dissertação a construção de sentido

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E Ida Gomes Araéjo A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NA LEITURA POR CRIANÇAS DE MEIOS DE LETRAMENTO DIFERENCIADOS 1 Dissertação apresentada ao Curso de Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Lingüística Aplicada, área de concentração Ensino- Aprendizagem de Língua Materna. Orientador: Prof. Dr. John Robert Schmitz UNICAMP Instituto de Estudos da linguagem - IEL 2001 lCAi:ilii"'

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Dissertação - fala sobre a construção de sentidos

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  • E Ida Gomes Arajo

    A CONSTRUO DE SENTIDO NA LEITURA POR CRIANAS DE MEIOS DE LETRAMENTO DIFERENCIADOS

    1

    Dissertao apresentada ao Curso de Lingstica Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Lingstica Aplicada, rea de concentrao Ensino-Aprendizagem de Lngua Materna.

    Orientador: Prof. Dr. John Robert Schmitz

    UNICAMP Instituto de Estudos da linguagem - IEL

    2001

    -~no--~-lCAi:ilii"' ~,CA~~~

  • ~---~~-~ ~~---

    1

    FICHA CAT ALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL- UNICAMP

    ! Arl5c Arajo, Elda Gomes A con..qn1r~ de sentido na leitura por cn~n.~c;. de me1os de letramento diferenciados / Elda Gomes Arajo. - - Campinas, SP: [s.n.), 2001.

    Orientador: Jonh Robert Schmitz Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Estudos da Linguagem.

    1. Leitura. 2. Sentido (Filosofia). 3. Epistemologia social. 4. Experincia de vida. I. Schmitz, Jonh Robert. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    2

  • BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. John Robert Schmitz

    Presidente

    Profa. Dra. Matilde Virgnia Rcard Scaramucci

    Membro

    Profa. Dra. Maria Ins Mateus Dota

    Membro

    Profa. Dra. Marilda Couto Cavalcanti

    Suplente

    3

    tese

    em

  • 5

    s minhas paixes, Mrio, Cludia, Alrio Lis e Marcelo, pelo muito que

    souberam compreender minhas

    ausncias, minhas falhas, minhas inquietudes.

    O meu carinho.

  • 7

    Agradecimentos

    A Deus, a fonte de todo c.onl:!ecime:nto, por iluminar o meu c.aminho1

    A John Robert Schmtz, meu orientador, pelo trabalho seguro, oompetente e incansvel

    durante essa minha trajetria;

    Prof". Dr". Matilde Scaramucci, pela leitura criteriosa e pelas sugestes no momeuto do

    exame de qualificao e tambm pelas reformulaes sugeridas no momento da defesa

    pblica;

    Prof". Dr". Marilda Cavalcanti, pelas contribuies advindas da leitura no exame de

    qualificao;

    Prof". Dr". Marta Sardifas Vargas, minha co-orientadora, amiga e incentivadora, pelas

    discusses valiosas;

    A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada da

    t;'NICAMP que participaram do Curso de Mestrado Interinstitucional UNICAMPIUNIFAP;

    Aos professores e diretores das escolas (particular e pblica), pelo consentimento de poder

    freqentar suas salas de aulas;

    As minhas colegas do curso de Ps-Graduao, pelo apoio e incentivo;

    Aos funcionrios do IEL e da Biblioteca pela ateno oom que me aoolheram sempre;

    Aos colegas professores-juizes que, de maneira especial colaboraram com este trabalho;

    A minha famlia, pelo amor e compreenso;

    Aos meus pais Raimundo e Rute, por tudo que fizeram por mim;

    CAPES, pelo incentivo financeiro.

  • 9

    O fracasso escolar remete a essa distncia

    existente entre a escola e a sociedade; a origem

    da repercusso provm do fato de crianas

    vindas de grupos sociais diferentes se

    encontrarem a distncias desiguais da escola.

    As prticas familiares da escrita esto, segundo

    os casos, muito perto, bastante perto ou longe,

    ou mesmo muito longe das exigncias e dos

    hbitos escolares.

    (Anne-A1arie Chartier)

  • 11

    SUMRIO INTRODUO GERAL ........................................................................................................ 15 CAPTULO 1- TRAJETRIA DE PESQUISA 1.0- Introduo ......................................................................................................................... 21

    1.1 - J ustficativa ....................................................................................................................... 22

    1.2- A metodologia de investigao ...................................................................................... 23

    1.3 - Coleta de dados das entrevistas e procedimentos de anlise ........................................... 25

    1.4- Procedimentos de anlise dos dados da tarefa de leitura dos alunos-sujeitos ................... 29

    1.5- Grupos A e B ................................................................................................................. 30

    1.5.1 -Grupo A ...................................... . . ... .30

    1.5.2- Grupo B ............................................................................................................. 32

    CAPTULO 2- LEITURA E LETRAMENTO 2. O - Introduo.. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. .. .. .. .. . .. .. .. . .. .. .. .. . . .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. . . .. . . .. . .. . .. . .. .. . .. . .. . .. . .. . . .............. 3 5

    2.1 -Leitura- da decodificao construo de sentido ....................................................... 35

    2.2- Leitura na escola e na sociedade ..................................................................................... 41

    2.3 -Experincia com letramento e desempenho em letura .................................................. .48

    CAPTULO 3- ANALISE E DISCUSSO DOS DADOS DAS ENTREVISTAS

    3.0- !ntroduo ........................................................................................................................ 57

    3.1 - Os quatro casos estudados ............................................................................................... 58

    3.2- Entrevistas ................................................... . ................................................. .59

  • 12

    CAPTULO 4 - ANALISE E DISCUSSO DOS DADOS DAS ATIVIDADES DE LEITURA

    4.0- Introduo ...................................................................................................................... 69

    4. 1 - Interveno em sala de aula: algumas observaes. .. .. .. .. .. .. .. .. ..................................... 70

    4.2- Anlise dos dados: Interveno em sala de aula .. . ............................................ 74

    4.2.1 -Crnica "Boto" .............................................. . . ...................................... 75

    4.2.2- Crnica "Na escurido miservel" .... . ..................................... 81

    4.2.3 - Crnica 'Relato de ocorrncia em que qualquer semelhana no mera

    coincidncia" ......................................................... . . .......................................... 89

    4.3- Discusso dos resultados .............................................................................................. 96

    4.3.1- Leitura orientada pelo modelo escolar. .................................................... 97

    4.3.2- Leitura como processo inferencial... ......................... . . .................................. 100

    4.3 .3 - Construo de sentido na leitura: crianas com experincia de leitura X crianas

    com experincia vi vencia!... .................................................................................................... 1 O 1

    CONCLUSES E IMPLICAES PAR4. O ENSINO E PESQUISA DE LEITIJRA 107

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS ..... . ............................................................ 117

    ABSTRACT ...................................... . . .............................. 123

    ANEXOS ...................................................... . .................................................................. 125

  • 13

    RESlJMO

    Norteado por uma concepo de leitura como um processo de construo de sentido, este trabalho de pesquisa tem como objetivo investigar o papel do conhecimento de mundo e da experincia vivencial na construo de sentido na leitura de dois grupos de alunos iniciantes ( s srie) do ensino fundamental em duas escolas, sendo uma particular e outra pblica.

    Os dados foram obtidos durante as atividades de leitura realizadas em sala de aula e atravs das entrevistas que visavam a caracterizar os grupos focalizados, alm de observar os fatores que poderiam interferir no processo de construo de sentidos na leitura. Posteriormente, procedi anlise dos dados na qual pude perceber modos diferenciados de construir sentido na leitura de um mesmo texto, de um lado alunos com experincia em leitura, por outro lado, alunos com experincia vivencial sobre o contedo temtico abordado pelo

    texto.

    Os resultados permitem concluir que o conhecimento de mundo e a experincia vivencial ampliam a competncia em leitura, mesmo em sujeitos que no tenham contato constante com texto escrito. Entretanto, na escola as prticas de leitura so homogeneizadas e distanciadas da realidade social do aluno, principalmente daquele aluno oriundo de lares de famlias de classe baixa, e a resistncia por parte de alguns professores de no aproveitar a criatividade de seus alunos que advm de suas histrias, de suas experincias acaba por no formar alunos-leitores, na realidade forma decodificadores.

    Dessa forma, os resultados desta pesquisa evidenciam a importncia de se utilizar nas prticas de leitura em sala de aula textos ligados s atividades discursivas e as prticas sociais dos alunos com o objetivo de propiciar a formao do aluno-leitor.

    Palavras-chave: Leitura; Sentido; Conhecimento de mundo; Experincia

    vi vencia!.

  • 15

    INTRODUO GERAL

    ... Ora, as maneiras tradicionais de ler parecem

    condenar muitas crianas ao fracasso, como

    poderiam elas adquirir, como que se faz em sala

    de aula, uma competncia necessria para a

    leitura de textos do meio em que vivem?

    (Anne- Marie Chartier)

    A idia de analisar e questionar o ensino de leitura em nossas escolas, sobretudo

    em nvel de 1 o grau, surgiu por ter percebido o desinteresse dos alunos pela prtica de leitura

    adotada pela instituio escolar, mas tambm por ter percebido a dificuldade desses alunos de

    construir sentido sabendo distinguir idias principais de informaes de detalhes.

    O problema no se confina apenas em minha sala de aula, inquietaes

    semelhantes so encontradas em outras realidades, basta examinar a literatura especializada

    (Chartier 1994; Leite 1995; Osakabe. 1995; Soares 1995) para perceber que todos se mostram

    preocupados com essa situao.

    Na instituio escolar a leitura comea com a funo de oferecer textos ou

    fragrnentos 1 de textos que visam o ajustamento social do aluno, isto , literatura de celebrao

    de datas, comemoraes cvicas, biografias, etc. Na realidade, os textos utilizados pela escola

    1 A utilizao de fragmentos ou pequenos trechos no ensino/aprendizagem de leitura por no apresentar a totalidade de uma obra ou de um texto especfico dificulta a compreenso e, conseqentemente forma um leitor fragmentado. Este outro problema fora do escopo desta dissertao.

  • 16

    na maioria das vezes nada dizem s experincias, aos desejos e s aspiraes de seus alunos,

    por focalizar temas condizentes aos comportamentos socialmente privilegiados, que no so,

    pois, a mesma viso de mundo, os valores e os comportamentos, sobretudo dos alunos

    provenientes de famlias de baixa renda.

    Penso que a escola precisa superar a concepo de que ler simplesmente

    decodificar, converter letras em sons, sendo a compreenso conseqncia natural dessa ao.

    Dessa forma, a escola produz o aluno decodificador, enquanto deveria formar o leitor

    competente capaz de compreender e at questionar o que l. Na minha opinio, essa uma

    questo grave e preocupante: o insucesso da escola em preparar leitores proficientes.

