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PDL Projeto Democratizao da Leitura

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Viagem ao BrasiL Hans Stadentexto integral

TRADUO: ALBERTO LFGREN NOTAS: TEODORO SAMPAIO

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Os OBJETIVOS, A FILOSOFIA E A MISSO DA EDITORA MARTIN CLARET

O principal Objetivo da MARTIN CLARET continuar a desenvolver uma grande e poderosa empresa editorial brasileira, para melhor servir a seus leitores.

A Filosofia de trabalho da MARTIN CLARET consiste em criar, inovar, produzir e distribuir, sinergicamente, livros da melhor qualidade editorial e grfica, para o maior nmero de leitores e por um preo economicamente acessvel.

A Misso da MARTIN CLARET conscientizar e motivar as pessoas a desenvolver e utilizar o seu pleno potencial espiritual, mental, emocional e social.

A MARTIN CLARET est empenhada em contribuir para a difuso da educao e da cultura, por meio da democratizao do livro, usando todos os canais ortodoxos e heterodoxos de comercializao.

A MARTIN CLARET, em sua misso empresarial, acredita na verdadeira funo do livro: o livro muda as pessoas.

A MARTIN CLARET, em sua vocao educacional, deseja, por meio do livro, claretizar, otimizar e iluminar a vida das pessoas.

Revolucione-se: leia mais para ser mais!

MARTIN CLARET

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CRDITOS

Copyright desta traduo: Editora Martin Claret Ltda., 2006 Ttulo original alemo: Hans Stadens Wahrhaftige Historia Traduo feita a partir da edio original de Marburg, 1557.

IDEALIZAO E COORDENAO Martin Claret Direo de Arte ASSISTENTE EDITORIAL Jos Duarte T. de Castro Rosana Gilioli Citino Digitao CAPA Ilustrao Marcellin Talbot Editorao Eletrnica Editora Martin Claret MIOLO Reviso Cristina Bernardes Traduo Alberto Lfgren Projeto Grfico Fotolitos da Capa OESP Papel Off-Set, 70g/m2 Impresso e Acabamento Paulus Grfica Graziella Gatti Leonardo

Jos Duarte T. de Castro

Editora Martin Claret Ltda. - Rua Alegrete, 62 - Bairro Sumar CEP: 01254-010-So Paulo-SP Tel.: (Oxx11) 3672-8144- Fax: (0xx1 1) 3673-7146 www.martinclaret.com.br / [email protected] Agradecemos a todos os nossos amigos e colaboradores, pessoas fsicas e jurdicas, que deram as condies para que fosse possvel a publicao deste livro. 2a REIMPRESSO - 2010

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A histria do livro e a coleo "A Obra-Prima de Cada Autor"

MARTIN CLARET

Que o livro? Para fins estatsticos, na dcada de 1960, a UNESCO considerou o livro "uma publicao impressa, no peridica, que consta de no mnimo 49 pginas, sem contar as capas". O livro um produto industrial. Mas tambm mais do que um simples produto. O primeiro conceito que deveramos reter o de que o livro como objeto o veculo, o suporte de uma informao. O livro uma das mais revolucionrias invenes do homem. A Enciclopdia Abril (1972), publicada pelo editor e empresrio Victor Civita, no verbete "livro" traz concisas e importantes informaes sobre a histria do livro. A seguir, transcrevemos alguns tpicos desse estudo didtico sobre o livro.

O livro na Antiguidade

Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais para escrever (como, por exemplo, fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da Antiguidade estavam repletas de textos gravados em tabuinhas de barro cozido. Eram os primeiros "livros", depois progressivamente modificados at chegarem a ser feitos em grandes tiragens em papel impresso mecanicamente, proporcionando facilidade de leitura e transporte. Com eles, tornou-se possvel, em todas as pocas, transmitir fatos, acontecimentos histricos, descobertas, tratados, cdigos ou apenas entretenimento. Como sua fabricao, a funo do livro sofreu enormes modificaes dentro das mais diversas sociedades, a ponto de constituir uma mercadoria especial, com tcnica, inteno e utilizao determinadas. No moderno movimento editorial das chamadas sociedades de consumo, o livro pode ser considerado uma mercadoria cultural, com maior ou menor significado no contexto socioeconmico em que publicado. Enquanto mercadoria, pode ser comprado, vendido ou trocado. Isso no ocorre, porm, com sua funo intrnseca, insubstituvel: pode-se dizer que o livro essencialmente um instrumento cultural de difuso

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de idias, transmisso de conceitos, documentao (inclusive fotogrfica e iconogrfica), entretenimento ou ainda de condensao e acumulao do conhecimento. A palavra escrita venceu o tempo, e o livro conquistou o espao. Teoricamente, toda a humanidade pode ser atingida por textos que difundem idias que vo de Scrates e Horcio a Sartre e McLuhan, de Adolf Hitler a Karl Marx.

Espelho da sociedade

A histria do livro confunde-se, em muitos aspectos, com a histria da humanidade. Sempre que escolhem frases e temas, e transmitem idias e conceitos, os escritores esto elegendo o que consideram significativo no momento histrico e cultural que vivem. E, assim, fornecem dados para a anlise de sua sociedade. O contedo de um livro aceito, discutido ou refutado socialmente integra a estrutura intelectual dos grupos sociais. Nos primeiros tempos, o escritor geralmente vivia em contato direto com seu pblico, que era formado por uns poucos letrados, j cientes das opinies, idias, imaginao e teses do autor, pela prpria convivncia que tinha com ele. Muitas vezes, mesmo antes de ser redigido o texto, as idias nele contidas j haviam sido intensamente discutidas pelo escritor e parte de seus leitores. Nessa poca, como em vrias outras, no se pensava na enorme porcentagem de analfabetos. At o sculo XV, o livro servia exclusivamente a uma pequena minoria de sbios e estudiosos que constituam os crculos intelectuais (confinados aos mosteiros durante o comeo da Idade Mdia) e que tinham acesso s bibliotecas, cheias de manuscritos ricamente ilustrados. Com o reflorescimento comercial europeu, nos fins do sculo XIV, burgueses e comerciantes passaram a integrar o mercado livreiro da poca. A erudio laicizou-se e o nmero de escritores aumentou, surgindo tambm as primeiras obras escritas em lnguas que no o latim e o grego (reservadas aos textos clssicos e aos assuntos considerados dignos de ateno). Nos sculos XVI e XVII, surgiram diversas literaturas nacionais, demonstrando, alm do florescimento intelectual da poca, que a populao letrada dos pases europeus estava mais capacitada a adquirir obras escritas.

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Cultura e comrcio Com o desenvolvimento do sistema de impresso de Gutenberg, a Europa conseguiu dinamizar a fabricao de livros, imprimindo, em cinqenta anos, cerca de 20 milhes de exemplares para uma populao de quase 10 milhes de habitantes, cuja maioria era analfabeta. Para a poca, isso significou enorme revoluo, demonstrando que a imprensa s se tornou uma realidade diante da necessidade social de ler mais. Impressos em papel, feitos em cadernos costurados e posteriormente encapados, os livros tornaram-se empreendimento cultural e comercial: os editores passaram logo a se preocupar com melhor apresentao e reduo de preos. Tudo isso levou comercializao do livro. E os livreiros baseavam-se no gosto do pblico para imprimir, principalmente obras religiosas, novelas, colees de anedotas, manuais tcnicos e receitas. Mas a porcentagem de leitores no cresceu na mesma proporo que a expanso demogrfica mundial. Somente com as modificaes socioculturais e econmicas do sculo XIX quando o livro comeou a ser utilizado tambm como meio de divulgao dessas modificaes e o conhecimento passou a significar uma conquista para o homem, que, segundo se acreditava, poderia ascender socialmente se lesse houve um relativo aumento no nmero de leitores, sobretudo na Frana e na Inglaterra, onde alguns editores passaram a produzir obras completas de autores famosos, a preos baixos. O livro era ento interpretado como smbolo de liberdade, conseguida por conquistas culturais. Entretanto, na maioria dos pases, no houve nenhuma grande modificao nos ndices porcentuais at o fim da Primeira Guerra Mundial (1914/18), quando surgiram as primeiras grandes tiragens de um s livro, principalmente romances, novelas e textos didticos. O nmero elevado de cpias, alm de baratear o preo da unidade, difundiu ainda mais a literatura. Mesmo assim, a maior parte da populao de muitos pases continuou distanciada, em parte porque o livro, em si, tinha sido durante muitos sculos considerado objeto raro, atingvel somente por um pequeno nmero de eruditos. A grande massa da populao mostrou maior receptividade aos jornais, peridicos e folhetins, mais dinmicos e atualizados, e acessveis ao poder aquisitivo da grande maioria. Mas isso no chegou a ameaar o livro como smbolo cultural de difuso de idias, como fariam, mais tarde, o rdio, o cinema e a televiso. O advento das tcnicas eletrnicas, o aperfeioamento dos mtodos fotogrficos e a pesquisa de materiais praticamente imperecveis fazem alguns tericos da comunicao de massa pensarem em um futuro sem os livros tradicionais (com seu formato quadrado ou retangular, composto de folhas de papel, unidas umas s outras por um dos lados). Seu

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contedo e suas mensagens (racionais ou emocionais) seriam transmitidos por outros meios, como por exemplo microfilmes e fitas gravadas. A televiso transformaria o mundo todo em uma grande "aldeia" (como afirmou Marshall McLuhan), no momento em que todas as sociedades decretassem sua prioridade em relao aos textos escritos. Mas a palavra escrita dificilmente deixaria de ser considerada uma das mais importantes heranas culturais, entre todos os povos. Atravs de toda a sua evoluo, o livro sempre pde ser visto como objeto cultural (manusevel, com forma entendida e interpretada em funo de valores plsticos) e smbolo cultural (dotado de contedo, entendido e interpretado em funo de valores semnticos). As duas maneiras podem fundir-se no pensamento coletivo, como um conjunto orgnico (onde texto e arte se completam, como, por exemplo, em um livro de arte) ou apenas como um conjunto textual (onde a mensagem escrita vem em primeiro lugar em um livro de matemtica, por exemplo). A mensagem (racional, prtica ou emocional) de um livro sempre intelectual e pode ser revivida a cada momento. O contedo, esttico em si, dinamiza-se em funo da assimilao das palavras pelo leitor, que pode discuti-las, reafirm-las, neg-las ou transform-las. Por isso, o livro pode ser considerado instrumento cultural capaz de libertar informao, sons, imagens, sentimentos e idias atravs do tempo e do espao. A quantidade e a qualidade de idias colocadas em um texto podem ser aceitas por uma sociedade, ou por ela negadas, quando entram em choque com conceitos ou normas culturalmente admitidos. Nas sociedades modernas, em que a classe mdia tende a considerar o livro como sinal de status e cultura (erudio), os compradores utilizam-no como smbolo mesmo, desvirtuando suas funes ao transform-lo em livro-objeto. Mas o livro , antes de tudo, funcional seu contedo que lhe d valor (como os livros de cincias, filosofia, religio, artes, histria e geografia, que representam cerca de 75% dos ttulos publicados anualmente em todo o mundo).

