versões de sentido

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 PSIC. CLIN., R IO DE J  ANEIR O, VOL .15, N.2, P.X – Y, 2003 • 165 ISSN 0103-5665  PSIC. CLIN., R IO DE J  ANEIR O, VOL.20, N.1, P.165 – 180, 2008 • 165 ISSN 0103-5665 V ERSÕES DE SENTIDO: UM INSTRUMENTO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL PARA   A  SUPERVISÃO DE PSICOTERAPEUTAS  INICIANTES Georges Daniel Janja Bloc Boris * R ESUMO O texto discute, num primeiro momento, os dilemas e conflitos do psicoterapeuta iniciante, propond o estratégias de solução para a sua superação. A formação do psicoterapeuta é contínua e sistemática, persistindo ao longo de sua vida profissional. Assim, não é um treinamento pontual e circunstancial, realizado num único momento, mesmo que deter- minante, como os últimos semestres do curso de psicolog ia. Em seguida, o texto discute o s diversos instrumentos comumente utilizados na formação do psicoterapeuta, especial- mente a fundamentação teórica, a própria psicoterapia do psicoterapeuta, bem como a supervisão por parte de um profissional experiente. Neste sentido, destaca a importância da supervisão e, finalmente, aponta os benefícios da adoção das “versões de sentido” (Amatuzzi, 1989, 1995, 2001) como instrumento de consolidação dos primeiros passos do psicoterapeuta iniciante. Por meio de tal método, o psicoterapeuta iniciante registra suas impressões sobre si mesmo, sobre o cliente e/ou sobre a sua relação com ele, expres- sando a experiência imediata como pessoa a respeito daquela situação. Desta forma, as versões de sentido constituem um instrumento tanto objetivo quanto subjetivo, que facilita o trabalho de supervisão, pois pode revelar diversos sentidos da expressão do psicoterapeuta iniciante. Palavras-chave: formação de psicoterapeutas; abordagens fenomenológico-existenci- ais; psicoterapia; supervisão; versões de sentido * Mes tre em Educaç ão e Doutor em Sociologia pela Univ ersida de Feder al do Ceará; Profe ssor Titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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artigo sobre versões de sentido do Amatuzzi

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  • PSIC. CLIN., RIO DE JANEIRO, VOL.15, N.2, P.X Y, 2003

    165ISSN 0103-5665

    PSIC. CLIN., RIO DE JANEIRO, VOL.20, N.1, P.165 180, 2008

    165ISSN 0103-5665

    VERSES DE SENTIDO: UM INSTRUMENTOFENOMENOLGICO-EXISTENCIAL PARA A SUPERVISO DE

    PSICOTERAPEUTAS INICIANTES

    Georges Daniel Janja Bloc Boris*

    RESUMOO texto discute, num primeiro momento, os dilemas e conflitos do psicoterapeuta

    iniciante, propondo estratgias de soluo para a sua superao. A formao do psicoterapeuta contnua e sistemtica, persistindo ao longo de sua vida profissional. Assim, no umtreinamento pontual e circunstancial, realizado num nico momento, mesmo que deter-minante, como os ltimos semestres do curso de psicologia. Em seguida, o texto discute osdiversos instrumentos comumente utilizados na formao do psicoterapeuta, especial-mente a fundamentao terica, a prpria psicoterapia do psicoterapeuta, bem como asuperviso por parte de um profissional experiente. Neste sentido, destaca a importnciada superviso e, finalmente, aponta os benefcios da adoo das verses de sentido(Amatuzzi, 1989, 1995, 2001) como instrumento de consolidao dos primeiros passosdo psicoterapeuta iniciante. Por meio de tal mtodo, o psicoterapeuta iniciante registrasuas impresses sobre si mesmo, sobre o cliente e/ou sobre a sua relao com ele, expres-sando a experincia imediata como pessoa a respeito daquela situao. Desta forma, asverses de sentido constituem um instrumento tanto objetivo quanto subjetivo, quefacilita o trabalho de superviso, pois pode revelar diversos sentidos da expresso dopsicoterapeuta iniciante.

    Palavras-chave: formao de psicoterapeutas; abordagens fenomenolgico-existenci-ais; psicoterapia; superviso; verses de sentido

    * Mestre em Educao e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Cear; Professor

    Titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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    VERSES DE SENTIDO

    ABSTRACTSENSES VERSIONS: A PHENOMENOLOGICAL-EXISTENTIAL TOOL FOR THE SUPERVISIONOF PSYCHOTHERAPISTS IN TRAINING

    The paper discusses, as a first step, dilemmas and conflicts of psychotherapists in training,

    proposing solution strategies for their overcoming. Psychotherapists training is continuous and

    systematic, persisting along his/her professional lifetime. So, it is not a punctual and circumstantial

    training, made in an unique moment, even so in a significant one, as the last year of Psychology

    undergraduate degree. As a second step, the text discusses some tools usually used for the

    psychotherapists training, specially the theoretical foundation, his/her own psychotherapy, as

    well the supervision of an experienced professional. In this way, the paper detaches the importance

    of supervision and, finally, it points out the benefits of adopting senses versions (Amatuzzi,

    1989; 1995; 2001) as an instrument for consolidating the first steps of psychotherapists in

    training. Using this method, he/she registers his/her impressions about him/herself, the client

    and/or their relationship, expressing his/her immediate experience as a person in that situation.

