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VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais Área temática: Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa Soluções Africanas para problemas Norte-Americanos: O Comando dos Estados Unidos para a África nos governos Bush e Obama (2007 2016) André Mendes Pini Belo Horizonte 2017

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VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações

Internacionais

Área temática: Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa

Soluções Africanas para problemas Norte-Americanos: O Comando

dos Estados Unidos para a África nos governos Bush e Obama

(2007 – 2016)

André Mendes Pini

Belo Horizonte

2017

2

Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 3

1. O AFRICOM ....................................................................................................................... 5

2. Hipótese ............................................................................................................................... 6

3. Marcos Teóricos .................................................................................................................. 6

3.1 Securitização ..................................................................................................................... 9

3.2 O conceito de Terrorismo ............................................................................................... 11

4. Revisão de Literatura ........................................................................................................ 12

5. Problematização ................................................................................................................ 15

6. Metodologia ...................................................................................................................... 19

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 21

Fontes Primárias ................................................................................................................... 21

Fontes Secundárias ............................................................................................................... 21

3

Introdução

O Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM ou USAFRICOM) foi criado

em 2007 por George W. Bush, como parte de seus esforços globais de combate ao terrorismo,

a partir da diretriz oficial de “promover soluções africanas para problemas africanos”,

configurando-se como um dos seis comandos militares geográficos do Departamento de Defesa

norte-americano. O AFRICOM é responsável pela coordenação e implementação das políticas

norte-americanas vinculadas ao continente africano em termos de defesa e segurança, focando

na prevenção e combate ao terrorismo, por meio, essencialmente, do fortalecimento dos

aparatos militares dos países parceiros na região.

O AFRICOM faz parte da estrutura militar norte-americana, composta por comandos

militares regionais divididos geograficamente, sendo vinculado a todos os países do continente

africano, com exceção do Egito1. O Comando consiste, essencialmente, em programas regionais

e acordos bilaterais de caráter militar, coordenando, operacionalizando e implementando ações

no âmbito do fortalecimento dos aparatos bélicos de países parceiros.

A inserção do AFRICOM como parte dos esforços norte-americanos vinculados à

“Guerra ao Terror” (GT) é um dos elementos fundamentais para a problematização de sua

atuação. A estratégia adotada desde o governo Bush filho pelos EUA para combater a ameaça

representada pelo terrorismo em escala global foi responsável pela promoção da Securitização2

do tema, o que promove, na prática, um constante estado de excepcionalismo das políticas

vinculadas a esforços contraterroristas. Com efeito, os resultados práticos da GT envolvem

desde potenciais rupturas às normas do direito internacional e às instituições internacionais, até

enfraquecimento de processos democráticos e desrespeito aos direitos humanos.

Nesse sentido, o projeto avalia como temerosa a aplicação de políticas que incentivam

práticas exepcionais em uma região com características singulares com relação à composição e

configuração de seus Estados Nacionais, como o continente africano. O elemento central,

portanto, que caracteriza a relevância do AFRICOM como projeto de pesquisa de fato são suas

contradições, explícitas por Kandel (2014):“The main risk associated with the security priority

is that American aid and support may be exploited by local governments in order to fight groups

that are not necessarily terrorists – and are a threat only to the political interests of the

government in question” (KANDEL, 2014).

1 O qual está designado sob o escopo do United States Central Command (USCENTCOM ou CENTCOM) 2 Conceito que será definido e explorado na seção relativa aos Marcos Teóricos.

4

A crítica principal do projeto, portanto, refere-se à incorporação do continente africano

nos esforços norte-americanos vinculados à “Guerra ao Terror” por meio de treinamento e

cooperação militar, tendo em vista que os maiores parceiros do Comando na África são regimes

considerados autoritários, não democráticos ou que constantemente são denunciados por

violações aos direitos humanos, como Somália, Quênia, Etiópia, Uganda, Djibouti e Burundi

(KANDEL, 2014; BRUTTON & WILLIAMS, 2014). Esses Estados têm em comum

governantes que se perpetuam no poder por vias antidemocráticas e colhem os frutos de

estruturas administrativas precárias justamente como instrumento de manutenção no poder

(ENGLEBERT & TULL, 2008).

A seletividade e o caráter das operações do AFRICOM evidenciariam, portanto, sua

atuação com base em uma agenda de segurança estritamente norte-americana, ignorando as

vicissitudes políticas e sociais singulares dos diversos Estados africanos que engloba. Com

efeito, ao se fortalecerem estruturas militares de governos autoritários, o AFRICOM, com o

objetivo de combater o terrorismo transnacional – na forma de organizações extremistas

violentas - promove a capacitação e desenvolvimento dos meios de coerção dos regimes locais.

Nesse sentido, estimula-se e capacita-se os Estados da região a combater o “terrorismo”, sem

se restringir o conceito3 e tipifica-lo de maneira assertiva, passando a oferecer os elementos

objetivos e subjetivos para que esses atores atuem regularmente com práticas de

excepcionalismo. Com efeito, a legitimação de práticas excepcionais em Estados com

baixíssimo lastro institucional é elemento preponderante para a manutenção do status quo no

continente africano.

Estados com estruturas autoritárias, baixa institucionalidade e déficit democrático,

portanto, utilizam-se da retórica antiterrorista para reprimir movimentos de contestação ao

status quo, que se configuram não necessariamente como grupos terroristas, mas também como

partidos de oposição, grupos tribais rivais, grupos religiosos, entidades da sociedade civil,

ativistas de direitos humanos, jornalistas, movimentos de libertação, ou quaisquer organizações

e indivíduos que contestem o poder institucionalizado, utilizando-se por vezes do apoio

recebido dos EUA como estratégia de legitimação política. Esse elemento é exacerbado

principalmente pela constante centralização das relações dos EUA com os países da região por

meio do Departamento de Defesa, em detrimento do Departamento de Estado4.

