verborhagia #2

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Verborhagia Revista eletrônica de Literatura

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Caos, confusão, poesia e prosa. O fluxo continua. #2 Agradecemos as colaborações. Capa linda feita por Nádia Campos Alibio.

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Page 1: Verborhagia #2

VerborhagiaRevista eletrônica de Literatura

Page 2: Verborhagia #2

Ano 1, n. 2, agosto de 2014

Lisiane Andriolli DanieliMarcelo Martins da Silva

Participe: www.facebook.com/[email protected]

Caos, confusão, poesia e prosa. O fluxo continua. #2Agradecemos as colaborações.

Capa linda feita por Nádia Campos Alibio.

Page 3: Verborhagia #2

FaltaLeonardo Barreiro é designer, risca alguns papéis e arrisca em ficção, músicas e aventuras cinematográficas.

Rascunho de um caso clínicoJoão Lucas Dusi teve sua mente comprada pela literatura. A realidade tentou puxá-lo novamente através do jornalismo, mas ele resistiu bravamente. Lê um bocado e tenta escrever.

ReverberaçõesDiego Petrarca nasceu em Porto Alegre. Mestre em Teoria Literária/Escrita Criativa. Publicou diversos livros: Nova Música Nossa, Mesmo, Via Cinemascope, Cada Coisa, Vento & Avenca, Cábulos, com Andréia Laimer e uma edição-xeróx, Banda. Trabalha em projetos literários, é professor de literatura e ministra oficinas literárias em órgãos de cultura.

LavíniaVinícius Lobato é causa e efeito. A batida e a amnésia. O denso e o suave da pedrada.É uma transversal mesclada de música e cinema. Sua paixão é escrever.

Os muros de ouro do céuDaniel Rocha não consegue ser conciso, então é melhor parar por aqui. Se quiser mais, tem um conto ali ao lado.

Bioletras cyber analógicasAndréia Proença Machado é psicóloga, Mestre PPGPSI/UFRGS, membro do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política - LAPPAP/UFRGS.

Page 4: Verborhagia #2

Paliativo André Luiz Costa escreve ficção desde 1991.

CaféLisiane Andriolli Danieli tem cogitado a ideia de que escreve alguma coisa, mas só no passado.

AgoniaMarcelo Martins escreve porque sente no peito aquela grande confusão.

Page 5: Verborhagia #2

Aqui estamos

Eu, tu e o copo pela metade.

Daqui não saio hoje, nem que a chuva pare.

Troveja e a luz se desfaz

Como o anoitecer daquele acampamento

Onde só o cinza cobriu o topo

E na penumbra continuamos chovendo

De molhada terra, molhada e nua

Tudo volta para atualidade crua

O braço estica até que alcança

Entre memórias cambaleio

Aqui estamos,

Eu, você e o copo cheio.

FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTAFA

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A FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA FALTA Leonardo Barre

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Page 6: Verborhagia #2

RASCUNHO DE UM CASO CLÍNICO

O palco é a céu aberto. Como protagonista, as

estrelas; coadjuvante, o homem — personagem de

si mesmo, sobre um banco de madeira podre, com a

corda no pescoço. Desde os 12, quando matou

Deus, foi escalado para o papel. Nunca conseguiu se

libertar, apesar de péssimo ator. Os acontecimentos

não passam de reflexões.

A peça se passa à luz de velas. O homem assiste a

tudo de fora, com olhar crítico; o personagem de si

mesmo, enforcado. Já nem agoniza, pois o homem

o mantém bem alimentado com livros, álcool e

nicotina — o que basta para o nó não apertar de

vez. Dispôs-se ao sacrifício próprio ao matar o

criador. Achou que podia estrelar como

protagonista, mas não contava com as estrelas.

Enquanto elas brilham, ordinárias e perfeitas, o

homem, sabichão, sofre como um burro. Tornou-se

egomaníaco, verborrágico, adorador de espelhos —

miserável! Mas guarda tudo pra si. Apesar de tudo,

morre de medo de ser estrela. Vive à beira da

esquizofrenia, numa história de péssima qualidade

— como esta.