    Thereby, senses versions constitute an objective and subjective tool that facilitates the supervision

    work because it may disclose several senses expressed by psychotherapists in training.

    Keywords: psychotherapists training; phenomenological-existential approaches;

    psychotherapy; supervision; senses versions.

    INTRODUO

    Buys (1987) destaca que, embora a superviso seja o mais importante seg-mento da formao do psicoterapeuta, h muito pouco, ou quase nada, publica-do sobre o assunto (Buys, 1987: 11). com o objetivo de favorecer o preenchi-mento de tal lacuna que me propus a elaborar este artigo. Neste sentido, apesar deme dirigir especialmente queles que se interessam pelo enfoque fenomenolgico-existencial, particularmente pela gestalt-terapia, penso que as consideraes quefao aqui servem a todos os que se iniciam na complexa arte de ser psicoterapeutaem diversos referenciais. Portanto, inicialmente, descrevo e discuto a situao vi-vida pelo psicoterapeuta iniciante, com seus dilemas e conflitos. Em seguida, ana-liso os diversos instrumentos comumente utilizados na formao do psicoterapeuta,como a fundamentao terica e a importncia da submisso a seu prprio pro-cesso psicoterpico, para, ento, destacar a superviso como uma ferramenta deaprendizagem essencial sua formao. Finalmente, a partir de minha experinciacomo psicoterapeuta e supervisor, proponho e discuto o uso das verses de senti-do (VS), conforme propostas por Amatuzzi (1989, 1995, 2001), como um ins-trumento facilitador da superviso de psicoterapeutas iniciantes.

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    Em minha experincia acadmica, com estranheza que percebo, com razo-vel freqncia, que muitos alunos chegam ao final do curso sem conhecimentosbsicos ou experincia mnima quanto ao universo clnico, muitas vezes nem mesmotendo se submetido a seu prprio processo psicoterpico, como se o estgio fosseapenas mais uma disciplina, que, cumprida, lhes proporcionaria o suficiente parase tornarem psicoterapeutas. Neste sentido, embora se pautando em outroreferencial que no o enfoque fenomenolgico-existencial, mas na psicanlise,Calligaris (2004) nos lembra que, at para o profissional experiente, semprebom que um terapeuta, de vez em quando, volte a ser paciente (Calligaris, 2004:52). Acrescenta que a psicoterapia no pode ser uma demonstrao pedaggicaabstrata, no pode ser limitada a um fazer de conta durante o qual se transmitiriauma tcnica. Ao contrrio, espera-se que, nesta experincia, o futuro terapeuta sedepare com a complexidade de suas motivaes, sintomas e fantasias conscientese inconscientes. Pois, para o terapeuta, no h melhor introduo variedade dosofrimento humano do que a descoberta de que, em algum canto de seus pensa-mentos, ele pode encontrar palavras, lembranas, razes, vises e pensamentosparecidos com aqueles que afetam, agitam ou mesmo enlouquecem seus pacien-tes. No mesmo sentido, Ribeiro (1986) afirma que,

    embora a psicoterapia vise diretamente pessoa do cliente, imprescindveluma reflexo adequada sobre a pessoa do psicoterapeuta, pois ele mais impor-tante como pessoa que o mtodo ou sistema que utiliza. mais significativo oque faz, transmite e vive que as tcnicas ou a viso filosfica em que se funda-menta. O resultado e a eficincia da psicoterapia dependero muito da grande-za e amplido de sua personalidade (Ribeiro, 1986: 15-16).

    Tambm observo que, terminado o estgio, apenas alguns psicoterapeutasiniciantes buscam formaes especficas nas linhas tericas que escolheram, e,infelizmente, quando elas terminam, a maioria deixa de acreditar que a supervisode um psicoterapeuta mais experiente seja um recurso valioso e imprescindvel natrajetria de qualquer psicoterapeuta. Tais observaes constituem algumas daspreocupaes que me levaram a elaborar este texto, pois, lamentavelmente, aindaparecem permanecer como um dado comprometedor da formao dospsicoterapeutas iniciantes. Destaco que a formao de um psicoterapeuta cont-nua e sistemtica, persistindo ao longo de sua vida profissional e devendo sersempre condizente com sua vida pessoal e as diversas opes e experincias que elefaz e vivencia. No , portanto, pontual e circunstancial, uma situao que seresolve apenas num nico momento difcil, mesmo que determinante, como odos ltimos semestres de curso de psicologia.

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    VERSES DE SENTIDO

    O PSICOTERAPEUTA INICIANTE: DILEMAS E CONFLITOS

    Tavora (2001) destaca que:

    ao iniciar o treinamento como terapeuta, os estudantes esto em diferentesestgios de amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, todos se depa-ram com as mesmas angstias provocadas pelos primeiros contatos com os pa-cientes. No processo de internalizao de um mtodo de atendimento e defini-o de estilo pessoal, eles necessitam de uma orientao bsica que possa guiarseus primeiros passos (Tavora, 2001: 23).

