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1 VIAGEM AO CANADÁ Sonia Rodrigues

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romance baseado em uma viagem a oCanadá

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VIAGEM AO CANADÁ

Sonia Rodrigues

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PARTE I

O SALMÃO RETORNA À SUA ORIGEM

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O CHAMADO DO CORVO.

O sol nascia no leste e a brisa matinal soprava sobre o oceano quando Pai e Mãe remavam em seu bote. Ambos estavam profundamente concentrados em seus pensamentos enquanto deslizavam sobre a água silenciosa. Não se ouvia palavra. Distante, distinguia-se uma pequena e rochosa ilha com árvores esturricadas e retorcidas. No topo de uma árvore havia um ninho e enquanto o bote rumava para a ilha podiam perceber o corvo no ninho olhando para eles. O corvo perguntou: - Para onde vocês estão indo? Pai apontou e disse: - Estamos indo na direção do estreito entre esta ilha e a ilha onde está o seu ninho. Vamos pescar salmão. O corvo voou e pousou no bote, dizendo: - Não é isto o que eu quis dizer quando perguntei aonde vocês estão indo. Eu quero dizer aonde vocês estão indo em sua vida? Pai pensou por poucos minutos e respondeu: - Realmente não sei. Nós sempre tentamos encontrar comida para nossa família e ensinar para nossas crianças as lições que temos aprendido. Mãe acrescentou: - Utilizamos todo o nosso tempo apenas cuidando um do outro. O corvo disse: - Parece-me que vocês sabem aonde estão indo. O destino de vocês é o resultado das decisões que vocês tomaram em suas vidas. Vocês decidiram que a família é importante para vocês. Eu sei que, não importa o que aconteça, vocês estarão contentes com o desfecho porque vocês aprenderam a tomar decisões baseados no que é realmente importante em suas vidas, que é dedicar-se aos outros. O corvo sorriu, abriu as asas e retornou para cuidar dos filhotes em seu ninho. Mãe disse a Pai:

- O corvo está certo. Sabemos onde queremos ir e nos sentimos bem em saber que estamos na direção certa. (*) Era impressionante a gravura do corvo estampado no livro de estórias da Costa Oeste. Márcia olhava, olhava e não conseguia parar de olhar o altivo corvo voando sobre o oceano, em traços nítidos, harmoniosos e fascinantes. Afinal, embora nascida no Brasil, ela era filha de canadense e o apelo ancestral a convidava a ir em busca de algo de que ela nem sequer suspeitava. Felizes Pai e Mãe, sabiam que procuravam um bom lugar para pescar o salmão. Decidiu-se. Iria ao Canadá.

Nota do autor:(*)Robert James Challenger é um autor canadense amante da vida selvagem e

admirador da cultura das Primeiras Nações da Costa do Pacífico. Ao escrever suas estórias, ele não imaginava que efeitos elas teriam em uma garota nascida e crescida abaixo do Equador.

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COMO UMA FOLHA AO VENTO

Quando uma pessoa compreende que está neste planeta por sua conta e risco, isto significa que se tornou adulta. As crianças supõem que os adultos sentem-se felizes por serem donos de seu próprio nariz, mas nem sempre é assim. No caso de Márcia, saber-se responsável e livre era sentir-se como uma folha ao vento e desejar a segurança de estar presa ao galho.

Márcia completara dezoito anos, recebera o diploma de segundo grau e perdera os pais em um acidente de trânsito. Mudanças demais para um único mês. Deixara-se ficar na cama a dormir por semanas, perdera o exame vestibular, passara pelo processo de inventário como uma sonâmbula e uma bela manhã resolveu finalmente arrumar a casa.

Entre os guardados do pai, encontrou a foto dos Barrington Foote. Foi então que lembrou-se da família canadense, do irmão que o pai não via há décadas, com quem trocava cartões de Natal e telefonemas de aniversário, Márcia resolveu reatar os laços familiares e contatou os tios. Estes a incentivaram a viajar. Assim, ela vendeu o carro do pai, aplicou o dinheiro excedente e comprou a passagem. Uma tia ficaria cuidando do apartamento e dos encargos financeiros em sua ausência. O único problema era o medo de avião. Mas a vontade que Márcia tinha de conhecer as montanhas era maior que o seu medo de voar. Assim, ela tomou uns florais e arriscou. Foi só comprar a passagem que a euforia inicial transformou-se em pânico. Márcia sonhava com desastres aéreos e toda sorte de catástrofes. Pensamentos negativos a assaltavam durante o dia: ser barrada na imigração, perder-se no aeroporto e toda a sorte de contratempos possíveis. Sentia-se culpada por estar gastando tanto dinheiro em uma viagem e acordava com o peito opresso, lembrando-se de que era apenas uma garota sem profissão e sem emprego. - Bem, eu mereço. – disse ela com convicção para o seu reflexo no espelho – Eu mereço. Eu mereço. Eu mereço. Sou independente, sem compromissos, tenho a oportunidade nas mãos e eu quero. Quando subiu a bordo, em um avião da Air Canadá, Márcia estava confortavelmente excitada e voar foi quase um prazer. O impressionante silêncio que adivinhava nas nuvens lá fora era tranqüilizador. Quando o avião sobrevoou as Rochosas estava a 5000 pés de altitude. Mal se avistavam por entre as nuvens os picos nevados brilhando ao sol. Era um espetáculo grandioso, magnífico, de tirar o fôlego. Márcia pensava nos novos horizontes que a esperavam quando o avião começou a perder altitude. Aproximava-se de Vancouver. O alto falante de bordo, que antes aconselhara aos passageiros ‘metam os

auscultadores nas orelhas’, agora anunciava que iam recolher os auscultadores, em um

português bastante lusitano que fazia Márcia sorrir e responder ao aeromoço em inglês. Devido ao fuso horário diferente, Márcia acabara por comer três cafés da manhã em quinze horas e nenhuma refeição de sal. Verdade que haviam servido omeletes e presunto no desjejum, mas tudo estava muito gorduroso e pouco temperado para o paladar tropical. Da janela do avião, Vancouver aparecia como uma cidade espalhada, com dedos de água infiltrando-se por imensas ilhas urbanizadas. Os diversos setores da cidade eram interligados por pontes longas e distantes umas das outras.

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Enquanto o avião taxiava, Márcia conferia seus pertences e arrumava os cabelos. Saíra de casa há quase vinte quatro horas e estava curiosa e faminta.

Pela primeira vez, sentiu satisfação em sua total e irrestrita liberdade. Sentia que tomaria as decisões corretas.

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OS BARRINGTON FOOTE Ao desembarcar no aeroporto, Márcia telefonou para os tios. Em seguida, empurrando o carrinho de malas, circulou pelo aeroporto. Primeiro parou em uma backerie para comer. Um chocolate quente e dois donuts, um coberto com chocolate e outro com maple (xarope de bordo) aqueceram-na agradavelmente. O chocolate era forte e encorpado, e, embora escuro, não tinha gosto amargo. O maple derretia na boca. Depois Márcia examinou as lojas, com tantos artigos lindos que ela sentiu vontade de levar todas aquelas coisas bonitas para casa. Eram casacos estampados com motivos indígenas, bolsas de couro macio, chocolates tentadores, caixinhas de madeira, quadros e artigos de decoração maravihosos, tapetes e cobertores quentes e aconchegantes, livros os mais interessantes sobre turismo e natureza, pedras, jóias, brinquedos. Márcia teve de comprar um alce de pelúcia, macio, de cor dourada. Um pobre substituto para seu cachorro. Sentiu-se um pouquinho infantil ao carregar seu alce pelo aeroporto, mas repetiu convicta: quer saber? O dinheiro é meu e eu mereço. ‘Eu mereço’ tornara-se sua frase mantra. Em trinta minutos Márcia localizou o portão externo do terminal 2 e logo viu a plaquinha com os dizeres: Welcome, Márcia. Foi fácil reconhecer os canadenses que se dirigiam para ela, apesar de só ter visto sua fotografia. Tio Ralph, tia Anne e a prima Bridgit eram roliços, corados e grandes. Sua aparência era de saúde e alegria. Sorriram com simpatia para ela e perguntaram, sem tocá-la, se fizera boa viagem. Márcia estendeu a mão para o tio, que hesitou antes de estender a sua, parecendo surpreso com o gesto da sobrinha. Márcia refreoou o impulso de abraçar a tia e a prima, pois percebeu que elas não esperavam por isto. A tia comentou que ela estava com sorte, pois chegara em um dia ensolarado e quente. Tio Ralph colocou suas malas no bagageiro do carro grande e confortável. Enquanto rumavam para casa, ele ia mostrando a cidade, citando o nome das pontes, dos prédios, localizando os parques, os museus e os principais centros de compras. - Vamos parar no Canadá Place, pai – sugeriu Bridgit. O Canadá Place era um hotel, o mais luxuosos de Vancouver. Tinha a forma de um barco e nele funcionava um cinema em 3D, o Omnimax. Bridgit fez questão de mostrar para Márcia os cartazes dos filmes em exibição e sugeriu que viessem juntas assistir ao documentário sobre o Grand Canyon. Ancorado ao lado do hotel, que era construído meio sobre as águas, estava um barco que fazia cruzeiros para o Alasca. Muitas pessoas com roupas elegantes estavam embarcando, pois o navio iria sair dali a algumas horas. Do outro lado, havia um outro navio, que servia de restaurante para os que quisessem ter a sensação de estar jantando em um cruzeiro sem o desconforto de estar em alto-mar. Um luxo! Do Canadá Place para a esquerda, estendia-se uma marina. Caminharam um pouco por ali. A tia mostrou uma ponta de terra densamente arborizada que se estendia mar adentro: - Este é o Stanley Park, nós viremos aqui com você amanhã – disse ela. – Visitaremos o Aquário de Vancouver. - Eu trouxe a minha filmadora – disse Márcia – vou filmar o show das baleias.

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Pois é claro que, antes de viajar, Márcia lera o que pudera encontrar na Internet sobre o país e suas atrações. O pai pouco falava sobre sua terra, há tantos anos no Brasil sem nunca retornar que com certeza já nem reconheceria mais a própria pátria. - A cidade é realmente nova – explicou Anne – a maioria dos prédios não tem cinqüenta anos – A região só começou a se desenvolver há pouco tempo, com o turismo e a industrialização do salmão. Saindo do centro, o tio pegou a ponte em direção a North Vancouver, onde moravam. Seguiram em direção às montanhas, imensas e majestosas montanhas que deixavam no chinelo a Serrinha do Mar ao longo da costa brasileira. Aí as casas não tinham muro, as calçadas eram gramados e as ruas tortuosas serpenteavam por entre pinheiros de vinte metros de altura, carvalhos e cedros. Márcia tinha a impressão de estar em uma floresta. - Você está em uma floresta, de certa forma – explicou Anne – quando eu era menina, além de minha casa e meia dúzia de outras, só havia mesmo a floresta. Os esquilos continuam por aqui, você irá ver alguns pelo quintal, mas os ursos já se foram. As pessoas preservaram as altas árvores e procuramos manter o verde. Pela lei, toda casa deve ter um recuo de 5 metros atrás e na frente, de área verde, onde não é permitido construir. O resultado era um bairro fresco, com muito ar puro e sombra. Muitas casas decoravam seus jardins com flores em canteiros, gelosias ou vasos pendurados por toda parte. Bebedouros de beija-flores e chafarizes também eram comuns. Ao chegarem, tio Ralph foi mostrar a Márcia o seu espaço e a tia foi para a cozinha com Bridgit. Márcia não podia acreditar no tamanho da casa. Teria um quarto, uma saleta, uma minicozinha e um banheiro privativo só para ela. No banheiro havia de tudo, até lenço de papel, secador de cabelo e antisséptico para as mãos. Se Márcia houvesse se esquecido de alguma coisa em sua nécessaire, poderia usar o dos tios.

Tratou de tomar um banho, trocar de roupa e foi em procura da tia. - Café? Márcia olhou para a imensa xícara que a tia lhe estendia. Uma água clara, mais

parecida com chá, fumegava. A tia lhe estendeu um potinho com leite gelado. Márcia reparou que a tia colocara um dedalzinho do leite gelado em sua própria xícara e um cubinho de açúcar. Márcia a imitou. O gosto do café era fraco e o leite gelado não melhorava o paladar.

- Vocês tomam muito café no Brasil, não? Márcia explicou que os brasileiros tomam café muito concentrado em xícaras

bem pequeninas e a tia respondeu, rindo: - Quando eu for ao Brasil, terei de tomar cinco xicrinhas de cada vez. Márcia sorriu. Imaginou a tia em frente ao balcão de uma cafeteria em frente a

cinco xícaras de café, pedindo água e reclamando do forte sabor concentrado. - As minhas refeições ficaram todas trocadas por causa do fuso horário –

comentou Márcia – que horas são? Não acertei o relógio no avião. Eram duas da tarde, e isso queria dizer que Márcia perdera o almoço. A tia

gentilmente propôs que ela comesse uma refeição de sal. Esquentou frango e arroz, serviu uma deliciosa salada grega e frutas. Márcia atacou a comida com vontade, embora tudo estivesse com pouco tempero. Finalmente alimentada e limpa; a vida parecia novamente em seu eixo.

- Quer conhecer a ponte Capilano? É aqui pertinho, a gente pode ir a pé – convidou Bridgit.

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- Aquela do filme de Indiana Jones? Quero. – esse era um dos passeios que Márcia classificara como imperdíveis.- Assim que acabar de lavar a louça.

Tia Anne dispensou as duas com um gesto, rindo: - Esqueça. A maquina lava a louça sozinha. Assim Márcia e Bridgit seguiram para o parque Capilano. Bridgit falava muito

rápido, Márcia suspeitava que ela o fazia de propósito, mas Márcia aprendera inglês com o pai e falava fluentemente, de maneira que Bridgit logo se cansou de tentar bancar a mais sabida e resolveu que a prima merecia sua amizade.

- Ei, você tem namorado? - Não no momento, e você? - Eu ? Bem, eu vou apresentar a você alguns gatinhos... quer?

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O PARQUE CAPILANO

De como o corvo, malandro, deu luz ao mundo. Antes que existisse a luz, o mundo era negro como a noite. Um chefe egoísta roubara a luz e a fechara em uma bola, que colocara dentro de uma caixa escondida em sua cabana. Um belo corvo branco, cansado de passar o tempo tremendo de frio, resolveu apoderar-se da luz para si mesmo. Bateu à porta do chefe e escondeu-se. Quando o chefe saiu para procurar quem batera, o corvo deslizou sorrateiramente para dentro da cabana, agarrou a caixa em seu bico e voou para fora através do buraco de fumaça. Ora, ao passar pela fumaça, suas penas ficaram cobertas de fuligem e é por isso que os corvos se tornaram pássaros pretos. A caixa caiu acidentalmente e o seu conteúdo partiu-se em milhares de pedaços que se espalharam pelos céus. O maior pedaço formou o sol, outro a lua e os menores formaram as estrelas. E porque o corvo deu ao mundo o calor e a luz, as primeiras nações o veneram. Esta é uma das histórias contadas em um dos totem poles do Parque Capilano.

O parque tem este nome por causa de um chefe squamish conhecido como Kiapalana. Outro dos totens representa as próximas gerações, o Next Generation Pole. Este é um pau que homenageia as gerações de escultores do passado, do presente e do futuro. Os três escultores no alto influenciam as seis crianças da base, que representam as futuras gerações de escultores. - Que estória é esta de pau que homenagem? Bridgit explicou: - Totem não é palavra nativa, é um termo vindo de fora. As primeiras nações dizem pole, ou pau. Existem três tipos de paus, ou totens: os tradicionais, para os dias de festa, contam as estórias das tribos, como esta do corvo que roubou a luz. Outros tipos de totens são colocados à frente das casas e outros são feitos para homenagear os mortos.

