verborhagia #1
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Revista eletrônica dedicada à literatura independente. Participe: https://www.facebook.com/Verborhagia [email protected]TRANSCRIPT
VerborhagiaRevista eletrônica de Literatura
Ano 1, n. 1, julho de 2014
Lisiane Andriolli DanieliMarcelo Martins da Silva
Participe: www.facebook.com/[email protected]
Uma revista eletrônica dedicada à literatura independente.Verborhagia é ruptura, é fluxo de palavras, frases. Rhag é um afixo grego que tem sentido de saída, rompimento, efusão. A ideia é, portanto, libertar. Libertar os escritos das formas, textos das gavetas, a palavra do papel. Pois, no princípio, Verborhagia.
AquarelandoLisiane Andriolli Danieli não é escritora.
Investigações poéticasMarcelo Martins conheceu o mar quando criança e ficou apaixonado. Gosta de Clarice Lispector, Pixies e Clara Nunes.
Anatomia da lucidezAndré Luiz Costa escreve ficção desde 1991.
O afiador de facasLígia Sávio leciona Português e suas Literaturas. Escreve contos e poemas e participou de algumas antologias independentes. Acredita que a Literatura preserva o que é humano e abre sempre novos caminhos no mapa de nossa sensibilidade e consciência.
Antes de partir revelarei o meu amor por ti na última fraseCristine Zancani tem vista para prosa, poesia e infinito.
Roda vivaMaurício Pacheco Amaro perambula pelo realismo mágico de Márquez, pelas tumbas de Poe, pela Hogwarts de Rowling e pela Terra-Média de Tolkien.
Despindo padrõesBianca Siqueira é universitária brasiliense, aprendiz de escritora e poeta amadora. Feminista e politizada, um conjunto de clichês que desagrada, e pra completar, esquerdista declarada.
Um indiozinFelipe Gue Martini é pai gurizão, guerrilheiro das palavras. Henrique Cavinato Martini é filho nas horas vagas, nas cheias, filósofo.
Lisiane Andriolli Danieli
AQUARELANDO
Aquareleiteu olho azul
para que tu me vejae seja
quem tudo sabee tudo vê
da minha vidae de você.
A cidade também é feita de pegadas.
Caminhando pela cidade, percebi, com certo alívio, que não
somos este lugar que ocupamos, nem ele é o mesmo para
aqueles que o compartilham conosco. Não somos, tampouco
estamos juntos. Partilhamos o ínfimo dessa substância cujo
nome convencionamos chamar realidade, talvez lhe caísse
melhor concretude. Incapaz de compreender os outros, não
compreendo a vida, pois um movimento implica no outro como
se fossem caixas menores dentro de outras maiores, ou o cubo
mágico e sua dinâmica integrada. Todavia, não sou pessimista,
apenas desconfio que venho falhando por existir pouco.
Igualmente não desejo ser leviano. Tomar café, ler livros e
escrever frases não constituem em si prova de humanidade, ou
prova de uma coisa qualquer, um sentido objetivo. A vida, às
vezes, pode ser apenas um suspiro preguiçoso ou uma tarde de
sono despreocupada. Não suporto deixar-me caído no sofá, de
boca entreaberta, sentindo o vagar incipiente das horas. Porém,
de modo arbitrário, o tempo me ultrapassa. O sol sucumbe à
noite e o cosmos segue impenetrável no seu ritual da morte.
Então dou a mim esta tarefa de permanecer de olhos abertos
entre a descrença e a fé, gestando uma espécie de
renascimento. Atento ao movimento sutil das palavras.
Atropelamento.
Olhou para um dos lados antes de atravessar.
Para um dos lados, não para os dois. Era distraída
por vontade própria, nunca se dava por vencida.
Chove.
A grama jaz afogada, cachorros molhados e barcos
de papel navegam em córregos infinitos. Arrasto a
sola dos sapatos por entre inundações − ruas do
passado.
É dia.
A cidade repousa no fundo abissal de um
pesadelo. Enquanto isso, amontoados, esperamos.
Um uivo percorre as ruas do centro,
Brutos e bailarinos asssomados na esquina,
Todo pecado do concreto
Nos olhos de uma estátua.
Atropelamento.
Olhou para um dos lados antes de atravessar.
Para um dos lados, não para os dois. Era distraída
por vontade própria, nunca se dava por vencida.
Atropelamento.
Olhou para um dos lados antes de atravessar.
Para um dos lados, não para os dois. Era distraída
por vontade própria, nunca se dava por vencida.