    Por sua vez, Benjamin (1978) afirma que os psicoterapeutas iniciantes, fre-qentemente, esto to preocupados com o que iro dizer em seguida que tmdificuldade em ouvir e absorver o que est acontecendo (Benjamin, 1978: 25). comum que os psicoterapeutas iniciantes tenham uma parca apreenso dos con-ceitos e dos temas dos enfoques tericos que adotam, bem como de seus recursostcnicos e de seu manejo. Uma das possveis razes deste limite que, no caso daspsicoterapias humanistas, elas surgiram, em grande parte, como uma reao aopositivismo, adotando, em muitas situaes, posturas irracionalistas, antiintelectuaisou intuitivistas. Ginger & Ginger (1995) reconhecem tal postura, particularmen-te no que se refere gestalt-terapia: seu principal mentor, Fritz Perls, tinha repug-nncia por qualquer teorizao. Loose your head, come to your senses, gostavaele de repetir (Ginger & Ginger, 1995: 10-11). Entretanto, se o psicoterapeutadeve estar plenamente presente no processo psicoterpico, a deve estar includa,certamente, a sua racionalidade, sem excluir as vivncias emocionais e intuitivaspropiciadas por um enfoque de psicoterapia que se prope a lidar com indivduosplenos e sem dicotomias e com seu sofrimento psquico. Como reao sua ca-rncia terica e tcnica, o psicoterapeuta iniciante adota, muitas vezes, posturasescamoteadoras de sua insegurana, como tratarei mais profundamente adiante.

    A omisso da realizao de seu prprio processo psicoterpico pessoal umsrio agravante da situao do psicoterapeuta iniciante, com repercussespreocupantes no acompanhamento dos pacientes, como o mau manejo de senti-mentos negativos, tanto do psicoterapeuta quanto do paciente. Entre outros mo-tivos, a psicoterapia pessoal do prprio psicoterapeuta tem como justificativa ofato de que quanto mais nos conhecemos, melhor podemos entender, avaliar econtrolar nosso comportamento e melhor compreender e apreciar o comporta-mento dos outros. Quanto mais familiarizados conosco mesmos, menor a ameaaque sentimos diante do que encontramos (Benjamin, 1978: 23).

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    Pouca disponibilidade e descompromisso com a pessoa do paciente so bas-tante corriqueiros, voltando-se mais o psicoterapeuta iniciante a seus interesses oua seu vnculo com a tarefa ou com a instituio. Tratando do compromisso dopsicoterapeuta, Calligaris (2004) argumenta: seu primeiro compromisso comas pessoas que confiam em voc e trazem para seu consultrio uma queixa quepede para ser escutada e, por que no, resolvida. Ou, mais geralmente, seu primei-ro compromisso com a comunidade na qual voc presta servio. E o compro-misso de prestar o melhor servio possvel (Calligaris, 2004: 98).

    Desta forma, razoavelmente comum que psicoterapeutas iniciantes este-jam to preocupados consigo mesmos que, lamentavelmente, podem mesmo es-quecer seu compromisso com seus pacientes e/ou com suas tarefas.

    A precariedade de seu auto-suporte interno pode levar o psicoterapeutainiciante a buscar apoio excessivo no uso de tcnicas ou mesmo na adeso rgida teoria que fundamenta seu referencial psicoterpico em detrimento do desenvol-vimento de uma atitude compreensiva, escamoteando sua prpria insegurana.Assim, o psicoterapeuta iniciante percebe-se diante de uma lacuna angustiante: aomesmo tempo que se percebe limitado a respeito do manejo adequado do referencialterico-tcnico que fundamenta a sua prtica, inexperiente em vivncias pesso-ais e profissionais que possam lhe proporcionar maior confiana em si mesmo. comum que se enfatize a importncia essencial do embasamento terico dopsicoterapeuta, mas menos freqente que se discutam os riscos de um apego teoria, ou seja, a tendncia de muitos psicoterapeutas iniciantes a servir teoriacomo uma defesa contra suas prprias dvidas, adotando uma atitude formal,intelectual ou perfeccionista. O terapeuta, desta forma, evita pensar no vnculocom o paciente, e acredita seriamente que os seus aspectos emocionais de-vem serneutralizados e que s o seu intelectual deve existir para a compreenso do outro(Cardoso, 1985: 14). Neste sentido, Calligaris (2004) alerta que a orientaoteraputica na qual voc se formou ou est se formando [...] no uma ideologia,nem uma f na qual seria preciso que voc acreditasse, nem uma espcie de dvidaque voc contraiu com seus mestres e que o foraria a se fazer seu repetidor earauto fiel (Calligaris, 2004: 65).

