta acima dos apetites, a ponderá-los; vai, sim, reforçar certos apetites e aversões.

105

Para que a punição tenha como efeito a obediência civil, é preciso que os danos

infligidos pela autoridade pública sejam maiores que o benefício ou a satisfação

191). Hobbes esclarece nas Questões que, quando a pena não é capital, ela reforma a vontade do

transgressor, ao passo que, sendo capital, a pena reforma a vontade das outras pessoas através do exemplo. Cf. HOBBES, T. “Selections from Hobbes, The Questions...”, op. cit., p. 76. Sobre o propósito

da punição em Hobbes, ver também KOW, S. “Necessitating Justice: Hobbes on Free Will and

Punishment”. CPSA Annual Meeting. Winnipeg, Manitoba, June 3, 2004, p. 1-24, p. 18. 102 Ainda sobre o propósito que Hobbes confere à punição e acerca da diferença entre sua teoria

penal e aquela de Bramhall, ver RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu

tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 24-25. 103 HOBBES, T. “Hobbes’s Treatise Of Liberty and Necessity”, op. cit., p. 25. 104 Cf. FRATESCHI, Y. “Liberdade e Livre-arbítrio em Hobbes”, op. cit., p. 121. 105 RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo..., op. cit., p. 28.

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resultantes da transgressão da lei, pois, se não for esse o caso, o castigo deixa de ser

eficaz e passa a ser mais propriamente um convite à desobediência106

.

Embora as punições e recompensas possam não ser os únicos expedientes de que

dispõem as autoridades públicas para garantir a observância das leis (para Simon Kow,

por exemplo, a educação dos súditos seria essencial dentro do sistema hobbesiano para

que os súditos escolhessem agir dentro da legalidade107

), elas certamente desempenham

um papel importante dentro do pensamento político de Hobbes, e o filósofo inglês

conseguiu argumentar coerentemente contra as implicações jurídicas e políticas que

Bramhall extraía da negação hobbesiana do livre-arbítrio humano.

Ao tratar do direito de punir no Leviatã, Hobbes observa que esse direito não foi

dado pelos súditos ao Estado, mas foi deixado a ele. Ao renunciar ao seu direito natural

de punir, cada um reforça o uso que o Estado pode fazer desse seu direito tal como

julgar melhor para a preservação de todos.

(...) o direito de punir que pertence ao Estado (isto é, àquele ou àqueles que o

representam) não tem seu fundamento em qualquer concessão ou dádiva dos súditos. (...) antes da instituição do Estado, cada um tinha direito a todas as coisas, e a fazer o que

considerasse necessário a sua própria preservação, podendo com esse fim subjugar, ferir

ou matar a qualquer um. E é este o fundamento daquele direito de punir que é exercido

em todos os Estados. Porque não foram os súditos que deram ao soberano esse direito; simplesmente, ao renunciarem ao seu, reforçaram o uso que ele pode fazer do seu próprio,

da maneira que achar melhor, para a preservação de todos eles. De modo que ele não lhe

foi dado, foi-lhe deixado, e apenas a ele; e tão completo (...) como na condição de simples natureza, ou de guerra de cada um contra seu próximo. (HOBBES, T. Leviatã, cap.

XXVIII, p. 190)

Uma vez que a diferença apontada por Espinosa, na Carta 50, entre seu

pensamento político e o de Hobbes diz respeito ao direito natural e aos direitos que o

magistrado supremo tem sobre os súditos, resta indagar se e em que a fundamentação

espinosana do direito de punir é diferente da hobbesiana, a qual assenta sobre a renúncia

do direito natural dos súditos.

106 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXVIII, p. 191. 107 Cf. KOW, S. “Necessitating Justice...”, op. cit., p. 19-22.

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3. DIREITO NATURAL E POLÍTICA: ESPINOSA CONTRA

HOBBES

3.1. A correspondência entre Espinosa e Jelles

A diferença entre a filosofia política espinosana e o pensamento político de

Hobbes é abordada na Carta 50 (4 de junho de 1672) da Correspondência de Espinosa,

na qual ele responde a uma questão colocada por Jarig Jelles.

Amigo íntimo do filósofo, Jarig Jelles (c.1620-1683) foi um comerciante de

Amsterdã que se afastou dos negócios em 1653 para dedicar-se aos estudos em tempo

integral. Jelles foi também um dos responsáveis pela organização das edições latina (B.

de S. Opera Posthuma) e holandesa (De Nagelate Schriften van B. d. S.) das obras

póstumas de Espinosa, e costuma-se atribuir a Jelles a autoria do prefácio que abre essas

edições, prefácio este que ele teria redigido em holandês e que teria sido traduzido para

o latim por Lodewijk Meijer108

.

A correspondência entre Espinosa e Jelles constitui-se atualmente por seis cartas

(cinco escritas por Espinosa e uma por Jelles), mas seu conteúdo permite deduzir que

algumas missivas trocadas entre eles se perderam109

. As epístolas de que dispomos

abrangem um período de cerca de sete anos (março de 1667 a junho de 1674), e os

assuntos nelas abordados são bastante variados, incluindo temas como óptica (Carta

39), alquimia (Carta 40), hidrodinâmica (Carta 41), política (cartas 44 e 50), relação

entre filosofia e religião (cartas 48A e 48B110

), vontade humana (Carta 48B) e

metafísica (Carta 50).

É preciso observar o caráter problemático da fonte de que dispomos para

compreender o diálogo entre Espinosa e Jelles acerca da vontade humana, pois a Carta

108 Cf. ISRAEL, J. I. Radical enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-

1670. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 164. Sobre a autoria do prefácio das obras póstumas de

Espinosa, ver DOMÍNGUEZ, A. Biografías de Spinoza. Madrid: Alianza Editorial, 1995, p. 12-17;

ROVERE, M. “Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma”. O que nos faz

pensar. Rio de Janeiro, v. 26, n. 41, p.163-189, jul.-dez. 2017. 109 A Carta 39 (03 de março de 1667), que abre a correspondência entre os dois amigos na edição

das obras completas de Espinosa organizada por Carl Gebhardt, inicia-se com as seguintes palavras de Espinosa a Jelles: “Vários obstáculos me impediram de responder antes a sua carta”. No começo da

segunda carta dessa correspondência (Carta 40, de 25 de março de 1667), Espinosa diz: “Sua última

carta, escrita no dia 14 deste mês, foi-me entregue corretamente.”. Cf. SPINOZA, B. Opera. Edição de

Carl Gebhardt. Heidelbergue: Carl Winters Universitætbuchhandlung, 1972, 4 v., p. 193 e p. 196;

SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 261 e p. 263. 110 A Carta 48A não se encontra na edição Gebhardt das obras espinosanas, e o conteúdo da

Carta 48B foi apenas parcialmente publicado por Gebhardt na Carta 48bis e em notas. Utilizamos aqui a

nomenclatura “48A” e “48B” a partir da tradução espanhola de Atilano Domínguez. Cf. SPINOZA, B.

Correspondencia, op. cit., p. 302-307.

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48B, na qual esse tema é abordado, não foi redigida por Espinosa. Essa epístola contém

três relatos concernentes à resposta que Espinosa teria dado ao livro Profissão de fé

universal e cristã, escrito por Jelles e enviado por este a Espinosa juntamente com uma

carta dedicatória e um comentário final, presentes na Carta 48A. De acordo com um dos

relatos da Carta 48B, Espinosa teria criticado a concepção de vontade defendida por

Jelles, segundo a qual o ser humano estaria por natureza inclinado ao mal, mas se fez

indiferente ao bem e ao mal pela graça de Deus e pelo espírito de Cristo. Espinosa teria

considerado contraditória a tese de Jelles, e teria argumentado que, se o ser humano tem

o espírito de Cristo, deveria estar necessariamente inclinado somente ao bem111

.

Antes da Carta 50, Espinosa já discutira política com Jelles na Carta 44, na qual

nosso filósofo tece algumas considerações sobre o livreto Homo Politicus, publicado

anonimamente em 1664. Nas palavras de Espinosa, trata-se do “livro mais pernicioso

que os homens poderiam excogitar e forjar”, já que seu autor defenderia que as honras e

as riquezas constituem o sumo bem. Além disso, pode-se depreender que o autor do

Homo Politicus defende que o bem maior de uma sociedade política também se

encontra nas honras e riquezas, pois Espinosa, ao confessar a Jelles seu desejo de

escrever “um pequeno livro indiretamente contra este autor”, afirma que sua intenção

seria a de provar “através de razões muito evidentes e oferecendo muitos exemplos, que

Estados com um insaciável desejo de honras e riquezas devem perecer e perecem”112

.

Outro assunto que envolve questões políticas e que figura na Carta 44 é a súplica

de Espinosa a Jelles para que este impedisse a publicação da tradução holandesa do

TTP. O TTP fora escrito em latim e viera a lume em 1670, de maneira anônima e com

informações falsas sobre o editor e o local de publicação. Ainda assim, sua autoria não

demorou a ser reconhecida. Espinosa e “muitos” de seus “amigos e conhecidos” temiam

a proibição do tratado caso ele fosse publicado em holandês. Embora a tradução em

questão tenha sido adiada com sucesso, sendo publicada somente em 1693 sob o título

O teólogo ortodoxo, um édito promulgado pelos Estados Gerais da Holanda em 1674

proibiu “a impressão, a divulgação e a venda” do TTP e de outras obras, entre as quais

estava o Leviatã de Hobbes113

.

