vestibular e 'vestibulinho' um falso debate

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Vestibular e vestibulinho: um falso debate Toda a encenação sobre o último concurso vestibular da Universidade Federal do Acre (Ufac), especialmente, a que envolve um determinado conjunto de parlamentares acreanos, coloca em evidência não apenas o despreparo desses “representantes do povo”, mas, principalmente, a mais completa incompreensão sobre o que significa uma instituição publica de ensino superior. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu artigo 56, preconiza que as “instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional”. No espectro dessa “ gestão democrática, nenhum reitor ou pró-reitor pode decidir sobre os certames públicos, a criação ou extinção de cursos e programas de ensino, as ações de pesquisa e extensão ou quaisquer outras decisões que extrapolem os limites das instâncias administrativas e executivas. O concurso vestibular, assim como os demais concursos públicos, realizados no âmbito da Ufac, com suas regras, perfis, vagas e tudo que lhes seja pertinente, sob o manto do que reza a legislação em vigor, são alvo de discussão e deliberação pelos órgãos colegiados desta instituição e, principalmente, pelo Conselho Universitário, instância máxima de deliberação no nível acadêmico e administrativo. Portanto, nada, absolutamente nada, poderia ou pode ser decidido ou alvo de acordo da administração da universidade com o Ministério Público Federal, deputados ou candidatos ao vestibular, sem ferir a gestão colegiada e, invariavelmente, à legislação. Sob a vazia retórica da “defesa da sociedade” e visivelmente desorientado, um conjunto de deputados estaduais tem feito ecoar a repetitiva cantilena de que a “Ufac descumpriu o acordo feito com o MPF”, “a Ufac foi desonesta”, “a Ufac traiu os deputados e o MPF”, “a Ufac fez molecagem”, etecetera. Um desses parlamentares foi um pouco mais longe e disparou que o “Conselho Universitário da Ufac é conservador, retrógrado e injusto. Ousa

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Vestibular e “vestibulinho”: um falso debate

Toda a encenação sobre o último concurso vestibular da Universidade

Federal do Acre (Ufac), especialmente, a que envolve um determinado

conjunto de parlamentares acreanos, coloca em evidência não apenas o

despreparo desses “representantes do povo”, mas, principalmente, a mais

completa incompreensão sobre o que significa uma instituição publica de

ensino superior.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu artigo 56,

preconiza que as “instituições públicas de educação superior obedecerão ao

princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados

deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional,

local e regional”. No espectro dessa “gestão democrática”, nenhum reitor ou

pró-reitor pode decidir sobre os certames públicos, a criação ou extinção de

cursos e programas de ensino, as ações de pesquisa e extensão ou quaisquer

outras decisões que extrapolem os limites das instâncias administrativas e

executivas.

O concurso vestibular, assim como os demais concursos públicos,

realizados no âmbito da Ufac, com suas regras, perfis, vagas e tudo que lhes

seja pertinente, sob o manto do que reza a legislação em vigor, são alvo de

discussão e deliberação pelos órgãos colegiados desta instituição e,

principalmente, pelo Conselho Universitário, instância máxima de deliberação

no nível acadêmico e administrativo. Portanto, nada, absolutamente nada,

poderia ou pode ser decidido ou alvo de acordo da administração da

universidade com o Ministério Público Federal, deputados ou candidatos ao

vestibular, sem ferir a gestão colegiada e, invariavelmente, à legislação.

Sob a vazia retórica da “defesa da sociedade” e visivelmente

desorientado, um conjunto de deputados estaduais tem feito ecoar a repetitiva

cantilena de que a “Ufac descumpriu o acordo feito com o MPF”, “a Ufac foi

desonesta”, “a Ufac traiu os deputados e o MPF”, “a Ufac fez molecagem”,

etecetera. Um desses parlamentares foi um pouco mais longe e disparou que o

“Conselho Universitário da Ufac é conservador, retrógrado e injusto. Ousa

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desrespeitar a vontade do povo do Acre. Nos faz de palhaços depois de acordo

firmado” (sic).

Nessas intervenções palavrosas, residem alguns equívocos e muito

desconhecimento de causa. Creio que o principal deles é tratar a Ufac como se

fosse uma pessoa com vontade própria, desejos, sonhos, CPF, RG, e não uma

instituição pública. Daí as pérolas: “a Ufac traiu; descumpriu; desacordou;

mentiu; enganou”, entre outros termos que, pela frequência com que aparecem

na boca de “nossos representantes”, parecem muito naturais em seus afazeres

cotidianos. Por que não “dar nome aos bois”, como se diz no popular, e

apresentar à sociedade os termos do acordo e seus signatários? Quem usou o

nome da Ufac para fazer acordo? Quem fez, indevida e imoralmente, acordo

com a coisa pública?