Page 7: Verborhagia #2

O personagem é doente. Se o homem fuma, seu

duplo tem câncer. Atendendo ao público, às vezes,

ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Um

grito explode, frente a iminente desgraça, e o

criador volta a existir: torna-se Ele. Deus, maiúsculo,

vira deus, minúsculo, e Deus passa a ser sua própria

consciência. Inicia-se a luta pela vida, contra o dia,

tentando renegar sua condição natural de fantasma.

Renascido, carrega estigmas de um tipo diferente:

queimaduras de cigarro. Cinco ao todo, todas nos

braços, oriundas da bênção oferecida pelo álcool.

Não do vinho. Ateu, como poderia tomar vinho?

Cerveja, sim; budista, talvez. O dharma se torna o

álcool e o nirvana, o vômito. A iluminação depende

somente de seu desempenho ao engolir litros de

libertação etílica. Um peregrino zen alcoólatra,

sempre iluminado até se deitar e meditar. Nunca

dormir. É pura meditação. Bem bêbado. E despertar

bêbado faz parte do processo. Tem lá seu charme.

Nada disso deixa de ser santo e muito

provavelmente alegra o Cristo esquizofrênico e o

Buda farsante.

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Rimbaud já sabia que o terror não é francês. Aqui,

Ele sabe que a tragédia não é grega. A culpa não é

dos apóstolos mentirosos. Não existe salvação. O

inferno astral foi herdado dos ancestrais primitivos.

Hoje, uma evolução absoluta — completamente

desprezível! O sangue é velho e infectado. Fora a

pose, nada mudou. Um sobrenome de nada vale. O

terror é a exibição, a conquista, o desejo. A tragédia

é o social. A culpa é sua. É Dele e minha. Tudo é

antibiótico. A natureza conspira, mas sobrevivemos

sinteticamente. O criador foi superado, mas deixou

a eterna danação: a consciência.

Já no primeiro dia, noite difícil: em sua cabeça, pura

tormenta. Mágoas, delírios, gritos, sangue! A

simbiose falhou miseravelmente. O personagem

tentou pular do banco. O homem sua, grita, chora

— perfeitamente calado em seu orgulho. A

meditação falhou. Despertou desnorteado. O ponto

final quase foi posto, mas houve luta. Sangue! O

personagem foi deposto e repousa em paz. Sóbrio,

o homem treme.

Page 9: Verborhagia #2

Olhou-se no espelho: somente um borrão, nem

mesmo a silhueta é reconhecível. Sádico em seu

gosto por sangue, o personagem ri. Não existe a

menor chance de coexistência. A ascensão deve ser

minha. Não sou um personagem! Esqueça. Jamais

buscarei ajuda para desatar o nó. Minha sina, tua

sina. Esqueça! Mamãe contou que o cordão

umbilical havia dado três voltas em seu pescoço. Se

fosse parto normal, nasceria morto. Arrebentaram a

barriga da mulher para remover o câncer. Estou

aqui. Propagação da espécie: metástase. O planeta

sofre e foda-se.

Chavão: depois da catástrofe, a calmaria. Fez-se o

ciclo. O palco é a céu aberto.

João Lucas Dusi

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/ reverberações /

(não basta) e além do mais

as fórmulas fracassam

e a lei da verdade

é mais grave

que a lei

da gravidade

sábio é crer

antes de prever

(foi preciso) e além do mais

o paraíso é o que

cotidianamente

realizo

Diego Petrarca

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LAVÍNIA

Princesa rosaMoça crescida

Madeixas e deixasMechas e intempériesDe tempero peculiarSalpicado de alecrim

E dobrinhas pra alegriaDe um dindo arlequim

Cachos do encantoE riachos dos acasosDramas "de la vie"