    Alm da importncia do investimento na fundamentao terico-tcnica,Moreira (2001) destaca o valor da experincia vivida do psicoterapeuta iniciantepara a sua formao, e, conseqentemente, da submisso a seu prprio processopsicoterpico:

    se o aprendiz no teve anteriormente a demanda de fazer uma psicoterapia,seguramente esta surgir quando o terapeuta aprendiz comece o atendimento

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    VERSES DE SENTIDO

    clnico. Trata-se de um momento que exige mais do que o conhecimento teri-co no mbito cognitivo; que vai mais alm, incluindo o mbito emocional e anecessidade de que o psicoterapeuta experimente um processo psicoteraputico,com o fim de aprender sobre sua maneira de funcionar no mundo, sobre seuslimites e potencialidades pessoais. Este autoconhecimento do psicoterapeutaser to importante para seu desempenho profissional como o conhecimentoda teoria e tcnica da psicoterapia. Finalmente, [...] fundamental na formaodo psicoterapeuta, ser a superviso, que se desenvolve na interseo dos doismomentos anteriores: o terico e o experiencial. Trata-se do espao de articula-o entre o que o psicoterapeuta aprende e conhece sobre a teoria e seu pacien-te, e do que ele experimenta na relao terapeuta-paciente durante a sesso(Moreira, 2001: 311-312).

    Tais problemas nos remetem personalidade, maturidade pessoal e profis-sional e ao autoconhecimento como variveis essenciais boa conduo do pro-cesso psicoterpico. Calligaris (2004) destaca alguns traos de carter que consi-dera desejveis em quem deseja se tornar psicoterapeuta: gosto pronunciado pelapalavra; carinho espontneo e extrema curiosidade pela variedade da experinciahumana, gerada da variedade animada de sua prpria vida, com o mnimo pos-svel de preconceito; e uma boa dose de sofrimento psquico. Neste sentido, noslembra que:

    bvio que uma psicoterapia no funciona nunca como a extirpao cirrgicade um cisto ou como a exterminao de uma bactria [...]. Uma psicoterapia uma experincia que transforma; pode-se sair dela sem o sofrimento do qual agente se queixava inicialmente, mas ao custo de uma mudana. Na sada, nosomos os mesmos sem dor; somos outros, diferentes (Calligaris, 2004: 73).

    na mesma direo que Ribeiro (1986) destaca que o psicoterapeuta no umdeus onipotente, um homem consciente de suas fragilidades (Ribeiro, 1986: 20).

    freqente a idealizao da figura do psicoterapeuta pelo paciente, que,associada auto-idealizao do prprio psicoterapeuta inexperiente, pode lev-loa tentar corresponder a uma imagem onipotente e inacessvel, ou a aceitar umapostura impotente e insignificante diante de seus pacientes. Para Calligaris (2004),de fato, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente pra de idealizar o terapeuta(Calligaris, 2004: 7). De fato, no processo psicoterpico, h muitos momentosem que inevitvel que o paciente nos considere e nos use como modelos (Ibid.:148). Entretanto, a identificao dos pacientes conosco nos impe uma respon-sabilidade (Ibid.: 149). Neste sentido, Cardoso (1985) destaca que a maioria dos

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    psicoterapeutas, dos mais diferentes referenciais, concorda que a funo da super-viso do psicoterapeuta iniciante lev-lo a perceber o quanto de idealizadoexiste em sua atuao, quanto de sua vivncia como pessoa atua no processoteraputico, sem esquecimento do natural auxlio ao seu desenvolvimento tericoe aperfeioamento tcnico (Cardoso, 1985: 11).

    A auto-idealizao pode conduzir o psicoterapeuta iniciante a um encanta-mento com seu prprio poder, ou a tentativas de seduo ou de punio do paci-ente, por exemplo. A postura onipotente pode se apresentar atravs de arrogncia(que busca aparentar eficincia) ou de uma excessiva disponibilidade (que visa aatender a qualquer expectativa, necessidade ou exigncia do paciente com o obje-tivo de ser reconhecido e admirado), escamoteando aparentemente a inseguranae a inexperincia do psicoterapeuta iniciante. Em alguns casos, ao adotar umapostura onipotente, o psicoterapeuta iniciante pode assumir uma atitude invasiva,desconsiderando a capacidade de o prprio paciente encontrar seus caminhos esuas alternativas de conduta. neste sentido que Benjamin (1978) parece advertirque o psicoterapeuta deve ter cuidado para no ajudar demasiado (Benjamin,1978: 17). Da mesma forma, Ribeiro (1999) destaca que o psicoterapeuta nopode e no tem de decidir nada para o cliente, mas pode decidir com o cliente,num encontro profundo que de fato contamine a totalidade da relao (Ribeiro,1999: 29). Por sua vez, Calligaris (2004) considera que o processo psicoterpico, geralmente, longo exatamente porque se espera que o psicoterapeuta direcioneseu paciente, mas apenas favorecendo que ele se aproxime de seu prprio desejo.Entretanto, como a psicoterapia no um espao de realizao dos desejos dopsicoterapeuta mas de conscientizao do desejo do prprio paciente , tal pro-cesso, muitas vezes, se revela empobrecido, frio ou mesmo contraproducente.