Mar
celo
Mar
tins
ANATOMIA DA LUCIDEZ
Quando minha esposa disse
que estava grávida de outro
homem, o copo de chá gelado que
eu segurava escorregou das
minhas mãos e se espatifou aos
meus pés. O líquido amarelado,
meio cor de urina, se espalhou
pelo chão da cozinha, molhou
meus sapatos, e ficou lá, entre os
pedaços do copo. Achei que no
tom de voz dela existia alguma
intenção oculta, algo talvez diverso
do que me disse, mas não sabia
especificar o que era.
Incomodada com o meu
silêncio, perguntou se eu não iria
falar nada. Continuei olhando para
o chão. Reparei na luz do dia,
cinza, em como ela entrava pela
janela e realçava o amarelo do
líquido, refletia nos cacos de vidro.
Ela disse mais alguma coisa que eu
não ouvi, mas levantei a cabeça e
fixei meus olhos em seus seios,
seus enormes seios. Percebi que
jamais os tocaria de novo, senti um
vazio estranho. Sua barriga
perfeita seria deformada pela
gravidez. O filho de outro homem.
Enquanto olhava para seus seios,
que apareciam através da blusa
quase transparente do pijama,
lembrei que eu abominava a ideia
de ser pai. Tive uma vontade
repentina de empalar aquela
mulher. Enfeitar o interior do
corpo dela com um tronco.
Imaginei a cena. Ela, com a barriga
de grávida, empalada no quarto
em que dormíamos. Faria isso pelo
simples prazer visual.
Com a velocidade do
desespero, ela caminhou na minha
direção, parou com seu rosto
próximo ao meu e começou a
esfregar os pés nos cacos de vidro.
Seu sangue se misturando ao
amarelo do chá. Disse que podia
ver o ódio que eu sentia, que, se
me agradasse, e valesse de alguma
coisa, enfiaria os pedaços de vidro
nos próprios olhos. Achei estranha
aquela manifestação e virei meu
rosto para o outro lado. Mas nada
adiantaria, eu já sentia o fim.
Percebendo que sua exibição
não me afetava, ela correu
debilmente, mancando, até o
balcão da cozinha, e pegou a faca
que usávamos para cortar carne.
Segurando com a mão direita,
posicionou a faca no lado
esquerdo do pescoço e esperou
para ver qual seria a minha reação.
Nenhuma. Fiquei olhando as
manchas de sangue em forma de
pés que marcavam o piso. Ela
perguntou se eu não faria nada,
realçou com todas as palavras que
havia transado com outro homem,
e que eu não era capaz nem de
sentir raiva. Nada do que fizesse
me comoveria a ter alguma
atitude, e ela, sabendo disso,
pareceu desistir. Tão rápido que
quase não vi, rasgou o pescoço de
um lado ao outro.
Não sei dizer quanto tempo
fiquei observando aquele corpo
que parecia feito de plástico.
Espantado com a velocidade de
tudo, ainda tentava organizar a
sequência dos acontecimentos na
minha cabeça. Mas em
determinado momento não
consegui mais ficar ali sem reação.
Peguei um casaco e saí de casa.
A rua onde eu morava, que
sempre foi caótica, estava
tranquila. Não havia sequer
resquício de movimento. Caminhei
tanto quanto pude, mas, quando
atravessava a terceira quadra, algo
me disse que nada tinha
acontecido, que a cena anterior da
minha esposa era uma ilusão.
Tentei ignorar o pensamento,
dominar a vontade de voltar e
conferir. Mas não conseguiria
avançar com aquela incerteza,
precisava retornar.
Fiquei muito surpreso
quando, chegando à cozinha, vi
apenas o copo quebrado e o chá
espalhado no chão. Nem sinal do
corpo. Caminhei por toda a casa,
procurei em cada cômodo. Nada.
Talvez ela tivesse ido até o
mercado, fazia isso quase todas as
manhãs. Eu a encontraria lá,
contaria sobre o que imaginei ter
acontecido, e o dia voltaria a ser o
que era.
Saí de casa, mas, agora, não
reconheci mais a minha rua.
Parecia que eu estava em outro
lugar. Logo em frente havia um
parque, com bancos espalhados e
poucas árvores. Pensei que não
faria mal atravessar a rua e sentar
em um daqueles bancos por
alguns minutos. Dei o primeiro
passo, mas senti uma dor estranha
nos joelhos, olhei para baixo e
achei minhas pernas muito finas,
pareciam frágeis. Quando fui tocar
nelas, não reconheci minhas mãos.
