representaÇÕes da famÍlia real portuguesa na viagem ... · representaÇÕes da famÍlia real...

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1 REPRESENTAÇÕES DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA NA VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL, DE JEAN BAPTISTE DEBRET Emilia Maria Ferreira da Silva – UEFS [email protected] Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre como a Família Real Portuguesa foi representada na Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret. Pretendemos identificar, a partir de três imagens iconográficas e trechos de suas respectivas descrições textuais elaboradas pelo autor, o olhar do viajante sobre a presença da corte no Brasil e a aceitação desta pela sociedade brasileira. Acreditamos que o pintor revelar seu comprometimento com o Estado português colocando muitas das suas estampas a serviço da imagem que o império buscava divulgar e cristalizar, qual seja, a de um país civilizado. É corrente que a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret, é uma importante fonte e objeto de estudo para a produção historiográfica. Esse artigo tem como objetivo, refletir sobre representações da Família Real Portuguesa Portuguesa presentes na Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret 1 . Esta obra foi publicada pela primeira vez na França, entre 1841 e 1839, como resultado das informações coletadas de pessoas e outros autores e de observações feitas em primeira mão pelo autor, durante o período em que esteve no Brasil, de 1816 á 1831. A obra é constituída de 156 pranchas, acompanhadas de textos descritivos para que, como afirma Debret, “pena e pincel suprissem reciprocamente sua insuficiência mútua”. 2 Buscamos identificar, a partir da iconografia e das descrições textuais que acompanham as estampas, o olhar do viajante sobre a Família Real Portuguesa, não tendo a preocupação central de realizar uma verificação da fidelidade do artista em relação a um suposto real, mas de perceber essas imagens e textos prioritariamente enquanto construções discursivas 3 . O conceito de representação que utilizamos é formulado por Roger Chartier como” modos como uma determinada realidade é pensada, construída, dada a ler”. Para falarmos da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil é imprescindível considerar alguns elementos da biografia de Debret e da chegada da Missão Artística Francesa em terras brasileira, que contribuíram na elaboração da obra. Na primeira metade do século XIX configura-se na Europa o império napoleônico,que teve uma influência determinante sobre todos os setores e segmentos sociais, não ficando a produção artística de fora desse processo. Ao lado do barroco estilo 1 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet / apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil. 3ª Série especial vols. 10, 11 e 12). 2 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica..., 1989, tomo I, p. 24. 3 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel 1988, p. 23.

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1

REPRESENTAÇÕES DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA NA VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL, DE JEAN BAPTISTE DEBRET

Emilia Maria Ferreira da Silva – UEFS

[email protected] Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre como a Família Real Portuguesa foi representada na Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret. Pretendemos identificar, a partir de três imagens iconográficas e trechos de suas respectivas descrições textuais elaboradas pelo autor, o olhar do viajante sobre a presença da corte no Brasil e a aceitação desta pela sociedade brasileira. Acreditamos que o pintor revelar seu comprometimento com o Estado português colocando muitas das suas estampas a serviço da imagem que o império buscava divulgar e cristalizar, qual seja, a de um país civilizado.

É corrente que a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret, é

uma importante fonte e objeto de estudo para a produção historiográfica. Esse artigo tem

como objetivo, refletir sobre representações da Família Real Portuguesa Portuguesa

presentes na Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret1. Esta obra

foi publicada pela primeira vez na França, entre 1841 e 1839, como resultado das

informações coletadas de pessoas e outros autores e de observações feitas em primeira mão

pelo autor, durante o período em que esteve no Brasil, de 1816 á 1831. A obra é constituída

de 156 pranchas, acompanhadas de textos descritivos para que, como afirma Debret, “pena

e pincel suprissem reciprocamente sua insuficiência mútua”. 2

Buscamos identificar, a partir da iconografia e das descrições textuais que

acompanham as estampas, o olhar do viajante sobre a Família Real Portuguesa, não tendo a

preocupação central de realizar uma verificação da fidelidade do artista em relação a um

suposto real, mas de perceber essas imagens e textos prioritariamente enquanto construções

discursivas3. O conceito de representação que utilizamos é formulado por Roger Chartier

como” modos como uma determinada realidade é pensada, construída, dada a ler”.

Para falarmos da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil é imprescindível

considerar alguns elementos da biografia de Debret e da chegada da Missão Artística

Francesa em terras brasileira, que contribuíram na elaboração da obra.