    Na polaridade oposta ao psicoterapeuta onipotente, encontramos, com maisfreqncia, o aprendiz que assume uma atitude impotente, mostrando-se inoperantepor se sentir incapaz de lidar com emoes, experincias ou contedos particu-larmente os negativos do paciente, que lhe parecem acima das suas possibilida-des de continncia. O psicoterapeuta iniciante mostra-se, nestes casos, compreen-sivo, atencioso e disponvel, mas no consegue intervir, propor ou aprofundar asquestes reveladas pelo paciente, pois tal risco sugere uma situao excessivamen-te perigosa. Assim, ambas as posturas onipotente e impotente escamoteiam oslimites e a real potncia do psicoterapeuta iniciante, trazendo tona seu dilemaentre a tcnica e a pessoa do tcnico. Conforme Rojas-Bermdez (1977), preten-der que um instrumento resolva tudo persistir numa valorizao ingnua, queservir mais para proteger a prpria onipotncia do que o instrumento (Rojas-Bermdez, 1977: 90). O uso da tcnica deve ser cauteloso e fundamentado numa

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    VERSES DE SENTIDO

    estratgia clnica que sintetize a teoria e a prtica do psicoterapeuta e o vnculoentre vivncia, compreenso, pensamento e ao entre psicoterapeuta e paciente.A tcnica jamais deve ser proposta como um truque para resolver problemas, mascomo um recurso facilitador da conscientizao do paciente, utilizado quando elej se dirige a algum tipo de ao determinada a partir de sua necessidade e de suadisponibilidade. Neste sentido, Moreira (2001) argumenta: um dado de realida-de que fundamental: a solido do terapeuta. No momento da sesso estar s,apesar de estar acompanhado por toda sua bagagem terica e suas vivncias pesso-ais, ademais das sugestes e orientaes do supervisor. Ali contar somente consi-go mesmo, com ningum mais; ele ser o instrumento da psicoterapia (Moreira,2001: 314).

    Para Calligaris (2004), nos processos psicoterpicos que acompanha, opsicoterapeuta , por assim dizer, ele mesmo o remdio (Calligaris, 2004: 5).Muitas vezes, o psicoterapeuta iniciante busca suporte externo para seus dilemas,esquecendo-se de que sua prpria pessoa seu principal instrumento de trabalho,para alm das tcnicas e mesmo das teorias. Finalmente, Ribeiro (1986) assimresume o papel das tcnicas no processo psicoterpico:

    as tcnicas so importantes, mas no podem ser exclusivas. As tcnicas so instru-mentos mgicos, so truques de ao. So importantes quando aplicadas emconseqncia do que j est ali e no aplicadas para produzir coisas, situaesemocionais, etc. A tcnica aplicada para ajudar o psicoterapeuta a fazer umaleitura correta da situao e no para produzir fantasmas (Ribeiro, 1986: 76).

    Cardoso (1985) aponta o fato de que muitos psicoterapeutas iniciantesvivenciam sintomas semelhantes aos de seus pacientes, o que gera dificuldade decontato ou envolvimento extremo, numa tentativa de resolver seus prprios pro-blemas atravs do outro, ou inadequao das intervenes, levando freqente-mente o paciente desistncia do processo psicoterpico, ou, por vezes, ao aban-dono (concreto ou por meio de atitude de distanciamento) como um artifcio porparte do psicoterapeuta iniciante. Especialmente nestas situaes, essencial queo psicoterapeuta busque suporte no seu prprio processo psicoterpico, na super-viso de profissionais experientes e competentes, bem como no necessrioenvolvimento com o estudo terico do enfoque adotado. Para Guedes (1985),ser terapeuta um privilgio. [...] [Sua]... arte tocar as pessoas. Tocar pelapalavra, gesto, afeto, expresso, olhar, mo-vimentos, etc, nos seus pontos sens-veis, adormecidos, cristalizados, encantados. Eu consigo tocar quando fui ouestou sendo to-cado por essa mesma pessoa (Guedes, 1985: 15).

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    A possibilidade de tocar e de ser tocado no sentido de sensibilizar e de seenvolver com o mundo existencial do paciente gera, muitas vezes, no psicotera-peuta iniciante, temor da relao psicoteraputica ou encantamento com seu pr-prio poder, encobrindo a sua polaridade oposta, ou seja, o fato de que, freqente-mente, pode ser tocado por seus pacientes. Acredito que grande parte dasdificuldades dos psicoterapeutas iniciantes diga respeito a um desconhecimento ea uma confuso quanto a como lidar com os sentimentos gerados pelos e nospacientes, bem como parca conscientizao das tarefas da psicoterapia e do psi-coterapeuta.

    A tarefa da psicoterapia, conforme Cardoso (1985), inclui o conhecimentoterico, a vivncia tcnica, o vnculo autntico com o paciente, a satisfao com otrabalho, alm do desenvolvimento pessoal do outro e de si mesmo como sereshumanos. Portanto, requer do psicoterapeuta uma sntese pessoal da teoria e datcnica, de forma a no escraviz-lo nem a uma nem outra. Um exemplo de no-escravizao teoria e tcnica diz respeito s regras do processo psicoterpico,um freqente motivo de empacamento do psicoterapeuta iniciante. Apesar deserem essenciais para um claro vnculo entre psicoterapeuta e paciente, as normasdevem ser, de fato, digeridas e assimiladas pelo psicoterapeuta, que precisa dar-lhessentido, torn-las flexveis e contextualiz-las.