3O conceito de terrorismo será explorado nas seções posteriores. 4 Há a percepção na academia de modo geral de que o Departamento de Defesa é mais autônomo em relação à

implementação de agendas próprias, mesmo que seja necessário burlar freios e contrapesos democráticos. Isso

5

O período delimitado pelo projeto compreende os governos George W. Bush e Barack

Obama, o que poderia demandar uma análise comparativa acerca dos eixos de ruptura desses

períodos no que se refere ao AFRICOM. Todavia, o que se apreende do debate bibliográfico

acerca do tema expõe, sobretudo, uma trajetória pautada majoritariamente por características

de continuidade na estratégia de políticas contraterroristas de ambos. O sucessor de Bush filho,

portanto, teria realizado apenas um aggiornamento das táticas vinculadas a seus esforços de

contraterrorismo de maneira a mitigar os custos econômicos, humanos e políticos da “Guerra

Global ao Terrorismo”, e de operações vultuosas como a “Enduring Freedom” e a “Iraqi

Freedom”, que foram deixadas de lado em nome de uma estratégia de engajamento contido

cunhada de “Light Footprint”5 (BRILLANT, 2014).

O projeto apreende do AFRICOM relações inerentes a uma perspectiva central de matriz

norte-americana, que atribuiria assim significados particulares à segurança da África,

exportando soluções igualmente moldadas para atender a desígnios alheios às realidades locais

e pautados somente no interesse estratégico dos EUA. Com efeito, as vicissitudes regionais,

cujas singularidades são ignoradas pelo olhar externo, perpetuar-se-iam por meio da promoção,

de fato, de “soluções africanas para problemas norte-americanos”.

1. O AFRICOM

O Comando dos Estados Unidos para a África faz parte da estrutura militar norte-

americana, composta por comandos militares regionais divididos geograficamente, sendo

vinculado a todos os países do continente africano6, que antes estavam integrados nos comandos

regionais PACOM e CENTCOM, responsáveis pelo Oceano Índico e pela Ásia Central e

Oriente Médio, respectivamente7 (PECEQUILO, 2013). Sua criação em 2007 representou a

maior reorganização militar norte-americana desde o “Goldwater-Nichols Department of

ocorre como consequência do excepcionalismo consolidado pelos EUA na condução de políticas contraterroristas

e desafia até mesmo o Congresso do país. Apesar das “Leahy Laws” restringirem e limitarem a assistência militar

norte-americana a Estados que desrespeitam os direitos humanos, o que se apreende da obra de Shmitt (2013) apud

Kandel (2014) é que os militares norte-americanos consideram esse aparato legislativo como um empecilho ao seu

trabalho, sendo responsáveis por auxiliar os governos parceiros na África a burlar a lei de modo a terem acesso a

treinamento militar por exemplo (KANDEL, 2014). 5 Essa estratégia preza pela maximização de ganhos a partir da utilização mínima de forças militares tradicionais,

priorizando ações que utilizem as forças especiais, a cooperação com atores locais, conselheiros militares e Forças

Especiais. 6 Com exceção do Egito 7 Os seis comandos regionais norte-americanos são o PACOM, para o Pacífico, o EUCOM, para a Europa

Ocidental, o SOUTHCOM, para a América do Sul, Central e Caribe, e o NORTHCOM, para a América do Norte,

o CENTCOM para Ásia Central e Oriente Médio e o AFRICOM, para a África.

6

Defense Reorganization Act” de 1986 (PHAM, 2014), permitindo a projeção de poder dos EUA

por diversos continentes.

O AFRICOM conta com um staff de 2000 pessoas em sua base de Stuttgart, Alemanha,

dos quais 40% são civis, e de 4000 a 5000 militares atuando no continente africano,

principalmente na base de Camp Lemonnier, no Djibuti, conforme dados do Departamento de

Defesa de 2014 (PHAM, 2014). De acordo com Kandel (2014), desde a intervenção da OTAN

na Líbia em 2011 o AFRICOM foi forçado a se tornar um Comando Regional totalmente

operacional, e após o ataque ao consulado norte-americano em Benghazi, na Líbia, ocorrido em

2012, o Comando para a África recebeu um aumento no investimento, chegando aos US$ 290

milhões (ROSNAIN, 2014). Ao longo do ano de 2013, o AFRICOM foi responsável pela

condução de 55 operações, 10 exercícios, e 481 “atividades de cooperação em segurança”

(KANDEL, 2014).

Segundo Pecequilo (2013), o AFRICOM se insere de maneira íntima à estratégia global

dos EUA, não apenas nos termos da Guerra ao Terror, mas também no âmbito de sua segurança

energética e da contenção do acesso preferencial de países como a China a recursos estratégicos,

uma vez que “é essencial para os norte-americanos atuar em duas frentes, a de garantia de

recursos para seu consumo e o controle dos recursos consumidos por seus adversários”

(PECEQUILO, 2013). Francis (2010) ressalta a questão energética como o ponto central sob o

qual China e EUA competiriam na África, inserindo o AFRICOM também como parte de um

esforço em resguardar a segurança energética norte-americana. Pecequilo (2013) ainda ressalta

que esse tema representa uma grande vulnerabilidade do país, devido ao seu consumo elevado

e da representatividade de 20% do continente africano nas importações de petróleo dos EUA

(PECEQUILO, 2013).

2. Hipótese

O presente projeto defende a hipótese de que os programas de cooperação estabelecidos

pelo AFRICOM fornecem elementos materiais e subjetivos de modo a promover a manutenção

do status quo no continente africano por meio da manutenção de um estado de exceção

permanente sob a narrativa de combate ao terrorismo.

3. Marcos Teóricos

O marco teórico da Escola de Copenhague (EC) demonstra adequação aos propósitos

do trabalho na medida em que busca ampliar as abordagens dos estudos de defesa e segurança

tradicionais, cujo foco majoritariamente são o uso da força por vias militares e os atores

7

unitários sendo os Estados. A incorporação de temas e objetos referentes a setores econômicos,

societais e políticos por autores como Barry Buzan e Ole Waever amplia o escopo de pesquisa

do mainstream, oferecendo um marco teórico conciso e que mantém um bom diálogo entre

teoria e empiria, por meio de análises de fato multissetoriais8.

