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Verborhagia Revista eletrônica de Literatura

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Na semana da morte de Galeano, renascemos. Até a utopia, sempre. Capa de Camila Piccinini.

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Page 1: Verborhagia #7

VerborhagiaRevista eletrônica de Literatura

Page 2: Verborhagia #7

Ano 2, n. 7, abril de 2015

Lisiane Andriolli DanieliMarcelo MartinsAndré Luiz Costa

Participe: www.facebook.com/[email protected]

A Verborhagia alcança a infância na semana em que morreu o grande escritor uruguaio Eduardo Galeano. Dizia o autor que todas as crianças são pagãs e poetas, mas depois, nós, adultos, as transformamos em nós mesmos. Acreditamos na utopia da literatura e da vida, da luta contra as pequenas mesquinharias e as grandes calamidades. Como as crianças, acreditamos na alma das palavras.

Fofa capa de Camila Piccinini.

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1990: o que fazer após a queda de um muro María Elena Morán nasceu em Maracaibo, em 1985. Ficcionista durante muito tempo não assumida, tentou o jornalismo na Venezuela; acabou fugindo para Cuba, onde se formou como roteirista; e, só agora, resolve no Brasil o silenciado desejo da literatura.

PoemaDiego Petrarca nasceu em Porto Alegre. Mestre em Teoria Literária/Escrita Criativa. Publicou diversos livros: Nova Música Nossa, Mesmo, Via Cinemascope, Cada Coisa, Vento & Avenca, Cábulos, com Andréia Laimer e uma edição xerox, Banda. Trabalha em projetos literários, é professor de literatura e ministra oficinas literárias em órgãos de cultura.

O amava/TerçosDênia DaRosa é jornalista de formação, mas tem no exercício da escrita uma das práticas que mais aprecia. Tem livros publicados e costuma divertir-se nas oficinas de poesia e literatura.

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Homem criaçãoVinícius Lobato "poemiza-se" para expulsar demônios. Sua válvula de escape é escrever.

PoemaJúlio Alves nasce em Criciúma, em 1966. Aprendeu a escrever e ler com sete anos, e desde então tenta dar ao sentido a palavra que instiga. Vive, ainda, em busca do verso que o alivie, apesar de suspirar por palavras que sabem fugir e as admira. Na verdade, aprecia a arte de escapulir.

PoemasCarol Cluca é canceriana, índigo, acha que é filha de Iansã. Seu santo preferido é Francisco de Assis, da energia do mundo constrói sua própria religião. Acredita que altruísmo é afrodisíaco, adora palmito e outras conservas. Acredita no companheirismo, viciada em música, e se vê eternamente em videoclipes. A arte e a vida é o que mais lhe encanta. Cluca veio de lugar nenhum é o nome ideal pra lhe chamarem.

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Corpos à derivaEdivaldo Ferreira, 23 anos. Vive em São Paulo/SP. Acredita que a Literatura pode ser perigosa.

PoemaJu Rossi transita/circula/passeia entre a poesia, a ilustração, a música e o teatro. Ebulição criativa permanente é o estado de espírito desse inquieto mineiro radicado em Porto Alegre. 

As negativasThiago Souza de Souza nasceu e vive em Porto Alegre, tem 25 anos e está prestes a cometer a loucura de se formar em Jornalismo. Além de ler e escrever, costuma estar ansioso. Quer trabalhar com literatura, mas não sabe bem como. Também corre, quando dá. E isso é tudo, ele acha.

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1990: o que fazer após a queda de um muro

O mar pardo. A areia dura. Uma bicicleta mais velha que todas

as bicicletas. A casa azul no silêncio do não turismo. Alice Souza

tem dezesseis anos, dezesseis verões amando essa praia e a

certeza de que, com a venda do imóvel, morre uma parte de si.