Na primeira metade do século XIX configura-se na Europa o império

napoleônico,que teve uma influência determinante sobre todos os setores e segmentos

sociais, não ficando a produção artística de fora desse processo. Ao lado do barroco estilo

1 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet / apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil. 3ª Série especial vols. 10, 11 e 12). 2 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica..., 1989, tomo I, p. 24. 3 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel 1988, p. 23.

2

que predominou na Europa desde o século XVII até o final do século XVIII, foi

destacando-se progressivamente o neoclássico e consolidando-se como arte oficial francesa

quando Napoleão Bonaparte assumiu o poder no início do século XIX, expressando-se na

construção dos templos, arcos e nas encomendas, aos pintores, de quadros que registrassem

os feitos políticos e guerreiros do imperador. O estilo que se impunha primava entre outras

características, pelo predomínio da cor e do tema histórico, entendido como os feitos

políticos e guerreiros do imperador. Sugerindo ser esse o estilo que retratava a “ ética da

Revolução” como uma nova interpretação e significado, entendido como um classicismo

revolucionário. A arte segundo Arnold Hauser passa a ser concebida como uma “profissão

de fé política”,voltada para ser mais um meio de sustentação das estruturas sociais.4

É bem conhecido que, com a expansão napoleônica, ocorreu a invasão de Portugal

pelas tropas francesas, levando o monarca português D. João VI a refugiar-se na colônia

brasileira. Enquanto D. João VI permaneceu no Brasil (1808-1821) várias foram as

medidas que apontam para a tentativa de adequar a colônia aos padrões europeus5. Entre

elas, estava o incentivo e ações políticas no sentido de selecionar e contratar profissionais

capazes de fundar uma escola ou instituto teórico-prático de aprendizagem artística e

técnico-profissional, a Imperial Academia de Belas Artes, que foi fundada em 1829.6 É

nesse contexto desse esforço que chegou ao Brasil a Missão Artística Francesa composta

pelos irmãos Taunay, um paisagista e outro estatuário; Jean B.Debret, pintor de história,

Grandyean de Montigny, arquiteto; Simão de Pradier, abridor; Francisco Ovide, professor

de mecânica; Joaquim Lebreton, literato e membro do Instituto da França dentre outros, no

total cerca de quarenta pessoas considerando as famílias que acompanhavam os

profissionais7.

Com a derrota de Napoleão em 1815 e a volta ao poder dos Bourbons, a situação

dos artistas neoclássicos ligados ao ex-imperador ficou extremamente ameaçada. David

exila-se na Bélgica, um exílio de acordo com Naves inevitável uma vez que “ ... participara

ativamente da revolução, tendo inclusive votado a execução de Luís XVI...”8; Debret,

Grandjean de Montigny e outros, a convite de Joaquim Lebreton, aceitam compor a Missão

Artística Francesa. Além da insegurança de permanecer na França após a queda de 4 HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, tomo II, 1980-1982, p. 796-797. 5 SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A fundação de uma Europa possível. In: Anais do Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio de Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000. 6 TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983, p. 256. 7 SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Sol do Brasil: Nicolas-AntoineTaunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.197. 8 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática ,1996, p. 58.

3

Napoleão, a morte o único filho de Debret teria sido a outra grande razão da sua saída do

país.

É importante situar ainda que brevemente, os fatores que favoreceram às origens e a

vinda da Missão. Com base no estudo de Naves, sua organização oi resultante de uma

combinação de fatores, sendo a princípio iniciativa dos artistas franceses isolados no novo

governo, e contando posteriormente com a aceitação das autoridades portuguesas. Embora

o governo português no Brasil tenha demonstrado todo interesse em “acolher” os viajantes,

até a “a paz européia de 1815”, com a derrota de Napoleão foi desenvolvida, através da

Intendência Geral da Polícia, uma política rigorosa de intolerância em relação à literatura

francesa e aos franceses, para impedir a penetração, em terras brasileiras, os princípios do

século das luzes.9 Segundo Taunay, o Marquês de Marialva, embaixador extraordinário de

Portugal junto à Corte de Luís XVIII e Estreiro-mor, ao ser comunicado por Lebreton, em

agosto de 1815, que artistas desejavam estabelecer-se no Brasil, respondeu que “... seriam

todos bem acolhidos; e alcançariam terras de sesmarias. Não estava, porém, autorizado a

lhes pagar a passagem...”10 Ainda segundo esse autor, em ofício datado de 27 de dezembro

de 1815, o Marquês de Aguiar, encarregado de negócios, respondeu a Lebreton sobre o

projeto que “ S.A.R. o príncipe regente viu o projeto referente aos artistas e artífices com

especial agrado”11.