Estavam manchadas, murchas,
enrugadas. Senti meu próprio
rosto marcado por rugas. Aquele
não era meu corpo. Há pouco
ainda estava jovem, com minha
esposa. Mas será que aquilo tinha
acontecido? Não conseguia
lembrar se havia me casado algum
dia. Queria conversar com alguém,
me certificar das coisas, mas
procurei ao redor e estava sozinho.
No momento em que mais
precisamos das pessoas, elas
desaparecem.
Sentei em um dos bancos do
parque e olhei para cima.
Pequenos pontos brancos caíam
do céu. Estava nevando. Meu
sonho de infância era ver a neve.
Não consegui parar de sorrir
quando os flocos começaram a se
acumular em meus ombros. Senti
saudade de mim mesmo, um novo
tipo de nostalgia. Pensei muito
sobre aquele sentimento, sobre o
que significava estar ali, sozinho.
Nada muda o que já aconteceu.
Mesmo que eu não lembrasse,
tinha alguma certeza de que
aquele momento era o resultado
de escolhas precipitadas, e tudo o
que eu queria era voltar no tempo
e evitar qualquer coisa que
pudesse ter evitado, tomar
atitudes diferentes, modificar o
rumo. Mas é fácil querer mudar as
coisas quando nós sabemos que o
fim que encontramos não nos
agrada, difícil mesmo é perceber
isso no momento em que o
passado acontece. Tive a
impressão de que tudo acabaria
ali, naquele parque, como uma
metáfora criada pela vida para me
mostrar minha própria solidão.
Não existia nada que pudesse
me ajudar a atravessar o
momento. Nem a memória, que
falhava como máquina sem óleo,
poderia me apoiar. Escutava
trechos de frases estranhas, vozes
que me soavam familiares, mas
que eu não conseguia identificar.
Perdi a noção do tempo e já não
sabia a hora, o dia ou o ano em
que estava. Havia envelhecido de
um instante para o outro, como se
minha vida toda tivesse passado
em um segundo que eu não vi
acontecer. E, enquanto tentava
recuperar qualquer lembrança,
remontar os fragmentos soltos, o
que ressoava o tempo todo era
que, de qualquer forma, aquilo
não importava.
Fechei os olhos por um
momento e senti uma mão
tocando meu ombro. Foi um toque
carinhoso, leve, que, ao mesmo
tempo, me pareceu familiar.
Quando abri os olhos, já não vi
mais a rua onde eu morava. Agora,
na minha frente, estava um
casarão antigo, com diversas
janelas voltadas para o parque.
Também não estava mais nevando.
Vi que a mão em meu ombro era
da minha filha, mas eu não
lembrava que tinha uma filha. Ela
parou na minha frente e me
convidou, sorrindo, para entrar na
casa. Perguntei se ela morava ali,
mas não me respondeu. Olhei ao
redor e notei que havia muitos
idosos pelo parque. Alguns
estavam reunidos em grupos,
outros, sentados sozinhos como
eu, murmuravam para as árvores.
Levantei com dificuldade e
caminhamos até o casarão. Minha
filha me conduziu para um quarto
que ficava no primeiro andar.
Perguntou se eu não queria outro
copo de chá gelado, já que havia
deixado cair o que tinha nas mãos.
Balancei a cabeça dizendo que sim.
Ela me ajudou a sentar em uma
poltrona e disse que já voltava. Os
seus grandes seios, seu rosto, a
postura, eram iguais aos da mãe.
Então, afinal, o que aconteceu
antes era verdade. Eu casei com
aquela mulher e nós tivemos uma
filha.
No quarto ao lado, ouvi
barulho de coisa caindo. Alguém
gritou e começou a praguejar, a
voz era de ressentimento. Outra
voz, mais calma, tentava controlar
a situação. Uma terceira voz, em
algum outro lugar, chamava o
nome de um homem, parecia estar
entoando um mantra antigo. Logo
identifiquei outras várias vozes,
barulhos diversos. A casa estava
cheia.
Quando minha filha voltou,
notei que o seu rosto havia
mudado, já não era mais a mesma
pessoa. Quem era aquela mulher?
Entregou o copo para mim e
sorriu. Perguntou como eu estava
me sentindo, disse que as outras
enfermeiras estavam preocupadas
comigo. Percebi então que lugar
era aquele. Em um segundo que
não consegui dizer nada, comecei
a chorar. Ela abraçou minha cabeça
contra o seu peito e aquilo me
tranquilizou. Assim ficamos por
muito tempo. A enfermeira
abraçada em mim, achando que
me consolava, e eu, que já não
lembrava o motivo de estar sendo
consolado, sentindo aqueles lindos
seios que tocavam o meu corpo.