    Podemos definir a psicoterapia como um processo interpessoal que envolvepsicoterapeuta e paciente por meio de contatos verbais e no-verbais, com objeti-vo definido de auxlio s dificuldades emocionais do paciente, visando sua pr-pria integrao vida (Cardoso, 1985). A definio dos objetivos especficos doprocesso psicoterpico uma varivel importante, na medida em que o cont(r)atoteraputico, se mal definido, mal estruturado ou mal esclarecido, pode levar afracassos considerveis. A integrao e a vinculao do processo psicoterpico coma vida pessoal do paciente, por sua vez, uma meta bsica, pois, de outra forma,corre-se o risco de criar uma vivncia dicotmica, na qual a teoria no se coadunacom a prtica, as sesses so incongruentes com as experincias fora dapsicoterapia e o espao psicoterpico equivale a um paraso ilusrio e idealizadoou a um depsito seguro, mas incuo, e a vida do paciente a um infernoameaador e insuportvel.

    A literatura terica um ponto de apoio essencial e de referncia ao psicote-rapeuta, mas no basta por si mesma, devendo sempre ser adotada com flexibili-dade, fundamentando e sendo fundamentada pela prtica profissional, pelasvivncias pessoais, pela superviso e pela psicoterapia do prprio psicoterapeuta.Neste sentido, as atitudes e as posturas do psicoterapeuta no podem ser ensina-das, mas podem ser aprendidas. Estas atitudes bsicas so: f, confiana, aceitao

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    VERSES DE SENTIDO

    e respeito (Cardoso, 1985: 21). F e confiana se referem crena no potencialdo paciente de encontrar seu prprio caminho. Aceitao e respeito so atitudescompreensivas fundamentais na facilitao da busca do paciente por meio doencontro existencial propiciado pela psicoterapia. Assim, as atitudes do psicotera-peuta so essencialmente educativas, visando no apenas apreenso de determi-nados contedos, mas constituindo uma pedagogia da vida (Boris, 1992: 62)no sentido de uma forma de (re)aprendizagem de novas alternativas para que opaciente possa viver de maneira mais saudvel ou, pelo menos, com menos sofri-mento psquico.

    Bleger (1975) considera que o psicoterapeuta vivencia grande ansiedade,pois se confronta com um objeto de estudo e de trabalho semelhante a si mesmo,lidando com as contingncias e as vicissitudes comuns tanto ao psicoterapeutaquanto ao paciente: ambas so dados de humanidade que os aproximam, mas quepodem confundir os parceiros da relao psicoterpica. Neste sentido, mesmono sendo um psicanalista, Ribeiro (1986) adverte que,

    com o mesmo nome ou com nomes diferentes, a contratransferncia est pre-sente em todas as tcnicas e pode interferir no processo psicoteraputico. Suaanlise , sem dvida alguma, o nico caminho lgico e produtivo que opsicoterapeuta encontra para compreender momentos difceis por eleexperienciados no processo psicoteraputico e para impedir que sua relaoresvale por caminhos que certamente no conduzem o cliente a um encontroreal consigo prprio (Ribeiro, 1986: 125).

    Acrescenta, no que se refere ao psicoterapeuta, que,

    atravs da anlise de sua contratransferncia, ele pode conhecer melhor o seucomportamento, percebendo o que o cliente produz inconscientemente nele ecomo ele funciona, vendo seu cliente em ao. Ele deve estar totalmente abertopara deixar-se invadir pelo mundo interior de seu cliente. Esta atitude poderproduzir nele ansiedade, desencorajamento, medo ou amor, afeto ou interesse.O psicoterapeuta poder igualmente sentir-se ameaado, enquanto a atitudedo cliente poder co-envolv-lo de modo emocional para uma resposta de con-tratransferncia positiva ou negativa. [...] Quando o psicoterapeuta tem consci-ncia de sua contratransferncia ele sente mais facilidade para analisar a trans-ferncia do cliente, na mesma linha que esta produzia nele a contratransferncia.Quando permanece inconsciente, a contratransferncia pode acarretar a estag-

    nao e, por fim, o fracasso do processo psicoteraputico. A elaborao da transfe-

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    rncia depende das atitudes contratransferenciais do psicoterapeuta (Ribeiro,

    1986: 94).

    No se trata, aqui, de privilegiar as concepes psicanalticas de transfern-cia e de contratransferncia no arcabouo terico-tcnico das abordagensfenomenolgico-existenciais obviamente, um contra-senso , mas de reconhe-cer que a diferena do psicoterapeuta em relao ao cliente est baseada na suaatitude compreensiva, um esforo racional e emocional para compreender a si mes-mo e ao outro, reconhecendo seus prprios equvocos e sentimentos em relao aele e quilo que ambos representam. Desta forma, para Calligaris (2004), a fun-o do psicoterapeuta no ensinar seus pacientes nem mexer com suas vidas,mas favorecer a conscientizao dos desejos deles. Portanto, a grande habilidadedo terapeuta, ento, seria a de poder perceber os aspectos transferidos em suapessoa e, por outro lado, poder conhecer a realidade dos seus sentimentos, paraque no se mesclem aos do paciente, o que tem sido apontado como causa fre-qente de insucesso da terapia (Cardoso, 1985: 21).

