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Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ A Concepção Cristã de Ser Humano na Perspectiva de Adolphe Gesché DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de Pós-graduação em Teologia Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2008.

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Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ

A Concepção Cristã de Ser Humano na Perspectiva de Adolphe Gesché

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de Pós-graduação em Teologia

Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2008.

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Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ

A Concepção Cristã de Ser Humano na Perspectiva de Adolphe Gesché

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia pelo Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio.

Orientador: Pe. Mário de França Miranda, SJ

Rio de Janeiro

27 de fevereiro de 2008

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Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing

A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe

Gesché

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção

do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia

e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Mário de França Miranda Orientador

Departamento de Teologia – Puc-rio

Prof. Joel Portella Amado Departamento de Teologia – Puc-Rio

Prof. Marcus Barbosa Guimarães Instituto Paulo VI

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro

de Teologia e Ciências Humanas – Puc-Rio

Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing Graduou-se em Pedagogia, na Universidade Santa Úrsula, em 1985, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2004, defendendo a monografia “O ser humano: campo da experiência do divino”. Trabalha no Colégio de São Bento, como professora e coordenadora de Ensino Religioso. Atua, também, como professora horista da Cultura Religiosa, do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe Gesché / Vera Maria Lanzellotti Baldez Boing; orientador: Mário de França Miranda. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Teologia, 2008. 136 f.: il.; 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia. Inclui referência bibliográficas

CDD: 200

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In memoriam, à minha avó, Maria Luiza, que me fez perceber a presença de Deus na sua religião. Ao meu pai, Miguel, um ser humano incansável na luta pela justiça, que ultrapassa o limite da própria história. Com ele aprendi a amar, sem exceção, todo ser humano. À minha mãe, Dora, com uma sabedoria própria, profundamente humana, sempre, esteve atenta às necessidades dos filhos e do próximo, vindo de onde viesse. Com ela experimentei o amor de Deus e a vocação de mãe. Aos meus sogros, Julio e Zenir, que sempre testemunharam a possibilidade de uma vida existencial na fé. Ao Lula, que me ajuda a desvelar a presença de Deus na minha vida e a assumir o compromisso que temos com o projeto do Reino. Pela partilha e comunhão diária, que nos possibilita a superar obstáculos. E pela inteira amorosidade e disponibilidade na revisão constante do trabalho. Aos meus filhos, Maria Clara e Miguel, razão do reconhecimento do amor radical de Deus em nossas vidas e pelo tempo que não dispusemos juntos enquanto escrevia sobre o amor de Deus entre os seres humanos.

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Agradecimentos Aos meus irmãos, que me ensinam a compreender as diferenças como um dom de Deus. Ao meu orientador, Pe. França, pela pedagogia cuidadosa de quem conduz um aprendiz por novos caminhos e a carinhosa paciência com que me ajudou a desenvolver este trabalho. Aos professores do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me ajudaram a fazer teologia sem perder a perspectiva da história. À direção do Colégio de São Bento e à equipe de Ensino Religioso, pela compreensão e apoio nos investimentos no estudo. A Deus, por todas as possibilidades e pelo amor que me sustenta.

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Resumo

Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez; Miranda, Mário de França. A construção da identidade cristã: a concepção cristã de ser humano na perspectiva de Adolphe Gesché. Rio de Janeiro, 2008. 136p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O presente trabalho procura discutir a identidade cristã no mundo atual,

marcado pela racionalidade, como possibilidade de diálogo da Teologia com as

ciências, especialmente a Antropologia. As discussões centram-se na visão de ser

humano pensada pelo teólogo Adolphe Gesché, que apresenta a perspectiva da

teologia antropológica, uma forma de pensar o ser humano a partir da revelação

dada por Deus, possível de ser lida na narrativa bíblica, onde a fé é resultado da

relação dialógica estabelecida entre o ser humano e Deus. O núcleo do trabalho

traz os elementos que constituem a condição humana, com destaque para a

liberdade e a alteridade, compreendidas já no ato da criação de Deus, oferecendo

ao ser humano a possibilidade de se tornar pessoa. Nesta perspectiva, a destinação

teologal é apresentada como possibilidade de plena realização humana.

Palavras-chave

Identidade cristã; ser humano e Deus; transcendência e imanência; liberdade,

alteridade, destinação, mal.

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Résumé

Boing, Vera Maria Lanzellotti Baldez; Miranda, Mário de França. La construction de l'identité chrétienne: la conception chrétienne d'homme dans la perspective d'Adolphe Gesché. Rio de Janeiro, 2008. 136p. Mémoire de Maîtrise – Département de Théologie, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Ce mémoire de maîtrise a comme objectif mettre en lumière et promouvoir la

discution de l’identité chrétienne dans notre monde actuel marqué profondément

par la racionalité scientifique, ouvrant ainsi la possibilité de dialogue entre la

Théologie et les autres sciences, en particulier l’Anthropologie. Les discussions y

contenues sont centrées dans la vision humaine créee par le théologue Adolphe

Gesché, qui présente la perspective de la théologie anthropologique, c’est-à dire,

une façon de penser l’être humain à partir de la révélation donnée par Dieu, cette

façon est possible d’être comprise dans la narrative biblique où la foi apparaît

comme le résultat de la relation dialogique établie entre l’être humain et Dieu. Le

noyau central du travail apporte des élements qui constituent la condition

humaine, en particulier la liberté et l’altérité, comprises déjà dans l’acte de la

création de Dieu, ce qui permet à l’être humain la possibilité de devenir une

personne. Dans cette perspective, la destination théologal est présentée comme

une possibilité pleine de realisation humaine.

Mots-clés

Identité chrétienne; être humain et Dieu; transcendence et immanence; liberté;

altérité; destination; mal.

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Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 9

I – O SER HUMANO NA PERSPECTIVA DE ADOLPHE GESCHÉ ......... 14

1.1 – Introdução ...................................................................................... 14

1.2 - O ser humano: aspectos antropológicos e teológicos .................... 15

1.3 - Pressupostos fundamentais na compreensão do ser humano ...... 24

1.4 - A fé como resultado de uma realidade ........................................... 32

II – A CONDIÇÃO HUMANA ..................................................................... 41

2.1 – Introdução....................................................................................... 41

2.2 - A liberdade ..................................................................................... 43

2.3 - A alteridade .................................................................................... 53

2.4 - O mal .............................................................................................. 60

2.4.1 - Diferentes configurações do problema do mal ..................... 61

2.4.2 - Possibilidades de solução para o problema do mal ............. 67

2.4.3 - O pecado original e a culpa .................................................. 80

2.5 - A destinação ................................................................................... 85

III – A IDENTIDADE CRISTÃ .................................................................... 103

3.1 – Introdução ...................................................................................... 103

3.2 - Cristo como opção de vida ............................................................. 104

3.3 - O amor cristão: novo modelo de Igreja e de Homem ..................... 120

CONCLUSÃO ............................................................................................ 132

Referências bibliográficas ......................................................................... 135

Bibliografia do autor ................................................................................ 135

Bibliografia teológica básica ................................................................... 135

Bibliografia de ciências humanas ........................................................... 136

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INTRODUÇÃO

Pensar o ser humano na sua relação com Deus, expressão de uma fé. Essa

foi a motivação inicial que me levou a refletir sobre o sujeito da fé no mundo atual,

repleto de diversidades e possibilidades. Falar do ser humano, inserido em sua

realidade histórica e tomado pelos discursos que legitimam as várias ciências, não

seria simples sem assumir uma visão teológica que pudesse responder às

exigências do mundo científico. Uma teologia que dialogasse com as ciências,

reconhecendo na razão uma mediação frutífera e capaz de oferecer a explicitação

da dimensão da fé, como realidade de expressão da relação entre Deus e o ser

humano. Mas a maior motivação se encontrava em sustentar a fé em Jesus Cristo

como opção de vida existencial. Para isso, um grande desafio se impôs: a

mediação da comunidade eclesial. Sabemos que as instituições, na modernidade,

sofrem um abalo no enfrentamento de um modelo globalizado, que se sustenta

numa lógica utilitarista e imediatista, configurando relações superficiais e

provisórias. Uma contradição à proposta do cristianismo, que se guia pelo amor ao

próximo e pela tradição.

Buscando enxergar caminhos, recorri à orientação do professor França

Miranda, com quem, no curso de graduação, aprendi a fazer teologia estudando os

desafios de abordar a Graça de Deus na história do ser humano. Foi, então, que fui

apresentada ao autor com quem faria uma longa parceria de trabalho, Adolphe

Gesché, que seria responsável por uma grande conversão humana em relação ao

mundo criado e sustentado por Deus. Aqui começa uma trajetória que desejo

realizar e partilhar, junto com o leitor, que, tenho certeza, encontrará muitos

outros caminhos além do que proponho como ponto de partida.

Primeiramente, faz-se necessário uma apresentação do autor e uma

justificativa das obras selecionadas para o desenvolvimento desse trabalho.

Adolphe Gesché nasceu em 1928, em Bruxelas, na Bélgica, vindo a falecer

recentemente, em 2003. Formado em Filosofia, Letras e Teologia, onde recebeu o

título de Doutor. Lecionava na Faculdade de Teologia da Universidade Católica

de Louvain e foi presidente da Sociedade Teológica de Louvain. Viveu, portanto,

o século das ebulições econômicas, sociais e culturais, o século XX, que suportou

o sofrimento de duas Grandes Guerras mundiais. Um século em que a humanidade

viu Deus sair e entrar, questionado e defendido, do cenário histórico dessa

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realidade. A Igreja se encontrou, portanto, diante da necessidade de dialogar com

a modernidade, que, com as grandes transformações científicas e tecnológicas

trazidas a partir de meados do século XX, sofreu uma radical mudança em relação

à sua própria natureza. Uma mudança que gerou novas modalidades na relação

social, afetando diretamente a atuação da Igreja no mundo. As mudanças mais

sentidas foram nas famílias, que, por causa da guerra, tiveram as mulheres

ativamente presentes no mercado de trabalho, e na própria classe trabalhadora,

que se viu mais distanciada e expropriada de sua produção diante do fenômeno da

globalização. A Igreja se viu envolvida e comprometida com essa realidade, que

trazia o desafio de dar resposta de vida aos sinais de fragmentação. O Concílio

Vaticano II representa a resposta da Igreja a uma nova atuação no mundo. Gesché

tem um papel fundamental no pensamento teológico para esse diálogo.

Gesché foi, junto com outros grandes teólogos, uma referência no

resultado da teologia do Vaticano II, na Europa e no mundo. Como veremos nesta

apresentação, a base estruturante de seu pensamento se encontra na revelação de

Deus na história do Homem. Procurou compreender Deus e o Homem numa

relação existencial, pensar uma teologia que pudesse dialogar e apresentar

respostas ao novo mundo que emergia com maior racionalidade, mas,

simultaneamente, com necessidades de compreensão do sofrimento humano

deixado pelas Grandes Guerras que o mundo assistiu.

O autor deixou uma vasta obra escrita, em especial artigos de grandes

revistas teológicas. Reconhecendo a grande limitação do tempo e do objetivo do

trabalho de apresentar um estudo introdutório do pensamento de Gesché,

selecionei um pequeno número de suas obras para o trabalho. O limite

bibliográfico pode ter impedido um conhecimento mais profundo dos temas que

percorreu durante sua vida de escritor, principalmente a riqueza que apresenta no

diálogo com outras áreas de conhecimento, como a arte literária e a filosofia.

Realmente, Gesché elabora uma fértil articulação entre as ciências e, com muita

autoridade, soube aproveitar as pesquisas que vinham sendo desenvolvidas sobre

o ser humano. A partir da formação literária que trazia, buscou focar e relacionar

seu estudo sobre o ser humano com a arte, uma fonte inesgotável do mistério do

próprio ser. Dessa forma, atual e legítima, fez da teologia um instrumento de

trabalho. Com a apresentação da concepção antropológica e teológica, trazidas no

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desenvolvimento do trabalho, esperamos alcançar o objetivo primeiro de

apresentar o pensamento do autor que fundamenta a sua teologia.

Os livros com os quais trabalhei fazem parte da série Deus para Pensar,

que trata, em cada volume da coleção, de diferentes temas desenvolvidos por

Gesché durante sua vida. Os dois primeiros volumes da série, O Mal e o Ser

Humano, receberam, em 1993, o prêmio Cardeal Mercier, concedido a obras de

filosofia e teologia. A Academia Francesa premiou, em 1998, os cinco primeiros

volumes da coleção, além daqueles, Deus, O Cosmo e A Destinação. Os volumes,

O Cristo (Volume6) e O Sentido (Volume 7), foram escritos, respectivamente, em

2001 e 2003, este último publicado no ano de sua morte. Selecionei aqueles

diretamente relacionados com a proposta do trabalho, uma abordagem do ser

humano como mediação primeira que nos revela Deus e que, através da

linguagem, torna a fé uma realidade possível de ser aderida como opção de uma

existência cristã. E Jesus Cristo, a revelação mediadora definitiva de Deus, que,

no evento da Encarnação, fez da história a mediação real para se construir a

identidade cristã. O Cosmo, mesmo estando entre os primeiros dos seus escritos,

não o incluimos diretamente, mas de forma implícita, já que buscamos delimitar o

tema no ser humano que adere ao seguimento de Jesus Cristo, optando por não

abordar essa temática, complexa o suficiente para ser pensada como um único

tema de trabalho.

No primeiro capítulo apresento uma abordagem geral que nos abre à

compreensão da teologia, nos aspectos antropológicos e teológicos, necessários ao

entendimento de todo corpo do trabalho, que se funda na perspectiva cristã do

autor com quem dialogamos para pensar o Homem de fé no mundo atual. Abro o

caminho percorrendo o que faz do ser humano um ser capaz de conhecer e desejar,

o enigma, que Gesché vai falar para desenvolver o mistério que habita o mais

íntimo do ser e que desencadeia uma busca incessante por se fazer conhecer. A

busca conduz o ser humano a uma plena realização, que Gesché deposita na

possibilidade de ser encontrada na salvação cristã. Passo, então, a ter como

referência a tradição judaico-cristã, que nos oferece as narrativas bíblicas como a

fundamentação de toda defesa pelo reconhecimento da identidade cristã. Dentro

dessa perspectiva, o capítulo é focado no ser humano “criado criador”, que tem

como ponto de partida, para a compreensão da dinâmica da revelação de Deus, no

ato da criação, uma criação feita com a liberdade de Deus, que concede o dom de

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ser livre à sua criatura, criada à Imagem e Semelhança de Deus. O capítulo tem o

objetivo de apresentar essa dinâmica, destacando os elementos que constituem a

estrutura humana para serem pensados na teologia a partir da narrativa da criação.

Gesché trata de uma intrínseca relação entre Deus e o ser humano na criação. A

alteridade e a liberdade nascem como elementos fundantes dessa viva e atuante

dinâmica da criação de Deus, narrada no Gênesis. Concluímos o capítulo com a fé

como dado de uma realidade que expressa a relação estabelecida entre Deus e o

ser humano. Uma relação que nasce da alteridade, que constrói a confiança entre

os Homens e projeta para algo maior do que o próprio ser humano: a confiança

num Terceiro, que permite compreender aquela primeira intuição antropológica de

Gesché, o mistério atuando e desvelando no ser humano a capacidade e o desejo

que tem de Deus como parte constitutiva da sua estrutura humana.

Ainda percorrendo as veias que nos levam à compreensão do ser humano,

o segundo capítulo desenvolve outros elementos, apresentados como constitutivos

da condição humana, que são essenciais na antropologia que nos apoiamos para

defender a teologia no diálogo com o mundo moderno. Assim, falamos da

destinação, como a possibilidade teologal de uma vida existencial, e do mal.

Dedicamos uma parte à questão do mal pela necessidade da defesa de Deus, com a

qual o crente se depara nas dificuldades geradas pelo sofrimento, também pelo

pecado, tão difícil ao Homem moderno compreender. Recorremos, aqui, à

doutrina do pecado original, que o autor trata com muita atualidade na busca da

superação de uma visão equivocada na história do cristianismo. Da mesma forma,

coloca a defesa da vítima em contraposição às estruturas jurídicas da modernidade,

que acentuam a perseguição ao culpado mais do que se preocupam com a salvação

da vítima. Houve, portanto, uma necessidade de refazer o caminho da teologia,

que construiu, na sua história, uma visão pouco esclarecedora da atuação de Deus

na luta contra o mal, que distancia o Homem de seu destino último, a realização

em Deus. A liberdade, a alteridade e a destinação serão desenvolvidas dentro da

perspectiva teológica, que é o que pretendemos fundamentar na apresentação do

pensamento de Gesché. Sabemos que trabalhamos com elementos da antropologia,

mas vamos apresentá-los na perspectiva da teologia. Isso significa pensar que os

elementos podem ser vividos em diferentes lugares que dão o sentido próprio a

cada um. É isso que oferecemos para pensar: o sentido que o ser humano dá à sua

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liberdade e alteridade de forma a conduzi-lo ou não à uma destinação como lugar

de um sentido, próprio da antropologia teologal.

Depois de percorrer as pegadas do autor, buscando construir o que

desejamos apresentar na sua perspectiva de ser humano, chegamos ao último

capítulo apresentando esse ser humano, já como Homem de fé, que proclama em

Jesus Cristo o motivo de sua identidade construída. Esta parte vem responder ao

convite que Gesché nos faz para pensar o Cristo da fé na sua realidade histórica.

Deslocar a centralidade da pessoa de Jesus para a sua mensagem de salvação, que

nos anuncia um Deus preenchido de humanidade. Anuncia a imagem de um Deus

que ama de forma incondicional e de um novo ser humano, a partir de sua

humanidade. Isso significa que faremos o caminho narrado pelos apóstolos para

chegar ao reconhecimento histórico do Cristo Glorificado. A partir das narrativas

bíblicas, buscamos chegar ao Cristo da fé como mensagem central da fé cristã.

Desenvolvemos essa idéia a partir do que o autor chama de identidade narrativa, o

elo que representa a articulação dinâmica entre o Jesus histórico e o Cristo

Glorificado. Por isso, seguimos o caminho dos apóstolos, procurando ouvi-los nos

testemunhos de fé do Cristo, reconhecido no Jesus de Nazaré, para nos

distanciarmos do risco presente na prática cristã de dissociar as duas dimensões de

Jesus Cristo, desfigurando qualquer tentativa de seguimento. Depois de

desenvolver a cristologia como proposta de uma adesão mais autêntica da fé cristã,

apresentamos a comunidade de fé como mediadora concreta do desenvolvimento

e construção da identidade cristã. Cristo como opção de vida, seguimento,

paradigma para realização de uma proposta de vida. Desejamos poder chegar a

esse resultado. Não que ele seja o único absoluto, mas se torna um convite aberto

às muitas possibilidades oferecidas por um Deus que, feito Homem e assumindo

as nossas limitações humanas, nos mostrou, na história, o caminho para uma

libertação que ultrapassa a própria história.

Iniciemos essa caminhada com a humildade de quem reconhece as

limitações do trabalho. Espero que o leitor possa ser provocado pelo desejo de

ultrapassá-las na mesma condição inicial de quem se propôs a escrever, com

disposição para pensar o reconhecimento do Homem de fé nos dias atuais.

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1 O SER HUMANO NA PERSPECTIVA DE ADOLPHE GESCHÉ

1.1 Introdução

Iniciamos este trabalho buscando compreender o ser humano nas suas

condições de existência. O desenvolvimento do tema tem como centro a

concepção cristã e antropológica presentes na teologia. O objetivo é defender a

teologia como um lugar legítimo no debate entre as diferentes ciências que

transitam no mundo atual. Para isso, a antropologia tem destaque privilegiado na

estrutura do tema, pois a teologia, para se expressar, necessita das condições do

ser humano que é capaz de verbalizar aquilo que lhe é revelado. O que o autor

propõe é conhecer Deus através da expressão de fé do ser humano, mas

principalmente conhecer quem é esse ser humano para quem Deus se dirige.

Nessa perspectiva, Gesché nos apresenta a dinâmica da revelação de Deus,

referendada na Sagrada Escritura como fonte da tradição judaico-cristã, e

desenvolve os subsídios necessários à compreensão da construção da identidade

cristã. A partir da criação, desenvolve os fundamentos da estrutura do ser humano,

que pressupõe a realidade da revelação de Deus e da relação estabelecida com o

ser humano. A liberdade, a alteridade e a destinação são elementos que o autor

destaca como constitutivos da condição humana, que ganham, no ato da criação,

as condições do ser humano se reconhecer capaz de criar, de se relacionar, de

amar e de desejar Deus. O diálogo estabelecido entre Deus e o ser humano

encontra-se desenvolvido na temática da fé, realidade dada como resultado da

resposta do homem à revelação de Deus na história. Uma realidade fundamental,

pois é a partir dela que todo o trabalho se estrutura, entendendo como realidade de

expressão do crente que, diante do não crente precisa defender e legitimar essa

realidade que se diferencia diante do mundo não sagrado.

Damos, então, início a essa trajetória, de desvelamento do ser humano

diante de si e de Deus, assim como de Deus na vida. Apresentamos a nossa

peregrinação.

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1.2 O ser humano: aspectos antropológicos e teológicos

“A riqueza do ser humano é infinitamente superior ao que ele supõe. É uma riqueza que nada pode tirar dele, e cuja onda ressurge sem cessar, a cada século. É isso que o ser humano quer saber. Esse é o centro de sua inquietação temporal. Essa é a causa da sua sede. Quanto mais ele ganha terreno, mais se torna consciente, todo poderoso, e mais ele espera com razão do teólogo que (este) tire a água da rocha.”1

A citação acima, trazida pelo autor na sua abordagem sobre o ser humano,

é uma tentativa de ilustrar a proposta de falar sobre alguns elementos que

estruturam o ser humano na perspectiva da teologia antropológica. O autor, ao

falar do ser humano, intrinsecamente, nos coloca em contato com a teologia, pois

tem como afirmação básica à compreensão dinamizada e dialética de como

concebe a expressão que vai acompanhar o desenvolvimento do seu pensamento:

o “ser criado criador”. Mais à frente o termo será melhor discutido, pois teremos

já exposto o tema de forma mais completa. Porém, antecipamos que o autor traz

no seu pensamento o fundamento de uma lógica interna à própria criação.

O ser humano é apresentado, pelo autor, como um enigma diante de si e no

confronto com a realidade, que permite seu desenvolvimento e crescimento. Um

enigma dinamizador, impulsionador, compreendendo o ser humano como um ser

capaz de sair em direção ao outro, que, consciente ou não, faz dele um

sobrevivente, cultural e socialmente. Um ser de alteridade.

A citação impõe uma reflexão na qual Gesché se apóia: a centralidade das

inquietações do ser humano, que caracteriza a presença do in-finito na sua finitude,

as inquietudes das indagações sobre o universo em que se reconhece como

Homem, sujeito ativo, carente de respostas. O autor utiliza o termo construção

para falar do processo que não cessa de se perguntar sobre ele, o mundo, os outros

e, por fim, Deus. O “enigma constrói”, possibilita transformar, portanto, criar e

descobrir. E Deus pode ser colocado nesse sentido humano, criador e de

descoberta. Como nos diz o autor:

“A parte da incerteza que habita entre nós não é um desastre. Essa zona ‘indiscernível’ no âmago de nós mesmos constitui nosso ser da mesma forma que a busca da racionalidade. Aquele que crê, porque pronuncia a palavra Deus, não escapa disso mais do que os outros”.2

1 JÜNGER, E., Traité du Rebelle ou les Recours aux Forêts. Paris, 1986, pp. 141-142. Apud GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 27. 2 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 9.

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E é essa condição de inquietude que faz do ser humano um ser de

existência, um ser de sentidos, de buscas e anseios por seu reconhecimento

humano, que o diferencia dos outros seres vivos. É nessa perspectiva que o autor

fala da identidade humana, aquela que envolve todas as dimensões do nosso ser,

na relação com as circunstâncias dadas como mediadoras: o conhecimento, a

afetividade, o artístico, as instituições (família, religião), a sociedade, tudo que

envolve a individualidade de cada um. No entendimento do autor, existe o risco de

uma armadilha, a de ancorar-se com excesso na racionalidade e na ação, pois o

que vivemos na relação com o meio que nos forma nos garante o reconhecimento

como pessoa humana. Essa confiança, se exagerada, limita a construção de nossa

identidade humana, “pode nos deter de forma restrita a nós mesmos.”3 Toda a

possibilidade de iniciar o processo de construção de nossa identidade acontece

numa rede de significados, de sinais, que o ser humano recebe no mais íntimo de

seu ser, que o possibilita conhecer-se na sua identidade. O autor se remete à

Tradição como uma herança recebida, que nos conduz e nos coloca em direção à

construção dessa identidade. A Tradição, também, nos dá condição de aceitação,

re-criação e invenção de novos projetos que serão herdados e guardados na

memória da humanidade.

O ser humano é colocado na direção da aprendizagem, ele é conduzido,

educado, iniciado na sua história. É nessa iniciação que o Homem é capaz de

recriar, pois está sendo capaz de receber o futuro, a partir do passado presente na

sua herança. Isso significa que somos porque aprendemos, porque somos seres de

cultura. Fazemos história. “Ensinar é iniciar; e iniciar é recorrer aos sinais e aos

símbolos.”4 Somos nós, homens e mulheres, que portamos sinais e símbolos.

Somos, como diz Gesché, “seres ensinados e ensinantes.”5, portadores de sentidos.

É nesta perspectiva que compreendemos o sentido que a fé pode emitir. Deus,

finalidade de um sentido de vida, necessita de sinais, mediadores, para introduzir

o elemento da fé de forma a ser compreendida pela razão humana. O autor traz o

dado da revelação como elemento construtor de uma identidade: a identidade

cristã. O autor propõe pensar Deus dentro dessa investigação identitária.6

3 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 13. 4 Ibid., p. 26. 5 Ibid., p. 26. 6 Ibid, pp. 15-24.

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17

Esse enigma constitutivo do ser humano, que permite construir sua

identidade, traz, então, a possibilidade de pensar Deus como existente na realidade

da trama de significados herdados pelo próprio Homem durante a evolução da

humanidade. Para tal fato é necessário que a racionalidade e a ação não ocupem o

lugar absoluto no processo de construção da identidade do ser humano. As

dimensões essenciais do ser humano que se relacionam com as mediações não

devem reduzir ou ignorar a existência do enigma, que é parte constitutiva do ser

humano. A própria possibilidade de se fazer ser é pelo constante vir-a-ser que o

ser humano tem na dinâmica de sua existência. Esse mistério é um dado da sua

realidade existencial. As dimensões fundamentais, como a razão, a afetividade, a

espiritualidade (fé), a técnica e a ação, devem convergir na contribuição desse

processo do vir-a-ser, que possibilita o crescimento do Homem, oferecendo-lhe

uma maior realização. Na relação com ele mesmo, com o mundo, com o outro e

com Deus, o Homem deve reconhecer o enigma como uma realidade própria à sua

existência. Nenhuma realidade é totalizadora dela mesma. Portanto, é na aceitação

de nossas sombras que temos a oportunidade de construir nossa identidade mais

segura e transparente.

A modernidade tentou absolutizar a dimensão da racionalidade, afirmando

a ciência como salvadora do Homem, o século das luzes como a completa

capacidade de tudo ser iluminado. Não foi o que aconteceu. Hoje já reconhecemos

a difícil tarefa de responder por situações não superadas pela técnica dos homens,

como miséria, violência, sofrimento. A diversidade cultural e religiosa também

sugere questões não tão simples de serem resolvidas. Assim também, o ser

humano não encontra a totalidade de seu conhecimento, nem no maior amor que

possa sentir pelo outro e por ele mesmo. E em Deus? O autor alerta para certo

cuidado em nossa resposta, pois, como diz, “Deus não deve servir para resolver

nossos enigmas”7. Muito interessante recorrer, como fez Gesché, ao relato do

Êxodo, que diz que “Deus de dia habitava numa coluna de nuvens e de noite

numa coluna de fogo para alumiá-los” (Ex 13,21). É nosso próprio mistério,

obscuro, também presente no mistério de Deus. Essa reflexão sobre o verdadeiro

sentido de Deus e de Cristo será mais à frente desenvolvida, pois é o amor gratuito

7 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 19.

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de Deus que é a base do pensamento do autor para falar de sua compreensão

humano-divina.

O Deus revelado não se submete ao Homem como algo para ser

manipulado. Jesus Cristo mostrou a sua humanidade no enfrentamento de seus

enigmas, como diz Gesché, “Ele desceu a um inferno, ao seu inferno de morte, e

é somente porque aí entrou, porque não recusou o enigma, que Ele ressuscitou e

recebeu resposta.”9. Podemos, então, falar desse sentido que o ser humano dá à

sua vida quando reconhece nos enigmas a potencialidade de seu crescimento

humano. O ser humano, na sua relação com o outro e na descoberta de sua

responsabilidade é capaz de descobrir Deus. E, se fazendo um homem de fé,

descobrirá em Deus a luz que ilumina sua obscuridade. Ou seja, ao se deparar com

as grandes questões humanas, sentirá a constante necessidade de alargar seus

horizontes na busca de respostas, não definitivas, mas seguras de sentidos.

Adolphe Gesché falará de destinação e de finalidade, que é o que

fundamenta a estrutura existencial do ser humano, para onde a sua realização

encontrará resposta. Também é um tema que terá seu lugar no transcorrer desse

trabalho. A busca por respostas não deve representar um incessante desejo de

questionamentos. Isso acarretaria uma dificuldade para o ser humano, a de não se

satisfazer com nenhuma resposta. Não é esse o caminho mais sadio. Respostas são

encontradas e devem motivar outros questionamentos, relembrando que o ser

humano traz no seu âmago a herança tecida na história da humanidade, por isso,

sempre motivado por respostas. O ser humano, portanto, não é, uma tabula rasa,

como antes do desenvolvimento das ciências humanas se achava. Nisso

agradecemos a contribuição dada por toda ciência no conhecimento da estrutura

do ser humano. É o uso da razão humana que nos leva, além do diálogo com as

ciências, a poder nos expressar através de símbolos, palavras que ajudam a falar

do ser humano como ser integrado em todas as suas dimensões. Gesché se

utilizará dessa real oferta da racionalidade para falar da teologia como expressão

da fé, da relação fecunda entre Deus e o ser humano.

A teologia tem como objetivo Deus, mas, também, necessariamente, o

Homem, para o qual a palavra de Deus é dirigida. Nós podemos estudar a

antropologia separada da teologia, mas se desejamos conhecer a revelação de

9 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 20.

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Deus devemos assumir o estudo antropológico como fundamento de sua revelação.

Mas, como diz o autor, “a teologia não pode transformar-se em antropologia”10,

perderia o lugar que lhe é próprio, reconhecido, de onde só ela pode falar sobre

Deus. Porém, a teologia necessita do lugar da antropologia.

Primeiro, porque Deus se revelou na história do Homem. É na dinâmica da

história que o Homem encontra Deus para falar d’Ele. O cristianismo tem em

Jesus Cristo a confirmação desse fato, no evento da Encarnação, em que o ser

humano torna-se a mediação mais importante para conhecer a Deus. A teologia

expressa esse “discurso sobre Deus, no qual o ser humano é constitutivo e

inseparavelmente compreendido numa relação”11. Na pessoa de Jesus, a relação

entre Deus e o Homem tornou-se inseparável. Podemos nos referendar na própria

fala de Jesus: “quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Relação confirmada e

legitimada no mais íntimo do ser humano. Expressar o nome de Deus passou a ter

um sentido, que é recolhido e oferecido pelo Homem. Para Gesché, conhecer

quem fala, como fala e de onde fala tornou-se essencial para o discurso teológico.

Por isso podemos compreender a necessidade da antropologia para o discurso da

teologia.

O segundo fator é que a teologia, ao se expressar pela fé cristã, traz, no seu

bojo, um discurso de que Deus pede algo ao ser humano. Esse é um dado da fé.

Ou seja, esse Homem deve escutar a Deus e responder, na sua vida, o que lhe é

solicitado em oração, por exemplo. Entendemos, então, que Deus, na verdade, ao

falar ao ser humano, emite uma visão de sua parte, pois o Homem, para respondê-

lo, buscará se definir, conformar-se à Imagem e Semelhança de Deus. É na

relação dialogada entre o pedido de Deus e a resposta do Homem que se

estabelece a legitimação da teologia antropológica.

A teologia vem requerer o seu lugar de poder falar do ser humano a partir

de Deus, “revelar o ser humano como Deus o concebe” 12. Como nos diz o autor,

a partir do olhar de Deus poderemos conhecer quem é o ser humano. A partir da fé

falamos e definimos esse Homem que crê em Deus, disso sabemos. Mas o que se

quer é poder falar do Homem a partir da concepção de Deus. Afinal, a fé cristã

possibilita essa afirmação. Deus, ao criar, na liberdade, dá condições ao ser

10 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 29. 11 Ibid., p. 31. 12 Id., O Cristo, p. 35.

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humano para acolher ao seu projeto, através da sua liberdade criada. Deus ao se

revelar, estabelece um diálogo profundo e único com o ser humano. Revela-se um

Deus humano, de relações, portanto, capaz de comunicar o que pensa do ser

humano, numa absoluta condição de alteridade com esse Homem. Um elo de total

relação a ponto de o Homem recorrer, apelando por sua presença, em todas as

situações vividas. “É como aquele tribunal de apelação, que todo ser humano –

diante de qualquer um que o maltrate – pode invocar para reivindicar que é

inviolável.”13

Em Jesus Cristo esta relação se configura definitivamente, pois nos

convida a reconhecê-Lo naquele com quem nos relacionamos. O autor nos lembra

que no Evangelho de Mateus encontramos dito: “todas as vezes que fizestes isto a

um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.” (Mt

25,40). Dessa forma, temos a plena compreensão de que é no outro que reconheço

Deus. Mais. Que eu sou o que sou a partir desse Deus que se revela. Que quando

Deus fala ao ser humano já fala concebendo-o como ser, permitindo que o

Homem se reconheça humanamente em Deus, mas separado de Deus. A partir de

Deus me reconheço ser humano. A mesma relação acontece com o outro com o

qual me relaciono. Reconheço minha identidade a partir do outro, pois sei que não

sou o outro. E quando proclamamos, na fé cristã, Jesus Cristo como Filho de Deus

afirmamos que todo ser humano também é filho de Deus. Ao afirmar, atesto a

existência do outro e sou, pelo outro, atestado. Dessa forma, podemos

compreender a afirmação do autor, quando expressa a sacralidade do Homem a

partir do anúncio de Jesus Cristo: “anunciar esse elo entre Deus e o ser humano é

dar a este último o fundamento mais absoluto e mais derradeiro para respeitar e

fazer respeitar sua dignidade absoluta”14.