O mundo l mais

No sculo XX, o consumo e a produo de livros aumentaram progressivamente. Lanado logo aps a Segunda Guerra Mundial (1939/45), quando uma das caractersticas

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principais da edio de um livro eram as capas entreteladas ou cartonadas, o livro de bolso constituiu um grande xito comercial. As obras sobretudo best sellers publicados algum tempo antes em edies de luxo passaram a ser impressas em rotativas, como as revistas, e distribudas s bancas de jornal. Como as tiragens elevadas permitiam preos muito baixos, essas edies de bolso popularizaram-se e ganharam importncia em todo o mundo. At 1950, existiam somente livros de bolso destinados a pessoas de baixo poder aquisitivo; a partir de 1955, desenvolveu-se a categoria do livro de bolso "de luxo". As caractersticas principais destes ltimos eram a abundncia de colees em 1964 havia mais de duzentas, nos Estados Unidos e a variedade de ttulos, endereados a um pblico intelectualmente mais refinado. A essa diversificao das categorias adiciona-se a dos pontos-de-venda, que passaram a abranger, alm das bancas de jornal, farmcias, lojas, livrarias, etc. Assim, nos Estados Unidos, o nmero de ttulos publicados em edies de bolso chegou a 35 mil em 1969, representando quase 35% do total dos ttulos editados.

Proposta da coleo "A Obra-Prima de Cada Autor"

Coleo" uma palavra h muito tempo dicionarizada e define o conjunto ou reunio de objetos da mesma natureza ou que tm alguma relao entre si. Em um sentido editorial, significa o conjunto no-limitado de obras de autores diversos, publicado por uma mesma editora, sob um ttulo geral indicativo de assunto ou rea, para atendimento de segmentos definidos do mercado. A coleo "A Obra-Prima de Cada Autor" corresponde plenamente definio acima mencionada. Nosso principal objetivo oferecer, em formato de bolso, a obra mais importante de cada autor, satisfazendo o leitor que procura qualidade.* Desde os tempos mais remotos existiram colees de livros. Em Nnive, em Prgamo e na Anatlia existiam colees de obras literrias de grande importncia cultural. Mas nenhuma delas superou a clebre biblioteca de Alexandria, incendiada em 48 a.C. pelas legies de Jlio Csar, quando estes arrasaram a cidade.* Atendendo a sugestes de leitores, livreiros e professores, a partir de certo nmero da coleo comeamos a publicar, de alguns autores, outras obras alm da sua obra-prima.

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A coleo "A Obra-Prima de Cada Autor" uma srie de livros a ser composta por mais de 400 volumes, em formato de bolso, com preo altamente competitivo, e pode ser encontrada em centenas de pontos-de-venda. O critrio de seleo dos ttulos foi o j estabelecido pela tradio e pela crtica especializada. Em sua maioria, so obras de fico e filosofia, embora possa haver textos sobre religio, poesia, poltica, psicologia e obras de auto-ajuda. Inauguram a coleo quatro textos clssicos: Dom Casmurro, de Machado de Assis; O Prncipe, de Maquiavel; Mensagem, de Fernando Pessoa e O Lobo do Mar, de Jack London. Nossa proposta fazer uma coleo quantitativamente aberta. A periodicidade mensal. Editorialmente, sentimo-nos orgulhosos de poder oferecer a coleo "A Obra-Prima de Cada Autor" aos leitores brasileiros. Ns acreditamos na funo do livro.

Prefcio presente edio

Hans Staden, o famoso cronista alemo do sculo XVI, escreveu apenas um livro, cujo contedo so as narrativas de suas duas viagens ao Brasil. O livro tornou-se um clssico de nossa literatura histrica. O ttulo original da obra bastante extenso e no menciona o nome "Brasil". O frontispcio da edio original de Marburg, de 1557, registra, como ttulo e em forma piramidal, as seguintes palavras: D ESCRIOSITUADO NO VERDADEIRA DE UM PAS DE SELVAGENS NUS , FEROZES E CANIBAIS , DESCONHECIDO NA TERRA DE AT QUE , H DOIS ANOS ,

N OVO M UNDO A MRICA , C RISTO ,

H ESSEN

ANTES E DE

DEPOIS DO NASCIMENTO DE

H ANS S TADEN ,

H OMBERG , EM H ESSEN , POR SUA PRPRIA EXPERINCIA , O CONHECEU E AGORA A D LUZ PELA SEGUNDA VEZ , DILIGENTEMENTE AUMENTADA E MELHORADA .

Traduzida diretamente do texto de Marburg por Alberto Lfgren, nossa edio tem o ttulo de Viagem ao Brasil. H outras edies intituladas As Duas Viagens ao Brasil. A obra alcanou grande sucesso editorial e teve larga difuso ao longo do tempo, com mais de 50 edies, nos idiomas alemo, holands, flamengo, latim, francs, ingls e portugus.

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O pouco que se sabe da vida de Hans Staden so informaes contidas no seu prprio livro. Em 1664 encontrou-se, em Cassei, um retrato do autor (xilogravura) de autoria desconhecida. As edies em portugus so as seguintes: Traduo de Tristo de Alencar Araripe, na Revista Trimestral do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, volume 55, Rio de Janeiro, 1892. A traduo, calcada na verso francesa de Ternaux Compans, carente de notas e bastante falha. Traduo de Alberto Lfgren, com notas de Teodoro Sampaio, So Paulo, 1900, feita diretamente da segunda edio de Marburg. A iniciativa foi do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo. Em 1930, na srie "Publicaes da Academia Brasileira", essa traduo foi corrigida e reeditada, com prefcio de Afrnio Peixoto. Essa ltima publicao foi a que serviu de base para a presente edio, acrescida de notas e com as 55 xilogravuras originais da edio de Marburg, alm de ligeiras modificaes. A traduo livre de Monteiro Lobato, So Paulo, 1925, reproduz algumas xilogravuras. Essa edio foi renovada em 1926 e 1927. Monteiro Lobato tambm fez uma adaptao da obra de Hans Staden para a literatura infantil. Posteriormente, em 1974, foi relanada a excelente traduo de Guiomar de Carvalho Franco (1941), sob os auspcios da Editora da Universidade de So Paulo, em coedio com a Livraria Itatiaia Editora, de Belo Horizonte. Essa traduo traz um prefcio de Mrio Guimares Ferri e introduo e notas de Francisco de Assis Carvalho Franco. Em 1999, a histria de Hans Staden foi transformada em filme de longa-metragem. O filme, dirigido por Luiz Alberto Pereira, com a atuao de atores como Stnio Garcia e Carlos Evelyn, alcanou grande sucesso de critica e bilheteria, e ganhou prmios importantes, como no Festival de Braslia e o Prmio Martius-Staden 2000. A Editora Martin Claret sente-se honrada e privilegiada em poder oferecer aos leitores brasileiros esta nova edio definitiva da obra de Hans Staden. Finalmente, queremos agradecer o apoio cultural que recebemos do Instituto Martius-Staden, de So Paulo. Sem essa preciosa consultoria, nosso trabalho no ficaria completo.

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Prefcio do tradutor

A presente traduo do interessante livro de Hans Staden a segunda em lngua portuguesa. A primeira apareceu em 1892, na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, volume 55, parte I e tem por autor o Dr. Alencar Araripe, que adotou a ortografia fontica. O original de que esta se serviu foi da edio francesa da coleo Ternaux Compans, que, provavelmente, por sua vez, fora traduzida da verso latina. Comparando as duas, v-se que a traduo fidelssima, mas como no foi o trabalho feito vista do original alemo, no de estranhar que se afaste bastante deste, principalmente no estilo que, de todo, foi desprezado com sacrifcio daquele cunho caracterstico, com que lembra a sua poca. Mas, alm destas, h vrias outras tradues e muitas edies, tanto do original como das verses; segundo o que conhecemos so elas: 1a) O original primitivo, publicado em 1557 na cidade de Marburg, em Hessen, na Alemanha. 2a) Segunda edio, impressa no mesmo ano, mas na cidade de Frankfurt sobre o Meno. 3a) Traduo flamenga, publicada na Anturpia, em 1558. 4a) Nova edio alem, publicada em Frankfurt sobre o Meno, em 1567, na terceira parte de um livro intitulado Dieses Weltbuch von Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke. 5a) Outra edio, ainda em 1567, na mesma cidade, publicada na coleo das viagens de De Bry. 6a) A traduo em latim, em 1567, da coleo toda de De Bry. 7a) Nova edio latina publicada em 1560. 8a) Em 1630 ainda uma terceira. 9a) Uma quarta edio alem do original, in folio, torna a aparecer em 1593.

"A obra apareceu primeiramente em 1556 em Frankfurt sobre o Meno, durch Weygandt Han. No h data no livro, mas o prefcio de 1556 e de supor que sendo j Frankfurt um grande centro bibliogrfico, e outras edies futuras tendo sado dali, tambm o fosse esta. Como as provas foram revistas pelo Dr. Dryander, de Marburg (o livro tem ilustraes em madeira que mal podiam ter sido preparadas ali), de crer que no se satisfazendo ele com as gravuras que, finas como eram, pouca idia davam das aventuras de seu heri, procurasse fazer outra edio em Marburg mesmo, e com gravuras mais verdadeiras, se bem que muito toscas. E assim o fez, em 1577" (J. C. Rodrigues, Biblioteca Brasiliense, Rio de Janeiro, 1907, p. 590). Nota de Afrnio Peixoto. "...lastimo dizer que os nmeros 5, 6 e 7 da bibliografia do Sr. Lfgren so mera fantasia" (J. C. Rodrigues, op. cit., p. 590). "Em 1595 apareceu a primeira verso holandesa (no mencionada por Brunet ou Graesse) e foi reproduzida (sem prefcio) em 1627 e 1634 (Amsterd), nenhuma delas sendo acusada pelo Sr. Lfgren" (J. C. Rodrigues, op. cit., p. 591). Nota de Afrnio Peixoto.

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10a) Nova traduo, publicada em 1630, com o ttulo de Hans Staden van Homburgs Beschryringhe van America. 11a) Reimpressa em 1640. 12a) Quinta edio alem, publicada em Frankfurt sobre o Meno, em 1631. 13a) Mais uma sexta edio, em quarto, publicada em Oldenburg no ano de 1664. 14a) Em 1686 houve outra edio holandesa, em quarto e ilustrada com xilogravuras, publicada em Amsterd. 15a) Mais uma em 1706, numa coleo de viagens, publicada na cidade de Leyden por Pieter van der Aa. 16a) Em 1714 seguiu-se a quinta edio holandesa, publicada em Amsterd, em parte. Esta edio mencionada por Bouche de Richarderie na "Bibliothque Universelle de Voyages". Tomo V, p. 503, 1806. 17a) Uma traduo francesa foi publicada na coleo de viagens de Ternaux Compans; Vol. III, Paris, 1839, em oitavo. 18a) A sexta edio holandesa, in folio, foi publicada em Leyden, em 1727, como nova edio de Pieter van der Aa. 19a) A ltima edio alem apareceu em Stuttgart em 1859, na "Bibliothek des Liberischen Vereins", em Stuttgart, Vol. XLVII. 20a) Em 1874 a sociedade inglesa The Hakluyt publicou, em volume separado, uma traduo magistral, feita por Albert Tootal, com anotaes do ento cnsul ingls em Santos, Sir Richard F. Burton. Esta traduo foi feita sobre a segunda edio alem de 1557 e at hoje a melhor. 21a) Traduo brasileira na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, por Alencar Araripe, em 1892. ***

Tendo o ilustrado Dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um exemplar original da primeira edio de Marburg, de 1557, comeamos a comparar este original com a traduo portuguesa e chegamos concluso de que talvez houvesse vantagem em dar uma nova edio deste livro to interessante para a nossa histria. Deliberamos ento cingir-nos estritamente ao mtodo e linguagem do autor, conservando integralmente a ortografia dos nomes prprios dos lugares, coisas e pessoas e, quanto possvel, o prprio estilo simples e

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narrativo, com todas as suas imperfeies, e quer-nos parecer que no nosso modesto trabalho no haja a menor omisso. Por absoluta falta de tempo e, por julgar mais competente, pedimos ao nosso distinto amigo e conscio o Dr. Teodoro Sampaio que se encarregasse das anotaes e esclarecimentos relativos aos nomes e lugares relatados pelo autor. Na traduo inglesa, Burton fez muitas anotaes e deu vrias explicaes, porm, no sendo todas sempre acertadas, no as copiamos, julgando necessria uma reviso completa de todas elas. As palavras "pela segunda vez, diligentemente aumentada e melhorada", que se acham no ttulo, podiam fazer supor que se tratasse aqui de uma segunda edio e no da primeira ou original, mas estas palavras devem ser entendidas como "por duas vezes aumentada e melhorada", porque o prefaciador Dr. Dryander tinha, certamente, auxiliado ao autor por ser este pouco versado na arte de escrever e compor. Acresce que esta edio impressa em Marburg na casa de Andreas Kolbe, o que por si s prova evidentemente ser a primeira edio conhecida, visto a segunda edio ter sido feita em Frankfurt sobre o Meno, ainda que no mesmo ano. Tendo o Dr. Dryander revisto o manuscrito para ser apresentado ao prncipe em 1556, muito provvel que, para a impresso, que s teve lugar em 1557, o revisse pela segunda vez e, nesta ocasio, talvez aumentasse alguma coisa, como diz o ttulo. As gravuras so reprodues fotogrficas, em tamanho igual, das estampas do original. Ignora-se, porm, se os desenhos so do prprio autor ou de outrem por ele guiado, o que alis mais provvel.