Estavam na entrada do parque. Havia fotos dos pioneiros que se estabeleceram por ali, estudando a flora, cultivando os primeiros jardins, estabelecendo contato com as primeiras nações e construindo a primeira ponte, em 1889. Mais tarde, esta ponte seria substituída pela atual, de cabo de aço. Moças e rapazes vestidos de pioneiros contavam a história do parque e convidavam para um espetáculo musical, com músicas de época, mais adiante em horários determinados. Claro que Márcia quis assistir, pois apreciava música folclórica e o grupo, além de bonito, era realmente afinado. Havia uma estátua da avó do chefe Kapilano, Mary Kapilano, que pescou naquele rio por oitenta e sete anos em sua canoa de varal. Uma réplica de uma canoa de varal estava exposta, pintado com motivos indígenas coloridos imitando animais.As tintas eram extraídas de frutas silvestres, carvão e conchas. As canoas eram chamadas de varal porque tinham duas longas varas colocadas à sua frente. Estas varas batiam nos obstáculos e pedras nos rios antes que a canoa pudesse ser atingida e danificada por

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eles. Um prático sistema de proteção. Algumas destas canoas eram grandes o bastante para carregar até quarenta pessoas. O ponto alto do passeio, é claro, foi atravessar e correr pela ponte suspensa sob um desfiladeiro belíssimo. O rio Capilano era um filete prateado serpenteando por pilhas de seixos brancos e roliços, aprisionado entre encostas de altos pinheiros e cedros rosas. A ponte balançava para valer, mas Márcia não sentiu medo. A ponte parecia ser mesmo muito segura. Era como estar em um cenário de filme. Aliás, a ponte fora utilizada em um dos filmes de aventuras de Indiana Jones. À direita da ponte, ao lado da inevitável lojinha de lembranças, estava a Little Big House. Nesta oficina, os artesãos trabalhavam a madeira para deleite dos turistas. Escavavam canoas e poles, pintavam ornamentos de parede e miniaturas diversas que depois seriam postas à venda. O interessante de comprar lembranças ali é que a pessoa podia ver enquanto eram feitas por um artesão nativo. Os jardins da pioneira Elizabeth estavam floridos com muitas espécies de flores, e a praça dos totempoles era impressionante. Márcia comentou: - Que estranho, há tipos muito diferentes de poles por aqui, nem parecem serem todos do mesmo lugar. - E não são mesmo – explicou Bridgit – Em 1930 o proprietário do parque, Mac MacEachran, convidou Joe Capilano a colocar alguns poles no parque. O chefe então reuniu uma coleção de totempoles de diversas tribos para exibição permanente no parque. Creio que é uma das coleções mais bonitas de Vancouver, melhor até que a do Stanley Park. - E o que mais você está lendo aí neste livreto? – pois Bridgit, assim como a prima, pegara vários folhetos turísticos à entrada. - Por favor, eu sei muitas coisas que não estão nos folhetos, afinal, nasci aqui, você se lembra? – e a prima continuou – Você pode identificar a origem dos poles pelas cores. As tribos do norte usam o preto e o vermelho; as do sul fazem os poles coloridos. As cores e os bichos representados mostram de quais famílias, ou nações, descendem os escultores, porque estes obedecem ainda ao estilo próprio de sua tribo de origem. Os Haída, de que você vai ouvir falar bastante, não pintavam seus poles. Suas figuras tem olhos circulares olhando fixo para frente, olhos com pupilas e contorno externo em cima e embaixo; muitas vezes estão mostrando a língua. Como eles usam o cedro amarelo ou rosa, suas esculturas ficam com uma cor final muito bonita. ‘Estes que colocam no topo o Thunderbird, este pássaro de asas abertas, são

Kwakiuti. Usam cores brilhantes para realçar seus desenhos e acrescentam peças ao pau original para representar bicos, asas e os raios do sol. O pássaro que mais aparece nas esculturas dos Tsimshiai é o pica-pau. Eles tem o costume de representar as figuras humanas pequeninas espremidas entre dois animais. Cada povo tinha lá sua forma particular de representar suas tradições e contar suas histórias. Estes povos tinham suas culturas baseadas na abundância. Na costa ao norte do Pacífico havia salmões migrando rio acima, florestas com árvores imensas e fontes de água cristalina. Havia muito tempo para o lazer e por isso desenvolveu-se uma cultura rica e vibrante; as pessoas inventavam ferramentas , refinavam suas técnicas artísticas e passavam seu conhecimento adiante. Os artistas preferiam como madeira, o cedro, mas também esculpiam em pedras. Os estudiosos afirmam que os povos da costa oeste estão escavando madeira desde 5000 aC.’ - Tudo isto? Impressionante! – exclamou Márcia – e quanto às lendas representadas nos poles?

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- Está vendo este aqui? Representa uma lenda que tem muitas versões diferentes, a lenda dos mosquitos e dos canibais. Há muito tempo atrás havia tribos de canibais que espalhavam o terror entre os homens. Um dia as outras tribos se reuniram, ou pediram ajuda a um deus, e então colocaram fogo ao redor da aldeia dos canibais enquanto eles dormiam. Para escapar do fogo, os canibais tornaram seus corpos pequeninos e criaram asas, desta forma transformando-se em mosquitos. Márcia vira alguns livros sobre totempoles na estante dos tios, e resolveu que iria se aprofundar sobre o assunto. Queria ler sobre todas as lendas, sobre o urso, sobre a rã, a Grande Mãe e, é claro, sobre a figura que mais a impressionara, o corvo, ou Raven.

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UMA NOITE SEM ESTRELAS

- Esta noite teremos um churrasco – anunciou tio Ralph. Márcia sentou-se na sala, folheando um livro cheio de ilustrações de totempooles, e acordou com a tia chamando com sua voz melodiosa:

- Eu sei que você está com sono, mas é melhor não dormir agora. São apenas sete horas e se eu a deixar dormir, você acordará às duas da manhã completamente sem sono. É melhor ficar no sol enquanto puder e dormir profundamente no horário certo.

Márcia arrastou-se até o jardim e ficou de pé, olhando os enfeites. Havia muitos, desde um vaso com cara de totempole até um texuguinho espinhento pendurado em um canteiro alto. Tia Anne utilizava todo tipo de coisa como enfeite e alguns eram muito incomuns.

Quando o tio anunciou que o churrasco estava pronto, sentaram-se todos na cozinha. O tio trouxe a carne lá de fora, enormes pedaços de uma carne branca sem gordura, em fatias grossas, e distribuiu um para cada prato. A tia trouxe arroz branco e salada grega. Não houve sobremesa.

- Vamos andar – sugeriu a tia. Os cachorros foram soltos, obedientes e quietos. A tia mostrou as ruas em volta,

citando os nomes. Foram até a rua principal, que chamava-se Highlands. Nela havia de tudo: açougue, padaria, confeitaria, livrarias, lojas de presentes, bares e até uma casa de óculos. Em outra rua próxima ficava a biblioteca municipal e um hospital veterinário.

Assim conversando, passearam até que a tia anunciou: - Já são nove e meia, você já pode ir dormir. O céu estava claro e o sol ainda brilhava. No verão, há apenas quatro horas de

noite plena, e, mesmo assim, o céu não chega a ficar completamente escuro no hemisfério norte.

- Que coisa estranha, dormir com esta claridade toda – pensou Márcia. No quarto reparou melhor nas persianas, de madeira clara, que se fechavam de

forma a obstruir quase que completamente a claridade de fora. Deitada na cama macia, entre os altos travesseiros da tia, Márcia sentiu-se

agradavelmente aquecida e confortável. Acordou às cinco da manhã, ativa e animada. O céu estava claro. Ela abriu a

porta só por um instante e fechou-a rapidamente porque estava muito frio. Na saleta, a tia deixara para ela uma cesta com frutas. Pelas etiquetas Márcia

soube que as bananas vinham do Equador, os abricós da Guatemala e as mangas do México. Vasculhando nos armários achou panquecas americanas, chocolate em pó suíço e diversos outros artigos importados.

‘Que coisa estranha – pensou – este país só produz xarope de bordo? Se não houver salmão nos rios, eles morrem de fome.’

Márcia terminou de ler o livro dos totempoles antes que os tios acordassem. O tio a chamou para tomar uma refeição matinal bem canadense: ovos mexidos, bacon, fatias fritas de presunto e batatas fritas. Márcia explicou que já se alimentara, e a tia falou:

- Eu só tomo cereal com leite pela manhã, e como algumas panquecas. Acho muito gorduroso este café do seu tio.é coisa de gente das montanhas.

- Eu sou um homem das montanhas – exclamou o tio, com orgulho.

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Márcia observou enquanto a tia retirava as panquecas congeladas da embalagem, colocava na tostadeira elétrica e esperava que saltassem sozinhas. As panquecas, douradas e crocantes, eram então salpicadas com xarope de bordo.

- Vou experimentar uma panqueca – decidiu Márcia. O xarope de bordo, doce e perfumado, era o complemento perfeito para as

panquecas tostadas. A família tomava o mesmo café fraco da véspera nas altas xícaras, mas Márcia

pode escolher entre chá e suco de laranja. - Hoje é domingo e o Stanley Park estará cheio de gente – comentou a tia –

Faremos um piquenique por lá. Márcia passou a manhã arrumando suas coisas nos armários. A tia colocara a

roupa para lavar e secar. O espaço para as máquinas era pequeno, mas as roupas já saíam prontas para serem dobradas e guardadas nos armários, ou passadas a ferro, se necessário. Cada pessoa da família lavava e secava sua própria roupa, assim a tia não ficava com todo o trabalho para si.

O tio cortou a grama, tendo o cuidado de colocar protetores nos ouvidos antes de começar a trabalhar.

Lá pelas dez saíram para passear.

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STANLEY PARK A rodovia que levava até a ponte ladeava o oceano. Da ponte, avistava-se à distância uma praia e um farol. Chegando a Vancouver, o tio dobrou à direita, contornou a marina e estacionou em frente ao parque. Colocou então algumas moedas no parquímetro. Márcia observou discretamente, para que não percebessem que era a primeira vez que ela via um parquímetro. À entrada do parque, um balcão de informações fornecia mapas, folhetos turísticos e indicava onde comprar os bilhetes para o Aquário e o passeio de trole. Se a pessoa comprasse os dois programas, tinha um bom desconto no bilhete conjugado. Márcia, como boa poupadora, comprou o bilhete conjugado. O parque era mesmo imenso. Havia na entrada uma área para artistas exporem seus quadros. Havia muitas trilhas, um lago com patos, jardins com rosas, clareiras com esquilos, onde Márcia gastou quase vinte minutos de seu primeiro filme, uma praça com totens em frente a uma loja de quinquilharias turísticas e também um campo de basebol, além dos restaurantes e do local para piqueniques. Em um determinado momento, Bridgit disse para a prima sair da ciclovia. Márcia olhou em volta, sem entender. A prima mostrou a faixa amarela no chão, bem no meio do passeio, dizendo: - Fique à esquerda. Márcia observou que de tempos em tempos, havia certos desenhos no chão, uma bicicleta e um homenzinho andando. A pista da esquerda era para bicicletas e a da direita para os pedestres. Que jeitoso! E os rapazes de patins ou patinete ficavam junto aos pedestres. Todos os ciclistas usavam capacetes de proteção, e uma moça passou puxando com um carrinho atrelado à roda traseira de sua bicicleta. O carrinho era alto, com três rodas altas e uma cobertura transparente que cobria o carrinho quase que inteiramente até o teto, protegendo a criança lá dentro da poeira, do vento e da chuva, caso mudasse o tempo. Muito prático. Havia dezenas de gaivotas por toda parte. A tia contou a Márcia que, da última vez em que viera ao parque, uma gaivota passara voando rente a seu ombro e roubara seu cachorro-quente.

O tio prontificou-se a ir buscar o lanche de todas, se elas guardassem uma mesa à sombra. Márcia não quis sanduíche, preferiu experimentar o tal ‘fish and chips’ de que tanto ouvia falar.

- Nós não vamos entrar no Aquário – disse o tio – podemos esperar por você aqui.

Márcia não achou a idéia boa. Ela pretendia andar no trólei e ainda examinar com cuidado a loja em frente aos totens. Sugeriu que lhe mostrassem o ponto de ônibus, que ela voltaria sozinha.

- Bem, não há ônibus direto pela ponte – exclamou o tio – você precisa voltar de barco e tomar outro ônibus do outro lado.

- Não tem problema, eu sei que o ponto do catamarã é ao lado do Canadá Place. É só me dizer o número do ônibus.

O tio escreveu seu endereço completo, seu telefone, o celular da tia Anne e fez Márcia prometer que ligaria se ficasse perdida.

Márcia sentiu que eles não estavam confortáveis em deixá-la sozinha, e isto a comoveu. Era como se ela já fizesse parte da família.

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‘Meu Deus, o que estou dizendo? – ela riu de si mesma – Eu sou parte da família.’

Primeiro Márcia entrou no Aquário. Em enormes tanques, havia baleias belugas, baleinhas brancas dóceis que fizeram muitos truques, como acenar com as nadadeiras e espirrar água nos treinadores. Márcia também filmou o show do golfinho e dos leões marinhos. Filmou as lontras brincalhonas antes de entrar na parte subterrânea do aquário. De lá podia-se ver as tanques por baixo d’água. Em outra parte havia

tartarugas, tubarões, polvos, esponjas e muitos tipos de peixes. Havia muita coisa feita especialmente para crianças – pequenas telas para ver

curtos documentários, caixas com ossos, brincadeiras com informações científicas, caixas de areia e até um teatro com bonecos e espelhos.

Na loja do aquário os turistas se aglomeravam. Márcia comprou um chocolate aromatizado com maple e seguiu para o ponto dos cavalinhos.

No troley, um guia explicava aos visitantes os pontos altos da parque, como o pinheiro de seiscentos anos. Explicou sobre a jornada dos salmões, mostrou a estátua de Lord Stanley, o governador geral do Canadá que criou este que foi o Primeiro Parque Urbano Nacional, contou a estória da estátua da moça sentada em uma pedra dentro do mar e falou sobre diversos pontos turísticos da cidade que se podiam avistar ao rodear o parque. Quando o passeio acabou, Márcia estava um pouco zonza, pois o guia falava muito, muito rápido.

Voltando à loja em frente aos totens, Márcia comprou alguns quadros simplesmente lindos, de artistas que misturavam as formas dos animais reais com os desenhos estereotipados dos mesmos animais feitos pelos haídas, os índios que primeiro habitaram aquela região. Resolveu enquadrá-los e usá-los para enfeitar o seu quarto. Reparara que tia Anne enfeitara sua sala com diversos quadros das primeiras nações, alguns haídas, outros inuits. Estes desenhos ancestrais exerciam enorme fascínio sobre a moça.

Como o céu ainda estava claro, Márcia rodeou o parque a pé até chegar ao ponto de ônibus. Já no catamarã, observando os prédios do centro de Vancouver (downtown) se afastarem na paisagem, é que se deu conta do horário.

Assim que desembarcou tratou de ligar e tranqüilizar os tios. - Não me perdi, não, estou a caminho, é que me esqueci da hora, pois no Brasil

escurece sempre cedo... A tia guardara o jantar para ela. E ainda ofereceu um delicioso sorvete de

macadâmia com pedaços de chocolate. - Você deve estar cansada. Andou muito hoje? Filmou muita coisa? - Caminhei por quase três horas – exclamou Márcia – Filmei tudo, as belugas, os

totens, os esquilos, até a gaivota que roubou o seu cachorro-quente. Até mesmo o parque aquático. Com os chafarizes saindo da terra e se entrecruzando no ar, onde as crianças daqui brincam.

- Amanhã trabalhamos todos – comentou a tia – e o seu tio pode deixar você na downtown, se você quiser.