    Entretanto, importante ter em mente que nem todos os sentimentosvivenciados na relao psicoterpica so apenas transferenciais. Da mesma forma,devemos reconhecer que a transferncia e a contratransferncia ou outras deno-minaes que prefiramos so fenmenos que ocorrem freqentemente nas rela-es humanas, particularmente na psicoterapia. Adotando uma perspectivagestltica, podemos compreender os sentimentos transferenciais e contratransfe-renciais bem como algumas outras emoes vividas no processo psicoterpico como experincias projetivas, pois, nestes casos, o paciente e/ou o psicoterapeutatendem a se desapropriar das partes de seus prprios impulsos, mas tambm parase desapropriar das partes de si em que surgem os impulsos (Perls, 1977: 50).Talvez um caminho sensato nesta questo seja o proposto por Amatuzzi (1989):

    trata-se no de interpretar a transferncia mas de interpretar na transferncia.A diferena entre o a (transferncia) e o na (transfe-rncia) exatamente adiferena entre entrar ou no na relao. E o termo interpretao pode ser

    entendido no sentido em que se identifica com a prpria expresso do terapeuta

    (compreensiva da presena total e intencional do paciente) e, portanto, inter-

    pretao fundadora do terapeuta exatamente em sua vivncia da relao

    (Amatuzzi, 1989: 176).

    Nesta direo, Amatuzzi adverte ainda que, no processo psicoterpico, hlugar, apesar de tudo, para interpretaes intelectuais, mas desde que o sentido do

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    todo da relao no seja dado por semelhantes interpretaes, mas pelo vai-e-vemde respostas autnticas baseadas num ouvir profundo (Amatuzzi, 1989: 176;nota de rodap).

    As vrias questes levantadas acima me levam a destacar que ser psicotera-peuta requer uma sntese pessoal de um conjunto de atitudes desenvolvidas apartir de atividades ligadas prpria vida do psicoterapeuta, entre as quais seincluem a superviso de profissionais competentes e experientes, a insero emseu processo psicoterpico particular, a abertura diversidade das experinciashumanas, o desenvolvimento de seu estilo pessoal e profissional, a admisso emprocessos de formao ou de treinamento sistemticos e o estudo dedicado aosfundamentos e aos temas do enfoque adotado.

    VERSES DE SENTIDO: UM INSTRUMENTO FENOMENOLGICO-EXISTEN-CIAL PARA A SUPERVISO DE PSICOTERAPEUTAS INICIANTES

    Assim, passo, ento, a discutir as verses de sentido, conforme propostas porAmatuzzi (1989, 1995, 2001), como um importante instrumento fenomenolgico-existencial a ser utilizado na superviso de psicoterapeutas iniciantes. Aqui, im-portante lembrar, como Calligaris (2004) destaca, que a superviso no umaaula de clnica ou de arte diagnstica. Tambm no a ocasio para o supervisormostrar como e por que ele teria agido diferente de voc. A funo da supervisode um jovem terapeuta ou analista, salvo situaes catastrficas, deve ser autorizaro terapeuta, inspirar-lhe confiana... (Calligaris, 2004: 124).

    Creio que a grande dificuldade dos processos de superviso, particularmentena clnica-escola, deve-se sua semelhana e, ao mesmo tempo, sua diferena emrelao prpria psicoterapia. Se, por um lado, a superviso no se prope a serum espao de interveno do supervisor nas questes pessoais e ntimas dospsicoterapeutas iniciantes, por outro lado, sem uma real compreenso do vnculoentre seus temas existenciais e os processos que ele acompanha, a superviso correo risco de tornar-se um mero estudo terico-tcnico distanciado. O grande desa-fio , portanto, como articular estes dois plos, sem confundi-los.

    H alguns anos, utilizo um instrumento que acredito que enfrente melhortal desafio. So as verses de sentido, propostas por Amatuzzi (1995), que, sinteti-camente, assim as descreve:

    no fim de cada sesso de um atendimento teraputico, imediatamente aps seutrmino, escrevemos alguma coisa. Isso que escrevemos no pretende ser um

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    relato do que aconteceu em sua materialidade, mas uma tentativa de dizer aexperincia imediata do terapeuta enquanto pessoa naquele momento, e en-quanto ainda referida sesso que acaba de terminar (Amatuzzi, 1995: 68).

    Em seguida, aponta as caractersticas das verses de sentido, considerando-oum instrumento que:

    1. [...] tanto objetivo como subjetivo, uma vez que se trata da experincia doterapeuta enquanto intencional, isto , referida ao atendimento que termina;2. ao mesmo tempo um sentido captado e um sentido produzido: somente opercebo quando o produzo como participante da relao;3. ele uno e mltiplo, isto , pode se desdobrar em outros sentidos em atossucessivos de expresso;4. ele somente aparece quando o prprio ato de o expressar fizer sentido eletambm (Amatuzzi, 1995: 68-69).