Somos cegos por LavíniaPelos olhos atentosDa atenção inquieta

O senso eu tentoDe um intenso ao tempo

Raízes em imersãoSolarizado por ela

Eu souEstou

Com a dispersão do ventoPelo que é sereno

Sinto estar sedento

Vinícius Lobato

Page 12: Verborhagia #2

OS MUROS DE OURO DO CÉU

Parte I de III

Lorenzo era casado com

Acácia, tinha vida infeliz e

miserável. Preferia prolongar o

turno da jornada de trabalho em

algumas horas, jamais recusava

serviço extra, tudo para chegar o

mais tarde possível em casa. Os

olhos de Lorenzo viram a

transformação de Acácia durante

os anos: a jovem inspirada dos

tempos de colégio havia se

transformado em esposa fria e

egoísta. Sentia-se bem ao

ridicularizar o marido perante os

falsos amigos dele, que riam em

uníssono de Lorenzo. A mãe de

Acácia indiretamente pedia a

Lorenzo um ou dois ranchos todos

os meses, além de não raro

aparecer na casa da filha e lá ficar

por semanas. Ostentava seu mau

humor cada vez que o genro não

satisfazia suas vontades e as

da sua filha, especialmente

quando Lorenzo adentrava a porta

da sala, esgotado do serviço. E

assim foi se constituindo a rotina

diária dos anos dele.

Na noite do único dia daquele

verão que fez frio, um domingo,

Lorenzo se recostou na poltrona

de seu quarto. A dor do corpo era

intensa, como há meses não

sentia. Trabalhou durante o dia

inteiro e as pernas conspiravam

com a gravidade contra ele, de

modo que sequer conseguia

erguê-las. Acácia invadiu o quarto,

dizendo que havia acabado a

margarina. Lorenzo disse que no

outro dia compraria mais. “E eu

vou ter que esperar até amanhã?”,

disse ela, impaciente. Lorenzo

esfregou o rosto com as duas mãos

e, com supremo esforço, ergueu-se

da poltrona. Na sala, a mãe de

Acácia assistia televisão, pés

descalços esparramados sobre a

mesinha.

Page 13: Verborhagia #2

Lorenzo vestiu seu casaco e saiu,

rumando para a padaria.

Andou a passos lentos pela

vizinhança, observando durante o

trajeto uma ou outra família

reunida, conversando, jogando,

cozinhando. Sorrindo. Lorenzo

tornou a baixar a cabeça, como era

de seu costume quando

caminhava, e prosseguiu. A poucos

metros da padaria, ele tirou o

dinheiro do bolso, contando as

moedas, e viu um homem parado

a sua frente. Era loiro, de cabelo

curto, bem aparado, vestia um

blazer cinza e jeans. Lorenzo

passou por ele, mas ficou a olhá-

lo. Sem saber por quê, apenas

ficou a olhá-lo. E cessou a

caminhada. Havia algo a sua volta,

uma névoa, mas quase

imperceptível.

O homem sorri. As moedas

caem no chão.

— Estava esperando você –,

ele diz. Lorenzo hesita por alguns

segundos. Depois pergunta: —

Quem é você?

— Não importa – o homem

sorri. — O que importa é o que

você quer. – Lorenzo permanece

mudo. — Eu preciso que você

preste muita atenção em tudo que

vou lhe dizer – o homem

prossegue. — São duas as forças

que regem o universo. A primeira

é o acaso, o mais próximo do que

vocês conhecem por destino.

— Vocês quem? –

interrompeu Lorenzo, começando

a se assustar.

— Por favor – o homem

ergueu a mão –, preste atenção. A

segunda força é o livre arbítrio, as

decisões que cada um toma sobre

como proceder com a vida. Só que

de tempos em tempos, nós

estendemos o livre arbítrio para

níveis mais elevados. Para algumas

pessoas apenas, claro.

Page 14: Verborhagia #2

– A névoa ao seu redor se

intensificou e a pele, sutilmente,

brilhou. Lorenzo deu um passo

para trás. — Então, damos a

oportunidade para estas pessoas

de uma outra alternativa, diferente

da que elas conhecem.

— O que você está me

propondo? – Lorenzo gagueja.