    Uma vez definida a escolha do objeto de investigao de estudo (leitura), dediquei-me a desenvolver um trabalho de pesquisa qualitativa sobre a construo de sentido

    na leitura de duas turmas de alunos iniciantes da etapa fundamental do ensino escolar ( s srie)

    de duas escolas, sendo uma particular outra pblica, tendo como principal objetivo investigar a importncia do conhecimento de mundo e da experincia vivencial para a compreenso de

    textos.

    A lei brasileira diz que a escola a mesma para todos. Mas, na realidade,

    conforme pude observar atravs deste estudo, existem diferenas entre elas: a escola particular

    oferece melhores condies de ensino/aprendizagem, bem equipada, h um nmero menor de

    alunos por turma (28 alunos); na escola pblica existem dificuldades tais como, sal de aulas

    super lotadas ( 45 alunos), instalaes fsicas precrias, os textos utilizados nas aulas de Lngua

    Portuguesa so inadequados por no fazer sentido e utilidade para maioria de seus alunos

    vindos de lares de classe baixa.

    importante ainda tecer comentrios a respeitos dos grupos focalizados. Posso dizer que so dois mundos, duas realidades. As crianas da escola particular so provenientes

  • 17

    de famlias de classe mdia/alta, vivem num ambiente privilegiado em todos os aspectos. Por

    outro lado, as crianas da escola pblica so oriundas de famlias de classe baixa, vivem em

    situao precria e enfrentam problemas diversos, como fome, falta de moradia, desemprego

    dos pais, dentre outros.

    Sustentando-me em estudos de autores como Freire (1985), para quem a

    leitura do mundo precede a leitura da palavra, da que a posterior leitura desta no possa

    prescindir da continuidade da leitura daquele, ou Foucambert(l994), para quem

    imprescindvel estabelecer relao entre o conhecimento prvio do leitor e o texto, tomei como

    hiptese que o sujeito dotado de conhecimento de mundo e de experincia vivencial amplia a competncia em leitura mesmo nos casos de pouca familiaridade com textos escrito.

    Desse modo, para atingir o objetivo de demonstrar a importncia do conhecimento de mundo e da experincia vivencial na construo de sentidos na leitura, fazia-

    se necessrio intervir na prtica pedaggica dos alunos-sujeitos, apresentando uma proposta alternativa de leitura, em forma de uma pesquisa-ao.

    Optei pela leitura de crnicas cujo contedo temtico focalizava problemas

    sociais vinculados s atividades discursivas e s prticas sociais das crianas oriundas de

    famlias de baixa renda. Essa opo atuaria como uma estratgia compensatria de

    aproximao entre essas crianas e a escola, pois, ao ativar o conhecimento de mundo e a

    experincia vivencial, elas teriam a possibilidade de interagir na construo de sentido na

    leitura.

    Para observar os fatores que interferiam no processo de construo de sentido

    na leitura, tornava-se necessrio conhecer as condies de letramento, a exposio escrita, as

    noes de texto escrito e leitura adquiridas durante a escolarizao. Para tanto, realizei

    entrevistas com as crianas dos dois grupos observados e a anlise de suas respostas foram

  • 18

    fundamentais para a hiptese que resultou na pergunta de pesquisa que procurei responder

    neste trabalho.

    Limitando meu campo de observao construo de sentido na leitura,

    procurei responder seguinte pergunta de pesquisa:

    organizao:

    Em que sentido a diferena entre o conhecimento prvio dos alunos dos dois

    grupos influi no desempenho nas tarefas de leitura?

    Com esta pergunta, dei incio pesquisa, que tem a seguinte forma de

    No Captulo 1 - intitulado Trajetria de Pesquisa, descreverei a justificativa

    da pesquisa, a metodologia de investigao, os procedimentos de coleta e anlise dos dados

    das entrevistas e das tarefas de leitura dos alunos-sujeitos, alm de traar o perfil dos grupos

    observados, cuja finalidade a de expor ao leitor a disposio do trabalho e apresentar a viso

    geral do estudo.

    No Captulo 2 - Leitura e Letramento, apresento as concepes tericas que

    iluminam esta dissertao; discuto os diversos conceitos existentes na literatura de leitura;

    aponto as principais diferenas entre a leitura escolar e a leitura como prtica social; focalizo

    algumas experincias com letramento e suas contribuies para o desempenho em leitura.

    No Captulo 3 - Anlise e Discusso dos Dados das Entrevistas, analiso e

    discuto os dados referentes s entrevistas com o objetivo geral de conhecer a realidade dos

    alunos-sujeitos sobre leitura e escrita.

    No Captulo 4 - Anlise e Discusso dos Dados das Atividades de Leitura,

    analiso os modos como as crianas de diferentes meios de letramento constroem sentido em

    leitura. Essa anlise tem o objetivo de confirmar a minha hiptese da importncia do

  • 19

    conhecimento de mundo e da experincia vivencial no sentido de favorecer a construo de

    sentido em leitura.

    Encerro o trabalho com Concluses e Implicaes Para o Ensino e Pesquisa

    de Leitura. No entanto, julgo pertinente ressaltar, nesta apresentao, que reconheo que

    quatro sujeitos uma amostra pequena para se pretender tirar concluses de longo alcance; ao

    mesmo tempo, por outro lado, esta amostra poder ser indicadora de tendncias relevantes e

    motivadora de trabalhos mais abrangentes na rea.

    Os Anexos, subdivididos em cinco partes, incluem: I - trazem s perguntas

    orientadoras de entrevistas (Anexo 1); n - o formulrio (Anexo2); m- as trs crnicas

    usadas nas tarefas de leitura, sendo respectivamente, Anexos 3, 4 e 5; IV- carta-convite aos

    professores-juizes (Anexo 6) com s orientaes dos itens que deveriam observar nas

    respostas escritas dos quatro alunos-sujeitos; V - apresento quadros que mostram a

    escolaridade dos pais dos dois grupos e suas respectivas profisses (Anexos 7 e 8).

  • 1.0 Introduo

    CAPTULO 1

    TRAJETRIA DE PESQUISA

    A eficcia de um pesquisador est no que ele

    procura transformar, no no que ele pesquisa.

    (Jean Foucambert)

    21

    O objetivo deste captulo consiste em descrever os passos da pesquisa, os

    princpios metodolgicos que orientam a coleta de dados e os instrumentos utilizados, assim

    como os procedimentos de anlise dos dados referentes aos depoimentos obtidos atravs de

    entrevistas e da tarefa de leitura das crnicas em sala de aula pelos sujeitos de pesquisa.

    Este captulo, dividido em cinco sees, apresenta no item 1.1 - a trajetria da

    pesquisa, a justificativa para a escolha do tpico de investigao e escolha dos sujeitos; no

    item 1.2 - discuto a metodologia de investigao utilizada para o desenvolvimento da

    pesquisa; no item 1.3 -trato das atividades executadas para coletar dados e os procedimentos

    de anlise dos dados referentes aos depoimentos dos alunos-sujeitos s perguntas colocadas

    por mim durante as entrevistas; no item 1.4- discuto os procedimentos de anlise dos dados a

    respeito das respostas construdas pelos alunos-sujeitos a partir da leitura das crnicas; no tem

    1.5 - trao o perfil dos sujeitos dos grupos A e B focalizando a histria de letramento, a

    condio scio-econmica, grau de escolaridade, profisso dos pais das crianas, dentre outros

    aspectos. Essas observaes permitiro uma caracterizao dos sujeitos de pesquisa e a

    identificao de diferenas entre os grupos observados.

  • 22

    1.1 - Justificativa

    A escolha do tpico de investigao deste estudo foi impulsionada pelas minhas

    inquietudes como professora de Lngua Portuguesa em escola pblica (Ensino Fundamental e

    Mdio) e mais recentemente na Universidade Federal do Amap, UNIFAP, no exerccio da

    atividade relacionada leitura, ao observar que os textos utilizados para as prticas de leitura

    so desvinculados da realidade do aluno, na maioria das vezes, so artificiais e nada dizem s

    experincias, aos anseios e desejos do aluno, principalmente daquele oriundo de classes sociais populares e com pouca exposio escrita, pois, so textos que contribuem

    negativamente para a formao de um leitor proficiente.

    A escola, ao privilegiar temas em geral condizentes com a prtica social do

    grupo dominante, opta por textos que focalizam os valores e os comportamentos socialmente

    privilegiados, no levando em conta a pluralidade e a diferena de cada comunidade e/ou as

    diferenas entre alunos. Dessa forma, h contradio entre o acervo cultural das crianas de

    classes sociais populares e o contedo dos textos priorizado pela instituio escolar.

    No contexto escolar, a leitura lamentavelmente em muitos casos no fonte de

    prazer nem se reveste de significncia para o universo do educando e, na relao

    professor/aluno, ela reproduz a atitude autoritria e de dominao existente na sociedade

    (Indursky & Zinn 1985). O que se v um tratamento homogeneizante: leitura oral, cpias,

    resumos e exerccios gramaticais constituem tarefas para as quais a leitura serve de pretexto. A

    escola, o professor ou o livro didtico definem de antemo o sentido que deve ser fornecido

    aos alunos a partir da leitura de um texto.

    Nessa atividade cabe ao aluno produzir urna resposta nica e universal de

    acordo com o padro escolar - na escola para a escola - (Orlandi 1995), ou seja, repetir as mesmas idias que estavam no texto, assim a escola forma alunos que no conhecem a sua

  • 23

    realidade, no lem, nem sabem ler, no redigem e ainda quando o fazem, a escola no

    valoriza a avaliao que o aluno faz do mundo, que , na realidade, uma perspectiva criativa.

    Essa preocupao levou-me a observar dois grupos de crianas de 5" srie do

    ensino fundamental de duas escolas da rede de ensino da cidade de Macap - Estado do

    Amap, pertencentes a meios de letramento diferenciados e com diferentes experincias de

    vida, sendo uma particular (doravante grupo A) e outra pblica (doravante grupo Bf, pblico-alvo de minhas preocupaes iniciais.

    Um outro aspecto que motivou a escolha desse grupo de sujeitos era o fato de tratar-se de alunos iniciantes da segunda etapa bsica de escolarizao (5" a 8" srie), fato que

    permitiria observar os resultados da ao pedaggica efetuada pela escola ao longo das sries

    iniciais- 1" a 4" srie- no que diz respeito formao do sujeito-leitor.

    1.2- A Metodologia de Investigao

    A proposta foi desenvolvida com base na abordagem qualitativa de pesquisa, que

    nos ltimos anos vem sendo adotada cada vez mais como estratgia para uma compreenso

    mais efetiva dos problemas educacionais.