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UM POUCO DE ARTE Do lado de dentro da casa estava quente e agradável, pois o aquecedor central estava regulado para 20 ° C, mas lá fora estava congelando, ventando e muito úmido, pois chovera a noite inteira. Márcia colocou um casaco bem quente por cima de sua roupa fina de manga curta, porque a tia explicou que logo o tempo iria mudar para melhor. Depois de deliciar-se com as panquecas regadas a xarope de bordo e de esvaziar uma tigela de leite com granola canadense, farta em macadâmias, amêndoas e pedaços de chocolate belga, Márcia escovou os dentes e arrumou o necessário em sua mochila, incluindo seu guia do Canadá. Bridgit sorriu e resmungou: - Este é o seu aviso: ‘cuidado, sou turista.’ Tia Anne dirigiu até o Supermercado onde Bridgit estava trabalhando como caixa , um emprego de verão para estudantes. Lá Márcia comprou um cartão de ônibus. O sistema de cartão de ônibus era muito prático. O cartão podia ser usado nos ônibus, nos trens e também nas barcas que circulavam por Vancouver. A pessoa podia usar quantas vezes quisesse, sem precisar ficar fazendo troco e contando moedas a cada viagem. Além disso, o preço do cartão era fixo, não importando quantas viagens a pessoa fizesse no mês. Isso resultaria em economia de dinheiro, caso a pessoa usasse o transporte diariamente. Márcia pode observar que as pessoas não fiscalizavam o uso do cartão nos trens e nas barcas, e, mesmo nos ônibus, os motoristas apenas davam uma olhadinha ligeira. Em primeiro lugar, as pessoas honestas eram a maioria, em segundo lugar, se um fiscal entrasse em uma condução e solicitasse os cartões, a multa para quem não tivesse o cartão era de cem dólares. Márcia não chegou a ver o fiscal, mas percebeu que as pessoas sem cartão entravam na condução com as moedas exatas e pagavam sem necessidade de troco, recebendo em troca um comprovante, emitido por uma maquininha. - Bridgit sempre trabalha no verão? – ela perguntou para a tia. - Sim, o ano passado ela foi recepcionista em Grouse Mountain, e no inverno foi monitora de lobinhos no acampamento em Whistlers. – respondeu a tia. – Este verão, Stuart está trabalhando como monitor de escoteiros em Whistler, e o caçula está aproveitando as férias com os amigos no mesmo acampamento. Nós iremos buscá-los no final do mês, e você conhecerá as pistas de esqui. - Esqui no verão? - Apenas para os adiantados – explicou a tia. – Só as encostas mais perigosas conservam a neve durante o ano todo. - Que pena! Terei de esperar até o inverno para aprender. A estação do Seabus, o catamarã de Vancouver, estava à frente. Ali Márcia se separava da tia, que voltaria para Highlands, onde trabalhava em uma loja de óculos, apenas dois dias durante a semana. Nos demais dias, ela cuidava da enorme casa. Márcia sentou-se em um banco bem de frente para o mar. Dali tinha uma vista privilegiada do centro com seus altos e modernos edifícios. A viagem durou menos de dez minutos e ela desembarcou na estação, onde havia desde bancas de revistas até cafés com os deliciosos donuts. Muitos asiáticos estavam por toda parte, e a maioria das pessoas nas ruas era muito, muito jovem. Eram estudantes em férias de verão aproveitando para aprender inglês ao mesmo tempo em que faziam turismo.

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‘Bem, é lógico – pensou Márcia – O Pacífico é bem ali. Os asiáticos vêm para cá. Os europeus é que vão estudar em Londres.’ Em todo caso era muito estranho ouvir as pessoas falarem em japonês (seria mesmo japonês?) por toda parte. Entrando em um ônibus, Márcia lembrou-se de pedir ao motorista o time-table do mês. Era um jeitoso caderninho onde estavam anotadas todas as linhas de ônibus, os trajetos desenhados em mapas, e os horários de cada ônibus em cada estação. E como ela pode comprovar, dava para acertar o relógio pelos ônibus. Márcia primeiro percorreu as ruas à toa, só para sentir o clima. Depois procurou pelas agências de viagens para informar-se sobre as excursões para as Rochosas. Havia diferentes roteiros e diferentes preços, e ela em breve estava cheia de catálogos. Em uma das ruas do centro ela encontrou a Inuit Gallery, uma exposição de esculturas feitas por artistas esquimós, umas mais lindas que as outras. Caçadores esculpidos em ossos de baleia, bichos em jade, pessoas entalhadas em pedras e motivos mitológicos, em desenhos e em esculturas. Também havia livros a um canto. Quando sentiu fome, Márcia procurou uma lanchonete que não fosse japonesa, e acabou tomando uma sopa, o prato mais barato que encontrou. Era uma sopinha, uma porção muito pequena, mas muito saborosa. Depois ela seguiu para a Art Gallery, onde pôde apreciar no último andar quadros de Emily Carr. Gostou de suas árvores retorcidas, de suas florestas escuras, de seus totens intimistas. Depois de olhar todas as telas, sentou-se em um confortável salão para assistir a um vídeo sobre a vida e obra da pintora. O restante da galeria não a interessou muito, e ela saiu para a tarde clara de verão com um sentimento de tristeza. Seria tão bom se os europeus não tivessem destruído as civilizações das Américas! Seria tão bom se todos os povos pudessem trocar valores entre si, com respeito mútuo. Ao lado do relógio a vapor, ponte alto da George Street, dois pintores canadenses, com seus aventais quadriculados manchados de tinta, expunham seus quadros em painéis ao ar livre. Eram dois senhores altos, de olhos azuis, risonhos. A moça conversou um pouco com eles e acabou levando uma telinha com um certo quê impressionista. Na volta para casa parou no mercado. Viu os caranguejos vivos, as lojas de vinho de Okanagan, todos os tipos de berries (frutinhas silvestres) possíveis: azuis, pretas, vermelhas...vasculhando as lojas de artesanato, o tempo passou voando e quando ela deu por si, eram já sete e meia. Tratou de correr para o ponto de ônibus. Os tios jantavam muito cedo, mas nesta tarde, tia Anne se atrasara e Bridgit ficara para jantar na casa de uma amiga. Assim, o atraso de Márcia não atrapalhou ninguém. Os tios ouviram com atenção e surpresa o relato de Márcia. A tia então falou: - Está acontecendo um festival de teatro na praia. Você gostaria de assistir uma peça de Shakespeare? - Eu adoraria! – exclamou Márcia – O meu inglês não é tão bom assim, mas eu conheço todas as peças de Shakespeare. - É mesmo? – disse a tia – Vocês estudam Shakespeare na escola? - Na realidade não, mas eu leio muito e gosto de teatro. Mas, ainda há ingressos à venda? - Na realidade, você vai com o ingresso da Bridgit – contou a tia – Bridgit não quer ir, ela ficou revoltada por ter de ler algumas peças para a escola. Eu tenho ingressos para o Mercador de Veneza. Márcia lembrou-se de seus trechos preferidos: ‘pois não tem os judeus mãos, órgãos, sentidos, afeições, paixões? Não é o judeu alimentado pelos mesmos alimentos,

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ferido com as mesmas armas, sujeitos às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão?’ Márcia então contou para a tia sobre os espetáculos folclóricos que aconteciam na praia de Itararé, por ocasião do aniversário de São Vicente, com a participação dos índios e de figurantes populares, reproduzindo a chegada dos portugueses ao Brasil. E novamente, às dez da noite, foi deitar-se no claro, procurando em vão pelas estrelas do norte.

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GROUSE MOUNTAIN - Nós sempre vamos passear em Grouse Mountain fora da temporada – disse tia Anne – Agora há excesso de turistas, mas você deve ir assim mesmo, Márcia, afinal, você é turista. O 232 pára em frente ao ponto da gôndola. - Cuidado com os ursos – avisou o tio – são perigosos. E nesta época do ano, as fêmeas estão com as crias. Assim, em uma ensolarada e quente manhã, Márcia tomou o 232. Já na descida do ônibus deparou-se com a simpática lojinha de lembranças. Mas desta vez comprou um agasalho, porque era bonito, barato e porque estava ventando. O tempo no Canadá era muito instável e ela não gostava nada de ter de carregar para onde quer que fôsse um guarda-chuva, um casaco e manter uma blusinha fresca de verão por baixo caso esquentasse demais. A próxima gôndola só partiria dali a quinze minutos e ela pôde olhar com calma todas aquelas coisas bonitas – até enfeites de Natal com motivos indígenas ela encontrou ali. Na gôndola, onde viajaram de pé, cabiam sessenta pessoas por vez. A vista aérea de Vancouver era sensacional em um dia luminoso como aquele. E a moça que guiava a gôndola estava contando a uma senhora que vez por outra via ursos na encosta da montanha, geralmente ursos negros. Lá em cima, Márcia primeiro olhou as belas esculturas em cedro feitas pelos povos das primeiras nações para embelezar o parque. Algumas tinham dez metros de altura. Na madeira macia de cor amarelada estavam esculpidos ursos, águias e pioneiros. No mapa da montanha, ela espiou os horários dos shows e decidiu que assistiria a todos eles antes de passear nas trilhas. O primeiro foi o do urso grizzly e não foi um show de verdade. O ursinho, com três anos de idade, ficara órfão e estava sendo mantido em cativeiro até poder ser solto em alguma reserva. Havia também um outro filhote, este de urso preto. Como o objetivo era manter os animais selvagens, os ursos não eram alimentados nem amestrados. Um funcionário do parque falou sobre os hábitos dos ursos e contou que, naquele horário, eles, os funcionários, costumavam colocar frutinhas espalhadas debaixo de pedras junto à cerca para que os ursos passassem perto dos turistas e fossem admirados. Márcia não viu muita diferença entre espalhar frutinhas nas pedras e alimentar os ursos, mas não contestou. Ficou admirando os animais. Depois foi até a arquibancada onde estavam se acomodando três excursões de americanos. Foi uma festa para seus ouvidos escutar todas aquelas pessoas falando o mesmo idioma, do jeito normal, ou seja, muito rápido. Os tios sempre falavam com ela devagar e escolhendo as palavras mais simples. Por mais fluente que Márcia falasse, seu pai, que fora seu principal professor, estava há vinte anos longe de um país em que se falasse inglês. E as línguas evoluem a cada dia. Os lenhadores eram muito engraçados. Reproduziam um torneio, que costumava acontecer todos os anos na época em que ser lenhador era uma profissão importante e perigosa. Subiram em altos troncos de árvore, cortavam toras de madeira, esculpiram banquinhos e bichinhos nos troncos, serraram, jogaram machados em um alvo e dançaram com as moças da platéia sempre com muito humor. Fingiam sabotar um ao outro, provocavam-se. Um deles disse, por exemplo, que iria ganhar o prêmio. O outro respondeu: -Você esqueceu o pijama. -E por que eu preciso de um pijama?

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-Ora, porque você está sonhando! Este tipo de humor leve agradava Márcia. Ela gostou principalmente da última prova, em que os rapazes rolaram um enorme tronco de árvore dentro da água, e tentavam distrair o adversário, pois venceria quem permanecesse mais tempo em pé equilibrando-se no enorme tronco. Ela imaginou como era perigosos rolar aquelas toras rio abaixo e em quantos não teriam morrido ao cair, esmagados entre os troncos. A música country que tocava durante o show era tão bonito que ela pediu para a prima, que já trabalhara ali, o nome das músicas. Bridgit gentilmente gravou um CD especialmente para ela, com as músicas do show dos lumberjacks (assim se chamavam os lenhadores) O próximo show era ali bem pertinho, em uma encosta da montanha. Márcia empoleirou-se no mais alto assento e tratou de renovar seu protetor solar, porque o sol estava cada vez mais ardido. Ela retirou a blusa de cima e resolveu tomar um pouco da água que trouxera de casa. Como tudo no Canadá, a água era muito cara, três dólares a garrafinha de 250 ml. Quando voltou-se para ajeitar o cantil, Márcia percebeu que alguém a estava observando. Ergueu o rosto e surpreendeu o curioso. Era um rapaz muito alto e muito loiro, cercado por várias senhoras de cabelos grisalhos e chapéus engraçados, em frente a um ônibus de excursão. Quando Márcia o encarou, ele desviou o olhar, e apontou qualquer coisa no ar para as velhinhas. Márcia nunca vira tantas mulheres com chapéus esquisitos. Uma delas usava um sombrero. Outra exibia um chapéu azul celeste com enormes girassóis. E uma outra colocara uma boina vermelha com flores de todas as cores e tamanhos penduradas dos dois lados. Certa tarde, na Robson Street, Márcia entrara por curiosidade em uma loja de chapéus e tivera de segurar o riso. Era uma loja que poderia muito bem ser freqüentada pela Margarida, a eterna namorada do Pato Donald, colecionadora de chapéus. Como seu pai costumava dizer: ‘não importa quanto uma idéia pareça

esquisita, a vida é sempre mais esquisita’. E esquisita aqui, tinha o significado bem

brasileiro da palavra: bizarro, grotesco e totalmente fora dos padrões. No show das aves de rapina, treinadores desfilaram com as aves bem perto do público. As pessoas tiravam fotos dos falcões, abutres e da águia, a estrela do programa. As aves voavam livres de um treinador para outro, para pegar a comida que eles lançavam ao ar, e depois eram levadas de volta para seus viveiros. Márcia gostaria que elas ficassem livres e comessem suas presas vivas, mas certamente havia um propósito em manter em cativeiro estes espécimes em extinção. Depois disso, Márcia pôde passear despreocupadamente pelas trilhas, mas não tornou a avistar o simpático rapaz loiro e alto. Muitas pessoas alugavam bicicletas para exercitar-se por ali. Outras tiravam fotos nos espetaculares mirantes. Com fome, Márcia procurou a lanchonete, pensando em como o tio a enganara, falando sobre os perigosos ursos que ela poderia encontrar pela montanha.

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O BARDO NA AREIA Chegara a noite em que os tios acompanhariam Márcia ao teatro. O ator Donald Adams interpretaria Shylock na peça The Merchant of Venice, sob a direção de Katrina Dunn.

Em dúvida sobre o que vestir, Márcia pediu a opinião da prima: - Bridgit, se você me convida para caminhar na praia eu vou simples, de jeans e

camiseta. Se você me convida para ir ao teatro, eu vou elegante e me produzo toda. Mas para um teatro na praia, não sei como ir. - Elegante – disse Bridgit. - Você não quer mesmo ir? - Definitivamente, depois de ter de estudar esse sujeitinho na escola, eu passo! Márcia foi colocando suas roupas sobre a cama, em duvida sobre o que escolher, enquanto a prima desempacotava as compras do mercado. Tia Anne matinha sempre cheio o armário de provisões na cozinha privativa da sobrinha. - Se eu conseguir comer toda a comida que sua mãe coloca para mim vou virar uma baleia – comentou Márcia, que se sentia encabulada com a hospitalidade da tia. Bridgit estava guardando panquecas congeladas, bolachas cobertas de chocolate, granola de amêndoas e litros de sucos, águas e leite. Olhou de relance para o quarto da prima com ar crítico. - Muito diferente? – comentou Márcia. - Muito. Por que? - Porque você está olhando para minhas roupas com ar de ‘ah, então é assim que

as brasileiras se vestem’ - Então é assim que você se veste – corrigiu Bridgit – eu não acredito que exista um jeito brasileiro ou um jeito canadense. As pessoas são pessoas. Todas diferentes. - Pode ser, filósofa. No entanto, quando chegaram à praia, Márcia percebeu que todas as mulheres pareciam a tia Anne – decotes altos, modelos sóbrios de cores pastéis. E todos os homens se confundiam com tio Ralph – sapatos engraxados, calças e camisas de corte clássico e cores neutras. O Festival de Shakespeare era realizado há quatorze anos no Vanier Park. Neste largo parque havia dois museus: o Museu de Vancouver, onde funcionava também o Space Center, eo Maritime Museum, além de um observatório astronômico. Além dos jardins, as praias. A mais concorrida, chamada Kapsilano, e outra menor, onde era permitido levar animais; aí os donos se divertiam com seus cachorros, que jogavam bola ou nadavam alegremente. Das praias, em direção a downtonw, filas de barcos e mais barcos, na marina que ia do Vanier Park até Granville Island, um bairro sob a ponte Granville, onde havia um mercado muito concorrido. O Vanier Park era bonito, principalmente em frente ao Maritime Museum, onde se via um totem pole muito antigo. Havia muitas tendas altas e brancas armadas na areia – para os banheiros, os camarins, as lanchonetes, as lojas e, á claro, a mais alta delas para o palco e a platéia. Tio Ralph ficou na fila de entrada enquanto tia Anne e Márcia foram até uma espaçosa mesa onde as pessoas pegavam pedaços de cartolina colorida, fitas adesivas e canetas hidrográficas. Tia Anne pegou três papéis e escreveu em cada um deles os nomes: Anne, Ralph e Márcia.