Janeiro de 1900. A LBERTO L FGREN , F. L. S.

Nesta edio o tamanho foi reduzido.

NOTA Ao prefcio de Lfgren, com as modificaes citadas por J. C. Rodrigues, devemos acrescentar: I. Hans Just Wynkelmann: Der Amerikanischen Neuer Welt Beschreibung, Oldenburg, 1644. (Trata-se de uma curiosa descrio da Amrica, e nela se inclui o texto do relato de Staden, com as gravuras da primeira edio). II. Reimpresso, na Zeitschrift des Deutschen Wissenschaftlichen Vereins, de Buenos Aires, do texto da terceira edio de Frankfurt sobre o Meno, de 1567, pelo Dr. R. Lehmann Nitsche, Buenos Aires, 1921. III. Edio fac-similar da de Marburg, de 1557, pelo Dr. Richard N. Wegner, Frankfurt sobre o Meno, 1927. (Afrnio Peixoto). IV. Hans Staden edio da srie "Brasil Antigo", da Companhia Editora Nacional, texto ordenado literariamente por Monteiro Lobato, So Paulo, 1925; 2a ed. 1926; 3a ed. 1927. A edio de Monteiro Lobato contm somente a primeira parte da obra de Hans Staden.

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V IAGEM

AO

B RASIL

Frontispcio

DESCRIO

VERDADEIRA DE UM PAS DE SELVAGENS NUS, FEROZES E CANIBAIS,

SITUADO NO NOVO MUNDO A MRICA, DESCONHECIDO NA TERRA DE H ESSEN ANTES E DEPOIS DO NASCIMENTO DE CRISTO, AT QUE, H DOIS ANOS,

H ANS S TADEN,

DE

H OMBERG,

EM

HESSEN, POR SUA PRPRIA EXPERINCIA, O CONHECEU E AGORA A D LUZ PELA SEGUNDAVEZ, DILIGENTEMENTE AUMENTADA E MELHORADA.

Dedicada a sua serenssima alteza Prncipe H. Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda1, seu Gracioso Senhor.

Com um prefcio do Dr. Johann Dryander, denominado Eychman, Lente Catedrtico de Medicina em Marburg. O contedo deste livrinho segue depois dos prefcios. Impresso em Marburg no ano MDLVII.

1 Filipe I, o Magnnimo (1504-1567). Fundador da Universidade de Marburg.

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P RIMEIRO L IVRO As V IAGENS

Ao serenssimo e nobilssimo Prncipe e Senhor Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda etc, meu gracioso Prncipe e Senhor.

Graa e paz em Cristo Jesus nosso redentor, Gracioso Prncipe e Senhor. Diz o Santo Rei Profeta, Davi, no salmo 107: "Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes guas. Esses vem as obras de Jeov e suas maravilhas no profundo. A um aceno, Ele faz soprar tormentoso vento, que lhe ergue as ondas. Sobem aos cus, descem aos abismos: suas almas se aniquilam de angstia. Tropeam e titubeiam como bbados: e toda a sua sabedoria se lhes foi. Clamam, porm, por Jeov em suas aflies; e Ele os tira dos apertos. Faz cessar as tormentas, e se aquietam as ondas. Ento se alegram, porque tranqilizados, e Ele os conduz ao desejado porto. Louvem, pois, o Senhor pela sua bondade e pelas suas maravilhas, para com os filhos dos homens. E o exaltem no seio do povo, e no conselho dos ancios o glorifiquem." Assim, agradeo ao Todo-Poderoso, Criador do cu, da terra e do mar, ao seu filho Jesus Cristo e ao Esprito Santo, pela grande graa e clemncia de que fui alvo durante a minha estada entre os selvagens da terra do Brasil, chamados Tuppin Imba2 e que comem

2 Tuppin Imba mais uma das muitas formas com que se nos depara o nome tupi do gentio braslico, dominador na costa ao tempo da Conquista. Entre os portugueses dessa poca escrevia-se Tupinamb, nome que se vulgarizou. Entre os escritores franceses contemporneos lem-se, porm, Topinamboux, Tapinambs, Toupinambas, e at Tououpinambaoult escreveu Joo de Lery, grafia que, apesar de estranha, foi considerada por Ferdinand Denis como a mais prxima da verdade. De to grande diversidade de forma resulta a to controvertida interpretao do vocbulo que a ningum satisfaz. Tuppin ou

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carne de gente, onde estive prisioneiro nove meses e corri muitos perigos, dos quais a Santa Trindade inesperada e milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste e perigosa vida, tornasse a ver minha querida ptria, no principado de Vossa Graciosa Alteza, aps muitos anos. Modestamente e com brevidade tenho narrado essa minha viagem e navegao para que Vossa Graciosa Alteza a queira ouvir, lida por outrem, de que modo eu com auxlio de Deus, atravessei terras e mares e como Deus milagrosamente se mostrou para comigo nos perigos. E para que Vossa Graciosa Alteza no duvide de mim, como se eu estivesse a contar coisas mentirosas, queria oferecer a Vossa Graciosa Alteza, em minha prpria pessoa, uma garantia para este livro. A Deus somente seja, em tudo, a Glria. Recomendo-me humildemente Vossa Graciosa Alteza. Datum Wolfhagen a 20 de junho anno Domini. 1556. De V. A. sdito Hans Staden, de Homberg, em Hessen, agora cidado em Wolfhagen.

Tupim, quer dizer "tio", o irmo do pai; imba ou imb = aba, "homem, gente, gerao". Tambm Tu-upi significa o "pai primeiro", o progenitor. Tu-upiab "a gerao do progenitor".

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Prefcio do Dr. Johann Dryander, denominado Eychman, em Marburg

Ao nobilssimo Senhor H. Philipsen, conde de Nassu e Sarprck etc, meu gracioso Senhor, deseja Dr. Dryander muita felicidade, com o oferecimento de seus prstimos.

Hans Staden, que acaba de publicar este livro e histria, pediu-me de rever, corrigir, e, onde fosse necessrio, melhorar o seu trabalho. A este pedido acedi, por muitos motivos. Primeiro, porque conheo o pai do autor, h mais de 50 anos (pois que nascemos no mesmo estado de Wetter, onde fomos educados), como um homem que, tanto na terra natal, como em Homberg, tido por franco, devoto e bravo, e que estudou as boas artes, e (como diz o rifo) porque a ma no cai longe da rvore, de esperar que Hans Staden, como filho deste bom homem, deva ter herdado as virtudes e a devoo do pai. Alm disso, aceito o trabalho de rever este livro com tanto mais gosto e amor, quanto me interesso muito pelas notcias concernentes s matemticas, como cosmografia, isto , a descrio e medio dos pases, cidades e caminhos, tais como neste livro se deparam, mormente quando vejo os sucessos narrados com franqueza e verdade, e no posso duvidar que este Hans Staden conte e escreva com exatido e verdade a sua narrativa e viagem, no por t-las colhido de outrem, mas de experincia prpria, sem falsidade, e que ele da no quer tirar glria nem fama para si, mas sim, unicamente, a glria de Deus, com louvor e gratido por benefcios recebidos e pela sua libertao. O seu principal objetivo tornar conhecida sua histria a todos, para que se possa ver com que favor e como, contra toda a expectativa, Deus, o Senhor, salvou de tantos perigos a Hans Staden, quando ele o implorou, tirando-o do poder dos ferozes selvagens (onde durante nove meses, todos os dias e horas, estava esperando ser impiedosamente trucidado e devorado), para lhe permitir, a ele, tornar sua querida ptria, Hessen. Por essa inefvel clemncia divina e pelos benefcios recebidos, queria ele agradecer a Deus no limite de suas foras, e em louvor de Deus comunicar a todos o que aconteceu. Nesta grata tarefa, a ordem dos acontecimentos o levou a descrever toda a viagem com suas peripcias, durante os dois anos que esteve ausente da ptria. E como faz ele esta descrio sem palavras pomposas e floridas, sem exageraes, tenho plena confiana na sua autenticidade e verdade, at porque nenhum benefcio pode ele colher em mentir, em vez de contar a verdade.

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Alm disso, fixou-se ele agora com os seus pais nesta terra e no dado a vagabundagem, como os mentirosos e ciganos, que se mudam de um pas para outro, pelo que fcil esperar que algum de volta daquelas ilhas1 o possa acusar de mentiroso. Sou de opinio e considero para mim valiosa prova de verdade o fazer ele esta descrio de um modo to simples e indicar a poca, o pas e o lugar, em que Heliodorus, o filho do sbio e muito famoso Eoban Hessus, o qual aqui foi tido por morto, esteve com Hans Staden naquele pas e viu como ele foi miseravelmente preso e levado pelos selvagens. Esse Heliodorus, digo, pode, mais cedo ou mais tarde, voltar (como se espera que acontea) e ento envergonh-lo e denunci-lo, como um homem sem valor, caso sua histria seja falsa ou inventada. Para ento ressalvar e defender a veracidade de Hans Staden, quero agora apontar os motivos pelos quais esta e semelhantes histrias logram, em geral, pouco crdito e confiana. Em primeiro lugar, viajantes houve que, com mentiras e narrativas de coisas falsas e inventadas, fizeram com que homens honestos e verdicos, de volta de terras estranhas, no fossem acreditados, e ento se diz geralmente: "quem quer mentir, que minta de longe e de terras longnquas" porque ningum vai l para verificar, e antes de se dar a esse trabalho, mais fcil acreditar. Nada, contudo, se ganha em desacreditar a verdade por amor de mentiras. tambm para notar que certas coisas contadas e tidas pelo vulgo como impossveis, para homens de entendimento no o so; e tomadas por verdicas, quando investigadas, mostram s-lo evidentemente. Isto pode-se observar em um ou dois exemplos, tirados da astronomia. Ns, que vivemos aqui na Alemanha ou perto dela, sabemos de longa experincia a durao do inverno e do vero e das outras duas estaes, a primavera e o outono. Tambm conhecemos a durao do maior dia de vero e do menor dia do inverno, bem como a das noites. Se algum ento disser que h lugares na Terra onde o Sol no se pe durante meio ano, e que ali o dia maior de seis meses, isto , meio ano, e que ao contrrio a noite maior de seis meses ou meio ano, assim como h lugares no mundo onde as quatro estaes so duplas, o certo que dois invernos e dois veres l existem. tambm certo que o Sol e outras estrelas, por pequenas que nos paream, e mesmo a menor delas no firmamento, so maiores que toda a Terra e so inumerveis.