— Uma nova vida. – O

homem aponta para o bar da

esquina, que antes não estava ali.

Lorenzo vê as moedas caídas no

chão e vira-se para a padaria. No

lugar dela, apenas um terreno

baldio. — Mas como eu disse, tudo

depende do livre arbítrio. Se você

quiser, pode apenas comprar sua

margarina e voltar para casa. – Ele

aponta para trás de Lorenzo, que

gira o pescoço apressado e

contempla a padaria, como se ela

nunca tivesse deixado aquele

lugar. Na esquina onde havia o bar,

apenas um poste.

— O que é isso? Eu estou

sonhando? – Lorenzo pergunta,

assustado.

— Esta é a sua chance. Você tem

pedido por este momento há anos.

Tudo o que você quer é um pouco de

paz e uma boa esposa, não é certo? –

Lorenzo concorda com a cabeça,

hesitante. — Agora vá até o bar e

pergunte por Paulita.

— Que bar? – Lorenzo pergunta,

notando que o bar reapareceu na

esquina. Contudo, a padaria continua

a poucos metros de si. — A partir

daqui é com você – diz o homem.

Lorenzo dá três passos em direção do

bar. — Paulita? – ele diz, com desdém.

— Devo supor que eu vou conhecer

uma mulher com o nome de Paulita

naquele bar, vou me apaixonar por

ela, vamos morar juntos e viver felizes

para sempre? – Lorenzo percebe que

está sozinho na rua. As moedas

continuam no chão. A padaria

continua ali. Teria sido alucinação? O

bar. O bar não existia, não pode ter

sido construído de uma hora para

Page 15: Verborhagia #2

outra. Teria ele ficado louco? Seria o

bar mais uma alucinação? E quem

era o tal homem?

Lorenzo permanece imóvel

durante exatos cinco minutos,

mirando o bar. Analisa sua

arquitetura, o telhado triangular, a

porta de troncos, o letreiro escrito

“Recanto” em cima, os pequenos

vidros divididos. E se for verdade?

Ele dá um passo à frente.

Inspira, inflando o peito. Olha para

a padaria, tomba a cabeça. Volta-

se para o bar e prossegue até a

esquina. Abre a porta e entra,

deixando suas moedas para trás.

Ao fechar da porta às suas

costas, ele vê o balcão a sua

esquerda e os móveis de madeira

a sua direita; cadeiras em volta das

mesas redondas presas ao chão.

Há algumas colunas entre as

mesas, firmando o telhado de

palha. Seu olhar ziguezagueia

apressado. Nenhuma mulher no

recinto, pelo menos nenhuma

desacompanhada. Lorenzo balança

a cabeça e dá um passo atrás,

fazendo menção de se retirar,

quando o barman surge atrás do

balcão e ali se põe a arrumar as

garrafas. Lorenzo começa a suar.

Caminha na direção do barman,

que ainda não havia notado sua

presença, a exemplo de todos no

bar. Apoia suas mãos no balcão. E

aguarda. O barman continua de

costas, organizando as bebidas.

— Com licença – arrisca

Lorenzo. O homem se vira.

— Pois não?

— Você conhece... – Lorenzo

gagueja ligeiro, até se firmar: —

Paulita?

O barman repete o nome,

como para ter certeza de que não

foi ludibriado por seus ouvidos.

Lorenzo acena com a cabeça. Do

outro lado do balcão de madeira, o

homem retira seu avental branco,

Page 16: Verborhagia #2

está”, diz a voz feminina além do

balcão. Lorenzo olha para trás,

taquicardia elevada. Tudo o que vê

é a tal mulher. “Onde está

Paulita?”, ele pergunta em

indisfarçada ansiedade. A mulher

aponta para o peito de Lorenzo.

No balcão, um pequeno copo de

metal com um líquido

transparente de um odor ofensivo.

“Paulita... é uma bebida?”,

pergunta Lorenzo, misto de

espanto e decepção. “Sim”, diz a

mulher, denotando expressão

semelhante. “O que você pensou

que fosse?”