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Então voltaram para junto do tio. A fila ia entrando no recinto lentamente. O porteiro recolhia os ingressos, que não eram numerados. As pessoas escolhiam onde queriam sentar e grudavam seus cartões nos encostos das poltronas. Tia Anne escolheu lugares no centro da terceira fileira, colocou seus cobertores e casacos nos assentos e tornaram a sair. Lá fora havia barracas com livros de Shakespeare para vender, outras de vinho e outras de sanduíches. Quando o espetáculo estava para começar, eles retornaram. A peça começou pontualmente às sete. Enquanto o diretor explicava o objetivo do evento, Márcia reparou que um verdadeiro teatro fora remontado na areia. Não se tratava de improvisação. O chão era de madeira, as poltronas estofadas, o tablado inteiriço de madeira de boa qualidade, as cortinas luxuosas, luzes...e na parte de trás do palco, uma abertura permitia que se visse o céu. Em um determinado momento, bem quando um dos atores, vestido como se vestiam os rapazes em plena Idade Média, ajoelhava-se para propor casamento à sua amada, passou pelo céu um avião, e isto deu à cena um certo ar surrealista. O figurino era luxuoso e os atores, jovens e bonitos. Márcia quase não entendeu as falas, pois afinal Shakespeare é difícil até para os ingleses, mas compreendeu perfeitamente o enredo. Era quase meia-noite quando o espetáculo terminou. Estava frio e a maioria das pessoas se enrolava em cobertores para atravessar a areia até o estacionamento. A noite do hemisfério norte não era o breu cheio de estrelas que Márcia esperava ver. O céu um pouco mais escuro exibia apenas duas estrelinhas e uma lua pálida. Pela primeira vez ela admirava as luzes da cidade, enquanto rumavam para casa, atravessando a Lions Gate Bridge. - Gostei muito, tio Ralph – agradeceu Márcia. - Se você gosta de espetáculos, venha conosco ver o Cirque du Soleil. Eles estão vindo para Vancouver no final do mês e pretendo comprar ingressos para a família toda. Você sabe, o Cirque du Soleil começou em Quebec – contou o tio, todo orgulhoso. - Atualmente têm os melhores acrobatas do mundo – disse a tia. – Você já os viu? - Infelizmente não, embora eles estivessem em São Paulo o ano passado – contou Márcia.

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Parte II

UM MOMENTO NA ETERNIDADE

“Às vezes as pessoas dizem que falo como um místico sobre a influência das

montanhas. Talvez eu acredite devotadamente em emoções provenientes das montanhas, intangíveis mas muito reais, que elevam a mente e purificam o espírito.” J.B.Haskin – encarregado dos parques canadenses de 1911 a 1936

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AS MONTANHAS ESTÃO CHAMANDO. Havia muitas agências de viagem em downtonw, e em cada uma delas Márcia encontrava muitas opções. - Rochosas? – disse uma moça loira na Rocky Mountain Tour – aqui estão as excursões para estudantes. - Bem, eu não sou estudante – contou Márcia. - Não é? – a loira ficou olhando para ela e recolheu os panfletos. - Isso não é um problema, espero. - Oh, não. Bem, a gente tem um precinho especial para coreanos. É mais barato. - Oh – Márcia não sabia o que dizer. – Bem, qual é a diferença? Uma voz atrás dela respondeu: - A diferença é que as excursões para estudantes são para fins de semana. As outras são mais interessantes e longas, você pode visitar mais lugares com tranqüilidade. Márcia sorriu, reconhecendo o guia alto e loiro que olhara para ela na Grouse Mountain. - Eu prefiro uma excursão sem estudantes, com gente que saiba falar bem o inglês. Não quero uma excursão de coreanos. – era impressão sua, ou ele escondeu o riso? - Sexta-feira estou saindo com um grupo... – e ele mostrou a ela o roteiro. Bem comparados os preços, itinerários, datas e simpatia pessoal, ela optou pela excursão da Rocky Mountain Tour, que saía com o guia Brandon, sexta-feira pela manhã, em frente ao Hotel Haida, na esquina da Melville com a Burrard Street. Em poucos minutos Márcia conheceu uma simpática canadense de Quebec e uma suíça, que só falavam francês. Havia também duas outras brasileiras, Márcia e Mara, que logo se juntaram a conversar. As demais pessoas da excursão estavam em família ou em grupos, e só falavam inglês. Todos eram adultos, com exceção das brasileiras, que eram as mais jovens da excursão. - Eu já conheço as montanhas – contou July – mas resolvi dar-me de presente outra viagem, pois as Rochosas são um local realmente especial. Mereço ver este lugar outra vez. - Você se deu este presente? – disse a suíça – que interessante ouvir você falar assim. Eu também estou me dando esta viagem de presente. - Nós merecemos, não é? – respondeu a canadense – E é muito triste ver que há pessoas que não se dão prazer, que têm medo de dizer eu mereço. - Não tenho nenhum problema em dizer eu mereço – riu Márcia, lembrando-se de seu medo de voar. A canadense tirou da bolsa um livro que Márcia reconheceu: - Este livro foi escrito por um brasileiro – disse ela. - Sim, um homem maravilhoso – é o terceiro livro dele que leio – e a canadense mostrou a capa de O Alquimista, de Paulo Coelho – Gosto muito de investir em meu crescimento pessoal.

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Na divisão de quartos, as novas amigas se juntaram. Márcia ficou com Mara e Márcia, e July ficou com Heidi e Alice, uma irlandesa mais idosa, porém risonha e gentil.

À saída de Vancouver puderam apreciar um belo jardim, Minter Gardens, em cuja entrada havia uma bandeira do Canadá toda feita de flores. Uma perfeição! A primeira parada foi à entrada do Mount Robson Park, o segundo mais antigo parque da Colúmbia Britânica. O Monte Robson é belo e impressionante em seus 3954 m acima do nível do mar. É o maior pico das Rochosas. Seu nome indígena é ‘yuh-hai-has-hun’ que significa ‘montanha em espiral’. Isto devido a seu particular relevo. Brandon contou alguns fatos sobre o Monte Robson. A primeira tentativa de subir o Monte Robson foi feita em 1902 pelo Reverendo George B. Kinney, os irmãos Coleman e A.O.Wheeler, o fundador do Clube Alpino Canadense. Eles levaram 41 dias viajando do Lago Louise, em Alberta, até a base do Monte Robson e foram forçados a voltar devido ao mau tempo e ao término de seus suprimentos. No ano seguinte Kinney e os Coleman retornaram, chegando em um ensolarado domingo. No entanto, para respeitar o domingo, a pedido do Reverendo, deixaram a subida para o dia seguinte. Infelizmente na segunda-feira o tempo mudou e eles não puderam escalar o monte. Ora, esta escalada tornou-se uma obsessão para o Reverendo Kinney, que retornou no ano seguinte. Já em maio ele ouvia rumores de que diversos forasteiros preparavam-se para a escalada. Em junho ele partiu sozinho e em Jasper contratou um guia de 25 anos, Donald ‘Curly’ Phillips. Foi uma jornada difícil

devido aos escassos suprimentos e aos aguaceiros constantes. Numerosas tempestades atrasaram a expedição, mas, finalmente, em doze de agosto, eles chegaram a 3000m e acamparam em um abrigo cavado na neve, passando a noite com desconforto por causa do frio. Dia 13, sexta-feira, vagarosamente chegaram ao topo de um pico gelado e Kinney reivindicou para si a conquista do Monte Robson. No entanto ele provavelmente chegou a um ponto abaixo do topo, como admitiu Phillips mais tarde. A primeira escalada bem sucedida aconteceu em 1913, quando os alpinistas puderam contar com o auxílio da estrada de ferro para atravessar o vole do Rio Moose, e Conrad Kain conduziu Albert M.Carthy e William Foster ao topo em apenas oito horas. Márcia pensou que uma coisa muito injusta acontecia nessas escaladas. As pessoas que conquistavam estes picos e reivindicavam para se todas as honras e a fama, sempre precisavam de um guia que conhecia bem a região e conhecia o caminho. Não seria mais adequado se o guia recebesse o título, a honra e a fama? Após dez horas de viagem, incluindo as freqüentes paradas para descanso, lanche e fotos, chegaram a Valemount, onde pernoitariam no Alpine Inn, um hotel, nas palavras de Brandon, simples mas limpo. Valemount encontra-se no meio de três maciços montanhosos: a oeste os montes Cariboo, ao sul as Monashee e a leste as majestosas Rochosas. Fica no George Hick Park, um local muito procurado pelos turistas para observar a migração do salmão Chinook.

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SOPA QUENTE EM UMA NOITE FRIA Após receberem as chaves no hotel em Valemount,, cada um estava por conta própria para jantar. A noite ensolarada esfriava rapidamente e o termômetro na rua acusava 7°C. July e Heidi estavam confortáveis com o frio, já as brasileiras tremiam, encolhidas nos quentes agasalho, meias e luvas. Márcia até colocara os peludos protetores de orelhas apropriados para quem pratica esportes na neve. - Uma sopa quente iria bem – sugeriu Márcia.- estou com muita fome. Este costume canadense de almoçar sanduíche não me satisfaz. - Você poderia comer mais pela manhã, como nós – sugeriu July. - Pela manhã só tenho sono – resmungou Márcia, que dormia no ônibus durante o trajeto, só acordando quando Brandon anunciava ursos ou alces ao lado da estrada. Márcia observou que as outras duas brasileiras eram bem diferentes entre si. Márcia era sossegada, Mara espevitada. Quando soube que Márcia morava em Barretos, Mara expandira-se: - Ah, que maravilha! Aposto que você vai todos os anos à festa do peão – seus olhos brilharam de satisfação – Aquilo é que é festa! Cheio de homens! A sopa foi servida em porções individuais, em pequenos recipientes de porcelana com um cabo comprido de um lado. Fumegante e saborosa, aqueceu a todas. A conversa animava-se com freqüentes risadas. Mara, com muito humor, comentava as diferenças culturais entre ela e o namorado, um rapaz de Calgary que estudava em Vancouver: - Ele não me abraça e fica atrapalhado se toco nele em público. Acredita que, depois de três meses de namoro, ele ainda não me havia beijado? – e a mímica com que ela expressava suas frustradas tentativas de receber um carinho era muito engraçada. - Em Quebec as pessoas são mais extrovertidas – opinou July – mas também não têm o hábito de ficar se tocando como os sul americanos. Márcia lembrou-se de que nunca vira o tio tocar na tia, mas seu pai abraçava sua mãe, mesmo em público.

Mara reclamava porque estava há seis meses longe de seu país e os canadenses, tão discretos e silenciosos, eram, na opinião dela, pessoas muito, muito chatas. Nem se lembrava de que July, sentada com elas à mesa, era canadense.

- Vocês duas não sentem falta do alegre barulho dos brasileiros?- insistia ela. - Engraçado você associar alegria e barulho – comentou Márcia – Barulho é

bomba, explosão, briga. Não, não gosto de diversão barulhenta, multidões gritando, discotecas onde não escuto o som de minha própria voz, tardes de futebol em que a televisão do vizinho parece estar ligada na minha sala, tudo isto eu dispenso. Eu sou uma pessoa quieta.

Mara voltou-se para Márcia: - E você, não acha os canadenses chatos? O jeito latino não é mais excitante? Márcia respondeu: - Veja, Mara, você fez a pergunta para a pessoa errada. Em primeiro lugar eu não

sou latina. Meus avós maternos eram austríacos. Meu avô era maestro, minha avó paisagista. Cresci ouvindo concertos de orquestras sinfônicas e visitando salões de artes plásticas. Quanto a meu pai... meu pai é canadense. De maneira que eu sou uma dessas pessoas que você classifica como chatas. Eu amo o silêncio.

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- Oh, eu não quis dizer...eu não sabia... – Mara tentou desculpar-se. Como apenas Mara e Márcia falassem um inglês fluente, à medida que a

conversa se animava, Márcia pusera-se a falar em português e July e Heidi em francês. Márcia vira-se no papel de intérprete para o grupo. A conversa, em três línguas ao mesmo tempo, a estava deixando tonta, mas era divertido e ela conseguiu fazer com que todas se entendessem.

Mara reclamava muito de tudo e criticava todas as pessoas da excursão, e, a certa altura, Márcia abaixou a voz e sussurrou:

- Eu acho que você não devia criticar os outros em voz alta, achando que eles não entendem.

- Você está se referindo ao japonês ridículo que estava fotogrando uma lata de lixo? – Mara respondeu alto e bom som, com um gesto de desdém – Ele nem está aqui, sossegue.

Márcia respondeu em voz igualmente alta: - Acontece que este japonês está sentado atrás de você e pelo modo como está

rindo, aposto que entendeu tudo que dissemos. A desastrada Mara voltou-se para trás. Um jovem respondeu para ela em

português do Brasil: - Aquela era uma caixa anti-urso. Percebi que você não sabia o que era porque

não conseguiu abrir a tampa e teve de voltar para a lanchonete para despejar seu lixo. - Que azar! – desabafou Mara, sem se desculpar - Eu bem poderia ir dormir sem

essa! Enquanto Márcia buscava na memória uma expressão francesa similar, o falso

japonês ria, contagiado com a gargalhada de Márcia.

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QUE A VIDA SELVAGEM PERMANEÇA SELVAGEM

Jasper National Park é o maior dos parques situados nas Rochosas e foi declarado pela UNESCO como um patrimônio da humanidade. A natureza aí é selvagem e bela. Uma coisa curiosa acontecera. Para entrar nos parques, cada excursionista assinara um documento em que se responsabilizava por si mesmo, declarando estar ciente de que os parques eram lugares perigosos e de que corria risco de vida, tais como queda de precipícios, congelamento e ataques de animais, eximindo o guia e a empresa de qualquer responsabilidade em caso de dano físico ou morte acidental.

- Em resumo, concluiu Márcia, com humor, o que eles querem dizer é: se você é doido o bastante para nos visitar, o problema é seu. Não era inteiramente verdade, pois os parques tem seu próprio serviço de resgate e salva-vidas, prontos a socorrer alpinistas em apuros ou na pior das hipóteses, recolher os corpos. Vale a pena falar um pouco sobre os perigos das montanhas.