111 Cf. SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 306-307. 112 DAVID, Antônio. “Carta nº 44 de Spinoza”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 20, p.

177-184, 2012, p. 182. 113 DAVID, Antônio. “Carta nº 44 de Spinoza”, op.cit., p. 179, nota 6.

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3.2. Direito natural e vida em sociedade

Feitas essas considerações, passemos à Carta 50.

No que diz respeito à política, a diferença entre mim e Hobbes, sobre a qual interrogas, consiste nisso: eu sempre conservo o direito natural bem resguardado e

considero que em qualquer Cidade o magistrado supremo só tem direito sobre os

súditos na medida exata em que seu poder sobre eles supere o deles, como sempre ocorre no estado natural.

114

Embora bastante breve (seis linhas no texto latino das Opera Posthuma), a

resposta de Espinosa pode ser de grande valia para compreendermos de que maneira ele

fundamenta o direito que a cidade tem de punir, visto que a diferença apontada por

Espinosa entre o seu pensamento político e o de Hobbes envolve o conceito de direito

natural e, conforme vimos acima, a fundamentação hobbesiana do direito que o Estado

tem de punir encontra-se justamente na renúncia do direito natural de cada um a fazer o

que achar melhor para se conservar, pois essa renúncia reforça o uso que o poder

soberano pode fazer do seu próprio direito natural a tudo aquilo que considerar

necessário para a preservação dos súditos.

A partir dessa fundamentação hobbesiana do direito que o poder soberano tem de

punir, e partindo da resposta de Espinosa na Carta 50, pode-se julgar que Hobbes exclui

completamente o direito natural dos indivíduos no interior da vida política ou dentro do

estado civil. Contudo, o capítulo XXI da segunda parte do Leviatã nos permite

compreender que não é esse o caso. Ali, com efeito, ao escrever sobre a liberdade dos

súditos, Hobbes observa que, após a criação do Estado, os súditos mantêm sua liberdade

ou seu direito natural “naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu”.

De acordo com essa ideia, cada súdito é livre para “comprar e vender” ou realizar

contratos mútuos de outro modo, bem como cada um tem a liberdade de escolher onde

irá residir, como irá se alimentar, qual profissão seguirá ou como educará seus filhos115

.

O direito natural dos súditos é mantido também “em todas aquelas coisas cujo direito

não pode ser transferido por um pacto”, pois não podem ter validade alguma os pactos

114 Tradução citada a partir de CHAUI, M. “Direito natural e direito civil em Hobbes e

Espinosa”. In: Política em Espinosa. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 289-314, p. 289. No

original: “Quantum ad Politicam spectat, discrimen inter me, & Hobbesium, de quo interrogas, in hoc

consistit, quòd ego naturale Jus semper sartum tectum conservo, quòdque Supremo Magistratui in

quâlibet Urbe non plus in subditos juris, quàm juxta mensuram potestatis, quâ subditum superat,

competere statuo, quod in statu Naturali semper locum habet.” (SPINOZA, B. Opera, op. cit., vol. 4, p.

239). 115 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXI, p. 135.

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no sentido de “abster-se de defender o próprio corpo”116

. Além disso, ali onde houver o

silêncio da lei, permanecerá o direito natural dos súditos, visto que “nos casos em que o

soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de

omitir” conforme bem entender117

.

Já na primeira parte do Leviatã (capítulo XIII), ao explicitar que, mesmo quando

submetidos às leis de um Estado, os indivíduos trancam suas casas e seus cofres e

procuram viajar armados e bem acompanhados118

, Hobbes deixa entrever que a vida

civil não afasta completamente o direito natural de cada um, que permanece também

como algo virtual ou latente no interior da vida política. Conforme explica Marilena

Chaui,

Após o advento do direito civil, o direito natural é conservado por Hobbes de duas

maneiras. Em primeiro lugar, como aquilo que permanece na qualidade de direito

individual por não ter sido transferido por nenhum pacto ou em virtude do silêncio das leis. Em segundo lugar, o direito natural permanece na condição de virtualidade ou de

inclinação latente que, em determinadas circunstâncias, pode vir a atualizar-se, como é o

caso da guerra civil.119

Ora, uma vez que Hobbes mantém o direito natural no interior da vida civil, e

visto que Espinosa, para marcar uma das diferenças de sua filosofia política em relação

ao hobbesianismo, afirma que conserva sempre “bem resguardado” o direito natural,

podemos indagar: teria Espinosa interpretado de maneira equivocada o pensamento

político hobbesiano, ou a manutenção do direito natural feita por Hobbes seria diferente

daquilo que Espinosa entende por manter “bem resguardado” esse direito?120

Para

compreendermos tais questões, bem como para entendermos melhor a resposta

espinosana contida na Carta 50, investiguemos, em primeiro lugar, como Espinosa

entende a ideia de direito natural.

O conceito de direito natural é abordado em três obras espinosanas, a saber, nos

tratados Teológico-político e Político e na Ética. Nos dois tratados, Espinosa demonstra,

em textos semelhantes, que o direito natural define-se pela potência natural (jus sive

potentia, “direito, ou seja, potência”), o que equivale a dizer que o direito natural de

cada coisa estende-se exatamente até onde vai sua potência, tendo cada ser pleno direito

a tudo o que pode fazer.

116 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXI, p. 137. 117 HOBBES, T. Leviatã, cap. XXI, p. 138. 118 HOBBES, T. Leviatã, cap. XIII, p. 80. 119 CHAUI, M. “Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa”, op. cit., p. 296. 120 Essas indagações são levantadas por Marilena Chaui no texto citado na nota acima.

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No capítulo XVI do TTP, o “direito e instituição natural” (jus & institutum

naturae) é definido como “as regras da natureza de cada indivíduo, segundo as quais

concebemos cada um como naturalmente determinado a existir e a operar de maneira

certa”. Espinosa parte da ideia de que a natureza, considerada absolutamente, tem

direito a todas as coisas, estendendo-se o direito da natureza inteira até onde vai a sua

potência, “pois a potência da natureza é a própria potência de Deus, o qual tem sumo

direito a tudo”. Uma vez que a potência de Deus não é senão a potência de todos os

indivíduos em simultâneo, é preciso concluir que “cada indivíduo tem sumo direito a

tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se

estende a sua exata potência” (determinata potentia)121

.

Já o capítulo II do TP traz a definição do direito de natureza como “as próprias

leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria

potência da natureza”. Espinosa argumenta que para existirem e continuarem na

existência, as coisas naturais ou os modos precisam da mesma potência por meio da

qual começam a existir. Essa potência não pode ser criada, pois, se assim fosse,

precisaria também ela, para existir e para conservar a si própria e as coisas naturais, da

mesma potência pela qual foi criada. Portanto, a potência pela qual as coisas naturais

existem e operam não é senão a própria potência eterna de Deus. Uma vez que o direito

de Deus a tudo “não é senão a própria potência de Deus na medida em que se considera

esta como absolutamente livre”, segue-se que “qualquer coisa natural tem por natureza

tanto direito quanta potência para existir e operar tiver” e que “aquilo que cada homem

faz segundo as leis de sua natureza fá-lo segundo o supremo direito de natureza e tem

tanto direito sobre a natureza quanto o valor da sua potência” (tantumque in naturam

habet iuris, quantum potentia valet)122

.

Assim como Hobbes, Espinosa não restringe o direito natural aos ditames da reta

razão.123

Para ele, enquanto referido aos modos humanos, o direito natural é explicado

por toda e qualquer coisa que o ser humano tem a potência ou a capacidade de fazer. O

direito natural humano seria determinado só pela potência racional se cada pessoa

vivesse exclusivamente sob a condução da razão. Aliás, se todos os seres humanos

121 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 234-235 (tradução modificada). 122 ESPINOSA, B. de. Tratado político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio.

São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, p. 11-12. 123 Hugo Grotius, por exemplo, entende que “o direito natural nos é ditado pela razão que nos

leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por

deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe

ou a ordena” (GROTIUS, H. O Direito da guerra e da paz (De jure belli ac pacis), v. I. Trad. Ciro

Mioranza. Ijuí: Ed. Unijuí/Fondazione Cassamarca, 2004, p. 79).

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agissem sempre de acordo com o que dita a razão, viveriam sempre em concórdia e

poderiam prescindir completamente das leis civis, visto que, dentro da filosofia de

Espinosa, a razão indica aquilo que é melhor para a natureza humana (para cada um e

para todos). Mas, para Espinosa, os seres humanos não são determinados a agir apenas

pela razão, mas são também levados a operar pelas paixões, e, enquanto se defrontam

com afetos passionais, podem ser contrários uns aos outros124

.

(...) se os homens fossem por natureza constituídos de modo que não desejassem senão o

que ensina a reta razão, certamente a sociedade não necessitaria de nenhuma lei, bastando

apenas fornecer aos homens os verdadeiros ensinamentos morais para que, espontaneamente e de inteira e livre vontade (integro & liberali animo), fizessem aquilo

que verdadeiramente interessa (id, quod vere utile est, agerent). Quão diferente, porém, é

a constituição da natureza humana! Todos procuram, de fato, o que lhes é útil, mas quase

nunca segundo os preceitos da reta razão; pelo contrário, a maioria das vezes desejam as coisas e consideram-nas úteis unicamente por capricho e por paixão, sem olhar para o

futuro nem para razões de nenhuma outra espécie. (TTP, cap. V, p. 85).