André Luiz Costa
O AFIADOR DE FACAS
Um solzinho assim de outono, meio mágico, quando eu
descia a lomba para ir ao colégio. Vontade de matar aula,
de ficar naquele sol. Dei meia-volta, quase no portão da
escola. É, não podia deixar esta tarde dourada escapar das
minhas mãos, assim na maior. Entrei na rua dos plátanos,
rua úmida e cheia de sombras no verão, agora coberta de
folhas. Parei no alto do barranco que dava para a pracinha,
olhando distraidamente uns guris que batiam bola.
E então ouvi o apito do afiador de facas. Coisa linda!
Desde pequenininho este apito me fascina. E agora ele
enchia os ares, invadindo a tarde. Fui em direção a ele.
O afiador era um velhinho de chapéu desabado, um
talo de grama atrás da orelha, os olhinhos faiscantes. Olhos
de oriental, assim meio puxados. Sentei ao seu lado, num
banco da praça, observando enquanto ele trabalhava. Senti
que estava louco para puxar conversa. Por fim perguntou:
– Que horas são?
– Uma e meia, respondi olhando meu digital.
Ele deu um riso.
– Antes se usava isto aqui. E tirou do bolso uma
ampulheta com areia bem dourada. Ou relógios de sol,
falou outra vez.
Fiquei quieto. Não sei como, mas achei natural ter ali
diante de mim um chinês ou japonês que afiava facas e
tirava ampulhetas do bolso, numa tarde de quarta-feira, na
praça do colégio...
Ele me olhou meio de lado e falou:
– Veja só essa faca. Observe as inscrições no cabo.
Sabe o que significam?
Olhei. Um monte de desenhos, mas tão pequeninhos
que não dava para distinguir nada.
– São hieróglifos.
Um afiador de facas falando em hieróglifos? Estava se
vendo que era alguém especial. E seriam mesmo? Ele riu
da minha cara de incredulidade.
– São hieróglifos egípcios, sim. Esta faca ganhei quando
percorri aquelas terras.
– O senhor esteve por lá?
– Por muitos lugares...
Olhei-o de novo e observei bem os olhos amendoados,
a pele curtida de muito sol. E o sotaque. Não dava para
precisar a nacionalidade dele.
– Quer dizer que o senhor viajou muito?
– É... Conheço uma boa parte do mundo. Mas ainda
não achei o que procuro.
Estas últimas palavras ele disse num tom mais baixo.
– E o que procura?
– Procuro uma faca. Uma certa faca. Está difícil de
achar. Ela pode estar em qualquer lugar do mundo.
– Mas então é impossível de achar! O senhor não tem
nenhuma pista? Que faca é esta? Por que precisa achar?
As perguntas foram saindo sem que eu pudesse me
controlar.
– Tive em minhas mãos milhares de facas, de todos os
tipos. Se aqui sou afiador, em outros lugares, já fui
vendedor de facas, atirador de facas em circo, já abati
animais. Já lidei com facas de todas as maneiras que eu
pude, esperando encontrá-la. Só não matei pessoas...
Suspirei de alívio. Eu tinha chegado a pensar nisso... E
ele continuou:
– Pois é... Nunca me chegou às mãos a que eu
precisava. Só quando consegui-la é que vou poder me ver
livre delas. Me ver livre de tudo. Ela tem uma inscrição, um
desenho que é a explicação de tudo.
– Mas tudo o quê?
– Ah, não dá pra explicar.
Tive que rir. Como uma cantilena, ele continuou a falar,
mas para si mesmo:
– Estive na Pérsia, Sumatra, Ilhas Gregas, Ilhas dos
Mares do Sul, Mongólia, na terra dos Vikings, nas regiões
geladas do Norte da Rússia...
– E veio parar aqui...
– Estou há alguns anos aqui. Fiquei sabendo de
qualquer coisa a respeito do paralelo 30, sul... Vi a tal faca
em sonhos ou já a tive um dia, nem lembro mais... Mas
quando a enxergar, sei que vou reconhecê-la.
– Por causa do desenho?
– É...
– Bem, espero que encontre o que procura.
– Também espero! Preciso! ... Levantou-se do banco.
– Vou andando que a peregrinação não terminou
ainda. Não sei quando vai terminar.