Recordamos, aqui, que é na pessoa do Filho que conhecemos o Pai.

Portanto, na relação com Jesus, Deus concede ao ser humano se conhecer e

conhecê-Lo. Na humanidade do Filho nos tornamos filhos de Deus e recebemos

por uma concreta mediação a possibilidade de reconhecer em nossas relações uma

dinâmica humano-divina. O cristianismo tem em seu fundamento essa existência

concreta, a Encarnação do Filho de Deus. Gesché falará também de uma

13 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 35. 14 Ibid., p..36.

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antropologia cristológica ao abordar em Cristo uma “profecia do ser humano”15.

Deixaremos para o último capítulo essa abordagem.

Podemos, com legitimidade, a partir da Sagrada Escritura, que atesta a

revelação de Deus na dinâmica da história do ser humano, conhecer quem é esse

homem de fé. É aquele que se conforma à sua relação com Deus. O ser humano

torna-se conhecido na sua relação com Deus. Essa visão relacional que permite

conhecer o Homem a partir Deus traz uma grande exigência na concepção de ser

humano. É na fecunda relação com Deus que a humanidade do ser humano se

desenvolve. Isso significa afirmar que quanto mais perto de Deus o Homem se

coloca, mais humano ele se torna. À medida que o trabalho avançar teremos mais

clareza dessa afirmação, pois o desenvolvimento dos temas da alteridade e da

liberdade permitirá a confirmação dessa relação humana entre Deus e o ser

humano. E com menos possibilidade de manipulação, tanto do outro como do

próprio Deus, que sempre se encontra disponível às necessidades do Homem. É

uma relação de profunda dignidade humana, que se constrói através de relações,

pois nenhum ser humano se desenvolve sozinho, fora de qualquer relação pessoal.

Essa reflexão traz outra questão, a liberdade do ser humano, que deverá ser

desenvolvida no capítulo seguinte. Na afirmação que Gesché faz sobre liberdade,

“liberdade pessoal e relação com outro, longe de fazer guerra entre si, caminham

juntas.”16, já sinaliza a existência da liberdade diante daquele que crê em mim. Ou

seja, quanto mais acredito no outro e o outro em mim, mais vivo plenamente a

minha liberdade, e isso vale em qualquer relação do Homem, inclusive na sua

relação com Deus.

Perceber a concepção de ser humano em Gesché nos exige, ainda, abordar

a Encarnação como paradigma de toda compreensão de Deus em relação ao ser

humano. O autor fala da irracionalidade do amor, que foge ao entendimento da

razão, para expressar que Deus assumiu para si a loucura desse amor. A

Encarnação significa que Deus, pela sua absoluta fonte, que é o amor, nos revela

quem é esse ser humano.

Está claro que a tentativa do autor em falar do ser humano concentra-se no

Homem de fé. É a partir do crente que a teologia é convocada a se posicionar,

15 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 35. 16 Ibid., p. 35.

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necessitando esclarecer qual é a sua antropologia. Torna-se, assim, diferente das

outras ciências antropológicas.

A teologia deve reconhecer nas ciências os discursos sobre o ser humano.

Reconhecer e aceitá-los como colaboradores no processo de entendimento do ser

humano crente, desde que nenhuma queira assumir para si um discurso único e

absoluto. Podem contribuir para melhor compreensão da fé, pois identificam e

revelam elementos que se articulam no contexto humano da fé, ajudando a

perceber o que é próprio e o que pode mascarar uma autêntica vivência da fé cristã.

Por outro lado, a teologia reconhece que nenhuma ciência “esgota o fenômeno da

fé”17. A linguagem da fé, que envolve a do amor, abarca a racionalidade, mas não

se reduz à lógica da razão de forma absoluta. O que é importante, na visão do

autor, é perceber que o logos da ciência não esgota sua universalidade, ou seja,

tem sua expressão em diferentes linguagens. Desse modo, afirma o autor, a fé tem

sua própria linguagem. Nenhum discurso pode abrir mão do seu logos porque tem

relação com um determinado tipo de racionalidade. Assim também com a fé, que

precisa de um discurso próprio que expresse a mediação, numa relação com a

lógica da racionalidade. Encontramos, então, na teologia a razão da antropologia.

Caberá à teologia ocupar-se com o discurso do Homem de fé.

“Cabe à teologia resgatar esse discurso que as outras ciências do ser humano não tornam compreensível. É aqui, portanto, que se encontrará o lugar próprio da teologia como discurso sobre o ser humano e que será justificada a sua tarefa no concerto antropológico.”18

O que interessa diretamente ao autor é mostrar que a teologia pode fazer a

mediação para falar do “Homem que fala de Deus”, e que, para isso, usa a

ferramenta da antropologia, como apoio na racionalidade da expressão da fé, que

emite uma mensagem antropológica dessa fé. Ela tem algo a contribuir como

ciência e, como tal, quer ocupar o seu lugar nessa realidade atual. Há, portanto,

uma necessidade urgente de expressão para que o Homem de fé possa ser ouvido

e legitimado no diálogo com as outras ciências.

O autor aborda três importantes aspectos que configuram o que a fé tem a

dizer e colaborar como discurso a ser legitimado no universo das ciências.

Primeiro, a existência do sagrado, do intocável, porque Deus assim o tornou. O

Homem de fé proclama e quer ser ouvido como um ser que é habitação de Deus, o

17 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 38. 18 Ibid., p. 40.

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in-finito está contido no finito. Portanto, todo ser humano, em qualquer situação

que se apresente, “tem o direito imprescritível e inalienável de se fazer

respeitar.”19 O ser humano é sagrado diante de Deus porque recebeu, na sua

realidade histórica, a manifestação do próprio Deus, na condição de Homem.

Segundo, o fato de considerar que nada é irrevogável, fatal. A fé, ao tratar da

salvação como idéia central de sua afirmação, traz, em si, a própria afirmação de

que tudo tem salvação. Isso nos remete a um importante fato, a transgressão da

possível fatalidade histórica. Falamos da esperança cristã, que tanto é proclamada

pelo Homem de fé, mas muitas vezes pouco compreendida no seu sentido

histórico e escatológico. Trata-se de reconhecer, pela fé, que somos mais do que

imaginamos na nossa mediocridade. Como diz o Filho, na lembrança do autor,

“eu não vim julgar, mas salvar o mundo” (Jo, 12, 47). E, por fim, o terceiro

aspecto, a realidade, que dá sentido ao argumento anterior e que não se esgota

nela mesma. Ou seja, se a fé proclama a salvação traz o projeto de uma nova

realidade que vai além da história presente, sinalizando a possibilidade de um vir-

a-ser. A realidade é chamada a se mostrar em outra dimensão. “Aqui, é o

horizonte escatológico da fé que garante essa libertação da realidade: esta não se

limita ao que vemos e medimos, ela é chamada a algo mais, já misteriosamente

presente.”20

Acreditamos que dentro dessa abordagem o autor sinalizou a teologia

como fundamental mediação para expressão da fé, que sem essa sistematização

correria o risco de alienações, ilusões, permanecendo vulnerável às acusações das

outras mediações analíticas. Dessa forma, existe a real possibilidade do encontro

com as outras ciências, assim como, de ocupar um lugar legítimo na construção da

tradição dos conhecimentos herdados pela humanidade.

Buscando ser fiel à compreensão do autor, partiremos da abordagem

teológica de alguns conceitos que sustentam as diferentes concepções, tanto do

Homem comum, limitado à sua realidade histórica, como do Homem de fé, que vê

sua história como sinal realizável da salvação de Deus.

No início desse trabalho entramos em contato com a teologia, que nos fala

sobre uma nova lógica interna à criação, que Gesché expressa como “criado

criador”. O homem é descrito por ele como um ser desejoso por conhecer, um ser

19 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 42. 20 Ibid., p. 42.

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nutrido pelo desconhecido e por fazê-lo conhecido. Um processo de descobertas

que subsiste à condição da liberdade humana, do desejo, de uma ação realizada

pelo Homem e, por isso, enredada por muitas circunstâncias de ordem pessoal,

social e cultural. Ação que possibilita ao Homem a construção de sua identidade.

Em especial, o ser cristão que, na busca de suas indagações, responde a Deus,

concretizando uma identidade cristã, mas também ocupando um espaço no campo

do fazer teológico. Num esforço de dar continuidade à temática anterior sobre a

legitimação do antropológico como centralidade teológica, iniciaremos esse

próximo trajeto expondo o fundamento da concepção de criação de Gesché.

1.3

Pressupostos fundamentais na concepção do Ser Humano

O maior desafio empreendido na compreensão humana do autor encontra-

se na explicitação das representações dos termos que são próprios do campo

teológico, sobre o qual todo o seu trabalho é desenvolvido. Um esforço que

necessita de novos sentidos para sua compreensão. O empenho do autor é ocupar

um lugar ao sol, onde as ciências, iluminadas pela razão, deverão incluir e

reconhecer a teologia com seu logos mediador da expressão do Homem de fé.

Mais, como possibilidade de pertença de um novo modo de viver em comunidade.

Um novo sujeito de fé, construtor de uma nova subjetividade e de uma nova

expressão eclesial da fé. Na verdade, uma nova época de relações sociais a ser

enfrentada e conhecida.

O termo criação, trabalhado pelo autor, funda um sentido próprio de uma

dada realidade que exige apresentação. Gesché vai tratá-la em comparação com

uma concepção cosmológica, para que se compreenda um conceito que implica

uma epistemologia própria para esta realidade trabalhada, o conceito da liberdade,

que remete ao conceito da verdade. Assim como a liberdade e a verdade se

apresentam a partir da criação, temos a presença de outras questões importantes na

concepção do ser cristão que desejamos elucidar em Gesché, que serão mais tarde

apresentadas, tais como: alteridade, subjetividade e destinação, entre outros. São

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termos que surgem como desdobramentos do sentido originário da liberdade

humana.

Para fazer compreender a dinâmica da “criação criativa”, Gesché vai

utilizá-la em relação à tradição que trata da idéia primordial “do lugar, do espaço,

do receptáculo”, de onde as coisas terão sua origem, encontrando-se à espera do

que virá-a-ser. 21 Portanto, dentro dessa concepção, a origem das coisas acontece a

partir de três termos, que são essenciais para Gesché na formulação da sua

abordagem antropológica da criação: a natureza, a arte e o acaso. A tradição

privilegia a natureza e o acaso como produtoras das mais “belas realidades”,

enquanto as produzidas pela arte são consideradas menores, sem grandeza na

realidade das outras criadas. A natureza e o acaso “arrancam da indiferença

agitada do caos, segundo um processo de necessidade imanente.”22 Ou seja,

ambas saem a partir da mesma realidade, segundo as necessidades dadas por essa

realidade ou fruto do acaso da própria realidade. O terceiro termo da razão do

surgimento das coisas, vem pela arte, a techne. É a arte que, de forma secundária,

é produzida posteriormente, pois nasce a partir dos outros dois termos já

existentes. Isso significa que a arte produz algo que já se encontra dado na

realidade, portanto, menos verdadeira, mais artificial. Gesché utiliza o termo de

Aristóteles para expressar o sentido da arte, “imitação” da natureza, “artefato”.

Essa compreensão esquemática resulta, como diz Gesché, numa leitura

“cosmo-lógica da criação”, onde é a natureza que produz a realidade. Portanto,

uma realidade sem intervenção criativa. O autor quer, justamente, trazer à reflexão

uma outra concepção sobre a criação, a da tradição judaico-cristã, uma perspectiva

teológica da criação que se contrapõe à leitura a-histórica da criação grega. É a

partir dessa abordagem teológica que Gesché nos oferece pressupostos para a

compreensão do ser humano que nos confirmam a existência de Deus, ao afirmar

sua fé diante de sua realidade histórica.

A tradição judaico-cristã afirma que no “principio Deus criou o céu e a

terra” (Gn 1,1). O autor vai desdobrar o sentido teológico dessa afirmação para a

história. Ao afirmar no princípio a nomeação de alguém que dá a existir, subjaz a

idéia de uma liberdade. Se há liberdade, existe sujeito, portanto intenção. Eis o

primeiro e fundamental pressuposto antropológico da fé. A existência de uma

21 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 54. 22 Ibid., p. 55.

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ação que atua na realidade. Criando-a, se contrapõe à concepção anterior, de que a

realidade nasce da necessidade e do acaso. Sendo algo que possa ser pensado

como ação de uma pessoa, essa ação pode representar um plano. Podemos

sinalizar uma articulação dessa reflexão do autor sobre Deus-sujeito com o ser

humano que, na alteridade, é capaz de conhecer a si e ao outro, desencadeando um

processo de crescimento e de identidade cristã. À medida que avançarmos,

retornaremos a essa reflexão, por agora continuaremos na trilha da tradição

judaico-cristã em que o autor caminha. 23

A realidade pode, então, ser afirmada como resultado de uma liberdade.

Mais uma vez, nos remete à idéia de um movimento, ou seja, de uma ação

provocativa, o que nos faz pensar numa realidade intrinsecamente dinâmica. E

nessa realidade temos a presença centralizada da pessoa, do sujeito, que, por ser

um ser inteligente, age fazendo, criando e re-criando. Um ser de cultura, inventor

criativo. Dessa forma, então, a arte deve ser concebida como anterior à natureza,

já que no esquema grego a natureza se colocava privilegiadamente anterior à arte,

desprezando o brilho inventivo. Assim, “a partir daí, é a techne (a criação) que

define aquilo que será a natureza”. 24 Gesché, ao destacar a liberdade como

fundamento de uma nova lógica – a perspectiva teológica – destaca, também, a

questão da verdade como pressuposto para pensar a temática do ser humano de fé.

Uma contraposição à concepção grega, em que a arte era considerada como uma

não verdade, pois era concebida como momento segundo, posterior à realidade

dada. Mas, se é o ato pessoal da liberdade que cria, ou seja, é a arte que se

encontra no princípio, a natureza terá o seu valor submetido ao ato criativo. Então,

a verdade torna-se um outro pressuposto a ser trabalhado na perspectiva teológica

da antropologia.25

Assim, Gesché afirma algo que se torna a base do seu pensamento

antropológico: “a prioridade da criação anuncia a prioridade da liberdade sobre

a natureza.”26. E também da verdade: dois conceitos recriados a partir da tradição

judaico-cristã. Este ponto merece uma maior apreciação, pois se refere a um novo

paradigma, onde a liberdade é o cerne da existência humana. Arriscamos afirmar,

a partir do autor, que esse paradigma torna-se o paradigma que pleiteamos para

23 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 56-61. 24 Ibid., p. 57. 25 Ibid., pp. 58-70. 26 Ibid., p. 59.

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representar essa nova configuração do homem na sociedade pós-moderna. O ser

humano, aqui, é convidado a se colocar por inteiro, a compreender a sua vida

existencial como liberdade, ou seja, a liberdade sendo inerente ao existir.

Encontra-se inscrita no próprio ser, fez-se no ato criativo, na arte da criação

pessoal de Deus, portanto, intrínseca ao Homem. A concepção grega atribui uma

liberdade extrínseca à condição humana, pois o “ser humano não é estabelecido

na liberdade”27. Como diz o autor, os gregos construíram uma liberdade social e

política, mas não antropológica. A tradição judaico-cristã inaugurou na história do

homem a intervenção de Deus, trouxe a possibilidade do homem “desfatalizar” a

si próprio e a história. A compreensão de Deus, como princípio e criador do

universo, permitiu a construção do novo paradigma a partir da concepção de uma

intervenção e decisão como elementos essenciais na origem do processo da

criação. O ato de intervir coloca a realidade no âmbito da liberdade, que exige a

decisão do ato criativo. A intervenção comporta a idéia do fazer existir, da ação

que permite a realização. É fantástica a lógica dialética interna à narrativa da

tradição judaico-cristã. Outros elementos podem ser pensados, a partir dessa

lógica, como a alteridade e a destinação, compreendendo que estão em relação

direta com o uso da liberdade.

Ao abordar a alteridade como resultado da relação com Deus, Gesché

amplia sua concepção de ser humano, pois evidencia a transcendência como algo

que nos retira do reducionismo da imanência. Conceber a revelação de Deus como

princípio de um ato criativo é reconhecer não só a liberdade como premissa desse

ato, mas, inclusive, a alteridade como inerente ao próprio ato. Ou seja, a ação de

Deus como sujeito do ato criativo traduz na realidade a presença do transcendente,

pois o faz presente na relação com a criatura. Por isso, podemos falar que essa

perspectiva cria um processo de abertura, de superação do círculo vicioso

concebido na tautologia presente no pensamento grego. Essa possibilidade de falar

do transcendente presente na imanência torna-se, para Gesché, uma referência

para compreender a liberdade no âmago do ser humano, ou seja, uma liberdade

que ultrapassa o simples ato de escolher. Torna-se, nas palavras do autor, um

“direito ontológico.” 28 Representa para o ser humano a responsabilidade de

assumir o seu destino, tomar para si a responsabilidade histórica de sua vida, de

27 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 59. 28 Ibid., p. 61.

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suas opções fundamentais, que ultrapassam a própria história. Nessa perspectiva, a

fé é colocada como resultado da resposta que o ser humano dá a Deus, tornando-a

uma opção fundamental de vida, um ato de liberdade-responsabilidade. O

próximo tema abordará a fé como resposta livre e de pertença a essa adesão do

Homem à revelação de Deus. Portanto, teremos oportunidade de ampliar essa

temática, tão importante como pressuposto na concepção de ser humano para

Gesché.

O que nos interessa muito, nesse momento, é compreender a liberdade na

essência ontológica, pois, assim, poderemos reconhecer na alteridade uma

exigência que é própria da liberdade. Por isso, Gesché insiste na presença de um

terceiro para a plena realização do uso da liberdade.

“A afirmação de um Terceiro, de uma Transcendência, de uma alteridade, longe de aviltar a liberdade, a anuncia significando que diante dela o ser humano tem direito e poder de decisão e de liberdade pelo fato de ser capaz de prestar conta, o que não se pode fazer no círculo fechado da imanência.” 29

É na relação com o outro, quando se vê diante do outro, que o ser humano

é capaz de assumir seus atos, tornando-o responsável diante desse outro diferente

que o interpela a sair de si e a superar o círculo da repetição presente na realidade

não criativa. É dentro dessa dinâmica da liberdade que o ser humano é

compreendido como um ser criativo, criado-criador, capaz de acolher a realidade,

transformado-a criativamente. Somente na permissão dessa alteridade, no interior

do processo criativo, é que a liberdade é construída. Poderíamos, então, afirmar, a

partir do pensamento de Gesché, que o ser humano, quando reduzido a si mesmo,

à sua imanência, está anulando sua condição de Homem livre. Parece paradoxal,

diante de um mundo regido pela racionalidade científica. Porém, na perspectiva

do autor, a liberdade não representa meramente atos de escolhas, mas uma

autorização que se constrói diante de uma relação da alteridade de um terceiro, o

Transcendente. Não seria, portanto, contraditório afirmar que a imanência sem a

transcendência enfraquece e anula o ser humano na sua condição de criador. Pelo

contrário, a transcendência fortalece e liberta o Homem de suas fraquezas e

pecados. Gesché associa essa reflexão à narrativa bíblica sobre a criação: “não é

bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). Desta forma, defere toda sua reflexão

antropológica à criação de Deus, consolidando sua proposta de compreender o ser

29 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 61.

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29

humano a partir da concepção de Deus. O Homem, na vertente judaico-cristã, é

um Homem criado para a liberdade, uma liberdade recebida como dom, não

podendo ser abordada como usurpação ou alienação.30 Para Gesché, a liberdade

pertence à natureza do ser humano, entendendo que se encontra inscrita desde sua

iniciação, ou seja, de sua criação. Por isso, podemos compreendê-la como dom,

chamado a desenvolver como continuidade de sua existência criativa.

Gesché inclui na representação do paradigma judaico-cristão a dimensão

da lógica da criação, que vai nos oferecer uma melhor compreensão da liberdade

como algo inerente à condição humana. É intenção do autor revelar, de forma

mais completa, a antropologia que está inserida na leitura judaico-cristão da

narrativa bíblica. A lógica da criação pertence à lógica da ação de Deus, portanto,

à teo-lógica, já apresentada como teo-lógica da criação, em contraposição à lógica

grega. Gesché, para consolidar sua representação da criação, estruturada no

paradigma judaico-cristão, apresentará, também, depois dessa lógica, a da

antropo-lógica. Dessa forma, configura sua visão de ser humano, que procura

demonstrar como um ser que, em constante dinâmica criativa, gera possibilidades

de defender a causa de Deus na luta pela sua própria causa. Ou seja, o direito à sua

liberdade inclui o direito à liberdade de Deus, pois não há distinção entre elas na

realidade existencial do ser humano.

Merece, ainda, uma reflexão mais profunda sobre a articulação que o autor

faz da lógica da criação, utilizando a ação de Deus, a teologia, a criação em si, e a

conseqüência, na antropologia, dessa perspectiva da criação judaico-cristã. Pois é

dessa articulação que sai o que Gesché diz ser preciso “insistir nesse

enraizamento da liberdade no alicerce da criação desde antes da emergência do

ser humano.” 31 . Retomando o que já foi dito, o processo da criação fez da

realidade uma existência criativa, que traz no seu bojo a alteridade como condição

do ato criativo. Foi na relação estabelecida por Deus na criação que o ser humano

pôde reconhecer seu estatuto de Homem livre diante da sua realidade existencial.

O verbo bará, que significa criar, presente na narrativa bíblica da criação, é

trabalhado por Gesché com duas noções muito interessantes, pois complementam

a visão antropológica da revelação de Deus ao Homem: as noções de fazer e

separar. São articuladas pelo autor de forma dinâmica, não podendo ser

30 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 63. 31 Ibid., p. 69.

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30

dissociadas uma da outra. O autor vai especular sobre essa articulação provocando

uma releitura antropológica sobre a liberdade, a alteridade, a verdade, enfim

aqueles pressupostos possíveis de fundamentar sua compreensão do ser humano.

A primeira, concebendo a idéia de que Deus, ao criar, fez, ou seja, separou de sua

própria realidade: “é a apresentação de uma realidade querida inteiramente outra,

diferente, autônoma” 32. A segunda especulação é: se a criação é feita de forma a

ser separada, não existe o precedente que exija repetição: “Nenhum peso de

anterioridade virá onerar a ação do ser humano”33. Terceira: separando-se da

criação, promove a diferenciação. Percebemos, então, que o fazer e separar estão

intimamente ligados e presentes no ato da criação, tornando-os inseparáveis.

Devem ser compreendidos, dessa forma, na dinâmica da alteridade. Podemos,

agora, nos apropriar da afirmação de Gesché em relação à liberdade, representar o

alicerce da criação e conhecer com propriedade o sentido antropológico dado à

liberdade. A diferença, presente na alteridade, foi dada na liberdade do ato da

criação, o que significa compreender que toda criação é subsidiada pela liberdade

e, necessariamente, pela alteridade, o que nos sugere imaginar toda realidade em

movimento, em criação e renovação. “Assim, colocar a alteridade, a diferença

dentro da própria criação é dizer que escolhas são possíveis. É dizer que nem

tudo já está pronto.” 34

A título de maior exemplificação, recorremos à citação que Gesché faz de

Rm 8,19: “A criação espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus.” O

ser humano precisa redescobrir-se na sua humanidade, na potencialidade de seu

ser, que se encontra inserido nessa dinâmica divina da criação. Deus convoca o

Homem a agir, livremente, para realizar sua confirmação humana diante do

criador. Deus espera a intervenção do Homem na sua realidade divina. O autor

quer nos conduzir a essa revelação cristã, do direito inato, desde sempre dado ao

Homem, de falar e defender a existência de Deus a partir da sua própria criação.

Essa realidade desvelada possibilitaria ao Homem compreender a realidade na sua

condição antropológica, ou seja, reconhecer na criação a fonte da liberdade, de

onde ela nasce e se faz, como diz Gesché, o “alicerce” da própria criação. Pois a

realidade seria, então, percebida como inseparável do Homem e, necessariamente,

32 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 65. 33 Ibid., p. 65. 34 Ibid., p. 65.

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31

dependente do ser humano. Essa realidade, que é dada ao Homem e por ele é

criada e recriada, deve ser concebida “como um lugar de liberdade, como um

lugar de criação.”35

Aqui poderíamos fortalecer a importância do diálogo da teologia com a

ciência, como nos sugere o autor. O esforço é defender a presença da teologia

como discurso que tem seu lugar na universalidade dos diferentes logos presentes

na realidade. É reconhecer na teologia que a antropologia, já uma ciência presente,

atuante na criação, torna-se porta aberta para esse diálogo, que traz na sua

especificidade termos próprios, como criação e revelação. Termos que exigem

presença do ser humano, pois não há como revelar se não houver destinatário.

Olhando ao redor da realidade, arriscamos afirmar que o tempo atual favorece

esse diálogo, pois tem sua centralidade no ser humano, que não cessa suas

indagações e desejos por conhecer, integrando, sempre, as novas realidades

surgidas na criação. Voltando ao pensamento de Gesché, lembramos que sinaliza,

após a lógica da criação, a antropo-lógica, que possibilita enxergar no ser humano

o cerne da criação. Aqui nos dá a perspectiva mais completa sobre a sua

compreensão de ser humano. Vimos na compreensão da lógica da criação a

possibilidade de aprofundar a liberdade e a alteridade como alicerces da criação,

portanto inerentes ao Homem. Agora, na antropo-lógica, temos a leitura da

integração do Homem com o cosmo, a criação. Concebendo-o com estatuto de

Homem livre, só podemos compreender esse ser humano, integrado e criador, em

relação às diferentes direções: “ao cosmo, a si mesmo e a Deus.”36

Essa última abordagem, que totaliza a relação do Homem com a criação,

ressaltando a antropologia, nos oferece uma leitura abrangente e mais completa da

visão de ser humano que o autor nos oferece como possibilidade de repensar a

teologia no diálogo com o mundo atual. Tem como ponto de partida o cosmo

nessa relação estabelecida livremente por Deus. Aprende, na relação, a ser livre e,

sendo livre, percebe que pode ser ao construir seu universo, ou seja, sua realidade

histórica. E então Gesche vai mais longe e articula seu pensamento com a idéia

fontal da narrativa bíblica, sobre a tradução do verbo bará: “O princípio da

diferenciação é um princípio da liberdade”37. Foi na perspectiva judaico-cristã

35 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 69. 36 Ibid., p. 71. 37 Ibid., p. 82.

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32

que o ser humano se viu diante do outro, do Criador, que o fez separado, por isso,

na alteridade, também na liberdade criativa, potencialmente capaz de re-unir os

elementos criados na realidade que Deus fez existir. Assim podemos resumir a

compreensão desses pressupostos que nascem na íntima existência de Deus com o

ser humano.

“Ele é criado criador, pois o próprio princípio que preside a sua instauração no ser o quer assim e o coloca aí como em sua própria vocação e definição. Ele é liberdade criadora e inventiva por direito de nascimento e de essência. Por constituição. Por vontade – e é o sentido da palavra Deus aqui pronunciada –, que assim institui e o coloca no mundo.” 38

Acreditamos que a perspectiva trabalhada por Gesché nos possibilitou

levantar alguns pressupostos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.

Até aqui nos limitamos a esse propósito, de elencá-los para desenvolvê-los no

capítulo seguinte, reconhecendo que ainda terão cada um, assim como outros, seu

espaço próprio na estrutura do texto sobre o ser humano. Sempre na perspectiva

de Adolphe Gesché.

Agora, temos como propósito, após destacar a centralidade antropológica

como pressuposto fundamental na compreensão da fé teologal, desenvolver essa

fé como resultado da realidade apresentada na perspectiva da tradição judaico-

cristã. É o que faremos.

1.4

A fé como resultado de uma realidade.

Reconhecemos nos termos criação e revelação a liberdade como ato

primeiro da ação criadora de Deus. A tradição judaico-cristã legitima a presença

da antropologia como fundamento do ato da criação divina, pois compreende que

Deus age como sujeito na criação, ou seja, gerando a existência da liberdade,

elemento essencial em qualquer ação realizável. Deus sustentou sua liberdade na

criação, em especial na criação do Homem, concedendo-lhe a sua própria

liberdade. Também nos concedeu a necessidade da alteridade no exercício da

liberdade. A liberdade e a alteridade são pressupostos fundantes da narrativa

38 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 88.

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judaico-cristã da criação. Justificam a condição antropológica da tradição judaico-

cristã.

A criação criativa, já desenvolvida por Gesché como movimento

dinâmico da criação do mundo na tradição judaico-cristã, é destinada ao ser

humano como plano da realização salvífica de Deus para o mundo criado. Assim,

podemos entender a liberdade como dom, possibilidade de aceitação ou rejeição

de Deus por parte do Homem, pois ele, ao assumir a criatividade da criação,

assumiu a dinamicidade da sua história na transformação da realidade vivida.

Nessa perspectiva, Gesché fala da realidade criada e transformada, uma realidade

que o cristianismo tornou possível na defesa de Deus: a transcendência presente

na imanência desfatalizou o Homem em sua história pessoal e cultural. A

realidade foi criada na ação primeira de Deus, quando criou o céu e a terra, e

recriada na realização histórica de sua presença humana, no evento da Encarnação.

A revelação cristã desfatalizou a nossa história e criou condições para a teologia

dialogar com os diferentes logos legitimados pela ciência da razão, assim como

possibilitou ao Homem construir uma identidade cristã, fundamental para a

consolidação do diálogo com as ciências. Neste sentido, podemos entender a

dimensão da fé como realidade concreta na construção desse diálogo entre as

ciências e a própria identidade cristã.

“O ser humano traz em si um mapa do céu, cujas jeiras o Logos-Verbo de Deus mediu: in principio, ‘como agrimensor’. Deus abriu e cobriu esse mapa. E o ser humano aí se reconhece, porque ao propor nele as rotas, seu Deus, ele mesmo, para o provar, as percorreu.”39

A citação nos introduz nessa nova realidade de íntima relação entre o ser

humano e Deus, estabelecida no momento de seu nascimento, criação única de

Deus para cada ser humano. Uma relação de alteridade que lhe foi dada no ato da

criação. Neste ato já se encontra toda possibilidade do Homem reconhecer as rotas

de sua direção. Ao se interrogar sobre sua própria vida, buscando confirmar sua

existência e seu reconhecimento no mundo, o ser humano possibilitou a revelação

da existência de Deus. Na verdade, a realidade passa a ser uma busca pela

resposta de um sentido que o ser humano procura dar à sua vida. Essa dimensão se

torna cada vez mais perceptível ao Homem quando ele permite vivenciar, com

profundidade, sua relação com o outro. Mas não basta. O outro deve despertar a

39 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 110.

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34

necessidade de um Terceiro, que lhe dê a razão última do sentido de sua vida.

Sabemos que ninguém, por mais que ame o outro, não esgota sua razão de vida

nesse outro. O ser humano, então, ao se permitir viver intensamente a relação com

o outro, estará construindo sua liberdade existencial e, dessa forma, criando

condições de se colocar na direção do Transcendente, o Terceiro da relação entre

os Homens. A alteridade torna-se, portanto, elemento constitutivo da existência

do Homem. 40

Toda alteridade corre o risco de se perder na redução ao outro, ou seja,

quando o outro é visto como espelho do próprio sujeito, ou quando o outro não

tem a preocupação em se abrir, fazendo com que a relação seja limitada e fechada

nela mesma. Neste caso, o ser humano perde a possibilidade de acesso ao Terceiro,

que lhe cria as condições para o crescimento humano. Mas durante sua incessante

busca em compreender-se e na formação de sua identidade, o Homem foi além de

sua própria imagem: buscou, de forma mais completa, compreender-se em relação

ao mais alto de si mesmo. Gesché faz, a partir dessa reflexão, a construção de sua

abordagem sobre a identidade do ser humano. É a busca incessante do ser humano

em se reconhecer que permitiu que fosse invertida a apologética, inversão esta

exigida pela modernidade, a de provar a existência de Deus. Agora, não seria mais

preciso reunir provas para Deus, pois o Homem, na busca de compreender seu

enigma, de entender-se diante dos desafios, compreendeu que sua identidade

necessitaria de confirmações, e, por que não, de falar em provas? Para a

construção da identidade precisaria confiar em si e no outro. Uma confiança que

nasce da relação com o próximo, que faz brotar a fé, “a prova de nossa identidade:

essa fé em si mesmo, sem a qual nada é possível” 41 Podemos afirmar

legitimamente que a fé em si mesmo e no outro é ponto de partida para a

descoberta da existência de Deus na história do Homem. A confiança que se

consolida num simples gesto de entrega, acolhimento, de apoio e de confirmação.

Aquele que, como diz Gesché, ultrapassa a questão moral, “que restitui nossa

dimensão ontológica e teologal”42, nos oferecendo uma confortável absolvição

humana.

40 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 95-98. 41 Ibid., p. 95. 42 Ibid., p. 96.

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35

A fé é sinalizada como atitude de escuta e de resposta, tornando-se

elemento constitutivo do ser humano na medida em que corresponde a um ato de

liberdade diante de Deus, passando a compor uma dimensão dentre outras

existentes na constituição do ser humano. Gesché aborda, concomitantemente,

três elementos para fundamentar a fé como construção do Homem e defesa de sua

afirmação no mundo atual: a construção da identidade que o Homem busca

encontrar, a proposta de Deus e a resposta do Homem.

Afirmamos, anteriormente, que o próximo deve desencadear a necessidade

de um Terceiro, aquele que ultrapassa minha presença visível diante de mim

mesmo e do outro. Aquele a quem o Homem dirige um olhar para o mais alto e se

indaga. O ser humano foi feito para o diálogo, traz consigo a matriz da alteridade.