Teóricos da EC trabalham com a possibilidade de emergência de ameaças e

vulnerabilidades que extrapolam as lógicas dos estudos estratégicos9, incorporando tanto as

áreas militares quanto não militares, ou seja, não se exclui completamente o campo militar, mas

o amplia para elementos alheios a ele. Nesse sentido, o AFRICOM enquadra-se como um objeto

de estudo bastante complexo quando analisado à luz dos elementos teóricos vinculados à EC,

tendo em vista que embora seja um aparato militar, a agenda de segurança ao qual se vincula

vai muito além dos EUA enquanto Estado ou dos diversos Estados africanos.

Paralelamente, Barry Buzan (1998) ressalta que a ampliação dos temas enquadrados

como vinculados a aspectos de defesa e segurança deve ser delimitada e bem definida, de modo

a identificar quais objetos são securitizados e analisar os elementos envolvidos nesses processos

de securitização. Esse procedimento é fundamental para evitar uma possível contradição

intelectual associada à EC, na qual busca-se a ampliação dos objetos e atores vinculados aos

temas de defesa e segurança para além dos objetos e agentes tradicionais, mas também se

denuncia como justamente essa vinculação de determinadas agendas mais amplas a temas de

defesa e segurança geram processos de politização e securitização, geralmente com implicações

negativas à agenda emancipatória e progressista que deu origem à Escola de Copenhague.

O papel da pesquisa acadêmica orientada pela Escola de Copenhague, nesse sentido, é

fundamental na identificação da linha tênue que separa: 1. A securitização de temas não

vinculados necessariamente a elementos de defesa e segurança, mas utilizados politicamente

com esse fim, de 2. A ampliação das agendas de defesa e segurança para além do Estado como

ator unitário e do uso da força por vias militares como objeto de estudo. A EC, portanto, explora

as dinâmicas de defesa e segurança de modo a diferenciar a. ameaças à segurança de agentes10

internacionais de b. processos de securitização com fins políticos; tendo em vista que “existem

8 O conceito de multissetorialidade reside não somente na incorporação de setores diversos, como o econômico,

societal, político e militar, como também na agência de diferentes atores entre esses setores, sejam eles indivíduos,

Estados, ou atores transnacionais. 9 Área de estudos na qual as análises de defesa e segurança se restringem somente a elementos militares 10 O conceito de “agentes” incorpora no campo da EC a multiplicidade de possíveis atores, sejam Estados,

indivíduos, empresas, instituições, alianças, etc.

8

perigos intelectuais e políticos em simplesmente ampliar a palavra “segurança” a maiores

possibilidades de utilização”11 (Buzan, 1998).

O debate entre “tradicionalistas” e aqueles que buscam a ampliação das agendas de

defesa e segurança advém desde o período da Guerra Fria, quando a área era majoritariamente

associada aos temas vinculados ao nível sistêmico do confronto bipolar e suas possibilidades

de guerras, conflitos, embate nuclear e uso de força militar por parte dos Estados. Um dos

representantes dessa visão tradicionalista é Stephen Walt, que defende o estudo do fenômeno

da guerra e a ameaça, utilização e controle do uso de forças militares como tema central e

dominante da agenda de estudos estratégicos. Walt advoga desde a década de 1990 que a

ampliação dos temas vinculados a defesa e segurança para além da compreensão do fenômeno

da guerra em si destruiria a coerência intelectual do campo e tornaria a elaboração de soluções

a essas questões mais dificultosa (Buzan, 1998).

Weaver e Buzan, desde o fim da década de 1980, advogam pela ampliação dos estudos

de defesa e segurança, principalmente pela incorporação de fatores não-militares nas agendas

de estudo da área. No entanto, mesmo entre pesquisadores e acadêmicos que defendem esses

esforços de ampliação existem debates acerca da dimensão ideal de sua abrangência. Autores

como Gilpin (1981) buscam a incorporação de elementos militares a estudos de economia

política internacional, enquanto Buzan (1998) demonstra-se cético nesse sentido, ampliando o

conceito de “ameaças”, mas desvinculando-o de aspectos econômicos e ambientais. Por outro

lado, outros autores vinculados à EC apresentam características diferentes, que garantem sua

pluralidade, como Ole Weaver, que se auto-define como um realista pós-moderno e De Wilde,

que se afirma como liberal-pluralista (Buzan, 1998).

A metodologia da EC também preza pela não restrição de níveis de análise em seus

marcos teóricos. Isso ocorre, fundamentalmente, pela não redução dos atores vinculados às

agendas de pesquisa aos Estados. Nesse sentido, a EC trabalha com o conceito de “agentes”, ou

“unidades” como atores, de modo a adequar metodologicamente os objetos de estudo aos seus

atores principais, que podem ser indivíduos, governos, empresas, alianças, e, também, Estados12

ou entidades transnacionais. Os níveis de análise, portanto, são marcos teóricos problemáticos

quando associados aos estudos da EC. Isso ocorre por serem concebidos sob uma matriz

11 Tradução própria do autor 12 O argumento central nesse sentido não é relegar o papel do Estado, como fazem autores como Anthony Giddens

e David Held, mas sim atribuir o devido valor à complexidade de agentes e unidades que se relacionam diretamente

com questões de defesa e segurança.

9

ontológica associada ao mainstream13 e, principalmente, por reforçar o estado-centrismo dos

estudos teóricos das relações internacionais. Nesse sentido, a busca da EC é por análises

políticas de tempo e espaço estruturadas em diferentes linhas, cuja realização não é possível ao

utilizar-se níveis de análise tradicionais (Buzan, 1998).

3.1 Securitização

O processo de “Securitização” talvez seja o marco conceitual essencial à EC em sua

empreitada intelectual. É a identificação de processos de securitização que irão garantir a

coerência intelectual de estudos de defesa e segurança que ampliam a possibilidade de ameaças

e vulnerabilidades para além do campo militar. Com efeito, a identificação de ameaças à

segurança de um ator deve ser composta por critérios extremamente bem definidos que irão

distingui-lo de abordagens securitizadas.