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Veja adiante a nota 3.

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Quando ento o vulgo ouve estas coisas, desconfia, no acredita e acha tudo impossvel. Entretanto, os astrnomos o demonstraram de modo que os entendidos nas cincias no duvidam disto. Por isso no se deve concluir que assim no seja, apesar de que o vulgo no lhe d crdito, e como no estaria mal a cincia astronmica, se no pudesse demonstrar este corpora e determinar, por clculos, os eclipses, isto , o escurecimento do Sol e da Lua, e como indicar o dia e a hora em que eles se devem dar. Com sculos de antecedncia podem ser preditos e a experincia demonstra ser verdade. "Sim, dizem eles, quem esteve no cu para ver e medir isso?" Resposta: porque a experincia diria nestas coisas combina com as demonstrationibus. , pois, necessrio consider-las verdadeiras, como verdadeiro somar 3 e 2 so 5. E de certas razes e demonstraes da cincia acontece que se pode medir e calcular a distncia celeste at a Lua e da para todos os planetas e finalmente at o firmamento estrelado. At o tamanho e densidade do Sol, da Lua e outros corpos celestes e da cincia do cu, ou astronomia, de combinao com a geometria, calculam-se a grandeza, a redondeza, a largura e o comprimento da Terra, coisas estas todas desconhecidas do vulgo e por ele no acreditadas. Esta ignorncia por parte do vulgo ainda perdovel por no estudar ele a filosofia; mas que pessoas importantes e quase sbias duvidem destas coisas to verdadeiras, vergonhoso e at perigoso, porque o vulgo tem confiana nelas e persiste no seu erro, dizendo: se assim fosse, este ou aquele escritor no teria refutado. Ergo etc. Que Santo Agostinho e Lactncio Firmiano, dois santos sbios, no somente em teologia, como tambm em outras artes versados, duvidaram e no quiseram admitir que pudesse haver antpodas, isto , que houvessem habitantes no outro lado da terra, que andam com seus ps voltados contra ns e, portanto, a cabea e o corpo pendentes para o cu, isto sem cair, parece singular, apesar de que muitos outros sbios o admitam contra a opinio dos santos e grandes sbios, acima mencionados, que o negaram e o tiveram por inventado. Deve, porm, ser verdade, que aqueles que habitam ex diametro per centrum terrae so antpodas e vera propositio que "Omne versus coelum vergens, ubicumque locorum, sursum est". E no necessrio ir at o Novo Mundo a procurar os antpodas, pois eles existem tambm aqui no hemisfrio superior da Terra. Pois se compararmos e confrontarmos o ltimo pas do Ocidente, como a Espanha no Finisterra, com o Oriente onde est a ndia, estas gentes extremas e habitantes terrestres so tambm quase uma espcie de antpodas.

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Pretendem alguns santos telogos com isso provar que se tornou verdade a splica da me dos filhos de Zebedeu, quando rogou a Cristo, Senhor Nosso, que seus filhos ficassem um ao lado direito e outro ao esquerdo dele. E isso de fato aconteceu, pois que So Tiago sepultou-se em Compostela, no longe de Finisterra, geralmente denominado Finstern Stern2 (estrela escura), onde venerado, e o outro apstolo na ndia, ou onde o sol levanta. Que, pois, os antpodas existiam h muito tempo sem serem notados, e que ao tempo de Santo Agostinho, quando o novo mundo da Amrica, na parte inferior do globo, ainda se no descobrira, no deixaram de existir, um fato. Alguns telogos, especialmente Nicolau Lira (reputado, todavia, excelente homem), afirmam ser a parte firme do globo terrestre numa metade apenas fora d'gua, na qual flutua e onde habitamos, a outra parte oculta-se pelo mar e pela gua, de modo que nela ningum pode existir. Tudo isso, porm, contrrio cincia da cosmografia, pois que hoje est verificado pelas muitas viagens martimas dos portugueses e dos espanhis que a Terra habitada por toda a parte. A prpria zona trrida tambm o , o que nossos antepassados e escritores jamais admitiram. A nossa experincia de cada dia mostra-nos que o acar, as prolas e produtos outros para c vm daqueles pases. O paradoxo dos antpodas e a j referida medio do cu, mencionei-os aqui to-somente a reforarem o meu argumento, e podia ainda me referir a muitas outras coisas mais, se no temesse aborrecer-vos com o meu longo prefcio. Muitos outros argumentos semelhantes, porm, podem-se ler no livro do digno e sbio Magister Casparus Goldtworm, diligente superintendente e pregador de Vossa Alteza, em Weilburgk, livro em seis partes, tratando de muitos milagres, maravilhas e paradoxos dos tempos antigos e modernos, e que sem demora se deve dar a imprimir. Para este livro e muitos outros que descrevem tais coisas, como, por exemplo, o seu Libri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus etc, chamo a ateno do benvolo leitor desejoso de conhecer mais estas coisas. Com tudo isso se prova que no necessariamente uma mentira, o afirmar-se coisa estranha e descomunal para o vulgo, como nesta histria se ver, na qual toda a gente da ilha3 anda nua e no tem por alimento animais domsticos, nem possui coisas para sua subsistncia das que ns usamos, como vestimentas, camas, cavalos, porcos ou vacas; nem vinho, nem cerveja etc, e tem que se arranjar e viver a seu modo. Quero, porm, para finalizar com este prefcio, mostrar em poucas palavras o que induziu a Hans Staden a imprimir as suas duas navegaes e a viagem por terra. Certo,2 3

N. T.: Quer dizer estrela escura por uma espcie de trocadilho, s possvel na lngua alem. Por esse tempo ainda se no tinha identificado o inteiro continente da Amrica. Os novos descobridores, isolados ou destacados, consideravam-no ilhas. O Brasil de Hans Staden ainda uma ilha.

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muitos ho de interpretar isso em seu desabono, como se quisesse ele ganhar glria ou notoriedade. Eu, porm, penso de outra forma e acredito seriamente que sua inteno muito diversa, como se percebe em vrios lugares desta histria. Passou ele por tanta misria e sofreu tantos reveses, nos quais a vida to amide lhe esteve ameaada, que chegou a perder a esperana de se livrar ou de jamais voltar ao lar paterno. Deus, porm, em quem sempre confiava e invocava, no somente o livrou das mos de seus inimigos, como tambm por amor das suas fervorosas oraes, quis mostrar quela gente mpia que o verdadeiro e legtimo Deus, justo e poderoso, ainda existia. Sabe-se perfeitamente que a orao do crente no deve marcar a Deus limite, medida ou tempo; aprove, porm, a Ele, por intermdio de Hans Staden, o demonstrar os seus milagres a estes mpios selvagens. E isto no sei como contestar. Sabe-se tambm como as contrariedades, as tristezas, desgraas e doenas fazem geralmente com que as pessoas se dirijam a Deus e que, na adversidade, nele acreditem mais do que antes, ou como alguns, segundo o costume catlico, fazem votos a este ou aquele Santo de fazer romaria ou penitncia, para que ele os livre nos apuros, cumprindo rigorosamente essas promessas, a no ser aqueles que pretendem defraudar o Santo, como nos refere Erasmo de Roterd, nos Colquios sobre o naufrgio de um navio de nome San Cristovam, cuja imagem de dez cvados de alto, como um grande Polifemo, se acha num templo em Paris, navio em que vinha algum que fizera a promessa a este Santo de oferecer-lhe uma vela de cera do tamanho do prprio Santo, se este o tirasse das suas aperturas. Um companheiro, que estava ao lado nesta ocasio, conhecendo-lhe a pobreza, o repreendeu por tal promessa; pois ainda que vendesse tudo quanto possua no mundo, no seria capaz de adquirir a cera de que havia de precisar para tamanha vela. O outro, porm, respondeu em voz baixa, que o Santo no ouvisse: "Quando o Santo me tiver salvo destes perigos, dar-lhe-ei uma vela de sebo, do valor de um vintm!" E a histria do cavaleiro, que estava arriscado a naufrgio, tambm outra: esse cavaleiro, quando viu que o navio ia se perder, fez voto a So Nicolau, de que, se ele o salvasse, lhe sacrificaria o seu cavalo ou o seu pajem. O criado, porm, advertiu de que no o fizesse, pois em que havia de montar depois? O cavaleiro respondeu ao criado, baixinho, para que o Santo no o ouvisse: "Cala a boca, porque se o Santo me salvar, no lhe darei nem a cauda do cavalo". E assim pensava cada um dos dois enganar o Santo e esquecer o benefcio. Para que, pois, Hans Staden no seja taxado assim de esquecer a Deus que o salvou, assentou ele de o louvar e glorificar com o imprimir esta narrativa, e, com esprito cristo,

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divulgar a graa e obra recebidas, sempre que tiver ocasio. E se esta no fosse a sua inteno (alis honesta e justa) podia ele poupar-se a esse trabalho e economizar a despesa, no pequena que a impresso e as gravuras lhe custaram. Como esta histria foi pelo autor humildemente dedicada ao Serenssimo e de elevadssimo nascimento, Prncipe e Senhor, Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, seu Prncipe e gracioso Senhor, e em nome de sua Alteza a fez pblica, e tendo ele sido, muito antes disto, examinado e interrogado por Vossa Alteza em minha presena e na de muitas outras pessoas sobre a sua viagem e priso, que eu j por diversas vezes tinha contado a Vossa Alteza e a outros senhores, e como eu, h muito, tinha visto e observado o grande amor que Vossa Alteza manifestou por estas e outras cincias astronmicas e cosmogrficas, desejava humildemente escrever este prefcio ou introduo para Vossa Alteza, e lhe pedir de aceitar este mimo, at que possa eu publicar coisa de maior importncia em nome de Vossa Alteza.

Recomendo-me submissamente Vossa Alteza. Datum Marburg, Dia de So Tom, ano MDLVI.

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Contedo do livro

1. Duas viagens de mar, efetuadas por Hans Staden, em oito anos e meio. A primeira foi de Portugal, e a segunda da Espanha ao Novo Mundo, a Amrica. 2. Como ele, no pas dos selvagens, denominados Tuppin Ikins (Tupiniquins) (sditos d'El-Rei de Portugal), foi empregado como artilheiro contra os inimigos. Finalmente, feito prisioneiro pelos inimigos e levado por eles, permaneceu nove meses em constante perigo de ser morto e devorado por eles. 3. Como Deus livrou misericordiosa e maravilhosamente a este prisioneiro, no ano j mencionado, e como ele tornou sua querida ptria. Tudo para honra e glria da misericrdia de Deus, dado impresso. Was hilft der Wchter in der Stadt, Was dem gewaltigen Meerschiff seine Fahrt, Wenn Gott sie beide nicht bewahrt. Que seria do guarda da cidade, Do poderoso navio em sua rota, Se Deus por ambos no velasse!

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Nau do capito Penteado na qual se engajou Hans Staden como artilheiro. Na flmula do mastro central vem-se as iniciais do desenhista ou gravador D. H. que at o presente no se pde identificar.

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Captulo IQue seria do guarda da cidade, Do poderoso navio em sua rota, Se Deus por ambos no velasse!