Espinosa entende por paixão o afeto do qual somos causa inadequada ou parcial,

uma vez que não entendemos clara e distintamente os efeitos que ocorrem em nós ou

que se seguem de nossa natureza quando padecemos. Já a ação é o afeto do qual somos

causa adequada ou total, pois quando agimos compreendemos totalmente os efeitos que

se seguem de nossa natureza, quer esses efeitos se produzam em nós ou fora de nós125

.

Seja de maneira passiva ou ativa, o ser humano é necessariamente determinado a fazer o

que sabe (na ação) ou o que imagina ser útil (na paixão), e tudo o que cada indivíduo

tem a potência de fazer explica o seu direito natural.

(...) não está em poder de cada homem usar sempre da razão e estar no nível supremo da

liberdade humana. [...] cada um esforça-se sempre, tanto quanto está em si, por conservar o seu ser, e (uma vez que cada um tem tanto direito quanto a sua potência vale) tudo

aquilo por que cada um, sábio ou ignorante, se esforça e faz, esforça-se e faz por supremo

direito de natureza (TP, II, art. 8).

Para Espinosa, o que define a potência de cada ser não é senão a sua própria

essência, e esta, conforme lemos na terceira parte da Ética, é o conatus ou o esforço por

perseverar em seu ser126

. Em relação à essência do ser humano, que consta de mente e

corpo, o esforço por se conservar é denominado vontade quando referido apenas à

mente. Referido em simultâneo à mente e ao corpo humano, esse conatus é chamado de

apetite, sendo este a própria essência do ser humano, “de cuja natureza necessariamente

124 Cf. EIV, P34-35. 125 Cf. EIII, definições. 126 Cf. EIII, P6-7.

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segue aquilo que serve à sua conservação”. Já quando se considera que os seres

humanos têm consciência de seu apetite, ele é chamado de desejo127

. Somos

essencialmente seres desejantes, que se esforçam mental e corporalmente por continuar

existindo e que têm consciência desse esforço.

Uma vez que o direito natural se define pela potência, segue-se que o direito que

cada pessoa tem por natureza envolve todo e qualquer esforço de cada uma por

conservar-se. A partir dessa ideia, depreende-se a impossibilidade de conceber o

surgimento da vida em sociedade na renúncia do direito natural, visto que renunciar a

esse direito equivaleria a abrir mão da própria essência. Conforme Espinosa enuncia no

início de seu Tratado político, sua intenção ao tratar da política é deduzir as causas e

fundamentos da vida civil “da natureza ou condição comum dos homens”128

e essa

natureza humana comum é justamente o desejo ou o direito natural humano.

Como surge então, para Espinosa, a vida civil, e o que ele entende por manter

bem resguardado o direito natural na política? De acordo com Espinosa, o surgimento

da vida em sociedade se dá quando cada pessoa cede para todo o corpo social não o seu

direito de natureza, mas apenas uma parte dele, que é o desejo de causar dano aos outros

seres humanos. Essa concepção aparece de modo evidente na parte quatro da Ética,

onde o filósofo aborda a questão do estado natural e do estado civil.

Cada um existe por sumo direito de natureza e, consequentemente, por sumo direito de

natureza faz (agit) aquilo que segue da necessidade de sua natureza; e por isso por sumo

direito de natureza cada um julga o que é bom, o que é mau, e cuida do que lhe tem utilidade conforme seu engenho, vinga-se e esforça-se para conservar o que ama e

destruir o que odeia. E se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um

possuiria este seu direito sem nenhum dano para outro. Porém, como estão submetidos

aos afetos, que de longe superam a potência ou virtude humana, por isso frequentemente são arrastados em direções diversas, e são contrários uns aos outros quando precisam de

auxílio mútuo. Portanto, para que os homens possam viver em concórdia e auxiliar uns

aos outros, é necessário que cedam seu direito natural e tornem uns aos outros seguros de que nada haverão de fazer que possa causar dano a outro (EIV, P37, esc. 2).

No estado de natureza, dada a proporcionalidade entre direito e potência, cada

ser humano tem direito a tudo o que pode fazer. Porém, esse direito está longe de

realizar-se, visto que a potência de cada indivíduo é grandemente superada pela

potência dos outros. Nesse sentido, o direito natural no estado de natureza é “nulo e

consiste mais numa opinião que numa realidade, porquanto não há nenhuma garantia de

127 EIII, P9, esc. 128 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 10.

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o manter” (TP, II, 15), já que cada pessoa sozinha não pode precaver-se de modo a não

ser oprimida por outras cujos desejos podem ser contrários aos dela.

É bem verdade que, de modo semelhante a Espinosa, Hobbes também reconhece

que, no estado de natureza, o direito natural que todo ser humano tem de usar o próprio

poder da maneira que quiser é inútil. Para Hobbes, “os efeitos desse direito são os

mesmos, quase, que se não houvesse direito algum”, pois “embora qualquer homem

possa dizer, de qualquer coisa, ‘isto é meu’, não poderá porém desfrutar dela, porque

seu vizinho, tendo igual direito e poder, irá pretender que é dele essa mesma coisa”.129

Porém, ao definir a liberdade como ausência de impedimento externo, a filosofia

hobbesiana concebe o estado de natureza como um estado de liberdade, estabelecendo

assim uma oposição entre a liberdade natural do ser humano e a vida em sociedade, na

qual as leis civis estabelecem limites para a ação humana. Em suma, abre-se mão da

liberdade em troca de segurança.

Para Espinosa, no entanto, a liberdade humana não é concebida apenas como

falta de obstáculos exteriores, mas está ligada à aptidão corporal e mental para a

pluralidade simultânea130

. Ser livre não significa simplesmente ser capaz de realizar o

que se quer, mas sim fazer necessariamente o que é mais útil para a natureza humana131

,

contando-se entre as coisas úteis aquelas que conduzem à concórdia com outros seres

humanos, isto é, que nos levam à sociedade comum.

É útil ao homem o que dispõe o corpo humano tal que possa ser afetado de múltiplas maneiras ou o que o torna apto a afetar os corpos externos de múltiplas maneiras; e tanto

mais útil quanto torna o corpo mais apto a ser afetado e afetar os outros corpos de

múltiplas maneiras; e, inversamente, é nocivo o que torna o corpo menos apto a isto (EIV, P38).

As coisas que conduzem à sociedade comum dos homens, ou seja, que fazem com que os homens vivam em concórdia, são úteis (EIV, P40).

129 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. 3ª

edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 30. 130 Conforme observa Marilena Chaui, Espinosa compreende a liberdade “como força do corpo

para afetar outros corpos e ser por eles afetado de inúmeras maneiras simultâneas, sem ser dominado por

eles nem dominá-los, aumentando sua capacidade de viver; e como força da mente para conceber

inúmeras ideias simultâneas e desejar simultaneamente tudo que aumente sua capacidade de pensar” (CHAUI, M. “Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa”, op. cit., p. 311-312).

131 “(...) a liberdade é uma virtude, ou seja, uma perfeição: por isso, tudo quanto no homem é

sinal de impotência não pode ser atribuído à sua liberdade. Daí que o homem não possa minimamente

dizer-se livre por poder não existir ou não usar da razão, mas só na medida em que tem o poder de existir

e de operar segundo as leis da natureza humana. Quanto mais livre, pois, consideramos ser o homem,

menos podemos dizer que ele pode não usar da razão e escolher o mal em vez do bem” (ESPINOSA, B.

de. Tratado político, op. cit., p. 15). Espinosa parece empregar aqui os termos “bem” e “mal” tal como

aparecem definidos na quarta parte da Ética: bem é “aquilo que sabemos certamente nos ser útil”, e mal,

“aquilo que sabemos certamente impedir que sejamos possuidores de um bem qualquer” (EIV, def. 1 e 2).

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A partir da concepção espinosana de liberdade, depreende-se que não há para

Espinosa oposição entre uma suposta liberdade do estado de natureza e a obrigação

política132

. Conforme aponta Tammy Nyden-Bullock,

Espinosa difere de Hobbes por não caracterizar as pessoas como livres no estado de

natureza. Para Hobbes, as pessoas no estado de natureza são livres no sentido de que elas

não têm nenhuma obrigação de evitar fazer o que está em seu poder. Para Hobbes, a liberdade é uma ausência de impedimento externo, neste caso, de leis que impeçam de

fazer o que se deseja. Hobbes caracteriza a obrigação relativa às leis civis como

‘correntes artificiais’. Espinosa, por sua vez, não entende que viver de acordo com as

próprias paixões e inclinações seja uma forma de liberdade, sendo antes o pior tipo de servidão. Uma pessoa no estado de natureza é completamente escrava de suas paixões e,

portanto, incapaz de perceber o que é efetivamente do seu próprio interesse. Para

Espinosa, a lei civil não é um tipo de servidão a ser suportado a fim de se preservar. Antes, trata-se de um meio necessário (mas não suficiente) para escapar das correntes das

paixões.133

No interior da filosofia política de Espinosa, o surgimento do estado civil não

assenta sobre a negação do direito de natureza, já que este, no estado natural, não passa

de uma abstração, pois não encontra condições para efetivar-se. Ao contrário, a vida em

sociedade significa a afirmação ou positivação do direito natural de cada indivíduo por

meio da instituição de direitos comuns, donde o direito de natureza de cada ser humano

não permanecer na vida civil apenas de maneira residual ou latente, como um direito

individual que não teria sido transferido por um pacto, ou que se tem por conta do

silêncio das leis, ou como um direito virtual que, ocasionalmente, pode se atualizar, tal

como se dá em Hobbes134

.