Quanto ao governo francês, Taunay aponta que o governo de Luís XVIII não se

envolveu no caso. Entretanto, segundo esse autor, o Cônsul-Geral Maler, representante da

França no Brasil, teria perseguido Lebreton sem tréguas, oficiando ao Duque de Richelieu

a chegada da Missão e suas impressões sobre a recepção por parte do governo português.

Em resposta a um dos ofícios enviados por Maler respondeu Richelieu, ministro de

Estrangeiros da Restauração: “... durante a sua estada no Rio, deveis, Sr., considerá-los

como franceses e conceder-lhes toda a assistência a que tem direito qualquer súdito de sua

Majestade...”12. Debret afirma que a missão foi organizada por solicitação do governo

português, não se referindo em nenhum momento à situação política da França13.

9 Sobre a ingerência do governo de D. João VI na entrada de estrangeiros ver, entre outros estudos, NEVES, Lúcia Maria Bastos P. “O privado e o público nas relações culturais do Brasil com a França e Espanha no governo Joanino ( 1808-1821) .IN: Anais do Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio de Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000, p. 189-200. 10 TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983, p.14. 11 TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística ..., 1983, p.17 12 TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística ..., 1983, p. 21-27. 13 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica...,1989, tomo I, p. 23.

4

Antes de apresentarmos três representações iconográficas e trechos textuais sobre a

Família Real Portuguesa14, elaboradas por Debret, consideramos relevante pontuar alguns

aspectos da sua biografia que sugerem seu comprometimento artístico político. Filho de

um escrivão do parlamento francês e primo de David, o famoso chefe da escola

neoclássica, Debret sempre esteve ligado ao Estado Francês, não só em decorrência de sua

filiação, mas sobretudo devido a sua formação artística, que lhe proporcionava realizar

trabalhos voltados a homenagear a nação e a corte francesa, considerados por Rodrigo

Naves, de excelente qualidade para o estilo da época.15

É lícita a afirmativa de Iara Lis Carvalho, de que Debret bem sabia que a arte

poderia enobrecer a política. Afinal, ele tinha trabalhado e convivido com David na

produção de quadros históricos do império napoleônico, sem contar que um de seus

melhores amigos, Nicolas Antoine Taunay, produziu cinqüenta quadros napoleônicos e

revolucionários16.

Quando a Missão Artística chegou ao Brasil, ficou estabelecido por decreto real que

os membros receberiam pensão anual pelos serviços prestados, sendo a de Debret de

oitocentos mil réis, que correspondiam a cinco mil francos pelo câmbio da época. Ou seja,

equivalia a aproximadamente o preço de uma pipa de aguardente (62$000réis) principal

mercadoria para escambo; ou ainda metade do valor de uma mulher escrava com ofício em

Salvador, no período de 1811 a 1830 (145$110 réis).17

Como já afirmamos, enquanto esteve na França Debret passou boa parte de sua vida

fazendo trabalhos sob encomenda para o governo napoleônico. No Brasil, Debret

continuou a ser um pintor ligado ao governo. Sua principal meta, sua “missão” era fundar a

Academia, considerada como importante meio de civilizar um povo considerado pelo o

autor “... ainda na infância”.18

A própria organização da obra aponta para uma visão evolucionista e eurocentrica

de Debret, assim como para a divulgação e defesa do Estado, quando afirma na introdução

do tomo III que após ter descrito no tomo I a situação dos índios brasileiros e no tomo II

14 Como já afirmamos anteriormente a obra é composta de aproximadamente 156 pranchas. No tomo III, composto basicamente de 53 estampas de natureza política e religiosa., 25 destas são de caráter político, ou seja, 43% do total. 15 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática ,1996, p.47. 16 SOUZA, IARA Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo:Fundação Editora da UNESP,1999, p.56. 17 FLORENTINO, Manolo . Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,p.125-169. ANDRANDE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo: Corrupio, Brasília, DF: CNPQ, 1988,p. 175. 18 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo I, p.24.