Alice decide que deixará a bicicleta como patrimônio

indissolúvel da vivenda. Ela deve renunciar a essa paisagem, e

sua amada companheira não tem por que segui-la. Levar para a

cidade uma bicicleta tão oceânica seria enganar-se, querer

transformar o amor fugaz dos verões num matrimônio. – Não,

Estrela, minha amiga. Você fica.

Em toda a praia, só há dois lugares proibidos para pedalar, a

caverna dos índios e o manguezal vermelho. Um é garantia de

um pneu furado; o outro, ser uma mosca numa teia de aranha. E

Alice, que bem sabe que todo fim de era está marcado por

grandes conquistas, concede a Estrela o derradeiro desejo de

explorar o inexplorado. Sabe que esse arrebatamento tem tanto

de assassinato quanto de suicídio. Com Estrela ferida de morte,

Alice empreende o regresso.

No crepúsculo, a casa não parece tão detonada como

dizem seus pais. A cerca de conchas marinhas continua linda,

perfeita para ficar se amassando com o garotão que vende ostras

e acorda paixões precoces. O portão de madeira está surrado,

sim, mas tem o charme dos postais velhos. E o quarto dos

bricabraques, ah, quando teria de novo acesso a tanta diversão,

dd

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centenas de objetos à espera da ressurreição; objetos dos que

Estrela, com seu pneu furado e seu aro torto, começa a fazer

parte.

Alice nina sua amiga entre as outras bicicletas desmembradas e

segue até a cozinha chamada pelo cheiro da ambrosia da

Senhora Arminda, número um absoluto em seu inventário de

nostalgias. Arminda, faxina do domingo. Arminda, “Senhora

Diana, aqui tem seu cafezinho”. Arminda, marido pescador

alcoólatra. Arminda, “cuidado com o bandido das ostras,

Alicinha”. Essa mesma Arminda, quem durante dezesseis verões

chegou com ambrosias, canjicas e tortas de bolacha e iluminou a

casa com seu sorriso. Essa mesma Arminda, agora chora nos

braços de seu pai.

Os milhões de vezes que ele recusou o mar e ficou sozinho na

casa; as comidas, sempre as preferidas dele; a timidez exagerada

de Arminda em sua presença e seus vestidos de vadia colona.

Entre as elipses e os subtextos de suas lembranças, respira uma

história submersa que acaba com a boca de seu pai beijando as

lágrimas dessa mulher a quem – não cabe a menor dúvida – ama.

Pela janela, detrás da cena proibida, Alice descobre o carro na

garagem. Em algum ponto do desconcerto, sua mãe chegou. Ela

corre para o quarto, onde a encontra deitada na cama, lendo pela

enésima vez Quem mexeu no meu queijo? – Não chore, meu anjo

– lhe diz sem levantar a vista do livro. – O que eu posso fazer se

nunca aprendi a fazer ambrosia?

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Entre os caules do manguezal vermelho, Alice pune-se com a

dor da estreia. Um primeiro sexo desajeitado e sem amor, com

fedor de ovo podre. O vendedor de ostras lhe mente amores,

encontros futuros, cartas semanais. Seus olhos se parecem com a

lua que pendura do céu, plana e branca, como de cartolina.

Lembram os de sua mãe, acomodada na cadeira de balanço,

posando para a vida.

Um último beijo nas paredes azuis e adeus. No porta-malas do

carro, vai Estrela, que convenceu Alice de que, com uma mínima

realfabetização, seria uma bicicleta do mundo. Entre os abacates

e a coleção de conchas, vai o cadáver de seu sorriso infantil, não

conseguiu deixá-lo entre os bricabraques; o quer com ela, como

um postal de quando a vida era vida e não teatro; o quer perto

de si, para aguentar o peso das máscaras. No assento dianteiro,

seus pais conversam sobre os países da defunta União Soviética,

cujas independências estão se contagiando como peças de

dominó.