Recordando o exemplo de Nicodemos (Jo 3, 1-21), lembrado pelo autor, que

diante do Senhor procurou compreender sua existência de fé, o ser humano indaga

se é ouvido por Deus e cuidado por Ele. O Homem pede confirmação de sua

existência. Aqui, Gesché sustenta o convite que Deus faz ao ser humano, de

partilhar o seu amor trinitário. Fomos capacitados por Deus para amá-lo e desejá-

lo. É simples para o cristão que vive a fé mais explícita compreender que o

Homem foi criado para Deus diante da aceitação do batismo, onde é mergulhado

na vida de Cristo e convidado a partilhar a divindade com Cristo. Por Ele e com

Ele torna-se co-herdeiro de sua divindade, convite concreto de Deus para o

Homem. A salvação, portanto, se faz realidade ontológica, ou seja, intrínseca à

condição humana. Deus oferece uma destinação para o Homem: o seu infinito

amor, o amor divino. A radicalização da sua proposta se deu no evento da

Encarnação: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), confirmada

na revelação de Deus o amor visibilizado na pessoa do Filho, “Ninguém jamais

viu Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” (Jo,1,18).

Deus “mapeou” as rotas que propôs ao Homem percorrer e, para confirmá-lo,

realizou o caminho em direção a Deus. Ele mesmo, na condição humana, trilhou o

caminho que demarcou para os Homens, concretizando sua proposta, feita na

criação: partilhar o seu amor pessoalmente conduzindo o ser humano à plenitude

da ressurreição.

A tentativa dessa reflexão não é apenas convencer com palavras que o

Homem é capaz de Deus, mas indagar se as palavras que convergem, no

Evangelho, para afirmar essa capacitação, são verdadeiramente cridas. Não basta

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36

apenas compreendê-las e reconhecê-las como autênticas, como revelação de Deus.

É necessário acreditar, crer no Deus que nos fez porque nos deseja, acreditar na

sua criação humano-divina. Fez-nos à sua semelhança quando, ao se revelar,

abriu-se ao diálogo com o Homem, moldando-nos à sua forma de nos conceber.

Isso é algo de muita profundidade e intensidade. Deus deu o primeiro passo

provocando o diálogo e configurando-o à sua iniciativa, pois emitiu uma imagem

do ser humano ao convidá-lo para essa parceria compartilhada, assim como

fazemos ao propor ao próximo uma aproximação, uma convivência mais íntima

que pode resultar em uma grande amizade ou mesmo em um projeto comum de

vida. A relação vai sendo moldada de acordo com as realizações dos Homens. Isso

porque acreditamos e confiamos no outro, porque descobrimos no amor do outro

o nosso próprio amor, um amor que se realiza no ato amoroso, na aceitação de si

mesmo e do próximo. É esse o convite que Deus nos faz, o de conviver e partilhar

o seu projeto de vida criado: o desejo e o amor na realização humana. Nas

palavras de Gesché: “porque sou amado, não tenho mais o direito de não me

amar, nem de não mais amar os outros, por mais duro e difícil que isso seja...” 43.

Esse é o sentido cristão do amor de Deus. Essa é a sua proposta: a destinação do

homem à radicalidade do seu amor. À medida que o amor entre os Homens é

descoberto como humanização, o ser humano ascende na direção de sua

destinação, sentido último de sua felicidade: Deus.

“Deus proclama que, quem quer que eu seja, ninguém (até mesmo eu) pode me atingir, porque sou à sua imagem e semelhança. Esteja eu vestido com roupa de reis ou com farrapos dos últimos e miseráveis. Talvez esse seja o único verdadeiro tabu da Escritura: ‘A vocês eu entrego tudo...Entretanto...vou pedir contas da vida do seu irmão” (Gn 9,3.5)”44

Nesse momento é necessário precisar a resposta do Homem ao convite de

Deus. Sabemos que a modernidade explicitou a possibilidade da rejeição como

resposta à proposta de Deus, como diz Gesché “essa época é, sobretudo, a

suspeita que deu forma a esse mal-estar.”45 A dúvida da anulação do ser humano

diante de Deus. Seria possível ao Homem reconhecer em Deus sua liberdade? De

que maneira, se Deus poderia retirar do Homem sua liberdade de, inclusive, não

aceitá-lo como opção de vida? Seria o ser humano, como afirmava a religião,

punido pela sua não aceitação. Porém, o autor não se preocupa em desenvolver 43 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 105. 44 Ibid., p. 105. 45 Ibid., p. 111.

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respostas a essas rejeições. A sua preocupação é sinalizar que, assim como há um

movimento de rejeição, há também um de aceitação. Não há porque imaginar um

único movimento, muito menos movimentos de exclusão. Essa leitura traria uma

contradição à criação do mundo na perspectiva da tradição judaico-cristã, que

fundou uma antropologia de destinação, evidenciando elementos próprios dessa

ciência, como liberdade e alteridade. Mais. O cristianismo revelou a

desfatalização do Homem diante da história. Por isso, não há como conceber um

único movimento do ser humano, que recebeu de Deus a liberdade como realidade

concreta, de desenvolver sua existência. A liberdade dá as condições de aceitar a

rejeição como possibilidade. Isso pertence ao amor de Deus pela sua criação. O

Homem, ao consentir a ação de Deus na sua vida, faz da fé uma atitude

mobilizadora em defesa de Deus e do Homem, construindo a identidade cristã.46

Gesché vai utilizar o termo “visitação” para explorar esse consentimento

que o ser humano é capaz de dar à presença reveladora de Deus na sua vida.

Aquele movimento que atrai e fascina, provocando no Homem a grandeza de se

sentir vivo e pleno diante de Deus.

“E, paradoxalmente, não seriam os crentes que têm uma concepção elevadíssima do ser humano? Da parte deles, então, esse ‘espanto incrédulo’ (o de Tomé), essa ‘suspeita às avessas’ é prova de que o espanto ‘passou pelo fogo’ (cf 1Pd 1,7) e, que desta vez, leva a responder positivamente a Deus. E essa resposta, desde que não tenha querido ignorar a objeção, é uma resposta que eleva o ser humano.”47

No desenvolvimento de seu pensamento, o autor indica que é no outro que

o ser humano atesta sua existência. É na alteridade que o ser humano encontra a

sua identidade confirmada, com a possibilidade de refazê-la constantemente

diante das novas relações vivenciadas. O texto citado acima nos confirma que o

ser humano precisa do outro nessa auto-descoberta. Uma necessidade movida pelo

desejo, pois sem ele o Homem se esvazia e se isola do que lhe é fundamental na

sua vida, reconhecer-se como ser humano na relação com o outro, com o mundo e

com o Transcendente. O ser humano provavelmente não sobreviveria isolado, é

um ser criado para a alteridade. Ao se desvelar diante do outro, o Homem se sente

invadido pelo desejo de permanecer no outro. Ou seja, como o autor aborda, o ser

humano se sente visitado, “na qual ele se encontra a si mesmo, não sendo pura

ação, mas sendo também recepção, ser ao qual advém alguma coisa: o ser-

46 GESCHÉ, A., O Ser Humano, pp. 113-115. 47 Ibid., p. 114.

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visitado.”48 Dessa forma, podemos aludir à tradição cristã como expressão dessa

realidade que o Homem necessita. A tradição judaica sinalizou, na narrativa do

Gênesis, essa integração do Homem com o seu criador e o cristianismo explicitou,

em Jesus Cristo, o convite do Pai ao ser humano para realizar sua participação no

projeto de salvação, concretizando a visitação do mistério na realidade histórica

do Homem. Esse desejo que mobiliza o ser humano pelo outro, que desencadeia a

realização do amor, faz o Homem construir e consolidar sua identidade. O

contrário, o seu distanciamento do outro, reduzindo-o a si mesmo, faz desse

Homem um ser sem identidade. É na relação com o outro que a confiança é

estabelecida como fundante da permanente relação de troca entre os Homens. É

nessa relação que o ser humano percebe que a sensação experimentada na relação

com o próximo vem de algo maior, que escapa à sua própria imanência, de algo

que nos faz sentir desejosos por uma realização maior, de algo que nos atrai para o

outro além dele mesmo, que conduz a um infinito alcançável pela finitude que se

anuncia infinita de desejos e realizações.49

Podemos, agora, compreender melhor o sentido da fé na realidade do

Homem. Da confiança humana, nascida entre os Homens ao se relacionarem,

nasce a fé em algo além do próprio ser humano. Gesché defende a fé como

afirmação da existência do ser humano, a partir dessa realidade da confiança

estabelecida entre os Homens. Se entendermos que o Homem recebeu o dom da

liberdade como ato originário da sua criação, podemos, como diz o autor, “falar

da fé que Deus tem em nós” 50 . O Homem, ao receber de Deus, na sua criação, a

alteridade como elemento essencial na realização de sua liberdade, recebeu

também a confiança de Deus na sua existência humana. Assim como Deus é o

primeiro a convidar o ser humano para o diálogo, é também o primeiro a

manifestar a fé no Homem. Isso tem, no cristianismo, uma particularidade

singular: Deus confia no ser humano independentemente de sua condição pessoal.

Isso significa que o Homem é visitado por Deus, que o possibilita descobrir o

fascínio das alturas, que o faz romper com suas limitações e medos condicionados

pela finitude da história humana. O ser humano é capaz de se libertar de tudo o

que lhe aprisiona na sua tentativa de realização. Por isso, podemos defender que o

48 GESCHÉ, A., O Ser Humano, p. 115. 49 Ibid., p. 117 passim. 50 Ibid., p. 118.

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ser humano foi criado para construir sua liberdade. É na realização de sua

existência humana que a liberdade é construída, pois ao responder ao desejo por

Deus cria as condições para a ação de Deus na sua vida, o que significa

concretizar a fé como atitude livre diante desse Deus revelador da consciência

humana.

A fé representa, portanto, um exercício de liberdade do ser humano. Assim

como os não crentes defendem, em nome de uma liberdade não cristã, a ausência

da resposta, Gesché sustenta sua compreensão de ser humano incluindo a fé como

uma das dimensões constitutivas do ser humano. Inclusive, é diante dos que não

crêem que pode afirmar a sua crença em Deus. Aqui Gesché se utiliza de uma

convicção pessoal sobre sua fé para estender aos leitores a possibilidade de uma

reflexão útil a respeito de todos os que afirmam crer em Deus. Dando

continuidade às suas avaliações pessoais, levanta outras possibilidades que

poderiam se tornar verdadeiras se não fossem de leituras mais superficiais.

Destaca o fato de se nascer em ambientes e lares cristãos. Certamente, como

afirma, todo ambiente em que o ser humano se encontra torna-se parte de sua

condição, afinal o ser humano é um ser de cultura e, como tal, mergulhado em

tradições. “Trata-se das condições de nossa identidade e de nossa liberdade; o

homem ser cultural, é um ser que é nascido”.51 Mas isso não basta para que o

Homem se torne um cristão. A fé tem um significado muito mais profundo. A fé

se encontra no exercício da liberdade, o que representa, para a tradição cristã, uma

construção do ser humano, com toda a presença da cultura desse Homem. É na

realização dos atos da fé que o Homem conforma sua identidade Àquele que se

revelou como paradigma de sua fé, Jesus Cristo. É na pessoa de Jesus que Gesché

vai afirmar a fé de todo cristão. Nele, o autor vai defender a radicalidade da

dimensão da fé para o cristão. Toda a sua abordagem sobre o ser humano

desembocará nessa compreensão de fé que o Homem cristão, diante dos outros

não cristãos, deverá assumir como identidade de um novo sujeito de fé. Teremos

oportunidade de desenvolver essa temática no último capítulo desse trabalho,

quando abordaremos a opção da livre adesão pelo Cristo Ressuscitado.

A fé deverá representar na vida do cristão o despertar de um Deus

histórico, “Deus interrogando seu Cristo como homem”.52.Isso nos faz pensar em

51 GESCHÉ, A., Deus, p.118. 52 Ibid., p. 127.

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toda a condição humana de Jesus. Ou seja, no rosto do outro um encontro humano,

de trocas e de construções. A fé, compreendida como processo de crescimento, de

desvelamento de Deus, que se apresenta de forma humana diante do Homem. A

história possibilita re-descobrir um Deus humano, pois nos faz reconhecer que

teve um tempo e um lugar para sua definitiva revelação. Diz Gesché: por isso

“Deus também precisa de tempo e quer oferecer e dar à minha história a

dimensão de uma presença que se mede” 53 . Nessa perspectiva da revelação

histórica de Deus, a fé torna a realidade favorável ao diálogo entre diferentes

logos, pois desfaz a idéia de um Deus que ocupa um lugar absoluto na vida do fiel.

Na verdade, ocupa, mas não de forma desmedida, pois correria o risco da

instrumentalização de Deus, reduzindo a relação entre o Homem e Deus à imagem

de si próprio, o que permitiria uma relação de posse que não deixa espaço para o

crescimento, mas leva à alienação de si mesmo.

Deus nos criou para que, diante d’Ele, pudéssemos responder com nossa

humanidade, limitada, mas superável na busca de nossas realizações humanas.

Deus é, sim, absoluto, mas diante do Homem cede para que ele possa, em seu

tempo, responder à confiança de Deus.

Diante do sentimento de admiração pela presença de Deus, revelada em

sua vida, o ser humano se vê na obrigação de confiar em si e no outro como

possibilidade de sua própria realização pessoal. Esse movimento revelador de

fascínio e confiança vem primeiro da parte de Deus, manifestado desde a criação

do Homem na liberdade de aceitá-lo ou negá-lo. Portanto, é Graça de Deus. O

segundo movimento vem da parte do Homem, aquele que o conduz em direção ao

projeto de Deus. Gesché resume que a realidade da fé é, antes de tudo, um ato de

confiança de Deus no Homem para, então, se tornar um ato livre do Homem de

consentimento da presença de Deus em sua vida. O ser humano descobre a

confiança depositada por Deus na sua pessoa a partir da confiança em si e no

outro. Portanto, não seria impróprio afirmar que a resposta a Deus exige confiança

em si mesmo de forma evidenciada, para que se transborde em confiança no

próximo. A realidade manifestada pela fé é prenha de realizações transformadoras.

Traz no seu bojo a ação salvífica de Deus, a realização do projeto de salvação do

ser humano. 54

53 Ibid., p. 130. 54 Ibid., pp. 119-121.

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2 A CONDIÇÃO HUMANA

2.1 Introdução

Faremos, iniciando este novo capítulo, uma pequena introdução para

reconduzir o leitor à centralidade do tema desenvolvido até aqui. Muitas são as

questões levantadas e especuladas por Gesché, em especial sobre as que são a

razão do nosso trabalho: o ser humano em sua relação com Deus.

Percorremos o capítulo anterior procurando conceituar a compreensão de

Gesché sobre o ser humano, sempre na perspectiva do homem cristão. Interessa-

nos reconhecer, hoje, a legitimidade do ser cristão. Isso o autor desenvolve com

muita propriedade: na defesa do Homem, o reconhecimento de Deus e, desta

forma, a possibilidade de se proclamar cristão. Podemos defender sem receios,

atualmente, o espaço da teologia no diálogo entre as ciências ditas racionais. É

justamente nesse âmbito que o trabalho veio sendo desenvolvido.

Primeiramente, procuramos levantar aspectos antropológicos e teológicos

que fundamentassem a presença de elementos antropológicos na criação.

Realizado isso, reconhecemos a antropologia como ciência indispensável para

abordagem teológica. Gesché vai expressar sua reflexão a partir de uma teologia

antropológica, invertendo os termos como forma de evidenciar na teologia a

necessária atuação da antropologia. É dentro dessa perspectiva que o autor destaca

o elemento da liberdade como fundante do ato da criação de Deus na tradição

judaico-cristã. Associada ao elemento da liberdade, Gesché aprofunda a alteridade

como outro elemento essencial na compreensão da dinâmica da criação, que

possibilita uma realidade integrada ao transcendente, a partir da imanência da

história, que foi desfatalizada com essa ação de Deus na criação. Outros

elementos também foram destacados, como a destinação, que trouxe, juntamente

com a liberdade, a discussão do sentido existencial do ser humano, e a salvação,

intimamente ligada à compreensão da liberdade cristã e o mal, como atributo não

constitutivo do ser humano. Na verdade, este tema se destaca não só pela

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atualidade antropológica, como também pela direta relação com o tema da

responsabilidade, que se encontra associado de forma imediata ao da liberdade.

Por fim apresentamos a fé como uma realidade possível de ser criada. Foi

discutida, a partir da compreensão da liberdade, da responsabilidade e da

alteridade, a fé como elemento fundamental na construção da confiança entre os

Homens. Ela foi dada como atitude imprescindível do uso da liberdade humana,

uma liberdade compreendida na dimensão existencial do ser humano. Isso

significa que a liberdade foi pensada para além da imanência, ou seja, uma

liberdade transcendental, que dá um sentido diferente à vida do ser humano.

Aqui precisamos nos deter em uma explicação para seguir os passos

propostos neste capítulo. Gesché se preocupa em explicitar o conceito de sentido,

pois, muitas vezes, nos apropriamos do termo como última realidade atingida em

Deus. Como diz o autor, “não vamos fazer de Deus o funcionário do sentido.

Como se ele fosse sua última e única chave” 55 O autor não atribui ao sentido uma

condição de submissão a Deus. Isso nos faz entender que o sentido tem suas

condições próprias, independentes de atribuições, assim como Deus independe

dele, em si, caso contrário poderia ser visto como reduzido ao sentido, sendo

equivalente ao sentido56. Na verdade, Gesché deseja aprofundar a idéia de que

Deus não se reduz a nada, nem ao sentido, caso contrário Deus teria um papel

funcional, mesmo que a teologia contribua para conceituar o sentido, dando

sentido à experiência sensível.

O autor afirma que o sentido é um lugar que precisa ser vivido, portanto,

“ele é vivido onde é vivido. Não pede outra justificação”57. Gesché vai chamar de

“lugares do sentido” alguns daqueles temas desenvolvidos, tais como liberdade,

alteridade e destinação. Inclui também uma abordagem que faz sobre o imaginário

para completar sua compreensão sobre o ser humano da fé. Evoca a necessidade

de, a partir desses elementos, deixar que o sentido apareça como sentido em si

mesmo, ou seja, que possa ser anunciado. É dessa forma que o autor propõe

trabalhar a liberdade, a alteridade e a destinação como elementos trazidos pela

55 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 5. 56 Ibid., p. 5. 57 Ibid., p. 6.

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teologia, que podem contribuir para os diferentes caminhos que conduzem a

manifestação do sentido. Ou seja, reconhecer para cada um seu lugar existencial.58

Dentro dessa perspectiva, o sentido é trabalhado como cenário de

diferentes lugares possíveis de serem vividos. Portanto, não o destacamos como o

fizemos com os outros temas. Ele terá seu lugar em cada elemento trazido pela

teologia na elucidação do sentido. Representará, a partir das reflexões de Gesché,

uma compreensão de onde se manifesta e não como uma condição a priori, ou

seja, já determinada, à espera de ser alcançada. Essa apresentação de Gesché traz

uma reflexão profunda que completa a compreensão do tema da liberdade, que

trataremos a seguir. Faz-nos consolidar a idéia de que a liberdade tem um

movimento processual, de construção individual e coletiva, pois o sentido não está

dado de forma acabada, para ser alcançado como meta final. Mas, atualizado

permanentemente diante das circunstâncias cotidianas.

Seguiremos, então, a partir de Gesché, nossa proposta de desenvolver e

aprofundar os elementos da condição humana, dando-lhes o sentido próprio em

cada um desses lugares que o Homem deve ocupar em desenvolver para o

exercício de sua existência humana e de Homem de fé.

2.2

A Liberdade

“Eu sou quem sou” (Ex 3,14)

A citação nos remete à narrativa do Êxodo, onde Deus se apresenta a

Moisés. Uma apresentação que dá condição de entender a ausência de uma

anterioridade. Deus é princípio, fez existir, como a tradição judaico-cristã afirma.

É a partir dessa afirmação, onde Deus se faz conhecer em sua identidade, como

veremos adiante, que o tema da liberdade vai ser aprofundado por Gesché.

Logo de início, Gesché vai diferenciar o desenvolvimento do tema da

liberdade entre aqueles que puderam pensar sobre sua compreensão, os não

cristãos e os cristãos. Assim como o fez quando abordou o tema da criação, tanto 58 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 5-14.

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na perspectiva grega, como na tradição judaico-cristã, trabalhada no capítulo

anterior. É contrapondo uma concepção à outra que Gesché vai defendendo e

esclarecendo a perspectiva do Homem de fé. O autor, neste caso, também vai

contrapor este pensar sobre a liberdade entre a teologia e as outras áreas que

contribuíram para este debate.

O autor percorre, de forma muito breve, o trajeto da liberdade ao longo da

história. Três grandes figuras são destacadas pelo autor como momentos em que a

história foi favorável ao desenvolvimento do pensamento sobre a liberdade. Num

primeiro enfoque, a liberdade é vista como conquista. Vem identificada com o

pensamento dos gregos, que pensaram uma liberdade moral e política; com a

modernidade, que enfatizava a liberdade da consciência e da razão; com o século

XIX, que desenvolveu uma liberdade individual e econômica; e com o século XX,

que aprofundou uma liberdade social e da interioridade do sujeito. A segunda

imagem, que o autor chama de liberdade como essência, um pensamento presente

nas filosofias clássicas. A liberdade pertence ao ser humano, este não precisaria

conquistá-la, pois já é algo que pertence à sua própria essência. A terceira

perspectiva refere-se à liberdade dada como existência59 A filosofia existencialista

desenvolveu essa compreensão, principalmente a partir de Sartre. A existência,

nesta compreensão, se sobrepõe ao indivíduo. O existencialismo defende que a

liberdade é anterior ao indivíduo. Portanto, já se encontra presente na realidade

que deverá ser vivida pelo sujeito, que é local privilegiado para o Homem

desenvolver sua liberdade. “O ser humano deve conquistar sua essência existindo,

ele deve fazer sua liberdade”.60

Em contraposição, a partir da tradição judaico-cristã, Gesché desenvolve o

tema da liberdade pensada pelos cristãos na intenção de afirmar a liberdade como

criação. As representações não-cristãs da liberdade, sistematizadas por Gesché,

não excluem a abordagem sobre a liberdade que os cristãos desenvolveram, pois o

autor defende o lugar da teologia como uma ciência desenvolvida na história da

humanidade. Na verdade, nenhuma abordagem é excluída necessariamente. A

perspectiva da liberdade cristã nos remete àquela primeira compreensão da

criação: no princípio Deus criou o céu e a terra. Essa será nossa fundamentação.

Falamos a partir da fé, da compreensão de que a base da realidade é Deus.

59 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 16 passim. 60 Ibid., p. 16.

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Reconhecemos, portanto, que a narrativa da Sagrada Escritura sobre a origem do

mundo nos dá subsídios para compreender a liberdade como criação. Foi lá que a

teologia encontrou suporte para legitimar a antropologia como ciência presente na

revelação de Deus. Essa reflexão, já desenvolvida anteriormente, nos ajudará a

mergulhar mais profundamente no tema.

Como é uma realidade que considera Deus presente como fundamento,

partiremos, então, desta compreensão: a liberdade é dada na criação. Não de

forma extrínseca, mas intrínseca à própria criação. Ou seja, o ser humano, ao ser

criado por Deus, já o é de forma livre. Gesché desenvolve esse dado específico da

liberdade como criação a partir de algumas referências que ajudam a consolidar e

legitimar o fundamento dessa concepção.

O fato de ser criado subtrai do ser humano a possibilidade de que tenha

arrancado de algo sua liberdade para que existisse. Dessa forma, aquela primeira

idéia levantada por Gesché sobre a conquista ficaria, aqui, superada. Uma segunda

referência seria mais complexa: Deus, ao criar, dá as possibilidades para que o

Homem continue a criar, fazendo-o criador criativo de uma realidade iniciada por

Ele. E, ao criar o Homem, o criou à sua imagem e semelhança, portanto, emitindo

a imagem que tem de ser humano. E o Homem, ao voltar-se para Deus, dialogará

formando essa imagem em semelhança. O que significa afirmar, como atesta

Gesché, que “o ser humano nasceu imagem (é o ato de Deus), deve tornar-se

semelhança (é o ato do ser humano).” 61 Isso nos faz perceber que a criação tem a

dinâmica de um movimento de construção, de que nada está acabado e pronto. É

dada ao Homem a tarefa de colaborar na criação não acabada. Gesché vai atribuir

a essa liberdade uma referência de vocação, ou seja, o ser humano é chamado à

sua vocação humana. É a liberdade que deve ser construída na história do Homem.

A vocação, portanto, é entendida como desenvolvimento da condição de Homem,

de ser humano. Aqui incluímos uma outra referência, bem próxima à da vocação:

o ser humano criado criador. Uma idéia já bastante desenvolvida em tópicos

anteriores, mas importante destacar, pois é estruturante da idéia de liberdade

criada. A liberdade, neste aspecto, associada à idéia da vocação, assume a plena

realidade de se tornar responsável pela construção da história pessoal e coletiva do

sujeito que está atuando. Mais uma vez, voltamos à origem da criação como

61 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 18.

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desfatalização do ser humano, pois coloca o Homem dentro da dinâmica da re-

criação, da transformação de sua realidade. O ser humano torna-se responsável,

diante de sua liberdade, pela vida criada. Seria bastante pertinente afirmar que o

ser humano é, diante de Deus, um ser muito valioso, pois é tomado por Deus em

toda sua realidade, ou seja, em toda sua existência. 62

Outra referência destacada, que vem ao encontro das anteriores,

completando a percepção dinamizadora da criação, é o fato do ser humano, ao

assumir sua vocação de construir sua liberdade, assumir, também, a construção do

Reino. Ou seja, assume a construção do projeto de salvação de Deus para o

Homem, o desígnio de Deus. Na verdade, a consciência dessa vocação vem

quando o Homem responde ao convite de Deus, saindo de si em direção ao

próximo. Na confiança das relações humanas, estabelecidas no cotidiano da vida,

o Homem encontra a presença reveladora de Deus. É na alteridade, na relação

com o outro, que Deus emerge diante do Homem. Lá, na criação, quando fez

existir, concedeu a alteridade ao Homem para que pudesse se comunicar e, assim,

chegar até Deus de novo. Voltamos à afirmação de que o ser humano constrói a

liberdade na criação de sua existência, mas com a presença inevitável da

alteridade, que possibilita o sair de si em direção ao Transcendente. O ser humano

é o único ser capaz de superações, de reunir na sua finitude o infinito, numa

permanente auto-superação. Por fim, Gesché destaca um aspecto que considera

mais complexo: da liberdade acidentada. Uma liberdade que precisaria ser

reconquistada porque foi perdida posteriormente à criação.63 Neste caso caberia a

idéia da liberdade conquistada, porque poderia representar uma libertação ou uma

conquista de algo perdido. Estaríamos, aqui, falando do mal, que não se encontra

na essência das coisas, muito menos que possua alguma anterioridade, mas algo

que provenha da própria história. Assim dito, pode ser combatido justamente em

qualquer situação que prejudique a imagem e dignidade do Homem. O mal é

concedido como contrário à vocação humana, ou seja, desfigura e escraviza o ser

humano com falsos valores, que conduzem ao isolamento e ao individualismo.

Gesché lembra São Paulo na Carta aos Gálatas: “é para a liberdade que Cristo

vos libertou” (Gl 5,1). Torna-se uma proclamação à libertação de tudo que reduz e

62 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 18-20. 63 Ibid., p. 19.

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aprisiona o ser humano. Portanto, livre do pecado o ser humano é convocado a se

libertar de todo o resto, tornando-se livre para Deus.

“Poder-se-ia falar de liberdade incessantemente a ser libertada para mantê-la em seu direito e em seu estado verdadeiros. De liberdade de libertação. O ser humano volta a tornar-se o que é”.64

A partir das referências abordadas por Gesché na consolidação da

compreensão cristã sobre a liberdade, podemos afirmar que a tradição judaico-

cristã inaugurou um lugar para ser revelada a compreensão da liberdade cristã.

Esse é o caminho que o autor propõe. Na verdade, Gesché utiliza-se da religião

para afirmar que ela teria um estatuto próprio que desvelaria essa liberdade cristã

ao mundo do pensamento. Acredita que a religião, por trabalhar com a tradição,

tem uma contribuição importante no desvelamento da liberdade, que deseja ser

compreendida na sua existência humana. Para expressar com mais exatidão esse

desvelamento, o autor se vale de três situações que envolvem a liberdade: a

liberdade que é ampliada na adesão de Deus pelo ser humano, a ética, que envolve

as relações humanas e com Deus, e a liberdade reconquistada, que retoma a

questão do Homem “voltar a ser o que é”, apesar das rupturas causadas pelo mal.

A complexidade do tema exige um aprofundamento para que a dimensão do ser

humano possa ser amplamente conhecida na sua maior significação. 65

Em relação à primeira situação abordada, ela vem responder às

inquietantes indagações que o próprio Homem faz sobre a idéia de que Deus

inibiria a sua liberdade. Ora, já vimos que a tradição judaico-cristã não traz

nenhum elemento que impeça a autonomia do Homem. Pelo contrário, é a sua

liberdade criada que lhe dá condições de se tornar mais livre diante de Deus,

porque existe a possibilidade da escolha e do Homem ser construtor de sua

história. Deus, portanto, não inviabiliza a liberdade do Homem, mas torna-a mais

completa ao criá-la, comprometendo o Homem com a sua própria história. Gesché

nos lembra que a problemática de fundo recai na concepção que se tem de Deus e

do ser humano. Mais que isso, entre os que têm fé e os não crentes. O cristão

entende que Deus, ao criar o Homem em liberdade o criou criador, criativo,

portanto, livre diante de seu próprio criador. Dessa forma, Deus, na concepção

cristã, não pode ser concebido como manipulador, pois deu ao ser humano o pleno

64 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 20. 65 Ibid. Entre as páginas 21 e 34 o autor trabalha as diferentes maneiras de possibilidades da liberdade

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direito de afirmar sua autonomia. Como afirma Gesché, Deus se distanciou para

que essa liberdade humana existisse sem riscos de manipulações.

“Jamais se engrandecerá a Deus, tornando-o grande do modo como nós acreditamos que deva sê-lo – e, de modo muitas vezes bem infantil, projetando em Deus os sonhos de nossa imaginação e negando, assim, o que ele próprio quis ser. A grandeza de Deus está, antes, no dom e na certeza de liberdade que ele nos dá. Longe de toda fusão alienante e destrutiva, é preciso, mesmo diante de Deus, distanciamento para que eu seja eu mesmo. Mais uma vez essa distância está na própria lógica da criação de um ser livre e diferente.” 66

Deus, de modo tênue, discreto e sem violência, se mostra ao Homem de

forma que não ocupe o lugar de controlador, muito menos de violador. Deus

respeita o tempo e as limitações da condição histórica do ser humano, pois sabe

que ele não suportaria uma presença que lhe retirasse possibilidades de escolhas.

Porém, também, o Homem reduzido a si mesmo não se suportaria, pois a total

invisibilidade de Deus conduziria a ausência de alteridade, seria como o próprio

espelho sem reflexo, logo, também sem as possibilidades. Aqui se encontra um

enigma da própria condição do Homem e da sua relação com Deus: algo que nem

sempre se mostra por inteiro, tanto entre os Homens como na relação com Deus

existe um não des-velado. Isso revela, da parte de Deus, um absoluto respeito pela

liberdade do ser humano, mostra-nos um Deus que não quer se fundir no Homem

anulando-o, mas estar diante de si provocando surpresas ao próprio ser humano,

como também na relação com Ele. Diante dessa concepção, a teologia, ao dialogar

com as ciências, reconhece que, dependendo da forma como se apresenta, pode

significar um falseamento antropológico. A teologia que transfigura o ser humano,

falseando sua imagem, é uma teologia que representa um falso deus.67 Ou mesmo,

o Homem, que impede Deus de ser Deus, manipulando-o, colabora para o “erro

teológico que é, antes de tudo, um erro antropológico”.68

A rica contribuição que a teologia vem prestar, ocupando seu lugar à luz

da razão, é colocar diante do ser humano a possibilidade de um futuro diferente,

que transcende sua história finita, transformando-a numa realidade de infinitas

esperanças. Nessa perspectiva, a liberdade é dada como completude, abrange a

totalidade da vida do Homem. A liberdade tem aqui um lugar para ser vivida: o

sentido que pode ter em Deus, o sentido de vivê-la integralmente, repleta de

66 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 22. 67 Ibid., pp. 21-25. 68 Ibid., p. 25.

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significações. O sentido que tem seus diferentes lugares para ser vivido, um deles

a liberdade. Essa é a primeira certeza que a tradição judaico-cristã nos apresenta:

o ser humano diante de Deus não morre, é tomado por uma nova existência, a

possibilidade de construir, na liberdade, uma identidade cristã. Confirmando o que

já dissemos, a identidade cristã deve colaborar para o desvelamento da liberdade

cristã afirmada pela tradição religiosa.

O Homem, na busca de sua confirmação, constrói sua identidade, que tem

valor individual e coletivo, pois é na relação com o outro que é capaz de se

reconhecer e confirmar sua identidade. Podemos, dessa forma, compreender

quando Gesché também apresenta a liberdade cristã desvelada na relação com o

outro, ou seja, na dinâmica da alteridade, a partir da contribuição da religião. Essa

é a segunda abordagem que o autor faz pra mostrar o desvelamento da liberdade

cristã pelo religioso. Neste momento relembra que as partes desenvolvidas

filosoficamente para confirmar e legitimar a teologia que aborda a liberdade como

criação não exclui a presença daquelas interpretações dadas pela filosofia. A fé

cristã pode ter pleno reconhecimento nesse debate sobre a liberdade,

especificamente a liberdade cristã. Gesché vai denominar liberdade ética essa

sustentada pela e na alteridade.

“A fé cristã diz também que a liberdade é conquista quando vê a liberdade como vocação e invenção; ela a vê também como pertencendo à essência do ser humano quando diz que a liberdade se encontra dada no próprio gesto criador, como direito de nascença constitutivo do ser humano; ela vê também como questão da existência quando a vê como acabamento da imagem (dom original) por semelhança (esforço de configuração) e como libertação.” 69

Ou seja, a teologia e a filosofia são simultaneamente colaboradoras no

entendimento da liberdade pensada pelo Homem, mas desejamos que seja, aqui, a

partir de Gesché, afirmada como uma liberdade cristã que tem sua existência na

teologia transcendental. A religião vai desvelar essa liberdade cristã calcada na

certeza de que o ser humano não se encontra reduzido à imanência. Porque é um

ser de alteridade, encontra em Deus o fundamento dessa relação que lhe foi dada,

constitutivamente, na criação. A liberdade cristã, desvelada e desenvolvida na

relação entre os Homens, exige a presença de outro aspecto tratado pela tradição

judaico-cristã, a responsabilidade. Na criação Deus sustenta a liberdade do

Homem, entregando aos seus cuidados a criação para que seja recriada por ele, a

69 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 27.