Um processo de securitização invariavelmente será construído retoricamente por um

agente securitizador, que irá desenvolver uma narrativa na qual o objeto securitizado se torna

uma ameaça existencial a esse agente. Consequentemente, perante tamanha ameaça, medidas

urgentes e excepcionais são legitimadas, devido ao sentido emergencial que o combate àquele

objeto securitizado adquire.

O conceito de securitização adentra um marco teórico fundamental à Escola de

Copanhague, na qual o conceito de segurança é relativizado e não tomado como um fim em si

mesmo. Waever (1995) define segurança como “uma estabilização de relações conflitantes”,

ou seja, esboça a possibilidade de se obter estabilidade em um cenário ainda que ele possua

relações conflituosas entre diversos atores. Nesse sentido, o fundamental para Waever não é a

manutenção de um ideal de segurança em si, mas sim a desecuritização de determinados

tópicos, de modo a retomar processos políticos para a normalidade e evitar situações

“emergenciais” que possibilitem a vinculação de legitimidade a ações violadoras do

ordenamento político, jurídico ou até humanitário.

Uma vez que o elemento central do conceito de securitização é a possibilidade de se

utilizar de uma retórica de excepcionalidade com fins políticos de forma a tornar determinados

temas uma ameaça à defesa e segurança, e que a solução proposta pela EC é a desecuritização

desses temas, de maneira a assegurar a manutenção das “regras do jogo”, pode-se inferir que

13 Aqui concebido fundamentalmente como o neorrealismo e sua primazia pelo nível de análise sistêmico.

10

esses processos possuem causas e consequências diferentes de acordo com o regime político no

qual eles ocorrem.

Com efeito, Waever (1998, p.42) ressalta que:

“In naming a certain development a security problem, the

"state" can claim a special right, one that will, in the final instance,

always be defined by the state and its elites. Power holders can always

try to use the instrument of securitization of an issue to gain control

over it. By definition, something is a security problem when the elites

declare it to be so” (WAEVER, 1998).

Tendo em vista que tanto as narrativas construídas em processos de securitização são

impulsionadas majoritariamente pelas elites organizadas em torno do Estado, quanto o poder

de determinação da ordem política, social e jurídica “normal” também seja papel dos

representantes do Estado, o regime político no qual os Estados se organizam vão promover

diferentes mecanismos de securitização e diferentes resultados em processos de

desecuritização.

Uma vez que se atribui ao Estado o papel de agente promotor de agendas de

“Securitização”, deve-se levar em consideração a reflexão de Saint Pierre (2010) de que “A

ameaça só se constitui e opera na percepção daquele que é ameaçado”. Nesse sentido, a

percepção de ameaça permite ao ameaçado tomar as medidas preventivas para se proteger da

agressão que ela anuncia. O autor ainda ressalta que “Os governos se preocupam em identificar

suas ameaças concretas, e alguns deles – aqueles que têm condições de fazê-lo – tentam impor

suas percepções de “ameaça” às agendas coletivas” (SAINT PIERRE, 2010). É esse processo

que pauta a condução do USAFRICOM de seus esforços contraterroristas no continente

africano.

Questiona-se, portanto, a retórica norte-americana quando da criação do AFRICOM que

justificava a sua criação para promover “soluções africanas para problemas africanos”. O que

se percebe, de fato, é que os EUA tragaram diversos Estados da região a sua lógica de “Guerra

ao Terror”, expondo-os a novas ameaças vinculadas a movimentos de resistência a essa política

norte-americana. A ação estratégica empreendida pelo AFRICOM a partir de Obama optou pela

redução da presença dos EUA na região, por meio do maior protagonismo de atores regionais,

o que acabou gerando de fato consequências severas para a agenda de segurança do continente

africano.

11

3.2 O conceito de Terrorismo

De acordo com Saint Pierre (2010) o fenômeno do terrorismo representa uma lógica

difusa e global, cuja ambiguidade conceitual pode ser explorada por ser politicamente versátil

para identificar o inimigo, em uma relação dialética entre “bem” e “mal” tanto no plano

internacional quanto interno, possivelmente enquadrando “manifestações de descontentamento

social como “atos terroristas” e os movimentos sociais que os promovem como “grupos

terroristas” (SAINT PIERRE, 2010).

Como exposto por Halliday (2011), “Terrorism is a complex issue that allows of no easy

resolution, intellectual or political. Indeed, probably no subject has been as important in

international relations, or as confused in its treatment”. Nesse sentido, definir o conceito de

terrorismo implica em adotar um discurso político, portanto ao longo do trabalho optou-se por

não se definir um conceito específico de terrorismo e somente problematizar as definições

oficiais de diversos órgãos norte-americanos e/ou africanos.

O conceito utilizado pelo AFRICOM como alvo de seus programas de contraterrorismo

são as Organizações Extremistas Violentas (OEV), identificadas como os principais

antagonistas de seus parceiros no continente africano. Segundo a definição de Davis (2012)

apud Brillant (2014) “A violent extremist organization (VEO) is not a monolithic entity, but

rather a complex organization operating in an even more complex environment”. Brillant

(2014) ressalta que a contrução do conceito de OEV foi a “solução” teórica desenvolvida por

Think Tanks norte-americanos, como a Rand Corporation, para se definir inimigos que não

caibam nas tipificações tradicionais, embora “For other specialists, this expression is a generic

one, as it brings together all non-state actors that commit acts of violence with political,

ethnical, economic and religious ends (BRILLANT, 2014).

Elemento importante na discussão teórica acerca do papel do AFRICOM em promover

cooperação militar no âmbito de ações de contraterrorismo no continente africano é a

possibilidade de atribuição ao Estado papel de possível promotor de ações terroristas. Halliday

(2011) aponta que “No discussion of terrorism can take place without parallel recognition of

the role of states(...) By far the greater number of political deaths has always been caused by

the actions of states” (HALLIDAY, 2011). No entanto, o conceito de “terrorismo estatal” é

bastante polêmico e fruto de intense debate entre acadêmicos e policy makers. Essa questão gira

em torno de elementos vinculados à legitimidade da utilização da força por parte de Estados,

os quais, teoricamente, detém o monopólio da utilização desse instrumento.