Lorenzo não responde. Não

sabe o que pensar. Gira na direção

das outras mulheres, todas

acompanhadas. Sente-se

humilhado, derrotado. Confuso,

pede a conta e vai embora. Sem

sua vida nova e sem saber qual o

gosto de Paulita.***

Daniel Rocha

depositando-o sob o balcão. Pede

um minuto e se retira. Lorenzo

enxuga o suor com a ponta da

manga, esfregando a testa. O que

diria a ela? “Oi, meu nome é

Lorenzo, vim aqui porque um anjo,

que eu nem sei se é anjo, me

mandou, nós vamos nos apaixonar,

mas você já deve saber disto, não

é”? Ela sabia? Será que a tal

Paulita sabia? Isto se ela existisse.

Mas o barman foi chamar, não foi?

Lorenzo sentou em um dos bancos

em frente ao balcão. E aguardou.

De lá de dentro, talvez da

cozinha do lugar, surge uma

mulher magra, de longos cabelos

negros ondulados. Ela sorri para

ele, que quase se debruça sobre a

madeira. “Paulita?”, ele pergunta.

“Já vai. Um momento, por

gentileza”, diz a mulher, virando de

costas. Lorenzo vira também,

ficando de frente para as outras

pessoas, sentadas nas mesas. “Aí

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BIOLETRAS CYBER ANALÓGICAS

(a Oswald de Andrade)

disseram que voltei abrasileirada

de dentro da mata

que estou muito virgem

que canto que sambo que carnavalizo

casca descasco

planta preciso

batuco no duro no mole no vento

voo sem asa

corro por dentro

falaram que isso é coisa da terra

do barro do mangue da seca tapera

jogo mandinga candinga nagô

xingo destino

defendo Xingu

língua à vontade pena na venta

brinco de coco

pele de lenda

sou brava sou forte

sou filha da sorte

se ela existe

não sei nunca vi

Andréia Proença Machado

Page 18: Verborhagia #2

eu de mim

não me afasto

vai que eu gosto

me perco

me sumo

me atraso

eu sem mim

que fiasco

chorei mar

des’água m’água

eu rio

Andréia Proença Machado

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PALIATIVO

Bartolomeu Pierre tenta em vão se comunicar com os

nativos da pobre e velha mãe Rússia. É um país de pessoas

loucas, ele sabe, mas também sabe que nasceu aqui quase trinta

anos antes, e pouco ou nada o diferencia de quem quase esbarra

nele ao passar. Bartolomeu, assim como todo mundo ali e em

qualquer outro lugar, tem um passado que durante a noite,

quase sempre, começa a cutucar o fundo da memória. É por isso

que está aqui agora, para tentar, com paciência, domesticar a

tristeza.

Moscou é estranha, mais moderna do que Bartolomeu

imaginava. As únicas lembranças que tem da cidade são as

imagens que formou a partir dos relatos contados por sua mãe.

Nada é familiar. Além da literatura e da música do compositor

Dmitri Shostakovich, a Rússia nunca ofereceu muita coisa para

ele. Mas mesmo assim está aqui, na histórica Praça Vermelha,

lugar que já viu tantas vezes em fotos e vídeos, mas que nunca

quis conhecer.

Ele espera por alguém que há anos não vê. Na verdade, só

viu essa pessoa no início da sua vida, quando ainda não

conseguia falar nem identificar e reter de maneira precisa aquele

rosto. Portanto, mesmo que já o tenha visto, é como se não

tivesse. Assim como a Rússia, também aquela pessoa não passa

de uma imagem que ele criou para si, alimentando dia após dia o

mito daquela criatura, como se ela já tivesse se tornado uma

espécie de lenda.