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idéia do ser humano criado criador presente na tradição judaico-cristã. Podemos,

portanto, conceber a liberdade cristã associada diretamente à responsabilidade

com o outro, com a liberdade do outro. A ética, acentuada pelo autor como uma

situação real de desvelamento da liberdade, encontra sua compreensão absoluta no

profundo respeito pelo próximo, o outro presente na alteridade. O ser humano,

convocado a exercer a sua vocação humana, é chamado à sua liberdade, a

desenvolvê-la em relação ao outro, a assumir diante do outro a responsabilidade

de ser livre, ou seja, de criar possibilidades de respostas ao Transcendente. Essa

condição é atribuída à alteridade transcendente, àquela em que Deus suscita a

capacidade da liberdade desejar o outro, necessitar do outro como condição da

existência do próprio Homem. É a beleza do rosto desse ser humano que se vê

capaz de querer o outro na sua gratuidade, pois vê neste outro o sentido de sua

liberdade. Não há possibilidade de entender essa relação que brota de algo fora do

Homem como uma relação de dependência. Essa relação que vem de Deus, a da

transcendência, se conforma numa alteridade plenamente livre de culpas e de

submissão. Portanto, não seria nenhum absurdo afirmar que a relação com Deus

proporciona uma relação entre os homens mais humana e edificante. Dessa forma,

estar perto de Deus também possibilita ao Homem desenvolver mais sua liberdade

pessoal e coletiva. 70

O sentido, abordado como vontade própria, mais uma vez, é revelado na

atuação de um lugar vivido, a liberdade. É concedido à liberdade cristã, desvelada

pela mediação da religião, o sentido de sua existência. Viver a liberdade cristã na

dimensão ética nos faz compreender com segurança a afirmação de que Deus não

se submete ao sentido, mas que a religião é que deve dar o sentido à presença de

Deus no desvelamento da liberdade cristã. A liberdade cristã possibilita viver a

experiência da gratuidade entre os Homens e Deus. Gesché, para falar dessa

absoluta doação diante do outro, remonta à citação bíblica, “eis-me aqui”, uma

atitude de disponibilidade e de construção do outro, da identidade do outro. Essa é

a alteridade que Deus concedeu ao Homem desenvolver quando, diante dele, se

dispôs para que o ser humano se encontrasse como Homem na sua humanidade,

possibilitando-o construir uma identidade cristã. Alteridade ancorada na liberdade

de Deus para os Homens, realizada na criação, aquela que, na tradição judaico-

70 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 27-34.

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cristã, desfatalizou Homem e a história, que inaugurou a idéia de Deus como

Sujeito, que fez existir uma ação na origem de tudo. Nesse sentido, a liberdade

pode ser pensada como original e combate a idéia de algo extrínseco ao ser

humano, possível de manipulações, sujeita a não ser nem desejada ou

compreendida. É necessário que o sujeito da fé tenha consciência cristã de sua

liberdade para que possa, de forma transparente, desvelar o que é próprio da vida

doada por Deus. Na defesa que Gesché faz da liberdade cristã, afirmamos juntos:

“a liberdade está também no princípio das coisas”,71 por isso deve ser desejada e

amada como condição no reconhecimento de nossa humanidade. O cristão deve

proclamar a ética de Deus inaugurada na criação do mundo, em especial do ser

humano, criado em liberdade para ser um livre criador.

Retornamos à citação inicial desse item para legitimar a liberdade cristã

como fundante do ato da criação de Deus: “eu sou quem sou” (Ex3,14). Aqui se

encontra a síntese do pensamento sobre a liberdade cristã desenvolvida para

defender o discurso sobre o desvelamento da liberdade (cristã) diante dos outros

pensamentos. Gesché vai recorrer à idéia do irracional e do racional para

expressar o Deus da tradição judaico-cristã que, compreendido como Princípio de

tudo, foge à lógica da racionalidade do Homem, de ser fundado. O Deus cristão,

como afirma a tradição, é um Deus que faz existir, ou seja, cria no Princípio,

portanto não é criado, por isso incompreensível à lógica da razão. Nesse sentido,

irracional, uma irracionalidade referente à anterioridade, não há possibilidade de

ser expressado e comunicado, já que no fundamento foi dado a condição de

conhecê-Lo a partir do Homem criado criador, livre na sua existência a partir da

existência de Deus. O Homem é capaz de inaugurar criando, livremente, a criação

recebida. É capaz porque é um ser racional. O irracional tem a sua racionalidade

posterior presente naquele que possibilita afirmar a inauguração, o ser humano. 72

“Ou, para dizer as coisas ainda de outra forma: o irracional é irracional como antequam (não sem anterioridade), mas é racional como postquam (porque funda o racional e, desse ponto de vista, é, pois, eminentemente racional).” 73

Por isso, Deus é também racional, quando, no Homem, inaugurou a

liberdade criativa e a alteridade, dando-lhe a plena condição de se comunicar e

criar e, a partir da imanência, do real e de sua racionalidade, se relacionar com o

71 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 32. 72 Ibid., pp. 35-40. 73 Ibid., p. 40.

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Transcendente, expressando a construção dessa relação na identidade que vai

sendo configurada. Essa perspectiva nos dá todas as condições para compreender

a liberdade na sua existência humana. A liberdade deve ser, portanto,

compreendida como racional, em que o Homem deve ao mesmo tempo construir,

conquistando-a, como desvelar, pois se encontra intrínseca à própria condição de

ser humano, de um já vir-a-ser. O ser humano precisa desenvolver a vocação de

ser livre, descobrir, desvelando sua existência divina, a liberdade cristã. A teologia

quer falar sobre essa liberdade, oferecendo ao cristão o seu espaço na defesa de

sua realidade de fé. A religião, na compreensão de Gesché, é mediadora do

desvelamento da liberdade, colaborando na autêntica imagem do Deus cristão, um

Deus que nos respeita e ama a ponto de nos ter partilhado sua criação, nos fazendo

criadores de sua criação. Se compreendermos, dessa forma, a liberdade fundada

na nossa criação, entendemos que somos chamados a exercê-la com criatividade,

o que significa, um “trabalho de refundação da liberdade”, pois coloca o ser

humano na direção da transformação, da ação inventiva. Nesse sentido, a

liberdade cristã é desenvolvida na compreensão da responsabilidade. É uma

liberdade construída na resposta responsável do Homem diante de sua vida e de

Deus. Diante da sua realidade, o ser humano se coloca disponível para criar a

partir de sua relação com o outro, uma nova possibilidade de existência, ser

cristão. O “eis-me aqui”, narrado na tradição judaico-cristã, representa essa

gratuidade disponível que dá ao Homem a condição de exercer e construir sua

liberdade existencial. 74

Recorrendo ao texto sobre a liberdade fundante: “a criação é acesso à

liberdade, e esta, apelo à criação” 75, podemos concluir essa etapa da reflexão

sobre o ser humano afirmando que necessitamos conhecer e desenvolver outras

condições humanas para conceber que o Homem cristão não pode ficar reduzido a

simples ações de escolhas. A liberdade cristã exige relacionar o elemento da

alteridade como um elo construtor da liberdade responsável. É nessa relação que o

Homem pode ou não construir com integridade sua identidade cristã. Buscaremos,

então, desenvolver o tema da identidade a partir da resposta do ser humano à

convocação de co-participante da criação.

74 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 41-43. Cf. reflexão sobre a racionalidade da liberdade. 75 Ibid., p. 43.

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2.3 A Alteridade

Até o momento procuramos direcionar a atenção para o aspecto fundante

da liberdade no ato da criação de Deus. Havia a necessidade de aprofundar o

elemento da liberdade como construção da identidade cristã. Essa é a preocupação

e a defesa do trabalho: reconhecer a real exigência de dialogar a partir de uma

identidade construída pela tradição cristã. Ou seja, falar da possibilidade de ter

Deus incluído entre outros temas pertinentes ao ser humano. Vimos que para

realização desse caminho é necessário o desvelamento da liberdade cristã, como

revelação da identidade construída na existência do ser humano. Reconhecemos a

ética como uma forte referência no desvelamento da liberdade cristã, pois se

desenvolve, necessariamente, na alteridade. Uma alteridade Transcendental que

possibilita a liberdade existencial do Homem, nascida da relação de Deus diante

da sua criação, em especial do ser humano, criado à Sua imagem. É ter a

possibilidade de reconhecer no outro a condição para minha existência. É a partir

do diálogo estabelecido entre Deus e o Homem, na liberdade desse encontro, que

a alteridade encontrou lugar para dar sentido à sua existência diante da realização

do Homem. Nesse sentido, aquela idéia de dependência em relação a Deus,

sustentada pela racionalidade dos não-cristãos, pode estar superada, pois a

alteridade transcendental originou o exercício da liberdade humana, como

realidade a ser construída existencialmente.

A partir desse momento, daremos continuidade ao estudo sobre a

alteridade entre os Homens, até chegar à alteridade de Deus, a teológica, intenção

central do desenvolvimento dessa reflexão sobre o ser humano na formulação de

sua identidade cristã.

De antemão, lembramos a pergunta de Moisés ao Senhor, sobre sua

apresentação, caso o povo lhe perguntasse sobre o seu nome. Deus responde, de

forma a não só reconhecê-Lo pelo nome, “eu sou quem sou”, mas também pelo

valor que terá na vida daquele povo. A Sagrada Escritura guarda a forma como

Deus se revelou: apresentando-se nominalmente e se dispondo a permanecer entre

os Homens, protegendo-os e amando-os. Na verdade, Gesché, ao exemplificar no

livro do Êxodo uma original alteridade dada ao ser humano, traz uma reflexão

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bastante atual, a dúvida sobre Deus, não mais na existência, mas no significado de

sua presença na vida do ser humano. Há uma relação construtiva ou destrutiva

com a presença de Deus? Muito interessante reconhecer que essa indagação se faz

a partir da concreta existência do ser humano, como se Deus, presente na vida do

Homem, subtraísse parte dessa vida, reduzindo a sua capacidade de autonomia,

compreendida pela ciência como conquista das relações únicas entre os Homens.

O Homem histórico estaria ameaçado na sua existência dada pela modernidade,

caso permitisse a presença de Deus na sua vida. Viveria como ser alienado,

contrário à sua própria condição de sujeito histórico. Encontramos presente aqui a

força da característica moderna, a autonomia. Anteriormente foi demonstrado, na

construção da liberdade cristã, que Deus não anula, muito menos submete o ser

humano às suas vontades. Pelo contrário, a presença de Deus liberta o Homem da

escravidão de sua história que, muitas vezes, reduz a sua humanidade. É no

desvelamento de sua liberdade cristã que o ser humano oportuniza sua capacidade

de amar e desenvolver sua humanidade. Mas, deixemos um pouco de lado essa

concepção porque já a reconhecemos como realidade possível. Exploraremos a

defesa da autonomia do Homem a partir do elemento da alteridade que é

reconhecido pela antropologia como constitutivo da estrutura do ser humano. 76

Acreditamos já não ser possível abrir mão da alteridade como construtora

da identidade do ser humano. Na verdade, é parte constitutiva de sua identidade.

Na relação com o outro, o Homem emerge na sua estrutura humana, vê-se como

ser de existência. É diante do outro que o Homem torna-se reconhecido, portanto

identificável. O outro é aquele que nomeia, que traz para fora de si mesmo o

nomeado, fazendo-o existir como ser. Essa idéia da nomeação revela a

necessidade, não só do reconhecimento do Homem, mas de sua confirmação

diante do outro. Eu necessito da confiança do outro para seguir em frente, o outro

me coloca em movimento, me fornece a consciência de minha existência. É na

confiança demonstrada que esse movimento acontece, de forma dinâmica e

dialética, favorecendo uma consciência relacional, em que me percebo existindo a

partir do outro e vice-versa. Nasce uma consciência individual, de um

reconhecimento pessoal de identidade, e outra social, que promove a construção

da liberdade e da identidade desenvolvida no contexto histórico do ser humano. 77

76 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 45-50. 77 Ibid., p. 50 passim.

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A consciência da identidade construída a partir do outro é o que também

possibilita construir a pertença a uma determinada cultura, a uma tradição, que

nos faz ser reconhecidos como seres históricos. Isso significa afirmar que a

identidade formada na alteridade remete sempre a um outro, terceiro, pois as

relações não se esgotam nelas mesmas, necessitam de um alcance maior fora da

própria relação imediata. Podemos chegar à reflexão que a construção da

identidade cristã assenta-se, como desenvolve Gesché, na antropologia, que vai

tratar a alteridade como construtora da autonomia, rejeitando a idéia de alienação.

“Diferentemente ocorre quando o outro se apresenta não como alienus, mas como alter. Este não se apresenta como adversário, mas como estando face a face, como terceiro, como testemunha. Ele é aquele que me nomeia, identifica, anuncia.”78

A alteridade promove uma integração das dimensões do ser humano,

tornando-o mais humano, possibilitando-o descobrir-se para além dele mesmo,

dispondo-o diante do Outro Terceiro, o Criador. A alteridade, então, se torna

reconhecida na sua maior expressão antropológica teológica. Torna-se uma

expressão de pleno reconhecimento de si a partir do Outro, assim como da

superação de suas limitações. Para o reconhecimento de si e a superação das

limitações acontecerem, muitas vezes, precisamos ser nomeados para oficialmente

sermos reconhecidos e então, existirmos individual e coletivamente na sociedade.

Esse reconhecimento é fundamental na construção da identidade, é o alteros que o

ser humano necessita para se construir existencialmente. A identidade cristã tem

seu terreno próprio na comunhão, que nasce da dinâmica da alteridade. Uma

dinâmica que revela a necessidade, que o Homem traz dentro de si, de ser

atendido nos seus anseios e desejos. A alteridade, nesse sentido, deve ser afirmada

como integração e crescimento do ser humano, uma relação que conduz o ser

numa direção mais elevada, possibilitando-o construir sua identidade cristã.79

Já podemos afirmar algo em resposta à indagação do Homem em procurar

saber se Deus representaria em sua vida uma anulação ou um crescimento. A

comunhão, manifestada e vivenciada como expressão natural da alteridade, nos

faz acreditar que a presença de Deus junto ao Homem é uma presença

emancipatória, de liberdade e crescimento. Se o outro me provoca reconhecimento

gratificante, o Outro maior, a quem reconheci a partir do próximo, que me

78 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 52. 79 Ibid., pp. 52-55.

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projetou para além da relação, certamente me provocará um maior envolvimento

de integração e descobertas. É a realidade do infinito presente na finitude humana

que provoca uma grandeza misteriosa na existência da alma humana. “Esse outro

que se faz hóspede é aquele que, ao receber-me, permite-me receber-me.” 80

Diante de Deus o ser humano é reconhecido e apresentado como ser na sua vida.

Resta ao cristão encorajar-se diante do outro, disponibilizando-se a desvelar a sua

liberdade construída na alteridade intrínseca à própria liberdade. Na superação dos

medos, diante de Deus, é possível viver a experiência concreta do inefável, aquele

que provoca fascínio e temor, duas realidades que não se excluem, mas revelam o

mistério da relação entre Deus e o Homem, uma alteridade de comunhão.81 É

dentro desse dinamismo, o êxodo de si e o encontro com o Outro, que cresce e se

promove a possibilidade da realidade da fé. O Homem que rejeita seu próprio

êxodo está confinado à sua morte, pois fechado em si mesmo só pode sucumbir à

existência. Ao contrário do Homem que fez sua saída e encontrou, diante disso, a

razão de sua existência.

“O Terceiro faz explodir a tautologia. Arranca-me de alienação em mim mesmo, que é, talvez, ainda mais perniciosa do que alienação externa. Alienação interna, em que me precipito, afundo-me, perco-me em mim mesmo e por mim mesmo, daí então totalmente perdido.”82

Na citação acima percebemos, talvez, a razão pela qual o Homem não

excluiu de vez Deus de suas relações. Porque viu em Deus a radicalidade da

autonomia do Homem. Isso o homem cristão vem mostrando na afirmação de sua

identidade: Deus é o fundamento de nossa autonomia, do exercício de nossa

liberdade, que na alteridade nos faz poder existir. O Gênesis, lembrado pelo autor,

descreve essa radical presença da alteridade como fundamento da existência do

ser humano, quando Deus afirma que não é bom que o homem esteja só, limitado

em si mesmo, muito menos fechado na relação entre si. Dessa forma, em Deus

encontramos a nossa salvação comunitária, coletiva, ou seja, a liberdade de não

nos perdermos em relações solitárias, sem rumo e sentido para além do próprio

grupo. Essa reflexão nos sinaliza pensar sobre as comunidades cristãs, que têm o

papel mediador de desvelar a liberdade como perspectiva de garantir e legitimar a

80 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 53. 81 Ibid., pp. 55-59. 82 Ibid., p. 59.

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presença de Deus na vida dos Homens. Deixemos para o capítulo seguinte essa

reflexão que merece maior aprofundamento.

Vimos que, no dinamismo da construção da identidade cristã, o

movimento do êxodo, estabelecido no diálogo entre o ser humano e Deus, nos

oferece a possibilidade da realidade da fé. Uma realidade que nasce da dinâmica

da alteridade. Abordamos anteriormente essa realidade como resposta do Homem

ao Deus que convoca e interpela. Resposta que nasce da confiança entre os

Homens e dos Homens com Deus. Uma confiança criada nas relações geradas

pela necessidade da existência do Homem. O ser humano se faz existir na

descoberta de sua liberdade transcendental, calcada na alteridade. O ato da fé

encontra-se intimamente presente na dinâmica da alteridade, pois representa, na

relação, atitudes de confiança no próprio Homem, que se descobre como sujeito, e

no outro, em quem deposita a confiança de se fazer existir como sujeito de fé.

Portanto, podemos afirmar com Gesché que “a alteridade, presente no ato da fé, é

constitutiva de nós próprios e de nosso avanço na aventura da existência”83, de

uma existência construída na identidade cristã. O autor explora o desdobramento

da palavra fé nas suas dimensões profanas, fora do contexto religioso, para que o

leitor compreenda que existe naturalmente uma confiança fundante, que

possibilita a sobrevivência dos Homens entre si, caso contrário, implodiriam

dentro de seus próprios labirintos. Lembra-nos da passagem de Jesus, que diz:

“aquele que procurar ganhar sua vida, com suas próprias forças, a perderá, e

aquele que perdê-la ganhará” (Lc 17, 33). Aqui entendemos o perder como

colocar-se diante do outro disponível, numa mútua relação de confiança. Na

verdade, é esse Outro que sustenta as relações entre os Homens, pois, como já foi

dito, os Homens, fechados em si mesmos, correriam o risco da contínua projeção

pessoal, de um ciclo vicioso sem saídas. Terminariam numa redução e numa perda

de suas identidades. 84

A alteridade tem, nessas condições, sua existência na afirmação de Deus.

Afirmar Deus não seria, portanto, nenhum absurdo, compreendendo que o

Homem fechado e reduzido à sua própria relação correria o risco de se perder

como sujeito criativo, transformador de sua realidade existencial. É Deus que

permite, nas relações, a continuidade da alteridade, de não fazer do outro um

83 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 63. 84 Ibid., pp. 60-63.

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instrumento de manipulação, de projeções pessoais, muitas vezes não conscientes,

mas reais. Encontro Nele a alteridade de comunhão, de integração, aquela que

oferece a construção de uma identidade cristã possível de ser visibilizada e

afirmada socialmente. O outro, próximo, passa a ser mais que essencial e

fundamental, também desejado, pois a minha existência necessita de sua presença,

de sua visitação, para que o eu possa ser cada vez mais eu nas relações que

estabelece com os demais. O outro deixa de ser instrumento ou um acaso na vida

da pessoa para se tornar uma necessidade, um bem inesgotável de crescimento da

própria identidade e da fé, que se alimenta dessa presença próxima e de Deus. A

alteridade só pode ser entendida assim: na comunhão com o outro, que faz de cada

ser humano um ser amado e desejado, pelos Homens e por Deus. Somos criados à

sua Imagem e Semelhança, o que significa que podemos sempre recorrer a Deus,

solicitando auxílio, quando somos ignorados e humilhados em nossa identidade e

existência.85 Assim define o autor, a partir do Gênesis, quando expressa que toda a

grandeza do ser humano vem de Deus e por Ele é garantida, portanto, ninguém

tem o direito de retirar do Homem suas capacidades e desejos, aquilo que atesta

sua existência, a identidade, mais propriamente a identidade cristã, na nossa

perspectiva.

“Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto como vos dei a erva verde. Eu pedirei conta de vosso sangue, por causa de vossas almas, a todo animal; e ao homem que matar o seu irmão, pedirei conta da alma do homem. Todo aquele que derramar o sangue humano, terá o seu próprio sangue derramado, porque Deus fez o homem à sua imagem” (Gn 9,3.5-6)

Existe uma dialética presente em toda a compreensão da alteridade: a

afirmação que o homem faz de Deus o faz pela autorização dada por Deus,

quando, na sua nomeação, o fez existir. O Homem é nomeado para existir e, dessa

forma, convocado a continuar, na sua relação, a existir. É na alteridade, portanto,

que o ser humano constrói com responsabilidade a sua liberdade, pois, ao se

dispor diante do outro, o faz se responsabilizando por si mesmo e pelo outro, a

quem deve a construção de sua identidade, e, por último à realização na relação

com Deus. Então, podemos entender que a autonomia proclamada pelo Homem

tem possibilidade de existir, verdadeiramente, na relação com Deus. Uma

construção livre e responsável, que faz seu movimento de saída da heteronomia

85 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 54 passim.

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para a autonomia.86 Assim, com coragem, podemos afirmar sobre Deus que, ao

contrário dos que proclamaram a destruição do Homem diante Dele, somos

engrandecidos em nossas capacidades humanas, elevados em nossa existência à

uma vida digna na liberdade comprometida com o outro, que representa o Homem

na sua individualidade e na sua coletividade. Somos chamados a viver em

comunhão e não na solidão dos grupos humanos. Essa é a razão da existência da

identidade cristã: ser vivida na relação, sempre construída na radical alteridade do

Outro, que faz mediação concreta no próximo, o outro imediato.

É a partir dessa radicalidade que queremos acentuar a ação contínua de

Deus, nos fazendo existir, ainda como criaturas criadas, dia-a-dia. Reconhecemos

no ato da criação o dom da liberdade, que nos colocou no movimento dinâmico da

construção da nossa identidade cristã. Deus, ao criar o ser humano, fazendo-o

existir, colocou-se diante de sua criação, possibilitando, na alteridade, a relação do

seu amor Trinitário. Deus nos colocou no caminho de sua existência, mostrou-nos,

através do Filho, como viver esse amor revelado na história dos homens. A

resposta do Homem a Deus, na fé, é a resposta a si mesmo como ser humano, pois

nos compreendemos a partir de nossa identidade. Deus se revela para confirmar o

seu sim à existência do Homem. Deus se faz Homem na história do Homem,

efetivando a máxima revelação da alteridade, afirmando-nos “que a teonomia é o

fundamento último da autonomia.”87 Deus se despoja, assume a condição limitada

do corpo humano, da dor, do sofrimento, dos desejos, da liberdade condicionada.

Mas, no seu serviço ao outro, na sua radical alteridade compreendeu a missão e

foi obediente até a morte. Por todo desprendimento em relação ao outro, não foi

anulado, mas elevado e lhe foi “conferido o Nome que está acima de todos os

nomes” (Fl 2,9). Ao Homem foi certificado sua identidade, cristã, pautada na

prática do amor-serviço, um amor de gratuidade e disponibilidade, lugar de

sentido para a o desenvolvimento da verdadeira autonomia vivida por Jesus Cristo,

uma autonomia construída na alteridade da comunhão dos Homens e de Deus.

“O nome que pedia Moisés é dado em sua plenitude, aí onde há ‘abandono’, nessa plenitude ‘abandonada’, da qual nós todos recebemos, (cf. Jo 1,16), pela qual somos e na qual encontramos ‘movimento e ser’(cf. At 17,28).”88

86 GESCHÉ, A., O Sentido, pp. 69-71. 87 Ibid., cf. pp. 65-67. 88 Ibid., p. 69.

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Buscando uma síntese para o tema, podemos recorrer à raiz da identidade

cristã, ao Deus que se revelou, esvaziando-se do seu poder divino e preenchendo-

se de humanidade. O que representa para o Homem a revelação de um Deus

preenchido de humanidade? Um Deus que, ao criar o Homem, concedendo-lhe o

dom da liberdade, relacionou-se com ele e, junto com ele, caminhou pelas mesmas

estradas humanas, construindo e desvelando a existência da liberdade cristã.

Portanto, esse Deus, cristão, não aniquilou o Homem, mas o elevou quando o Pai

o elevou após sua morte na cruz. A alteridade pode, portanto, ser dita e

proclamada como uma realidade de sentido, onde através do outro e de Deus, o

Homem pode desejar e construir o seu destino último voltado para esse Deus,

revelado Criador e Salvador. O Deus que, ao criar, salvou-nos da angústia da

prisão de nossas almas, da morte diante da ausência da alteridade que nos faz

reconhecer no diferente a nossa própria existência.

2.4 O Mal

“Ouvi os gemidos dos filhos de Israel que os egípcios estão oprimindo e lembrei-me da minha aliança” (Ex 6,5)

Tendo já enfrentado o desafio de falar dos elementos fundantes da criação

do ser humano, a liberdade e a alteridade, na perspectiva da construção da

identidade cristã, abraçaremos, agora, a questão mais inquietante para o Homem e

para a racionalidade moderna, o mal. Desejamos, antes do seu desenvolvimento,

reafirmar a defesa de Deus como real existência de libertação do ser humano. Esse

aspecto teve seu lugar desenvolvido nas páginas anteriores, quando abordamos os

sentidos da liberdade e da alteridade como construtoras da existência histórica do

Homem a partir da criação de Deus e de sua identidade cristã. A importância

dessa afirmação será compreendida no desenrolar do tema, pois falaremos sobre o

mal na perspectiva antropológica e da teologia, ou seja, na relação do Homem

com Deus, na forma como essa relação se processa na história.

O mal sempre foi uma questão pensada como algo que o próprio Homem

não deseja aceitar, sobre o qual está sempre se indagando e buscando respostas. A

modernidade se encarregou de acentuar essa busca e de procurar suas respostas a

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partir da secularização. E Deus vai ser tratado pelos não crentes como uma

possível resposta à questão do mal, indagações que proporcionarão um horizonte

de desafios aos crentes que desejam defender sua existência diante de um Deus

revelado (histórico). Um Deus que se deparou com os sofrimentos do Homem

quando se fez Homem. Portanto, também um sofredor, solidário com aqueles que

choram, com os pobres, os perseguidos, com todos acometidos por algum mal. O

próprio Jesus, no seu sofrimento, se coloca diante de Deus e indaga o porquê do

mal, pedindo pelo seu afastamento.

2.4.1 Diferentes configurações do problema do mal

Gesché fará a abordagem do tema a partir da relação do Homem com Deus,

de como foi construída pelos crentes e não crentes essa compreensão da existência

do mal na realidade do ser humano. A perspectiva do autor, como sempre tem

sido, é aceitar o desafio de colocar a teologia ao lado da razão, utilizando-se dela

para não fugir ao desafio de desvelar o autêntico Deus da tradição judaico-cristã.

Dessa forma, o autor percorrerá um caminho que nos trará cinco configurações do

problema do mal e do Homem em relação a Deus.89 A primeira, em que o Homem

se dispõe contra Deus, este se evidencia no ateísmo; uma segunda, em que os

crentes argumentam a defesa de Deus; uma terceira, em que o mal é colocado

como possibilidade de ser algo de preocupação por parte de Deus. Como veremos

mais a diante, acusar ou defender Deus, diz o autor, revela uma “preocupação

maior com Deus do que com o mal e com o homem”90, e não traz solução para o

Homem. A quarta, em que, a partir da compreensão que o mal seja uma questão

para Deus, a legitimidade de, diante Dele, falar e indagar, “meu Deus, meu Deus,

porque me abandonastes?” (Mt 27, 46). O Homem, então, dialoga com Deus,

colocando-se em direta relação com Ele na questão do mal. A quinta configuração,

por fim, traz a culminância de que a questão do mal é questão de Deus. Vai

ocorrer uma inversão: o Homem, diante de Deus, percebe que a questão é dada

pelo próprio Deus. É Deus mesmo que se rebela contra o mal quando percebe essa 89 GESCHÉ, A., O Mal, cf. pp. 14-34. 90 Ibid., p. 21.

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adversidade no caminho da realização do seu plano de salvação. Vê-se, então, a

necessidade de se combater o mal como algo que não pertence à sua realidade

criada. É Deus que toma a iniciativa desse combate. O Homem assume junto a

Deus a luta pela derrota do mal. É o que Gesché denomina, na compreensão desse

combate, o mal como questão de Deus.

A argumentação de que há uma responsabilidade de Deus diante do mal é

muito comum de ser ouvida, pois é uma acusação simples, mas, pautada na

racionalidade e, aparentemente, difícil de ser defendida, porque coloca a reflexão

a partir de um Deus fora do Homem, o Deus que os ateus proclamaram tutelar a

vida do Homem. Porém, a argumentação favorece a idéia de que Deus está

presente no raciocínio, pois acusar ou afirmar a sua não existência nos leva à idéia

de que algo só pode ser negado porque se fez existir. Gesché, a partir dessa crítica

vai trabalhar a acusação com o raciocínio de que esta é feita a partir de uma idéia

de Deus e não da existência de Deus, porque, se assim fosse, haveria uma

contradição dentro do próprio ateísmo, que nega a existência de Deus.91 Mas a

reflexão proposta vai mais além do que a imagem que se tenha de Deus na luta

pelo entendimento do mal. A grande contribuição desse debate está em aceitar “o

direito do homem de expressar, mesmo de maneira chocante e além dos limites,

de maneira ilógica, o escândalo do mal, gritando o mais forte que puder.” 92

Esse grito nos consola, pois o Homem se nega a aceitar o mal como realidade.

Portanto, é mais um grito de revolta contra o mal do que, na verdade, contra Deus.

Um olhar de humildade, atitude necessária ao diálogo com as ciências, faria ao

cristão um bem enorme, pois permitiria reconhecer nessa luta, também, as suas

próprias lutas e dúvidas. Reconhecemos que seria muito mais fácil falar de Deus

sem a realidade do mal, que, além de nos questionar nos interpela para dar

respostas que não nos sentimos preparados racionalmente para lidar com esse

mistério.

Essa contestação deve, portanto, ser considerada como favorável à nossa

percepção cristã de Deus: um Deus que permite o sofrimento não é o Deus cristão.

Portanto, gritamos, aliados aos ateus, contra esse mal que destrói o ser humano. O

ponto de partida para os não crentes é o mesmo dos cristãos: como falar de Deus

diante de uma realidade tão desumana? Podemos, então, afirmar que essa

91 GESCHÉ, A., O Mal, p. 14 passim. 92 Ibid., p. 16.

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acusação possibilitou, para o crente, o desafio de seguir mais a fundo nessa

reflexão, de buscar, autenticamente, uma resposta dada pela teologia. Mais uma

possibilidade na defesa da teologia como ciência. A oportunidade de falar sobre

algo que foi dito por outro olhar que não o teológico, por isso, enfraquecido em

argumentos. E a teologia vai, justamente, ocupar esse lugar, preenchendo o que

não foi dito, sob o olhar teológico. Faremos, mais adiante, a teologia falar, sempre

na voz de Gesché.

Por outro lado, diante das acusações, uma vasta realidade de defesa de

Deus diante do mal aparece como reação às investidas dos ateus contra Deus. É

uma defesa válida, mas não suficiente, pois todas as argumentações conhecidas

não consideram a responsabilidade de Deus no processo do mal, principalmente

quando recorremos àquela sobre o respeito à liberdade que Deus nos dá, por isso a

“permissão da existência do mal”.93 O autor vai propor uma sincera reflexão

sobre esses argumentos, indagando se não contribuem para “fechar a questão em

seu impasse, em vez de abri-la para a esperança que no mesmo instante parecia

prometer.” 94 Muito interessante essa abordagem, pois nos questiona, como

cristãos, a rever os argumentos que recorremos, sem pensar muito, para defender

Deus contra as acusações do mal trazidas pelos não crentes. Muitas vezes, de

forma rápida e impensada, refutamos uma idéia que venha do não crente, por se

mostrar contrária a Deus, e não nos damos conta de sua contribuição no

desvelamento do Deus humano que proclamamos na fé. Como tamém para

defendê-Lo, com muita razão, pois reconhecemos o Deus criador na nossa

salvação e não damos conta de que apenas trocamos os lados. Um recusa e o outro

defende, mas ambos mantêm, como diz Gesché, Deus fora do Homem,

esquecendo de lhe dar o verdadeiro sentido de sua existência. Aqui o mal fica sem

nenhuma solução, pois a questão do mal permanece fora de Deus na medida em

que a abordagem do mal torna-se uma interrogação sobre Deus. Não há

implicação de Deus na questão do mal nessa via de argumentação.

A esperança que essa defesa poderia ter suscitado, como nos fala o autor,

ficou fechada em si mesma, sem a possibilidade de se perceber sequer o grito que

se ouvia na acusação dos não crentes. Sem dúvida alguma, o cristão fez a defesa

de Deus com muita habilidade apologética, mas correu o risco de se limitar à

93 GESCHÉ, A., O Mal, p.17 passim. 94 Ibid., p. 18.

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própria questão de Deus, como aconteceu, pois, na ansiedade pela defesa,

esqueceu-se de recorrer à tradição bíblica, que nos fala de um Deus que ouve o

grito de seu povo. A citação do livro do Êxodo, feita no início desse tema, nos

relata o desespero do povo que, ao sentir-se abandonado por Deus, clama por sua

intervenção. E Deus não somente ouve como responde ao clamor do povo.