Os heróis da montanha costumam dizer ‘algumas pessoas saem de férias e

esquecem seus cérebros em casa’. Em alguns casos eles tem razão. Todos puderam observar aqui e ali, turistas desafiando a sorte ao sair do carro

até longas distâncias, sozinho, fotografando animais. E o que dizer dos aficionados por fotografias que pulam as muretas de segurança desprezando os avisos de ‘pedras

escorregadias’ e caminham até a beiradinha dos perigosos precipícios? Athabasca Falls é uma bela cachoeira de cerca de 19 m rodeada de pedras escorregadias. A visão das águas que despencam fragorosamente é de provocar tonturas mesmo em quem se apóia na amurada. Outra bela cachoeira é a Sunwapta Falls. A palavra sunwapta, na língua da nação Stoney, significa turbulento. Nome adequado para as imprevisíveis águas que despencam sobre profundos precipícios ladeados por fendas, grotas e cavernas viscosas. Ao debruçar-se para admirar os turbilhões no vale abaixo, pode-se ver a água jorrar de repente da rocha nua no paredão em frente, pois há um complexo sistema de fontes e minas alimentando o rio em seu trajeto. Maligne Lake, Maligne River e Maligne Canyon são outros locais magníficos, cuja beleza não dá para descrever, tão fascinantes quanto perigosos. Ora, em Sunwapta Falls, onde a força da água é tamanha que despe em seu trajeto qualquer um que tente descer cachoeira abaixo, um turista naquela mesma semana escorregara das pedras e milagrosamente conseguira agarrar-se a uma saliência de pedra por detrás da cachoeira, ficando preso neste mínimo espaço até que os salvadores chegassem em helicóptero para resgatá-lo com o auxílio de cordas e roldanas. A alegria dos salvadores foi grande, pois a rotina quanto às quedas em Sunwapta Falls consiste em recolher cadáveres. Deveria haver uma altíssima multa para quem desobedecesse às placas de sinalização, opinava Brandon, embora ele concordasse que, na maioria das vezes, esta multa seria completamente inútil, pois mortos não pagam impostos.. Outro caso comentado entre o pessoal do parque é do turista que por acaso foi visto de helicóptero longe e solitário a vagar por uma geleira. Ele estava vestido com roupas de algodão e tênis, sem cordas, sem agasalhos, sem telefone celular, nenhum meio de comunicação, nenhum equipamento de sobrevivência. Quanto os guardas desceram em helicóptero e o resgataram, ele ficou surpreso e contrariado por ter seu passeio interrompido. Não compreendia que fora pura sorte não ter caído em alguma fenda nem que poderia ter sido surpreendido pela chuva ou nevoeiro súbito. Disse ter ignorado as placas de ‘zona

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proibida’ por ter pensado que não havia nenhum perigo real, era só alguma placa padrão para afastar turistas!! Diariamente os guardas são chamados para algo mais simples: trazer de volta alpinistas amadores, que, no entusiasmo de sua primeira escalada, subiram alto demais e ficam em pânico na hora de descer! Envergonhados por pedir socorro, eles finalmente chamam quando a noite se aproxima e a temperatura no topo das montanhas começa a cair. Os parques são extremamente bem equipados, sinalizados e com excelente infra-estrutura. Por toda parte, folhetos e mapas em várias línguas oferecem ao turista informações e dicas preciosas. Apesar do conforto que isto significa, Márcia pensou que o objetivo final estava bem claro: o lucro. Como é revoltante que se dê prioridade ao dinheiro! Sim, por tudo que ouvira dos canadenses, esta proteção à vida selvagem, a criação dos imensos parques, o turismo ecológico, tudo era muito novo. Há pouco tempo a pesca do salmão era indiscriminada e poluidora de rios, os ursos eram caçados e as florestas derrubadas em nome de um duvidoso progresso, como em todo o restante do mundo. Márcia pensou com tristeza nas culturas destruídas, nos povos dizimados, nos animais extintos em diversos locais do planeta pela ganância do bicho homem. Felizmente os movimentos ecológicos haviam tido a sua vez, embora tardiamente, embora os interesses econômicos estivessem muito atrelados à proteção à natureza. Como lhe dissera uma canadense, o governo percebera que lucraria mais com os turistas que pagam para ver os ursos vivos do que com aqueles que pagam para caçar. O mesmo quanto ao salmão, pois milhares de pessoas debruçam-se anualmente sobre pontes construídas especificamente para observação da migração dos salmões. ‘Nenhum povo é inocente – pensou Márcia. – E se todos querem tanto preservar a Amazônia, é por já terem destruído as outras florestas.’ A Natureza não deve ser preservada só para o lazer e o desfrute humano. Márcia pensava que a Natureza deveria ser preservada por ela mesma, havendo local totalmente proibidos a entrada de qualquer ser humano, pois os bichos e as plantas merecem o planeta tanto quanto nós. - É verdade que lá no Brasil vocês prendem os índios em cercados para que eles não possam sair da floresta? – perguntara uma australiana para Márcia. - Como? – ela não entendera a pergunta. - Você sabe, aqui no Canadá eles moram com todo o conforto em casa pagas pelo governo, com eletricidade e água encanada. - Bem, respondeu Márcia, no Brasil as reservas indígenas estão nas florestas e não nas cidades. É verdade que elas são cercadas, para que as pessoas brancas não entrem lá sem a autorização. Os índios podem entrar e sair quando quiserem, estudam se querem, alguns são até deputados e senadores em Brasília, muitos fazem faculdade. A questão é que o índio precisa da floresta, do contato com a terra e com os bichos, merece ter a cultura dele preservada. Se nós tiramos a cultura, se o índio é obrigado a ser civilizado, ele acaba ficando alcoólatra. Aliás, todos nós necessitamos da natureza, não só o índio, mas o índio precisa ser protegido da civilização. Eu penso assim. Márcia pensou, mas não disse, que os índios brasileiros não haviam atingido o alto grau de civilização das culturas do norte. Pensou nos ianomanis, que vivem na Idade da Pedra Lascada e são talvez o povo mais atrasado do planeta. Márcia também pensou que seu avô fôra um caçador e matara ursos e veados para comer. Era triste que, para viver, um animal necessitasse matar o outro. Ela pensou

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no costume indígena de agradecer ao animal morto antes de comer sua carne, no costume quase universal de agradecer pelo alimento que renovará nossas energias. ‘Se eu pudesse, me alimentaria de luz...’ – ela sentia-se em paz, cheia de bons sentimentos, pensando na mágica influência das montanhas.

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DESLUMBRAMENTO EM UM PASSEIO MUITO ESPECIAL

Entre os parques Jasper e Banff, a excursão desviou para o Glacier National Park, para visitarem Icefield Center. Márcia ouvia com atenção as explicações do guia. A cada lado da estrada viam a floresta, mas, á medida que subiam – estavam a mais de 3000 m – os pinheiros ficavam cada vez menores. Nos vales viam-se pinheiros de mais de vinte metros, e no topo das rochosas e geladas montanhas os maiores mal atingiam os três metros. Brandon explicou: - Estas florestas de pinheiros têm entre trezentos e seiscentos anos. No solo rochoso as raízes não se aprofundam muito e há tão pouca água no topo das montanhas que estas árvores não conseguem alimentação suficiente para crescer e tornam-se anãs. Reparem que a maioria delas só tem galhos de um só lado. Os ventos gelados queimam os galhos e prejudicam seu crescimento. Márcia pensou nos bonsai, as pequeninas árvores anãs que têm suas raízes artificialmente podadas para ficarem pequenas. Ali ela estava vendo o processo acontecer de forma natural. Os pinheiros anões eram mirrados e de cor amarronzada. Columbia Icefield, a terra dos campos gelados, foi descoberta em 1898 por dois ingleses, J. Norman Collie e Hermann Wooley. Colúmbia Icefield é uma larga placa de gelo de mais de trezentos e vinte quilômetros de extensão encravada nas Rochosas. É a placa de gelo de mais fácil acesso ao sul do Círculo Ártico. Seu centro é uma base com três mil metros de altura. Esta placa formou-se durante a última glaciação, há cerca de dez mil anos atrás e ainda influencia o clima do planeta, pois, a cada primavera, o lento degelo desta placa alimenta três oceanos: o Ártico, o Pacífico e o Atlântico.

Antigamente as pessoas entravam na geleira a cavalo, no local chamado Athabasca Glacier; hoje o trajeto é feito em ônibus especiais - os Snocoaches. As visitas só são permitidas quando o tempo está firme e proibidas quando há chuva, nevoeiro ou tempestades de neve. A borda da geleira tem sofrido retrações anuais, calculando-se aproximadamente um recuo de um quilômetro e meio a cada cento e vinte e cinco anos, sendo que nos primeiros anos do século vinte e um as geleiras têm avançado ao invés de recuar. Devido ao movimento das rochas debaixo do gelo, perigosas fendas formam-se aqui e ali, chegando a ter trinta metros de profundidade.

Brandon deixou os excursionistas no local onde pegariam o Snocoach para levá-los até a geleira Athabasca.

Cada Snocoach era pintado por fora com lobos em frente a uma paisagem gelada. Por dentro eram confortáveis. Os motoristas, na ida e na volta, acrescentavam novas informações. Na ida o motorista falou sobre as avalanches e mostrou ao lado da pista pequenos montes de pedras cinzentas, ou ‘moraines’, resultantes dos

deslizamentos que aconteciam a cada primavera. As pedras, de vários tamanhos, eram geladas, ponteagudas e escorregadias, e ninguém devia tocar nelas.

Cada excursionista fora instruído a levar uma garrafa vazia pra encher com a água que escorria da geleira, uma água tão pura e natural como jamais tornariam a experimentar.

Durante o inverno a neve, caindo nas altas montanhas, vai-se acumulando nos picos eternamente gelados. Quando a altura da neve ultrapassa os trinta metros, seu peso exerce forte pressão nobre as camadas abaixo e o ar entre os flocos de neve é forçado para cima, compactando a neve em sólida placa e forçando a água pelos orifícios das rochas, onde penetram e são coadas; desaguando mais abaixo na primavera em cascatas

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e minas. É a neve compactada que mantém a geleira. Na primavera, quando parte do gelo derrete, é que ocorrem as avalanches que arrastam consigo as pedras que vão se acumulando nas encostas.

A cor do gelo é azul, por ser um gelo compacto. Descendo do ônibus, tiritando de frio, embora envoltas nos agasalhos, as pessoas

enchiam suas garrafas com água gelada e passeavam pelo gelo sólido.

Heide filmou as geleiras e enquanto filmava ia falando em francês: ‘Existe somente uma pequena faixa de gelo por onde é seguro andar. Como o

motorista explicou no trajeto, o gelo é neve compactada. No inverno, o peso da neve força o ar para fora e compacta os flocos em duros blocos de gelo, que então adquirem a cor azul. Apenas poucas bolhas de ar podem ser vistos como buraquinhos negros debaixo de nossos pés. Quando água acima de zero grau cai e se infiltra por estes buraquinhos, a temperatura logo abaixo da superfície aumenta e a água muda de estado, de sólida para líquida. Nos dias quentes, a chuva e o nevoeiro, por estarem a vinte graus ou mais, são capazes de degelar repentinamente grandes camadas de gelo. Em um minuto a pessoa estaria sobre uma coluna de gelo sólido e no minuto seguinte estaria sobre uma coluna líquida de água de dez a quinze metros de profundidade. A pessoa cairia subitamente e seria tragada pela geleira, pois tão depressa como passa de sólido para líquido, a água muda novamente de estado aprisionando o incauto em um sólido bloco de gelo abaixo da superfície. É por isso que não se podia andar pela geleira com chuva ou nevoeiro.’

- Você tem certeza do que disse? – perguntou Márcia.

- Não foi isto o que o guia disse? - Não sei, eu estava distraída procurando o significado de ‘moraine’ em meu

dicionário de bolso, mas este deve ser um termo técnico, porque não encontrei a palavra. - Oh, que pena! - Você sabe – contou Márcia – no Brasil existem religiões de origem africana. As pessoas que seguem estes cultos às vezes acendem velas e fazem oferendas a seus orixás. Uma vez um escritor alemão foi ao Rio de Janeiro, subiu o Corcovado para ver o Cristo Redentor. No caminho deparou-se com algumas destas oferendas e tirou lá as suas conclusões. E então ele escreveu em um de seus romances que os brasileiros fazem oferendas ao ‘deus da montanha’. Ele entendeu tudo errado, não existe nenhum deus da

montanha. - Você acha que eu entendi tudo errado. – surpreendeu-se Heidi. - Não sei – disse Márcia. – O que você acha? - Tenho certeza de ter ouvido exatamente o que gravei, no entanto – e Heidi riu do próprio comentário – como o guia estava falando em inglês existe sempre a possibilidade de ele ter dito alguma coisa completamente diferente.

Márcia respirava o ar gelado, sorvia a água cristalina e olhava admirada o gelo

azul, enquanto o frio subia pelos seus pés. Pensar que aquela placa de gelo estava ali há dez mil anos era de tirar da mente a noção do tempo. Era como estar aprisionada no frio e no silêncio, era como pertencer à eternidade.

Márcia continuava a pensar na importância da geleira. O degelo dos picos nevados alimenta diversos rios, como o Athabasca e o Bow,

a água que brota da terra forma cascatas como a Sunwapta e a Athabasca, ou forma lagos como o Louise e o Maligne. Isto para citar os que estariam a ver nesta semana,

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pois as águas maravilhosas que provêm do gigantesco reservatório gelado é a origem de centenas de fontes, rios, lagos e cachoeiras, causando profundo impacto na vida de plantas, animais, pessoas e no clima de todo o planeta.

O próximo Snocoach chegou, deixando um novo grupo de turistas e levando de volta o anterior. Márcia sentou-se esfregando as mãos, duras apesar das luvas.

O motorista da volta era um mocinho alegre que contou piadas para animar a turma e aqueceu a todos com as boas risadas, pondo-se à disposição:

- Alguma pergunta? - Eu tenho uma pergunta – disse Mara. – quantos anos você tem? - Pessoal, antes de responder, eu quero saber se vocês tomaram a água da

geleira. Todos disseram que sim. - Bem, vocês devem tomar muito cuidado com esta água porque ela tem um

efeito poderoso no organismo. Eu tenho 723 anos. Todos riram. - Que idade você me dá? – perguntou o moço para a brasileira. - Trinta e dois. - Meu Deus, pareço assim tão velho, é? Preciso tomar mais água da geleira! Novas risadas do grupo. Quando passavam por um trator que assentava as pedras caídas pelas últimas

avalanches, o moço brincou: - Acenem para este senhor aí fora e riam muito, por favor, ele é o meu chefe e

quer ver vocês felizes. Todo mundo acenando. Assim! Isso! Quem sabe ele aumenta meu salário.

E quando iam cruzar por outro ônibus: - Vamos enganar este grupo, pessoal? Vamos bocejar e fazer cara triste para eles

pensarem que o passeio é muito chato. Assim brincando, logo estavam de volta para um local mais quentinho, onde

Brandon reuniu todo o grupo para uma foto. Assim que todos se organizaram em três filas em frente a um mastro com a bandeira do Canadá, o fotógrafo ensaiou o grupo, dizendo:

- Quando eu contar até três todo mundo repete: Rocky! E quando todos estavam ensaiados ele aprontou o flash e surpreendeu a todos

dizendo: - Agora, pessoal! Um, dois, três...sexo! Uma alegre gargalhada sacudiu o grupo. A foto saiu com sorrisos realmente

sinceros de alegria e Márcia já não sabia mais se ria de frio ou de prazer. July, que não fôra para a geleira, pois já fizera este passeio no ano anterior,

contou que caminhara por uma trilha indicada por Brandon, onde avistara alces, veados e cabritos monteses com seu binóculo. E depois lera mais dois capítulos do seu livro. Comentou:

- Confesse, a geleira é algo para nunca mais esquecer, não é? Márcia concordou. A experiência de Márcia foi muito mais fantástica por ser inesperada. Quando

fora para as montanhas, ela não sabia que iria conhecer uma geleira. O passeio, assim, ganhara sabor de presente.

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A TERRA SE EXPRESSA

O melhor período para Márcia era o matinal. Ela pertencia ao grupo das cotovias, não ao dos rouxinóis. Enquanto os outros se encolhiam apoiados nos travesseirinhos para dormir um pouco mais, ela olhava pela janela com a maior atenção para não perder um detalhe sequer da paisagem.

Quando olhava para frente, encontrava o olhar de Brandon, que sorria para ela e com gestos comentava ‘todos dormem, menos nós dois’.

Pelas nove, o ônibus fazia a primeira parada e as pessoas se espreguiçavam, sonolentas. Daí por diante Brandon colocava música ou fornecia explicações sobre os passeios pelo microfone de bordo. Em uma das paradas do percurso, o grupinho formado por Alice, Heidi, Mara, Márcia e Márcia reuniu-se em volta de um balcão com pedras as mais variadas. Brandon ficou por perto, para não perder o grupo de vista, já que o restante do pessoal fora tomar lanche. A vendedora mostrou-lhes algumas pedras dizendo que aquelas só seriam encontradas por ali. Alice, que informou ser uma estudiosa de pedras, identificou rapidamente a pedra em questão:

- Diz a lenda que as ‘lágrimas de apache’ surgiram quando o homem branco

expulsou os índios de suas terras. Estes ficaram tão tristes que se puseram a chorar todos ao mesmo tempo. Suas lágrimas caindo na terra se transformaram em pedras negras, em memória dos apaches. Por isso os povos indígenas consideram estas pedras símbolos da liberdade, da força e da saúde. - Que bonito! – exclamaram em coro. Alice continuou: - Estas pedras são obsidianas. São de origem vulcânica, e se formam quando a lava é repentinamente esfriada por água fria ou gelo. Brandon mostrou uma pedra rosa: - Que me diz sobre esta aqui, Alice? - Esta é uma rodonita – sorriu a irlandesa, no seu jeito simpático – é a pedra dos recomeços. Ela dá forças para dominar as mudanças: de casa, de local de trabalho ou aprendizagem. Os gregos levavam consigo uma rodonita em suas viagens, pois acreditavam que ela os protegia dos perigos. - E o que nos diz do jade, esta pedra tão canadense? - Os jades trazem alegria de viver, paz, sono profundo, equilíbrio emocional. Dizem os místicos que o jade ajuda a interpretar os sonhos e favorece a viagem astral. Os maias utilizavam o jade como amuleto do amor e da amizade. - São sempre verdes? – quis saber Márcia, que admirava particularmente certa estátua verde de urso que se via em praticamente todas as lojas de pedras do caminho. - Na China se encontram jades amarelos e pretos, no resto do mundo eles são verdes – disse Alice. Brandon reparou que Márcia usava um olho-de-tigre e perguntou: - Você coleciona pedras? - Não, mas gosto de usá-las como enfeite – e ela mostrou a ele o pingente de jade que comprara, muito bonito, em forma de pato selvagem – Este é o mesmo pássaro representado nas moedas de um dólar, suponho. - Sim, é o nosso loonie – concordou ele. E completou – Você tem bom gosto.