E foi embora, empurrando devagar sua bicicleta.
Tipo curioso o velho. Teria inventado tudo aquilo? Não sei,
talvez fosse um desses loucos mansos que andam soltos
por aí. Me encostei numa árvore de tronco convidativo.
Tão liso que deu vontade de entalhar qualquer coisa nele.
Peguei meu velho canivete e comecei a gravar minhas
iniciais na árvore e mais uma vez olhei aquele desenho no
cabo (parece um escaravelho) e que eu nunca entendi por
que está ali.
Lígia Sávio
ANTES DE PARTIR REVELAREIMEU AMOR POR TI NA ÚLTIMA FRASE
Meu oxigênio depositado na tua boca.
Troca química de vida,
onde levas minha juventude
e fortificas teu nome de guerra.
Entender-te consiste em
adormecer com o silêncio
e compactuar com o imediato.
Provar pelo tato.
(Pausa)
Perdi a coragem
A última frase foi jogada em silêncio
dentro da bagagem.
Porque uma vez quebrei seus óculos
acho que o deixei cego.
Porque uma vez ele fez com que
eu tivesse vontade de enxergar
acho que sou dele.
Porque uma vez apertei as pernas com força,
ele me pôs à prova.
Desde então venho amadurecendo,
esperando dele o que não compreendo.
DEZ
ele me matou durante minutos
partiu depois de dez dias
voltou indeciso
me cobrou atitudes
cuspiu no meu prato
arrancou minhas veias
quebrou minhas vértebras
usou meu corpo
fugiu às dez horas
sentiu-se culpado
voltou receoso
me cobrou todo amor
juntou minhas vértebras
lavou o meu prato
devolveu minhas veias
beijou o meu corpo
jurou não partir mais
dez minutos depois
foi minha vez de fugir
PRETENCIOSAMENTE FALANDO
Tens algo de vento
que passa lento
pelos meus cabelos.
Tens os sonhos todos,
Eu não ouso tê-los.
A vida passa pela
tua porta.
Minha vontade agora
É suplicar tua presença.
Tens em teu olhar
a paixão intensa.
E me tens sempre.
Sempre que quiseres.
(Pena que não sabes
que sempre me queres)Cristine Zancani
O grupo chegou fazendo bagunça.
Era plena luz do dia. Inadmissível
para um bairro tão boa gente
como aquele. Mas eles não se
importaram. Quem disse que os
quatro se importaram?! Foram
logo depositando os sacos pretos
que carregavam no gramado
sedoso, puro e verde do Parcão.
Um grupinho de garotas que curtia
uma balada indie do Reino Unido
lançou olhares de reprovação a
eles; uma delas cuspiu para o lado,
como se fosse vomitar. Todas
riram. Eles, os quatro, nenhum
deles se importou. Por que se
importariam?! O mais velho abriu
seu saco e tirou um pacote quase
vazio de bolacha recheada, junto
com uma garrafa de água mineral
com gás pela metade. O gás,
infelizmente, já havia se ido, foi o
que disse aos outros.
Os demais apenas sorriram e
aumentaram o volume da
bagunça. Iniciaram uma cantoria.
Três senhoras de sessenta anos e
alguns cabelos brancos que faziam
sua caminhada matinal pararam
para observar a cena. Uma delas,
escandalizada, ameaçou chamar a
polícia. As outras duas
concordaram, fazendo coro. E eles
ligaram? Havia por que ligarem
para tamanha mesquinharia?! O
segundo do grupo abriu seu saco e
revelou-lhes uma caixa semiaberta
de morangos. Dois ou três estavam
podres, contudo para quem já
havia comido churrasco de gato
aquilo era luxo. E para beber,
trouxe uma garrafa fechada de
suco de laranja natural. Um litro e
meio, dava para dividir. Foi
aplaudido!
RODA VIVA
A cantoria aumentou e um deles
ensaiou uns passinhos de dança,
mesmo estando sentado. Os
quatro gargalharam e mal
perceberam um casal com seu
filho lhe observando da pracinha.
No meio da algazarra discerniram
pouca coisa, talvez algo como
“pretos imundos”, “mendigos do
caralho” ou outra ofensinha
qualquer. A alegria deles não foi
afetada. E deveria ter sido?! Se
não deveria, não foi, e o terceiro
homem abriu seu saco, tirando de
dentro dele uma sacola cheia de
cacetinhos quentes e suculentos.
Ah, oito! Dois para cada um! Os
dois primeiros homens se
levantaram e começaram
realmente a dançar. Ele apenas
lamentou não ter nada para beber.