Eu, Hans Staden, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quisesse, visitar a ndia. Com esta inteno, sa de Bremen para a Holanda e achei em Campen (Campon) navios que tencionavam tomar carga de sal, em Portugal. Embarquei-me em um deles e, no dia 29 de abril de 1547, chegamos cidade de So Tuval (Setbal) depois de uma travessia de quatro semanas. Da fui a Lissebona (Lisboa), que dista cinco milhas de Setbal. Em Lisboa alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era alemo e se chamava Leuhr, o Moo, onde fiquei algum tempo. Contei-lhe que tinha sado da minha ptria e lhe perguntei quando esperava que houvesse expedio para a ndia. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os navios d'El-Rei, que navegavam para a ndia, j tinham sado. Pedi-lhe ento que me auxiliasse no intento de encontrar outro navio, visto que perdera estes, tanto mais que ele sabia a lngua, e que eu estava pronto a servi-lo por minha vez. Levou-me para um navio como artilheiro. O capito desta nau chamava-se Pintiado (Penteado) e se destinava ao Brasil, para traficar e tinha ordens de atacar os navios que comerciavam com os mouros brancos da Barbaria (frica Setentrional). Tambm se achasse navios franceses em trfico com os selvagens do Brasil, devia aprision-los, bem como transportar alguns criminosos1 sujeitos a degredo, para povoarem as novas terras.O nosso

navio estava bem aparelhado de tudo que necessrio para guerra no mar.

ramos trs alemes, um chamado Hans von Bruchhausen, o outro Heinrich Brant, de Bremen, e eu.

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Era costume, nessa poca, levarem-se criminosos em degredo para as terras recm-descobertas, a fim de aprenderem a lngua dos naturais e serem teis depois ao comrcio e navegao.

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"O pas com os portos citados, como os vi em parte na Amrica, a quantos graus ficam situados, tambm como se denominam os habitantes e como confinam suas terras. Tudo isto fiz constar deste mapa, conforme melhor me ensinou minha memria, de sorte que seja compreendido facilmente por qualquer homem inteligente."

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Captulo IIDescrio da minha primeira viagem de Lissebona (Lisboa) para fora de Portugal

Samos de Lisboa com mais um navio pequeno, que tambm pertencia ao nosso capito, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada Ilha de Madeira, que pertence a El-Rei de Portugal, e onde moram portugueses. grande produtora de vinho e de acar. Ali mesmo, numa cidade chamada Funtschal (Funchal), embarcamos mantimentos. Depois disso, deixamos a ilha em demanda da frica Setentrional, para uma cidade chamada Cape de Gel2, que pertence a um rei mouro, branco, a quem chamam Shiriffi (xerife). Esta cidade pertencia, outrora, a El-Rei de Portugal, mas foi retomada pelo xerife. Nela pensvamos encontrar os mencionados navios que negociam com os infiis. Chegamos e achamos, perto da terra, muitos pescadores castelhanos, que nos informaram de que alguns navios estavam para chegar, e ao afastarmo-nos, saiu do porto um navio bem carregado. Perseguimo-lo, alcanando-o; porm a tripulao escapou nos botes. Divisamos ento em terra um bote vazio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos busc-lo.

Mostra Ighir Ufrani (Cabo de Ghir) e a captura do navio mouro.

2 o Cabo de Ghir na costa do Marrocos, onde est a cidade e praa de Asilah, cerca de trinta milhas distante de Tanger, e que esteve em poder dos portugueses at que D. Joo III a abandonou.

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Os mouros brancos chegaram ento a cavalo, a protegerem o barco; mas no podiam aproximar-se por causa dos nossos canhes. Tomamos conta do navio e partimos com a nossa presa, que consistia em acar, amndoas, tmaras, couros de cabra e goma arbica, que levamos at a Ilha de Madeira, e mandamos o nosso navio menor a Lisboa, a informar a El-Rei e receber instrues a respeito da presa, pois que havia negociantes valencianos e castelhanos entre os proprietrios. El-Rei nos respondeu que deixssemos a presa na Ilha e continussemos a viagem, enquanto Sua Majestade deliberava sobre o caso. Assim o fizemos, e navegamos de novo, at o Cabo de Ghir, a ver se encontrvamos mais presas. Porm foi em vo; fomos impedidos pelo vento, que, prximo da costa, nos era sempre contrrio. noite, vspera de Todos os Santos, uma tempestade nos levou da frica Setentrional para o lado do Brasil. Quando estvamos a 400 milhas da frica Setentrional grande, um cardume de peixes cercou o navio; apanhamos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Albakores. Outros, Bonitas, eram menores, e ainda a outros chamavam Durados3. Tambm havia muitos do tamanho do herenque (arenque), que tinham asas nos dois lados, como os morcegos, e eram muito perseguidos pelos grandes. Quando percebiam isso, saam da gua em grandes cardumes e voavam, cerca de duas braas acima da gua; muitos caam perto e outros longe a perder de vista; depois, caam outra vez na gua. Ns os achvamos freqentemente, de manh cedo, dentro do barco, cados durante a noite, quando voavam. E so denominados na lngua portuguesa como pisce bolador4. Da chegamos at a linha equinocial onde reinava intenso calor, porque, ao meio-dia, o sol estava exatamente a pino sobre as nossas cabeas. Durante algum tempo, de dia, no soprava vento algum; mas de noite, se desencadeavam, muitas vezes, fortes trovoadas, acompanhadas de chuva e vento, que passavam rpido. Entretanto, tnhamos de velar constantemente para que no nos surpreendessem, quando navegvamos a pano.

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Albakores so os albacoras, Bonitas, o bonito e Durados so os dourados, nome de vrias espcies de peixes acantoptergios. o peixe voador, como facilmente se depreende da narrativa.

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A nau do capito Penteado, na qual viajava Hans Staden como artilheiro, cercado de albacoras, bonitos e dourados. esquerda, junto popa da nau, v-se um cardume de peixes voadores.

Mas, quando de novo soprou o vento, que se tornou temporal, durante alguns dias, e contrrio a ns, julgamo-nos ameaados de fome, se continuasse. Oramos a Deus, pedindo bom vento. Aconteceu ento, uma noite, por ocasio de forte tempestade, que nos ps em grande perigo, aparecerem muitas luzes azuis no navio, como nunca mais tenho visto. Onde as vagas batiam no costado, l estavam tambm as luzes. Os portugueses diziam que essas luzes eram um sinal de bom tempo que Deus nos mandava, para nos consolar no perigo. Agradecamos ento a Deus, depois que desapareciam. Chamam-se Santelmo, ou Corpus Santon, estas luzes. Quando o dia raiou, o tempo se tornou bom, soprando vento favorvel, de modo que vimos claramente que tais luzes so milagres de Deus. Continuamos a viagem atravs do oceano, com bom vento. A 28 de janeiro (1548) houvemos vista de terra, vizinha de um cabo chamado Sanct Augustin (Santo Agostinho). A oito milhas da, chegamos a um porto denominado Prannenbucke5. Contavam-se 84 dias que tnhamos estado no mar sem ter avistado a terra. Ali os portugueses tinham estabelecido uma colnia chamada Marim6. O governador desta colnia chamava-se Arto

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O nome atual Pernambuco, de procedncia do tupi Paranambuca, que aos ouvidos do narrador soou Prannenbucke. Vide O Tupi na Geografia Nacional, de Teodoro Sampaio, Livraria Progresso Editora. 6 A colnia a fundada pelos portugueses era a vila de Olinda, a que o gentio comeou a chamar mairy, que quer dizer "cidade" ou povoao, como a construam os europeus. Da a corruptela Mary ou Marim, como Staden no-la transmite.

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Koslio7, a quem entregamos os criminosos; e ali descarregamos algumas mercadorias, que l ficaram. Terminamos os nossos negcios neste porto, com intuito de prosseguir viagem, a tomar cargas.

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o nome estropiado do primeiro donatrio da Capitania de Pernambuco. Staden, ignorando o portugus, teria escrito Arto Koelio, por Duarte Coelho. Os copistas fizeram o resto.

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Captulo IIIComo os selvagens do lugar Prannenbucke (Pernambuco) se revoltaram e quiseram destruir a colnia dos portugueses

Aconteceu que os selvagens do lugar se tinham revoltado contra os portugueses, o que dantes nunca fizeram; mas agora o faziam, por se sentirem escravizados. Por isso, o governador nos pediu pelo amor de Deus, que ocupssemos o lugar denominado Garas8, a cinco milhas de distncia do porto de Marim (Olinda), onde estvamos ancorados, e de que os selvagens se queriam apoderar. Os habitantes da colnia de Olinda no podiam ir em auxlio deles, porque receavam que os selvagens os viessem atacar. Fomos, pois, em auxlio da gente de Igarau, com quarenta homens do nosso navio e para l nos dirigimos numa embarcao pequena. A colnia fica num brao do mar, que avana duas lguas pela terra adentro. Haveria ali uns noventa cristos para a defesa. Com eles se achavam mais uns trinta mouros e escravos brasileiros 9 pertencentes aos moradores. Os selvagens, que nos sitiavam10, oravam por oito mil. Tnhamos ao redor da praa apenas uma estacada de madeira 11.

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E Igarau (igara-au), "canoa grande, barco", em vez de Iguarau. como erroneamente hoje se escreve. Eram africanos e ndios escravos. 10 Eram os Caets, moradores das matas, inimigos dos Potiguaras, aliados dos portugueses. 11 Adotaram os portugueses no Brasil o mesmo processo de defesa usado pelo gentio nas suas aldeias, construindo estacadas ou caiaras em torno dos povoados mais expostos injria dos selvagens.

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Captulo IVDe como eram suas fortificaes e como eles combatiam contra ns

Ao redor do lugar onde estvamos sitiados havia uma mata, na qual tinham construdo dois redutos de troncos grossos, onde se recolhiam noite; e quando ns os atacvamos, para l se refugiavam. Ao p destes redutos abriam buracos no cho, onde se metiam durante o dia e donde saam para nos guerrilhar. Quando atirvamos sobre eles, caam todos por terra pensando assim evitar o tiro. Tinham-nos sitiado to bem, que no podamos sair nem entrar. Aproximavam-se do povoado; atiravam flechas para o ar, visando na queda nos alcanar; atiravam fogo com o fim de incendiar os tetos das casas e combinavam j de antemo o modo de nos devorar quando nos houvessem colhido. Restava-nos ainda algum mantimento, mas este logo se acabou. Neste pas uso trazer diariamente, ou de dois em dois dias, razes frescas de mandioca para fazer farinha ou bolos; mas os nossos no podiam se aproximar do lugar em que se encontravam essas razes.

Vista de conjunto em que se nota esquerda o Cabo de Santo Agostinho e Olinda. No interior, ao centro, Igarau, dentro de cuja paliada se encontram quatro canhes prprios de navios mercantes. Abaixo,

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observa-se a diligncia para procura de vitualhas em Itamarac, enquanto os atacantes derrubam rvores para impedir a sua passagem.