12

No âmbito acadêmico, autores como Edwin Bakker e Alex Schmid não reconhecem o

termo e optam por não o utilizar. Essa questão também foi responsável pela iniciativa do ex-

Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, “Uniting Against Terrorism: recommendations for

global counter-terrorism strategy” não ter recebido apoio da comunidade internacional, por

flertar com a possibilidade de atribuição aos Estados a alcunha de condutor de ações terroristas.

Nesse sentido, a opção metodológica do presente projeto está alinhada com os autores

supracitados e não utiliza conceitualmente a ideia de “terrorismo estatal”.

4. Revisão de Literatura

A revisão bibliográfica abrange fundamentalmente referenciais teóricos no tocante à

política externa norte-americana e sua herança histórica. De acordo com Pecequilo (2013,

pg.18), os EUA desde 1989 “atravessam momentos pendulares em sua história, encontrando-

se divididos entre hipóteses de declínio e renovação, que resultam em opções estratégicas e

táticas diferenciadas no sistema internacional e na política interna”. Anderson (2015) ressalta o

excepcionalismo que pauta a condução da política norte-americana no plano internacional,

identificando conceitos como a promoção da democracia globalmente como um eixo

fundamental da própria consolidação da nação, a partir de um projeto que identifica nos EUA

a responsabilidade e o “fardo” de agir globalmente.

Conceitos como democracia, segurança coletiva e autodeterminação dos povos regem a

postura ativista adotada pelos norte-americanos, somado ao neoconservadorismo evidenciado

no governo de Bush filho, sob o signo da valorização do componente militar, do ativismo

democrático e intervencionista como missão, do excepcionalismo e da expansão do poder dos

EUA, são apreendidos como elementos que nortearam o governo Bush filho a estruturar o

AFRICOM (COOPER, 2011; PECEQUILO, 2013). Com efeito, Leite (2013) pondera que é

comum à retórica presidencial norte-americana do pós-Guerra-Fria a expressão de que “os

períodos de seus governos foram excepcionais e constituem momentos extraordinários nos

quais o futuro da humanidade estaria diretamente ligado à atuação dos EUA” (LEITE, 2013).

Foi identificado também na revisão bibliográfica o debate sobre em que medida o

AFRICOM representa uma mudança de paradigma substancial na relação dos EUA com a

África. Autores como Volman (2010), Pham (2014) e Keenan (2010) apontam para a simples

continuidade e expansão do foco, propósito, motivações estratégias e atividades operacionais

que vêm sendo estabelecidas pelos EUA na África nas últimas duas décadas, reorientando-as

meramente para os desígnios impostos por novos desafios como terrorismo e segurança

13

energética. Outros, como Whelan (2010), e Francis (2010) apontam uma inflexão fundamental

na política norte-americana para o continente africano, centralizando relações que antes eram

compartilhadas por diversos Departamentos14 e Comandos Militares de outras regiões15 e

apontando para a centralidade que a África ganha perante os desafios contemporâneos em

termos de defesa e segurança global

Concomitantemente, identificou-se importante debate bibliográfico existente com

relação à importância relativa do continente africano aos EUA historicamente, sendo sua

compreensão necessária para o estabelecimento posterior dos argumentos que identificam no

AFRICOM uma continuidade ou uma inflexão.

Desde 1998 a África ganhou atenção especial dos EUA, a partir dos atentados

simultâneos às embaixadas norte-americanas no Quênia e na Tanzânia, no entanto, em 2000, o

ainda candidato George W. Bush deixou claro que a África não era encarada por ele como de

importância estratégica aos EUA: “At some point in time the president’s got to clearly define

what the national strategic interests are, and while Africa may be important, it doesn’t fit into

the national strategic interests, as far as I can see them.” (BUSH, 2000 apud PHAM, 2014).

Apesar disso, após os ataques de 11 de setembro o continente africano foi incluído no National

Security Strategy de 2002 como um dos fronts da “Guerra Global ao Terrorismo”, ganhando

nova dimensão perante o cálculo político da Casa Branca. A Pan-Sahel Initiative, criada em

2002, e a Trans-Sahara Counter-Terrorism Partnership de 2005 resultaram na posterior

criação, em 2007, do AFRICOM (KANDEL, 2014).

O período delimitado pelo projeto compreende os governos George W. Bush e Barack

Obama, o que poderia demandar uma análise comparativa acerca dos eixos de ruptura desses

períodos no que se refere ao AFRICOM. Todavia, o que se apreende do debate bibliográfico

acerca do tema expõe, sobretudo, um eixo pautado majoritariamente por uma trajetória de

continuidade na estratégia contraterrorista de Obama, que passariam somente por um

aggiornamento.

14 O caráter essencialmente militarizado das políticas de cooperação dos EUA com a África, conforme Rosnain

(2014), indica a tendência crescente de o Departamento de Defesa atuar como responsável pelas relações com o

continente, exercendo funções antes vinculadas ao Departamento de Estado, como a articulação e concertação com

governos locais, e ao USAID, como os programas de cooperação em saúde e prevenção ao HIV (ROSNAIN,

2014). 15 Notadamente, o Departamento de Estado, Departamento de Defesa, USAID, Comando Europeu, Comando

Central, Comando do Pacífico.

14

A eleição de Barack Obama suscitou expectativas de mudança nos termos da relação

norte-americana com o continente africano, que, segundo Pham (2014):

“at least formally (…) has shifted from a

superpower’s preoccupation with threats arising from

Africa’s vulnerabilities to helping partners on the continent

to assume an ever-increasing role in preventatively

addressing their own security concerns” (PHAM, 2014)..