    Inscreve-se dentro dessa linha a pesquisa-ao, na qual o pesquisador tem

    participao no ambiente pesquisado que, conforme Thollent (1994) caracteriza-se por

    promover formas de investigao auto-reflexiva e requer uma ao planejada que visa a

    solucionar e/ou transformar prticas sociais e educacionais em contextos especficos como o

    de sala de aula.

    2 Estarei utilizando P para professora-pesquisadora e A ou B para os alunos-sujeitos.

  • 24

    Assim, de acordo com os propsitos de uma pesquisa-ao, procurei associar o

    valor cientfico ao valor didtico deste estudo, ao investigar as dificuldades dos alunos

    oriundos de classe social baixa em atividades de leitura escolar, e traar um plano de ao

    pedaggica para interferir em sua prtica de leitura, uma proposta alternativa, objetivando

    promover uma ao transformadora de ordem educacional que atuasse no sentido de levar

    esses alunos a se tornarem leitores.

    A meta era propor atividades para verificar a compreenso em leitura dos

    alunos-sujeitos dos grupos A e B, diante crnicas que focalizavam questes sociais prximas

    da realidade vivencial das crianas do grupo B. Assim, os alunos-sujeitos do grupo A defrontaram-se com textos "novos" por focalizar temas que no faziam parte do universo que

    eles estavam acostumados. Por outro lado, os alunos-sujeitos do grupo B tambm se

    defrontaram com textos "novos", mas no no sentido de desconhecer o contedo temtico

    textual, mas no sentido poder interagir, estabelecer conexes entre texto e mundo real, em

    outras palavras, eles teriam a oportunidade de utilizar o conhecimento de mundo e a

    experincia vivencial em prol da construo de sentido na leitura.

    preciso salientar que a escolha de crnicas justifica-se pelo fato de esse gnero permitir a seleo de temas que tivessem um significado no contexto scio-cultural apenas s

    crianas de classe social baixa (grupo B), tambm por estar vinculada minha viso de leitura

    como uma prtica social, considerando que o contato com esse tipo de texto seria essencial

    para o desenvolvimento do sujeito ao situ-lo como participante ativo da sociedade letrada em

    que est inserido.

    Foram usadas crnicas que versavam sobre temas de conflitos ideolgicos nos

    quais os protagonistas podiam ser as crianas do grupo B, tais como: a desigualdade social, a

  • 25

    explorao do trabalho infantil e a falta de solidariedade entre os homens. As crnicas

    selecionadas recriavam o panorama real vivido por essas crianas brasileiras.

    1.3 - Coleta de dados das entrevistas e procedimentos de anlise

    A pesquisa-ao examina o "significado" que as pessoas do s coisas e as suas

    vidas so focos de ateno especial para o pesquisador. Desse modo, tornava-se necessrio

    obter dados visando conhecer a realidade dos sujeitos, para saber mais sobre a sua vida fora da

    escola e dentro dela, o grau de satisfao/rejeio pela leitura e escrita, captar seus interesses,

    o que permitiria traar o perfil dos grupos A e B. Para tanto, propus uma entrevista individual

    audiogravada para que pudesse refletir sobre aspectos que se incluem no rol de interesse para

    meu trabalho.

    Assim sendo, elaborei um roteiro de perguntas orientadoras (Anexo 1 ), a partir

    das quais os alunos foram sendo estimulados a falar sobre questes tais como: o que gostaria

    que a escola lhes ensinasse; quais suas dificuldades e expectativas em relao escola; qual

    disciplina mais gostam de estudar; quais as suas atribuies enquanto alunos; o que pensam

    sobre determinadas questes ligadas ao seu dia-a-dia.

    As entrevistas foram desenvolvidas paralelamente s outras atividades

    executadas em sala de aula. Foram dez encontros marcados com certa antecedncia dos quais

    participaram 30 alunos voluntrios das duas escolas, sendo 14 da particular e 16 da pblica, de

    ambos os sexos e de diversos nveis scio-econmicos.

    Os alunos-sujeitos participantes das entrevistas sentiram que seus depoimentos

    seriam valorizados. No economizaram palavras e no se limitaram a responder apenas sobre

    0 que se perguntava. Ao contrrio, teceram comentrios importantes com relao escola, ao

    bairro e contaram histrias familiares, evidenciando aspectos do seu modo de vida.

  • 26

    Finalmente, de posse dos vrios tipos de respostas, comecei o processo de

    anlise. Inicialmente transcrevi as respostas; em seguida, selecionei os tipos de respostas que

    foram comuns a todas as crianas; posteriormente, procurei levantar os aspectos mais

    diferenciados; e finalmente, atravs da anlise das respostas pude descrever o perfil dos grupos

    A e B (ver item 1.5 neste Captulo), isto , apresentar aspectos relativos ao meio social no qual

    a criana est inserida, tanto escolar corno domstico, suas condies de vida e o grau de

    letrarnento.

    Alm das entrevistas, utilizei formulrios (Anexo 2) como instrumento de

    coleta de dados contendo os seguintes itens: nome, idade, endereo, filiao, profisso dos

    pais, horrio disponvel para entrevista, alm de um espao destinado a observaes.

    A coleta de dados teve a durao de 6 meses, estendeu-se durante o segundo

    semestre do ano letivo de 1999. J conhecia as duas escolas, pois, havia, como estudante de

    Letras, visitado diversas vezes para desenvolver atividades acadmicas.

    Com o objetivo de conhecer a realidade das aulas de Lngua Portuguesa dos

    sujeitos observados, comecei a freqentar as salas de aulas. As prticas de ensino da escola

    particular envolviam atividades com leitura silenciosa e oral; discusso do texto pela

    professora/alunos e aluno/aluno; utilizao de questionrios para verificao de entendimento

    e a explorao vocabular; era permitida a construo de sentido de acordo com entendimento e

    compreenso do aluno; os textos usados no se limitavam apenas aos do livro didtico,

    envolviam paradidticos e no escolares.

    Por sua vez, observei que a prtica de ensino na escola pblica seguia o modelo

    proposto pelo manual didtico. As aulas de leitura apresentavam s seguintes orientaes:

    leitura oral; estudo vocabular/grarnatical; questionrios de compreenso; predominava a noo

  • 27

    de que toda e qualquer resposta deveria ser transcrio de fragmentos do texto deixando de

    lado o levantamento de idias.

    No perodo combinado com as professoras e direo, ficou estabelecido que nos

    dois ltimos horrios, duas vezes por semana, eu poderia desenvolver as atividades planejadas

    para a sala de aula. Na escola particular minhas atividades foram acompanhadas pela

    professora da turma3 que, entretanto, no interferiu na conduo dos trabalhos. Na escola

    pblica, no fui acompanhada pela professora da turma.

    Realizei sete encontros com cada turma, totalizando 28 hora/aula. No primeiro,

    explquei os objetivos da pesquisa. No segundo, solicitei o preenchimento do formulrio acima

    citado. O terceiro, utilizei para verificar o conceito que faziam de crnica (ver Captulo 4,

    seo 4.1 ). Do quarto ao stimo encontro desenvolvi as atividades com as crnicas.

    Foram utilizadas trs crnicas, fotocopiadas e distribudas para serem lidas em

    encontros com durao de duas aulas de 50 minutos cada, seguindo os mesmos procedimentos

    tanto para os alunos-sujeitos do grupo A como para os alunos-sujeitos do grupo B,

    explicitados a seguir:

    1 -A leitura deveria ser individual e silenciosa;

    2 - Aps a leitura, os alunos deveriam responder por escrito s duas perguntas a

    seguir, sendo-lhes permitido utilizar o texto para a realizao da tarefa:

    a- O que voc entendeu da crnica?

    b - Que mensagem o autor est querendo passar?

    3 Por orientao da direo da eswla, a professora permaneceu em sala de aula apenas como observadora.

  • 28

    As perguntas foram elaboradas de acordo com a terminologia que os sujeitos estavam acostumados nas atividades dedicadas prtica de leitura em sala de aula. Esclareo

    que, dentro do contexto escolar, todos os textos recebem um tratamento homogeneizante,

    repetem-se sempre os mesmos procedimentos leitura oral, estudo do vocabulrio, gramtica e

    perguntas de compreenso do texto; mesmo no realizando todos os procedimentos citados

    considerei que, qualquer atitude inovadora quanto a formulao das perguntas poderia

    comprometer a coleta de dados.

    O texto usado na primeira atividade foi Boto, de Ganymdes Jos (Anexo 3).

    Essa crnica tratava da vida de um menino pobre chamado Boto que enfrentava, juntamente com sua famlia, diversos problemas como ausncia de moradia condigna, sade, falta de

    higiene e violncia familiar. A tese da crnica a desigualdade social, exemplificando o que

    uma sociedade capitalista, ou seja, uma sociedade dividida em classes sociais, onde as pessoas

    so avaliadas pelo que possuem, sendo ricas ou pobres.

    O segundo texto utilizado foi Na escurido miservel, de Fernando Sabino

    (Anexo 4). Nessa crnica, o narrador relata a histria de uma menina de apenas dez anos de

    idade que trabalha treze horas por dia como domstica. Alm de receber um baixo salrio, a

    patroa ainda desconta a alimentao consumida pela menina. A crnica aborda a explorao

    do menor carente.

    O texto escolhido para a terceira atividade de leitura foi Relato de ocorrncia

    em que qualquer semelhana no mera coincidncia, de autoria de Rubem Fonseca

    (Anexo 5). A crnica apresenta como emedo um nibus de passageiros que se precipita no rio

    depois de atropelar e matar uma vaca que se encontrava na ponte. Ocorre a morte de vrios

    passageiros e a vaca fica em cima da ponte. As pessoas que moravam prximo do local onde

    ocorreu o acidente comeam a dividir a carne no se preocupando em prestar assistncia s

  • 29

    vtimas. A temtica do texto a falta de solidariedade entre os homens fazendo prevalecer a lei

    da sobrevivncia.

    1.4 - Procedimentos de anlise dos dados da tarefa de leitura dos alunos-

    sujeitos

    A anlise dos dados referentes construo das respostas dos alunos-sujeitos

    s perguntas de compreenso, obedeceu aos seguintes procedimentos:

    Para no contar somente com a viso da pesquisadora, optei por formar um

    painel de juizes, composto por quatro ps-graduandos de universidades brasileiras. Cada juiz

    recebeu uma carta-convite (Anexo 6), explicando o objetivo da pesquisa e os itens que

    deveriam observar nas respostas dos alunos-sujeitos. Para evitar preconceitos no julgamento

    considerei pertinente no informar aos juizes qual a classe social a que pertenciam os sujeitos.