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Aquela parada foi tão rápida que, para aproveitarem as lojas fôra preciso renunciar ao lanche. July, que não pretendia comprar nada, mesmo porque todas aquelas preciosidades não eram novidade para ela, correra até a bakerie e trouxera muffins para todas comerem no ônibus, apesar da careta de desagrado do guia.

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FILHOS DAS MONTANHAS Márcia lembrava-se das estórias que o pai lhe contava quando ela era pequena. Como todas as crianças, ela gostava de ouvir o pai contar estórias do tipo ‘o que

aconteceu com papai quando o papai era assim de sua idade’. Muitas destras estórias

eram sobre as montanhas. “Certa vez, quando éramos meninos, papai nos levou com ele para pescar salmão no Bow River. Levamos nossa canoa na caminhonete. De manhã cedo papai nos ajudou a colocar a canoa na água e ficou pelas margens escolhendo madeira enquanto nós remávamos e nos divertíamos no rio. O rio era raso, de águas claras e cheio de pedrinhas roliças e coloridas no fundo. Nós mergulhávamos, jogávamos pedras e pegávamos peixinhos nas mãos. Quando o pai nos chamou para comer, tirou a canoa da água e disse que brincássemos longe do rio. Comemos o lanche que trouxéramos de casa e o pai ficou trançando galhos de cedro para fazer a armadilha para os salmões. Nós nos deitamos à sombra para descansar, mas o barulho do rio era um convite irresistível. Nós nos afastamos do pai, sentamos na margem com os pés na água e logo estávamos no meio do rio, chapinhando. Então Ralph olhou para mim e nós dois olhamos para a canoa. Sem fazer ruído nós a empurramos para a água, eu pela direita, Ralph pela esquerda. De repente a canoa ficou muito pesada e nós não conseguíamos prosseguir. Olhamos para trás e lá estava o pai, puxando a canoa para trás. Papai não disse nada, apenas colocou a canoa na caminhonete. Não me lembro de meu pai gritar ou ficar zangado conosco. Papai era sempre gentil. A armadilha para salmão estava pronta e nós a carregamos rio abaixo. Estávamos andando há alguns minutos quando lá do alto veio um estrondo e pedras e pedaços de gelo rolaram montanha abaixo e caíram no rio. As águas do Bow River ficavam cada vez mais agitadas, ruidosas e caudalosas à medida que prosseguíamos. O sol estava muito quente e papai comentou: - O calor está derretendo o gelo. E então começaram as corredeiras. As águas rasas atingiam uma velocidade incrível, arrastando galhos e folhas aos saltos através das pedras. Chegamos à primeira de uma série de cachoeiras. A água despencava sobre buracos na rocha. Lá embaixo uma névoa esverdeada, redemoinhos furiosos e, com mais velocidade, o rio se lançava em novas corredeiras. Havia muitos peixes subindo a correnteza. Lobos, pássaros e ursos se aproximavam das margens para pegar os salmões, mas só os víamos de longe. Papai cantava a plenos pulmões para avisar os animais de nossa presença. - Os ursos que estão por aqui estão de barriga cheia e mais ocupados com os salmões do que com gente, mas prefiro não arriscar – comentou o papai. Finalmente chegamos a uma clareira onde o Bow River se espalha para longe dos flancos montanhosos e volta a ficar raso. Ali papai colocou a armadilha. Primeiro ele subiu em uma árvore cujo tronco se inclinava sobre o rio. Ali, em um galho bem grosso, amarou com cordas a armadilha e a jogou no rio. Os peixes pulavam por cima e pelos lados, mas alguns pularam exatamente para dentro – ali estava o nosso jantar e também peixe defumado para muitos dias. Enquanto guardávamos os peixes e recolhíamos a armadilha, papai sugeriu, sorrindo: - Talvez vocês queiram andar um pouco mais de canoa, meninos.

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Ralph e eu tínhamos aprendido a respeitar o rio e respondemos: - Não, pai. O rio ficou um lugar perigoso. - As pessoas vêem o rio raso e calmo e se aventuram por aí, achando que podem confiar no rio.- explicou o pai - Quando elas se seguem rio abaixo, as águas sobem, caem avalanches, a canoa é arrastada pelas corredeiras e as aventureiros são engolidos pelas águas. É por isso que as crianças das montanhas são obedientes. Olhei para Ralph e Ralph olhou para mim. Perguntei ao pai: - Porque as crianças das montanhas são obedientes, pai? - Porque as desobedientes morrem – disse papai, com simplicidade – O rio não ensina a mesma lição duas vezes. Nem a floresta. Nem as avalanches.” Márcia lembrou-se do pai contando esta estória, enquanto olhava as belas águas à sua frente. O guia aproximou-se dela, sorrindo: - Que acha do Bow River, brasileira? - Meu pai cresceu por aqui. – contou Márcia. – Meu avô tinha uma cabana nas montanhas. - Eu também tenho. É um privilégio. Márcia sacudiu a cabeça, sem a intenção de ser rude: - Hoje em dia não é a mesma coisa. Agora está tudo muito civilizado. Barras de segurança, placas, turistas por toda parte. - Isso é muito bom. Significa trabalho remunerado. E depois... há os donuts. – o rapaz piscou – Não é tão mal assim uma cabana aquecida a eletricidade. E eu não faço questão nenhuma de ter de pegar um rifle e sair para caçar um urso para o jantar. Prefiro a comida industrializada. Márcia concordou, e brincou: - Não alimente os ursos e não se alimente dos ursos. - Mas então, você é meio canadense – comentou o rapaz – Vai voltar para o Brasil ou se estabelecer por aqui? - Oh! – exclamou Márcia, encabulada. E pensou: “que farei de minha vida?”

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ESMERALDAS NAS MONTANHAS O lago Louise era um dos muitos lagos de cor cintilante engastados nas Rochosas. As águas têm uma cor ímpar nesta região devido aos gelos perenes em suas profundezas. O lago Louise oferecia a opção de passeios em canoa, mas assim que chegaram lá, viram o vapor frio que subia das águas, apesar de ser um dia quente de verão. Atrás via-se parte da geleira Vitória e em frente ao lago fora construído um hotel luxuoso, o Palace Louise Lake. A diária do hotel orçava em torno de oitocentos dólares. Infelizmente o tempo estava mudando e Márcia entrou no hotel para proteger-se da garoa que chegara junto com rajadas de ventos e uma espessa neblina. O mobiliário era farto em veludos, tapeçarias e cristais. No lustre do saguão, quatro figuras femininas pareciam voar, segurando tochas nas mãos. Márcia enveredou pela galeria de lojas onde comprou um livro de fotos das Rochosas. Aquelas belas fotos profissionais eram pálidos reflexos da coisa real, porém muito mais bonitos que as fotos e filmagens amadoras feitas pelos turistas. Uma das lojas era especializada em enfeites natalinos. Ali Márcia viu árvores enfeitadas com adoráveis ursinhos de madeira, outras com enfeites indígenas esculpidos em prata e maravilhosos presépios de cristal. Havia muitas coisas lindas para se admirar por ali, mas o sol voltara a brilhar e trouxera consigo o calor. O tempo nas montanhas é assim, muda a todo momento. Márcia saiu para passear em volta do lago, observando as canoas e as montanhas ao redor. Na hora do almoço o ônibus foi até um restaurante próximo ao Monte Victoria, onde tomariam as gôndolas até o topo. Embora o restaurante fosse amplo e limpo, a comida consistia de pão, saladas e queijos, que as pessoas combinavam a gosto para personalizar seus sanduíches. Por sorte havia terrinas de sopa quente ao lado, par quem preferia comida quente no almoço. Márcia, que passeara de canoa com Alice durante a manhã, estava muito contente. Disse para as amigas brasileiras que seu inglês melhorara muito, pois Alice fizera a ela perguntas e mais perguntas sobre o Brasil e contara a ela muitas coisas sobre a Irlanda. Márcia estava orgulhosa de seus progressos em inglês e as amigas lançaram-lhe olhares de aprovação e incentivo. Então, ao final do almoço, Márcia perguntou a Alice se ela a acompanharia na gôndola depois do almoço. Falou bem firme e devagar, pronunciando cada sílaba com clareza: -Do you go with me to the top of the mountain by gondola after lunch? Os encantadores olhos azuis de Alice sorriram com simpatia: -Oh, yes! My tomato soup is delicious! And yours? (Oh. Sim, minha sopa de tomate está deliciosa! E as sua?) Foi uma risada só. Quando soube o motivo do riso, Alice, encabulada, afirmou que ficaria contente em ser a companheira de gôndola de Márcia em outra oportunidade, pois uma senhora inglesa que necessitava de ajuda, por usar bengala, pedira a Alice que a acompanhasse. Depois do almoço, esperando ao pé da montanha, puderam observar ursos que passeavam pelas encostas abaixo das gôndolas. Havia uma fêmea com um filhote e Brandon apareceu com dois binóculos para revezar com a turma. Era o suficiente, pois a maior parte dos turistas tinha o seu próprio.

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A GONDOLA DO LAGO LOUISE

Quando subiram em duplas nas cadeirinhas, Márcia sentou-se com Márcia. Márcia não sabia que Márcia não gostava de altura e tomara florais para voar porque seu medo de avião era menor que seu desejo de conhecer a pátria do pai. Márcia estava acostumada com os teleféricos brasileiros, baixos, com traves de segurança de metal firmemente trancadas por funcionários atentos. No Monte Vitória a gôndola era muito larga e um adolescente distraído soltou o assento totalmente aberto a dizer qualquer coisa como divirta-se! ou boa viagem! Márcia puxou o protetor para baixo com as próprias mãos para descobrir que ele se manteria abaixado se ela colocasse os pés em um estribo. Não havia trave, nem cinto nem nada que a segurasse bem firme em seu lugar. Muitas pessoas subiam e desciam com os protetores levantados e até se inclinavam para frente e se balançavam perigosamente sobre o precipício. O ar gelado e a altura da majestosa montanha à sua frente deixaram Márcia mais inquieta. Foi então que Alice, na cadeira da frente, ajoelhou-se voltada para trás com a filmadora em punho. Márcia acompanhou o movimento com sua própria filmadora aos gritos de: - Ursos! Ursos! Lá embaixo dois ursos se deliciavam pastando as delicadas flores amarelas que cresciam rente ao solo. No minuto seguinte, como a gôndola prosseguisse seu caminho ursos acima, Márcia jogou-se para trás com o mesmo entusiasmo, a fim de mudar o ângulo de filmagem. A cadeirinha se balançou de tal forma que Márcia agarrou-se às laterais sentindo o estômago rodar. Morro acima, Márcia foi pulando para a direita, para a esquerda, inclinando-se nos mais arriscados ângulos, convidando: - Olhe para trás, Márcia, a vista daqui é fantástica! Estamos a uma altura incrível! Márcia sabia que estavam a quase 3500 m de altitude. Ficar pendurada em gôndolas e cadeirinhas de teleféricos certamente não era a mais confortável das atividades para quem tem medo de altura, mais seu amor pelas montanhas era tal que ela permitiu-se olhar, de relance, para o vazio branco e gelado a suas costas. Lá em cima, a vista era muito bonita. Márcia imaginou como seria estar por ali no inverno, e desejou esquiar. Talvez ela pudesse tomar umas aulas antes mesmo do inverno, talvez com os primos. Brandon conversava ora com um grupo, ora com outro. Por fim chegou perto das brasileiras que estavam discutindo sobre a altura dos picos mais altos. Brandon esclareceu que havia cerca de trinta picos com mais de três mil metros de altura, que as Rochosas prosseguiam até o México e que haviam surgido há aproximadamente oitenta milhões de anos. O tempo passou rapidamente e chegou a hora da partida. Márcia e Márcia ficaram conversando com Brandon, enquanto ele ia embarcando as pessoas da excursão nas gôndolas, até que todos foram embarcados e só ficaram os três. Ele então perguntou para elas que tipo de gôndola preferiam e as duas responderam ao mesmo tempo: - Aberta- disse Márcia. - Fechada – disse Márcia. Brandon parou a próxima gôndola – era aberta – e embarcou Márcia. - Você vai me deixar sozinha, Márcia? – ela fez um biquinho infantil.

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Márcia concordou e fez um gesto de adeus. Brandon parou a próxima gôndola, fechada, e embarcou com Márcia. - Está um vento muito frio – comentou ela. Ele comentou que as gôndolas abertas permitiam uma visão mais bonita da paisagem, e ela falou de repente e bem rápido: - Vocês, canadenses, são completamente malucos em alguns pontos. No Stanley Park o bondinho puxado a cavalo, a dez km por hora se muito, não sai do lugar se todos os assentos não estiverem com as cordinhas devidamente amarradas. Já aqui no parque, estas cadeirinhas não têm trave de segurança nem cinto, e ficam balançando a 300m do solo, sobre placas de gelo e ursos , sem nenhuma segurança! Emocionante! Ele olhou surpreso para ela. Seu olhar foi do fio de aço acima deles para o precipício à frente. Então ele comentou, mais para si mesmo do que para ela: - Ah, você está com medo. Bem, eu nunca soube de um acidente neste teleférico. Subitamente ela compreendeu e agarrou-se de modo irracional à barra de apoio à sua frente. Se o fio de aço acima deles arrebentasse, não haveria cinto de segurança ou trave capazes de amenizar o desastre. Seria uma queda livre de 300m sobre um declive de centenas de metros sobre pedras pontiagudas, placas de gelos e fendas abruptas. Ela nem precisaria se preocupar com os ursos. - Em minha opinião esta é a visão mais bonita que se pode ter das Rochosas – disse Brandon, mudando de assunto e mostrando as montanhas ao redor.

Trezentos e sessenta graus de picos branquinhos de neve eterna, a se perder de vista em um azul absolutamente indescritível. E o ar! Ar fresco, leve, cheirando a cedro e a pinho. O silêncio envolvia tudo. Márcia esqueceu-se de que Brandon estava a seu lado. Mergulhou na contemplação da paisagem durante os vinte minutos que durou aquela primeira e mais alta etapa do trajeto. Abaixo dela, a encosta íngreme da montanha deslizava vagarosamente em direção a um elevado, e quando a gôndola parecia que ia encostar no chão, o obstáculo ficava para trás e estavam subitamente suspensos a uma altura incrível, deslizando suavemente para a frente como se dançassem nos céus. Uma tontura passageira e então de novo a sensação de flutuar tão alto que tudo lá embaixo parecia pequeno demais para ser levado a sério. Um pássaro devia sentir algo parecido ao sobrevoar os picos. Todas aquelas montanhas ao redor convidando o olhar, hipnoticamente atraindo e mostrando a exuberância e a grandeza da natureza. Pareciam dizer: nós somos eternas. Mas não eram. Eram montanhas novas, tão novas na história do planeta que permaneciam altas e ainda em movimento. Sua firmeza era pura ilusão. Mas eram inegavelmente magníficas. A contemplar as montanhas uma pessoa esquecia de si mesma, quem era, onde estava, para quê, como e porquê. Todas as coisas mundanas desapareciam e uma realidade nova nascia na consciência, como uma luz. Em meio ao frio e ao gelo, Márcia sentiu um calor agradável e aconchegante dentro do peito. Era como se ela soubesse que sempre estivera ali, e estaria ali para sempre, em todos os momentos de sua vida. ‘É como meu pai dizia – lembrou-se ela – um mergulho na eternidade.’ Pois toda a sensação de passado, presente ou futuro desaparecera. Todo o medo se fôra. Parecia que qualquer coisa diferente das montanhas era ilusão passageira e toda a verdade da vida estava ali, oculta na paisagem, de presente para ela, Márcia, naquele momento precioso e único. Estavam chegando ao primeiro lance do trajeto, onde trocariam de gôndola. Brandon estendeu a mão para ajudá-la a descer sem dizer palavra. Ela apontou para uma gôndola aberta. Desta vez não sentiu medo nem se incomodou com o frio cortante em seu rosto. Respirava pausada e profundamente, sem tirar os olhos das montanhas. Sem

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que trocassem um única frase, Márcia sentiu que ele entendia o que ela estava sentindo. Ele nascera nas montanhas. Ele deveria ter se sentido assim, tocado por elas, desde muito pequeno. Como o pai dela. ‘Oh, papai! – pensou ela, com se ele pudesse ouvir – Como pôde deixar as montanhas?’ Mas no fundo do coração ela sabia a resposta. Ele jamais deixara as montanhas. Como ela também não deixaria. Ela levaria as montanhas em seu coração. Elas estariam com ela em cada minuto de sua vida, para sempre, pois ela fora tocada pelo Eterno. Quando chegaram ao fim, Brandon comentou: - Espetacular.