Todavia essas expectativas não foram atingidas, tendo em vista a conjuntura política

norte-americana, que impôs limitações fiscais severas a Obama. Isso forçou o AFRICOM a

priorizar determinados programas e regiões e tornou inviável a ampliação de iniciativas

holísticas capazes de promover, de fato, soluções aos problemas africanos aos quais o

Presidente havia se comprometido no início de seu mandato: Segurança, desenvolvimento

econômico, saúde e democracia (RONSAIN, 2014).

A solução encontrada pela Casa Branca foi recorrer à iniciativa privada, criando o

programa “Power Africa” e o “Counterterrorism Partnership Fund”. Pham (2014) descreve

essa conjuntura política:

“Translated into other terms, the security objectives of

Americans and Africans cannot ultimately be achieved and sustained

unless alongside the investment in building security there is an

investment in developing the infrastructure, legal and physical, that

will facilitate the emergence of both effective governance and markets

that encourage the growth of prosperity. However, because recent

global and domestic fiscal crises, combined with a bitter partisan

divide, have created a political climate within the United States in

which the sort of major increases in foreign aid promised by President

Obama during his 2008 presidential campaign are simply not

politically viable, the administration has looked for creative ways to

encourage the private sector to become more engaged with efforts to

develop and modernize Africa’s infrastructure” (PHAM, 2014).

Ao longo do governo Bush os custos econômicos, humanos e políticos da Guerra ao

Terror foram imensos, portanto, com Obama, operações vultuosas como a “Enduring Freedom”

e a “Iraqi Freedom” foram substituídas pela “Light Footprint” (BRILLANT, 2014). Kandel

(2014) pontua que, a partir de então, a presença militar dos EUA na região foi marcada por uma

presença minimalista, priorizando o uso de forças especiais, de modo a não evidenciar

15

engajamento direto de tropas em solo, e priorizar ações encabeçadas por parceiros regionais,

sob a liderança indireta dos EUA.

5. Problematização

Diversos elementos empíricos corroboram a ideia fundamental do presente projeto, que

defende a hipótese de que, sob a narrativa de combate ao terrorismo, o AFRICOM fornece

elementos materiais e subjetivos de modo a promover a manutenção do status quo no continente

africano por meio da manutenção de um estado de exceção permanente. Além disso,

problematiza-se a ideia de que o AFRICOM corresponde a “soluções africanas para problemas

africanas”, defendendo-se que, na realidade, ele está inserido em um projeto global de “Guerra

ao Terror” promovido pelos EUA, a partir de leituras particulares acerca de suas percepções de

ameaça e segurança.

Isike (2010, p.23) representa o ceticismo com relação à iniciativa, “especially in view of

the dissonance between US strategic security concerns on the continent and the issues that

constitute the African security predicament”. Críticas apontam para a militarização que a

iniciativa representa para a inserção dos EUA no continente, tornando-se uma ferramenta de

promoção dos interesses estratégicos norte-americanos e um mero front na Guerra ao Terror,

em detrimento de políticas assertivas vinculadas a necessidades e desafios originalmente

africanos.

Pham (2014) aponta que o AFRICOM de fato enfrenta dificuldades ao buscar oferecer

os meios para que os governos africanos possam lidar com seus desafios em termos de

segurança, uma vez que dos aparatos institucionais do Estado geralmente o mais bem

organizado é justamente o militar: “É um ciclo vicioso no qual muitos estão presos: sem

segurança não há desenvolvimento, mas esses Estados não possuem os meios para garantir a

segurança que facilitaria a estabilidade e o crescimento econômico” (PHAM, 2014). Nesse

sentido, a segurança seria tomada como pré-requisito para o desenvolvimento, sendo, portanto,

priorizada, sem que se defina, no entanto, os eixos fundamentais que pautam a segurança do

Estado, geralmente atrelados aos interesses das elites dominantes.

A contradição expressa na identificação da necessidade de cooperação militar a fim de

estruturar aparatos militares que contribuam para a maior institucionalização dos Estados

africanos fica evidente na obra de Englebert (2008). O autor ressalta que a democracia na

África se compõe pela coexistência de instituições políticas informais e procedimentos

burocráticos formais, sendo que as tomadas de decisão têm cunho personalista e as relações

16

políticas são baseadas em redes de clientelismo que conectam verticalmente o centro político

com as elites e a sociedade. Com efeito, há uma linha tênue entre o patrimônio público e o

privado, e um abismo entre o governo e a sociedade civil independente. A percepção externa é

de corrupção, desordem e má governança, mas esses processos facilitam a acomodação das

elites que propiciam processos de governança racionais mesmo em estruturas estatais

extremamente frágeis (ENGLEBERT, 2008).

Assim sendo, os programas de fortalecimento dos aparatos militares dos países africanos

apenas beneficiam as elites detentoras do poder e o sistema corrupto no qual elas se perpetuam.

A baixa institucionalidade estatal serve aos interesses das elites políticas locais,

concomitantemente, os programas de cooperação militares perpetuam no poder as próprias

elites responsáveis pela manutenção de instituições frágeis, contribuindo para a continuidade

de um ciclo vicioso essencialmente contraditório (ENGLEBERT, 2008). Compreende-se,

portanto, que há uma visível desconexão entre as condições africanas e a percepção ocidental

acerca de suas realidades.

Apesar dos objetivos abrangentes da iniciativa americana, nota-se que o AFRICOM

representa, essencialmente, uma estrutura militar, desenvolvida de maneira unilateral, como

explícito nas palavras de Theresa Whelan, US Deputy Assistant to African Affairs, responsável

direta pela gestão e implementação da AFRICOM: “If Africa does not accept AFRICOM then

the United States will sever its military-to-military defence relations with the continent.”(apud

FRANCIS, 2010). Nota-se, nesse sentido, que o AFRICOM foi gestado sem consulta e

coordenação prévia tanto com países africanos quanto com instituições regionais, como a União

Africana (UA), na qual a arquitetura institucional compreende as “African Standby Forces”

(ASF), cujas competências entram em conflito com as do AFRICOM, assim como duplicam

suas atividades operacionais (FRANCIS, 2010).