    Coube aos juizes 1 e 2 analisar as respostas dos alunos-sujeitos A5 e B5; por

    sua vez, os juizes 3 e 4 analisaram as respostas dos sujeitos A8 e B8. Cada juiz deveria

    observar se a resposta construda pelo aluno-sujeito:

    texto;

    1 - correspondia tese apresentada pelo autor;

    2- apresentava argumentao e questionamento;

    3- apresentava conhecimento e/ou experincia sobre o assunto abordado pelo

    4- posicionava diante da temtica focalizada pelo texto.

  • 30

    Entre os alunos4 que p;uticipam como sujeitos de pesquisa, foram selecionados

    quatro para serem acompanhados em todas s atividades planejadas para coleta de dados deste

    estudo, sendo dois de cada grupo. A opo por formar duplas de sujeitos partiu da necessidade

    de realizar um estudo comparativo das respostas produzidas por eles s perguntas de

    compreenso.

    A seleo desses sujeitos adotou como referncia contradio existente entre

    os dois grupos, bem como entre os sujeitos de um mesmo grupo, quer seja no aspecto social,

    econmico, cultural, grau de escolaridade da famlia, tempo de estudo em determinada rede de

    ensino e de letramento.

    1.5 - Grupos A e B

    Atravs dos dados resultantes das respostas fornecidas s perguntas colocadas

    durante as entrevistas com os alunos-sujeitos dos grupos A e B, foi possvel traar um perfil

    dos grupos pesquisados.

    1.5.1 -Grupo A

    O grupo A formado por alunos de uma instituio particular conceituada,

    considerada uma das melhores da cidade, que oferece cursos desde o pr-escolar at o ensino

    mdio e encontra-se em fase de implantao de cursos de nvel superior. Fica localizada num

    bairro prximo ao centro da cidade, habitado predominantemente por famlias de classe mdia.

    A escola proporciona conforto para sua clientela, com salas de aulas amplas e

    4 Maiores informaes a respeito dos alunos-sujeitos selecionados para este estudo encontram-se no Captulo 3 -Anlise e Discusso dos Dados das Entrevistas, no qual, alm de caracterizar os sujeitos individualmente, transcrevo seus depoimentos s perguntas por mim colocadas durante as entrevistas.

  • 31

    climatizadas, dispondo de salas de informtica, ginstica, reforo, quadra para prtica de

    esportes, piscina, parque, lanchonete e biblioteca. A prtica de eventos culturais so

    constantes. Bimestralmente acontece na quadra da escola a apresentao de danas, teatro,

    recital de poesias, msicas e exposio de trabalhos produzidos em sala de aula pelos alunos.

    A professora de Lngua Portuguesa da turma observada licenciada em Letras, ministra cinco

    aulas semanais, sendo duas dedicadas prtica de leitura e redao; os alunos lem

    normalmente dois livros por bimestre.

    Esse grupo era composto por 28 alunos com idade entre 11 e 12 anos (a maioria

    com 11 anos), pertencentes a famlias de classe mdia/alta, cujos pais apresentavam, de modo

    geral, grau de escolaridade superior (ver no Anexo 7- Quadros I e 2 ), categorizado como

    grupo altamente letrado. A maioria dos alunos estuda nessa escola desde a pr-escola ou

    freqentaram uma outra escola particular; somente um aluno revelou estudar pela primeira vez

    em escola particular.

    Buscando informaes com relao participao dos alunos em eventos de

    letramento, entendendo-se nesse estudo por eventos de letramento as experincias discursivas

    e sociais relacionadas ao uso da escrita, sem restringir -se necessariamente s atividades de ler

    e escrever (Heath, 1982), constatei que a grande maioria do grupo A recebe incentivo para a

    prtica da leitura desde pequenos; afirmaram ser comum ouvirem histrias de dormir na

    infncia; interagirem com adultos na leitura de folhetos instrucionais para montagem de

    brinquedos de armar ou jogos; ou possurem dirios de anotaes; lerem gjbis, dentre os quais

    A turma da Mnica, Mickey, Tio Patinhas, Super Man, Casco, Cebolinha; gostarem de

    Lngua Portuguesa como disciplina e de ler e escrever, mesmo fora da escola; possurem

    biblioteca em casa com livros de literatura infanto-juvenil, enciclopdias e dicionrios, dentre

    outros.

  • 32

    Esses alunos tm como lazer passeios no nico shopping center existente em

    Macap, clubes, praas, brincadeiras com jogos eletrnicos e no computador, navegar na

    internet, assistir a TV ou a filmes em fitas de vdeo, escutar msicas e freqentar cinema e

    teatro.

    1.5.2 - Grupo B

    O grupo B formado por alunos de uma instituio pblica. Essa instituio

    oferece cursos do ensino fundamental ao mdio e fica localizada num bairro de periferia da

    cidade. A populao do bairro constituda predominantemente por pessoas de pouco ou

    nenhum poder aquisitivo.

    A escola no oferece conforto para sua clientela. As salas de aulas no

    possuem portas nem janelas; os alunos que chegam atrasados tm que dividir carteiras, ou

    seja, cada assento ocupado por duas crianas; existe uma quadra para prtica de esportes; os

    livros utilizados so emprestados pela escola e devolvidos ao trmino do ano letivo; no existe

    biblioteca, apenas uma sala onde so guardados os livros didticos no utilizados; a professora

    de Lngua Portuguesa da turma observada tem apenas o curso de magistrio, ministra cinco

    aulas por semana orientadas pelo livro didtico, no sendo indicado pela professora outro tipo

    de contato com texto escrito dentro ou fora do contexto escolar.

    A turma era composta por 45 alunos em idades que variam entre 10 e 14 anos (a

    maioria com 12 anos), sendo que 17 deixaram de freqentar a escola porque mudaram de

    bairro e outros por causa no conhecida; a maioria dos alunos estuda nessa escola desde a 1 a

    srie. So oriundos de famlias de classe baixa e com exposio bastante limitada escrita;

    seus pais apresentam baixa escolaridade, sendo que a maioria cursou at a 4 srie do 1 grau

    (apenas um pai cursa Universidade). Profissionalmente, os pas dessas crianas desenvolvem

  • 33

    atividades braais como carpinteiros, pedreiros, empregadas domsticas, alm de alguns sem

    trabalho especfico e/ou desempregados. (ver no Anexo 8 - Quadros 3 e 4)

    Constatei que a grande maioria dessas crianas havia tido alguma

    participao em eventos de letramento, como anotaes de material para compras ou receitas

    de culinria. Entretanto, a leitura no figurava como prtica cultural significativa em sua vida

    social ou familiar, poucas possuam contato com texto escrito fora do ambiente escolar. Estes,

    em geral, eram revistas em quadrinhos, jornais ou livros didticos usados, doados por terceiros

    e raramente comprados.

    Algumas dessas crianas assumem responsabilidades corno trabalhadores, do

    conta das lidas domsticas, cuidam de irmos menores, permitindo, assim, que os pais se

    afastem para o trabalho fora de casa. Outras j desenvolvem pequenos servios para ajudar no

    oramento familiar, tais como vender picol, amassar aa, bab, varrer caladas e quintais,

    lavar carros e vigiar veculos em estacionamentos de lojas e reparties pblicas.

    Corno crianas que so, brincam, sonham (gostaria de ganhar uma bicicleta .. .

    vdeo game ... boneca Barbie ... CD da dupla Sandy e Junior, conhecer o shopping center ... ),

    fazem planos (quando crescer quero ser jogador de futebol... mdico ... advogado .. .

    professora ... manequim ... ). Suas horas de lazer so constitudas por reunies e passeios na casa

    de parentes e amigos; gostam de televiso, msica, dana; jogam bola e jogos eletrnicos;

    participam de festas profanas Gunina, estudante, professores) na escola e de festas religiosas

    na Igreja catlica do bairro. No Captulo que segue, discuto as perspectivas tericas que embasam o estudo

    sobre leitura como construo de sentido, a partir das quais ser analisado o corpus desta

    pesquiSa.

  • CAPTUL02 LEITURA E LETRAMENTO

    35

    ... seja popular ou erudita, ou letrada, a

    leitura sempre produo de sentido.

    (Jean Marie Goulemot)

    2.0 -Introduo

    Este Captulo, estruturado em trs sees, tem como objetivo discutir noes

    tericas sobre a leitura e o letramento.

    No primeiro item 2.1 - trato dos diversos conceitos de leitura e dos processos

    que favorecem a construo de sentido. No segundo item 2.2 - examino as principais

    divergncias entre a leitura praticada na instituio escolar e a leitura como prtica social. No

    terceiro item 2.3 - discuto alguns princpios tericos do letramento e suas contribuies para

    o ensino de leitura.

    2.1 -Leitura- da decodificao construo de sentido

    A leitura um fenmeno muito complexo, que se presta a vrios tipos de

    indagaes e abordagens (Kato, 1998). A primeira impresso que se tem de leitura de que ela

    feita com os olhos. Na realidade, ler requer raciocnio, concentrao e conhecimento

    anterior. O que os olhos contam, no tudo. Ler requer outros sentidos. A leitura tem sido

    descrita ou explicada de diferentes formas, atravs de diversas abordagens, teorias e

    concepes.

  • 36

    Em sua acepo tradicional a leitura pode ser compreendida com ato de decifrar

    signos lingsticos realizado a partir do conhecimento que o falante tem do sistema de uma

    lngua, conforme a crena dos estruturalistas. Nessa acepo, a ato de ler se reduz, a saber,

    decodificar letras e palavras escritas, crena ainda presente em nossas escolas que rotulam

    como "leitor" o sujeito capaz de conhecer a ortografia, o vocabulrio e as regras gramaticais

    da frase (Barbosa, 1994; Silveira, 1998).

    Contemporaneamente, a leitura pode ser entendida no sentido de gerar ou de

    formar idias e neste sentido que ela usada quando se fala de "leitura do mundo", como

    aparece no trabalho de Freire (1985), que se refere ao fato de que a leitura do mundo precede a

    leitura da palavra, isto , a leitura da palavra no significa a ruptura do contexto scio-cultural

    e lingstico.

    Segundo Matencio (1998), a leitura um processo de (re)atribuio de sentido,

    que nasce, em grande parte, tanto das experincias de vida do leitor quanto do prprio texto -

    interao texto-leitor. O sentido nico, individual e a cada leitura, o que j foi lido muda de

    sentido, toma-se outro (Goulemot, 1996; Zilberman, 1995). Nesse processo, pode-se constatar

    a importncia do leitor, cujo papel no simplesmente o de um decodificador, uma vez que,

    ao entregar-se atividade de leitura, ele convidado a participar da construo do sentido.