A instituição do estado civil se dá quando cada indivíduo cede para toda a

sociedade o poder de se vingar, de julgar sobre bem e mal e de fazer o que lhe parecer

melhor, a fim de que esse direito, que todos possuem por natureza, mas que não se

realiza no estado natural, seja determinado pela potência da multidão, indivíduo coletivo

constituído por todas as pessoas que formam a cidade. Dessa forma, o direito natural

torna-se concreto, pois tem a potência de se realizar. É nesse sentido que Espinosa pode

dizer a Jelles, na Carta 50, que conserva o direito natural bem resguardado no interior

da vida política, já que é esta que concretiza esse direito.

132 Cf. CHAUI, M. “Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa”, op. cit., p. 312. 133 NYDEN-BULLOCK, Tammy. How Hobbes Got to Spinoza. Early Modern Philosophy in

Britain and the Netherlands 1500-1800: British Society for the History of Philosophy Conference.

Roterdã, Holanda, março de 2007, p. 5. 134 Cf. CHAUI, M. “Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa”, op. cit., p. 296-297.

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Uma vez que direito é potência, e que o direito civil se determina pela potência

de todos os indivíduos que compõem a cidade, Espinosa pode também afirmar a Jelles

que o direito do magistrado supremo sobre os súditos se dá apenas na medida em que o

poder daquele supera o destes. Se não fosse esse o caso, o direito do soberano seria algo

abstrato, pois distanciado da potência de se efetivar, tal como se dá com o direito natural

de cada pessoa no estado de natureza. Para Espinosa, no entanto, o direito do soberano,

ou de quem possui a incumbência de tratar dos direitos comuns, se define pela potência

da multidão, sendo esta potência constituída pelo direito natural de cada um dos

indivíduos que compõem a multidão.

(...) o direito do imperium135

, ou dos poderes soberanos, não é senão o próprio

direito de natureza, o qual se determina pela potência, não já de cada um, mas da

multidão, que é conduzida como que por uma só mente; ou seja, da mesma forma que cada um no estado natural, o corpo e a mente de todo o imperium têm tanto

direito quanto vale a sua potência (TP, III, 2, tradução modificada).

3.3. A fundamentação espinosana do direito de punir

Uma vez compreendida a ideia espinosana de que o direito natural mantém-se

bem resguardado no interior da vida civil, cabe indagar de que maneira Espinosa

fundamenta o direito de punir. Na quarta parte da Ética, após mostrar de que modo se dá

a instituição do estado civil, o filósofo aborda a questão da punição, mostrando não

somente a base sobre a qual ela se alicerça, mas também a lógica que a torna necessária

para o estabelecimento da vida política.

(...) nenhum afeto pode ser coibido a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto a ser coibido, e cada um abstém-se de causar dano por temor de um dano

maior. É portanto por esta lei que a Sociedade poderá firmar-se, desde que

reivindique para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal; e por isso, tenha o poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer

leis e firmá-las não pela razão, que não pode coibir os afetos, mas por ameaças. E

esta Sociedade, que se firma pelas leis e pelo poder de se conservar, é denominada Cidade, e aqueles que são defendidos pelo direito dela, Cidadãos (EIV, P37, esc.

2).

Para Espinosa, o estado civil não pode significar simplesmente a instituição de

leis ou regras conformes à razão, pois, como dito acima, se os seres humanos vivessem

135 Espinosa dá o nome de “imperium” ao “direito que se define pela potência da multidão”

(ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 20). Ao traduzir o termo imperium, Diogo Pires Aurélio

optou por “Estado” (no TTP) e “estado” (no TP). Preferimos manter aqui o original latino empregado por

Espinosa, a fim de evidenciar que se trata de um vocábulo distinto da palavra status, empregada pelo

filósofo em expressões como “estado natural” e “estado civil”.

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de acordo com a razão, viveriam em concórdia sem que fosse necessário estabelecer

direitos comuns. Para que o direito da sociedade possa se manter incólume, ou para que

cada pessoa esteja segura de que as outras não lhe causarão dano, deve-se levar em

conta que cada ser humano está necessariamente submetido a paixões, bem como é

necessário considerar de que maneira uma paixão que pode ser danosa ao bem comum

pode ser refreada136

. Nesse sentido, Espinosa apoia-se em duas ideias que já foram

demonstradas na Ética antes do escólio citado acima, a saber, “um afeto não pode ser

coibido nem suprimido a não ser por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser

coibido” (EIV, P7), e “quem odeia alguém se esforçará para fazer-lhe mal, a não ser que

tema originar-se daí um maior mal para si; ao contrário, quem ama alguém se esforçará,

pela mesma lei, para fazer-lhe bem” (EIII, P39).

Essas ideias aparecem também no TTP, onde Espinosa afirma que

Manda a lei universal da natureza humana que ninguém despreze o que considera

ser bom, a não ser na esperança de um maior bem ou por receio de um maior dano, nem aceite um mal a não ser para evitar outro ainda pior ou na esperança de um

maior bem.137

Essa é a lógica dos afetos que opera na política. Se não houver medos e

esperanças comuns, cada um agirá conforme o seu próprio temperamento ou engenho,

não havendo garantias de que as pessoas não prejudicarão umas às outras, quer por

imaginarem que obterão alguma vantagem, quer por julgarem que alguém está prestes a

causar-lhes algum dano. Para Espinosa, os afetos como “o amor, o ódio, a ira, a inveja, a

glória, a misericórdia e as restantes comoções o ânimo” não são “vícios da natureza

humana”, mas propriedades que naturalmente lhe pertencem e que, “embora sejam

incômodos, são contudo necessários e têm causas certas”138

que podem ser conhecidas

pela mente humana. Conhecendo os afetos, compreendemos algo essencial para

entendermos a natureza ou condição comum dos seres humanos, e é a partir dessa

compreensão que Espinosa se propõe a pensar a política. Não por acaso, o TP se inicia

136 Conforme observa Laurent Bove, Espinosa entende que “não há (...) solução política durável

que possa se sustentar apenas sobre a decisão da razão ou sobre uma decisão que seria exclusivamente de

tipo jurídico. As instituições têm realidade efetiva (isto é, potência e efeitos sobre a realidade histórico-social) se e somente se essas instituições concordam inteiramente com as forças reais do real, isto é, com

as paixões humanas. (...) A medida que é necessária para a vida em comum, portanto, não vem apenas do

direito, mas primeiro das paixões e dos desejos.” (BOVE, L. “Da dominação política e de seus remédios:

a lição de Espinosa”. In: ROCHA; CALDERONI; GOMES JUSTO (Orgs.). Construções da felicidade.

Coleção Invenções Democráticas, Volume V. Belo Horizonte: Autêntica Editora / Núcleo de

Psicopatologia, Política Públicas de Saúde Mental e Ações Comunicativas em Saúde Pública da

Universidade de São Paulo (Nupsi-USP), 2015, p. 261-274, p. 263. 137 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 237. 138 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 8.

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com a palavra affectus (afeto): “Os filósofos concebem os afetos com que nos

debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria” (Affectus,

quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa

labuntur)139

.

No interior da filosofia política espinosana, o direito civil, que se constitui a

partir da concessão do direito natural de cada uma das pessoas que compõe a cidade

para todo o corpo social, é o fundamento do direito de punir, que, portanto, não é um

poder que transcende o corpo social (como em Hobbes), mas é um poder que lhe é

imanente. O direito de punir tem, portanto, um fundamento positivo e imanente, que não

é senão a potência comum da multidão, o que não ocorre em Hobbes, pois este

fundamenta o direito de punir na renúncia do direito natural dos súditos, renúncia esta

que, ao não se aplicar ao poder soberano, permite que o direito natural dele se exerça

como um poder que, de cima, controla a vida social.

Para Espinosa, se o direito que o poder soberano tem de punir fosse determinado

apenas pelo direito natural de um Estado transcendente, esse direito seria inexistente,

pois teria uma realidade apenas jurídica e seria impotente para efetivar-se. Se, para

Hobbes, o surgimento do estado civil significa uma restrição da liberdade dos súditos,

Espinosa, por sua vez, vê na instituição da vida política a positivação do direito natural

como direito coletivo. Dessas ideias, podemos concluir que o direito penal espinosano

não é concebido como uma instância de restrição à liberdade comum, mas sim como um

meio de afirmá-la, diferentemente do que acontece no interior do pensamento jurídico e

político hobbesiano.

139 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 5.