Como percebssemos que nos havia de faltar mantimentos, samos em dois barcos por um lugar chamado Tamaraka12 a busc-los. Os selvagens, porm, tinham atravessado grandes troncos de rvores no rio e se postaram muitos deles nas duas margens, com o intuito de impedir a nossa viagem. Foramos, porm, a tranqueira e ao meio-dia, mais ou menos, estvamos de volta sos e salvos. Os selvagens nada nos puderam fazer nas embarcaes; arrumaram, porm, poro de lenha entre a margem e os barcos, a que deitaram fogo, a ver se os incendiavam, e queimavam uma espcie de pimenta, que l cresce, com o fim de nos fazerem abandonar as embarcaes por causa da fumaa. Mas no foram bem-sucedidos e, enquanto isto, cresceu a mar e ns voltamos. Fomos a Itamarac, onde os habitantes nos forneceram os mantimentos. Com estes voltamos, outra vez, para o lugar sitiado. No mesmo ponto em que dantes haviam posto obstculos tinham os selvagens de novo derrubado rvores, como anteriormente; mas acima do nvel d'gua e na margem tinham cortado duas rvores de modo a ficarem ainda em p. Nas ramagens, amarraram-lhes uns liames chamados sippo13 que crescem como lpulo, porm mais grossos. As extremidades ficavam amarradas nas estacadas e, puxando por elas, era seu intento fazer tombar as rvores caindo sobre as nossas embarcaes. Avanamos para l; foramos a passagem, caindo a primeira das rvores para o lado da estacada e a outra na gua, um pouco para trs do nosso barco. E antes que comessemos a chamar, em voz alta, gritaram os selvagens tambm, para que os nossos companheiros no nos ouvissem, visto que no nos podiam ver por causa de uma pequena mata interposta; mas to perto estvamos que nos teriam decerto ouvido, se os selvagens no gritassem. Levamos as provises povoao, e como os selvagens viram que nada podiam fazer, pediram a paz e se retiraram. O cerco durava havia quase um ms e vrios dos selvagens morreram; nenhum, porm, dos cristos. Uma vez pacificados os selvagens, voltamos ao navio grande em Olinda, e a tomamos gua e tambm farinha de mandioca para servir de mantimento, e o governador da colnia de Olinda nos agradeceu.

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A ilha de Itamarac, que o gentio da terra chamava Ipa aun Tamerca, como Staden escreve no desenho, e se traduz por "ilha grande de Itamarac, da Capitania de Pero Lopes de Souza. Na ilha estava a vila de Nossa Senhora da Conceio, cabea da Capitania, situada na parte meridional e cerca de meia lgua acima da foz do rio Igarau. 13 o vocbulo cip, do tupi p, que vale dizer cordavara, isto , galho ou ramo em forma de corda. Os selvagens sabiam tirar partido dos cips nas suas construes e no fabrico de utenslios domsticos.

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Captulo VDe como samos de Pernambuco para uma terra chamada Buttugaris (Potiguares); encontramos um navio francs e nos batemos com ele Viajamos quarenta milhas para diante, at um porto chamado Buttugaris 14 , onde pretendamos carregar o navio com pau-brasil e receber provises em permuta com os selvagens. Ao chegarmos, a encontramos um navio de Frana, que carregava pau-brasil. Atacamo-lo para o aprisionar, mas cortaram-nos o mastro grande com um tiro, e se escaparam; alguns dos nossos morreram e outros ficaram feridos. Depois disto, queramos tornar para Portugal, visto que no conseguamos vento favorvel para entrar no porto, onde pensvamos obter mantimentos. O vento era-nos contrrio, e assim fomo-nos embora, com to poucas provises que tivemos de padecer muita fome; alguns comiam couro de cabritos, que tnhamos a bordo. Distribuam-se a cada um de ns, por dia, um copinho de gua e um pouco de farinha de raiz brasileira (mandioca). Estivemos assim 108 dias no mar, e no dia 12 de agosto alcanamos umas ilhas chamadas Losa Sores (Los Aores) que pertencem a El-Rei de Portugal; a lanamos ncora, descansamos e pescamos. Ali mesmo vimos um navio no mar, ao qual nos dirigimos para ver que navio era. Manifestou ser navio de piratas, que se puseram em defesa; mas ns ficamos vitoriosos e lhes tomamos o navio. Escaparam nos escaleres para as ilhas. O navio tinha muito vinho e po, com que nos regalamos. Depois encontramos umas cinco velas que pertenciam a El-Rei de Portugal e tinham de aguardar nas ilhas a vinda de outro navio das ndias para comboi-lo at Portugal. A ficamos e ajudamos a levar o navio das ndias, que veio para uma ilha chamada Tercera (Terceira), onde ficamos. Nesta ilha, tinham-se reunido muitos navios, todos vindos do Novo Mundo; uns iam para a Espanha, outros para Portugal. Samos da ilha Terceira em companhia de quase cem navios, e chegamos a Lisboa, a 8 de outubro, mais ou menos, do ano 1548; tnhamos gasto 16 meses em viagem.

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Deve ser Potiguares, como diziam os portugueses, derivado de Poti-guara, "papa-camares", apelido de uma nao dos tupis do Nordeste, inimiga dos Caets. Outros autores escrevem Petiguaras, caso em que o vocbulo se deriva de Pety-guara, e ento significa "mascador de fumo", porque o selvagem deste nome, segundo A. Knivet, trazia habitualmente entre os lbios e os dentes uma folha de fumo ou tabaco. O local chamado pelo narrador porto dos Buttugaris, quarenta milhas germnicas para o norte de Igarau, deve ser o da Paraba.

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O porto e a aldeia de Potiguares e o combate com o navio francs.

Depois, descansei algum tempo em Lisboa e fiquei com vontade de ir com os espanhis para as novas terras que eles possuem. Sa por isso de Lisboa, em navio ingls, para uma cidade chamada porto Santa Maria15, na Castilia (Castela). Ali queriam carregar o navio de vinho; da fui para uma cidade denominada Civilia16, onde encontrei trs navios que se estavam aparelhando para irem a um pas chamado Ro de la Plata, situado na Amrica. Esse pas, a aurfera terra chamada de Pirau17 que h poucos anos foi descoberta, e o Brasil, so tudo uma e mesma terra firme. Para conquistar aquele territrio mandaram, h anos, navios dos quais um voltara pedindo mais auxlio e contou como era rico em ouro. O comandante dos trs navios chamava-se Don Diego de Senabria e devia ser o governador, por parte d'El-Rei daquele pas. Fui a bordo de um desses navios que estavam muito bem equipados. Samos de Sevilha para Sanct Lucas18, por onde a gente de Sevilha sai para o mar, e a ficamos esperando bom vento.

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O porto e cidade de Santa Maria, na Espanha, fronteira a Cdiz, pouco acima da foz do Guadalete. A cidade de Sevilha, na Andaluzia. O Peru, descoberto em 1524 e conquistado por Pizarro. O porto de San Lucar de Barrameda, na foz do Guadalquivir.

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Captulo VINarrao da minha segunda viagem de Sevilha, em Espanha, para a Amrica

No ano de 1549, no quarto dia depois da Pscoa, fizemo-nos de vela de So Lucas com vento contrrio; pelo que aportamos em Lisboa. Quando o vento melhorou fomos at as ilhas Canrias e deitamos ncora numa ilha chamada Palama (Palma), onde embarcamos algum vinho para a viagem. Os pilotos dos navios resolveram, caso desgarrassem no mar, encontrarem-se em qualquer terra que fosse, no grau 28 ao sul da linha equinocial. De Palma, fomos at Cape-Virde (Cabo Verde), isto , a ponta verde, situada na terra dos mouros pretos. A quase naufragamos, mas continuamos a nossa derrota; o vento porm era-nos contrrio e levou-nos algumas vezes at a terra de Gene (Guin), onde tambm habitam mouros pretos. Depois chegamos a uma ilha denominada So Tom, que pertence a El-Rei de Portugal. uma ilha rica em acar, mas muito insalubre. A habitam os portugueses com muitos mouros pretos, que lhes pertencem. Tomamos gua fresca na ilha e continuamos a viagem; perdemos a de vista dois dos nossos navios, que, por causa de uma tempestade, se afastaram, de modo que ficamos ss. Os ventos eram-nos contrrios, porque naqueles mares tm eles a particularidade de soprarem do sul, quando o sol est ao norte da linha equinocial, e quando o sol est ao sul desta linha vm eles do norte, e costumam ento permanecer na mesma direo durante cinco meses, e por isso no pudemos seguir o nosso rumo durante quatro meses. Quando, porm, entrou o ms de setembro, comeou o vento a ser do norte, e ento continuamos a nossa viagem de sudoeste para Amrica.

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A caravela da esquadra de Senabria na qual se engajou Hans Staden, como artilheiro.

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Captulo VIIDe como chegamos latitude de 28 graus na terra da Amrica e no pudemos reconhecer o porto para onde amos, e uma grande tempestade se desencadeou em terra

Um dia, que era o 18 de novembro, o piloto tomou a altura do sol, que era de 28 graus, pelo que procuramos terra a Oeste. No dia 24 do mesmo ms vimos terra. Tnhamos estado seis meses no mar algumas vezes em grande perigo. Aproximando-nos da terra, no reconhecemos o porto nem os sinais que o primeiro oficial nos tinha descrito. Tambm no podamos nos arriscar a entrar num porto desconhecido, pelo que cruzamos em frente terra. Comeou a ventar muito, de tal modo que temamos ser atirados contra os rochedos, pelo que amarramos alguns barris vazios, nos quais pusemos plvora, bem jungidos, e neles amarramos as nossas armas, de forma que, se naufragssemos e alguns escapassem, teriam com que se defender em terra, porque as ondas levariam os barris para a praia. Continuamos ento a cruzar, mas debalde, porque o vento atirou-nos contra os rochedos e parcis com quatro braas de gua, e vista dos imensos vagalhes houvemos de aproar para terra, na persuaso de que todos amos perecer. Quis Deus, porm, que ao chegarmos mais perto dos escolhos se nos deparasse um porto, no qual entramos. A avistamos um pequeno barco que fugiu de ns e se escondeu por detrs de uma ilha, onde no o podamos ver, nem saber que barco era; porm no o seguimos. Deitamos aqui ncora, agradecendo a Deus que nos salvou; descansamos e enxugamos a nossa roupa. Eram mais ou menos duas horas da tarde quando deitamos ncora. De tarde, veio uma grande embarcao com selvagens, que queriam falar conosco. Nenhum de ns, porm, entendia a lngua deles. Demos-lhes algumas facas e anzis, com que voltaram. Na mesma noite veio mais uma embarcao cheia, na qual estavam dois portugueses. Estes nos perguntaram de onde vnhamos. Respondemos que vnhamos de Espanha. A isto replicaram que devamos ter um bom piloto, que pudesse nos levar ao porto, porque apesar de eles bem o conhecerem, com uma tempestade destas no poderiam ter entrado. Contamos-lhes ento tudo e como o vento e as ondas quase nos fizeram naufragar; e quando nos julgvamos perdidos, ganhamos inesperadamente o porto. Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do naufrgio; e nem sabamos onde estvamos.

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Chegada ao abrigo de Superagi, que fica do lado norte da baa de Paranagu.

Ao ouvirem isso, admiraram-se muito e agradeceram a Deus e nos disseram que o porto onde estvamos era Supraway19, e que estvamos a 18 lguas de uma ilha chamada So Vicente20, que pertencia a El-Rei de Portugal, e l moravam eles e aqueles outros que tnhamos visto no barco pequeno a fugirem por pensarem que ramos franceses. Perguntamos tambm a que distncia ficava a ilha de Santa Catarina, para onde queramos ir. Responderam que podia ser umas 30 milhas para o sul e que l havia uma tribo de selvagens chamados Carios (Carijs) e que tivssemos cautela com eles. Os selvagens do porto onde estvamos chamavam-se Tuppin Ikins (Tupiniquins) e eram seus amigos, de modo que no corriam perigo. Perguntamos mais em que latitude estava o lugar e responderam-nos que estava a 28 graus, o que era verdade. Tambm nos ensinaram como havamos de conhecer o pas.