    Dessa forma, o leitor procura estabelecer uma relao entre os conhecimentos veiculados no

    texto e os conhecimentos armazenados na memria.

    Essa relao, isto , a interao que se estabelece no momento da leitura,

    depende de uma srie de elementos centrados no leitor como o seu conhecimento de mundo,

    suas crenas, opinies e interesses. O texto faz sentido ao leitor quando existe uma

    continuidade de sentidos entre o conhecimento prvio do leitor, ativado durante o ato de

    leitura atravs do contedo textual. Esse ponto de vista, refora a idia de que o texto faz

  • 37

    sentido, graas relao ... entre dois sujeitos - leitor e autor - que interagem entre si,

    obedecendo a objetivos e necessidades socialmente determinados (Kleiman, 1995a: 1 0), que se

    estabelece durante o processo de leitura.

    Para Goulemot (1996:113), os sentidos na leitura nascem tanto do prprio texto

    quanto do seu exterior cultural e dos sentidos j adquiridos que nasce o sentido a ser

    adquirido. Este autor constri uma noo de biblioteca para explicar que no existe

    compreenso autnoma, mas integrao em tomo do conjunto de textos lidos, uma biblioteca

    composta pelos textos que formam uma cultura coletiva. Ler .. .fazer emergir a biblioteca

    vivida, quer dizer, a memria de leituras anteriores e de dados culturais. raro que leiamos o

    desconhecido.

    O texto j no pode mais ser considerado como um mero artefato lingstico,

    cujos sentidos existem fora de um contexto scio-histrico e discursivo. Considero elucidativa a observao de Koch (1997: 25) para explicar uma concepo de texto que vai alm de sua

    materialidade lingstica, de que todo texto parece um iceberg, partindo do postulado bsico

    de que ... todo texto: possui apenas uma pequena superficie exposta e uma imensa rea imersa

    subjacente. Para se chegar s profundezas do implcito e dele extrair um sentido, faz-se

    necessrio o recurso a vrios sistemas de conhecimento e a ativao de processos e

    estratgias cognitivas e interacionais.

    Diante de um texto, a ativao do conhecimento prvio, aquele adquirido ao

    longo da vida, no ocorre apenas a pa1tir de um item lexical, mas depende da inferncia dos

    conhecimentos individuais armazenados na memria do leitor, isto , todo leitor tem um

    repertrio de conhecimentos acumulados e organizados no decorrer de sua experincia de

    vida, fator de relevncia capaz de captar o sentido dos enunciados que compem o texto, de

    modo fundamental, pois sem ele no haver compreenso.

  • 38

    Quando o leitor se depara com um texto, para que se inicie o processo de

    compreenso, necessrio que ele ative o conhecimento prvio a respeito. Como a leitura

    um processo interativo, torna-se necessrio o envolvimento dos nveis de conhecimento,

    como:

    a - Conhecimento lingstico: o conhecimento que o falante tem de sua

    lngua. Este nvel de conhecimento desempenha um papel central no processamento do texto e

    sem o qual a compreenso no possvel.

    b - Conhecimento textual: o conjunto de conhecimentos elementares e

    conceitos sobre o texto. Neste nvel de conhecimento observa-se a classificao do texto do

    ponto de vista da estrutura, isto , narrativo, expositivo ou descritivo, cada estrutura apresenta

    suas caractersticas prprias. A estrutura narrativa se caracteriza pela marcao temporal

    cronolgica e pela casualidade, tambm pelo destaque atribudo aos agentes das aes,

    materializado na introduo de personagens. Apresenta como componentes essenciais o

    cenrio ou orientao, a compilao e a resoluo. A nfase dada pela estrutura expositiva

    liga-se temtica, isto , est nas idias e no nas aes como na estrutura narrativa. Seus

    componentes esto ligados entre si por diversas relaes lgicas: premissa e soluo, tese e

    evidncia, causa e efeito, analogia, comparao, definio e exemplo. J a estrutura

    descritiva caracteriza-se pela presena de certos efeitos descritivos, como um efeito ou

    listagem, num efeito de qualificao ou por um efeito de particularizao de objeto

    tematizado. Quando existe a necessidade de particularizar ou individualizar um objeto, a

    descrio interioriza-se tanto na narrao como na exposio.

    c - Conhecimento de mundo ou conhecimento enciclopdico: O conhecimento

    de mundo pode ser adquirido tanto formalmente como informalmente. O primeiro se reporta

    ativao do conhecimento prvio que o leitor possui em sua memria (fonte de dados de

  • 39

    determinado assunto), no est explcito no texto, extralingstico. Em outras palavras, so

    os conhecimentos de determinado assunto armazenados na memria e quando solicitados na

    busca de compreenso so ativados. O segundo adquirido atravs de experincia e convvio

    numa sociedade. Apresenta-se ... como conhecimento estruturado (porque est ordenado),

    parcial (porque inclui apenas o mais genrico e previsvel das situaes) sobre um assunto,

    escrito ou situao tpicas (Kieiman, !995b:22). Sua ativao importante para a

    compreenso de texto, pois seu modo estruturado viabiliza economia e seletividade de

    informaes e atravs do conhecimento parcial, isto , do esquema - deixa implcito aquilo

    que tpico de uma situao.

    Assim sendo, o leitor, ao ativar o conhecimento prvio, habilita-se a realizar

    inferncias necessrias na busca da compreenso do texto, relacionando fragmentos num todo

    coerente na tentativa de recuperar os implcitos, de preencher as lacunas, para construir o

    sentido do texto.

    A inferncia um processo incipiente decorrido do conhecimento de mundo

    que o leitor dotado; a conexo realizada a partir dos elementos formais fornecidos pelo

    texto. Interfere muito na compreenso, fortalecendo a idia de que a construo do sentido

    dependente da interao leitor/texto.

    Muitos tericos tm-se manifestado a respeito das inferncias. Para Koch e

    Travaglia (1990: 65), ... inferncia a operao pela qual, utilizando seu conhecimento de

    mundo, o receptor (leitor/ouvinte) de um texto estabelece uma relao no explcita entre dois

    elementos (normalmente frases ou trechos) deste texto que ele busca compreender e

    interpretar. Numa perspectiva de leitura como processo inferencial, Marcuschi (1985 : 25),

    considera inferncia ... uma operao cognitiva que permite ao leitor construir novas

  • 40

    proposies a partir de outras j dadas. Esses autores vem inferncias como conexes que o

    leitor e/ou ouvinte realizam quando tentam interpretar o que lem ou ouvem.

    O processo inferencial exerce papel importante na compreenso de textos.

    Entretanto, necessrio observar a questo dos limites para a sua realizao. As lacunas

    existentes no texto permitem ao leitor abertura, assim sendo, dificil prever as inferncias que

    cada leitor far de um mesmo texto, pois, fatores como as intenes do autor, os implcitos e o

    prprio contexto de enunciao interferem na construo do sentido, que fazem o leitor

    realizar inferncias no-autorizadas, quer dizer, h um limite alm do qual no podem ocorrer

    inferncias, sob pena de distoro5 de sentido. Alm desses fatores, o conhecimento prvio do

    leitor pode fazer com que ocorram diferentes leituras de um mesmo texto por diferentes

    leitores.

    relevante observar o papel do contexto6 para o processo inferencial. Muitos textos no podem ser compreendidos sem que se considere o contexto geral em que esto

    situados. Diante de um texto, no se leva em considerao apenas itens lexicais, mas os

    conhecimentos do sujeito, suas crenas, as circunstncias em que o texto lido. A leitura no pode se vista apenas como um ato de interao do leitor com o

    texto, mas como uma prtica de interao autor/leitor, mediada pelo texto, todos -

    autor/leitor/texto- constitudos em um contexto scio-histrico-ideolgico (Leal 1999).

    Dessa forma, o contexto e a leitura mantm uma intrnseca relao. necessrio informar que para haver leitura preciso haver uma compreenso dinmica e

    abrangente do leitor com o texto, um encontro vivo de histrias de um com outro, que envolve

    Segundo Marcuschi (!985}, as proposies dadas e as inferirias devem manter relaes passvei;; de identificao. 6 O sentido de contexto neste trabalho bastante abrangente, envolve o contexto scio-histrico e o ntertextua que a relao de um texto com outros existentes, possveis ou imaginrios.

  • 41

    componentes sensoriais, emocionais, perceptivos, intelectuais ou cognitivos, scio-culturais,

    econmicos e polticos. Durante a construo de sentido na leitura, o leitor interage com as

    formas dadas pela sociedade, em um determinado tempo e espao, pode-se dizer que se

    apropria da cultura que vive.

    Entretanto, as prticas da leitura escolar apresentam-se dissociadas do contexto

    social do aluno, que acaba desenvolvendo uma atitude de reverncia diante do texto,

    considerando-o um verdadeiro repositrio inquestionvel de conhecimentos. Alm disso, na

    leitura escolar os textos, de modo geral, so apresentados individual e isoladamente, sem

    estmulo produo de relaes intertextuais durante a construo de sentidos.

    A viso de leitura como decodificao, ainda to presente em nossas escolas

    contribui para a formao de um leitor passivo. no-critico, condicionado apenas a receber

    informaes transmitidas sem condies de participao ativa e reflexiva diante ao texto,

    apoiada numa concepo estruturalista da linguagem, responsvel por prticas de leitura

    mecnicas, a escola a instituio que tem determinado o modo de fazer sentido na leitura -

    instauradora da univocidade de sentidos - estabelecendo uma leitura didtica e homognea,

    como sendo a nica vlida.

    2.2 - Leitura na escola e na sociedade

    A escola uma instituio qual a sociedade delega a responsabilidade de

    introduzir novas geraes no mundo da leitura e da escrita, proporcionando-lhes as habilidades

    necessrias compreenso e produo de mensagens produzidas em um cdigo especfico,

    reunindo condies para aprender a ler e a escrever. Cabe, ainda, mencionar que atribuda

    tambm escola a responsabilidade de prover conhecimentos, valores e atitudes consideradas

    fundamentais para formar o cidado.

  • 42

    Para cumprir essa responsabilidade, a escola "elabora", mesmo sem conhecer os

    efetivos alunos, um plano de curso selecionando contedos que devem ser aprendidos,

    estabelece a durao de tempo (bimestre, semestre, ano letivo, srie, grau de ensino), avalia

    seus alunos em momentos pr-estabelecidos envolvendo atividades dentro ou fora do

    ambiente escolar. Ao limitar informaes, codificar conhecimentos, selecionar determinados

    aspectos culturais priorizando os hbitos e costumes das classes sociais privilegiadas, ela se

    distancia das prticas sociais cotidianas, principalmente daquele aluno oriundo de classes

    sociais populares.