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4. PUNIÇÃO E POLÍTICA EM ESPINOSA

No artigo que abre o TP, Espinosa afirma que, ignorando as causas que

determinam necessariamente os homens a operar de maneira certa e determinada, os

teóricos ou filósofos (“Theoretici, seu Philosophi”) julgam que os afetos com os quais

nos defrontamos são como que “vícios em que os homens caem por culpa própria (suâ

culpâ labuntur)”. Os filósofos da tradição, pensando a política a partir de um homem

idealizado e não do homem real, se afastaram da experiência ou da prática (experientia

sive praxis), e assim, da mesma forma que, quase sempre (plerum), sua ética não passa

de uma sátira, suas teorias políticas são sempre utópicas e quiméricas.140

Já os políticos costumam ser vistos como pessoas cuja preocupação maior é

armar ciladas para os homens e não cuidar dos interesses comuns destes, e são

considerados mais habilidosos (callidi) do que sábios. Tendo a experiência por mestra,

não se afastaram da prática, e perceberam que “enquanto houver homens, haverá

vícios”. Por isso, buscaram acautelar-se da malícia humana, mas fizeram isso através de

artes que costumam ser utilizadas por aqueles que são “mais conduzidos pelo medo que

pela razão”. Ainda assim, é inegável, afirma Espinosa, que os políticos “escreveram

sobre as coisas políticas de maneira muito mais feliz que os filósofos”, o que equivale a

dizer que os textos escritos por aqueles são muito mais úteis do que as abstrações

escritas por estes141

.

Contudo, se, como vimos, existe um abismo entre o filósofo ou o teórico e a

prática, parece haver também algo a separar o político e a teoria, como se o

conhecimento por este adquirido e ensinado fosse sempre motivado pelo medo de não

ser alvo da malícia dos outros homens.

Visto que o medo é uma paixão triste relacionada à ideia (inadequada ou parcial)

de algo futuro de cuja ocorrência até certo ponto duvidamos142

, o conhecimento do

político, embora possa ser posto em prática, não é senão imaginativo, não alcançando

assim as causas dos vícios humanos nem uma racionalidade que pode fazer com que a

vida em sociedade se desenvolva da melhor maneira143

. Ora, é também no capítulo que

abre o TP que Espinosa enuncia seu projeto de deduzir seu pensamento político não do

140 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 5-6. 141 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 6-7. 142 EIII, def. dos afetos, def. 13. 143 Sobre a relação entre a razão e o melhor, ver sobretudo TP, cap. 5, art. 1.

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homem como os moralistas gostariam que ele fosse, mas da natureza humana tal como

ela realmente é.

Longe de ser um preconceito que afeta apenas os homens de algumas nações e

povos, essa imagem da liberdade como livre vontade é um preconceito comum a todos

os seres humanos. Se, por um lado, Espinosa nos diz no TTP que só as leis e os

costumes podem fazer com que cada nação tenha “um engenho singular, uma condição

singular e, enfim, preconceitos singulares”144

, por outro lado, o preconceito do livre-

arbítrio se segue necessariamente da comum condição humana, a ponto de Espinosa

poder afirmar que esse preconceito é “inato”145

.

Segundo Laurent Bove,

a passagem do estado de natureza ao estado civil é, pela instituição do Estado que

impõe leis e costumes específicos, a passagem de um preconceito universal (aquele

da finalidade146

) a outros preconceitos particulares que são apenas as formas transformadas e específicas, segundo as condições históricas, de sua atualização.

Através da cultura própria de cada nação, é ainda o preconceito da finalidade,

como estrutura universal de pensar (ou, mais precisamente, de imaginar), que se

exprime sob diferentes figuras nos discursos ordinários do vulgo, do adivinho, do profeta, do padre, do teólogo e mesmo do filósofo não-espinosista.

147

É bastante cômodo para aquele que pensa a política considerar que a vontade é

causa total das ações humanas, pois, ao julgarem que todo aquele que comete um ato

injusto o faz tão somente por culpa própria, os partidários do livre-arbítrio parecem

facilmente dar conta de explicar por que um homem transgride os direitos comuns da

cidade. Contudo, para Espinosa, como vimos, a liberdade da vontade não passa de um

preconceito, e a Ética e o TP demonstram que os homens estão necessariamente

submetidos às paixões. Buscando as verdadeiras causas da discórdia civil, o filósofo

político parece compreender que, como os homens não nascem civis, mas fazem-se,

(...) as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das leis não são de imputar

tanto à malícia dos súditos quanto à má situação do estado (TP, cap. 5, art. 2,

grifos nossos).

144 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 273 (tradução modificada). 145 “Assim, os delirantes, os tagarelas e muitos outros desta mesma farinha julgam agir pelo livre

decreto de suas mentes, e, não, que são levados por impulso. E porque esse preconceito é inato a todos os

homens, não se livram facilmente do mesmo” (ESPINOSA, B. “Carta LVIII (outubro de 1674)”, op. cit.,

p. 78). 146 Que isso que é dito aqui acerca do preconceito da finalidade pode também ser dito sobre o

preconceito do livre-arbítrio, é o que podemos concluir a partir do apêndice da Ética I, onde vemos que

este último preconceito é um daqueles que originam e constituem o finalismo. 147 BOVE, L. La stratégie du conatus: affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Librairie

Philosophique J. VRIN, 1996, p. 177-178.

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Por compreendermos, a partir de Espinosa, que a responsabilização e a punição

dos indivíduos fundamentadas na liberdade da vontade dos mesmos são atos que têm

como base última um preconceito (i.e., o livre-arbítrio humano), entendemos que a

filosofia espinosana pode ser de grande utilidade para se pensar a política para além das

ideias inadequadas herdadas da tradição filosófica e teológica.

A ideia de que os homens não possuem livre-arbítrio traz algumas questões

acerca do direito e da vida em sociedade que são de grande interesse para a filosofia

política: se o livre-arbítrio humano não passa de uma ilusão ou de um preconceito, toda

malícia ou todas as ações contrárias aos direitos comuns são desculpáveis, de modo que

os atos mais atrozes poderiam ser escusados pelo simples fato de que o agente que os

cometeu não o fez livremente? Ora, se as ações humanas não têm como causa a livre

vontade, faz sentido falar em recompensa para os justos e punições para os injustos?

Espinosa foi confrontado com questões semelhantes a essas por pelo menos dois

de seus correspondentes (Tschirnhaus e Oldenburg), como podemos ver nas cartas 57 e

74 da Correspondência espinosana. De acordo com Tschirnhaus (na Carta 57), a

negação do livre-arbítrio implica necessariamente a tese de que toda malícia é

escusável, já que seria absurdo culpar alguém por uma ação que não poderia de modo

algum ser evitada.148

Oldenburg, por sua vez (na Carta 74), afirma que uma filosofia

como a espinosana, que defende a necessidade fatal de todas as coisas, faz desabar o

fundamento das leis, da virtude e da religião, tornando inúteis todas as recompensas e

punições.149

A resposta espinosana aos dois correspondentes tem algo em comum, a saber, a

ideia de que aqueles que agem contra as leis ou que praticam o mal não são menos

temidos e perigosos por serem necessariamente (e não voluntariamente) maus. Em sua

resposta a Oldenburg (na Carta 77), Espinosa acrescenta que somos conduzidos pelo

medo e pela esperança, indicando assim que é a determinação afetiva do

comportamento dos indivíduos que deve ser considerada quando nos propomos a pensar

a política150

. Já em sua resposta a Tschirnhaus (na Carta 58)151

, Espinosa pede para que

seu correspondente veja o capítulo VIII da segunda parte dos Pensamentos metafísicos,

onde se coloca a seguinte pergunta:

148 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 333-335. 149 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 391-392. 150 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 401-402. 151 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 339.

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(...) se forem punidos apenas aqueles que imaginamos pecar em virtude de sua

liberdade, por que, então, os homens se esforçam para exterminar as serpentes

venenosas, se estas pecam por causa de sua natureza própria e não podem fazer de outra maneira?

152

Ainda que a resposta de Espinosa seja um tanto lacônica, é possível perceber que

argumentação espinosana se desenvolve no sentido de que a punição não se justifica

somente se se pressupõe que uma ação foi livre e não determinada por causas externas.

No segundo artigo do capítulo 5 do Tratado político, como vimos acima, ao

defender que o melhor estado civil é aquele onde se conservam inviolados os direitos

comuns e onde os homens vivem em concórdia, Espinosa nos lembra que, como os

homens não nascem civis, mas fazem-se cidadãos, “as revoltas, as guerras e o desprezo

ou violação das leis não são de imputar tanto à malícia dos súditos quanto ao mal estado

do império (imperii statui)” (TP, cap. 5, art. 2).

Entre os fatores que podem contribuir para a boa ou má situação de uma

sociedade política, certamente podemos contar a boa ou má instituição dos direitos

comuns, das leis e das instituições políticas, mas também podemos incluir entre esses

fatores a educação. De acordo com o pensamento espinosano, a educação pode

estimular nossa razão, o bom convívio social e a liberdade, mas pode também fomentar

e reforçar paixões que levam os seres humanos a serem contrários uns aos outros, bem

como é capaz de estimular relações de dominação e dependência.153

No capítulo 6 do TP, por exemplo, Espinosa menciona que os reis, por temerem

que seus filhos sejam mais estimados do que eles pelos súditos, devido às suas virtudes,

procuram educá-los de forma a que não se tornem virtuosos, e nisto “os funcionários

obedecem ao rei com a maior das prontidões e põem o máximo empenho em que o rei

tenha um sucessor ignorante, a quem possam, com arte, manipular”154

. Já no capítulo 5

do Tratado teológico-político, Espinosa afirma que os súditos de uma sociedade tirânica

só obedecerão às ordens dadas pelo tirano se forem educados desde cedo a dependerem

da palavra daquele que os comanda.155

Ao pensarmos numa sociedade democrática, onde o poder político é exercido

pelos próprios cidadãos, é de interesse comum que a educação sirva à formação de

152 ESPINOSA, B de. Pensamentos metafísicos. Coleção Os Pensadores. 1ª edição. São Paulo:

Abril Cultural, 1973, p. 34.