A África se inseriu no âmbito da política externa de Bush filho de maneira estratégica

na medida em que engloba temas como o terrorismo e seu desencadeamento devido aos

chamados “Rogue States”, que ocuparam o vácuo deixado pela União Soviética no imaginário

político norte-americano como os inimigos a serem combatidos (PECEQUILO, 2013). Esse

aspecto da política norte-americana particularmente é de extrema importância e deve ser

aprofundado.

Leite (2013) identifica a construção de uma identidade norte-americana baseada no

contraponto a um inimigo a ser combatido como um tema debatido amplamente por David

17

Green (1992), em sua obra The Language of Politics in America: Shaping Political

Consciousness from McKinley to Reagan. Esse autor não apenas pontua a trajetória política da

construção de uma dialética acerca do papel dos EUA na ordem global, como também identifica

a adaptação e remodelação de construções retóricas anteriores a conjunturas contemporâneas

na sociedade estadunidense (GREEN, 1992 apud LEITE, 2013). Murray e Meyers (1999)

demonstram que esse processo foi alvo de estudos desde meados do século XX, citando o

trabalho da década de 1960 de de Finlay, Holsti e Fagen (1967), que afirmava “It seems that we

have always needed enemies and scapegoats; if they have not been readily available, we have

created them.” (FINLAY, HOLSTI & FAGEN, 1967 apud MURRAY & MEYERS, 1999).

Ainda nesse sentido, Brillant (2014) ressalta “We must not forget that, in terms of terrorism,

the U.S. military tends to construct threat so that it is not only in accordance with their national

interests, but also and particularly the pretext for specific interventions” (BRILLANT, 2014).

Ralph (2013) argumenta que a escolha da alcunha “Guerra ao Terror” para definir o

empreendimento de ações contraterroristas possui um elemento retórico determinante na

manutenção tanto de um inimigo a ser combatido, quanto da legitimação de políticas de

excepcionalismo irrestritas:

“[…] The norms applicable to state conduct differ when a situation is

understood as an ‘armed conflict’ or ‘war’. In war, for instance, it is generally

accepted that the state can kill an enemy combatant regardless of whether he

is about to commit an atrocity. In peace, liberal human rights regimes expect

that the state will try to arrest the terrorist before it is left with no choice but

to target him with lethal force. In war, the state can prosecute an enemy

combatant for certain offences in a military commission. In peace, the violent

actor can expect to be tried in a civilian court. In war, the state can detain an

enemy combatant without charge for the duration of the conflict. In peace, the

liberal state is expected to release the detainee within a certain period or

charge him with a criminal offence” (Ralph, 2013).

Com efeito, os EUA, por meio do AFRICOM, inserem o continente africano nos seus

esforços globais de combate ao terrorismo, “contaminando” o continente com ameaças que, na

realidade, são reativas à presença do país no continente. Diversos autores identificaram

elementos empíricos que corroboram essa ideia. Bruton e Williams (2014) expõem a maneira

pela qual a ascensão do Al-Shabab, considerado a maior ameaça aos EUA na África pelo

AFRICOM, está diretamente relacionada à intervenção norte-americana na Somália, por meio

de parcerias com atores regionais como Etiópia, Quênia, Uganda, Burundi e Djibuti. A partir

18

da atuação na Somália, não somente a crise política interna no país recrudesceu, como o Al-

Shabab ganhou força e passou a ter como alvo também os países parceiros dos EUA, como os

ocorridos no Quênia e em Uganda.

Nesse sentido, além de a segurança regional ter sido colocada em xeque, pela expansão

dos alvos do Al-Shabab, os parceiros norte-americanos nessa questão notadamente colheram

os frutos desse apoio para se perpetuar no poder, minando suas escassas estruturas democráticas

por meios autoritários e claras violações aos direitos humanos, o que “reforça a percepção

generalizada de que os EUA se importam mais com sua segurança do que com a democracia

ou os direitos humanos na região” e que “vão fazer vista grossa a abusos enquanto os militares

desses países permanecerem suscetíveis às diretivas e prioridades norte-americanas16”

(BRUTON & WILLIAMS, 2014). Com efeito, os Estados africanos – e suas elites –

beneficiam-se, principalmente, pelo fortalecimento de aparatos favoráveis à manutenção do

status quo, enquanto há um recrudescimento da frágil segurança humana das populações civis

da região.

Com efeito, no Quênia, os EUA repassaram recursos de mais de U$1 bilhão para

“combater o terrorismo”, em que pese as denúncias do Tribunal Penal Internacional ao

Presidente Uhuru Kenyatta e ao Vice-Presidente William Ruto de crimes contra a humanidade

(Humans Right Watch, 2007; GETTLEMAN apud BRUTON & WILLIAMS, 2014).

Na Etiópia, além das denúncias de violações aos direitos humanos por parte dos

militares, líderes da oposição e jornalistas foram presos acusados de traição por terem

colaborado com grupos de direitos humanos estrangeiros, o que não impediu o país de constar

na lista dos 10 maiores recebedores de recursos norte-americanos, revertidos pelo governo

etíope majoritariamente ao seu orçamento militar (TRONVOLL, 2011; BRUTON &

WILLIAMS, 2014).

Em Uganda, o maior receptor de recursos dos EUA no continente, os militares são

acusados de tortura, execuções, extrajudiciais e morte de protestantes, resultando no retrocesso

em termos de direitos políticos entre 2007 e 2014 (Freedom House, 2007, 2014; PLOCH, 2013).

No Djibuti, país que sedia a principal base norte-americana na África, Camp Lemonier,

sob um contrato de utilização de US$ 70 milhões anuais, o Presidente Ismael Omar Guelleh

utilizou-se da ajuda internacional para consolidar seu poder e eliminar a oposição, assim como

16 Tradução do autor

19

revogou cláusulas constitucionais básicas como a liberdade de expressão e de assembleia. Algo

semelhante ao que ocorreu no Burundi, sob o Presidente Pierre Nkurunziza (BRUTON &

WILLIAMS, 2014).