    Uma das causas do fracasso escolar, principalmente dos alunos de classes

    sociais populares, remete a essa distncia existente entre a escola e a sociedade. O ponto de

    partida provm do fato de crianas oriundas de classes sociais diferentes se encontrarem perto

    ou longe das exigncias e dos hbitos escolares, pois, este ensino direcionado para um aluno

    ideal, no h preocupao com as reais necessidades dos alunos.

    Segundo Indursky & Zinn (1985: 17), a leitura proposta pela escola ... uma

    leitura mecnica, padronizada, linear; realizada apenas em nvel de identificao ... o aluno l

    apenas para reter conhecimentos, sem conferir sentido ao que l, sem questionar e sem

    posicionar-se. Nesse mbito, as autoras criticam a postura de grande parte das escolas

    pblicas, por apresentar um ensino desvinculado da realidade do aluno que dissimula as

    diferenas sociais, ou seja, os temas utilizados para a prtica de leitura no apresentam ligao

    com o mundo vivencial do aluno.

    Kleiman (1989: 174), ao refletir sobre as condies de leitura dos textos

    didticos, verificou efeitos negativos produzidos no aluno-leitor devido funo exercida por

    esses textos na instituio escolar, ao produzir atitudes condicionadoras e inflexveis, de

    apenas receber informaes transmitidas sem favorecer possibilidades para um envolvimento

  • 43

    ativo e lugar para reflexo: o texto didtico no lido: no processo no h seletividade

    mediante a reconstruo de relaes implcitas, no h inferncias, no h integrao: h

    apenas a identificao de explcito e o estabelecimento de correspondncias formais.

    A omisso da escola no ensino de leitura, aps a fase inicial de aquisio de

    habilidades bsicas elementares passa a uma fase de avaliao de leitura em que priorizadas

    a capacidade de reteno de contedo informacional e a anlise de elementos lingsticos

    formais. Essa prtica de leitura excessivamente didatizada acaba por afastar o aluno de uma

    leitura reflexiva. Assim, comum perceber essa situao ainda nos dias de hoje, o aluno

    preocupado em reter o contedo informacional dos textos mediante observao dos elementos

    explcitos na superficie textual.

    Nas leituras escolares existe uma uniformizao, evidentemente, se multiplicam

    as variedades nas leituras no escolares. Tm-se diferentes categorias e grupos: revistas para a

    mulher e revistas para homem, revistas para crianas e revistas para adolescentes, revistas

    especiais de jardinagem, informtica, decorao e livros para adolescentes, livros para

    crianas, livros para adultos.

    Chartier ( 1994 ), expe e analisa as principais diferenas entre a leitura escolar e

    a leitura social. A autora descreve a leitura escolar como artificial, arcaica, congelada,

    repetitiva, ritualizada, representativa, homogenizante, imposta, enquanto que a leitura social

    autntica, utilizada para fins prticos em funo dos prprios interesses e do prazer pessoal do

    leitor.

    A referida autora (p.l61) acrescenta que a distncia entre a sociedade e a escola

    no pode ser abolida, porque esta distncia que a legitima como instituio; entretanto,

    considera dois pontos: a escola deve ... mostrar com muita regularidade s crianas de que

    maneira aquilo que elas aprendem em sala de aula pode ser reinvestido na vida, e no lhes

  • 44

    pedir para manifostar em sala de aula conhecimentos ou savoir - faire que no lhes

    ensinamos, mesmo que eles tenham se tornado "socialmente" freqentes.

    Sendo a leitura escolar um produto das classes sociais privilegiadas, sua

    apropriao pelos alunos das classes sociais populares se apresenta como uma necessidade

    pragmtica, ou seja, ela vista como um meio de ascenso social e para atender s exigncias

    da cultura dominante. Para os alunos das classes sociais privilegiadas, a leitura tem finalidade

    construtiva, ou seja, obter informaes, lazer e socializao.

    Entretanto, essa apropriao da leitura pelas classes sociais populares apresenta

    um leque de problemas, .. . alguns de natureza tcnica, outros de natureza ideolgica, que tm

    de ser enfrentados no momento e no espao em que essa apropriao sistematicamente

    promovida: no momento em que se ensina leitura no espao da escola (Soares, 1995: 48).

    De fato, uma questo que precisa ser discutida como fazer com que o aluno

    proveniente de classes sociais populares leia melhor num ambiente marcado pelas diferenas

    sociais, culturais e ideolgicas como na escola? Uma soluo modificar as prticas escolares

    de leitura, desescolariz-las para aproxim-las das prticas existentes na sociedade. Dessa

    forma, esse aluno poderia adquirir em sala de aula uma competncia necessria atravs da

    leitura de textos do meio em que vive, ligando a atividade do texto com suas crenas e suas

    experincias.

    Dentro desta perspectiva, Foucambert (1994:116), em suas consideraes

    sobre o texto escrito e leitura, reivindica a importncia do aspecto social do texto escrito e a

    leitura inserida no meio real dos sujeitos, valorizando-se as prticas scio-culturais, familiares

    e comunitrias, no que denominou de desescolarizao da leitura. O autor posiciona-se diante

    de dois pontos: ... se a alfabetizao era, por bons motivos, um aprendizado escolar, a leitura

    um aprendizado social, da mesma natureza que o aprendizado da comunicao oral, ( .. .) o

  • 45

    mais urgente suscitar novas prticas de leitura nas camadas sociais que at aqui foram

    apenas alfabetizadas.

    Kleiman (1997) tambm aponta a importncia de se desescolarizar a

    compreenso escrita, sugerindo que se deva trazer para a escola .. . aquilo que constitutivo das

    prticas de escrita, seus usos e suas funes no meramente escolares .... Assim, adota uma

    concepo de texto escrito como evento discursivo, inextricavelmente vinculado ao contexto

    scio-cultural em que produzido; reivindica, ainda, a necessidade de se legitimar outras

    formas de ler, livres do padro priorizado pela instituio escolar, os quais se constituem em

    funo do contexto em que os sujeitos esto inseridos.

    Segundo Foucambert (1994), para aprender a ler preciso oferecer ao sujeito-

    aprendiz diversos textos escritos como se ele j tivesse domnio daquilo que deve aprender.

    Tambm refora a necessidade de fornecer textos autnticos mesmo na fase inicial, pois no se

    deve fragmentar a aprendizagem da leitura em palavras, seguida de frases, depois texto, at

    realmente chegar nos textos dos quais se precisa.

    Jolibert (1994) comenta uma experincia alternativa de leitura executada em

    curso elementar de educao infantil na Frana, baseada em uma concepo social da leitura,

    de acordo com as idias de F oucambert e seguindo os princpios pedaggicos de Freinet,

    criador de um projeto de educao popular, caracterizado por socializar as prticas escolares

    s prticas reais de vida e trabalho cooperativo em comunidades pobres na Frana no incio do

    sculo.

    Essa experincia concebe leitura como levantamento de hipteses a partir de

    uma expectativa real, social. Prope a leitura de textos autnticos, em situaes reais que

    atenda s necessidades sociais concretas, prticas de escrita expressivas para os grupos sociais

  • 46

    envolvidos e a rejeio do ensino da leitura oralizada concebida como decifrao de signos

    lingsticos.

    Duas grandes pretenses da leitura contempornea, infonnar e distrair,

    tornaram-se pretenses da escola: por um lado, leituras funcionais, por outro, leituras

    ficcionais. No primeiro caso, o texto fornece dados especficos para uma rea de estudo do

    currculo ou informaes generalizadas sobre os fatos da atualidade. A leitura ficcional no

    objetiva aquisio imediata de conhecimentos, o importante a recreao, a "viagem" pela

    imaginao; o exerccio desse tipo de leitura possibilitar ao aluno urna fonna habitual de

    lazer, ao mesmo tempo em que estimular seu lado de anlise e crtica; entretanto, as coisas

    no definidas dessa fonna.

    Na realidade, o que a escola ensina aos alunos que o prazer forosamente

    motiva a leitura, enquanto deveria orientar que o prazer se descobre quando se torna capaz de

    atravessar um longo texto, de compreend-lo sozinho, enquanto alguns meses mais cedo, este

    teria sido abandonado.

    Penso que, a escola (principalmente a pblica) pouco tem feito para tomar o ato

    de ler um ato de prazer. Basta observar que, a maioria dos textos utilizados pela escola para

    prtica de leitura, considerados como indispensveis, so estranhos s crianas, por apresentar

    maneiras de ver e de pensar distante do universo vivencial que esto acostumadas, alm de no

    apresentar utilidade prtica no cotidiano das crianas.

    Creio que para a escola superar seu modelo de leitura que ainda

    predominantemente estruturalista, ou seja, a leitura escolar impe a todo o mundo as mesmas maneiras de se ler, palavra por palavra, sob a conduta do professor, apoiada em textos

    sacralizados que devem ser admirados, como produtos acabados, concebidos como portadores

    de verdades a serem apreendidas, cujos modos de fazer sentido so autorizados e impostos

  • 47

    pela escola, seria necessrio repensar as concepes que essa instituio persiste em manter

    com relao linguagem, texto e sujeito-leitor.

    A meu ver a escola apresenta dificuldades em adotar uma abordagem que

    propicie um contato real entre texto e leitor; basta observar que a leitura no contexto escolar

    contnua tomando o texto como pretexto para o desenvolvimento de atividades

    metalngsticas que priorizam a forma ou ainda o texto como pretexto para conversas sobre o

    tema por ele suscitado (Miranda, 1998).

    Nessas atividades, geralmente desenvolvidas aps uma leitura rpida do texto,

    s vezes seguida de leitura oral e estudo do vocabulrio ou outro contedo que esteja

    programado, passa-se ento, para o procedimento de "debate": "O que voc acha?". Os alunos

    vo "achando", cada um por sua vez, ou todos ao mesmo tempo, enquanto o texto permanece

    como pano-de-fundo, intacto em seu potencial formal, semntico e comunicativo.

    Atividades em sala de aula como essas do "debate" so apreciadas pelos alunos

    exatamente porque representam um momento em que os alunos podem deixar emergir suas

    experincias de vida. Entretanto, tais .. . experincias no so confrontadas para o aprendizado,

    (..) essas aulas acabam por ter apenas a validade de "desabafo ", mas no ensinam a ler e a

    escrever (grifo da autora), e nem mesmo a viver melhor (Miranda, 1998: 300).

    Refletindo a respeito de tais consideraes e partindo do mesmo ponto de vista

    da autora, penso que a escola deveria rever dentre outras coisas sua metodologia e critrios de

    seleo de contedos, pois, ao valorizar a experincia de vida e o conhecimento de mundo de

    seus alunos estaria possibilitando estabelecer conexes entre o ensino da escola e a escola da

    vida, assim sendo, o ensino escolar teria sentido concreto para essas crianas.