153 Cf. OLIVEIRA, F. B.. “Educação e servidão em Espinosa”. Filosofia & Educação. Campinas,

volume 5, número 1, abr./set. 2013, p. 210-233, p. 210-213. 154 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 50-51. 155 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 87.

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pessoas solidárias, críticas, capazes de tomar decisões em prol do bem e da liberdade de

toda a comunidade e resistentes a toda forma de servidão e dominação. Por esse motivo,

uma educação que serve a propósitos contrários ao bem comum, e que se preocupa com

a formação de pessoas prontas para servir a propósitos dessa natureza, pode certamente

ser considerada uma educação antidemocrática. Mas não é só isso. Se uma sociedade

democrática é aquela cujas instituições e leis expressam a potência e o desejo comum de

seus cidadãos, devem também ser consideradas antidemocráticas as instituições e leis

que não manifestam a potência e o desejo da população.

Espinosa evidencia que a desobediência às leis não têm como causa a suposta

livre vontade dos indivíduos, mas remonta a algo mais amplo, a saber, ao status ou

condição da sociedade cuja lei é transgredida. A filosofia espinosana nos ajuda a

perceber que um maior respeito às leis não passa necessariamente pelas punições ou

pela repressão, como querem alguns; embora Espinosa argumente no sentido de que a

ausência de livre-arbítrio não esvazia de sentido a punição, ele permite vislumbrar que a

obediência civil pode ser mais eficazmente alcançada por meio de uma mudança

política radical, que altere de maneira profunda a maneira como a sociedade política

está constituída, mudando também a relação dos indivíduos com a sociedade em que

vivem.

A reflexão política espinosana parte da compreensão da natureza humana e

incide sobre as estruturas de governo: os homens não são seres dotados de livre-arbítrio,

mas estão grandemente submetidos à força das causas externas, donde não ser possível

confiar na boa livre vontade dos particulares para manter inviolados os direitos comuns.

Para um corpo político, não interessa se a decisão de um súdito ou de um governante é

ou não livre, ou se eles agem de boa ou de má-fé; interessa sim que o bem comum seja

observado. Se, conforme aponta Espinosa (em sua resposta a Oldenburg, na Carta 77),

os homens são conduzidos pela esperança e pelo medo, como garantir que as leis sejam

cumpridas quando os súditos se veem em situação de desespero e não tem nenhuma

esperança de conseguirem aquilo de que necessitam para viver uma vida propriamente

humana?

Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado (imperium optimum) é

aquele onde os homens passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela circulação do sangue e outras coisas que são comuns a todos

os animais, mas se define acima de tudo pela razão, verdadeira virtude e vida da

mente (TP, cap. 5, art. 5).

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A garantia de que as leis serão observadas só pode advir do medo que os

indivíduos têm da punição que a transgressão pode acarretar? Conforme afirma

Espinosa, a população que é conduzida a obedecer mais pelo medo do que pela

esperança é uma população servil, ao passo que uma multidão livre é aquela que se

conduz mais pela esperança do que pelo medo156

.

Nas últimas décadas, as neurociências têm exercido grande influência sobre

nossa forma de pensar; as pesquisas na área têm recebido grandes investimentos

financeiros, e seus resultados, além de impactarem diversos campos do saber (como

biologia, física, pedagogia e psicologia, entre outros), têm ultrapassado as fronteiras

acadêmicas, alcançando os noticiários da grande mídia e mudando até mesmo a forma

como as pessoas percebem a si mesmas157

. Estaríamos assistindo a uma espécie de

revolução neurocientífica, e uma das teses relacionadas a essa pretensa revolução diz

respeito à liberdade humana (ou, antes, à ausência dessa liberdade). Renomados

neurocientistas têm afirmado, a partir de pesquisas recentes, a inexistência do livre-

arbítrio. Em 2011, por exemplo, o neurocientista Stefan Bode e uma equipe de

pesquisadores realizaram exames de ressonância magnética em 12 voluntários, aos

quais fora dada a tarefa de escolher entre apertar um botão com a mão direita ou com a

mão esquerda. A partir desse experimento, os pesquisadores constataram que era

possível prever qual seria a decisão tomada pelos ‘voluntários’ cerca de sete segundos

antes de a ação ser praticada158

.

A negação do livre-arbítrio humano incidiria diretamente sobre o direito penal e

sobre os conceitos de culpabilidade e responsabilidade, visto que, de acordo com alguns

juristas, tais conceitos têm como base a liberdade da vontade. O direito penal diria

respeito aos comportamentos humanos que têm a vontade como força motriz, sendo o

homem passível de punição justamente porque tem a liberdade para escolher entre um

ou outro comportamento159

. Pablo Alflen da Silva observa que os conceitos de

156 ESPINOSA, B. de. Tratado político, op. cit., p. 45. 157 Cf. ABI-RACHED, J. M. e ROSE, N. Neuro: the new brain sciences and the management of

the mind. Princeton: Princeton University Press, 2013, p. 1-2. 158 BODE et al. “Tracking the Unconscious Generation of Free Decisions Using UItra-High

Field fMRI”. PLoS ONE 6(6): e21612, 2011, p. 1-13. 159 “O Direito Penal só empresta relevo aos comportamentos humanos que tenham, na vontade,

a sua força motriz. As pessoas humanas, como seres racionais, conhecedoras que são da lei natural da

causa e efeito, sabem perfeitamente que de cada comportamento pode resultar um efeito distinto (sabe-se

que o fogo queima, o impacto contundente lesiona ou mata, a falta de oxigênio asfixia, a tortura causa dor

etc.). Assim, conhecedoras que são dos processos causais, e sendo dotadas de razão e livre-arbítrio,

podem escolher entre um ou outro comportamento” (CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume

1, parte geral (arts. 1ª a 120). 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 137, grifos nossos).

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culpabilidade e responsabilidade “seriam aplicáveis somente quando se dispusesse de

livre-arbítrio”160

, pois não seria possível culpar e responsabilizar alguém que não possui

liberdade de escolha. Nesse mesmo sentido, o neurocientista Francisco Rubia, em

entrevista publicada em junho de 2009, afirma que “se não somos livres, tampouco

somos responsáveis, nem existe a culpabilidade, nem a imputabilidade, nem o

pecado”161

.

Dada a importância que as neurociências têm assumido nos últimos anos, não

parece absurdo considerar que suas teses acerca do livre-arbítrio podem abalar os

fundamentos de nosso edifício jurídico-penal. Para Francisco Rubia, por exemplo, a

negação do livre-arbítrio por parte da neurociência já está ocasionando discussões

acerca da modificação do código penal na Alemanha162

. Jonathan Franton, presidente da

Fundação MacArthur nos Estados Unidos, chegou a afirmar que as pesquisas

neurocientíficas podem ter um impacto sobre o sistema legal comparável ao impacto

causado pelos testes de DNA. No ano de 2007, a Fundação MacArthur investiu 10

milhões de dólares em várias universidades a fim de compreender como a

neurotecnologia impactaria os sistemas legais do mundo todo163

.

A ideia de que a punição se justifica mesmo sem a liberdade da vontade, tal

como defendem Hobbes e Espinosa, é defendida também pelo neurocientista

contemporâneo Michael Gazzaniga. Contrário à ideia de livre-arbítrio, Gazzaniga que

entende que o determinismo (cerebral) não afeta o conceito de responsabilidade pessoal,

já que a responsabilização é uma questão que diz respeito à sociedade como um todo e

não aos indivíduos isoladamente. Seríamos responsáveis por nossos atos porque

vivemos em sociedade, e não porque escolhemos livremente entre este ou aquele ato.

Nesse sentido, Gazzaniga argumenta que a negação do livre-arbítrio não requer

nenhuma reformulação profunda do direito penal, pois parece perfeitamente possível

manter e defender o atual estado das coisas apesar das recentes descobertas

neurocientíficas sobre a liberdade humana164

.

Talvez seja o caso de perguntarmos se a melhor maneira de fazer com que os

homens respeitem as leis não é justamente garantir a todos que a obediência civil

160 SILVA, P. R. A. da. “Culpabilidade e livre-arbítrio novamente em questão. Os influxos da

neurociência sobre o Direito Penal”. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2193, 3 jul. 2009. 161 RUBIA, Francisco J. “La revolución neurocientífica”. Tendencias 21, setembro de 2009. 162 RUBIA, Francisco J. “La revolución neurocientífica”, op. cit. 163 Apud RUBIA, Francisco J. “La revolución neurocientífica”, op. cit. 164 GAZZANIGA M.; STEVEN, Megan. “Free Will in the Twenty-First Century: A Discussion

of Neuroscience and Law”. In: GARLAND, B. (ed.) Neuroscience and the Law: Brain, Mind, and the

Scales of Justice, p. 51-70. New York: Dana, 2004, p. 55-58.

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acarreta mais benefícios e segurança do que danos. Talvez a melhor maneira de impedir

a transgressão dos direitos comuns seja também a melhor maneira de impedir a

dominação política, a saber, colocar em prática um governo comum de todos para todos,

uma democracia real, a qual Espinosa entendia como a única forma de existência

política que satisfaz um desejo comum a todas as pessoas, a saber, o desejo de governar

e não ser governado.