5

“... detalhes mais raros e quase ignorados da atividade do povo civilizado do Brasil, sujeito

ao jugo português...”19; se ocupará finalmente da

... história política e religiosa sujeita ao reflexo das combinações diplomáticas da Europa, continuamente agitada desde 89, constitui um quadro interessante, rico de episódios colhidos in loco e cujo encadeamento contribuirá para estabelecer os traços já quase apagados dos primeiros passos que trouxeram à civilização esse povo recém-regenerado20.

Curioso que a reflexão de Debret a respeito da regeneração do povo constitui-se em

um paradoxo se pensarmos na França pós Napoleão, com o retorno dos Bourbons e como

já apontamos a complicada e perigosa situação dos artistas neoclássicos. Para ele com a

sua chegada o rei de Portugal

... acordou o brasileiro depois de três séculos de apatia, quando fugindo da Europa, veio erguer seu trono à sombra tranqüila das palmeiras, embora abandonasse mais tarde essa obra de regeneração, inspirada pela necessidade. Mas a civilização germinara, e o Brasil, compreendendo seu futuro, conservou o filho primogênito do inconstante protetor, transformando-o em imperador independente cuja autoridade soberana anulou definitivamente as pretensões de Portugal sobre as antigas colônias da América...21

É possível perceber um Debret redefinindo e reelaborando o estilo e a “profissão”,

“pintor de história” para a nova realidade. Como observa Carelli, “É indubitável que o

choque da nova realidade transfigurou a produção de Debret...”.22 De acordo com Naves, “

Jean Baptiste Debret foi o primeiro pintor estrangeiro a se dar conta do que havia de

postiço e enganoso em simplesmente aplicar um sistema formal preestabelecido – o

neoclassicismo, por exemplo- à realidade brasileira23.

Além da pensão paga pelo governo outro meio de sobrevivência de Debret foram as

encomendas e aulas particulares e principalmente os trabalhos que fez sob encomenda para

a família real portuguesa. Como o “Retrato do Rei D. João VI e do Imperador Dom Pedro

I” (Prancha 9), em tamanho natural e em trajes majestáticos.

19 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p. 13 20 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p. 13 21 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p. 13. 22 CARELLI, M. Culturas Cruzadas: intercâmbios entre França e Brasil. Tradução Nicia Adan Bonatti. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. 23 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil:.., 1996, p.44.

6

Prancha 9: “Retrato do Rei Dom João VI e do Imperador Dom Pedro I”, Viagem Pitoresca e Histórica, tomo III.

É interessante algumas trechos da descrição da prancha, primeiro referindo à Dom

João VI e depois à D. Pedro I onde a descrição das características físicas dos soberanos

quase que remetem às suas prováveis competências como governantes.Não devemos nos

esquecer que o que foi encomendado foram os quadros e não as descrições dos mesmos. O

que efetivamente, o que é mais curioso ainda, só foi feito em solo francês.

Esse soberano só usou o seu uniforme real de gala no dia da aclamação, ainda assim sem a coroa, em virtude do costume estabelecido desde a morte do Rei Dom Sebastião, na África, em 1580. Dom Sebastião,dizem, foi levado ao céu com a coroa à cabeça e deve trazê-la novamente a Lisboa. O rei, bom cavaleiro na mocidade, tornando-se obeso o no Brasil, abandonou a equitação. Era de temperamento sanguíneo e de pequena estatura; tinha as coxas e as pernas extremamente gordas e as mãos e os pés muitos pequenos. 24

Quanto a D. Pedro Debret afirma que:

24 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p.152.

7

O imperador usava seu grande uniforme anualmente na abertura das Câmaras, e, de acordo com o cerimonial adotado, pronunciava seus discursos com a coroa na cabeça; tanto na entrada como na saída comportavam certo aparato. Criou a Ordem do Cruzeiro no dia da sua coroação; mais tarde, a do Dragão, unicamente usada por sua família, e, por ocasião de seu segundo casamento, a da Rosa, que mal teve tempo de ser posta em vigor. Dom Pedro I, forte e de grande estatura, era de um temperamento bilioso e sanguíneo; já em fins de sua estada no Brasil começava a engordar excessivamente, principalmente nas coxas e nas pernas, espécie de deformidade comum aos descendentes da família da casa de Bragança. Mas, sempre espartilhado com arte, era de aparência nobre e extraordinariamente asseado.