    Segundo Foucambert (1994), no h qualquer acontecimento da realidade social

    que possa ser compreendido isoladamente, considerada em sua extenso e durao. As

  • 48

    relaes dos individuos com a lngua escrita no fogem a essa regra: para discernir o que est

    em jogo quando se trata de leitura, seria absolutamente insuficiente limitar-se a consideraes

    tecnicistas centradas na escola.

    O ensino da leitura escapa aos limites do terreno escolar e no se esgota em

    seus bancos, estende-se a toda prtica social como na famlia, nos meios de comunicao de

    massa, no trabalho e no lazer. Da "leitura de mundo" leitura da palavra h um percurso a

    considerar (Lajolo, 1999). No se pode fazer deste processo algo separado do mundo, uma

    juno apenas de letras que formam palavras.

    Ao ler um livro, ao ver um filme, ao assistir uma pea teatral, ao ver uma

    exposio de quadros, de esculturas, o sujeito estar desenvolvendo a verdadeira leitura. O

    sujeito d sentido imagem que est vendo a partir dos seus sub-textos inscritos pela vida, ou

    seja, ao ler/ver/ouvir imagens por vrias formas de linguagem, o sujeito participa e interage,

    criando um espao simblico que se recria na interpretao de cada um.

    Devo mencionar ainda que as prticas da leitura escolar normalmente

    caracterizam-se pela ausncia de contextualizao e questionamento. So leituras centradas no

    entendimento de um nico texto, isolado, como se cada leitura tivesse um ponto final,

    independente de outras experincias prvias de vida e leitura.

    2.3- Experincia com Ietramento e desempenho em leitura

    O termo letramento reapareceu no vocabulrio da lngua portuguesa na segunda

    metade da dcada de 80. Digo "reapareceu" porque ao examinar os antigos dicionrios,

    Dicionrio Contemporneo da Lngua Portuguesa de Caldas Aulete ( 1948: 226)7 e Dicionrio

    7 Soares (1998), salienta que examinou o Dicionrio Contemporneo de Lngua Portuguesa de Caldas Aulete, no qual o vocbulo letramento significa escrita.

  • 49

    de Sinnimos e Locues da Lngua Portuguesa de Agenor Costa (1967: 1425), essa palavra

    consta significando escrita. O referido vocbulo no consta da nova edio do Dicionrio

    Aurlio de Lngua Portuguesa, por ser um novo termo recm-chegado ao campo da Educao,

    das Cincias Sociais, da Histria e das Cincias Lingsticas e que vem recebendo ateno

    especial de alguns estudiosos na tentativa de defini-lo ou mesmo delimit-lo.

    Coube a Kato8 em 1986 mencionar pela primeira vez, no contexto brasileiro, o

    termo letramento, uma verso para o portugus da palavra da lngua inglesa "literacy" de

    etimologia latina "littera" (letra), com o sufixo- mento, que denota o resultado de uma ao.

    A definio de letramento complexa, dada a variao dos estudos pertencentes

    a este campo; embora relacionado com o de alfabetizao, possui uma dimenso mais ampla.

    Seu surgimento deu-se pela necessidade de distinguir entre o processo de aquisio do cdigo

    escrito (pertencente tradicionalmente s concepes de alfabetizao) e apropriao da

    escrita enquanto objeto cultural de forma mais ampla, compreendida como processo de

    letramento (Leal 1999).

    Compreender as diversas definies de letramento no uma tarefa fcil. Para

    Scribner e Cole (1981), letramento um conjunto de prticas sociais em que se usa a escrita,

    enquanto sistema simblico e enquanto tecnologia, com finalidades e propsitos especficos.

    O ponto de vista que me parece mais compatvel com a perspectiva de

    letramento e que adoto em meu trabalho, ... prticas e eventos relacionados ao uso, funo e

    impacto da escrita na sociedade (Kleiman, 1990: 3 ). Adoto essa definio por pensar que o

    aluno no recebe somente a orientao escolar para o desenvolvimento das atividades de

    leitura e escrita, mas acumula experincias ao longo da vida que interagem na construo dos

    8 Kleman (1995) atribu a Kato ter cunhado o termo letramento.

  • 50

    processos, em outras palavras, leitura e escrita devem ser vistas como fenmenos sociais, que

    ultrapassam os limites dos bancos escolares.

    O Ietramento uma atividade social e pode ser descrito em termos dos eventos

    e prticas que as pessoas usam em suas atividades cotidianas. Entende-se por eventos de

    letramento todas as ocasies da vida cotidiana em que a palavra escrita ocupa um papel,

    incluindo qualquer atividade que envolve a palavra escrita. Um exemplo de letramento

    quando um adulto l uma histria noite para uma criana; alm de estar participando de um

    evento de letramento, ela tambm est assimilando uma prtica discursiva letrada. Ilustro com

    outros exemplos: as pessoas que discutem um artigo de jornal, organizam a lista de compras

    ou anotam um recado telefnico.

    Entende-se por prticas de letramento as atividades sociais associadas com a

    palavra escrita, ou seja, as pessoas trazem o seu conhecimento cultural (situao particular)

    para uma atividade que envolve escrita ou leitura (situao semelhante).

    Barton ( 1995) situa eventos e prticas como duas unidades bsicas de anlise da

    atividade social de letramento. Eventos de letramento so atividades particulares que ocorrem

    regularmente. Por outro lado, prticas so os modos culturais das pessoas utilizarem a escrita.

    Por exemplo, duas pessoas discutem o contedo de um jornal e planejam escrever uma carta

    ao redator (evento de letramento ). Decidindo o que fazer, juntamente associado com o modo

    de falar e de escrever, fazem uso de prticas de letramento.

    Para compreender a conceituao de letramento necessrio esclarecer que o

    mesmo no alfabetizao9, uma vez que esta geralmente promovida pela instituio

    escolar. Para marcar as diferenas entre alfabetizao e letramento, Tfouni (1995: 20) afirma

    9 Consta no Dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa. P.82- Alfabetizao: Ao de alfabetizar, de propagar o ensino da leitura.

  • 51

    que enquanto a primeira ... se ocupa da aquisio da escrita por um indivduo, o letramento

    focaliza os aspectos scio-histricos da aquisio de um sistema escrito por uma sociedade.

    Assim sendo, a condio de alfabetizado/no alfabetizado no ocupa a mesma

    posio de letrado/no letrado. Ento, de certa forma, ser letrado o sujeito que . .faz uso da

    escrita, envolve-se em prticas sociais de leitura e de escrita (Soares, 1998 : 24), por sua vez,

    alfabetizado o sujeito que adquiri as habilidades de ler e escrever, ainda assim, mesmo

    estando alfabetizado, o sujeito pode continuar margem das prticas de leitura e escrita, o que

    comum em pases de grandes contrastes sociais, como o Brasil, portanto, sendo rotulado de

    no letrado.

    Desse modo, considero oportuno estabelecer a distino entre leitor e

    alfabetizado. Na perspectiva do letramento, leitor o sujeito que atribui significado, ou seja,

    constri os significados pelo objeto de leitura a eles incorporando seus prprios sentidos; por

    sua vez, a escola considera leitor o sujeito que ocupa a posio de alfabetizado, ou seja, saber

    "ler" desempenhar um processo mecnico de decifrao de signos lingsticos.

    Essas reflexes mostram, portanto, que o letramento no est exclusivamente

    ligado ao campo da escrita como concebido pela escola, instituio responsvel pela

    introduo do sujeito no mundo da escrita. Sendo a escola a principal agncia de letramento,

    valoriza uma prtica voltada para o processo da aquisio das habilidades da leitura e da

    escrita, no se preocupa com as prticas desenvolvidas pelos alunos em seu contexto social.

    A escola valoriza a escrita atribuindo "status" ... o seu domnio se tornou um

    passaporte para a civilizao e para o conhecimento(Marcuschi,1997:!22). Essa valorizao

    da escrita "funciona" como um "trampolim" para o xito. A escola refora a crena de que o

    sujeito s "vencer" na vida se obtiver sucesso no processo de letramento do tipo valorizado

    pela instituio escolar. Essa crena compe o que Graff ( 1979) denominou o "mito" do

  • 52

    letramento referindo-se ao conjunto hegemnico de crenas sobre os efeitos da escrita no

    indivduo, efeitos que variam desde a ascenso e promoo social at o desenvolvimento

    cognitivo superior do escolarizado.

    No estudo de Carrington & Luke (1997), os autores reforam a idia de que o

    Ietramento, como aquisio de habilidades, na tica das classes populares, visto como

    possibilidade para assegurar o acesso riqueza e a mobilidade social.

    No que concerne s concepes sobre o Ietramento, as discusses se

    estabeleceram basicamente orientadas por duas correntes denominadas por Street (1984) de

    modelo autnomo e modelo ideolgico.

    O modelo autnomo pressupe uma diviso entre grupos ou povos que usam a

    escrita e aqueles que no a usam, resultante de diferenas cognitivas advindas do uso da

    escrita, como o desenvolvimento do pensamento lgico e a capacidade para compreender e

    produzir silogismos10 Essa a concepo que privilegia a escrita como um produto completo

    em si mesmo, independente do contexto, e a capacidade de produzir e entender a linguagem

    abstrata. O modelo autnomo associa letramento ao progresso, civilizao, mobilidade

    social, tecnologia, liberdade individual, conforme mostram Street (1984), Kleiman (1995a)

    e Tfouni (1995).

    As prticas escolares so orientadas pelo modelo autnomo de letramento,

    muito embora o discurso escolar defenda a criticidade e a criatividade; o que se percebe um

    ensino que .. .transmite uma concepo de que a escrita transcrio da oralidade (Matencio,

    10 O silogismo um tipo de raciocinio dedutivo lgico-verbal composto por uma premissa maior, uma premissa menor e uma concluso. Existe uma necessidade lgica entre o contedo da concluso e o das premissas. Do ponto de vista da compreenso, o silogismo exige que o individuo seja capaz de descentrar seu raciocinio, ignorando seu conhecimento emprico e sua experincia pessoal, atendo-se apenas ao contedo lingstico, o qual pode negar aquele outro conhecimento, sem deixar de ter uma estrutura lgico-dedutiva (Tfouni, !995: 25).

  • 53

    1998: 16), concebendo que o sujeito aprenda somente a estrutura da lngua escrita distanciada

    da lngua oral e ainda sem qualquer relao com o contexto social. Nessa prtica, os sujeitos

    so homogeneizados sem levar em conta as diferenas entre sociedades e indivduos.