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Hoje Superagi, numa lngua de terra parte do norte da baa de Paranagu. A ilha de So Vicente fica, em verdade, mais distante do que no-lo diz o narrador, se as suas lguas forem das de 20 ao grau. Destas contam-se 48 entre os dois pontos.

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Captulo VIIIDe como samos outra vez do porto a procurar o lugar para onde queramos ir

Quando o vento de s-sueste cessou, melhorou o tempo com o vento de nordeste. Levantamos ento ferro e rumamos para a terra j mencionada. Viajamos dois dias, procura do porto, mas no pudemos reconhec-lo. Percebemos, porm, pela terra, que j tnhamos passado o porto, uma vez que, encoberto o sol, no podamos fazer observaes, nem voltar com o vento contrrio. Mas Deus salvador nas necessidades. Ao fazermos a nossa orao vespertina, implorando a proteo de Deus, aconteceu que nuvens grossas se formassem ao sul para onde tnhamos avanado. Antes de terminada a reza, o nordeste acalmou, de modo a no ser mais perceptvel, e o vento sul, apesar de no ser a poca do ano em que ele reina, comeou a soprar, acompanhado de tantos troves e relmpagos, que ficamos amedrontados. O mar tornou-se tempestuoso, porque o vento sul, de encontro ao do norte, levantava as ondas e to escuro estava que se no podia enxergar. Os grandes relmpagos e os troves atemorizavam a tripulao, de modo que j ningum sabia o que fazer, para colher as velas. Espervamos todos perecer aquela noite. Deus, porm, fez com que o tempo mudasse e melhorasse; e voltamos para o lugar de onde tnhamos partido naquele dia, procurando de novo o porto, mas sem o conseguirmos, por causa das muitas ilhas prximas de terra firme. Como chegssemos ao grau 28, disse o capito ao piloto que entrasse por detrs de uma ilha e deitasse ncora, a fim de ver em que terra estvamos. Entramos, ento, entre duas terras, onde havia um porto excelente, deixamos a ncora ir ao fundo e deliberamos tomar o bote para melhor explorar o porto.

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Captulo IXDe como alguns dos nossos saram no bote para reconhecer o porto e acharam um crucifixo sobre uma rocha Foi no dia de Santa Catarina, no ano de 1549, que deitamos ncora, e, no mesmo dia, alguns dos nossos, bem municiados, saram no bote para explorar a baa. Comeamos a pensar que fosse um rio, que se chama rio de So Francisco, situado tambm na mesma provncia, pois que, quanto mais entrvamos, mais comprido parecia. Olhvamos de vez em quando, a ver se descobramos alguma fumaa, porm nada vimos. Finalmente, pareceu-nos ver umas cabanas e para l nos dirigimos. Eram j velhas, sem pessoa alguma dentro, pelo que continuamos at de tarde. Ento vimos uma ilha pequena na frente, para a qual nos dirigimos, a passar a noite, julgando haver ali um abrigo. Chegamos ilha, j noite; no podamos, porm, arriscar-nos a irmos terra, pelo que alguns dos nossos foram rode-la a ver se por ali havia gente; mas no descobriram ningum. Fizemos ento fogo e cortamos uma palmeira para comer o palmito, e ficamos ali durante a noite. De manh cedo, avanamos pela terra adentro. Nossa opinio era que havia ali gente, porque as cabanas eram disto um indcio. Adiantando-nos vimos ao longe, sobre uma rocha, um madeiro, que nos pareceu uma cruz e no compreendamos quem a teria posto ali. Chegamos a ela e achamos uma grande cruz de madeira, apoiada com pedras e com um pedao de fundo de barril amarrado e, neste fundo, gravadas umas letras que no podamos ler, nem adivinhar qual o navio que teria erigido esta cruz; e no sabamos se este era o porto onde devamos nos reunir. Continuamos ento rio acima e levamos o fundo do barril. Durante a viagem, um dos nossos examinou de novo a inscrio e comeou a compreend-la. Estava ali gravado em lngua espanhola SI VEHN POR VENTURA, ECKY LA ARMADA DE SU MAJESTET TIREN UHN TIRE AY AUERAN RECADO (si viene por ventura aqu la armada de su Majestad, tiren un tiro y habrn recado). Isto quer dizer: se por acaso aqui vierem navios de sua majestade, dem um tiro e tero resposta.

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A ilha e o porto de Santa Catarina, com a aldeia de Accutia (Cotia) direita e no continente; em face ilha, a cruz encontrada pelos navegantes. O momento aquele em que as canoas com selvagens acorriam ao tiro de pea disparado do bote espanhol que explorava a baa.

Voltamos ento sem demora para a cruz e disparamos um tiro de pea, continuando depois, rio acima, a nossa viagem. Pouco depois, vimos cinco canoas com selvagens, que vieram sobre ns, pelo que aprontamos as nossas armas. Chegando mais perto, vimos um homem vestido e barbado que vinha proa de uma das canoas e nos parecia cristo. Gritamos-lhe para fazer alto s outras canoas e vir com uma s a conversar conosco. Quando se nos aproximou, perguntamos-lhe em que terra estvamos; ao que nos respondeu que estvamos no porto de Schirmirein21, assim denominado pelos selvagens, e para melhor entendermos, acrescentou chamar-se Santa Catarina, nome dado pelos descobridores.

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Jurumirim, nome dado pelos Carijs, habitantes da ilha de Santa Catarina, boca do norte do canal que separa esta ilha do continente. No tupi, juru-mirim se traduz por boca pequena, baa. O navio de Senabria avistou primeiro e entrou na baa ao sul do canal entre o continente e a ilha, onde ancorou. Navegou no canal como se fora um rio, cuja corrente subira em um bote, e j prximo da baa norte que se encontrou, no porto de Jurumirim, dos Carijs, com o europeu que lhe acudira ao sinal.

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Alegrou-nos muito isto, porque este era o porto que procurvamos, sem conhecer que j nele estvamos, coincidindo ser isso no mesmo dia de Santa Catarina. Vede, pois, como Deus socorre aquele que no perigo o implora com fervor. Ento nos perguntou ele de onde vnhamos, ao que respondemos que pertencamos armada do Rei da Espanha, em caminho para o Rio da Prata, e que havia mais navios em viagem, que espervamos, com Deus, chegassem logo para nos unirmos a eles. A isto respondeu ele que estimava muito e agradecia a Deus, porque havia trs anos que tinha sado da provncia do Rio da Prata, da cidade chamada La Soncin22, pertencente aos espanhis, por ter sido mandado costa, cidade distante 300 milhas do lugar onde estvamos, para fazer com que os Carijs, que eram amigos dos espanhis, plantassem razes que se chamam mandioca e suprissem as naus que disso precisassem. Eram essas as ordens do capito que levara as ltimas novas Espanha e se chamava Salaser23 e que agora voltava com outras naus. Acompanhados ento dos selvagens at as cabanas onde ele morava, ali fomos bem tratados.

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A cidade de Assuno, no Paraguai, ento acessvel pelos portos de Santa Catarina, desde a primeira viagem de Alvaro Nuez Cabeza de Vaca, governador daquela terra. 23 Joo de Salazar, um dos companheiros de Pedro de Mendoza na fundao da cidade de Buenos Aires, em 1534.

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Captulo XComo me mandaram nossa nau grande numa canoa cheia de selvagens

Pediu ento o nosso capito ao homem, que achamos entre os selvagens, que mandasse vir uma canoa, com gente que levasse um de ns nau, para que esta tambm pudesse vir. Ordenou-me que seguisse com os selvagens at a nau, ausentes dela como estvamos j trs noites, sem que a gente de bordo soubesse que fim tnhamos levado. Quando cheguei distncia de um tiro da nau, fez-se l um grande alarido, pondo-se em guarda a maruja e no consentindo que mais perto chegssemos com a canoa. Gritaram-me, indagando o que havia acontecido, onde ficaram os outros e como que vinha eu sozinho naquela canoa cheia de selvagens. Calei-me; no respondi, porque o capito me ordenara que fingisse estar triste e observasse o que se fazia a bordo. Como lhes no respondi, diziam l entre si: "Aqui h coisa; os outros, decerto, esto mortos e estes agora vm com aquele s, para armar-nos uma cilada e tomar o navio". Queriam ento atirar contra ns, porm chamaram-me ainda uma vez. Comecei ento a me rir e lhes disse que ficassem tranqilos, pois que lhes trazia boas novas, e com isso permitiram que me aproximasse. Contei ento o que se tinha passado, o que muito os alegrou, e os selvagens voltaram sozinhos. Seguimos logo com a nau at perto das cabanas, onde fundeamos, espera das outras naus, que se tinham desgarrado por efeito da tempestade. A aldeia onde moravam os selvagens chamava-se Acuttia 24 e o homem que l achamos chamava-se Joo Fernandez Biscainho, da cidade de Bilbao. Os selvagens eram Carijs e trouxeram-nos muita caa e peixe, dando-lhes ns anzis em troca.

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do tupi Aguti ou Acoti, que hoje se diz Cotia, nome do conhecido roedor (Dasyprocta). O nome aguti ou a-cuti, no tupi, quer dizer "aquele que come de p", de referncia ao hbito do animal deste nome de tomar o alimento com as patas dianteiras, o que lhe d, quando come, a atitude ereta.

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Captulo XIIComo chegou a outra nau da nossa companhia, que se tinha desgarrado e onde vinha o primeiro piloto

Com cerca de trs semanas de espera, chegou-nos a nau em que vinha o primeiro piloto; mas a terceira nau era perdida de todo e nada mais soubemos dela. Aparelhamos, ento, para sair e fizemos proviso para seis meses, pois havia ainda cerca de 300 lguas de viagem por mar. Quando tudo estava prestes, aconteceu-nos perder a nau grande no porto, o que impediu a nossa partida. Ficamos a dois anos no meio de grandes perigos e sofrendo fome. Tnhamos que comer lagartos, ratos de campo e outros animais esquisitos, que logrvamos colher, assim como mariscos que vivem nas pedras e muitos bichos extravagantes. Os selvagens que nos davam mantimentos, s o fizeram enquanto recebiam presentes de nossa parte; fugiram depois para outros lugares e como no podamos fiar-nos neles, dissuadimo-nos de a continuar com perigo de perecer. Deliberamos, pois, que a maior parte dos nossos devia ir por terra para a provncia de Sumption25, da distante cerca de 300 milhas. Os outros iriam no navio que restava. O capito conservava alguns de ns, que iriam por gua com ele. Os que iam por terra levavam mantimentos e alguns selvagens. Muitos deles, certo, morreram de fome no serto; mas os outros chegaram ao seu destino como depois soubemos; entretanto para o resto dos nossos homens o navio era pequeno demais para navegar no mar.

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A provncia do Paraguai, cuja capital Assuno era ento o mais prspero estabelecimento dos espanhis no Rio da Prata, depois do malogro de Mendoza em Buenos Aires. O caminho por terra para Assuno continuou praticado desde a viagem que por ele fizera Alvaro Nuez Cabeza de Vaca, em 1541.