Somente as mentes obtusas e incapazes de conviver na arena pública

concebem a verdade como coisa única, atávica, imutável. A filósofa Marilena

Chauí nos chama a atenção para a necessidade de aceitarmos os “conflitos

entre concepções que se propõem a dizer a verdade”, isso porque a verdade

não é um dado “natural” que brota da terra. A “verdade é um trabalho do

pensamento, um esforço de questionamento, uma maneira de interrogar o

mundo”, prossegue, convidando-nos a abrir os olhos e apreender o mundo

como algo infinitamente maior e inalcançável ao filtro de nossas certezas e

pretensões individuais.

Os equívocos e excessos cometidos pelos profissionais que elaboraram

e fizeram cumprir as regras estabelecidas para normatizar o certame vestibular

não podem ser utilizados como moeda de troca para que se acenda “uma vela

para Deus e outra para o diabo”, como defendem muitos dos que têm se

manifestado sobre a questão. Nesse sentido, é recomendável a leitura da

sentença exarada pelo Juiz Federal Jair Facundes que, frente a essa situação

complexa e polêmica, posiciona-se em busca do melhor meio de fazer valer a

força da justiça para a maioria e “em tempo socialmente aceitável”, sem

alimentar falsas ilusões para a minoria injustiçada, à qual sugere reparos

individuais, e sem propor pactos imorais com a res publica.

Penso que manter o resultado do vestibular, pelo qual todas as 2030

vagas ofertadas pela Ufac foram preenchidas e, ao mesmo tempo, fazer uma

“nova prova”, um “vestibulinho”, exclusivamente para aqueles candidatos que

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foram impedidos de fazer as provas, como têm proposto determinados

parlamentares, não passa de palavras ocas de quem ou não compreende nada

da questão em que está se intrometendo, ou está decididamente tentando

ludibriar a boa fé da opinião pública em proveito próprio.

Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento sobre os procedimentos

acadêmicos e o funcionamento interno da Ufac sabe que as únicas opções

colocadas eram, por um lado, manter o vestibular e fazer valer os direitos dos

aprovados por mérito e esforço próprios e de seus familiares; ou, por outro

lado, anular tal certame, levando em consideração as injustiças e erros

cometidos e realizar um novo concurso para todos os candidatos inscritos e

todos os demais que desejassem se inscrever.

Aí reside o problema central que a maioria dos deputados e outras

pessoas que têm discutido a questão não assumem, porque isso implica em

fazer escolhas e escolher significa, antes de tudo, assumir uma conduta ou um

caminho a seguir e deixar outros de fora; significa ter a coragem de “correr os

riscos” de se manifestar por uma das posições em debate; significa ter uma

postura ética e não ficar tentando “agradar a gregos e troianos”.

Fugir desse debate, sob o pretexto de “assegurar os direitos dos

aprovados” e, sem nenhuma reflexão quanto aos efeitos e desdobramentos de

tal proposta exigir que a “Ufac” cumpra um acordo - imoralmente proposto – de

“dar as vagas” ou fazer uma “nova prova” para pouco mais de duas centenas

de candidatos, é algo falacioso e inviável. Em primeiro lugar, porque as vagas

já foram totalmente preenchidas e não há nada que macule o mérito e o direito

dos candidatos aprovados; em segundo, porque nenhuma instituição federal de

ensino superior pode abrir um certame de admissão em seus cursos para um

público restrito, posto que fere a isonomia; em terceiro, porque, para abrir

novas vagas nos cursos existentes, faz-se necessária a realização de todo um

processo de discussão, reformulação e aprovação de novos Projetos Políticos

Pedagógicos pelos colegiados da instituição e isso nenhum grupo de

profissionais, minimamente responsáveis, de qualquer um dos cursos desta

Ifes faz da noite para o dia, especialmente, para atender propostas exógenas

ao funcionamento desta universidade.

A discussão sobre manter o vestibular e fazer um “vestibulinho”, nada

mais é que um falso debate. Se os deputados que estão envolvidos nessa

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“desorientada causa” estivessem de fato interessados em discutir a

universidade e, principalmente, em assegurar o direito de todos em ter acesso

ao ensino superior, a primeira coisa a fazer seria lutar para fazer valer o que

estabelece o artigo 205 da Constituição Federal, que define a educação como

um “direito de todos e dever do Estado e da família” a ser “promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho.”