María Elena Morán

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Diego Petrarca

por

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O AMAVA

O amava porque dele ouvia a brisa a lhe cantar avisos da

derradeira fronteira. O amava porque a ele entregava o mistério

das entrelinhas, dos entretantos, do entreaberto das pernas. O

amava porque nele sugava o leite das noites que a nutria de

enigmas e horizontes. O amava ainda porque na descuideza de

um suspiro, bendizia uma a uma as suas perdas. Era certo. Tal

como os dedos dele a percorrer suas sutilezas, descobrindo

colinas, cumes, covas  e ainda a melancolia, medrando em

cada poro. O amava. E ao abrir-lhe a porta, era inevitável

encantar-se com a própria nudez.

Dênia DaRosa

TERÇOS

Me pedes versos e eu só teço terços. O grito agudo que outrora te encantava soa rouco, contido no cubo frio de uma cova oca. Latejo. Da alma de antes, apenas o hálito. Aroma difuso, prisioneiro entre fôlegos. Na mão, a maçã espera a fome. Como espero paciente o orvalho da manhã do amanhã.

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HOMEM CRIAÇÃO

Não posso ser perfeito

Se estou longe de ser certo

Causo e sou efeito

Sou homem criação

De frente em frente

De encontro à emoção

Do teu com o meu

Peitos abertos

Do intenso à explosão

Não sou o icônico criador

Dos disparates de capa dura

Sou cria que cria e sente

Criatura

Crio-a-dor

Duramente

Vinícius Lobato

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época boa de colher girassóis

aproximam os lunáticos

em marés de luaseres outrosrastejam num raio

fenômenos tão comunscrocodilo me disse

Júlio Alves

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Alimenta-me com seu meio sorriso

Seus olhos inteiros

Sua alma plena

Me acorda a sua maneira

A ternura figura sua completa de mãos delicadas

Dando risada ciumenta e nua

Numa minha e de mais ninguém.

Carol Cluca

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E como seria adiar o dia a dia

E do dia tirar só aquilo que não se adia

Arrancar o dia a dia da mente

Descobrir-te como quem acha diamante.

O que é dado infrequente.

Em ti teria diariamente.

Carol Cluca

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CORPOS À DERIVA

Ela gostava de ficar olhando o céu nubladocomo se fosse uma tela em branco como se tivesse pensando quais cores da paleta iria usarpra pintar o dia como ela bem entendesseSempre que o vento mandava uma brisa mais forteela gostava de pensar que eram os deuses sussurrando algum segredoem seus ouvidossobre o que estava por virsussurrando o que mais poderia acontecer naquela vida desgovernada mas eu sabia que os ventos da fortuna iriam demorar para acariciar aquela vela cheia de remendos do nosso barco desnorteado, perdido...

Ficava tanto tempo olhando pra'quelas nuvens sem formatentando formar desenhos no céu que lhe trouxessem boas recordações

E também tinha aquela música que sempre tocava na cabeça deladava pra ouvir ela assoviando alguma melodiadaquelas que não se ouvem mais nas rádiosera uma música triste muito triste mas ela parecia alcançar algum tipo de paz no meio daquilo tudoEu nunca consegui entendermas aquela música ainda toca na minha cabeça todas as noites.

Edivaldo Ferreira

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Somos Feitos da mesma Carne qui SangraDa mesma Loucura InsanaDos mesmos Medos GuardadosSomos aquilo qui não gostamos di ver.Somos feitos di Poesia Acumulada

Modiqui é preciso beijá as palavra torta Vísceras do Seu Próprio Eu 

Prapudê AVuá sem Rabo.

Ju Rossi

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AS NEGATIVAS

Negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu

preferiria reprimir.

Sigmund Freud

[1]

Na sala de espera, a televisão pregada à parede mostra imagens de

um acidente de trânsito, parece ter sido grave, a TV está sem volume, luzes

vermelhas girando, ambulâncias, polícia rodoviária federal, rodinhas de

pessoas conversando.