Na verdade, qualquer palavra parecia pequena demais para descrever esta experiência. Márcia apenas comentou:

- Agora não sinto mais medo. Só alegria. E ela lembrou-se das palavras de Nietzsche em Assim Falava Zaratustra: ‘toda a

alegria quer a eternidade, a profunda, profunda eternidade.’

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BANFF

Em alguns lugares afloravam nas montanhas nascentes de água quente, borbulhando das profundezas da terra. Nestes locais, os canadenses haviam construído piscinas para banhos termais. Nesta tarde, quem quisesse poderia permanecer por algumas horas em uma dessas termas, chamada de Hot Springs. Os demais poderiam ficar a fazer compras na cidade de Banf ou passear por trilhas ecológicas. Márcia, que escolhera fazer compras, estava brava. As vendedoras asiáticas que estavam por todas as lojas da cidade pareciam só compreender duas sentenças em inglês: ‘vou levar’ e ‘quanto custa?’ Ela gostaria de perguntar sobre o estranho bonequinho que chamara sua atenção em inúmeros lugares, mas até agora não obtivera sucesso. Voltou-se para procurar ajuda e quase esbarrou em Brandon, que olhava uns casacos de couro bem atrás dela. - Será que posso ajudar? - Acho que sim – respondeu Márcia – O que são esses bonequinhos de pedra? - Ah – sorriu o guia – isto é o que eu considero o mais canadense dos símbolos. Este bonequinho é o inukshuk. Quando os inuits saem de casa, costumam deixar mensagens em pedra para os que passarem depois dele pelos mesmos lugares. Essas mensagens de pedra têm diversos significados. Esta, em particular, significa ‘este é um

bom lugar para pescar’. - Minha tia tem um desses em seu jardim – comentou Márcia. - Sua tia pesca no jardim? – ela fingiu-se de brava com a brincadeira dele, mas depois respondeu: - Bem, depende do que você está pescando. Ele a levou para o balcão dos livros – toda loja tinha o seu – e mostrou um livro sobre os inukshuks. Márcia repetiu três vezes até acertar a pronúncia correta. Brandon, com muita paciência, contou a ela como os inuits se comunicavam em seu particular código de pedras. E então sugeriu: - Compre em Vancouver que é mais barato. Posso fazer um convite? Se você quiser tomar uma cerveja com mel, há um excelente bar aqui em frente. Ainda temos vinte minutos até que o ônibus volte com o pessoal de Hot Springs. Márcia o acompanhou. A honeybier, a tal cerveja com mel, era rosada e de gosto suave. - Delicioso – comentou ela – O teor de álcool da cerveja canadense, e dos outros drinks que tomei, é muito baixo. No Brasil, as bebidas são todas muito, muito fortes. - Você bebe? – ele perguntou. - Quase nunca – ela respondeu – Sou viciada em água de coco e em suco de laranja. Natural, como a gente não encontra por aqui. - Deve ser maravilhoso morar em uma terra onde as frutas crescem – disse ele – E para vocês este é um comentário estranho, você deve pensar, ‘ora, mas é claro que as

frutas crescem.’ No Canadá elas não crescem. Só em um vale muito visitado e

admirado, perto de Vancouver, o Okanagan. - Onde fazem o vinho? - Sim, o vinho feito de uvas congeladas – disse ele – depois de duas noites frias, na mesma temperatura, é preciso colher as uvas antes que estraguem. É preciso o número exato de horas em uma exata temperatura para que o sabor do vinho fique perfeito. Você deve provar. Ele pagou a cerveja e despediu-se, pois precisava acertar uns detalhes do trabalho no hotel. Ela ainda passeou pelo centro de Banff, olhando sem nada comprar,

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pois os preços de qualquer coisa eram pelo menos quatro vezes mais caros que em Vancouver.

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DIAS QUENTES, NOITES FRIAS Os passeios nas montanhas terminavam por volta das sete, quando o ônibus deixava a turma em frente ao hotel. Nos dias que passaram no Banff National Park hospedaram-se no Hotel Howard-Johnson, no vilarejo de Canmore. A Bow Valley Trail passava ao lado do hotel e os imensos vagões carregados de contêineres duplos, com o som peculiar aos trens, passavam chacoalhando à luz do entardecer. Márcia espairecia a caminhar ao longo da rua principal, espremida entre as gigantescas montanhas, observar os céus à procura de águias, entrar em algum supermercado à procura de deliciosos cookies recheados. Passeava enquanto aguardava que as companheiras de quarto terminassem o banho. Banho de banheira, com a água cristalina das nascentes. Às oito e meia jantavam. Depois, Brandon levava os que queriam prolongar a noite a bares onde podiam ouvir música, jogar sinuca ou futebol de mesa, saborear as bebidas de leve teor alcoólico e jogar conversa fora. Os casais dançavam e as moças suspiravam, lamentando a escassez do elemento masculino. Os únicos dois ‘solteiros’ do grupo estavam acompanhados das respectivas

namoradas. Brandon não contava, pois Brandon era profissional o suficiente para não envolver-se em conversas ou situações ambíguas. Na verdade, Brandon dançara com uma mulher que viajava sozinha – uma professora de dança aposentada de setenta anos que resolvera ensinar tango ao rapaz, provocando risadas e aplausos da platéia. Antes das onze voltavam ao hotel, tiritando ao vento gelado das montanhas e era agradável afundar-se debaixo dos grossos edredons e adormecer na expectativa de outro amanhã feliz. Alces, ursos e gelo já se integravam ao cotidiano de Márcia quando a excursão terminou. Entre a vontade de reencontrar a família e o desejo de continuar passeando, ficava a certeza dos momentos bem vividos registrados para sempre na memória. A despedida desta excursão foi semelhante a tantas outras despedidas. As pessoas trocaram e-mails, telefones e endereços, na promessa de futuros contatos e envios de fotos; promessas nem sempre cumpridas, feitas apenas por educação ou devido ao entusiasmo do momento. Márcia abraçou Márcia, contente, dizendo: - O ano passado estive em Londres, onde conheci bons amigos que até hoje me escrevem e que me enviaram um bocado de fotos por e-mails. Espere que nesta viagem eu também tenha sorte. Márcia, que se despedira de todos apenas verbalmente – era o costume deles – correspondeu ao abraço apertado e bem brasileiro da simpática Márcia. Ela certamente incluiria a nova amiga em sua lista de e-mails. Nos próximos dias teria postais e fotos a enviar e muito que escrever aos parentes e amigos do Brasil. A nota cômica da despedida ficou por conta de Heidi, que despediu-se dizendo:

- Então, meninas, se vocês forem na excursão do próximo sábado para Victoria, nós nos encontraremos aqui. - Excursão para Victoria? No sábado? Você tem certeza? – as brasileiras, Alice e July se entreolharam, confusas. - Claro que tenho certeza! O guia disse. – e então Heidi finalizou com a frase que se tornara uma das piadas particulares do grupo – Como o guia falou em inglês,

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sempre existe a possibilidade de ele ter dito alguma outra coisa completamente diferente. E Márcia perguntou, com sua graciosa espontaneidade: - Oh, por que eu não estou surpresa com isso? E alegremente o grupo dispersou-se.

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PARTE III

ESTE É UM BOM LUGAR

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AFETO E ABRAÇOS

No sábado, Márcia acompanhou a tia Anne ao mercado Londale Quay em North Slore. Este não era um ponto freqüentado por turistas. Tratava-se de um alto pavilhão em frente ao mar, fazendo face aos altos prédios da downtown do outro lado da baía. No andar superior a tia mostrou-lhe as lojas mais bonitas, onde eram encontrados, a preço razoável, quadros, artigos de couro e roupas finas. No andar de baixo Márcia acabou comprando algumas quinquilharias – um relógio de pulso com o desenho da folha de plátano em seu mostrador, baralho de cartas com paisagens canadenses, revistas. As compras de frutas, verduras e frutos do mar vieram a seguir. Márcia maravilhou-se com a beleza e o frescor das frutas tropicais. A tia comprou salmão, caranguejos – ela os escolheu vivos de um aquário – camarões e conchas. Na bakerie comprou pães e tortas para levar e muffins para comerem ali mesmo, nas mesinhas com vista para o mar. O catamarã e alguns barcos de passageiros singravam as águas majestosamente. Dezenas de gaivotas voavam em espiral. À tarde lavaram roupa e arrumaram a casa. No domingo partiriam para Whistler a fim de buscar os primos. Quando Bridgit chegou do trabalho, colocou música country no aparelho de som – bem baixinho para não incomodar os vizinhos – e ficou escolhendo as favoritas de Márcia para gravar outro CD especial para a prima. Tio Ralph trouxera salada de batatas de uma rôtisserie e estava preparando um churrasco na grelha do quintal. A tia juntou tomates cerejas e cogumelos à salada de batatas e colocou os pratos na mesa de ferro lá de fora. - Estou pensando em estudar aqui, tio Ralph. Quero trabalhar com turismo. Posso ser guia internacional, o que seria espetacular! O meu dinheiro rende o suficiente para as despesas menores, o carro que era da mamãe está no Brasil para vender e com o dinheiro posso pagar o primeiro ano da faculdade. Alugo meu apartamento no Brasil - aliás já encontrei um casal interessado um alugar por três meses, quando fui às Rochosas, uns ingleses que vão me pagar mil dólares por mês, e assim tenho condições de me manter, mesmo que não more mais com vocês. - Fique conosco o quanto quiser – escandalizou-se tio Ralph – e eu jamais irei cobrar pela sua comida ou hospedagem! Que idéia! Você precisa verificar em que cidade vai estudar, não? - Vamos visitar a universidade na segunda-feira? – propôs Bridgit – Poderemos ir à praia ou visitar o museu de Antropologia ou ambos. - E seu trabalho, Bridgit? - Terminei hoje, Márcia. Eu sempre reservo umas duas semanas de férias para mim mesma, para meu lazer. Para sentir o gostinho das férias. - Será maravilhoso ter todos os filhos em casa por duas semanas – tia Anne sorriu satisfeita – Posso organizar um pic-nic e mimá-los um pouquinho. Você vai finalmente ver um jogo de basebol, pois o Christian treina todo final de tarde, e poderá acompanhar a turma até o campo aqui perto pedalando. É uma turminha alegre, você gostará deles. Ah, como Márcia sentia-se realmente em casa! Na agradável noite ensolarada e silenciosa, entre os parentes risonhos e gentis, Márcia sentiu-se confiante para perguntar:

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- Tia Anne, porque meu pai nunca voltou ao Canadá? O tio engasgou. Márcia continuou: - Mamãe queria vir e eu também. Mas papai negava. E eu nunca entendi, pois ele falava com entusiasmo do país, especialmente das Rochosas e das terras geladas do norte, que pretendo conhecer. Tenho certeza de que mamãe gostaria da senhora. Tia Anne olhou para o marido com seu jeito doce e firme, como se dissesse: Acho que ela deve saber, Ralph. Atentas, Bridgit e Márcia inclinaram-se para frente. - Eu conheci a Anne em uma viagem que fiz a Quebec. Anne morava em Winnipeg e estava passando férias em Quebec. Eu me apaixonei imediatamente e ela também. Conversando, descobri que ela passara a infância e os primeiros anos da adolescência aqui em Vancouver e que nós tínhamos sido praticamente vizinhos. Nossa família viera para Vancouver quando eu estava com quatorze anos e seu pai com doze.- disse o tio – Então, bem , é claro, eu não me lembrava de Anne porque não estudáramos na mesma classe, mas ela se lembrava de meu irmão – aqui ele olhou para a esposa, que continuou: - Paul foi meu primeiro namorado, e eu fui a primeira namorada dele também. Nós estudávamos na mesma classe, andávamos juntos de bicicleta, fazíamos as lições juntos, íamos ao cinema, nos encontrávamos praticamente todos os dias até que, quando completei quinze anos, papai levou a família para Manitoba e perdi contato com Paul. Cinco anos mais tarde encontrei Ralph e me apaixonei por ele. - Quando meu irmão soube que eu ia casar com Anne ficou muito bravo – contou o tio – Inventou de fazer um curso no Brasil e nunca mais voltou. Partiu antes do meu casamento para não se encontrar com a Anne, e só mandava cartões de Natal e de aniversário. Nossos pais já haviam falecido, assim não havia outros vínculos que o chamassem de volta. Ele casou-se dois anos depois, mas não enviou convite, só comunicou o fato consumado. Márcia estava em lágrimas: - Então tia Anne poderia ter sido minha mãe! Sabe, minha mãe era loira, alta, de olhos claros, brincalhona, tão carinhosa... vocês duas eram mesmo muito parecidas, meu pai... Meu pai deve ter gostado mesmo da senhora! - Tudo isto pertence ao passado – comentou tio Ralph com tristeza na voz – você é a filha do meu irmão e pode morar conosco pelo tempo que quiser. Márcia abraçou os tios e deu um beijo no rosto de cada um, e eles ficaram encabulados quando ela acompanhou o gesto com estas palavras: - Eu amo vocês. - E eu, não? Márcia enlaçou a prima pela cintura e sapecou-lhe dois beijos estalados nas bochechas: - Amo você também, prima. - Ei, não exagere. Márcia riu: - Os brasileiro abraçam e beijam uns aos outros o tempo todo. Tenham paciência comigo e aceitem meus abraços. Prometo não fazer isto em público, mas é muito importante poder demonstrar carinho. Por favor! Vocês sabem, tem um ditado que diz que uma pessoa precisa dar sete abraços por dia, senão tem de dar quatorze no dia seguinte e se ficar mais de um mês sem abraços, morre! Tia Anne abriu os braços para Márcia, sorrindo, e tio Ralph falou:

- É o jeito brasileiro, não? A gente acaba se acostumando, eu acho.