“O discurso sobre Deus e o mal não pode impedir o grito que o homem dirige a Deus, manifestando, aliás, maior confiança do que talvez demonstre aquele que quer muito depressa sufocar o clamor.” 95

Reconhecemos que na defesa de Deus contra o mal fica a desejar um

aprofundamento do envolvimento de Deus na questão. Voltamos ao dilema: se

acusar seria mais fácil ou defender mais difícil, diante da realidade dessacralizada

do mundo contemporâneo? Não há intenção em responder a essa indagação,

apenas de reconhecer que o mundo hodierno, colocando Deus à margem do

Homem, colocou-o à margem de seus problemas, configurando uma idéia

extrínseca da relação do Homem com Deus. Parece contraditório afirmar que,

mesmo sem Deus, o Homem continuou com Deus, porque nunca deixou de se

questionar como Homem na relação com Deus quando, por exemplo, continuou

buscando respostas às questões incompreensíveis, como o próprio mal. Na

verdade, falou-se mais de Deus do que do próprio Homem durante a tentativa de

esclarecer o mal. Mesmo os cristãos, quando abordavam a defesa de Deus,

falavam de Deus e não deles com Deus, do Deus para o Homem como se encontra

na narrativa da tradição judaico-cristã. Diz Gesché que o Homem expressou mais

o Deus em si (Deus da filosofia) do que o Deus para nós (Deus da fé). O autor

provoca uma radical reflexão quando convoca o crente a pensar em Deus crendo e

não num Deus não crendo. Isso significa colocar todas as questões humanas

dentro de Deus, compreender que falamos de nossa humanidade quando queremos

falar de nossas questões com Deus.96 É permitir que a alteridade, já tão trabalhada,

seja plenamente exercitada na liberdade cristã. Só a partir dela podemos nos fazer

livres para lutar contra toda escravidão, principalmente a do mal, que nos esvazia

de forças e esperanças. Na alteridade, na relação com o Tu, Deus, passa a ser

incluído no problema do mal. Deus mesmo não buscou se excluir dos nossos

problemas, pois, ao se revelar como homem, assumiu a limitação de sua condição

95 GESCHÉ, A., O Mal, p. 20. 96 Ibid., pp. 20-23.

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humana, do sofrimento e do mal. Foi humilhado e viveu a realidade da morte,

descendo à mansão dos mortos. Deus, como diz o autor, “não procurou ser

poupado”.97

Compreendendo o mal vinculado a Deus, a teologia dá um passo a mais na

sua afirmação junto às demais ciências, pois envolve o Homem numa relação

intrínseca com Deus, tratando o tema a partir do enfoque antropológico da

teologia. Destaca, no debate sobre o mal, a presença do Homem e de Deus numa

contínua relação de salvação. A teologia deve explicitar a preocupação de Deus

com os problemas do Homem, um Deus que, na perspectiva da fé cristã, nunca

abandonou sua criação, pelo contrário, salvando permanece criando e

possibilitando ao Homem criar na sua existência. Essa compreensão exige

reconhecer um Deus histórico, por isso, preocupado com os problemas do Homem.

Um Deus que, ao criar, desfatalizou a história, pois concedeu ao ser humano todas

as condições para recriar a criação, o que significa colaborar na sua salvação.

Ainda pensando em Deus na relação do mal com o Homem, Gesché vai

continuar a exigir um mergulho mais profundo: sabendo que Deus se coloca

dentro da questão, como o Homem pode e deve se colocar diante de Deus?

Primeiramente, a atitude de falar, de poder, diante de Deus, expressar o

que lhe aflige, já traduz uma nova relação. O Homem fala dele, de seus problemas,

reconhecendo como sendo um problema também de Deus, diferentemente do ateu,

que também colocava o problema em Deus, mas sem o diálogo, dirigindo-se a

Deus numa relação de fora do processo, como se Deus não pertencesse à realidade

do homem. Essa é uma grande diferença para os cristãos que continuaram sua

busca em compreender o mal com Deus. Afinal, não teríamos muita saída, pois o

mundo atual exige respostas e os cristãos não podem se ausentar dessa

responsabilidade histórica diante de Deus, sob o risco de serem infiéis ao projeto

salvífico de Deus.98 Então, é preciso gritar, junto com os não crentes, contra o

mal, mas crendo em Deus, provocando e ocupando o debate necessário para a

teologia atuar no seu lugar próprio. Como diz Gesché, “essa lógica do crente

poderia, aliás, ter um alcance incalculável no debate com os ateus.”99 Muitas

vezes nos recolhemos diante da racionalidade dos ateus. É necessário ousar

97 GESCHÉ, A., O Mal, cf. p. 22. 98 Ibid., pp. 25-28. 99 Ibid., p. 27.

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aceitando o desafio da razão, que, em última instância, é sustentada por Deus.

Portanto, não há o que temer. Reconhecendo a profundidade desse compromisso,

o autor nos alerta a tomar o devido cuidado para que não ouçamos da parte de

Deus o “por que você me abandonou?” Dessa forma, chegamos ao desfecho da

busca de compreender a questão do mal no processo da relação do Homem com

Deus. 100

O cristão, ao dialogar com Deus sobre o mal, ao poder gritar e lutar, se

depara com uma extraordinária situação teológica: antes dele mesmo, a primeira

preocupação em combater o mal é de Deus. A realidade da fé se dá plenamente

nessa compreensão, há uma integração ativa entre a vida do Homem e Deus. Aqui

a teologia tem o seu lugar para preencher o vazio deixado na argumentação dos

ateus contra Deus. É necessário e urgente que seja assumido esse lugar, a teo-

lógica, a lógica da fé, pois assim criamos a oportunidade para avançar no debate

com as ciências.

A tradição judaico-cristã atesta que a primeira preocupação com o mal

veio da parte de Deus. Algumas passagens bíblicas poderiam confirmar a reação

de Deus e até a sua indignação diante do mal, quando expressa sua aflição com a

maldade existente na sua criação (Gn 6, 6-7). Das citações bíblicas podemos

trazer como evidenciadora dessa realidade o grito de Jesus na cruz e a descida à

mansão dos mortos. O Filho de Deus grita por nós e conosco, diante de Deus e, no

confronto com esse mal, na luta contra o mal, Deus se manifesta, na Ressurreição,

vitorioso diante da morte. “A questão do homem torna-se uma questão que pode

muito bem ser chamada de divina”.101 A compreensão dessa perspectiva teológica

só é possível dentro de uma experiência de fé. O cristão deve caminhar para

assumir seu crescimento de fé, aceitando os desafios da razão, que lhe são

impostos pelas necessidades de justificar e defender sua existência cristã. Portanto,

a questão do mal não pode ser considerada, nessa perspectiva, como algo simples.

Exige seriedade e fidelidade ao projeto de Deus. É reconhecer o projeto de criação

de Deus como projeto de salvação da criação. Não existem duas realidades, a

histórica e a de Deus, a realidade é única e integrada, feita por Deus e para Deus.

Dessa forma, podemos afirmar, com o autor, “que é a minha luta que Deus trava

100 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 24-26. 101 Ibid., p. 31.

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e é a luta de Deus que eu travo”.102 O Deus do cristão é um Deus que o Homem

conheceu na luta de sua história. Portanto, um Deus que nunca se ausentou dos

conflitos humanos. Pelo contrário, lutou com o Homem e abriu caminhos na

superação do mal. Junto com os Homens tornou-se vítima do mal, mas venceu e

trouxe a certeza e a esperança de que é possível a destruição do mal.

Buscando finalizar este item, seria coerente reforçar a importância do

aprofundamento dessa perspectiva, pois percebemos que todas as questões

pertinentes ao Homem são, em última instância, questões de Deus. Portanto, todos

os nossos apelos podem e devem se dirigir a Deus. A teologia deve sustentar,

antes de tudo, essa defesa de Deus em relação ao Homem, antes mesmo do

próprio Homem tomar para si a defesa de seus problemas. Nesse sentido, Gesché

reforça a oração como uma ação que deve ser pedida, pois é inspiradora para a

teologia. “A oração é uma con-fiança, o pedido para que a desgraça seja

compartilhada”.103

2.4.2 Possibilidades de solução para o problema do mal

Após as diferentes abordagens que o autor propôs para pensar sobre o mal,

reconhecemos que o grande salto não foi em dar solução para o mal, pois este

permaneceu sem resposta. Não há como, racionalmente, responder ao mal, porque

este pertence ao campo da irracionalidade. Mas é possível tentar pensá-lo na

perspectiva teológica, a partir de Deus, do Deus cristão. Sem querer limitar a

reflexão à idéia da justificação da liberdade permitida, a “teoria da permissão do

mal”,104 Gesché buscou caminhar na direção de um pensamento mais profundo,

colocando a questão em Deus. Uma tentativa de fazer a teologia ocupar o seu

lugar, o que vem sempre sendo sinalizado no seu pensamento, oferecer um

instrumento aos crentes que os torne reconhecidos e legitimados junto às ciências.

Por exemplo, no aspecto antropológico, pensar o mal teologicamente trouxe uma

rica contribuição: o Homem reconhecer que não está sozinho no combate contra o

102 GESCHÉ, A., O Mal, p. 33. 103 Ibid., p. 33. 104 Ibid., p. 34.

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mal, não correndo o risco de cair nas armadilhas de uma culpa sem fim, podendo

dividir com Deus o peso da existência do mal.

Na verdade, o autor propõe que o Deus salvador possa ser compreendido

não apenas a partir do tratado da Cristologia, que aborda a relação de Deus com o

mal através do comportamento visível de Jesus Cristo na história. “É preciso

fazer isso desde o início e situar esse movimento em Deus como pertencente desde

sempre e ontologicamente à sua definição”.105 É compreender a salvação como

realidade absoluta de Deus, não havendo nenhuma possibilidade de algo no

mundo não ser alcançado pela ação salvadora de Deus. Isso significa que a

teologia, para enfrentar o mal, necessita afirmar Deus, pois é em Deus, seu objeto

de existência, que pode ser compreendido e combatido radicalmente a existência

do mal, tão irracional à nossa racionalidade.

Esta é a proposta de Gesché para esse tema: pensar teologicamente sobre o

mal. Esse será o caminho que seguiremos, acompanhados pelo autor. Primeiro

abordando o teológico e, depois, pensando de que forma a doutrina do pecado

original contribuiu para a culpabilidade do mal, atribuída ao Homem do ocidente,

mas também a verdade libertadora contida na narrativa bíblica do pecado.

Seguiremos, então, a idéia-chave do autor de pensar o mal dentro de uma

visão mais teológica, o que requer compreender o mal como uma questão de Deus.

Ocupar a teologia com esse tema traz, como já dito, um novo olhar, o da lógica da

fé, para algo considerado diante do mundo como inexplicável, irracional, portanto

injustificável. Vimos o quanto foi motivo de busca para compreender o mal

recorrer a acusações e defesas de Deus. Nesse momento a teologia toma para si o

desafio de enfrentar o mal como um enigma, dado como realidade presente.

O trabalho desenvolverá uma trajetória que possa oferecer ao leitor uma

compreensão crescente dos elementos que se encontram envolvidos no tema do

mal. Logo de início, nos deparamos com a “surpresa de Deus diante do mal”106,

como nos diz Gesché. Uma surpresa que confirma a idéia do mal não pertencer

aos planos de Deus. A tentativa do autor é trabalhar o aspecto da surpresa como

uma leitura do não-dito da narrativa, mas presente por outros ditos. Não há uma

preocupação em descrever as soluções já dadas sobre o texto, mas sim em se ater

a um primeiro sentido, provocado pelo texto diante do contexto da própria

105 GESCHÉ, A., O Mal, p. 39. 106 Ibid., p. 43.

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narrativa. E o mal se encontra como algo não previsto, porém vindo de algum

lugar, desconhecido ou não, fazendo-se presente como um fato. Aqui temos o

primeiro deslocamento que o autor sinaliza como mudança de paradigma para o

enfrentamento do mal: estando fora do plano da criação, o mal não se encontra

nem do lado de Deus e nem do Homem. 107 “O Senhor disse à mulher: ‘por que

fizeste isso?’ – ‘A serpente enganou-me, – respondeu ela – e eu comi’.” (Gn 3, 13)

Essa reflexão, a partir da narrativa bíblica, já nos deve provocar uma visão

transformadora sobre a existência do mal. Toca-nos de modo muito especial a

proposta do autor em desvincular o mal da natureza humana e acentuar a

perplexidade de Deus diante dele, quando docemente faz a indagação a Eva sobre

o que havia feito. A culpabilidade, a responsabilidade e a liberdade, presentes na

doutrina do pecado original, e muito conhecidos pela maneira que foram

trabalhados na história do cristianismo, às vezes de forma absolutizadas, serão

tratados dentro dessa nova visão teológica com novos deslocamentos, essenciais

para o enfrentamento teológico do mal.

Este primeiro e importante deslocamento, que se encontra no fato de o mal

ser considerado fora da criação, mobiliza Deus e o Homem a procurarem saída

para esse combate, pois existe a responsabilidade de salvar a situação e a pessoa

do enredamento do mal. Não há uma culpabilização direta, porque, se houvesse, o

mal não estaria fora do Homem, como reflete o autor. É esse entendimento que

colabora para ativar a reação do Homem contra o mal. É o que Gesché chama de

responsabilidade ativa. A possibilidade do Homem não ser julgado e culpado

prematuramente ajuda a compreender a raiz da salvação no plano de Deus: ajudar

a vítima e não acusar, de forma tão rápida, a ponto de condená-la, sem

possibilidade de sua salvação. Veremos mais à frente, que existe sim um

consentimento que torna o Homem responsável pelo ato, o que permitiu ser

compreendido como uma culpabilização de fato, e que não é de todo ruim, mas

corremos o risco de, ao absolutizar o culpado na condenação, retirar do Homem a

possibilidade de reagir e de ser salvo. Na verdade, a culpa foi um recurso para a

tentativa de explicar uma situação inexplicável, muito mais fácil, como diz

Gesché, do que aceitar o elemento da surpresa do fato, que é um elemento

teológico. Sabemos que receber a absoluta culpa pelo mal poderia provocar no

107 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 42-44.

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Homem uma reação desanimadora, passiva, de enfraquecimento. Nesse caso,

teríamos o Homem derrotado pelo mal, subjugado e condenado a uma

subjetividade fechada.108

Se o mal é reconhecido como uma surpresa, a teologia vai enfrentá-lo no

campo da irracionalidade, ou seja, da idéia de que teve uma origem, que não vem

de Deus, mas de um outro lugar, fora da ação criadora de Deus, por isso

impossível de ser racionalmente justificável. Esse mal desvia o Homem da origem

do destino para o qual foi criado: Deus. Dessa forma, podemos abordar o mal

como um desvio de destino, uma desorientação do ser humano. Gesché define

essa realidade como demoníaca, um termo nomeado teologicamente como mal,

sendo dito como tal para designar o estatuto do mal, uma ordem que não abarca

racionalidade alguma e nem apologias, por isso afeta o sentido dado ao Homem

na sua criação. Afeta, no entanto, diretamente o destino do Homem. “Essa

qualificação inaugural do mal não é simplesmente de ordem ética, mas de ordem

de destino.” 109

Ainda dentro desse aspecto do mal, como algo não constitutivo do ser

humano, podemos abordar a importância que foi dada, na cultura do ocidente, em

se preocupar muito mais em encontrar culpados do que atender às vítimas. Gesché

relembra que o Evangelho traz a preocupação muito maior com a vítima do que

com o culpado. Essa leitura foi muito acentuada, com certeza, como forma de

racionalizar o incompreendido, pois encontrar um culpado amenizava a

irracionalidade do mal e, aparentemente, facilitava o seu enfrentamento. A

teologia, sob este novo olhar, convida a deslocar a preocupação acentuada pelo

culpado para o lugar da vítima como possibilidade de salvação. Como trata o

autor, a preocupação deve ser com a derrota do mal, mais do que com a

condenação. Não que esta não seja uma mediação para a salvação, mas que não

representa o lugar absoluto da luta contra o mal. Assim fez Jesus quando atuou,

devolvendo à Samaritana à sua dignidade de vida. A sua vida havia sido atingida,

na sua existência, pelo mal. Objetivamente o seu destino estava comprometido.

Jesus, sem se preocupar com a culpa, oferece a salvação, destruindo o mal com a

única força capaz de derrotá-lo: o amor de Deus. Se fizermos uma leitura do

Evangelho, perceberemos nas atitudes de Jesus esse ensinamento, inclusive nas

108 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 43-46. 109 Ibid., p. 49.

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Bem-aventuranças, onde proclamou o sentido do Reino de Deus. A preocupação

é com a realidade objetiva do mal, que pode estar alojado na pessoa ou na

condição social e econômica da sociedade, mas em qualquer dos casos é lá que se

encontram as vítimas.110

Reconhecemos no mal um fato objetivo, que não sendo parte da criação,

também não é parte constitutiva do ser humano. Mas identificamos, a partir do

mal, o pecado, que tem seu lugar no consentimento do Homem à ação efetiva do

mal. O pecado nasce do consentimento do mal, da tentação que caracteriza a

fragilidade humana. Uma fragilidade que deve ser considerada com muito carinho

para que o ser humano tenha consciência de sua vulnerabilidade diante da

realidade do mundo. É nessa fraqueza humana que o mal se aloja e se transfigura

na aparência do belo, capaz de seduzir e comprometer o Homem. O cuidado se

deve, principalmente, porque o resultado do pecado é mais reconhecido nas

conseqüências objetivas do que naquela “subjetividade inicial” descrita na

narrativa bíblica sobre o pecado original. 111 Gesché aborda o tema com

profundidade quando se trata de defender o ser humano e dar à teologia a

oportunidade de se pronunciar. O autor destaca que a culpabilidade não vem na

origem primeira do ato do Homem, ou seja, ao Homem cabe, sim, a culpa, mais

pelo consentir do que ter originado esse mal. A protoculpabilidade, diz o autor,

pertence à serpente.

“Há deuteroculpabilidade que consiste, naquele que foi surpreendido, vítima (da tentação), em ter consentido no mal, em ter aceito que essa ‘ordem’ demoníaca tomem o lugar da ordem divina. O que é certamente grave (e sobretudo em seus resultados), mas que mostra que o pecado não é uma perversidade verdadeiramente imanente ao homem.” 112

Podemos, então, confirmar, na perspectiva de Gesché, que o Homem não

criou o mal, mas consentiu a realização do mal, permitiu a realidade do pecado.

Isso é muito importante, pois essa culpa o Homem pode carregar sem, contudo,

tomá-la como absoluta, pois reconhece sua responsabilidade no momento do seu

consentimento. Mais. Podendo reconhecer o pecado e a sua culpa como um

segundo momento da realidade do mal, ele tem a possibilidade de lutar de frente

contra o mal. O mal se encontra à frente e não dentro dele. Isso permite o combate

ao mal e o perdão do mal cometido. Nessa perspectiva, a salvação volta a ter seu 110 GESCHÉ, A., O Mal, p. 49 passim. 111 Ibid., p. 50. 112 Ibid., p. 51.

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sentido absoluto na vida do Homem, pois lhe devolve a possibilidade de se abrir

em direção ao próximo e ao Terceiro, retomando, dessa forma, a destinação última

de sua vida, desviada com o pecado. O Homem, na verdade, volta a viver o

exercício de sua liberdade. Ele é libertado das correntes de seus próprios pecados.

O Homem, criado para a liberdade, ficou condicionado pelo seu pecado. Por isso

precisa da libertação para o pleno exercício dessa liberdade.

A fragilidade do ser humano permite compreender a ação sedutora do mal

e evidencia, sem dúvida, a existência de uma relativa culpabilidade do Homem em

relação ao mal. Toda sedução leva ao estranhamento do próprio Homem. A

sedução arranca do Homem a possibilidade de construir seus próprios desejos,

introjetando-lhe um desejo que não lhe pertence, o do outro, o que Gesché vai

denominar de alienação inconsciente. 113 Aqui se instala a raiz do mal,

imperceptível aos olhos do Homem, que desorienta seu caminho, provocando o

desvio de destinação. A Bíblia denomina esse mal que arranca o Homem do seu

destino como a sedução, o pai da mentira, como nos fala o evangelho de João.

“Vós tendes como pai o demônio, e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira.” (Jo 8,44)

Essa realidade da tentação e da sedução não deve retirar do Homem a

culpabilização do ato, pois o seu consentimento fez dessa realidade a existência do

mal. Deve, portanto, servir para amenizar a absolutização da culpa e permitir uma

luta mais transparente contra o mal.

Falamos já que a teologia, a partir da leitura judaico-cristã, reforça e

defende a salvação das vítimas mais do que uma absolutização da acusação do

culpado. Isso não significa que essa leitura abdique de uma mediação legítima de

responsabilidade do culpado pelo mal que causou. Mas reforçamos a idéia central

de Gesché, para quem o primeiro movimento deve se dirigir às vítimas, inclusive

ao culpado, também vítima de sua própria realidade, condenada, no contexto, ao

rompimento de sua destinação. No capítulo seguinte teremos a oportunidade de

abordar esse tema, com suas conseqüências práticas na vida do cristão e da Igreja,

sempre na leitura do ser humano de Gesché e da teologia, que propõe pensar Deus

hoje.

113 GESCHÉ, A., O Mal, p. 55 passim.

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Seguindo na reflexão do autor, assumindo para si a questão do mal, a

teologia trabalhou, primeiramente, no desvelamneto da surpresa de Deus diante do

mal. Ainda com o apoio da narrativa bíblica, que permitiu reconhecer a

perplexidade de Deus com o mal, nos orientaremos para um enfrentamento mais

decisivo da elaboração dessa luta com o mistério do mal: trata-se do depoimento

do próprio Deus contra o mal. Nesse caso, a teologia torna-se instrumento

fundamental na estruturação do pensamento de Gesché. Inicialmente, a

necessidade de desfazer o entendimento da questão do mal a partir da sua

moralização para, a seguir, colocar o mal, mistério, dentro da sistemática da

teologia. Ou seja, dar-lhe o lugar que lhe cabe para o mal ser assumido como tema

da teologia dogmática.

O mal, ao ser desenvolvido no seu aspecto de culpabilização, trouxe

conseqüências positivas e negativas à realidade do Homem. Sem dúvida, quando

associada ao aspecto da responsabilidade, define a riqueza do entendimento da

criação de um Deus que desfataliza a história do Homem. O Homem é capacitado

a transformar a criação salvífica de Deus, reagindo a tudo que é contrário à

salvação. Ou seja, quando há culpabilização relacionada à responsabilidade há

possibilidade de reação. Essa reação é positiva, pois cria, também, condições de

desfatalizar a presença do mal. Seria o agir não moralizante do mal, aquele que

permite enxergar o problema do mal como destinação mais do que na ordem

moral. Na perspectiva do autor, não há dúvida da importância da abordagem

moral do mal, pois deu ao Homem possibilidades de descobrir-se em processo de

transformação, sujeito atuante e construtor de sua existência. O risco é quando a

moral se transforma em moralismos de culpabilidade, culpabilização e justificação,

que são moralizações exclusivas, portanto não colaboram para superação do

mal.114

O mal não se limita à intenção de realizá-lo como ato. Ele, quando se torna

concreto, extrapola seus próprios limites, provocando resultados que fogem do

alcance do Homem, tornando-o independente da ação direta do próprio Homem. É

o caso do mal desgraça, do mal trágico. É o mal em processo de encadeamento do

próprio mal. Por isso, um aspecto negativo seria, como diz Gesché, “pensar que a

culpabilidade ocupa todo lugar do mal”. 115 Isso nos conduziria a conceber uma

114 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 59-63. 115 Ibid., p. 59.

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visão moralizante sobre o mal. Na perspectiva do autor, podemos conceber a

responsabilidade sobre o mal de forma indireta, retirando, então, essa abordagem

moralizante de culpabilidade que imobiliza, muitas vezes, a luta contra o mal.

Sabemos, porém, que essa visão pertence à tradição da teologia. Talvez, por isso,

a facilidade de propor sua integração à teologia dogmática. Essa atitude da

responsabilidade sobre o mal, mesmo não atuando como agente direto, culpado ou

vítima, possibilita ao Homem de fé desenvolver uma nova relação entre os

Homens, de solidariedade, e contribuir no debate sobre o mal, testemunhando sua

luta contra essa misteriosa força que desfigura o ser humano diante de Deus.

Um segundo aspecto negativo se encontra em outro extremo, o de se

perceber com excessiva culpa diante do mal, o que conduziria a um imobilismo

fatal. O Homem, diante da acusação e da consciência pesada pela culpa, não

encontraria sustância na luta contra o mal. Facilmente se entregaria à sua derrota,

dando a vitória à perpetuação do mal. Essa atitude moralista torna-se um

agravante quando procuramos o culpado dentro de nós mesmos. O autor, na sua

aguda reflexão, exige que reconheçamos o peso escravizante destruidor da culpa

na vida do Homem. É destruidora de sentidos. O ocidente, na tradição religiosa,

pautou essa realidade na busca pelos culpados, e vimos as conseqüências dessa

acentuada culpabilidade.116 Agora, a teologia oferece ao cristão uma revisão no

foco de sua abordagem: recuperar, a partir da narrativa bíblica, o acento na vítima.

Mais, des-moralizar o mal, concebendo-lhe como um problema objetivo, de

destinação. Fugir do peso da tradição que permitiu ao Homem responsabilizar-se

de forma absoluta por sua culpa diante do mal.117 Gesché nos lembra que a moral

sexual sofreu graves distorções e rendeu acusações aos cristãos pela forma

obsessiva com que fora abordado na história da Igreja. Lembra o risco de outro

extremo atual, a obsessão pela justiça diante dos sofrimentos deixados pela guerra,

assim como pela exclusão de um sistema global. Toda mediação é fundamental na

busca pela superação do mal. O problema está em não reduzir o mal à

culpablização absoluta, pois, como já foi dito, esvazia a força da luta contra o mal,

destrói esperanças e imobiliza a libertação do Homem na sua salvação.

Uma última abordagem negativa é a tentativa de justificar o mal

inexplicável, o mal desgraça, aquele que não se encontra razão porque não é

116 GESCHÉ, A., O Mal, p. 61. 117 Ibid., pp. 59-61.

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culpável para se fazer entendido. A teologia tratou como o mal de castigo. Na

verdade essa abordagem dificulta bastante, na perspectiva de Gesché, a luta contra

o mal, pois estabelece uma passividade do Homem diante da realidade, assim

como colabora na construção de uma mentalidade fatalista, de um ato de justiça

divina. O que pretende o autor é tratar a desmoralização do mal dentro do seu

lugar próprio: “situá-la de forma correta, não a colocando como único lugar da

tragédia e da estratégia do mal”.118

Compreendemos, então, a proposta do autor em reintegrar o mal na

teologia dogmática, a partir da superação da visão limitada do mal e do pecado

como problemas de consciência. Reconhecemos que a teologia não deixou de lado

o pecado da rejeição a Deus como uma questão de destinação do Homem, apenas

se ocupou com a moral de forma acentuada. Dessa forma, toda apresentação da

relação de Deus com o Homem ficou comprometida moralmente: o Homem, no

aspecto moralizante do pecado e do mal diante de sua consciência carregada pela

culpa; e Deus, desconhecido para o Homem diante da luta contra o mal.

Reconduzimos, então, a questão do mal ao lugar pretendido por Gesché, ao trazer

Deus para a questão. Tratar o mal inserido na teologia dogmática numa nova

relação entre Deus e o Homem.

O deslocamento é proposto a partir do esforço de desmoralizar o mal para

reintegrá-lo na dogmática.119 Esse esforço permite algumas boas reflexões sobre o

tema. Primeiramente, em superar a ofensa a Deus no discurso da justificação,

colocando Deus mesmo dentro da luta contra o mal. Deus rejeita e repugna o mal

e, na sua oferta de amor e salvação, assume a centralidade diante da criação no

combate pela destruição do mal. Deus coloca-se como radical adversário do mal.

Também, em segundo lugar, Deus, ao agir na sua e em nossa defesa, nos mostra a

figura irracional e temível do mal, o demônio, aquele que seduz e desvia o

Homem do seu destino, aquele que permite ao Homem reconhecer uma culpa

parcial, quando permite sua ação, e não absoluta. A figura do mal, portanto, não

pertence ao Homem e muito menos a Deus, pois algo tão demoníaco não faz parte

da criação salvífica de Deus. É fundamental insistir nessa afirmação, pois é isso

que nos cria condição do combate, da reação, de identificar e nomear o mal

colocando-o como algo extrínseco à realidade criada.

118 GESCHÉ, A., O Mal, p. 63. 119 Ibid., p. 69 passim.

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Gesché nos recorda que na tradição judaico-cristã o demônio sedutor

utiliza um recurso que possibilita reconhecer o mal como algo objetivo e não

meramente subjetivo, corroborando a idéia da responsabilidade e não da

culpabilidade absoluta do Homem. O demônio se prevalece da promessa do Deus

cristão em partilhar com o Homem a vida divina. Na criação, o Homem foi feito à

sua Imagem e Semelhança, uma promessa já oferecida. Gesché destaca justamente

a malícia do demônio, por isso mesmo perverso, em oferecer um outro caminho, o

do mal, da sedução, o pecado, para chegar até Deus.120 A narrativa deixa claro, na

dúvida proclamada pela serpente, que Deus não cumpriria o prometido. Provoca,

seduzindo e gerando a incerteza, de que o caminho possível e seguro é o desejo do

Homem. Na verdade, não o do Homem, mas o da serpente, que introduz o seu

desejo no Homem, tornando-o um desejo alienado, por isso mesmo, inconsciente.

Como diz o autor, “...de nos fazer crer que o pecado é o meio de ter acesso ao

bem. É exatamente assim que o pecado nos faz mal, ele nos afasta de nossas

metas.”121 Por isso, o mal desvia o Homem do seu destino, seduz a um caminho

diferente do proposto por Deus.

Nessa perspectiva, o mal dogmatizado pela teologia permite vê-lo em toda

sua dimensão e alcance, o que significa afirmar que não há limite na atuação do

mal. Torna-se elemento estruturante da realidade histórica. Ou seja, abrange o

pessoal, o social, o econômico, enfim a existência do Homem. Diz Gesché, com

muita convicção, que a justiça passa a ser um imperativo na luta contra todas as

injustiças, uma necessidade da libertação do pecado que aliena o Homem de sua

condição real humano-divina. O mal entrou como erro de destinação do Homem,

de sua vocação. Essa é a contribuição que a teologia deu ao recolocar o mal dentro

da dogmática, pois deu oportunidade de percebê-lo na raiz do contra-destino do

Homem, assim como reconhecer em Deus o primeiro aliado na luta pela libertação

do Homem, acolhendo a salvação oferecida por Ele. Diante disso, o cristão tem o

compromisso de desmascarar essa realidade, rejeitando a leitura moralista do mal

e a mera atitude sentimentalista diante da salvação. A salvação requer uma

profunda e sincera análise da origem e repercussão do mal a partir da teologia. A

salvação acontece na mediação dessa história, enredada pelo amor de Deus e da

ação diabólica do mal. A luta parte do amor de Deus contra o mal. Portanto,

120 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 65-67. 121 Ibid., p. 68.

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compreender o amor como constitutivo da existência do Homem na construção de

sua relação histórica e do seu destino.122 Ser humano, alma, corpo e destino

devem pertencer a uma única realidade de existência na luta contra o mal. Dessa

forma, qualquer mal que desvia o Homem de seu destino divino deve ser

combatido, pois, mais do que algo moral, torna-se, como diz Gesché, um erro de

destinação. Daí, a compreensão do termo perdição, que traz a idéia central da falta

de rumo, onde o Homem, sem saída, cai nas armadilhas de uma existência

reducionista, por isso fechada no próprio indivíduo. Nessa realidade, o mal faz

habitação e estende seus tentáculos na estrutura social. Essa é a razão da

necessidade urgente da luta contra o mal por mediações, como a justiça, que tem

alcance nas estruturas da sociedade. A justiça e a caridade são dois elementos

destacados por Gesché para mediar a luta contra o mal.

Procurando cada vez mais compreender a perspectiva cristã como caminho

no enfrentamento e na superação do mal, indicaremos definitivamente a relação

teológica estabelecida entre a salvação e o mal como realidade dada

existencialmente. Vimos que o mal age como perdição do ser humano, o que

conduz às conseqüências de uma realidade existencial limitada. Podemos afirmar,

então, que o mal, nessa perspectiva, tem alcance existencial, ou seja, configura-se

de forma pessoal, apesar de surgir como realidade misteriosa, sem lugar real, sem

imanência, como afirma o autor. Sendo o mal uma realidade desordenada,

destruidora de sentidos, há a necessidade, então, na lógica da teologia, de uma

outra realidade para além do Homem, contrária à desorientação produzida pelo

mal. Uma realidade que o oriente para além de si mesmo, para horizontes maiores,

sentido o último de sua razão existencial. Nesse sentido, o autor fala de uma

alteridade, um Outro capaz do enfrentamento: Deus. Aqui definimos a presença da

teologia, capaz de falar de uma ação concreta de salvação.123 O mal configurando-

se na existência, utilizando-se de mediações para agir, molda uma concepção

pessoal de sua ação. E é a salvação que fala e exige da pessoa atos,

comprometimento criativo com a vida, transformador de sentido. Por isso a

teologia apresenta a salvação como única resposta de combate ao mal. Só a

salvação proposta por Cristo foi capaz de destruir o mal e dar ao Homem a

sustentação para sua luta pessoal e social contra a configuração desse mistério.