(...) Deu o exemplo das privações durante a sua regência e no começo de seu reinado, tempo difíceis em que revelou todas a s qualidades dignas de um soberano regenerador, conservando todavia uma paixão marcada pelo fausto exterior do trono.... 25

Um outro quadro sob encomenda da corte que escolhemos para este trabalho é a

‘Aclamação do Rei Dom João VI’ (Prancha 37) , representando a união das províncias do

Brasil ao reino Portugal.

Prancha 37: “Aclamação do Rei Dom João VI”, Viagem Pitoresca e Histórica, tomo III.

25DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p. 153.

8

Na descrição de Debret e na representação iconográfica é possível perceber que o

autor destina o espaço privado prioritariamente para a elite, nobreza e o clero (grupos

sociais dominantes na sociedade da época) como o lugar adequado para que estes grupos

manifestassem o apoio e reconhecimento ao novo soberano e a nova condição da então

colônia.

Escolhi o momento em que o primeiro-ministro terminou a leitura do voto formulado pelas províncias do Brasil, chamando ao trono do novo reino unido o príncipe regente de Portugal. O rei acaba de responder: “Aceito”, e o entusiasmo geral dos espectadores se manifesta pela aclamação “Viva el-rei, nosso senhor” e o gesto português de agitar o lenço.(...) Tal foi a cerimônia que consagrou a resolução real transportando para o Brasil a sede da realeza portuguesa...26

E na tentativa de salvar do esquecimento feito tão solene, Debret representou a

possível aceitação dos “brasileiros”, do “povo” ao novo rei e a nova condição do Brasil, no

espaço público através da prancha “Vista do Largo do Palácio no dia da aclamação de

Dom João VI” (Prancha 38).

26 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p.231.

9

Prancha 38: “Vista do Largo do Palácio no dia da aclamação de Dom João VI”, Viagem Pitoresca e Histórica, tomo III.

O momento escolhido é do da partida do rei, em que aparece ao balcão central do edifício para mostrar-se ao povo e receber as primeiras homenagens, antes de descer para a Capela Real a fim de assistir ao Te Deum com que termina a cerimônia da aclamação...27

Ao retratar tanto representações do espaço privado quanto do espaço público da

aclamação do novo rei, simbolicamente Debret sugere portanto, a aceitação e exaltação da

sociedade civil, política e religiosa à casa dos Braganças. É relevante ressaltar que esses

quadros encomendados pela família real, funcionavam como divulgadores da imagem que

o império queira imortalizar ou

cristalizar 28.

Para finalizar gostaríamos de destacar que já é corrente a utilização dos relatos de

viagens enquanto fonte. E como todo e qualquer fonte muito ainda se tem a investigar nas

obras dos viajantes e em especial na Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean B.

Debret. Diversos aspectos da sociedade brasileira do período foram contemplados pelo

autor: festa, hábitos alimentares, religião, vestuário, atividades econômicas, entre outras.

Referências bibliográficas:

ANDRANDE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo: Corrupio, Brasília, DF: CNPQ, 1988. CARELLI, M. Culturas Cruzadas: intercâmbios entre França e Brasil. Tradução Nicia Adan Bonatti. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel 1988. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução e notas de Sérgio Millet. Apresentação de Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia

27 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil...., 1989, tomo III, p. 232 28 A respeito da construção da imagem do império são importantes, entre outros estudos, SCHWRACZ, Lilia Mortiz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca no trópicos.São Paulo: Companhia das Letras,1999; MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio. Civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e SANTOS, Afonso Carlos Marques dos Santos. “A fundação de uma Europa possível” In: Anais Seminário Internacional D.João VI: Um rei na América. Rio de Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000, p.189-200.

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Limitada; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil. 3ª Série especial vols. 10, 11 e 12). FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da arte. São Paulo: Editora Mestre Jou, tomo II, 1980-1982. MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio. Civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática ,1996. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. O privado e o público nas relações culturais do Brasil com a França e Espanha no governo Joanino (1808-1821). Em: Anais do Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio de Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000, p. 189-200. SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A fundação de uma Europa possível. Em: Anais do Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio de Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000. SANTOS, Afonso Carlos Marques dos Santos. A fundação de uma Europa possível. Em: Anais Seminário Internacional D. João VI: Um rei na América. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000, p.189-200. SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Sol do Brasil: Nicolas-AntoineTaunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SCHWRACZ, Lilia Mortiz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca no trópicos.São Paulo: Companhia das Letras,1999. SOUZA, IARA Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo:Fundação Editora da UNESP,1999. TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983