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NEVE NO VERÃO Os dedos e o nariz de Márcia estavam frios fora dos acolchoados macios. Ela escondeu as mãos sob os fofos travesseiros e suspirou. Pelas frestas da persiana de madeira pôde ver que lá fora uma neblina espessa escondia a casa da árvore que normalmente avistava no quintal. Chovera durante a noite e a temperatura esfriara bastante. Aquele era o dia em que conheceria os primos, Stuart, de dezoito, e Christian, de dez. Bridgit falava pouco dos irmãos: ‘meninos!’- mas qual irmão não tem ciúmes do outro? Márcia lera em seu guia que até 1964 não havia asfalto até Whistler, que só recentemente se transformara em um centro de lazer procurado durante todo o ano. No começo do século vinte eram precisos três dias para ir de Vancouver até Whistler, incluindo um dia de bote até Squamish. Atualmente, de carro, o percurso leva pouco mais de duas horas, a princípio costeando o Pacífico e por fim penetrando pelas montanhas. As mais íngremes encostas das Montanhas Whistler permanecem com neve mesmo durante o verão. Saíram tarde devido a neblina, mas o dia finalmente mostrou-se claro e sem nuvens, esquentando rapidamente. Como um canadense, Márcia foi ‘descascando’ pelo

caminho: tirou o casaco, o gorro, a blusa de manga comprida, as luvas... À tarde iria recolocando as peças, uma por vez. A cidade de Whistler era espalhada, com muitas praças, fontes e pontes. Havia árvores por toda parte, e pareciam todas iguais. Márcia não achou fácil localizar-se. Ela via-se à frente de um grande pinheiro; rodeada por outros grandes pinheiros e com outro grande pinheiro por detrás. Não era possível enxergar nenhum ponto de referência além da placa com o nome da rua. Passava-se de uma praça para outra através de pontes. Todas as praças tinham uma estátua e todas as pontes estavam sobre água. Ora era um lago, ou um chafariz, ou uma cascata. A estátua variava: um urso, um castor, um alce... O conjunto parecia igual para Márcia: uma praça, uma ponte, uma estátua, água. Para complicar, algumas ruas eram sinuosas, de modo que ela podia dobrar uma esquina, seguir em linha reta e dali a duas quadras estar exatamente na mesma rua que pensara ter deixado para trás. - Vai ficar mais fácil quando você decorar o caminho para o teleférico – consolou Bridgit. Por via das dúvidas, Márcia grudou em tia Anne. Tio Ralph falara no celular com os meninos e informou: - Os garotos estão lá em cima, despedindo-se da pista de esqui. Vamos subir e almoçar com eles, depois que a Bridgit se exercitar um pouco, é claro. Pois Bridgit trouxera sua prancha de snowboard. Márcia, que nunca vira neve, teria de ficar olhando, pois no verão não há lições para principiantes. O tio explicara: - Nesta época só as encostas mais perigosas permanecem geladas e só os esquiadores experientes podem ter acesso às pistas. Bridgit exibiu seu sorriso orgulhoso de ‘esquiadora experiente’ e declarou: - Daqui a seis meses você vai esquiar até enjoar.

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As cadeirinhas que levavam as pessoas montanha acima tinham um largo suporte atrás dos assentos, apropriado para a colocação de esquis e pranchas. A longa subida até o topo foi lenta, com duas estações intermediárias de translado. Lá em cima, avisados pelo telefonema do pai, Christian e Stuart estavam esperando a família. Stuart era um rapagão alto e loiro, magro, de poucas palavras; Christian, um garoto gorducho e rosado, com covinhas no queixo e sorriso largo. Os meninos perguntaram muitas coisas para Márcia: sobre ela mesma, sobre o Brasil e sobre o tio que não haviam conhecido. Bridgit foi aproveitar o restante da manhã na pista de snowboard, enquanto os outros conversavam e se instalavam no terraço do restaurante, que era também um mirante. A vista era magnífica. As filas de esquiadores desciam por várias trilhas. Para subir, eles não se cansavam; agarravam-se em longas cordas penduradas em roldanas e deixavam-se arrastar montanha acima. Muito prático. A pista de snowboard, onde estava Bridgit, era parecida com uma pista de skate, só que era de neve ao invés de concreto. - O acampamento foi ótimo, pai. – disse Christian – E o Stuart é um monitor e tanto, pelo que ouvi os outros meninos falarem. À noite esfria e sinto saudades dos passeios de bicicleta em North Shore e de nossos jogos de basebol no campinho perto de casa. - Estou ansioso para gastar o dinheiro que ganhei – falou Stuart – Recebi meu salário hoje pela manhã. Vou aplicar uma parte, é claro, mas uma parte é minha, para comprar uns CDs novos e alguma roupa. Havia muito o que conversar, e havia horas em que todos falavam ao mesmo tempo. Quando Bridgit chegou, pediram o almoço e a conversa continuou animada. A comida ficou fria no prato enquanto todos falavam e falavam e falavam. Depois, desceram a montanha. O tio foi com os filhos ao alojamento pegar a bagagem e as mulheres ficaram no campo de golfe. Assim Márcia também teve seu tanto de diversão. E, ao final da tarde, bronzeados, cansados e felizes, voltaram para casa.

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O CORVO E OS PRIMEIROS HOMENS

Quem vem pela praia vê em primeiro lugar as casas haídas com seus totens à frente. Desgastados pelo tempo, estas esculturas, colocadas em frente ao Museu de Antropologia da Universidade de British Columbia, são uma amostra do que o visitante encontrará no interior do museu.

- É melhor deixar a visita ao museu para depois – sugeriu Bridgit – ele é imenso, e acho que mamãe gostará de ir conosco. Não os meninos, eles são mais de esportes do que de artes, você sabe. - Sei – respondeu Márcia. Márcia e Bridgit estavam há horas caminhando pelo campus da universidade, pegando informações sobre documentos, provas, datas e endereços dos locais onde Márcia poderia estudar no próximo ano letivo. Os pais e os primos estavam na praia, aguardando que as moças aparecessem para juntos irem almoçar. Os estudantes tinham uma longa faixa de praia praticamente para si próprios, além de um campo de golfe. No campus, os ônibus da cidade paravam à entrada e então as pessoas podiam escolher entre o 20 e o 4, duas linhas que circulavam apenas pelas ruas da universidade, Márcia desistiu de contar quantas igrejas diferentes encontrou por lá, uma para cada credo. Havia dormitórios imensos para cada país: Japão, Coréia, China, México, Estados Unidos, mas ela não achou nenhuma com o nome Brasil. Havia uma casa para as demais nacionalidades, onde ficavam os estudantes estrangeiros menos numerosos, e, evidentemente, havia alojamentos para os canadenses.

A tia trouxera tortas e frutas para um pic-nic, além de sucos e água. Depois que comeram, eles colocaram todo o lixo em um saco para ser levado embora. Assim a areia continuaria limpa. - Enquanto vocês vão ao museu, nós vamos nos exercitar um pouco – disse o tio – Stuart trouxe bola, Christian trouxe a peteca, e eu peguei o fresbee. - Nós ficaremos melhor à sombra – comentou Márcia, ajeitando seu boné de basebol. O boné, com a parte central retificada, protegia do sol sem limitar a visão frontal e dava a seu rosto um aparência alegre. Márcia não gostava do sol, e, mesmo ali em Vancouver, passava filtro solar diariamente. - Você terá um longo inverno pela frente – aconselhava a tia – Vai sentir falta do verão antes do que pensa. Aproveite o bom tempo enquanto puder, pois os dias ruins são certos. - A vida não seria possível sem os dias chuvosos – retrucou Márcia.- E a chuva e a neve têm, com certeza, uma beleza própria. Anne e Bridgit se entreolharam, sem comentários. Márcia compreendeu o que elas pensaram, e resolveu aproveitar mais o ar fresco e os belos dias ensolarados daquele verão. Colocando seus vestidos de verão por cima dos trajes de banho, calçando as sandálias e ajeitando os cabelos, em minutos as três estavam prontas. À entrada do museu, admiraram os entalhes da porta em cedro, ela própria um objeto de arte. A exposição iniciava-se com antigas esculturas de animais, tão antigas que os estudiosos não tinham certeza de qual tipo de animal elas representavam. A sala mais ampla, o salão, era envidraçado e permitia que se visse lá fora, em frente ao museu, as casas haídas com seus poles expostos ao tempo. Corredores e prateleiras se sucediam, com belos trabalhos em madeira, contando as tradições dos povos das primeiras nações. O que mais impressionou Márcia foi uma

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escultura de uns cinco metros de diâmetro, em cedro, esculpida pelos haídas, representando a lenda da criação dos primeiros homens. Ela leu em seu guia um pouco da lenda do Corvo: “No início dos tempos, uma mulher gritava porque ainda não tivera filhos. Então Heron, a garça, lhe disse para ir até a praia e procurar por uma pedra redonda, acender uma fogueira e aí colocar a pedra; quando esta estivesse bem quente e escura, a mulher deveria engolí-la. A mulher seguiu as instruções de Heron e deu a luz Raven, o Corvo. Por isto é que o corvo é negro e ‘esquentado’. ·”. Raven foi uma criança turbulenta que atraía desastres: caía no fogo, queimava-se com água fervente, galhos se quebravam sobre ele, sua canoa naufragava. Ele sobreviveu a todos estes desastres graças a seus poderes sobrenaturais. Por ter seduzido a filha do Céu, o mundo foi castigado com uma inundação, da qual ele escapou voando em forma de pássaro, salvando também sua mãe. O corvo, em suas aventuras maravilhosas, é o responsável pela libertação do sol e da lua, pela regulação das marés, pelo mar estar cheio de peixes e até pela criação do primeiro salmão. Certo dia, o Corvo passeava pela praia quando sua atenção foi atraída por uma concha gigante de marisco, dentro da qual estavam espremidas pequeninas criaturas. O Corvo libertou-as, pegou-as em seu bico e levou-as até uma poça cheia de moluscos. Os moluscos comeram as pequenas criaturas e foram engordando, aumentando de tamanho até que cresceram muito e deram a luz os seres humanos em seu tamanho de hoje. Foi assim que o Corvo libertou e ‘criou’ os primeiros haídas.” O Corvo é considerado um símbolo de honra. - Já reparou, mãe, como a Márcia gosta do Corvo? - Como não gostar destes maravilhosos símbolos? – e Annea confessou – Eu mesma gosto muito do Sol e do Salmão. - A senhora gosta dos quadros – disse Bridgit – A prima além de gostar, sairia voando por aí se pudesse. - Eu saí voando – corrigiu Márcia – Eu peguei um avião e vim para cá, não vim? O Corvo para mim representa alguma coisa, realmente. Meu passado obscuro, a possibilidade de transformação, sei lá. Que importa? É um símbolo forte para mim. - Eu tenho às vezes a impressão de estar voando, quando estou voltando nas gôndolas, montanha abaixo, e o ar gelado congela meu rosto. – disse Bridgit. – Mas se eu tivesse de ser um pássaro, eu escolheria ser uma águia. Anne comentou: - Acho que nós temos todos estes símbolos aqui dentro – ela apontou para o coração - E agora nós vamos ver alguma coisa diferente, dragões, pois vamos para a ala oriental do museu. Porque o Museu de Antropologia tinha muito mais do que objetos canadenses; tinha coleções e catálogos de muitos objetos vindos da Polinésia, América Central e Ásia.

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UM PRESENTE

Márcia já estava há um mês em Vancouver, e ainda não se cansara de passear pela marina que se estendia do Stanley Park ao Canadá Place. Antes de ir ao cinema, ou após fazer compras na George Street, ela costumava sentar-se no mesmo café que ali conhecera após o primeiro documentário visto no Omnimax, e esquentava as mãos no simpático copinho canadense enquanto ia sorvendo aos golinhos a cheirosa bebida. Por vezes ela ia até a Chapter’s, a livraria de três andares situada na Robson

Street, e trazia algo para ler. Na Chapter’s era possível encontrar o mesmo livro em

edição de luxo ou em formato de bolso, e até gravado em fita ou impresso em tipos enormes, na seção de deficientes visuais. E, como Márcia amava os livros, ela ia a cada semana aumentando sua biblioteca, preferindo os autores canadenses, para melhor inteirar-se da cultura local. Márcia estava sentindo-se muito bem com suas decisões. Lembrava-se do dia em que resolvera viajar, de como a imagem do Corvo em seu livro parecera chamá-la para conhecer a terra de seu pai. Embora seu pai não descendesse dos haídas e sim de ingleses, ela adivinhava que ele também sentira o mesmo fascínio que ela pela cultura das primeiras nações. E ninguém passeia ou vive nas montanhas sem se sentir contagiado pela presença dos alces e dos ursos. O mundo moderno podia ser prático e eficiente, com seus computadores e aquecedores centrais, mas a humanidade perderia muito se desprezasse a poesia e a arte dos antigos. Distraída, a moça ia pensando nos mitos e poles fascinantes, sentindo-se ela própria parte das cores e da luminosidade da paisagem. O costume a fez atentar para o relógio, pois apesar de ser verão, a cafeteria fechava as cinco em ponto, bem como o comércio central.

Márcia entrou na sua casa de café preferida e lá estava Brandon, na primeira mesa, com seu enorme sorriso, a convidá-la para sentar-se em frente a ele. - Que coincidência! – exclamou Márcia. - Na verdade, não – confessou ele.- você contou que costumava vir aqui no final da tarde e há três dias venho aqui para encontrar você. - É mesmo? Bem, aqui estou. O garçon se aproximou para confirmar se o pedido seria o mesmo de todos os dias: um chocolate quente pequeno e um brownie. Depois os dois jovens ficaram a sós. Trocaram algumas frases alegres, e então Brandon tirou do bolso uma caixinha e falou: - Quero que leve esta lembrança minha para o Brasil. - Eu não vou voltar. Pelo menos não durante os próximos três anos. - Como? – ele pareceu agradavelmente surpreso. - Vou estudar aqui. Turismo. Sou filha de canadense, tenho família aqui, vou conseguir um visto de permanência. - Turismo? – afinal, ele era um profissional do ramo. – Bem, você pode conseguir um estágio ou trabalho de férias na agência em que eu trabalho. Eu posso lhe dar apoio, dicas...conte comigo. Márcia ia abrir o presente, mas ele a impediu: - Não abra agora. Por favor, abra quando chegar em casa. Eu... – o rapaz ficou corado e abaixou os olhos – posso convidar você para jantar comigo hoje à noite? Deixe seu endereço e eu posso pegar você lá pelas sete e meia, acho que é um bom horário.

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Márcia ficou um momento sem respiração, sentindo o coração pular selvagemente dentro do peito: - Sete e meia está perfeito. Olhe, aqui está um dos cartões do tio Ralph – ela escreveu atrás seu próprio nome e o número de seu celular. Brandon já estava se levantando e se despedindo, mas ela não entendeu o que mais ele falou, pois estava emocionada. Bridgit sempre dizia que quando um rapaz canadense convida uma moça para sair é porque já pensou muito no caso e já está levando o relacionamento a sério, e completava, para mexer com a prima: - Os latinos é que são superficiais. - Os latinos são é românticos. - Que é que há de romântico em palavras doces e mentirosas? – e Bridgit dava de ombros, com sua frase predileta para terminar discussões: - Culturas diferentes. Mais tarde, em casa, enquanto se arrumava, Márcia contou para a prima os detalhes do convite. Bridgit torceu o nariz: - Um homem das montanhas! Márcia não sabia se a prima falava a sério ou se estava a zoar com ela, e lembrou: - Nossos pais são homens das montanhas. - Justamente. Abra o presente do seu Brandon. Deve ser algum alce ou algum urso, pois é só nisso que eles pensam o tempo todo. Márcia abriu a caixinha. Exclamou, deliciada e surpresa: - Que delicado! E com o rosto em fogo, Márcia olhou-se as espelho e pendurou ao pescoço o róseo coração de rodonita.

FIM INDICE

PARTE I – O SALMÃO RETORNA À SUA ORIGEM

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O CHAMADO DO CORVO. COMO UMA FOLHA AO VENTO OS BARRINGTON FOOTE O PARQUE CAPILANO UMA NOITE SEM ESTRELAS STANLEY PARK UM POUCO DE ARTE GROUSE MOUNTAIN O BARDO NA AREIA

Parte II – UM MOMENTO NA ETERNIDADE AS MONTANHAS ESTÃO CHAMANDO SOPA QUENTE EM UMA NOITE FRIA QUE A VIDA SELVAGEM CONTIMUE SELVAGEM DESLUMBRAMENTO EM UM PASSEIO MUITO ESPECIAL A TERRA SE EXPRESSA FILHOS DAS MONTANHAS ESMERALDAS NAS MONTANHAS A GONDOLA DO LAGO LOUISE BANFF DIAS QUENTES, NOITES FRIAS

PARTE III – ESTE É UM BOM LUGAR

AFETO E ABRAÇOS NEVE NO VERÃO O CORVO E OS PRIMEIROS HOMENS UM PRESENTE

Bibliografia Prevenção e Cura com Pedras – Karl Stark/Werner Méier – Ed. Robafim Raven’s Call – Robert James Challenger – Heritage House Publishing Company Ltd. Totempoles – Pat Kramer – Altitude Publishing Canada Ltd Parks Informations Center - prospectos turísticos vários Reader’s Digest Selections Canada – Wilderness Heroes – July 2003 Sites: www.canada.gc.ca www.inukshukcanada.com www.OurNorthVancouver.com www.ournativeland.com www.canadahouse.com www.igpublications.com www.thegalleryjasperparklodge.com www.skilouise.com/summer www.bardonthebeach.org www.bcparks.ca www.whistleradventure.com www.keywesttraveltours.com www.tourismcanmore.com