122 Ibid., pp. 68-70. 123 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 75-78.

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Gesché dá a oportunidade aos crentes de explicitar com segurança que Deus luta,

impede que o mal saia vitorioso da realidade que o fez. Ao contrário da afirmação

dos não crentes, de que o mal representa uma objeção à realidade de Deus, é Deus

que faz barreira, objeção visível ao mal. Em Jesus Cristo Ressuscitado, Deus

derrotou e fortaleceu o Homem na sua luta contra o mal.124

“Somente esse Ab-soluto é de tal modo (completamente) inocente, isto é, des-ligado de toda cumplicidade, para poder vencer o mal. Talvez seja esse um dos sentidos profundos, ao lado de outros, é claro, do dogma de Cristo sem pecado. Essa exceção antropológica da cristologia não depende apenas de uma verdade hipostática e ontológica. Ela não possui todo o seu sentido se não houver o aspecto soteriológico. É por não ter nenhuma parte com o mal que Cristo pode assim, suportar e tirar esse peso do mundo. Não é precisamente por não ter pecado que ele pode, segundo São Paulo, ‘ser feito pecado por causa de nós’, tornar-se ele próprio maldição por nós’”. 125

Como o texto afirma, somente Deus seria capaz de derrotar o mal, porque

no Filho, feito homem histórico, pôde encarar e enfrentar esse mistério

personalizado no mal na história humana. Jesus, Deus pleno e homem pleno, sem

pecado, se faz pecado na luta contra o mal, deixando-nos o único caminho

possível para vencer a morte, a sua ação salvadora. O crente encontra na teologia

o fundamento do debate para defender sua fé em um Deus Salvador-Criador e

afirmar concretamente o significado central de sua fé: Jesus Cristo morreu para

salvar o Homem do pecado. Dessa forma, podemos falar com segurança do

sentido da responsabilidade e da liberdade construídas na história da existência do

Homem, porque é na ação concreta que Jesus propõe que o Homem possa se

reconhecer responsável e livre para dar sentido à sua existência. Vimos no

primeiro capítulo a abordagem antropológico-teológica que Gesché desenvolve

para falar do ser humano. É nessa perspectiva do Homem, criado criador, que o

cristão vai abordar o enfrentamento do mal diante da proposta da salvação.

Evidentemente, esta é a primeira defesa do cristão: falar da salvação como única

realidade radical contra o mal. Mas isso não basta, diante da história, onde o mal

se fez nomeado. É preciso mediações concretas, como Jesus sinalizou, construídas

pelo Homem na sua relação social. Até porque o mal também fez morada nessas

relações e Jesus salvou utilizando-se dessas mediações. Aqui o autor fala da ética

124 GESCHÉ, A., O Mal, p. 80 passim. 125 Ibid., p. 79.

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e da moral, ou seja, dos elementos da justiça e da caridade, como uma mediação

purificadora da justa medida existente entre os Homens.126

O autor desdobra a reflexão dessas mediações mostrando algumas

conseqüências que nascem das suas próprias limitações. A justiça nasce, sabemos,

da necessidade de não se praticar a injustiça. Mas reconhecemos que, por si só,

não dá conta da luta contra o mal. É importante pelo limite que impõe à realização

do mal. Mas não basta, pois corremos o risco de absolutizar o culpado e limitar a

salvação à mediação histórica do próprio Homem. Jesus sinalizou esse risco na

relação da lei judaica, que considerava justos aqueles que cumpriam os preceitos

da lei. Aqui é necessária a vigilância. O critério da salvação ultrapassa o da justiça

humana. É fundamental e até essencial que se lute pela sua efetivação, mas com a

permanente indagação cristã: estamos mais preocupados em condenar o culpado

ou em salvar a vítima condenada? A justiça do Homem não é a justiça do Reino.

Todo cuidado se faz necessário ao assumir a razão teológica da luta contra o mal

diante das acusações dos não crentes de que Deus, permitindo o mal, tenha

oferecido o argumento de sua anulação.127

Portanto, para ser fiel à justiça de Deus, é importante fugir dos riscos de

uma moralização na luta contra o mal, tornando a mediação um instrumento

absoluto no combate ao mal. Essa realidade moralizante seria possível de

acontecer porque é simples crer que a justiça corrige o mal fazendo o bem. Mas

sabemos que o mal tem sua origem fora do alcance desse mundo e, por isso, só

outra realidade, transcendente, poderia dar conta de sua derrota. Mais. O bem não

se limita no seu próprio fim, portanto, como afirma Gesché, “a salvação não pode

ser conquistada com essa única medida.”128 Assim como a liberdade, a salvação

tem mediações a serem desenvolvidas e construídas como metas, cada uma com

lugar e sentido próprios. Fundamentais na relação humana com o outro, mas

ambas existindo para além do imediato, destinadas a um sentido maior, à

existência em Deus, que, na realidade, permite a construção da identidade cristã.

Para essa identidade ser desenvolvida, a caridade se destaca na relação de uma

ação justa, atenta aos critérios da não moralização.

126 GESCHÉ, A., O Mal, p. 82. 127 Ibid., pp. 82-85. 128 Ibid., p. 88.

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Neste caso, o amor (caridade) é um elemento purificador das relações entre

os Homens. Foi o caminho sinalizado por Jesus na salvação, um gesto radical de

doação, de gratuidade, de paixão que levou Jesus Cristo à cruz. A radicalidade do

amor de Deus, na Encarnação e na cruz, permite Gesché defender, mais uma vez,

uma des-moralização da ação no combate ao mal. A caridade é o caminho de

Deus, não simplesmente um ato moral. Ao contrário, encontra-se numa lógica

diferente da ação moral: a lógica do excesso e de gratuidade, foge à lógica da

justiça dos Homens, que se limita a uma correção do mal.129 “O mal não clama

unicamente por vingança (é o olhar que se dirige ao culpado), ele clama

sobretudo por compaixão (é o olhar dirigido à vítima)”.130 Mais uma vez o autor

acentua a perspectiva cristã a partir do próprio Evangelho, que se preocupa mais

com a vítima do que com o culpado. São Paulo, no hino à caridade, confirma a

redução do Homem à sua finitude: “...se não tiver a caridade, de nada valeria!”

(1Cor 13, 3). Provavelmente, seria um Homem sem rumo, vulnerável à escravidão

do pecado. Radicalizando ainda mais o entendimento da prática da caridade

encontrada no Evangelho, vale recordar que é ato do amor ao outro, esquecido na

lembrança da memória que caracteriza o excesso, que não se reduz a um simples

ato de justiça, mas por um excesso de amor. São Mateus, no capítulo 25, confirma

a entrega sem medidas ao outro, o próximo. Portanto, poderíamos afirmar, sem

pudores, que a caridade, critério da salvação, não se limita apenas aos cristãos,

mas a todos os que se dispõem a realizar a justiça pela caridade, no amor vivido

de forma absoluta pelo outro. Aqui o absoluto tem lugar para existir. Porque foi

assim que conhecemos o caminho que Deus fez na história do Homem: amou com

absoluta humanidade o ser humano. Um absoluto que consome o Homem para

além dele mesmo, o ato de amor.

2.4.3 O pecado original e a culpa

Uma síntese para o tema seria a proposta que o autor faz de reinventar a

caridade, buscando os sentidos para sua realização. Esse seria o ato de salvação

cristã, de um Deus que ao permanecer criando, permanece oferecendo ao ser 129 GESCHÉ, A., O Mal, p. 86-88. 130 Ibid., p. 88.

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humano atos criativos, atos de libertação. Estamos falando da Salvação que Cristo

ofereceu ao ser humano, portanto, da salvação cristã.

O esforço de Gesché, em desenvolver seu pensamento sobre o ser humano

e a construção de uma identidade cristã que seja legitimada teologicamente,

encontra-se fundamentada na Sagrada Escritura. É na narrativa bíblica da tradição

judaico-cristã que encontramos a revelação para respostas teológicas sobre a

existência do ser humano. Por isso, o autor alinhava aquele final da Escritura,

sobre a prática da caridade, como ação máxima da radical revelação do amor de

Deus. Revelação de salvação presente em toda a existência histórica de Jesus

Cristo. E, agora, finaliza a reflexão sobre o mal, retornando ao início de tudo, de

onde as acusações surgiram: o pecado original. Seguiremos nessa finalização

acentuando elementos importantes no reconhecimento do pensamento teológico

sobre o mal, assim como de todos os temas fundamentais que envolvem o Homem

na sua realidade histórica e que dizem respeito a Deus.

Temos, agora, a tarefa de afirmar e reconhecer a doutrina do pecado

original como uma verdade libertadora. Sabemos da dificuldade, diante de uma

leitura histórica do cristianismo que exagerou na acentuação do mal em relação à

culpabilidade. O exagero depositado no Homem gerou a absolutização dessa culpa

e desse mal sobre Deus e o Homem. Reconhecer isso nos ajuda a melhor situar a

verdade sobre a disseminação do mal. Por isso, não negamos o que foi construído,

mas desejamos anunciar o que verdadeiramente se encontra como proposta da

criação: a salvação do ser humano, a libertação do Homem de todas as culpas que

impedem de sua realização humana, de sua destinação.131

Essa compreensão necessita da primeira afirmação de que a mensagem

cristã de salvação é da salvação mesmo. Portanto, não pode ser entendida a partir

de uma falsa idéia de pecado. Não teria lógica, na perspectiva da salvação, essa

idéia gratuita do mal. A idéia presente na narrativa, ao contrário, é de combate

radical contra a existência do mal. Há, na doutrina do pecado original, uma

verdade de salvação. Como diz Gesché, uma verdade e verdade de salvação.132

Recordando o que já abordamos sobre a existência do mal, a serpente deve ser

destacada simbolicamente como um elemento paradigmático do mal como

mistério, como algo de anterioridade, extrínseca à criação. Assim, teríamos algo

131 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 94-96. 132 Ibid., p. 95 passim.

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para olhar e compreender, antes de responsabilizar Deus e o Homem diretamente

pelo mal.

Esta é a proposta: perceber o mal como algo dado, realidade

incompreensível, mas real. A teologia bíblica não pretende negar, nem justificar,

mas encarar a realidade do mal de frente, uma realidade que diz respeito a Deus e

ao Homem. É o cristão que deve assumir para si essa responsabilidade de desvelar

a origem do mal, desmoralizando a ação moral exagerada produzida pela Igreja

historicamente.

Confirmando o mal como realidade não criada, recorremos, mais uma vez,

à narrativa bíblica ao recordar que Deus mesmo condenou o mal com indignação:

“porque fizeste isso, serás maldita...” (Gn 3,14). O mal, então, não pertence à

natureza das coisas, deve ser compreendido como acidente, uma desgraça. Por

isso Deus assume o combate contra o mal, que só na Graça da salvação pode ser

derrotado e destruído, como foi vencido diante da morte de Jesus na cruz. Deus

ressuscita o Filho, vencendo a morte e salvando o Homem do pecado, da

possibilidade do ser humano sucumbir com o peso do pecado.

Destacamos, ainda, mais dois elementos importantes nessa sistematização

sobre o mal: a sedução e o castigo simbolizado no arcanjo na porta do paraíso.134

Vimos que a serpente, com a força simbólica de colocar o mal fora da criação, traz

a realidade da amenização da culpa do Homem. Se o mal antecede, o Homem não

pode ser culpado de todo o peso dessa responsabilidade. Mas a Bíblia não nega

que haja uma real responsabilidade do Homem na existência do mal. Aqui entra a

sedução como resposta a essa responsabilidade. Anteriormente já abordamos que

o desejo do outro, introjetado na pessoa, provoca o maior mal na raiz da história

do Homem: a alienação dos seus próprios desejos. Isso foi o que a serpente

desencadeou. Gesché reconhece, no elemento da tentação, o caráter libertador da

doutrina do pecado original, pois retira do Homem o peso absoluto de sua

culpabilidade. Libertador, porque o Homem, não carregando esse peso exagerado,

encontra forças para lutar contra o mal e não se deixa vencer pela fatalização que

ele provoca na vida do Homem. O Homem tem com quem dividir a sua culpa, que

não lhe isenta da responsabilidade do consentimento. Por isso, a teologia fala da

herança e transmissão, pois, apesar da incompreensão e da polêmica existente

134 GESCHÉ, A., O Mal, p. 100 passim.

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sobre o seu significado, oferece o conforto de que você ao nascer já recebera esse

mundo de pecado, ou seja, algo já ocorrera que não tenha sido você unicamente o

responsável. O que lhe encoraja a participar da luta pela destruição do mal,

evitando sua colaboração na extensão desse pecado. É o que o autor destaca, à

frente, ao abordar a responsabilidade de solidariedade e de liberdade.135

Outro importante elemento é o castigo. A idéia do arcanjo na porta do

paraíso é uma concepção de que o Homem não será eternamente atormentado pela

culpa que, porque ele próprio se julga, torna-se mortal para ele. A

hiperculpabilização é provocada pelo julgamento que o Homem faz de si mesmo,

um julgamento que sozinho não teria um fim. O Homem precisa do outro para

esse fim, um outro que possa afirmar a absolvição. Por isso, tão sabiamente a

tradição judaico-cristã apresenta a figura do arcanjo, o outro, aquele “que põe fim

a um processo de destruição”.136 Podemos, dessa forma, anunciar que a tradição

bíblica faz do mal uma realidade dada, portanto, cultural, como afirma o autor. E,

sendo assim, para o Homem, de liberdade e de domínio. A verdade da

responsabilidade do Homem está dita e reconhecida pela tradição. Outros

discursos também afirmaram essa responsabilidade, cada um a seu modo. A

teologia fala, com o seu discurso, sem negar essa parte responsável que cabe ao

Homem, mas anunciando uma participação partilhada com uma realidade que não

lhe pertence, misteriosa aos olhos do mundo criado. A partir dessa visão, a

Sagrada Escritura oferece uma rica leitura de valor quando se refere, por exemplo,

à existência do mal das catástrofes naturais. Muitas vezes a responsabilidade vem

da ação dos Homens.137

Nesse sentido, a doutrina do pecado original sinaliza que a

responsabilidade é de solidariedade e de liberdade. Aqui retomamos o que foi dito

acima sobre a importância da herança e da transmissão, quando permite uma nova

leitura para a compreensão mais racional do pecado. Ao Homem foi transmitido

por herança. Portanto, ao receber torna-se responsável, mesmo sem desejá-lo. Ele

se vê inserido numa realidade que lhe foi dada sem participação direta. Mas agora,

de forma direta, se torna responsável por essa mesma realidade herdada, que será

por ele deixada como herança aos outros. Encontramos o pleno sentido da

135 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 101-103. 136 Ibid., p. 100. 137 Ibid., pp. 102-104.

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liberdade responsável que Gesché trata dentro da doutrina do pecado original.

Compreendemos, dessa maneira, a riqueza dos elementos da tradição bíblica que a

teologia tem disponíveis para construção de um entendimento racional sobre a

relação de Deus e do homem de fé com o mal.

Buscando finalizar a relação estabelecida pela teologia no debate sobre o

mal, destacamos o que já está dito, tanto de forma explícita como implícita: a

doutrina do pecado original é uma doutrina da salvação. Este aspecto é de muita

significação para o debate sobre o mal e o pecado, porque nos colocará na direção

do nosso destino. A realidade da salvação dá ao Homem a condição de se

reconhecer livre, capaz de libertação. Essa concepção de que o mal, não sendo

parte do Homem, do seu ser, mas podendo levá-lo a não ser, nos remete à

possibilidade da salvação. O mal é atingível, há um domínio existente sobre o mal.

Podemos olhar para a doutrina do pecado original e perceber a abundância da

Graça de Deus.138 Existe, na doutrina, a presença intrínseca da salvação, nada

permanece fora do alcance da Graça de Deus. A Sagrada Escritura define, de

forma muito clara, o caráter salvífico ao tratar o tema do pecado na sua origem. Se

existe lugar originado, pode ser combatido, não pertence à ordem da destinação.

“Penso que, desse importante ponto de vista, não há nenhum traço, na tradição judaico-cristã, de ‘mal escatológico’, de ‘pecado escatológico’, mas somente de pecado original. Se o mal fosse uma grandeza escatológica, estaríamos destinados a ele. Mais uma vez, não haveria nada a fazer. (...) O mal, em princípio, não terá a última palavra.” 139

Essa compreensão consolida a idéia de que a responsabilidade e a carga da

culpabilidade relacionam-se e revelam ao Homem a sua capacidade de libertação,

à medida do grau do seu envolvimento e do amadurecimento, na luta contra o mal.

É uma relação adulta diante da falta. O tema já nos ofereceu essa compreensão

sadia de uma reconhecida culpabilidade. Isso faz um enorme bem ao ser humano.

O problema se encontra quando a culpabilidade se torna mórbida, como denomina

o autor, o Homem é tomado por um “culpabilismo permanente”, imobilizador de

qualquer ação libertadora. Essa condição é perversa diante do próprio indivíduo,

porém mais grave diante de Deus, pois a anulação do Homem ofende a criação. O

Homem se enreda numa aparente forma de combate, mas de fato imóvel diante de

uma ação efetiva de luta. Na verdade, o culpabilismo age numa superfície de

138 GESCHÉ, A., O Mal, p. 105 139 Ibid., p. 105.

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tentativas que acomoda a consciência uma responsabilidade. Porém, não coloca a

meta do futuro transformador e exigente de ações no presente, o que desencadeia

frustrações e uma autodestruição constante.140

A tradição cristã tem no perdão o sentido norteador da retomada do destino

do ser humano. Vai permitir o recomeço do caminho, a continuidade na luta

contra o mal. Dessa forma, vai mais além, dá ao Homem a certeza da Graça de

Deus. A salvação é possível e não é o Homem quem o afirma. É Deus, quando

rejeita e impede a derrota do Homem pelo mal.141

Aproveitamos a citação bíblica de Mateus, trazida por Gesché, e

concluímos com a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, revelada como

surpreendente na abordagem sobre o debate do mal na história salvífica da

criação:“o que desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 16,9). O esforço,

a partir do ponto seguinte, é aprofundar o entendimento da salvação, hoje, para

que o debate teológico tenha, cada vez mais, recursos no espaço da racionalidade

do mundo real. Seguimos com o entusiasmo do autor.

2.5 A Destinação

Após o estudo da abordagem teológica de Gesché, defendida como

solução para o problema do mal, conseguimos reconhecer, na existência histórica

do Homem, os elementos possíveis na luta contra o mal. Reconhecemos na

construção da identidade cristã a Sagrada Escritura como fonte reveladora da ação

salvífica de Deus, a partir do entendimento sobre a verdade salvadora contida na

doutrina do pecado original e, o amor de Deus, na ação libertadora de Jesus contra

o pecado. Enfim, podemos afirmar a possibilidade de uma nova relação entre o

Homem e Deus na luta pela derrota do mal, possibilitando ao Homem reencontrar

o seu destino: a plena realização humana. Essa realização que, antecipamos,

afirmamos representar a Salvação proposta pelo cristianismo como único caminho

de resposta ao mal configurado na existência histórica. Esse é o tema que

desenvolveremos, buscando dar os contornos finais à compreensão teológico-

140 GESCHÉ, A., O Mal, pp. 105-108. 141 Ibid., p. 109.

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antropológica que fundamenta a construção da identidade cristã, necessária ao

reconhecimento do Homem da fé no discurso das ciências.

Gesché não desvincula seu pensamento teológico sobre Deus e o ser

humano como existências separadas. Há uma intrínseca relação que não permite

falar de um sem a presença do outro. Deus criou, fez existir sua criação nesse

processo intrínseco e dialético que O une à sua criação através do elo da alteridade.

Vimos no início desse capítulo os elementos estruturantes do ser humano que

possibilitam fundamentar e inaugurar essa visão entre Deus e o Homem.

Propomos, neste tema sobre a destinação, fechando o capítulo, já embebidos e

plasmados pelo pensamento do autor, falar, simultaneamente, do ser humano e da

salvação de Deus. Assim como nos ensina Gesché, no próprio dinamismo de Deus

reconhecer o dinamismo do Homem em direção à sua destinação. Sem dúvida

alguma, essa relação precisa ser reconquistada na vida do Homem. Deus está lá, à

espera da abertura da porta. Não invade se não for pelas mãos do próprio Homem.

Por isso, insistimos na beleza dessa intrínseca relação, somente percebida quando

o Homem dá o sinal verde para Deus avançar. Uma citação bíblica, trazida por

Gesché, elucida essa compreensão: “eu estou à porta, e se me abrem, entro” (Ap

3,20). “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém: não acordeis, não desperteis quem

eu amo antes de ele querer” (Ct 2,7).

Compreendemos, dessa forma, que Deus reconhece a necessidade do

desejo do Homem na mobilização de sua ação a favor de sua realização humana,

essencial para reencontrar sua destinação. Recorrendo à estrutura humana, Gesché

mergulha no âmago do Homem e faz indagações que, esclarecidas, conduzem à

sua realização, ou seja, à destinação em Deus. Primeiramente, há no Homem uma

busca que o faz ser reconhecido na sua identidade de ser humano, o seu próprio

destino, que pertence unicamente a ele como indivíduo, pessoa reconhecida.

Reconhece que a sua liberdade o faz construir ou destruir essa possibilidade.

Muito interessante o que o autor nos faz rever sobre a palavra destino. Ao

contrário do que o senso comum trabalha como anônimo ao homem, existe a

marca de sua ação na construção desse destino, pois é isto que permite seu

reconhecimento pessoal dentro da sua vida social, ou seja, comunitária. Aqui

identificamos uma busca pela superação da limitação do ser humano, pois, ao se

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perceber capaz de fazer, se vê, também, agindo pelo outro e com o outro, que

colabora nessa construção final de sua identidade. Ou seja, a auto-transcendência

se torna necessária no processo dessa construção. O Homem se vê limitado pelas

condições de sua finitude e só consegue superá-las quando se abre numa mútua

relação com o outro. Essa reflexão sobre o destino nos leva para mais longe na

compreensão desse Homem que tem o desejo de ser reconhecido como ser. Diz

Gesché:

“...a idéia de que algo, de alguma forma, talvez nos seja proposto, oferecido, outro aspecto um tanto paradoxal, mas real da liberdade, e que é acolher algo que nos vem ‘de outro lugar’, de uma alteridade.”143

Essa idéia comporta a presença da realidade afetiva do ser humano. O

Homem é um ser de desejo, por isso receptivo às orientações externas que criam

os sonhos e a realidade sonhada. O Homem se percebe enredado na construção de

algo maior, que não se limita unicamente à sua pessoa, mas abrange um universo

que não chega a alcançar. É essa dimensão de abertura, que constitui o ser

humano, que o faz despertar em seus desejos e, que Deus espera acontecer para se

pronunciar. Na verdade, como afirma Gesché, a busca do Homem na construção

de seu destino revela uma mobilização em toda a sua existência, a sua realização

pessoal está comprometida em relação à realização pessoal do outro. Isso significa

dizer que o ser humano, necessariamente, se encontra voltado para dar sentido à

sua liberdade, à existência de sua vida. A teologia traz, aqui, a sua colaboração: o

sentido último que o Homem deve dar à sua existência. Cada vez mais

encontramos na teologia o fundamento para pensar Deus e o Homem na

perspectiva de uma recriação da identidade cristã.

Gesché continua nas suas indagações do ser humano sobre essa busca pela

construção de seu destino. Agora, recorre às conhecidas afirmações fatalistas,

corriqueiras, mas significativas, que contradizem sua afirmação sobre o desejo da

construção do destino do Homem. Por exemplo, sobre o próprio destino ser de

Deus, já determinado por Deus. O que impede o Homem de transpor alguns

obstáculos e de interpretá-los como fatalidade? Os obstáculos intransponíveis são

tratados, pelos Homens, como algo de ordem diferente às suas possibilidades

humanas. A predestinação, lembrada por Gesché, contribuiu na consolidação da

mentalidade fatalista, quando deu ao destino um lugar: Deus. Não temos, aqui, a

143 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 82.

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pretensão de desdobrar essa concepção, apenas de recordar os efeitos que teve na

história do cristianismo, contribuindo para os medos e culpas diante dos

obstáculos (situação) incompreensíveis e difíceis de superação. Na busca de

responder essa indagação, Gesché considera três vias importantes: a de reconhecer

a atração que a fatalidade provoca no Homem; a vantagem de sua existência

diante da irracionalidade do efeito do mal; e a de enfrentar o fatalismo como dado

real na nossa formação existencial (histórica, cultural e psíquica), superando-o

quando possível.144

Segundo o autor, o Homem também traz dentro de si, por questões

históricas, circunstanciais à sua liberdade vivida, o desinteresse, a falta de

motivação e de desejo em responder a essa realidade apresentada. Por outro lado,

essa acomodação pode sabiamente reter energia necessária à superação do que

venha a ser fundamental na mudança da direção de sua existência. Nesse aspecto é

destacada pelo autor a contribuição que o cristianismo tem como valor para

oferecer: “entre o ser humano tal como deveria ser e o ser humano tal como é, há

espaço para o ser humano como pode ser.” 145 Nesse trecho, evidenciamos a

liberdade dada na criação do ser humano e respeitada na realidade do Homem. É,

justamente, a ação histórica do Homem que deve ser considerada na salvação

proposta pelo cristianismo. Teremos oportunidade, mais adiante, de aprofundar o

tema da salvação como processo de construção da liberdade do ser humano. A

dinâmica acontece na história do Homem, que é história da salvação.

Compreendemos, então, a terceira via indicada por Gesché: trabalhar os

condicionamentos, transformando-os em realidades possíveis, ou seja, reconhecer

a realidade como dada, objetivamente limitada por seus condicionamentos

histórico-culturais. Assim, os riscos do fatalismo histórico são reduzidos e as

chances do ser humano superar os obstáculos em direção à sua felicidade se

tornam maiores. Já podemos falar da salvação cristã como um processo de

liberdade atuante do Homem na sua situação histórica. A existência do ser

humano é tomada pelo dinamismo da salvação, que deve inseri-lo, sempre, na

construção de seu destino, desejo de reconhecer-se diante de si e do outro. Daí,

144 Cf GESCHÉ, A., O Sentido, pp.86-91. O autor trata das vias de forma a conduzir-nos a uma maior reflexão sobre as possibilidades da desfatalização proposta na tradição judaico-cristã. 145 Ibid., p. 89.

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também, podemos falar na direção de sua destinação, o Outro, a quem o Homem

abriu a porta quando seu desejo foi despertado.

Essa compreensão da salvação como processo nos remete a uma indagação

mais profunda de Gesché, de que o ser humano deve ousar no excesso para

encontrar razões suficientes que despertem paixões e desejos por mudanças

concretas. O Homem só poderá exceder-se considerando a realidade e superando

as mediações imediatas que vêm como solução da própria realidade. Ou seja, o

Homem precisa ousar, ir além do que lhe é apresentado como solução. Sem se

esvair da realidade, encontrar respostas, novas formas de viver em liberdade sua

existência, que transcende à realidade condicionada. As mediações são

fundamentais como referências da realidade, mas insuficientes para uma

libertação mais profunda do ser humano, que dê o sentido último do seu destino

criado e construído. Nas palavras de Gesché, “um combate para a liberdade e

para a libertação requer práticas econômicas, políticas e técnicas. Não se

instaura o Reino chamando ‘Senhor, Senhor’”.146 Essa abordagem mais concreta

sobre a reflexão do ser humano em relação à sua existência cristã será discutida no

terceiro capítulo. Enfocaremos, no entanto, o excesso, porque é nele que o autor

sustenta a chave da estrutura antropológica do ser humano, a chave que possibilita

ao Homem criar consciência para agir, colaborando na sua salvação. É o excesso

que vai possibilitar a superação dos obstáculos “intransponíveis”. Gesché aborda,

nessa reflexão, a questão das finalidades, os sentidos que o ser humano precisa dar

às suas realizações, para encontrar o sentido último de sua destinação.147

É nessa perspectiva que o autor convoca o ser humano a se deixar tomar

pelo excesso da paixão, onde a razão cederia espaço à emoção e, juntas,

aflorariam a sensibilidade pelo belo, pela arte, que desvela o desejo de amar e a

capacidade de se doar. Dessa forma, o Homem estaria participando da descoberta

de uma nova lógica na sua realidade histórica, a dinâmica da gratuidade do amor.

A essa convocação, Gesché destaca a rica possibilidade que o cristianismo trouxe

para além da história. Reconhecemos a importância do processo histórico,

construído e transformado pelos Homens, mas rejeitamos a concepção limitada

dos projetos que, mesmo novos, a serem realizados, são dos Homens, portanto,

sempre limitados na sua apresentação. Nesse caso, da absolutização do projeto

146 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 92. 147 Ibid., pp. 92-97.

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realizado, corre-se o risco de compreender o excesso como aplicação de um fim

atingível, realizável.

“Há insuficiência ‘ontológica’ da história em pretender satisfazer a esperança e a capacidade do ser humano, colocando-as nos limites de seu horizonte neste mundo. E cabe lembrar que a tradição cristã, ao mesmo tempo que é teologia da Encarnação e do tempo, sempre contou com sua escatologia.”148

Acreditamos que a citação nos esclarece quanto ao sentido maior do ser

humano como um ser de desejo, onde o lugar da história se torna inesgotável para

sua absoluta realização. Mesmo considerando uma sociedade que tenha atingido

uma realidade de justiça e igualdade, sempre haverá a necessidade do excesso, ou

seja, da prática do amor como garantia da realização humana. É essa necessidade

que alimenta a alteridade constitutiva do ser humano, o que faz dele um ser de

possibilidades além de suas limitações e esforços pessoais, um ser da auto-

transcendência. É nesse entendimento, teológico e antropológico, que o

cristianismo traz a novidade escatológica, com diz o texto, presente na ação de

Jesus, quando anuncia a chegada iminente do Reino de Deus. Deus fez do tempo

da história um tempo de esperança escatológica quando, na Encarnação, o

transcendente se fez imanente.

Gesché se propõe, ao fim de suas indagações sobre o destino que o

Homem vai construindo na sua existência, falar da teologia da destinação, melhor

definindo, da antropologia de destinação teologal. Na verdade, é a defesa pela

teologia como algo possível, por isso, seguro de ser vivenciado, pois já existe

como dado e ofertado nos escritos dos Evangelhos. O autor defende a

possibilidade do Homem aceitar uma destinação teologal como realidade a ser

aceita, vivenciada e defendida.149

Nessa perspectiva, retoma sua compreensão sobre o ser humano “visitado”,

que, como ser de alteridade, permite ir além de suas forças físicas e reconhecer-se

um ser de acolhimento de visitação, um ser capaz de se apaixonar e de se doar

sem limites.150 Um ser humano compreendido, como já estudamos, como um ser

de abertura, de diálogo, de receptividade, que, se não o fosse, estaria condenado à

sua finitude, num vazio de sentidos, portanto, um ser sem destino, perdido na falta

148 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 101. 149 Ibid., pp.102-106. 150 Ibid., p. 106.

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de um rumo, um ser alienado. Aqui Gesché levanta a distinção entre alienação e

alteridade.

“Essa idéia de um dom que nos é oferecido, vindo de fora e com o qual nos encontramos, não deve ofender-nos. É preciso, também, acrescentar isto: se nada disso a que aspirávamos não nos fosse em parte oferecido, e de onde isso vem, perderíamos a coragem numa solidão espantosa. O amor não nos é oferecido e dado? Que nos tornaríamos se não recebêssemos nada?” 151

A alienação condena o ser humano à anulação, pois não permite que os

próprios desejos sejam despertados como seus. Não há construção e, sim,

apropriação do desejo de outro, relembrando o paradigma da serpente, que

introduz no Homem o seu desejo, alienando-o e desviando-o de sua destinação.

Ao contrário do dom recebido, que também vem de fora, mas provoca

perplexidade de algo novo, paixão, permitindo ao Homem construir, na alteridade,

a sua identidade, se reconhecendo como sujeito histórico, social e cultural. O autor

nos remete ao Evangelho de São João, na passagem da samaritana, em que Jesus

diz: “se conhecesses o Dom de Deus...” (Jo 4,10). Certamente, como a samaritana,

nos surpreenderíamos sempre diante do que nos é dado como Dom revelado.

Essa distinção se torna singular na construção da identidade cristã, pois

compreende a liberdade como um dom, oferecido por Deus na criação do Homem,

para que se constitua um ser de destinação, preocupado com os sentidos que dá à

sua existência. Na verdade, um ser que, no processo de suas descobertas, se

surpreende com as possibilidades criadas e oferecidas por Deus. É dentro dessa

compreensão antropológica, reforçada pelo autor no aspecto do excesso, da paixão,

do ser visitado, que é oferecido o dom da salvação. A destinação teologal tem sua

fundamentação nessa antropologia. Uma proposta pautada na liberdade, pois

como acabamos de dizer, o Homem é criado livremente para amar e participar do

amor de Deus. É dentro desse movimento que Deus respeita e espera pelo tempo

entre o anúncio e a resposta do Homem. Aqui falamos de outro aspecto da

destinação teologal, aquele já dito, que se encontra afirmado no Evangelho.152

Gesché sustenta que a destinação teologal já se encontra afirmada na

Sagrada Escritura como anúncio, independente de ser ou não fundamentada como

se exige de qualquer ciência. O anúncio, querigma, como é compreendido nos

escritos do Novo Testamento, se refere a um tempo de esperança escatológica.

151 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 108. 152 Ibid., pp. 104-106.

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Jesus anuncia a promessa desse novo tempo, de “partilha da própria vida de Deus

num único destino.”153 A sua pessoa representa esse novo tempo inaugurado na

história do Homem, mas que não se limita ao tempo cronológico, pois a promessa

é de uma destinação teologal, de uma eternidade. Isso é fundamental no

entendimento dessa destinação afirmada no Evangelho, pois nos é dado, nesse

sentido, uma possibilidade real de uma existência destinada a Deus. O

cristianismo inaugura essa realidade de transição histórica e de eternidade, ou seja,

a eternidade irrompe na história da humanidade, unindo o destino do Homem à

eternidade como possibilidade de construção existencial.

A narrativa do Evangelho, afirmando e anunciando uma verdade, é uma

linguagem diferente da exigida pela ciência, que pede verificações e

comprovações. A linguagem bíblico-teológica tem como premissa a fé, que traz

como ponto de partida a afirmação do anúncio, indiferente à preocupação em

fornecer provas. Assim foi no anúncio da chegada do Salvador (Lc 2,11) e da

Ressurreição de Jesus Cristo (Mc 16,7). O Homem tem, entre este tempo

anunciado e a sua resposta de aceitação e verificação, a sua existência histórica

para ser vivida. Aqui, o autor caracteriza a destinação teologal como algo

oferecido e afirmado, portanto, possível de ser assumido como opção de

construção de um destino. Para que essa realidade seja visível em atitudes,

significativa em ações pautadas nos valores cristãos, é imprescindível reconhecer

a dimensão ética presente, não só nessa atitude humana, “mas também no próprio

seio da transcendência divina.”154.