A utilização de recursos financeiros e do treinamento contraterrorista para a manutenção

do status quo local e a perpetuação no poder é ainda mais preocupante justamente devido ao

fato de “terrorismo” ser um conceito suscetível a diferentes interpretações e manipulações com

fins políticos. Na Etiópia, por exemplo, uma proclamação de 2009 configura meros atos de

bloqueio a avenidas e estradas por protestantes pacíficos como atitudes terroristas puníveis com

sentença de morte (TRONVOLL, 2011; BRUTON & WILLIAMS, 2014).

Assim sendo, os programas de fortalecimento dos aparatos militares dos países africanos

apenas beneficiam as elites detentoras do poder e o sistema corrupto e pouco institucionalizado

no qual elas se perpetuam. O excepcionalismo como modus operandi de combate ao terrorismo

serve aos interesses das elites políticas locais, e os programas de cooperação militares

perpetuam no poder as próprias elites responsáveis pela manutenção de instituições frágeis,

contribuindo para a continuidade de um ciclo vicioso essencialmente contraditório

(ENGLEBERT, 2008).

6. Metodologia

O presente projeto reflete a complexidade e a interdisciplinaridade inerente à execução

científica de uma proposta de pesquisa no campo das relações internacionais, transitando desde

aspectos relativos à política externa dos EUA e aos elementos teóricos vinculados à temática

de defesa e segurança no continente africano, até a análise empírica dos programas de

cooperação estabelecidos pelo AFRICOM. Assim, faz-se necessária uma definição

metodológica realizada de maneira assertiva, tendo em vista seu amplo escopo potencial.

Pondera-se que a abordagem qualitativa representa uma interessante mediação nos

estudos e pesquisas da área das ciências humanas e sociais, abarcando suas complexidades e

contradições, e complementando, assim, os processos quantitativos. Contudo optar pela

abordagem qualitativa não significa abrir mão de dados quantificáveis, superando assim a

dicotomia qualitativo-quantitativo, e determinando que as perguntas feitas ao objeto é que

marcarão a opção metodológica.

A vasta fonte de dados primários oficiais torna imprescindível o recurso à análise

documental, que “[...] consiste em uma série de operações que visam estudar e analisar um ou

20

vários documentos para descobrir as circunstâncias sociais econômicas com as quais podem

estar relacionados, [..] ” (RICHARDSON et al, 1985). As fontes primárias que norteiam a

pesquisa são os Defense Planning Guidance (DPG) de 1992, o Quadrennial Defense Review, o

Counterterrorism Strategy, o National Security Strategy e o Defense Strategic Guidance, que

incluem o Strategy Toward Sub-Saharan Africa, assim como discursos dos Presidentes W.

Bush e Barack Obama. Também se inclui nessa lista documentos orçamentários norte-

americanos, principalmente aqueles vinculados à assistência militar promovida pelo Pentágono,

representado nas seções 1203, 1206 e 1208 do Orçamento do Departamento de Defesa e no

recém-criado Counterterrorism Partnership Fund.

Concomitantemente, o projeto se pautará pela contextualização e análise crítica dos

elementos retóricos que caracterizaram o AFRICOM ao longo dos governos Bush Filho e

Obama, por meio de profunda revisão bibliográfica, no qual serão apresentados e discutidos os

conceitos, definições e programas que embasarão o aprofundamento teórico sobre o assunto.

Posteriormente realizar-se-á a delimitação dos programas de cooperação militar estabelecidos

pelo AFRICOM com determinados países parceiros de modo a contrastar os elementos práticos

dos retóricos, possibilitando assim a análise crítica acerca de suas consequências

Tendo em vista a conceituação que Rosa e Arnoldi (2006) estabelecem no tocante à

pesquisa como “uma atividade de investigação capaz de oferecer e, portanto, produzir um

conhecimento novo a respeito de uma área ou de um fenômeno, sistematizando-o em relação

ao que já se sabe”, denota-se que a dificuldade principal que se impõe perante a presente

proposta de pesquisa é a identificação de fato de uma agenda de segurança que permeia a

realidade de Estados com características extremamente singulares, de forma a se observar

empiricamente a hipótese de trabalho, que identifica um distanciamento entre a agenda norte-

americana e a africana.

Faz-se necessária, concomitantemente, o recurso à pesquisa de campo, principalmente

nos EUA, tanto com membros do governo quanto com setores da sociedade civil como

acadêmicos, militares, etc. Desse modo, obter-se-á impressões legítimas acerca do contexto

social e político no qual o AFRICOM de fato se estabelece, pois é essencial o recurso a

entrevistas estruturadas, às quais Rosa e Arnoldi (2006 p.113) definem como “a técnica mais

pertinente quando o pesquisador quer obter informações a respeito do seu objeto que permitam

conhecer sobre atitudes, sentimentos e valores subjacentes ao comportamento, o que significa

que se pode ir além das descrições das ações” incorporando assim novas fontes para a

interpretação dos resultados, discursos e práticas pelos próprios entrevistadores.

21

Nesse sentido, identificou-se como potenciais entrevistados oficiais do governo norte-

americano como Theresa Whelan, responsável direta pela gestão e implementação da

AFRICOM, o General Carter Ham, Ex-Comandante do AFRICOM entre 2011 e 2013, o

General David M. Rodriguez, Ex-Comandante do AFRICOM entre 2013 e 2016, e o atual

Comandante do AFRICOM, General Thomas D. Waldhauser. Esses oficiais poderão oferecer

impressões autênticas sobre os aspectos teóricos e práticos do Comando, possibilitando o

contraste com os elementos levantados em outras entrevistas, pesquisas de campo e análises

teóricas, complementando, portanto, o aspecto metodológico da tese.

Portanto, tendo em vista os objetivos da pesquisa e as referências bibliográficas

identificadas, propõe-se metodologia circunscrita no âmbito de análise documental - em termos

de fontes primárias e secundárias - quantitativa e qualitativa, assim como pesquisa empírica

propriamente dita, a realizar-se por meio de pesquisa de campo.

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