    Conforme Bernard & Goodyear (1992), o instrumento tem tambm umaspecto fenomenolgico, pois assume que as prprias pessoas so os melhoresintrpretes de suas experincias (Bernard & Goodyear, 1992: 26). Para Moreira(2001), a descrio da experincia imediata do psicoterapeuta por meio das ver-ses de sentido capaz de revelar a maior quantidade possvel de vivncias com-partilhadas entre psicoterapeuta e paciente. Entretanto, tal descrio no mera-mente cognitiva nem necessariamente detalhada. O psicoterapeuta sob supervisodeve escrever, livre e espontaneamente, logo aps a sesso, tudo o que lhe ocorrasobre a relao psicoterpica, sobre o paciente e sobre si mesmo:

    imagens, metforas, sentimentos seus ou do paciente, qualquer coisa. Busca-sealcanar o sentido da sesso, tal como a vive o terapeuta na relao com opaciente, destacando na verso de sentido o que toca o terapeuta, quer dizer, oque se produz nele a partir da relao com o paciente, como lhe chegam oscontedos trabalhados na sesso, assim como impresses e sentimentos suscita-dos a partir deles. Atravs da verso de sentido, busca-se entrar em contato comas sensaes originadas da relao terapeuta-paciente e clarificar a percepo doterapeuta para compreender o significado do material trabalhado durante asesso no contexto do processo psicoteraputico (Moreira, 2001: 315-316).

    Assim, a verso de sentido:

    diferencia-se de um informe da sesso (que prioriza a descrio objetiva dodilogo desenvolvido ou de uma transcrio de gravao da sesso) em que a

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    descrio enfatiza as sensaes do terapeuta a partir da descrio do vivido,buscando alcanar a essncia e a dinmica do processo; portanto, vai muitomais alm do simples registro. Pode ser composta tanto por percepes do pa-ciente, como de sentimentos de angstia ou de xito do terapeuta supervisiona-do: as dvidas, medos e alegrias na solido da situao de atendimento. Regis-trar o processo psicoteraputico atravs da verso de sentido significa transformaro estado bruto das sesses em algo com sentido; significa fazer emergir umateorizao sobre o vivido, e permitindo a viso mais aguda do processo do paci-ente atravs da experincia da relao terapeuta-paciente (Moreira, 2001: 316).

    Deste modo, podemos deduzir que as verses de sentido constituem umaferramenta enriquecedora da superviso de psicoterapeutas iniciantes, especial-mente na clnica fenomenolgico-existencial, mas podendo mesmo ser aplicadasem outros referenciais, pois consiste numa fala expressiva da experincia imedia-ta de seu autor, face a um encontro recm-terminado (Amatuzzi, 2001: 74).Trata-se de um registro condensado do vivido, pois permite pessoa no ape-nas lembrar-se do ocorrido, mas tambm falar disso de forma viva, atual, comopela primeira vez, explicitando detalhes do vivido (Amatuzzi, 2001: 76). Final-mente, podemos considerar que uma VS bem feita uma espcie de radiografiafenomenolgica de um encontro (Amatuzzi, 2001: 77).

    CONSIDERAES FINAIS

    Portanto, creio que as verses de sentido respondem bem a alguns dilemas econflitos do psicoterapeuta iniciante e aos problemas que se manifestam nas vri-as fases que costumo perceber nos processos de superviso:

    1. num primeiro momento, os psicoterapeutas iniciantes tm necessidadede descrever e de discutir todas as sesses de seus diversos pacientes, o que torna asuperviso freqentemente mecnica, numa alternncia entre o paciente disseisso e eu respondi aquilo, conferindo com o supervisor se agiram corretamen-te. Nesta fase, as verses de sentido podem constituir um importante recurso deacesso e de explorao do mundo existencial do psicoterapeuta e de sua relaocom os pacientes;

    2. mais adiante e aos poucos, os psicoterapeutas iniciantes passam a selecio-nar as situaes e os momentos psicoteraputicos mais significativos, levando superviso no mais todas as sesses de todos os pacientes, mas a situao geraldaqueles pacientes que acompanham ou, mais especificamente, dos que os preo-cupam mais. Neste estgio, as verses de sentido acrescentam aos psicoterapeutas

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    iniciantes mais versatilidade e flexibilidade diante de pacientes que os tocam maissignificativamente ou que mais absorvem sua ateno;

    3. finalmente, se o processo avana, o foco da superviso deixa de ser unica-mente o paciente e seus problemas, passando a se constituir num contexto maisamplo, no qual o psicoterapeuta iniciante est, de fato, diante de um referidopaciente, que provoca tais ou quais repercusses nele. nesta fase que as versesde sentido podem ser mais ricamente exploradas, pois elas podem incluir maisexpressivamente as vivncias da pessoa do psicoterapeuta iniciante, que pode ana-lisar e discutir melhor, na superviso, sua atuao nos processos psicoterpicosque acompanha.

    Encerro este texto com as palavras do criador das verses de sentido, Amatuzzi(2001), destacando as qualidades de tal instrumento para a superviso depsicoterapeutas:

    ele pode ser um indicador indireto (mas o mais direto que podemos dispor) dosentido do encontro. Ele uma verso do sentido do encontro, tal como eleexiste no presente da experincia dessa pessoa. E quando utilizada dessa formaque uma VS pode ser um instrumento til em pesquisa e formao. [...] Nocaso de um terapeuta, ela ajuda a torn-lo mais disponvel para o prximoencontro na medida em que foi ouvida por algum (e compreendida), ou aomenos pronunciada conscientemente por seu autor. Em superviso, pois, a VStraz seu autor, traz seu projeto, d-o a conhecer nesse novo contexto deinterlocuo. E esta justamente uma das finalidades da superviso (Amatuzzi,2001: 82-84).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Recebido em 17 de setembro de 2007Aceito para publicao em 27 de abril de 2008