Sem problemas, havia suco para
todos eles. Assim como havia
outro grupo atravessando a praça
em sua direção, as cabeças
raspadas, as peles brancas como a
mais branca nuvem, os olhos
brilhando escuridão. Nenhum dos
quatro pareceu dar atenção. E
deveriam? Deveriam. No entanto,
o quarto homem precisava ainda
mostrar o que trouxera. Revelou o
conteúdo de seu saco, arrancando
suspiros de surpresa de seus
companheiros. Queijos, presuntos,
mortadelas e outros recheios para
os pães. De fato, seu saco era o
mais pesado. E ainda havia um
radinho de pilha, que começou a
tocar um melodioso samba. A festa
dos quatro estava feita. Dançaram,
abraçados, agradecendo pela
oportunidade de poderem se
alimentar tão bem depois de tanto
tempo. Contudo eles estavam
cegos. A alegria não lhes permitiu
enxergar o casal e o filho se
afastarem, as garotas indie rock
correrem para longe e os demais
passantes pararem para observar
de longe o grupo de jovens
armados com pedaços de pau,
facas e punhos que se aproximava.
Os quatro nem viram de onde veio
o primeiro golpe, assim como não
sentiram o gosto dos morangos, o
azedo do suco de laranja ou a
crocância gostosa dos cacetinhos
recém-tirados do forno. Eles não
viram mais nada, tampouco
ouviram o grito das três velhinhas
que voltavam com um guarda
municipal. Escandalizadas, viraram
as costas e desapareceram para
não constatarem a dura realidade
da vida. Os skinheads já estavam
longe quando o guarda se
aproximou e pegou do chão o
radinho de pilha. Ele ainda
sambava. Sozinho. Os últimos
versos de “Deixa a vida me levar,
vida leva eu...”. Levou, pensou o
guarda, ao desligar o aparelho e
ligar para a polícia.
Maurício Pacheco Amaro
A gente, por toda a vida, se amarra, se prende, se tranca e se esconde, faz de um tudo pra passar despercebida pelos montes, foge do natural e de nossas fontes. Desde menina te estabelecem regras e padrões, dizem que menina só é bonita se for que nem aquelas dos telões, nos fazem gastar horas buscando beleza em salões. Pois venho te desconstruir, venho dizer que nada disso é para mim, ou para ti, aqui a beleza nada tem a ver com o que te impõem por aí. A beleza tá na leveza da liberdade, no sorrir sem vaidade, num rosto que não se esconde por detrás da desigualdade. A diferença sempre existiu, padrões, no entanto, foi o homem quem construiu, e não nasci pra ser manequim da revista de abril. Por anos me deixei levar pela pressão social, pela estereótipo da mulher ideal, pela beleza que te mostram no jornal. A gente acaba se rendendo a torturas psicológicas, se submete a tomar um monte de drogas, se perde em ideias tortas, tudo para agradar uma sociedade feia e hipócrita. Acabamos com o nosso amor próprio, acabamos com o nosso corpo, acabamos com nós mesmas por um todo. Criamos rivalidade com nossas irmãs de identidade, aprendemos a odiar quem deveríamos defender do resto da sociedade, abrimos mão da felicidade, e tudo pra se encaixar melhor em padrões sem finalidade. Eu abri meu coração, e me desapeguei dos julgamentos da população, eu escolhi a minha felicidade, que vale mais que a de um milhão. Não me importo com que ditam em TVs e revistas, porque sou dona da minha vida, e não vou seguir a maioria. Vou contra a corrente do padrão de beleza, e não pense que isso é motivo pra tristeza, porque meu corpo não é produto da Veja.
Bianca Siqueira
UM INDIOZIN
Dia desses no mato encontrei um indiozin, enquanto eu brincava de caçar raposas ele sorria e me perseguia com jeito de bichinho. Eu me esgueirava pelo mato, ele não tinha nem pelo nem tato, passava ileso por tudo. Habilidade danada, agilidade de gato. Subi em árvore, nadei em rio, joguei bola, rolei na lama, ele todo ali, firme no passinho. Não tentei dizer nada, contar lá de casa, apenas fazia aqueles gritos de briga, de faca, barulho de fusca ou bicho do mato. Pois quando olho pro lado ele respondendo pra mim, fazendo bip bip bip, se revelando um robozin.
Texto de Felipe Gue Martini, livremente inspirado em ilustração e conto de Henrique Cavinato Martini