Do outro lado do vidro, um bebê está com a boca bem aberta, não é

possível ouvir o choro, mas T. se concentra e o que ouve é um som agudo

porém abafado. Alguns familiares parecem dançar um atrás do outro em

busca da melhor posição para ver o recém-nascido. Uma menina de

aparentemente dez anos cola o celular no vidro e faz flashes refletirem

para todo lado. T. segura com força excessiva o copo de café. Um estalinho

e T. sente o plástico do copo ceder e dobrar, algumas gotas sujam o chão

branco.

[2]

O carro devagar lomba acima. Todas cantam o mais alto possível, o

player do rádio joga luzes coloridas no breu do automóvel. C. está sentada

no banco do carona, os pés só com meias sobre o painel. Com o celular

entre as pernas, de tempos em tempos faz acender a tela, ninguém lhe

procura, ninguém.

No banco de trás, duas mochilas, entre elas outra amiga, três

meninas num fim de semana na serra, a cantoria desafinada misturada a

gritinhos, que animal é aquele no meio da estrada?

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[3]

Desde que soube, T. não consegue mais dormir. O mais próximo que

chega do descanso são cochilos intranquilos de vinte, vinte e cinco

minutos. O orientador do mestrado já mandou duas mensagens no

Facebook perguntando sobre o último e-mail. Daqui a três dias vence o

atestado, e ele precisa voltar para o trabalho.

T. olha para o bebê e lembra o momento em que soube.

[4]

Que barulho é esse?, C. bem na hora está conferindo o celular e então

acontece quando ela ergue a cabeça e mira alguma coisa que parece mato,

arames, cerca, árvores, buracos, escuridão.

[5]

Um acidente de trânsito que matou duas gurias. Uma outra tá no

hospital, parece.

Que loucura. Tavam voltado de uma festa, bêbadas, aposto.

Pois é, gurias novas, coisa triste, T. responde.

T. então pede licença, precisa caminhar em círculos e com passos

curtos, não quer conversar, quando o bebê poderá ir embora?

[6]

C. acorda. Ninguém no quarto. As ruas de Porto Alegre lá fora. Não,

não é Porto Alegre. C. lê em algum lugar o nome do hospital. Caxias e suas

ruas lá fora. No quarto, C. Mais ninguém. Manchas roxas nos braços, as

mãos com escoriações, a cabeça afundada em travesseiros altos, uma

perna enfaixada. A porta abre num ruído e C. tenta levantar.

Tá tudo bem, não precisa levantar, querida, fica quietinha, não

precisa falar.

C. então não fala. C. quer falar mas não fala.

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[7]

Na primeira vez que T. viu C. os dois não sabiam, embora já tivesse

acontecido. Não poderiam saber, afinal. Eu não tinha como saber, T.

costuma repetir quando se veem sem querer pelos corredores da

faculdade. C., por sua vez, costuma repetir É, não tinha mesmo. Tem

vontade de falar mais, mas não fala. Os dois não sabiam e não tinham

como saber. O resto, o mundo todo, parecia guardar segredo.

[8]

C. sai do hospital uma semana depois. As duas amigas mortas, talvez

agora o assunto com o analista possa variar, chega de falar do que T. não

poderia saber. Na primeira sessão depois do acidente, afundada dentro de

casacos grossos e encolhida sob uma toca de lã preta, a voz de C. ainda é

fraca. Ela é obrigada a falar, mas não dá mais que respostas protocolares e

recusas gentis.

Quando C. e T. começaram a namorar, ele não podia saber, evidente

que não.

[9]

T. não sabe o que fazer com a criança. É pai há uma semana, acha

que é pai mas não sente. Quando precisou contar para C., ele jurou que

não sabia. Sentir sono não é o bastante para dormir, T. sabe muito bem.

[10]

C. não viaja mais de carro à noite. Anda com dois comprimidos de

Rivotril na carteira e sabe que T. não podia saber. Agora não consegue

mais sentir afeto por ninguém, é o que C. passa dizendo para o seu

analista. Ninguém.

C. tem medo de entrar num carro à noite, mas às vezes é o que mais

quer fazer.

Thiago Souza de Souza