A democracia é o único regime político no qual todos os cidadãos podem

perceber claramente que obedecem a uma potência comum da qual fazem parte, e não a

um poder transcendente que lhes é estranho e ao qual são menos propensos a obedecer,

caso em que podemos colocar o Estado transcende concebido por Hobbes e os Estados

neoliberais que se pretendem democráticos.

A tese de que o ser humano não possui livre-arbítrio pode não nos levar

necessariamente a uma refundação do direito penal, e Hobbes e Espinosa são exemplos

claros disso. Contudo, essa tese nos fornece, ao menos numa perspectiva espinosana,

uma boa ocasião para repensarmos a sociedade como um todo, pois a desobediência

civil por parte dos indivíduos pode ser vista como um efeito cuja causa não reside na má

vontade do criminoso, mas em uma causa social e política muito mais ampla que ele.

5. CONCLUSÃO

De que maneira o direito de punir e a legislação penal seriam úteis ao bem

comum numa sociedade democrática? Seria essa legislação decidida pelo consenso

comum da multidão comum? A crítica de Espinosa ao livre-arbítrio não exige uma

reflexão profunda a respeito do direito penal?

Hobbes, que, assim como Espinosa, nega o livre-arbítrio da vontade, fundamenta

o direito penal em um Estado que transcende a sociedade e que detém o direito natural

de vingar-se, de punir. Em uma sociedade democrática, o Estado transcendente não é,

por princípio, concebível, dado que o direito comum é determinado pela potência

comum da multidão. Assim sendo, Espinosa cairia em contradição se fundamentasse o

direito penal tal como Hobbes o fizera. Portanto, embora tanto Hobbes quanto Espinosa

critiquem a noção de livre vontade, eles chegaram a conclusões bastante distintas sobre

a vida em sociedade e sobre o papel da punição no interior da política.

A questão da punição aparece nas demonstrações de Espinosa sobre o melhor

estado monárquico e sobre o melhor estado aristocrático, e Espinosa explicita, na Carta

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84, que serve de prefácio ao TP, sua intenção de tratar das leis e de outras questões

ligadas à política após escrever sobre o imperium popular ou democrático.

Deste tratado, já estão concluídos seis capítulos. O primeiro contém como que uma

introdução à própria obra; o segundo trata do direito natural; o terceiro, do direito

dos poderes soberanos; o quarto, de quais os assuntos políticos que dependem do

governo dos poderes soberanos; o quinto, de qual o fim último e mais elevado que uma sociedade pode ter em vista; o sexto, de qual a proporcionalidade (ratio) em

que deve ser instituído um estado (imperium) monárquico para não resvalar para a

tirania. Presentemente, ocupo-me do sétimo capítulo, no qual demonstro metodicamente todos os aspectos do anterior capítulo respeitantes à ordem de uma

monarquia bem-ordenada. Passarei depois ao estado aristocrático e ao popular, e,

finalmente, às leis e a outras questões particulares respeitantes à política.165

Podemos pensar, portanto, que Espinosa abordaria a questão do direito penal

dentro de uma sociedade democrática, ou mesmo trataria da legislação penal de forma

mais ampla, já que a filosofia espinosana questiona a base do direito penal que tem por

fundamento o livre-arbítrio da vontade. Mas o Tratado político permaneceu inacabado...

Na segunda metade do século XVII, Espinosa colocou um problema ético e

político fundamental, que parece ser ainda hoje extremamente importante. Trata-se de

saber por que motivo os homens frequentemente lutam pela sua servidão como se

estivessem lutando pela sua salvação166

. Talvez essa questão não apresente grandes

dificuldades para alguns teólogos e para alguns moralistas partidários do livre-arbítrio.

Para eles, é suficiente afirmar que os homens só se equivocam porque querem, que eles

erram por culpa própria, já que possuem uma livre vontade que lhes foi dada por Deus

para escolher igualmente entre o bem e o mal. Mas, para Espinosa, a questão não era

assim tão simples, donde ele ter julgado necessário indagar qual a verdadeira causa que

leva um ser humano a lutar pela sua escravidão como se essa luta fosse pela sua

liberdade.

Não é preciso ir muito longe para mostrar que esse problema ainda é atual em

pleno século XXI. Basta observar, por exemplo, o grito recente de alguns brasileiros por

uma intervenção militar no Brasil, como se a luta pela sua salvação se confundisse com

a luta pela perda da já restrita liberdade política de que gozamos numa democracia

representativa167

.

165 SPINOZA, B. Correspondencia, op. cit., p. 413-414, grifos nossos. 166 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 8. 167 Sobre esse ponto, recomendamos a leitura de HARDT, Michael; NEGRI, Antonio.

Declaração – isto não é um manifesto. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: n-1 edições, 2014.

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Na filosofia espinosana, os conceitos de superstição e de preconceitos comuns

parecem ser a chave para responder por que os homens lutam pela servidão como se

fosse pela salvação. À guisa de conclusão, abordaremos essa questão em duas partes

principais: 1) exposição da gênese da superstição no apêndice da primeira parte da

Ética, obra maior de Espinosa e resposta à seguinte questão: em que sentido um

preconceito pode ser considerado “comum”?; 2) explicação da causa afetiva da

superstição e do modo de vida que nos torna particularmente propensos a nos tornamos

seres supersticiosos.

A filosofia espinosana é uma filosofia da imanência. Para Espinosa, de acordo

com o que se lê na Ética I, Deus é a substância constituída por infinitos atributos

infinitos que é causa de si e que é causa eficiente imanente de todas as coisas, sendo as

coisas modos pelos quais os atributos divinos se exprimem de maneira certa e

determinada. Toda a realidade, tudo o que acontece, é expressão necessária da potência

eterna e infinita de Deus ou da Natureza, que para Espinosa são uma só e a mesma

coisa.

Para a tradição teológica e metafísica que, grosso modo, concebia Deus como um

ser transcendente que está fora do mundo, que criou o mundo a partir do nada e que age

pela liberdade da vontade, o espinosismo não podia ser senão escandaloso, herético,

infernal. Consciente da novidade que suas teses representavam, Espinosa sabia que era

necessário abrir caminho à sua filosofia através de uma emenda dos preconceitos.

Na Ética, obra maior de Espinosa, pode-se encontrar um caso paradigmático da

maneira pela qual o filósofo lida com os preconceitos. Trata-se do apêndice que se

segue à sua primeira parte, intitulada “De Deus”. No início do apêndice em questão,

vemos uma recapitulação daquilo que fora cuidadosamente demonstrado anteriormente

segundo a ordem geométrica, a saber, o que é Deus e quais as suas propriedades. Em

seguida, Espinosa afirma que, onde quer que houvesse ocasião ao longo da Ética I, ele

procurou remover os preconceitos que poderiam impedir o leitor de entender suas

demonstrações. Porém, como ainda restavam, a essa altura do livro, não poucos

preconceitos que poderiam impedir a compreensão de Deus, Espinosa decidiu convocá-

los “ao exame da razão”. É claro que examinar cada uma das ideias inadequadas que

impedem que Deus seja conhecido seria uma tarefa hercúlea e sem fim. Mas isso não se

faz necessário, pois todos os preconceitos em questão dependem de um só, que

Espinosa descreve da seguinte maneira:

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Os homens comumente supõem todas as coisas naturais agirem, como eles

próprios, em vista de um fim; mais ainda, dão por assentado que o próprio Deus

dirige todas as coisas para algum fim certo: dizem, com efeito, que Deus fez tudo em vista do homem, e o homem, por sua vez, para que o cultuasse (EI, apêndice).

A tradição filosófica ocidental operou, até a modernidade, com a teoria das

quatro causas elaborada por Aristóteles. Para este, explicar algo é conhecer a sua causa,

e as causas que devem ser conhecidas para se explicar algo são quatro: há a causa

material (aquilo a partir de quê algo é feito), a causa eficiente ou motriz (aquilo de onde

é o começo do movimento), a causa formal (a forma da coisa, que define o que ela é) e

a causa final (aquilo em vista de que algo se dá).

Quando uma coisa ocorre em vista de algo (em vista de um fim), dizemos que

ela está finalisticamente orientada. Espinosa, ao apresentar o preconceito finalista,

afirma que os homens creem comumente que as coisas naturais agem, tal como eles o

fazem, “em vista de um fim”, bem como acreditam que Deus fez tudo “em vista do

homem”. Tendo em vista que o preconceito único denunciado por Espinosa envolve

crença em ações “em vista de algo”, podemos chamá-lo de preconceito finalista. O

próprio Espinosa, ao mostrar a falsidade da doutrina que pretende explicar em vista de

quê as coisas ocorrem, refere-se a ela como “doutrina da finalidade”.

Na análise desse preconceito no apêndice, Espinosa investiga, entre outras

coisas, a causa que leva a maioria dos homens a abraçar o preconceito finalista, e a

razão pela qual todos os homens são propensos a ele. Para atingir esse objetivo,

Espinosa não parte da natureza da mente humana (o que, aliás, só seria possível a partir

da segunda parte da Ética, que trata, como indica seu título, “Da Natureza e Origem da

Mente”), mas Espinosa realiza sua dedução a partir de um fundamento que, segundo ele,

“deve ser admitido por todos”, a saber, “todos os homens nascem ignorantes das causas

das coisas, e (...) todos têm o apetite de buscar o que lhes é útil, sendo disto

conscientes” (EI, apêndice).