O Deus de Jesus Cristo, o Deus cristão, é um Deus ético, irrompeu na

história, assumindo todas as exigências humanas, indo ao encontro do ser humano

com todas suas imperfeições, amando-o radicalmente até na cruz, e, quando

glorificado, também glorifica o ser humano. Portanto não podemos falar de um

Deus desencarnado, fora da história, pairando acima das dificuldades e

sofrimentos do Homem. A grande diferença do cristianismo é que o Deus cristão

encontra o ser humano e revela um destino para ser assumido em comunhão com

o Transcendente.155

153 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 104. 154 Ibid., p. 109. 155 Ibid., pp.109-111.

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Acreditamos, junto com Gesché, que a destinação teologal contém uma

antropologia que evidencia uma vocação maior, sem anular nenhuma outra

dimensão do ser, a de ter sido criado para construir uma existência humano-divina.

Sem pretensão de significar uma divindade favorecida por um deus qualquer, mas

de assumir para si a mesma condição de Jesus Cristo, a do servo sofredor, que

viveu na maior expressão de amor e de paixão por todos os homens e mulheres.

“Deus não veio até nós para fazer alarde da grandeza de um Ab-soluto. Veio até nós, ‘sem ter ciúmes de sua divindade’ (Fl2,6), por amor ao ser humano: como um infinito de não-indiferença. O que talvez seja a mais bela definição de Deus. Deus começa descendo. “Quem sobe ao céu, se não aquele que primeiro desceu?’ (Jo 3,13)156

Parece-nos que, diante de tudo que foi dito, ainda mereça desdobramentos

a destinação defendida na perspectiva teologal como possibilidade de existência

humana. Aqui, acreditamos estar a centralidade que Gesché vem trabalhando pela

defesa da identidade cristã. O diferencial se encontra em crer que o Deus cristão

traz essa proposta de existência humana. Não um convite para ser vivido

individualmente, mas em comunhão com o Transcendente. Mais do que

reconhecer é assumir que esse Deus se revela na história e apenas na história pode

ser reconhecido, compreendido e defendido. Para isso, Gesché nos oferece os

subsídios teológicos e, com eles, procuramos reler, aprofundar e recriar novos

paradigmas necessários à nossa atuação como cristão. Nessa compreensão,

precisamos, ainda, desfazer algumas antigas imagens que comprometem a

compreensão da salvação oferecida como destinação teologal.

Primeiramente, a necessidade de desfazer a idéia da salvação diretamente

vinculada à do pecado. Saber identificar na palavra o significado fundante na vida

do ser humano, o de se sentir a caminho de realizações e de sua felicidade. O

autor vai recolocar a palavra dentro do seu sentido próprio que a teologia, bem ou

mal, sempre buscou falar: o fim do ser humano, a sua destinação. Assumindo essa

trajetória, Gesché explora os sentidos da palavra salvação que sugeriram, sempre,

indagações e dúvidas, por isso necessário revê-las para devolvê-las ao lugar de

origem. Do quê a salvação nos salva? Por quem somos salvos? Para quê e

baseados em quê? Indagações estruturantes para o pensamento do ser humano,

pois o coloca como ser de reflexão e de alteridade, diferenciando-o dos outros

seres criados. Nessas indagações podemos reconhecer presente no Homem a

156 GESCHÉ, A., O Sentido, p. 111.

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possibilidade de relação com o transcendente, porque é lá que ele vai buscar

respostas não encontradas na sua existência histórica. É, então, que a religião, o

pensamento teológico, ocupa o seu lugar, e com legitimação, pois vem responder

às próprias indagações do ser humano.157

“Eu vim para que tenham vida e tenham em abundância” (Jo 10,10). É

verdade que encontramos no Novo Testamento uma proposta clara de realização

humana, a partir da fé, do que se crê atingir como meta para o qual fomos criados.

A citação de São João confirma e convida o ser humano de fé a essa realidade de

plenitude. O cristão encontra essa mensagem positiva e real de vida, um convite à

sua realização plena em Jesus Cristo. Esta é a salvação contida na Sagrada

Escritura. Porém, sabemos que subsiste no imaginário do senso comum uma

contraposição entre salvação e pecado, associando-os de forma direta, como se

houvesse intenção dos cristãos, interessados na Evangelização, impor uma adesão

em troca da própria salvação. Encontramo-nos diante de uma resistência e

distorção do sentido da palavra salvação. O processo histórico do cristianismo

também não colaborou para a evolução da palavra, pois o seu sentido recebeu um

aspecto mais moralizante que acabou por acentuar a relação mais imediata com o

pecado. Esse processo tem começo quando o Homem, diante dos obstáculos que

impedem essa realização maior, não consegue transpô-los a fim de atingir a meta

para o qual fora criado, ser feliz e um ser humano realizado. Entendemos que todo

ser humano tem como meta sua realização e não, ao contrário, sua infelicidade.

Portanto, os Homens sempre lutarão pra encontrar a felicidade. A questão é como

e onde a encontrão. Na verdade, a luta pela superação das dificuldades para se

alcançar a felicidade é positiva. O problema se concentra quando se absolutiza

esse aspecto como questão-chave para a salvação, levando a uma oposição

excludente com o pecado. Gesché quer justamente recolocar a importância desse

mecanismo de defesa do Homem na luta pela sua realização no seu lugar de

origem, de estar em segundo plano, pois o primeiro é a finalidade de sua

realização humana. Lutar pela sua felicidade, superar os obstáculos da meta de

viver sua realização pessoal e social, faz parte de um momento da salvação, que

representa a sua plena realização. Portanto, não são momentos excludentes, mas

pertencentes a um mesmo processo, o da salvação. É nessa perspectiva que o autor

157 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 21-60.

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defende a revisão da palavra e compreensão do sentido da salvação. À medida que

superamos os obstáculos, estamos vivenciando a salvação, pois nos libertamos do

que nos afasta de nossas realizações humanas. Colocamo-nos na dinâmica do

enfrentamento entre ser e não ser, ou seja, na defesa dos nossos desejos de

realizações, porque sem eles somos seres vulneráveis à desorientação, perdidos

em nossa própria identidade. Dessa forma, a salvação pode ser dada como parte

constitutiva do ser humano, pois se torna parte da existência humana o desejo pela

plena realização. Assim, passamos a compreender a salvação dentro do

dinamismo da história, identificando uma resposta positiva à primeira indagação

feita sobre de que somos salvos. 158

Reconhecendo o dinamismo da salvação como parte integrante da

existência do Homem, Gesché nos oferece uma ampla compreensão ao destacar os

obstáculos mais determinantes, que configuram o ser humano na luta pela

superação de suas dificuldades. A consciência da finitude na morte, o mal e a

fatalidade. Porém, paradoxalmente, são esses obstáculos que permitem ao Homem

construir sua identidade como sujeito histórico, ou seja, sua existência de vida. Do

mal, como já teve seu lugar de destaque na reflexão do autor, destacamos apenas a

idéia de que nos é possível combatê-lo, identificá-lo como algo que nos foi

imputado por alguma realidade não criada, mas dada a existir, porque foi, na

limitação humana, permitida.

De todos os obstáculos, a morte oferece o que a teologia tem como sua

legítima propriedade para abordar o tema da salvação no sentido teologal. Isso,

porque, mesmo sendo de difícil compreensão racional, a sociedade moderna

permitiu ao Homem reconhecer, nas lutas contra as doenças e a favor de uma vida

mais saudável, sua finitude como dado real e de fim.

“Ao lembrar-nos continuamente de nossa finitude, a perspectiva da morte nos permite dar à nossa vida um contorno histórico, que não lhe daríamos se vivêssemos na ilusão do infinito.”159

É essa consciência limitada de nossa história que nos possibilita falar do

que só a teologia pode: numa vida após a morte física. Essa realidade pertence à

dimensão da fé. Vislumbramos, nesse momento, o âmbito em que a identidade

cristã se encontra localizada e a importância do Homem de fé se apropriar dessa

158 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 23-25. 159 Ibid., p. 28.

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realidade para uma legítima apresentação na sociedade atual. A salvação cristã

fala da morte como possibilidade de um novo sentido da vida. Porém, a morte, na

perspectiva cristã, não tem o sentido da existência do Homem. Pelo contrário, o

sentido é o da vida em abundância, como vimos no evangelho de João. “A morte

não constitui sua finalidade, não pertence ao desígnio de sua vinda ao mundo, ao

seu destino”.160 Esse é o sentido que vemos na abordagem de Gesché sobre a

limitação e abertura que a morte oferece como perspectiva na vida do ser humano.

A fatalidade é o outro obstáculo destacado como impedimento ao pleno

exercício da liberdade humana. Vimos, anteriormente, o sentido da palavra

destino, representado no senso comum como fatalidade, como algo que não

dependesse de suas próprias forças e possibilidades, pois tem um lugar que lhe

fora dado: Deus. Reconhecemos, nessa visão, algo de positivo, que o cristianismo

tem como mensagem, que é o acolhimento, o silêncio, diante de uma força maior,

do mistério que o Homem não alcança, e uma energia poupada para o possível

combate aos obstáculos quando for possível fazê-lo. Esse obstáculo apresenta,

portanto, uma tensão entre a não superação e a sua real possibilidade. O ser

humano deve se reconhecer condicionado por muitas fatalidades, umas de ordem

intransponíveis, como o físico, o biológico, o cultural, mas outras possíveis de

serem transformadas. Para isso, é importante relembrar que o cristianismo, na

doutrina da criação e do pecado original, inaugurou a desfatalização da história,

que traz ao ser humano a perspectiva de transformar e (re)criar a realidade criada

por Deus. O ser humano recebe, na criação o dom da liberdade, que constrói na

alteridade com o outro e com o Transcendente. Isso lhe confere a capacidade e a

possibilidade de intervenção na história, que recebeu e vai deixar como herança

para a humanidade. A salvação cristã, diante desse obstáculo, afirma que há a

possibilidade de mudança, de interferência, de reconstituição da dignidade do

Homem. A fatalidade deve ser denunciada para que a salvação possa ser

reconduzida ao pleno sentido da palavra, libertação de tudo que reduz as

possibilidades do Homem se realizar humanamente.161

Essa é a mensagem encontrada nos Evangelhos, que nos falam da ação

libertadora que Jesus promoveu nos homens e mulheres. Uma ação de salvação,

devolvendo ao ser humano as condições necessárias a uma vida plena e abundante,

160 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 29. 161 Ibid., pp. 30-34.

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uma vida vivida na liberdade, para ser vivida na história, a partir da experiência de

cada ser humano. Como diz Gesché, é preciso recuperar a coragem de desfatalizar

a história, de se livrar do maior obstáculo que impede o ser humano de viver suas

realizações: o medo.

Essa defesa pelo esclarecimento do sentido da salvação é fundamental,

pois oferece a possibilidade de perceber no Jesus histórico a ação salvífica de

Deus. Abordar a salvação como superação de obstáculos e, com isso,

possibilidades de realização pessoal, torna o caminho da realização mais tangível,

em harmonia com o próprio desejo das pessoas. Mas, expressar que a salvação

acontece em Jesus Cristo torna esse caminho mais árduo para os cristãos.

Encontramos, aqui, outra indagação, surgida diante dos valores de uma sociedade

estruturada na autonomia do sujeito. A idéia de uma salvação independente do

próprio ser humano sugere uma contradição com o termo auto-nomia, em que o

sujeito é capaz de se fazer por si mesmo, bem como com a percepção do

historicismo, fica comprometida diante da ação de um ser transcendente.162

“Por quê? Exatamente porque toda idéia de que se possa recorrer a um outro além de si, sobretudo se se trata de Deus, apresenta-se como uma confissão – e uma confissão injustiçada – de fraqueza e de impotência. Sobretudo, como uma alienação, porque se não sou eu mesmo por mim mesmo, sou despojado de meu ser.”163

Na verdade, conhecemos essa realidade em que Deus é tomado como

objeção à construção da autonomia e da identidade do ser humano. O autor sugere

que a defesa contra a idéia dessa autonomia ferida seja assumida pelo cristão a

partir da teologia, que nos oferece recursos claros e legítimos para defender a

alteridade em Deus, porque é na alteridade que o problema se situa. Gesché fala

do mal-entendido sobre a alteridade. Vimos, em páginas anteriores, a importância

da alteridade para o reconhecimento da identidade do ser humano. A pessoa não

se constrói na solidão. Pelo contrário, morre fechada em si mesma. É a partir do

outro que nos reconhecemos como seres e sujeitos de nossas próprias vidas. O

outro nos possibilita conhecer-nos. Esse outro, que nos convoca e permite

conhecer-nos e sermos conhecidos, cria a possibilidade de irmos para mais longe,

além do universo da relação entre as pessoas. Dá-nos a possibilidade de

reconhecer a alteridade de Deus, uma alteridade que, ao contrário da dependência

162 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 35. 163 Ibid., p. 36.

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e da anulação, nos joga para uma maior plenitude de existência. Podemos atuar

construindo a nossa liberdade de existência histórica. Estamos salvos de não nos

reconhecer na nossa humanidade, salvos da falta de rumo na nossa existência.

Descubrimos o Outro, o Terceiro-Transcendente, aquele que nos conduz ao

infinito, que, ao nos colocarmos diante de Dele, nos faz existir e nos concede uma

identidade.164

A fé cristã afirma que Jesus Cristo é a ação salvadora de Deus na história.

São Paulo nos fala, na carta aos Filipenses (Fl 2,6), que Jesus não se prevaleceu de

sua condição divina, mas aniquilou-se a si mesmo, assemelhando-se aos Homens,

o que nos faz ter a certeza de uma alteridade de Deus, que é construída na

liberdade para a salvação do ser humano. Uma salvação acontecida na história do

Homem. O cristão deve, cada vez mais, se sentir convocado a assumir sua

identidade, desvelando a alteridade de Deus como princípio absoluto de

autonomia do ser humano e refutando a idéia de dependência, de um Deus fora do

mundo e da história construída pelos Homens. Um Deus que desce ao encontro de

sua criação, que se humilha, não pode ser compreendido como um Deus opressor

e manipulador de sua criação. 165 O Deus cristão se fez Homem, como

encontramos no prólogo de São João: “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).

A Sagrada Escritura atesta e afirma a mediação de Jesus Cristo como salvação

para o ser humano. É o Transcendente que vem ao auxílio do Homem para elevá-

lo à maior condição de sua realização, de sua plenitude humana, para que não

termine em sua imanência como um ser sem orientação. O Deus de Jesus Cristo

nos libertou de nossas limitações, nos concedeu abundância de vida, oferecendo-

nos a possibilidade de nos transformar em nós mesmos, o que não somos sem a

presença do Outro, do infinito na nossa condição de ser finito.

“A salvação talvez seja finalmente isso, e não tem outro nome. A face daquele que é nosso Outro se mostra a todos não para nos desorientar e nos ameaçar, e sim como aquele cujo sopro, desde o princípio do mundo, se mistura com o nosso e o reaviva.”166

Afirmamos, com o autor, que a alteridade de Deus não deve ser temida,

mas despertada para o desejo por Deus, presente no Homem como constitutivo de

sua condição humana. Isso no remete a outra indagação sobre a salvação. Gesché

164 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 35-43. 165 Ibid., p. 43. 166 Ibid., p. 42.

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nos conduziu a responder a temática da salvação, identificando, primeiro, como

constitutivo da condição limitada do ser humano, o desejo de ser salvo. Segundo,

que a salvação cristã não significa a perda de sua autonomia diante da alteridade

de Deus. Diante disso, há outra indagação que se desdobra em duas, o conteúdo

dessa salvação, sua concreta contribuição na vida do Homem e que garantias

recebemos quando falamos da salvação cristã. 167

“Em nós se encontra uma dimensão escondida, que gostaria de chamar de ‘um mapa do céu’, como se diz ao ver os pássaros que migram em busca de sua rota. E, que sem o sabermos, faz-nos viver, depositada em nós, como a trêmula, mas indubitável, lâmpada do santuário. Lâmpada vacilante, mas cujo tremular talvez esteja mostrado a sua importância. Foi colocada em nós por aquele que fez de nós uma maravilha quase inacreditável aos nossos olhos, mas com o direito de crer e o dever de amar.”168

No primeiro capítulo utilizamos essa mesma imagem da rota que o ser

humano segue na busca do mapa traçado no céu. Uma imagem que Gesché

recorre para falar da dimensão da transcendência como constitutiva do ser humano,

mesmo que ele a rejeite como uma possibilidade a alteridade de Deus. Essa

terceira indagação amplia e completa as duas anteriores, pois vai tratar de

reconhecer e aceitar o que é perceptível à vida cotidiana do ser humano, o de

buscar superar os obstáculos que impedem sua felicidade. Sabemos que a pessoa

tem necessidade ontológica de conhecer o sentido dos sentidos de sua vida, ou

seja, de ir além do conhecimento e do que pode fazer com esse conhecimento.

Tem necessidade da finalidade de suas ações, de saber em que direção caminha

sua existência. Portanto, podemos confirmar que a existência do ser humano se

torna muito mais significativa do que imaginamos, pois busca compreender o

sentido último dessa existência, razão de sua vida, que ultrapassa o cotidiano de

suas tarefas e descobre sua infinitude.169

É dentro desse mistério que o ser humano se vê envolvido com o

Transcendente e que procura conhecer o sentido de sua existência, que não se

reduz apenas às circunstância históricas de sua realidade. Algo que vai ao

encontro de uma maior elevação, que se desprende em direção ao infinito. Aqui

Gesché reforça a antropologia cristã ao afirmar “que o ser humano é um ser

transcendido pelo alto”.170 O cristão não pode duvidar, apesar de, em muitos

167 GESCHÉ, A., A Destinação, pp. 45 e 51. 168 Ibid., p. 47. 169 Ibid., pp. 46-51. 170 Ibid., p. 50.

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momentos, ter vivido essa dicotomia entre a salvação na terra ou no céu. Muito

bem abordado pelo autor, desde o princípio de seu trabalho, a unidade do ser

humano e de Deus, que o criara para participar de sua divindade, para que tomasse

parte da criação criada. Por isso, não há como imaginar uma salvação inscrita no

ser humano como destinada apenas para o céu. Deus não teria enviado seu Filho

se não quisesse participar da humanidade do ser humano. Diz Gesché, “teríamos

consciência dessa perturbadora e infinita grandeza?”.171 Deus nos deseja e temos,

no nosso interior o desejo por Deus. O ser humano, ao reconhecer e permitir

desenvolver as dimensões da imanência e transcendência como dimensões

articuladas intrinsecamente na sua existência, dará início ao processo de sua

salvação. Essa unidade dá condições do ser humano conhecer verdadeiramente o

sentido para o qual fora criado, que é desenvolver sua humanidade. Descobrirá em

Deus sua plena realização e, então, sua destinação será construir o caminho nessa

direção, superando os obstáculos e consolidando a teologia como proposta de uma

existência de salvação teologal. “Nessa salvação ele encontrará o infinito do seu

ser”.172

Defrontamo-nos, aqui, com a última indagação que nos dará a visão mais

completa sobre o sentido da salvação na perspectiva teologal. Como garantir a

salvação como realidade concreta? Gesché trata a questão como a mais difícil na

abordagem da salvação, pois não há provas concretas. E, quando questionada, se

torna suspeita, dificultando ainda mais a sua defesa. A questão, na verdade, se

apresenta como existencial, pois vai tocar naquilo que é essencial à vida do ser

humano e em que se sustento para ver realizado seus projetos, ou seja, a garantia

do sucesso ou do fracasso de sua vida. O autor inicia essa reflexão trazendo,

justamente, a idéia de que a única prova existente é a de que não estamos salvos.

É a partir dessa perspectiva concreta que o ser humano experimenta, de que nem

tudo é garantido, que Gesché desenvolve a dimensão da fé como necessidade de

sobrevivência para o ser humano na sua existência de vida. Afirmação

fundamentada no principal elo da relação humana, a confiança. “Não se tem

garantia do amor ou da fidelidade de alguém, de uma vocação ou de grandes

171 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 49. 172 Ibid., p. 51.

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opções de vida, como se tem garantia de coisas mensuráveis e quantificáveis. Por

acaso se verifica um ser?”173

Verificamos, então, que o ser humano não possui condições de verificação

total de sua existência. Existem questões não verificáveis. Apenas a confiança

pode garantir experiências necessárias à própria vida humana. Falamos, nesse

aspecto, da fé. Essa confiança depositada no outro, no futuro, que cria as

condições da garantia de uma realização mais plena, como nos fala o autor, nos

leva a “superar a incerteza paralisante, para poder realizar algo e realizar-

nos.”174 Essa realização dos atos e fatos acontecida a partir da fé, da confiança

demonstrada, de modo geral na vida, é que nos dá a garantia da verificação.

Retomando a vida de Jesus Cristo, Gesché reúne o verdadeiro sentido da

salvação e da mediação dessa salvação na pessoa de Jesus, pois foi com Ele que o

ser humano conheceu a salvação associada à fé, uma confiança na Sua pessoa. A

confiança é a condição para fé e para a realização dos atos. Mesmo aquela fé

cotidiana, depositada nas atividades e na relação entre os homens e mulheres. A

partir dessa relação entre confiança e fé Gesché faz uma afirmação teologal que

exige atenção: “A salvação estaria confiada à fé”. 175 Primeiramente, uma

confiança não visível, portanto, de crença mesmo. Crença em alguém que possa

visibilizar uma realidade não visível. Alguém capaz de transformar essa realidade

em nova. Assim fez Jesus Cristo. Neste segundo momento temos a visibilidade:

na ação de Jesus Cristo a realização de Deus. Gesché trata a confiança depositada

e construída pelos discípulos em Jesus como alguém “digno de fé”. A confiança

em alguém que se deixou conhecer na vida e agiu libertando o ser humano de seus

obstáculos, dentre os quais o maior deles, o mal, desencadeado da falta de

esperança e da fé. A confiança de que há esperança, de que o mal pode ser

combatido e o Homem se libertar da angústia de não ser salvo. Em Jesus Cristo

foi dada a certeza da vitória sobre a morte, sobre o mal que destrói o Homem das

possibilidades de se conhecer humanamente. Vitória dada em vida e confirmada

na Ressurreição. A verificação da salvação, portanto, se encontra nos fatos que

transformaram a realidade daqueles que testemunharam e creram.176

173 GESCHÉ, A., A Destinação, p. 53. 174 Ibid., p. 54. 175 Ibid., p. 55. 176 Ibid., pp. 55-57.

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Dessa forma, podemos afirmar que é na pessoa de Jesus Cristo que o

cristão deve viver o testemunho de visibilizar a salvação, a libertação de todos os

males que paralisam o agir humano, que impedem a realidade do Reino entre os

Homens. A salvação mobiliza a fé, possível de verificação na realização da

dignidade dos homens e das mulheres. A visibilidade de uma nova realidade

humana de justiça, fraternidade, paz e caridade. Uma realidade que contagia e

permeia toda a estrutura do ser humano, permitindo-lhe viver constantemente uma

abertura para a visitação, a dialética de ser visitado e visitante, do outro e de Deus,

da Graça de poder construir a sua salvação. No capítulo seguinte teremos a

oportunidade de ampliar a compreensão da salvação na mediação da comunidade

de fé, que também significa uma comunidade marcada pelas circunstâncias da

vida pessoal de cada um de seus membros. Desejando ser, o mais possível, fiéis

ao pensamento de Gesché. Não seria demais, no entanto, concluir essa etapa

afirmando que é legítima a defesa de uma salvação teologal, construída com

concretas realizações e infinitas consumações de vida plena.

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3 A IDENTIDADE CRISTÃ

3.1 Introdução

Tendo abordado o tema da destinação como conclusivo do capítulo sobre a

condição humana, iniciamos este dentro da mesma perspectiva dos anteriores, de

buscar elucidar a construção do caminho da identidade cristã na atualidade. Uma

ocupação que vem sendo destacada diante da realidade do Homem de fé e do não

crente.

Propusemo-nos, ao falar da destinação, o dinamismo da revelação de Deus,

presente e atuante na vida do ser humano. Um dinamismo que se traduz na relação

do ser humano com Deus, orientando-o na direção de sua destinação, que é a

realização em Deus. Dessa forma, o ser humano possui a chance de sair de si

mesmo, libertando-se de tudo que o impede de viver a sua existência. Ao ser

humano é dado conhecer a salvação, essa realização incessante que o Homem

busca de felicidade, superando as dificuldades apresentadas contra essa realização.

Chegamos até aqui compreendendo que o ser humano, pensado e

defendido por Gesché, é um ser livre, criado e criador. A tradição judaico-cristã

nos atesta esse ser humano, capaz de ao criar transformar sua realidade. Há uma

distinção entre o Homem de fé e o não crente que é preciso ser feita. O não crente

imagina poder, sozinho, alcançar a transformação e realizar o projeto de igualdade

e justiça pelo qual luta. Compreende sua história limitada a essa ação. Mas o

cristão, Homem de fé, crê, como diz Gesché, que os seus desejos não se esgotam

na realidade histórica e, por isso, necessita do excesso para autenticar a sua fé. O

cristianismo possibilitou ao ser humano conhecer esse excesso e desejar, pois

inaugurou a desfatalização da história. Por isso, dizemos que o ser humano é um

ser criado criador, capaz de desejar Deus e transformar a história e a si mesmo na

realização desse desejo. Iniciamos revendo a perspectiva do trabalho. Agora,

continuamos, ainda, sobre o capítulo a ser desenvolvido.

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Adentrando mais sobre o ser humano e Deus, iniciaremos esse capítulo, na

intenção de estreitar a relação com Deus desvelando, enfim, a identidade cristã. A

tentativa é demonstrar a razão da existência de uma comunidade de fé como

possibilidade de construção de uma identidade cristã, sempre na perspectiva de

Gesché. Depois de falar do ser humano nas suas condições e dimensões,

pretendemos tratá-lo na dimensão que nos interessa para o qual todo trabalho se

dirigiu, o Homem de fé, o que deseja ocupar um lugar à luz da sociedade,

discutindo e defendendo sua existência. O Homem que, na sua existência, se

relaciona com todas as dimensões: pessoal, social, cultural e econômica. Aquele

capaz de testemunhar o Deus vivo, o Deus de Jesus Cristo.

Diante da proposta do tema temos a necessidade de investigações, aliás,

sempre trazidas pelo autor como metodologia para uma nova inserção naquilo que

já conhecemos, mas precisamos recriar. Nesse caso, a necessidade se coloca na

cristologia. Um dos propósitos do capítulo é recolocar o lugar de Cristo na fé

cristã, ou seja, descentralizá-lo da pessoa de Jesus para evidenciar a mensagem

salvadora anunciada por Jesus. 177 Revisitar essa afirmação é importante para que

o cristão assuma mais autêntica e plenamente sua crença no Cristo Glorificado,

sem o risco de minimizar as dimensões da história ou da ressurreição por

desconhecimento. Para que, com confiança e discernimento, possa assegurar

Cristo como opção de vida, dando-lhe o lugar na fé proclamada. Com palavras de

Gesché, damos iniciação à investigação.

3.2 Cristo como opção de vida

“Gostaríamos de exprimir esse princípio dizendo que, embora o Cristo esteja bem no centro da fé cristã, ele não é o centro. Está no centro porque o cristão vê nele a ‘pedra angular’, aquele ao redor do qual se articula sua fé.”178

Gesché propõe, a partir de Cristo, pensar o ser humano, para então pensar

aquele que sempre se encontra presente para o ser humano, Deus. A partir de

Cristo, compreender o ser humano e Deus. Nada mais atual para enfrentar a

177 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 17-20. 178 Ibid., p. 17.

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sociedade moderna e garantir uma identidade de fé. Uma cristologia que se propõe

a anunciar, não Jesus, mas quem Ele anuncia: Deus e o ser humano. O Novo

Testamento nos confirma que a mensagem de Jesus está centrada no anúncio de

Deus, que por ele age salvando. Jesus anuncia o novo ser humano na sua

humanidade. Jesus é o centro porque foi anunciado, mas também porque trouxe a

mensagem da salvação. João apresenta Jesus como aquele que é o caminho,

portanto, aquele por quem os cristãos se colocaram seguindo. Gesché recorre,

mais uma vez, à tradição bíblica e aponta o seguimento como aquele que é

conduzido, que se coloca atrás, não face a face para não correr o risco de perder o

sentido da direção. Jesus é o condutor, que leva ao Pai, inicia o caminho da fé, da

salvação. Sendo assim, podemos abordar o seguimento de Jesus e compreender

essa relação com Cristo de forma a vê-lo, mas sem fixá-lo somente no face a face.

A alteridade do ser humano exige chegar ao seu destino último, o Pai, sem perder

a alteridade com o Espírito e com o próximo. Ao permanecer fixados na face de

Jesus corre-se o risco de desfigurar o próprio Jesus, reduzindo-o a uma

perspectiva cristológica fechada, infrutífera diante do mundo. Portanto, ser fiel ao

seguimento exige que façamos uma cristologia que compreenda a teologia e a

antropologia presentes no discurso de Jesus.179 “Lendo-se o Evangelho, prestou-

se menos atenção a sua teologia do que a sua cristologia.”180

A idéia principal que se pretende abordar é a revelação de Deus que Jesus

anuncia em sua mensagem, a concepção de Deus que Jesus proclama em gestos e

palavras. Como diz o autor, foi muito pouco desenvolvida a teologia presente na

cristologia. Pouco se deu atenção ao que Jesus falava sobre Deus, quando a

história precisou explicar e confirmar plenamente a divindade de Jesus. Temos,

então, a apresentação de um Deus mais filosófico do que cristão. Isso traz uma

séria dificuldade para a compreensão do Deus cristão. Não temos intenção de

estender essa discussão, mas sinalizá-la é importante para situar o crente diante da

abordagem cristológica que tem da sua fé. Essa compreensão compromete a

atuação do cristão. Aderir a Cristo na fé é reconhecê-lo no Deus de Jesus Cristo,

histórico e glorificado.

Como descreve o autor, o Deus cristão é um Deus que se ocupou com o ser

humano. O Deus de Jesus fez a experiência da paixão, desceu e assumiu a

179 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 18-23. 180 Ibid., p. 24.

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condição humana. Um Deus que assumiu as circunstâncias históricas e, por isso,

revelou o radical amor que tem pelos seres humanos. A Encarnação aconteceu

num gesto de profunda compaixão pelo ser humano, pelo sofrimento que se abatia

na sua criação. Um Deus que confirmou a identidade do ser humano na relação de

alteridade mantida através do Filho. Se desejamos resgatar a imagem que Jesus

nos traz de Deus e assumi-la em nossa prática de cristão, devemos recorrer com

toda profundidade a essa reflexão, investigar as Escrituras, mas essencialmente

não negligenciar nenhum discurso sobre o ser humano, pois onde ele está se

encontra o Deus de Jesus Cristo. 181 Desenvolveremos um pouco à frente a

Encarnação como realidade de encontro da construção da identidade cristã.

No primeiro capítulo desse trabalho falamos que Deus é tema da teologia,

mas também afirmamos que o ser humano é imprescindível para a teologia, pois é

quem pode ouvi-lo e responder, realizando o lugar da existência visível de Deus

entre os homens. Buscamos, durante o trabalho, desenvolver elementos que, na

dinâmica da relação entre Deus e o ser humano, pudesse desvelar a construção da

identidade cristã. A partir do ser humano conhecemos Deus, mas porque nos foi

por Ele permitido conhecê-Lo. Portanto, a teologia não se perde na antropologia,

mas não prescinde dela para se fazer conhecida. Por tudo isso, Gesché propõe ao

cristão revisitar sua fé, conhecer a centralidade da fé para também oferecer aos

que não crêem a oportunidade de conhecê-la e até, se possível, investigá-la. Nesse

sentido, o cristianismo se torna uma referência para o ser humano se este se

conhecer como ser de relação a partir de Deus, portanto, como Homem de fé.

Dessa forma, reconhecemos a necessidade de falar da antropologia presente na

cristologia, como defende Gesché, que para conhecer a autenticidade de nossa fé é

necessário saber que Cristo anunciou um Deus e um ser humano na sua relação

pessoal. Um Deus que se relacionou, amorosamente, se fez conhecer, descendo e

convivendo humanamente entre os Homens. Essa é a teologia que proclamamos,

que anuncia um Deus, o Transcendente, atuante na imanência. Por isso, o ser

humano pode tornar presente o discurso da fé, entre tantos outros existentes na

racionalidade das ciências.182

Se afirmarmos que esse Deus anunciado por Cristo, que a teologia nos fala,

é um Deus que se relaciona, podemos identificar nessa relação o ser humano

181 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 27-31. 182 Ibid., p. 35 passim.

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anunciado, pois é ele que nos fala de Deus a partir de sua própria compreensão

dessa relação. Mais adiante veremos com maior clareza que os apóstolos

anunciaram a ressurreição a partir da relação experimentada com Jesus histórico.

E que foi a partir desse testemunho que a realidade se tornou autenticada e

atestada. Isso significa, como já falamos na abordagem sobre a fé, que Deus atesta

o ser humano. Portanto, vamos cada vez mais ampliando nossa compreensão de

que a cristologia nasce como teologia e antropologia.

“Quão mais verdadeiro o é se a testemunha é Deus, esse Terceiro transcendente que nos permite tanto não nos confundirmos uns com os outros como nos reconhecermos em relação a ele. Deus apresenta-se, assim, como a prova e atestação do ser humano. É aquele que, ao dizer ‘Eu sou’, diz por isso mesmo e no mesmo movimento: ‘você é’.” 183

Dessa maneira, na perspectiva cristã, o ser humano é reconhecido e

compreendido a partir de sua relação com Deus. Isso significa que nos

reconhecemos a partir do outro, que nos coloca diante de um outro maior, o

Terceiro, o que nos permite afirmar que também conhecemos Deus a partir da

nossa relação pessoal, essencialmente humana. Aqui Gesché nos oferece o tema

da Encarnação como chave conceitual para pensar o ser humano. Um Deus que se

revela num radical gesto de abandono e de esvaziamento de si para o outro. O

encontro definitivo entre Deus e o Homem, onde prevalece o amor incondicional

pelo outro, irracional, como fala Gesché, tão necessário na luta contra o mal que

desfigura o ser humano de sua vocação humano-divina. Somos chamados a amar

loucamente o outro como Deus nos amou ao assumir a nossa condição humana.