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Captulo XIIComo deliberamos ir a So Vicente, que era dos portugueses, a arranjar com eles um navio para fretar, e terminar assim a nossa viagem; porm naufragamos e no sabamos a que distncia estvamos de So Vicente

Os portugueses tm perto da terra firme uma ilha denominada So Vicente (Urbioneme26, na lngua dos selvagens). Esta ilha se acha a cerca de 70 milhas do lugar onde estvamos. Era nossa inteno irmos at l, a vermos se possvel era havermos dos portugueses um barco de frete e seguirmos at o Rio da Prata, pois o que tnhamos era pequeno demais para ns todos. A este fim, alguns dos nossos partiram com o capito Salazar para a ilha de So Vicente; mas nenhum de ns tinha l estado, exceto um de nome Ramon que se obrigou a mostrar a ilha. Samos, pois, do forte de Imbiassape27 que se acha no grau 28, ao sul do equincio, e chegamos cerca de dois dias depois da nossa partida a uma ilha chamada Alkatrases28, mais ou menos a 40 milhas do lugar de onde samos. Ali o vento se tornou contrrio e nos obrigou a ancorar. Na ilha havia muitos pssaros martimos chamados alkatrases (alcatrazes), que so fceis de apanhar. Era tempo da incubao. Desembarcamos para procurar gua potvel e encontramos cabanas velhas e cacos de panelas dos selvagens, que l tinham morado. Tambm achamos umas pequenas fontes na rocha. Ali matamos muitos daqueles pssaros e lhes levamos os ovos para bordo, onde os cozinhamos. Acabada a refeio, assaltou-nos grande tempestade do sul que nos fez recear largassem as ncoras e fosse a nau arremessada sobre os rochedos. Isto j pela tarde, e pensvamos ainda alcanar o porto chamado Caninee29. Mas anoiteceu antes de chegarmos, e no pudemos entrar. Afastamo-nos ento da terra com grande perigo, pensando a cada instante que as vagas despedaassem o navio, pois que perto da terra so elas muito maiores do que ao longe no alto mar.26 27

Urbioneme, se procedente do tupi, como diz Staden, deve ser muito provavelmente Urpineme, que outros escrevem Morpion. vocbulo tupi que significa "porto", lugar na extremidade sul do canal de Santa Catarina onde ancorou a nau de Senabria. O forte de Imbiaape (mbea-pe) deve ter sido alguma estacada para a defesa das palhoas em que, por dois anos, a se abrigou a tripulao. 28 A ilha dos Alcatrazes, a atual, fica fronteira quase ilha de So Vicente. O autor, porm, refere-se aqui a outra ilha muito mais ao sul, distante cerca de 40 milhas do porto donde partira a nau, que ficava a 28 latitude sul, e So Vicente lhe ficava a 70. Guardada a devida proporo para as milhas alems, essa ilha dos Alcatrazes pode ser algum dos ilhus na altura da baa de Paranagu. 29 o porto de Canania, em So Paulo, bastante conhecido desde os Primeiros tempos do descobrimento. Staden escreve Caninee, o que combina quase com Canen da grafia de frei Vicente do Salvador na sua Histria do Brasil, de 1627, o que faz supor que esse nome era de primitiva procedncia indgena, isto , Canineo, Canan, equivalente a "canind", nome de uma espcie de arara.

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O naufrgio no litoral de Itenge-Ehm (Itanham), vendo-se Hans Staden dando costa num destroo da embarcao. Esta xilogravura fornece-nos uma excelente idia da regio descrita no livro. esquerda, na terra firme, est Bertioga e logo a seguir, as ilhas de So Vicente e de Santo Amaro. Na primeira notam-se as vilas de So Vicente e de Santos, e na segunda, no extremo direito, a casa forte de So Felipe, e no extremo esquerdo a vila de Santo Amaro. Do lado direito da gravura est Itanham, onde se avistam, inquietos, os marinheiros salvos do naufrgio.

Durante a noite tnhamo-nos afastado tanto, que de manh j no enxergamos mais a terra. Somente muito depois, apareceu ela vista, mas a tempestade era tamanha, que pensamos no resistir. Ento aquele dos nossos que j aqui tinha estado, julgou reconhecer So Vicente, e aproamos para l. Uma grande neblina, porm, nos no deixou reconhecer bem a terra e tivemos de alijar tudo que era pesado para aliviar o navio. Estvamos com muito medo, ainda assim avanamos com o intuito de encontrar o porto onde moram portugueses, mas nos enganamos. Quando enfim a nvoa se dissipou um pouco, deixando ver a terra, disse Ramon que se lembrava de estar o porto ali nossa frente e bastava dobrar o promontrio para o alcanarmos por detrs. Seguimos ento; mas quando chegamos s vimos a morte, porque no era ali o porto, o que nos obrigou a embicar para a terra e naufragar. As ondas batiam medonhamente contra a terra, e rogamos a Deus que nos salvasse a alma, fazendo o que os marinheiros costumam quando esto em perigo de naufrgio.

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Ao chegarmos ao ponto onde as vagas arrebentavam, suspendiam-nos elas to alto como se estivssemos sobre uma muralha. Logo ao primeiro baque em terra a nau se despedaou Alguns saltavam no mar e nadavam para a costa, outros ali chegavam agarrados aos destroos do navio. Assim Deus nos ajudou a chegar vivos em terra, continuando o vento e a chuva, que quase nos enregelavam.

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Captulo XIIIComo viemos a saber em que pas de selvagens tnhamos naufragado

Chegando terra, demos graas a Deus que nos concedeu de alcanar vivos a costa, ainda que inquietos por no sabermos em que lugar estvamos, visto que o Ramon no conhecia aquela paragem, nem sabia se estvamos longe ou perto de So Vicente, ou se ali havia selvagens que nos pudessem fazer mal. Um dos companheiros, de nome Cludio, que era francs, comeou a correr pela praia para se aquecer, quando de repente reparou numas casas que ficavam por detrs do mato e que se pareciam com casas de cristos. Dirigiu-se ento para l e deu com um lugar onde moravam portugueses e se chamava Itenge-Ehm30, cerca de duas milhas distante de So Vicente. Contou-lhes ento o nosso naufrgio e o muito frio que soframos sem termos para onde ir. Quando isso ouviram vieram correndo ao nosso encontro e nos levaram para suas casas, dando-nos roupas. A permanecemos alguns dias, at ganharmos foras. Deste lugar, fomos por terra at So Vicente, onde os portugueses nos receberam bem e nos deram alimento por algum tempo. Uma vez verificada a perda das nossas naus, mandou o capito um navio portugus busca dos outros companheiros nossos que tinham ficado em Byassape31, o que se realizou.

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a barra de Itanham, grafado o nome como soara aos ouvidos do narrador, Itenge-Ehm, na costa ao sudoeste de So Vicente, onde j, nesse tempo, havia um ncleo de colonos portugueses. O nome indgena procede de ita nhaen, que significa "bacia de pedra", muito conforme com o aspecto da localidade que deveras uma bacia rodeada de pedras, das quais na mais alta est a igreja de Nossa Senhora da Conceio. 31 o mesmo porto de Imbiaape, donde sara a nau de Senabria para So Vicente. A grafia do autor muito incerta nos nomes brbaros. Byassape aqui, Imbiassape no captulo antecedente. No tupi, como vimos, nbea-pe, de que mais comumente se fez peape, significa literalmente, "no porto" ou "ao porto".

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Captulo XIVComo est situado So Vicente

So Vicente uma ilha muito prxima da terra firme e onde h dois lugares, um denominado em portugus So Vicente e na lngua dos selvagens, Orbioneme32. O outro, que dista cerca de duas lguas, chama-se Ywawasupe33, alm de algumas casas na ilha que se chamam Ingenio34, nas quais se faz acar. Os portugueses, que a moram, tm por amiga uma nao braslica de nome Tupiniquim 35, cujas terras se estendem pelo serto adentro cerca de 80 lguas e ao longo do mar umas 40 lguas. Esta nao tem inimigos para ambos os lados, para o Sul e para o Norte. Seus inimigos para o lado do Sul chamam-se Carijs e os do lado do Norte, Tupinambs. Apelidam-nos Tawaijar36 os seus contrrios, o que quer dizer inimigo. Sofrem-lhes os portugueses muitos danos e ainda hoje eles se arreceiam.

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Urpineme ou Urbioneme, como no Cap. XII. Ywawasupe parece corresponder ao vocbulo tupi Iguaguasupe (Enguaguau), isto , igu-guau-pe, que vale dizer, "no lagamar grande", querendo referir-se provavelmente ao canal ou brao grande onde se ergueu depois a cidade de Santos. 34 Ingenio por "engenho", fbrica de acar de propriedade do donatrio que depois a arrendou a Jorge Erasmo Schetzen, e se chamou, por isto, "fazenda do trato", de So Jorge dos Erasmos. 35 O gentio Tupiniquim dominava, com efeito, nessa poca, o litoral na maior parte de sua extenso, partindo ao norte com os Tupinambs do Rio de Janeiro, e ao sul com os Carijs. Desconhecida era a extenso do seu domnio no serto; o autor, porm, avalia isso em oitenta lguas aproximadamente. Nesse mbito se compreendiam os Guaianazes, quer os do campo, quer os do mato, os quais se ligavam por vezes aos Tupiniquins por laos consangneos, como no-lo transmite Anchieta. Os Guaianazes no eram, porm, tupis. 36 Tawaijar, a significar "contrrio" ou "inimigo", se escrever no tupi Tobaiguara, que vale dizer fronteiro, oposto, ou literalmente "indivduo em face". Tawaijar, tomado com Tabayar ou Tabayara quer dizer "senhor de aldeias, aldees moradores de aldeias".

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Assalto dos Tupinambs contra os Tupiniquins e portugueses. Temos aqui outra tima vista de conjunto da regio. No lagamar de Ywawasupe (Enguaguau), est uma ilha com a denominao de Brs Cubas. No litoral, em frente a esta ilha, um engenho de acar. Segue-se o canal de Brikioka (Bertioga), at o forte. Na ilha de Santo Maro (Santo Amaro), v-se a pequena vila desse nome e na ponta da Armao, em frente a Bertioga, est uma casa com a legenda: "O baluarte onde eu, Hans Staden, estava".

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Captulo XVComo se chama o lugar donde lhes vem a maior perseguio e como est situado

A cinco milhas de So Vicente h um lugar denominado Brikioka37. onde os inimigos selvagens primeiro chegam, para da seguirem por entre uma ilha chamada Santo Maro (Santo Amaro)38 e a terra firme. Para impedir este caminho aos ndios, havia uns irmos mamelucos, oriundos de pai portugus e me brasileira, todos cristos e to versados na lngua dos cristos, como na dos selvagens. O mais velho chamava-se Johan de Praga (Joo de Braga), o segundo Diego de Praga (Diogo de Braga), o terceiro Domingos de Praga (Domingos de Braga), o quarto Francisco de Praga (Francisco de Braga), o quinto Andra de Praga (Andr de Braga) e o pai chamava-se Diego de Praga (Diogo de Braga). Cerca de dois anos antes da minha vinda, os cinco irmos tinham decidido, com alguns ndios amigos, edificar uma casa forte para deter os contrrios, o que j tinham executado. A eles se ajuntaram mais alguns portugueses, seus agregados, porque era a terra boa. Os inimigos Tupinambs, logo que isso descobriram, se prepararam na sua terra, dali distante cerca de 25 milhas, e vieram uma noite com 70 canoas, e, como de seu costume, atacaram de madrugada. Os mamelucos e os portugueses correram para uma casa, que tinham feito de pau a pique e a se defenderam. Os outros selvagens fugiram para suas casas e resistiram quanto puderam. Assim morreram muitos inimigos. Mas por fim venceram estes e incendiaram o stio de Bertioga; capturaram todos os selvagens, mas aos cristos, que eram uns oito mais ou menos, e aos mamelucos nada puderam fazer porque Deus quis salv-los. Aos outros selvagens, porm, que tinham capturado, esquartejaram-nos e repartiram-nos entre si, depois do que voltaram para sua terra.

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Brikioka corruptela do nome tup