Partindo dessa condição originária e comum a todos os homens, que é tão

evidente a ponto de não poder ser recusada, Espinosa realiza suas deduções no apêndice

tendo como base um fundamento comum que todos são coagidos a admitir. Se, ao

contrário, Espinosa deduzisse o preconceito finalista da essência de nossa mente, ele

partiria de uma tese rechaçada por seus adversários, a saber, a concepção espinosana de

mente humana, segundo a qual esta é ideia do corpo humano, uma modificação finita do

atributo pensamento que não é dotada de uma livre vontade, tal como queriam os

pensadores da tradição.

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A liberdade da vontade que os homens imaginam possuir é o primeiro

preconceito deduzido no apêndice, e é importante compreendê-lo porque essa imagem

da liberdade será atribuída a Deus. Por terem consciência de seus apetites e de suas

volições, mas ignorarem as causas que os levam a apetecer e querer algo, os homens

creem que são livres. Essa ignorância das causas faz com que os homens ajam sempre

em vista de fins, em vista do útil que apetecem, sem indagar sobre as verdadeiras causas

eficientes (e não finais) de seus apetites e volições, como se a vontade humana fosse

causa primeira e total.

Por agirem em vista de fins, os homens anseiam conhecer as causas finais de

tudo o que acontece, e sossegam assim que alguém lhes diz qual o fim de determinada

ação. Contudo, se não ouvem essas causas finais de outrem, os homens têm de “voltar-

se para si e refletir sobre os fins pelos quais costumam ser determinados em casos

semelhantes”, julgando assim o temperamento dos outros homens pelo seu próprio.

Trata-se de uma projeção da imaginação humana sobre a natureza, pois os

homens são levados a crer que os outros seres agem de acordo com os mesmos fins

pelos quais eles acreditam agir. Por exemplo, se João vê Paulo correndo e não conhece a

causa final dessa corrida por ouvir dizer, ele se vê forçado a pensar sobre os fins que

costumam determiná-lo a correr. Se João costuma correr quando está atrasado, ele

necessariamente julgará que Paulo corre porque está atrasado, isto é, João julgará que

“estar atrasado” é a causa final da corrida de Paulo, ainda que Paulo esteja correndo na

verdade porque está sendo perseguido pela polícia.

Por encontrarem em si e fora de si muitos meios que em muito contribuem para a

consecução do que lhes é útil (“olhos para ver, dentes para mastigar, ervas e animais

para alimento, sol para iluminar, mar para nutrir peixes”), os homens acabam por

considerar as coisas da natureza como “meios para o que lhes é útil”. Sabendo que esses

meios foram achados e não providos por eles, foram levados a crer na existência de

“algum outro ser” que teria providenciado as coisas naturais para o uso humano.

Quando proveem algum meio para si próprios, os homens, que pensam agir de

acordo com a liberdade da vontade, julgam que poderiam perfeitamente não tê-lo

provido. Essa livre vontade humana é projetada sobre esse outro ser em questão, que

também poderia muito bem não ter disposto meios para que a humanidade conseguisse

o que lhe é útil. E esses meios estão aí, foram dispostos. Mas por quem? E em vista de

quê?

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Com efeito, depois que consideraram as coisas como meios, não puderam crer que

se fizeram a si mesmas, mas a partir dos meios que costumam prover para si

próprios, os homens tiveram de concluir que há algum ou alguns dirigentes da natureza, dotados de liberdade humana, que cuidaram de tudo para eles e tudo

fizeram para seu uso. E visto que nada jamais ouviram sobre o temperamento

destes, tiveram também de julgá-lo pelo seu e, por conseguinte, sustentaram os Deuses dirigirem tudo para o uso dos homens a fim de que estes lhes ficassem

rendidos e lhes tributassem suma honra (EI, apêndice).

O preconceito finalista se consolida quando os homens, buscando explicar a

causa final pela qual o Deus (ou os deuses) que forjaram dirige toda a natureza em vista

deles, concluem que o fim da divindade é fazer com que os homens lhe prestem máxima

reverência e lhe fiquem subjugados. Tendo por certo que pode conseguir o útil que

apetece se render honras à divindade, cada homem excogita, segundo seu próprio

temperamento, maneiras de cultuá-la, a fim de que toda a natureza seja dirigida em vista

do seu cego desejo e de sua avareza insaciável.

É dessa forma que o preconceito finalista vira superstição, uma estrutura ou

armação que se segue de uma série de preconceitos e que pretende dar conta de explicar

as causas finais de todos os eventos da natureza, como se todos eles ocorressem em

vista dos homens. Ora, os preconceitos que originam a superstição podem ser

considerados “comuns” justamente porque se seguem de uma condição comum a todos

os homens: todos nascemos ignorantes das causas das coisas e temos o apetite de buscar

o que nos é útil, apetite este do qual somos conscientes.

A experiência protesta cotidianamente contra o finalismo e contra a superstição,

mostrando que os piedosos, aqueles que prestariam bom culto a Deus, são muitas vezes

atormentados por desgraças, ao passo que os impiedosos, aqueles que despertariam a ira

divina, conseguem frequentemente aquilo que desejam, o que não deveria acontecer se a

natureza fosse efetivamente dirigida por Deus em vista do homem para que, em troca, o

homem cultuasse a divindade. Mas nem por isso os homens abandonam o arraigado

preconceito finalista, pois lhes é mais fácil colocar esses acontecimentos vistos como

extraordinários entre as coisas cuja finalidade e utilidade ignoram do que destruir a

estrutura finalista e supersticiosa e pensar em uma outra, que dê conta de explicar o real.

No prefácio de seu Tratado Teológico-político, Espinosa afirma que se os

homens pudessem decidir com segurança em todas as circunstâncias, e se a sua sorte

fosse sempre próspera, jamais seriam vítimas da superstição. No entanto, o que ocorre é

bem diferente disso, pois frequentemente não sabemos qual a melhor decisão a tomar, e

as variações da nossa sorte fazem com que oscilemos entre a esperança de conquistar o

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que desejamos e o medo de não conseguir o que queremos. Assim, estamos

naturalmente sujeitos à superstição, ou, como diz Espinosa, estamos naturalmente

propensos a acreditar em qualquer coisa168

.

Para Espinosa, a causa afetiva que “origina, conserva e alimenta a superstição” é

o medo169

. Por medo, Espinosa entende a tristeza inconstante originada da ideia de algo

futuro ou passado de cuja realização até certo ponto duvidamos. O medo não se dá sem

esperança, pois sempre que temos medo de não conseguir algo, temos também a

esperança de consegui-lo170

. O medo que causa a superstição é sobretudo o medo

intenso de não conseguir prazeres corporais, honras e riquezas, medo este que advém do

amor imoderado por tais coisas.

Prazeres corporais, honras e riquezas são chamados de “bens da fortuna”, pois

sua obtenção depende da fortuna, do acaso, da sorte, e não apenas de nossos próprios

esforços. O supersticioso, ao temer por sua sorte ou ao esperar conseguir os bens

incertos que cobiça sem medida, está sempre disposto a acreditar seja no que for, sendo

assim facilmente manipulado e levado a combater pela servidão como se fosse pela

salvação.

(...) se estão na adversidade [i.e, oscilando entre esperança e medo], já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se

lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam (TTP, prefácio,

acréscimos nossos).

Ora, como nos mostra Espinosa no início do Tratado da emenda do intelecto, a

observação das ações humanas permite concluir que os homens julgam como bens

supremos justamente os bens da fortuna, isto é, as honras, as riquezas e os prazeres

corporais171

. Uma sociedade que pretende dominar os seus súditos tem grande interesse

em reforçar o amor pelos bens incertos da fortuna, pois dessa forma pode facilmente

domesticar os homens e levá-los a combater pela servidão como se fosse pela salvação.

Para tornar a coisa um pouco mais concreta, podemos relacionar o estímulo a

esse amor pelos bens da fortuna, esse amor que pode gerar o medo supersticioso, à

sociedade em que vivemos. Será que tal forma de vida social contribui para a liberdade

de seus cidadãos? Ou, ao contrário, ao estimular as pessoas por meio de prêmios e

multas, recompensas e castigos, nossa sociedade não reforça o medo que conduz à

168 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 5-6. 169 ESPINOSA, B. de. Tratado Teológico-político, op. cit., p. 6. 170 EIII, def. dos afetos, def. 13 e explicação. 171 ESPINOSA, B. de. Tratado da correção do intelecto. Coleção Os Pensadores. 1ª edição. São

Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 51-52.

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superstição, tornando-nos assim mais propensos a lutar pela nossa servidão como se

fosse pela nossa salvação?

Parece-nos que a educação para o uso da razão, e a igualdade social, podem

contribuir de modo importante para a instituição de uma sociedade mais livre e

democrática, onde a punição se volta para as pessoas que agem contra o bem comum e

contra os direitos comuns, e não contra as pessoas que têm seus direitos básicos negados

desde a infância, e que apenas percebem a presença do Estado quando são punidas em

nome da liberdade e da segurança de alguns poucos indivíduos, em nome da ordem e do

progresso da nação que subjuga a maioria em prol de uma minoria tirânica.

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