    Essa homogeneizao ignora o fato de que os sujeitos so oriundos de meios

    culturalmente distintos e com diferentes orientaes de letramento, o que acarreta efeitos

    sociais e estilos cognitivos tambm diversificados (Matencio, 1998).

    No modelo ideolgico, as prticas de letramento so socialmente e

    culturalmente determinadas. Esse modelo privilegia tanto a escrita quanto a oralidade e no

    est, necessariamente, ligado s prticas escolares, embora no lhes negue o valor na

    constituio histrica do desenvolvimento cultural da sociedade. Nesse modelo, a culpa do

    fracasso no atribuda ao indivduo, mas emergncia de situaes desfavorveis dentro das

    estruturas sociais; o processo de aprendizagem de habilidades de leitura e escrita contribuem

    para integrar o sujeito na sociedade tal como ela funciona e, assim criar condies para o

    sujeito questionar as prticas sociais no favorveis participao efetiva na transformao da

    sociedade.

    No modelo ideolgico, a escrita marcada pelas diferenas entre grupos

    dependendo do contexto, pois, em qualquer comunidade, seja de classe mdia ou grupos de

    baixa escolarizao, as crianas esto expostas a eventos e prticas de letramento. Esse o

    modelo de letramento que deveria adotar a escola e a partir do qual desenvolvo a anlise dos

    dados de minha pesquisa.

    Nos ltimos anos, a literatura especializada mostra que tem crescido

    sensivelmente a produo de trabalhos que tematizam a questo do apagamento do contexto

    social, histrico, cultural e ideolgico dentro da prtica de ensino adotada pela escola, o que

    acaba distanciando o aluno de se tornar um leitor efetivo. Cabe ento questionar que tipo de

  • 54

    leitura ensinado na escola, pois ao ensinar decodificar palavras, frases e perodos no

    possibilita ao aluno conferir sentido ao que l.

    Heath (1982) realizou um longo estudo etnogrfico com trs comunidades

    norte-americanas que apresentavam diferentes orientaes e eventos de letramento: Maintown,

    uma comunidade de brancos e negros com formao universitria, rica em eventos de

    letramento, como a leitura de histrias de dormir. Nessa comunidade, as crianas aprendem

    desde de cedo que a escrita no apenas a transcrio de eventos reais, aprendem tambm a

    comentar sobre o que lem, relacionando com seu conhecimento de mundo. As crianas dessa

    comunidade so bem sucedidas na escola, pois existe reproduo no ambiente domstico das

    normas padronizadas pela instituio escolar.

    A segunda comunidade, denominada de Roadville, uma comunidade de

    operrios brancos, com mdia escolaridade. Nessa comunidade h eventos de letramento como

    a leitura de histrias de dormir, mas no existe estmulo para que a criana fale sobre o que

    aprendeu nos livros ou relacionar o contedo lido com sua realidade. Essa comunidade

    reproduz parcialmente o modelo privilegiado pela escola e, conseqentemente, suas crianas

    apresentam sucesso relativo, limitado s sries iniciais.

    A terceira comunidade, Trackton., formada por operrios negros de origem

    rural, com baixa escolaridade. O acesso palavra escrita bastante restrita, a leitura no

    uma atividade rotineira, mas existem atividades que estimulam as crianas a contar histrias

    sobre sua vida ou sobre eventos que presenciaram, embora a maneira como estruturam suas

    narrativas no seja aquela adotada pela escola. Dessa forma, mesmo desenvolvendo uma

    relao com a linguagem metafrica e ficcional, no conseguiam se adaptar s normas

    adotadas pelo ambiente escolar.

  • 55

    Heath relaciona cada orientao com o desempenho escolar das crianas,

    demonstrando haver uma transmisso de pais para filhos das maneiras de atribuir sentido na

    leitura. Muitas vezes essa orientao similar ao ensino realizado pela escola, outras vezes, o

    que a escola ensina sobrepe-se ao que a criana aprendeu em casa e na comunidade. Entre as

    comunidades observadas, as crianas da comunidade de Trackton eram as que apresentavam

    histria de fracasso escolar, cujos modos de fazer sentido no correspondiam aos modos da camada culturalmente hegemnica dentro da sociedade letrada.

    Essa situao no ocorre simplesmente por uma mera coincidncia Osakabe

    (1982: 149) observa que ... a escrita guarda em si as marcas de sua apropriao histrica, sua

    assimilao e manipulao em condies de absoluto privilgio por segmentos sociais das

    classes dominantes, que determinaram o prprio sistema de referncias para sua

    aprendizagem.

    Em seus estudos crticos sobre a questo do letramento, Street (1995), comenta

    que a adoo de um modelo de letramento autnomo pela escola, que despreza os diferentes

    significados que a escrita pode ocupar para grupos sociais distintos, de acordo com os diversos

    contextos scio-culturais em que ela se enquadra, produz uma reificao da linguagem que

    objetiva reproduzir e perpetuar a ordem hierrquica da estratificao social atravs do controle

    institucional escolar, o que no caso dos sujeitos de minha pesquisa (principalmente os do grupo B), significaria excluir as classes populares da possibilidade de ascenso social atravs

    da educao.

    Esse processo de reificao apresenta como resultado uma concepo de

    linguagem artificial, que distancia o texto das experincias significativas do real,

    estabelecendo um rompimento comunicativo e impossibilitando o texto de instituir-se como

    objeto significativo em fases iniciais de aprendizagem, conforme demonstrado por Terzi

  • 56

    (1995) em seu amplo estudo para analisar o processo de construo da leitura por crianas de

    meios no letrados.

    A autora utilizou como sujeitos de pesquisa trs crianas de uma favela que, no

    momento, cursavam a segunda srie do primeiro grau. Para investigar a construo da leitura

    por essas crianas que tinham orientao de letramento oposta da escola, a pesquisadora

    realizou encontros semanais durante nove meses, fora do ambiente escolar. Antes de comear

    o trabalho com textos e interaes com as crianas, fez um estudo prvio do letramento e dos

    sistemas axiolgicos das crianas e da comunidade. A atividade de leitura buscou respeitar a

    trajetria de aprendizagem indicada pelas crianas e no segmentada em habilidades como

    comum na prtica escolar.

    Penso que no caso dos sujeitos focalizados em minha pesquisa esta viso

    didtica da linguagem, reificada, distanciada da vida e da realidade, imposta ao longo dos anos

    pela escola, levou o aluno a formar um conceito de texto como objeto portador de verdade

    absoluta, dificultando que este perceba a intencional idade do texto e de assumir urna postura

    critica.

    No prximo Captulo, apresento a anlise dos dados obtidos atravs das

    entrevistas objetivando conhecer a realidade das crianas dos grupos A e B sobre leitura e

    escrita.

  • 57

    CAPTUL03

    ANLISE E DISCUSSO DOS DADOS DAS ENTREVISTAS

    3.0- Introduo

    ... s se pode compreender o que se pode

    transformar; uma compreenso que se constri

    pela prpria ao de transformao e pela anlise

    dos processos e resultado dessa transformao.

    (Jean Foucambert)

    Este terceiro Captulo encontra-se organizado em duas sees, em que analiso

    os dados obtidos atravs de entrevistas, constitudos de depoimentos que selecionei por

    responder perguntas que se destinam a conhecer a realidade das crianas dos grupos A e B

    sobre leitura e, em menor escala, a escrita.

    Na primeira seo (item 3.1 ), descrevo o perfil dos sujeitos selecionados; so

    informaes que permitem uma caracterizao dos grupos observados. Na segunda seo

    (3.2), desenvolvo a anlise dos dados referentes aos depoimentos dos sujeitos selecionados, com objetivo de conhecer e entender a realidade dessas crianas sobre leitura e escrita , quer

    seja no ambiente escolar ou domstico.

  • 58

    3.1 -Os quatro casos estudados

    Apresento, a seguir, o perfil dos quatro sujeitos selecionados elaborado a partir

    dos dados coletados nas entrevistas.

    Os sujeitos por mim focalizados foram, pois, os seguintes:

    AS- Tem 12 anos, estuda pela primeira vez em escola particular. A opo pelo

    ensino privado deveu-se ao fato de procurar, segundo ele, ensino de qualidade, este no

    ofertado pela escola pblica; de famlia com escolarizao mdia (2 grau completo) e padro

    scio-econmico mdio-baixon Faz pequenos servios para ajudar no oramento familiar, por

    exemplo, molhar plantas em jardins, retirar gravetos de madeireiras utilizando carro-de-mo,

    varrer e lavar caladas.

    B5- Tem 11 anos, sempre estudou em escola pblica, entretanto, informou que

    cursar as sries seguintes em escola particular. De famlia com escolarizao mdia a

    superior (pai universitrio e me 2 grau completo) e padro scio-econmico mdio.

    A8 - Tem 11 anos, sempre estudou em escola particular; de famlia com

    escolarizao superior (3 grau com especializao) e padro scio-econmico alto.

    B8- Tem 12 anos, sempre estudou em escola pblica; de famlia de pouca

    11 Os nveis scio-econmicos foram definidos a partir das informaes constantes nos formulrio de cada aluno entrevistado, onde os dados profisso do pai, profisso da me, endereo, forneceram-me condies de estabelecer, grosso modo, os nveis scio-econmicos, que chamei alto, mdio-alto, mdio, mdio-baixo e baixo. Reconheo que uma simplificao a classificao estabelecid"' pois a diviso em classes muito complexa. Mas para fins deste estudo, julgo que as classificaes usadas so suficientes.

  • 59

    escolarizao (4 srie do 1 grau) e padro scio-econmico baixo (mdia de dois e meio

    salrios mnimos12 por ms). Trabalha em casa de famlia como bab, recebendo como

    pagamento roupas e material escolar.

    3.2 - Entrevistas

    As perguntas utilizadas nas entrevistas enfocam diversos aspectos referentes

    leitura e escrita, tais como: se essas crianas gostam ou no de ler e por qu; a utilidade

    atribuda leitura; suas preferncias e rejeies diante textos a serem lidos; o que gostariam de

    ler na escola; se escrevem ou no, quando e como o fazem, sobre que escrevem; entre outros,

    aspectos que visam entender e conhecer a realidade dessas crianas sobre leitura e escrita.

    Na primeira questo, referente ao aspecto gosto pela leitura, os alunos do

    grupo A afirmaram gostar de ler. Lem na escola ou em casa, apreciando ou cumprindo

    obrigaes. As crianas do grupo B, no gostam de ler e os motivos que apresentam para

    justificar tal posio so os mais variados. Esse aspecto poder ser observado pelas prprias

    respostas obtidas que sero transcritas mais adiante, ainda neste Captulo.

    Um dado que considerei importante foi o carter utilidade atribuda leitura. A

    grande preocupao mostrada pelos sujeitos do grupo A com certas aquisies que, no