Page 20: Verborhagia #2

Bartolomeu sente a barba gelada com a mão. O frio que faz

é desumano para quem deixou o Brasil há apenas três dias. Ele

observa a face enrijecida dos russos que passam, acha graça. Já

percebeu que esse é um país de gente séria e carrancuda. Até as

mulheres exibem uma seriedade descomunal, um semblante que

exige respeito acima de tudo. Bartolomeu dá passos lentos e

quase caminha em círculos. No e-mail que escreveu ontem,

sugeriu que o encontro acontecesse em frente à Catedral de São

Basílio. Precisou descrever não só a roupa que estaria vestindo

como também suas características físicas. Sentiu uma espécie de

humilhação ao falar da sua longa barba e da cabeça raspada para

alguém que já deveria ter decorado essas feições pela exaustão

da convivência. Mesmo assim, não tem certeza de que ele virá. A

frieza da correspondência eletrônica, onde nem se pode ver a

caligrafia da outra pessoa, não garante muita coisa além do

entendimento essencial das mensagens. Todavia, Bartolomeu

está aqui, bem aqui. Se der um passo para trás, encosta nas

grades que cercam a Catedral de São Basílio. Sentir a própria

presença na cidade onde nasceu é algo que tenta explicar para si

mesmo desde que desceu do avião.

Page 21: Verborhagia #2

Na camiseta daquele adolescente está escrito “Free Pussy

Riot”, é a segunda vez que vê alguém usando uma camiseta

dessas. Há alguns meses leu na internet todas as notícias

relacionadas ao protesto que as integrantes da banda fizeram

contra Vladimir Putin, na Catedral de Cristo Salvador, e a

posterior prisão delas. Parecia que o mundo todo, inclusive

astros da música como Madonna e Paul McCartney, falavam

essas palavras em uníssono: “Free Pussy Riot”. Ele pensa que

deveria pelo menos tentar visitar uma das integrantes na prisão.

Não sabe bem o motivo, mas, se conseguisse, seria interessante.

Quando o adolescente se mistura no meio das outras

pessoas, Bartolomeu olha para o lado e, dessas coisas que a vida

dá esperanças o tempo todo de que vão acontecer, mas que

quando realmente acontecem parece mentira, parece que os

olhos, por vontade própria, projetam a imagem do que gostariam

de ver e não existe, Bartolomeu Pierre Filho olha para o lado e

enxerga Bartolomeu Pierre Pai. O reconhece imediatamente. Ele

está bem ali, parado, olhando para o filho há não se sabe quanto

tempo. Todas as histórias, todas as ausências, todas as tristezas,

toda a vida de alguém, tudo converge para aquele momento,

para aquele lugar, para a Praça Vermelha, que é considerada não

só o centro de Moscou, mas também o centro da Rússia. E,

finalmente, por uma mínima fração de segundo, ele sabe que

está no lugar certo.

André Luiz Costa

Page 22: Verborhagia #2

CAFÉ

Quando se toma

café sem café

que é água com açúcar

um tanto marcado

pelo escuro da borra

me lembro da porra

que escorre de nós

nossos corpos ligados

em um mesmo espaço

até que passe

a vontade que não passa

de te deixar aqui

nós assim

até que

se saiba de nós

o suficiente para dizer

que tudo se encaixa

como café e açúcar para mim

Lisiane Andriolli Danieli

Page 23: Verborhagia #2

AGONIA

Fiquei besta porque te desejei

e tu havias me desejado,

e em súplica disse:

Ame.

Aterrorizado fiquei com a impossibilidade do pecado,

vaidade crua e leviana,

por sê-lo fraco, respondi:

Tenho medo.

E riscaste o rosto que era meu na pedra.

E choraste orgulho ferido em sangue.

E ficaste menina e sozinha, o peito arrepiado,

menor do que nos outros dias.

E assim será daqui por diante:

Grandes amores em corações pequenos.

Marcelo Martins

Page 24: Verborhagia #2

No supermercado do meu bairro

todo mundo é preto.

E quem não é preto,

É mestiço.

Quem não é mestiço,

É pobre.

E tem aqueles, quase todo mundo,

que são pretos, pobres e mestiços,

tudo ao mesmo tempo.

E esse é o único supermercado do meu bairro.

Marcelo Martins