Nos marcos dos processos vestibulares, reside o desrespeito a esse

direito de todos. Isso se evidencia de forma caricatural quando nos damos

conta de que nem mesmo todos os aprovados têm as vagas asseguradas nos

cursos de suas escolhas. Isso porque, com o número limitado de vagas, a

maioria dos candidatos aprovados fica em listas de espera, aguardando

desistências que nunca atendem a todos os que estão nessa condição.

Não obstante, se os deputados (situacionistas e oposicionistas)

estivessem verdadeiramente interessados em defender os direitos dos

estudantes que desejam ter acesso à universidade pública, gratuita e de

qualidade, deveriam aproveitar este momento e exigir que o Governo do Acre,

ao invés de criar um Prouni estadual para jogar verbas públicas nas

universidades privadas, formulasse um amplo programa de universidade aberta

e, em parceria com a Ufac, ampliasse a capacidade desta instituição para

atender ao maior número possível de jovens interessados.

O acesso a esse programa de formação poderia, inclusive, proporcionar

uma oxigenação do debate sobre as formas de ingresso e permanência na

universidade, as condições de oferta, bem como o fortalecimento do tripé

ensino-pesquisa-extensão que é uma condição básica para o ensino e a

formação universitária.

Para finalizar, gostaria de ressaltar minha posição de defesa da Ufac,

num momento de estranha omissão e silêncio da maioria dos meus pares – e

ímpares. Não a defesa dos erros, violências, equívocos, incoerências e práticas

anti-acadêmicas que, muitas vezes, aqui se pratica; não a defesa de

programas e políticas de ensino impostas pelo Ministério da Educação e

aceitas acriticamente por várias unidades acadêmicas; não a relação de

subalternidade que tem se estabelecido nas “parcerias” com o Governo do

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Estado e na montagem de palanques para certos deputados da bancada

federal, em troca de verbas das emendas parlamentares.

Mas a defesa de uma instituição que é maior que tudo isso. A defesa

dos enormes serviços prestados pela Universidade Federal do Acre, nos

últimos quarenta anos, principalmente, na formação de professores e outros

profissionais em diferentes áreas do conhecimento; na formação de gerações

de acreanos e de pessoas provenientes de inúmeros outros estados que

tiveram acesso à educação superior e, naturalmente, possibilidades de

melhorias em sua condição social por intermédio desta instituição pública e

gratuita de ensino.

A defesa de uma instituição que, para além das possibilidades

individuais, tem interferido diretamente na formação e/ou consolidação de

outras instituições sociais e do próprio poder público no Acre. Qualquer pessoa

que tenha vivido neste Estado, no último meio século, sabe do papel

desempenhado pela Ufac, em nível regional.

A construção desta instituição não tem sido tarefa fácil, posto que a

mesma é fruto do trabalho, esforço, limites e dedicação humanas. O que é feito

hoje na Ufac é dar prosseguimento ao colossal trabalho dos que vieram antes,

numa época em que se contava nos dedos aqueles que tinham formação

superior nesta parte da Amazônia. Dentre os milhares de profissionais

formados pela Ufac, muitos ganharam projeção local, nacional e internacional.

É preciso recordar isso todos os dias, principalmente, num momento como

esse, em que a crítica fácil e artificial graça nas bocas daqueles que tratam a

instituição como “traidora”, “desonesta”, “conservadora”, “retrógrada”, “injusta”,

numa redução completamente anacrônica e a-histórica.

Nos últimos 27 anos, tenho vivido na Ufac e nunca deixei de me

manifestar, interna ou externamente, quanto às omissões e erros cometidos em

seu interior Mas é preciso reconhecer que se os erros foram muitos, os acertos

também foram e o melhor juízo para avaliar qual dos dois tem maior peso deve

ser medido não pelas vontades e interesses circunstanciais, mas por

indicadores que atentem de forma concreta para a importância e o papel social

exercido por esta universidade, para todo o Acre.

Nessa condição, creio na necessidade de se fazer a defesa da

instituição e de sua gestão colegiada. Reconhecer, discutir e corrigir os erros

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cometidos no âmbito desta Ifes não pode ser algo a ser feito sobre seus

escombros e cinzas. Para aqueles que foram formados pela Ufac e que sofrem

da estranha patologia de afirmar pelos quatro cantos que esta instituição “nada

faz”, só nos resta lamentar. Para os professores, estudantes e técnico-

administrativos que compõem a comunidade universitária, a omissão e a

crença na lógica do “quanto pior melhor” é o caminho mais nefasto a ser

seguido.

Rio Branco, Acre, março de 2011

Gerson R. Albuquerque

Professor associado

Centro de Educação, Letras e Artes

Universidade Federal do Acre