Portanto, o cristianismo referendou a condição de existência do ser humano, da

forma como ele se apresenta, seja o pobre, o doente, o faminto, o rejeitado, aquele

sem a mínima dignidade de vida. Esse, o outro necessitado, precisa ser

reconhecido para que nos reconheçamos como pessoas, como seres de identidade,

com rosto e nome para que possamos nomear e sermos nomeados. Assim Deus

faz conosco e fez no evento da Encarnação, o que nos faz sempre retomar a idéia

de que o cristianismo desfatalizou a história, nos fez conhecer um Deus que luta e

assume, paradoxalmente, com a força do amor e do sofrimento que brota da

condição limitada do ser humano.184

183 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 36. 184 Ibid., pp. 37-39.

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Precisamos, como cristãos, mais do que compreender, assimilar a realidade

da Encarnação como opção de vida. São muitos os desafios do cristão, a começar

pela cristologia. Gesché nos conduziu à compreensão de uma revelação de Deus e

de ser humano que Jesus anunciou e que os apóstolos, mais tarde, vão anunciar

como mensagem de salvação. Há uma verdade anunciada, uma possível relação

entre Deus e o homem que desperta para uma nova realidade, o Reino de Deus, as

Bem-aventuranças de um Deus que se revela e permite o reconhecimento da

história como a história da salvação. Portanto, todos podemos ser salvos de nossas

limitações que nos impedem de amar com a mesma loucura com que somos

amados por Deus. O Deus de Jesus Cristo é um Deus que ama, diz São João. Um

Deus que é contra todo tipo de violência, inclusive aquela que O aprisiona dentro

dos interesses do próprio Homem. Acreditamos, aqui, ter aberto a porta para a

visitação cristológica de nossa fé.

Iniciamos esse tema sinalizando, a partir do autor, a necessidade do

descentramento do núcleo da fé de Jesus como pessoa para a mensagem

anunciada, a revelação de um Deus que irrompe na condição humana, convidando

o ser humano a participar de sua salvação. Inaugurando, dessa forma, uma nova

relação entre Deus e o Homem. Torna-se, agora, possível indagar sobre a

cristologia, sem receios de reduzir a mensagem da salvação a uma falsa

compreensão de Deus e do ser humano. Podemos compreendê-la na pessoa de

Jesus Cristo, única realidade histórica.

Reconhecemos na Ressurreição o fato e a centralidade da fé cristã,

palavra-chave para a formação da primeira comunidade de fé. A comunidade

cristã tem sua fé proclamada no Cristo Ressuscitado, morto e crucificado na cruz.

Vimos, anteriormente, o significado teológico e antropológico da cristologia, que

deve nos dar maior clareza da adesão da nossa fé à pessoa de Jesus Cristo. O

Cristo, que anunciou um Deus e um ser humano e propôs uma nova relação

humano-divina, criou uma nova forma de existência, a opção teologal, a que

propomos desvelar e defender durante a trajetória feita com Gesché. Ainda nesse

processo de desvelamento, continuamos nos passos do autor para a plena absorção

da compreensão do significado da Ressurreição como presença atuante na

existência da comunidade de fé. Esse aspecto se torna essencial para a visibilidade

da comunidade que testemunha Jesus ressuscitado. Por isso, é importante clarear

as dimensões, conhecidas, mas muitas vezes dissociadas, do Jesus histórico e do

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Cristo da fé. Gesché propõe falar de um elo capaz de articular as duas dimensões,

a identidade narrativa.185 Essa noção deve ser bem desenvolvida, pois oferece ao

cristão uma nova compreensão e atuação de sua fé. É o que pretendemos para ao

desafio do mundo atual.

A fundamentação do autor se estrutura nas diferentes áreas do

conhecimento que a ciência desenvolveu, como o próprio conhecimento da

estrutura humana, de que “o ser humano é um ser narrado”, 186 e sabemos que

toda narrativa expressa uma história e uma destinação. O próprio Evangelho nos

dá o testemunho dessas narrativas. É a partir dos relatos bíblicos que Gesché

desenvolve a noção da identidade narrativa. Teremos oportunidade de aprofundar

esse entendimento mais à frente. Nessa perspectiva, não há como compreender

Jesus Cristo sem retomar o dado histórico, muito menos falar da fé sem

dimensioná-la na história. Seria um grande risco para o cristão que proclama o

Deus de Jesus Cristo.

Dos muitos aspectos que conferem autenticidade histórica, o ensinamento

de Jesus dá uma configuração diferente à sua existência. Gesché se detém naquela

que envolve o Reino de Deus. É no anúncio do Reino que Jesus realiza a ação

salvadora de Deus. É Deus agindo em cada um de modo único. Cada um é

convocado a participar do Reino, interpelado a responder o chamado de Deus. Na

relação com Deus acontece a revelação de uma nova forma de viver a fé e de se

relacionar. Um encontro que conduz a mudanças de atitudes e comprometimento,

dando novo sentido à vivência religiosa. A salvação se desloca das atribuições

legais para ser entendida como gesto de amor pelo próximo, único critério

relacionado à salvação de Deus, que extrapola, inclusive, a idéia do puro e do

impuro diante das prescrições legais ou do sofrimento.187 O anúncio do Reino é

tão marcante na vida dos discípulos com Jesus que todo o Novo Testamento

encontra-se estruturado na perspectiva de uma nova relação entre Deus e o ser

humano e entre os Homens. A realização de algo que já começara no tempo, o já

trazido por Jesus e o ainda não sinalizado na fala de Jesus em relação ao tempo

que pertence a Deus conhecer. Mas Jesus inicia a chegada do tempo na sua pessoa.

Por isso, a alegria e a certeza da espera já pode ser sentida e vivida. Esse é o novo

185 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 49-51. 186 Ibid., p. 51. 187 Ibid., p. 56 passim.

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sentido que Jesus dá à existência humana. Nele encontramos o caminho da

realização do Reino.

A atuação diferente de Jesus no seu tempo histórico marcou de forma

definitiva sua legitimidade, manifestando plena liberdade e confiança estabelecida

na sua íntima união com o Pai. Uma relação que se estendeu aos outros, com a

mesma confiança e liberdade diante do que aceitavam ou não essa nova realidade

da expressão de Deus. Diante dos que o rejeitaram, Jesus enfrentou conflitos e

tensões, sendo perseguido e condenado à morte de cruz. Morto ao lado de ladrões.

O grupo formado por Jesus era composto por doze discípulos, pessoas diferentes e

simples, que se defrontaram com a dura realidade de uma morte que,

aparentemente, pusera fim à esperança da realização do Reino anunciada por

Jesus.

Esse grupo viveu experiências marcantes com Cristo, que determinaram

uma primeira visão da realidade de Jesus, a partir da fé, após a sua morte.

Realidade marcada pela história pessoal de cada um, mas também conjuntural, de

forma especial religiosa. Isso é importante, pois permite reconhecer uma realidade

histórica de fé. As descobertas feitas, a partir das experiências de vida com Jesus,

permitiram ultrapassar a própria realidade, construindo uma identidade cultural,

que mais tarde, após a morte na cruz, vai permitir afirmar e confirmar a identidade

de Jesus Cristo. 188

O reconhecimento de Jesus como Cristo a partir da fé dos apóstolos

marcou a história e fez história. Todo acontecimento se faz na história, nada vem

do nada, todos os fatos são marcados também por interpretações, que nascem

dentro da própria história. Mas reconhecemos que a existência histórica de Jesus

foi sustentada por uma transcendência, isso os apóstolos testemunharam. A

identidade histórica de Jesus está centrada no evento da Encarnação, no encontro

promovido entre Deus e o ser humano. O encontro entre a Transcendência e a

imanência.189 É Deus mesmo que se preenche de humanidade, afirma o prólogo de

São João, “e o verbo se fez carne” (Jo 1,14). O ser humano pode reconhecer sua

humanidade em Jesus, Deus revelado, que, na alteridade com o ser humano, atesta

ambas identidades, de Jesus e do ser humano. A alteridade é o elemento fundante

188 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 64. 189 GESCHÉ, A., O Cristo. Encontramos nas páginas 61-64 o entendimento do autor sobre a identidade de Jesus a partir da concepção histórica de que todo ser humano existe não para si, mas historicamente para o outro.

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e constitutivo da relação entre Deus e o ser humano. Relação que revela o

Transcendente presente na imanência. É disso que a cristologia trata: “se Deus é

um para-nós, e é toda teologia inferida pela cristologia, eis que o ser humano é

um para-o-outro, e é toda a antropologia inferida pela cristologia.” 190

É essa identidade, reconhecida no Cristo Jesus, que a cristologia deve

apresentar com legitimidade de uma única realidade histórica. Para isso, Gesché

segue os relatos narrados no Evangelho.

A Sagrada Escritura é fonte primeira na construção da identidade de Jesus.

Deus sempre foi nomeado na relação com o outro, o que significa dizer que

sempre foi narrado, conferindo uma relação pessoal entre Deus e o ser humano.

Gesché lembra no livro do Gênesis, a fala de Abraão: “O Senhor disse: ‘acaso vou

ocultar a Abraão o que faço?’. Abraão disse: ‘vou tomar a decisão de falar com

meu Senhor, eu que sou apenas pó e cinza’.” (Gn18,17) Da mesma forma os

Evangelhos conferem a Jesus uma identidade narrativa, pois lemos na própria

mensagem de Jesus que ele não fala de si. Ao contrário o outro O narra ao indagar:

“quem dizeis que eu sou?” (Mc 8, 27). Aqui temos a estrutura da narrativa

necessária para reconhecer a identidade de Jesus. É dessa forma que o Evangelho

apresenta Jesus, pois o testemunho é da fé dos discípulos, nascida a partir da

identificação do Ressuscitado com o Jesus que acompanharam. Responderam à

indagação de Jesus com o testemunho dos acontecimentos ocorridos para que

todos, como eles, também pudessem crer.

“Dando-nos, para que por nossa vez creiamos também nós, sua leitura teologal e cristológica de Jesus, os evangelistas oferecem o que poderíamos chamar de epifania de Jesus: manifestação, revelação do que ele é e representa os olhos deles, ou seja, de ser Salvador e Senhor.”191

A idéia de compreender o elo entre o Jesus histórico e o Cristo da fé,

através da narrativa que nos é oferecida pelos apóstolos, nos exige relembrar que

existe um contexto histórico, como já foi dito, como parte constitutiva de toda

narrativa. Nenhum acontecimento narrado nasce sem realidade histórica. Mas, não

se prendem à história, transgridem a realidade. Porque são organizadas para uma

comunicação, há uma interpretação, no caso, diríamos, teológica, e ela será

190 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 67. 191 Ibid., p. 84.

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reinterpretada, sem perder a origem da realidade narrada. “O Evangelho trabalha

a história (o Jesus da história) e a abre ao destino (o Cristo da fé)”192

Temos, aqui, uma realidade que transgride a própria história. Essa

realidade é dada pela fé, que cria a possibilidade de transgredir o real e reconhecer

o não visível no visível. Ou seja, a fé desvela a realidade oferecendo ao ser

humano uma nova possibilidade, a existência teologal. Recordamos o tema

anterior da destinação, onde pudemos falar sobre o sentido teologal inaugurado

pelo cristianismo.

Podemos, com legitimidade, afirmar a identidade de Jesus Cristo na

narrativa que os apóstolos fazem de Jesus transfigurado. Jesus não falou de si, mas

sobre essa realidade. Ela foi narrada e descrita pelos que a viram. Jesus, ao pedir

para ser falado e narrado, nos entregou a possibilidade de autenticá-lo, dar-lhe

identidade. A força dessa revelação, a da identidade percebida pelos apóstolos

vem da grandeza de Deus, que permite ser reconhecido e identificado para que o

ser humano se torne responsável pela vida narrada. Essa responsabilidade, que

nasce da alteridade entre os Homens com Deus, nasce no campo da liberdade da

palavra poder ser dita. Ao Homem foi dada a possibilidade de expressar Deus,

conhecê-Lo e falar, dar-Lhe identidade, de fé histórica. Podemos ousar, afirmando

que, na alteridade com Jesus, também construímos e somos reconhecidos em

nossa identidade como cristãos. 193 Deixamos para o item seguinte essa

abordagem, que encontra na Sagrada Escritura a estrutura da identidade cristã.

Na beleza da expressão do salmista, rezamos, com Gesché, a afirmação

dessa identidade: “não são os mortos que te louvarão, Senhor; somos nós, que

vivemos, que podemos te bendizer.” (Sl 113,118) 194

Retomando a idéia central de fazer da prática cristã o testemunho do Cristo

vivo, revistamos o eixo proposto pelo autor para compreender o reconhecimento

da identidade de Jesus Cristo, uma experiência de fé anunciada pelos discípulos.

Buscamos compreender, na narrativa dos relatos, o elo de ligação entre o Jesus da

história e o da fé, sem ter falado muito sobre essa última dimensão. Mas

reconhecemos que não há como falar de uma sem a outra, a articulação entre elas

é o que permite a identidade crística de Jesus. Ainda, sentindo a necessidade de

192 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 88. 193 Ibid., pp. 89-92. 194 Ibid., p. 91.

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esclarecer essa dimensão que deu a razão à existência da comunidade de fé,

seguiremos um pouco mais sobre o tema, agora a partir da ressurreição.

O que significa crer na Ressurreição e atuar na comunidade crendo na

Ressurreição? O que isso significa e que sentido tem para a vida pessoal e da

comunidade que se reúne em nome do Senhor Ressuscitado? Gesché propõe, mais

uma vez, a visitação ao termo que já conhecemos, mesmo sabendo que pode nos

parecer óbvio indagar sobre o que consideramos conhecido. Partiremos, juntos,

para essa investigação a partir daquilo que, como os discípulos, também nos

mobilizou e ainda mobiliza: a morte de Jesus e o nascimento da comunidade cristã.

Considerando a lingüística como o primeiro meio que nos chega à realidade dos

acontecimentos, o trabalho da investigação é proposto, então, partir da linguagem

expressa para anunciar o acontecimento da ressurreição. Anteriormente, já

seguimos esse mesmo passo. Focaremos, agora, mais precisamente, essa estrutura

da linguagem narrativa. A teologia já nos confirma que, se o ser humano é capaz

de expressar é porque, antes, lhe foi nomeado (1Cor 14,10). Sabemos, bem ou mal,

que a estrutura da linguagem nasce no berço da experiência do ser humano. Não

há nenhuma experiência que brote de forma pura, sem interpretação. São

realidades que se integram, fazendo com que uma dependa da outra para existir.

Por isso, o autor, sem querer correr o risco da dissociação, propõe investigar o

termo ressurreição para nos conduzir a essa rica experiência que nasceu junto com

a expressão para, então, com discernimento suficiente, clarear o sentido do termo

para os dias de hoje.195

É a palavra Ressurreição que provoca a força do acontecimento. Gesché

recorda que o texto da narrativa bíblica não se centra na relação ou no fato em si,

mas na força da proclamação da palavra que expressa o fato. É fundamental

compreender essa força que transforma e provoca temor, pois na Tradição Bíblica

o gênero narrativo expressa uma revelação divina, que suscita a presença

reveladora do divino. O autor nos conduz à narrativa do anjo que se dirige às

mulheres e mostra-lhes o túmulo vazio. É diante do túmulo, que não terá lugar de

destaque, mas onde são solicitadas a anunciar a realidade da ressurreição. São

postas no movimento do acontecimento, que não se esgota no túmulo vazio, mas

195 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 116-118. Essa reflexão se encontra na justificação que Gesché dá ao trabalho de sua defesa de uma cristologia visitada.

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pelo que provocou o acontecimento. 196 As palavras têm a força dos

acontecimentos, são carregadas de experiências de vida. Exploraremos essa

afirmação mais adiante ao falar da história como lugar da ressurreição.

A força da palavra proclamada, carregada da certeza de que algo

acontecera com Jesus, que uma revelação havia sido dada, se encarrega de gerar

testemunhos. Testemunhos da fé na Ressurreição. Assim, certamente, a

comunidade primitiva se constituiu proclamando e aderindo a uma forma de

existência individual e coletiva. A linguagem comunicando o testemunho e

criando sinais que apontam para uma realidade que se manifesta, agora, na força

que a palavra provoca nessa realidade. Gesché mostra-nos que muitas outras

expressões foram usadas para designar a realidade da ressurreição, como, por

exemplo, Exaltação, Glória, Senhor.197 Reconhecendo a importância da exegese

na elucidação das expressões narrativas para compreensão da fé, nos estendemos

um pouco sobre o tema, na tentativa de aproximar o acontecimento da

ressurreição com a vivência da fé no mundo atual. A indagação inicial que reúne a

experiência e o anúncio proclamado, que permite perceber como os apóstolos

chegaram à certeza da ressurreição, ainda merece reflexão. Para nós esse tema é

importante, pois se torna o ponto de partida da existência da comunidade que

confessa sua fé no Senhor ressuscitado. Esse trabalho tem sua razão na defesa de

uma comunidade de fé que responda, hoje, o sentido de sua confissão.

Antes, porém, de abordar a realidade da ressurreição no aspecto histórico,

há necessidade de explicar a metáfora como recurso da linguagem bíblica

narrativa. Até então, não a abordamos nesse sentido, mas reconhecemos sua

presença, já que se trata de expressar realidades que fogem à compreensão da

razão. A ressurreição traz no conteúdo todo sentido que quer expressar essa nova

realidade de Jesus. Afirma-nos Gesché “Diz admiravelmente e de maneira muito

evocadora essa idéia de despertar da morte para a vida, esse pôr-se novamente

de pé.”198 A metáfora, então, nos auxilia, dando-nos a direção de um sentido que

transpõe a própria realidade. Todas as palavras utilizadas na Sagrada Escritura

buscam representar essa realidade revelada como continuidade de outra realidade.

Relembramos, aqui, que a fé tem essa propriedade de transpor a realidade

196 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 118. 197 Ibid., pp. 118-124. 198 Ibid., p. 124.

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histórica. Todas expressam a grandeza de não nos deixar presos, sem mobilidade,

acreditando que uma única palavra possa dar conta absoluta de todo sentido que

carrega na sua linguagem. Além de nos fazer entender que cada palavra diferente

carrega uma experiência única da comunidade que a utilizou. A comunicação, que

tem intenção de uma mensagem, permite a interpretação existir como parte da

estrutura da própria expressão lingüística. Assim, reconhecemos a riqueza da

Sagrada Escritura que, mesmo tendo enfocado o termo ressurreição como o maior

dentre todos, os outros termos também buscaram expressar essa mesma realidade

que ultrapassa a própria realidade que quer ser expressa.

Voltando à comunidade dos cristãos que se constituíram a partir da

afirmação proclamada, Ele Ressuscitou! Aquele com quem os discípulos viveram

uma experiência de vida nova, anunciada e realizada em ações transformadoras.

Essa realidade não mais presente dessa forma, mas na ressurreição anunciada,

agora pelos discípulos, traz uma marca diferente na linguagem narrativa. Uma

linguagem de atestação, nos diz o autor, seguindo na afirmação de que se trata de

uma linguagem que sinaliza duas condições: acontecimento cristológico e

apostólico. Os apóstolos, então dão testemunho em relação ao Cristo, Jesus, que

eles conheceram em vida, ressuscitou, e, que agora, eles viram, aparecer a eles sob

outra forma. Algumas citações bíblicas nos confirmam essa realidade que o autor

procura explicitar para nos conduzir ao valor histórico da ressurreição. A narrativa,

como já falamos, que confere a identidade de Jesus Cristo representa o elo entre o

Jesus histórico e o Cristo da fé, o que permite uma clara articulação entre as duas

dimensões. Recordamos a idéia da nomeação, já trabalhada no tema da alteridade,

em que o outro ao me nomear, permite o meu reconhecimento, fazendo-me existir,

sair de mim, construir identidade. Também lembramos que Jesus nunca falou de si,

ao contrário, foi sempre atestado. A indagação que não nos abandona, sempre,

“quem dizeis que eu sou?” (Mc 8, 27). Essa reflexão se torna fundante na

construção da identidade cristã, que tem em Jesus Cristo sua referência de Deus e

de Homem. Conhecimento fundamental para o reconhecimento de nossa

identidade cristã.

A narrativa nos diz, também, que nem todos viram e isso é o que permite

que os relatos sejam autenticamente legitimados e reconhecidos. Não se trata de

algo que fosse comum à realidade histórica daquela época, muito menos comum a

ponto de todos perceberem e o acontecimento perder a sua força ou de representar

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uma banalização. Nesse sentido não é histórico, mas não deixa de ser quando

testemunhado por alguns recebe a força da proclamação da palavra. Isso significa

que o acontecimento se associa a uma experiência particular, pessoal e de

comunidade. As pessoas que viveram com Jesus fizeram a experiência do

ressuscitado, onde Jesus se deixou aparecer para aqueles que o reconheceriam à

luz do encontro pessoal. 199

Gesché vai tratar a experiência com o ressuscitado como um

acontecimento de revelação a partir da idéia de que toda revelação na Sagrada

Escritura vem acompanhada de uma epifania ou uma teofania, que provocam

reações de terror, ao mesmo tempo que atração e admiração. Assim foi com as

mulheres diante do túmulo vazio e com o grupo nas aparições. Apoiando-se

nesses dois pontos, o autor desenvolve o acontecimento como revelação. Sem

querer estender muito esse aspecto, destacamos duas situações importantes que

envolvem diretamente objetivo do trabalho, assim como permite seu

desenvolvimento. Primeiramente, na narrativa do túmulo vazio, o que nos é dito

como sentido e lugar próprio de uma revelação divina. A narrativa trata, em si, de

uma revelação, sem ênfase alguma ao lugar como espaço físico. Ao contrário,

afirma que não é ali que se deve procurar Jesus, mas entre os vivos (Lc 24,5). A

segunda situação importante acontece nas aparições, que são manifestações do

Ressuscitado, ou seja, manifestações teofânicas. 200 . “Deus lhe concedeu

manifestar sua presença” (At 10,40). São realidades expressas por vocabulários

de revelação. As aparições não trazem Jesus na mesma forma que os discípulos o

conheceram, mas de uma maneira diferente, como manifestação, possível de ser

reconhecido, porém, através de um olhar único, diferenciado, inclusive, entre os

discípulos. Podemos recordar que Maria não percebeu de imediato Jesus no

jardim, pensava ser o jardineiro.

“Não é tanto uma questão de medo físico, mas daquele ‘temor’, daquele ‘terror sagrado’ que o ser humano – presume-se – experimenta diante de uma manifestação divina, diante de um acontecimento no qual Deus está implicado.”201

A citação nos reconduz à indagação sobre nossa adesão de fé, que se

transforma em existencial diante do anúncio da Ressurreição. Existencial porque

199 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 129. 200 Ibid., p. 159. 201 Ibid., p. 134.

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nos conduz à salvação cristã, que já investigamos como uma proposta possível de

ser assumida. Voltaremos em breve a esse ponto. Somos ou não tomados pelo

mesmo temor e admiração em que somos envolvidos na revelação de Deus, que

num primeiro momento sentimos medo, depois fascínio e atração? Podemos nos

tornar testemunhos de sua ressurreição. Aqui podemos traduzir o sentido que

desejamos dar à comunidade de fé, responsável pela construção da identidade

cristã que tanto foi abordada durante o desenvolvimento do trabalho. As narrativas

são indicativos que não devemos nos deter, nem perder o tempo onde o

ressuscitado, Jesus Cristo, não se encontra, mas onde indicam o caminho de sua

presença, entre os homens. Cristo permanece, não no túmulo nem preso às

aparições, mas lá onde mostrou aos discípulos, na continuidade de sua missão. Na

ascensão, sua última aparição, Cristo informa sobre a continuidade de sua missão,

agora assumida pelos que testemunharam sua história como Jesus Cristo, homem

e Deus, plenamente reconhecido na comunidade de fé. É em Pentecostes que os

apóstolos recebem a confirmação dessa missão, iniciando, então, a missão da

Igreja, anunciar o evangelho aos novos tempos. 202

Seria oportuno ampliar a reflexão sobre a Ressurreição como ação que

completa a obra salvadora de Deus. Como diz Gesché, “não é simples

coroamento ou recompensa”203 , mas a vitória sobre a morte, a afirmação do

combate e derrota do mal, combate vitorioso contra todo impedimento da plena

realização de sua existência. Lá se deu o encontro, o retorno à casa do Pai, após

uma vida assumida na obediência de sua missão e de um tempo de permanência

junto aos mortos, de onde conduz todos à nova vida, junto ao Pai. A Ressurreição

representa a afirmação de uma existência teologal, proposta na vida de Jesus, que

culmina na cruz e se transforma na Ressurreição. Uma transformação de glória,

mas também de combate, pois foi na descida à mansão dos mortos que a derrota

definitiva contra o mal aconteceu. Após um tempo, a vitória, assim como foi

necessária a cruz para enxergar a Glória, também na Glória da Ressurreição

devemos enxergar o combate, a agonia.204 É a riqueza do caminho da salvação de

Deus, o mesmo que o ser humano precisa enfrentar para chegar à salvação. Um

caminho de combates e conquistas, de luta, que o ser humano pode assumir, pois

202 GESCHÉ, A., O Cristo, pp. 158-161. 203 Ibid., p. 168. 204 Ibid., pp. 168-170.

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sabe que Deus tomou para si mesmo esse combate diante do mal que aflige o ser

humano. Não precisamos temer, pois já recebemos a possibilidade da

Ressurreição em Nosso Senhor Jesus Cristo. Concluímos essa pequena reflexão

colocando-nos no caminho em direção ao ressuscitado, com o texto que Gesché

nos oferece.

“A Ressurreição pertence a partir de então à capacidade teologal do ser humano criado. Levando ao extremo, poder-se-ia dizer que é o pecado, erro de destinação, que modificou a ordem da Criação, mais do que a Ressurreição que, de alguma maneira, apenas faz retomar o antigo voto criador para fazer novamente dele dom ao ser humano.”205

Desenvolveremos, a partir da missão compreendida pelos primeiros

cristãos, a compreensão da revelação tratada por Gesché e que nos ajuda a

reconhecer o sentido de ser Igreja hoje, sentido que deve ir além de nós mesmos.

O autor recorre à imagem da criança, que retira do pensamento da psicanalista

Julia Kristeva, do seu livro Acontecimento e Revelação, para utilizar o momento

do encontro que ocorre entre a criança e o mundo que passa a conhecer ao nascer

e que lhe é apresentado. Intitula um momento de abertura em que a criança sai do

seu mundo para ir ao encontro daquele que, provavelmente, lhe provocou medo,

perigo, mas também crescimento. Poderíamos fazer uma rica leitura dessa

imagem que traduz descoberta, abertura, criação, um nascimento que tem um

movimento dinâmico entre o mundo interno e externo.206 Ambos atuando na

direção de um crescimento. Vimos, já na condição humana da liberdade e da

alteridade, apresentada por Gesché, que o ser humano é visitado por um Terceiro,

que o criou e lhe deu as condições de construir sua liberdade na alteridade com

esse Terceiro. É assim que a revelação pode ser percebida, a partir de uma

experiência pessoal de alteridade, em que o ser humano se reconhece no outro e,

dessa forma, permite que o outro o reconheça atestando sua identidade, cristã.

Falamos, aqui, do já muito dito, o infinito na realidade do finito, essa visitação

que só o ser humano pode experimentar. “Abordagem tanto mais interessantes

quanto mais vêem na revelação não uma pura inspiração interior, mas um

acontecimento, ‘exterioridade’”. 207 É essa visitação que permite dizer que o ser

humano é um ser integrado nas suas dimensões física, biológica, psíquica, afetiva,

espiritual. Por isso, permite a visitação porque é capaz de sentir através de todos 205 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 171. 206 Ibid., pp. 137-138. 207 Ibid., p. 139.

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os diferentes sentidos. Um ser sempre aberto, capaz de acolher e responder à sua

vocação humana. Essa capacidade se encontra no exercício de sua liberdade, que

representa um vasto campo de experiências, mais do que atos isolados de uma

determinada liberdade de ação. Nessa perspectiva a revelação poderia ser

compreendida como algo sempre presente, atuando, em nossa liberdade. Bastaria

que fizéssemos a experiência da abertura ao próximo, nos aproximando da

alteridade com Deus.

“Talvez a palavra ‘revelação’ assim entendida designe menos uma revelação do que está oculto no invisível, e bem mais uma revelação daquilo que está escondido no visível, daquilo a que o visível dá guarida invisivelmente.”208

A revelação, nesse sentido, poderia ser identificada como uma

confirmação de algo já experimentado, a espera apenas de um encontro, de um

acontecimento mais definitivo que provoque a transformação a partir da revelação.

Foi o que aconteceu com os discípulos, tanto no túmulo vazio como nas aparições.

A realidade anterior, da cruz, não teria nenhum sentido se não houvesse a

ressurreição. O sentido nasce com a revelação da ressurreição. Os discípulos

puderam ver e confirmar que aquele morto na cruz era o Cristo Ressuscitado. O

que haviam vivido com Jesus de Nazaré passou a ter sentido. A cruz se torna o

elemento revelador, mas é a ressurreição que revela o sentido da cruz. Lembrando

o simbolismo da criança, nascer é crescer, em constante revelação.209 A revelação

não nasce do nada, senão estaria no campo da magia, mas de algo iminente,

revelador. O ser humano é um ser sempre em transformação, porque traz dentro

de si a dinâmica da própria revelação. De novo, retomamos a questão para pensar,

a partir de Gesché, o sentido da ressurreição que o cristão assume para expressar a

sua fé. Talvez fosse melhor dizer a cristologia assumida.

Sendo essa a perspectiva assumida de ser humano capaz de Deus, livre e

de alteridade, construtor de sua identidade, desejamos responder, como cristão, à

indagação de Jesus feita aos discípulos: “e vós, quem dizeis que sou?” (Mc 8, 27).

Temos muitos elementos da reflexão de Gesché para nos situar diante de Jesus e

responder como quem deseja caminhar junto, como discípulo, desvelando a

revelação de Deus na existência de nossa história. Transformando-se em

testemunhos de sua presença no meio de nós. A dificuldade está em não perder a

208 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 141. 209 Ibid., p.141 passim.

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direção olhando o túmulo vazio ou à espera de aparições transformadas em

espetáculos de revelação. Acreditamos, com Gesché, que o ser humano precisa,

primeiramente, conhecer a centralidade de sua fé, o Deus de Jesus Cristo. Isso foi

mostrado na nossa apresentação. Segundo, permanecer como um ser visitado, ser

capaz de desvelar o Deus desconhecido, tornando-o presente, diante da razão, ao

lado de todos os conhecimentos que integram e desvelam o ser humano para a

sociedade. Permitir ao ser humano a realização de sua plena condição de

existência humana, o que significa lutar por uma legítima existência de fé.

3.3 O amor cristão: novo modelo de Igreja e de Homem

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” (1Cor 13, 1-3)

Desejando a legitimidade do crente, presente sempre como fio condutor de

todo o trabalho apresentado, buscaremos sinalizar o sentido, hoje, da Igreja,

proclamada e constituída pelos apóstolos diante da confirmação da existência

histórica do Cristo ressuscitado. Somos discípulos de Cristo, portanto,

missionários da Igreja, compreendendo que, como seguidores de Jesus,

assumimos a missão de dar continuidade à realização do Reino, iniciada e

proclamada na Sua pessoa. A perspectiva dessa abordagem terá como cenário o

ser humano, desenvolvida e compreendida por Gesché. Não teria outro sentido, se

não tivéssemos peregrinado nos diferentes recôncavos da estrutura humana, de

modo especial na relação entre Deus e o ser humano.

A confissão feita pelos apóstolos, do ressuscitado, encontra-se na própria

confissão que Jesus faz de si quando se dispõe diante de Deus e do outro: “eis-me

aqui”.210 Jesus é confessado quando, no silêncio de sua apresentação, espera a

afirmação. Isso os apóstolos fizeram. Confirmaram a sua entrega obediente à

210 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 93.

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missão do Pai. Apresenta-se como servo humilde que cumpre a missão de

anunciar o Deus salvador. Também, dialeticamente, o novo ser humano que deve

nascer de uma nova relação com Deus. Jesus Cristo, no exercício de sua plena

liberdade e respeito pela liberdade do homem, provoca no ser humano a

responsabilidade e o compromisso do que deve ser pronunciado a partir o seu

silêncio. Pede para que seja narrado, assim desvela o mistério divino de sua

presença na estrutura do próprio ser humano, que atesta e é atestado diante de

Deus. O silêncio pela espera da narração é compreendido por Gesché como

“aquele que deixa aos outros, a quem confia, a palavra que identifica.”211 Jesus,

ao declarar o “eis-me aqui”, se dispõe como alguém que foi enviado e convocado

e, assim, age pedagogicamente, à espera de que, narrando-O, nos coloquemos

também à disposição do outro, na missão de servos. Jesus se faz presente

apresentando-se e se dispondo ao pobre, ao doente, ao excluído que vivia à

margem da sociedade de sua época. Agia restituindo-lhes a dignidade da vida. É o

que nos narra o evangelho de São Mateus: “quem é Ele?” (Mt, 8, 27). “De onde

lhe vem tudo isso?” (Mt 13, 56). Toda ação salvífica de Deus conduz à

confirmação de quem é Jesus de Nazaré. 212 Assim Jesus foi narrado, na sua

relação de disponibilidade com o pobre.

A partir da idéia de identidade narrativa, desenvolvida neste capítulo e que

foi apresentada por Gesché como elo dinâmico que faz a unidade do Jesus

histórico e do Cristo da fé, poderíamos apontar algumas reflexões sobre as

possíveis conseqüências de uma opção tendenciosa por uma ou outra dimensão. A

identidade narrativa surge como eixo dialético dessa unidade, onde não cabe

dilema entre o Jesus histórico e o Cristo da fé e não comporta uma prática que

reduza uma das dimensões a ponto de excluir uma delas.

Poderíamos, de imediato, assinalar o que, anteriormente, Gesché destacou

como prioridade para pensar a prática do cristão, a cristologia. Conhecer com

propriedade o que Jesus nos apresenta, “não anunciar Jesus, mas anunciar quem

Ele anuncia. Jesus morreu e ressuscitou por causa de uma determinada idéia de

Deus e do ser humano, e é isso que importa antes de tudo.” 213 Tendo já

apresentado o caminho percorrido na teologia e na antropologia presentes na

211 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 93. 212 Ibid., pp. 97-99. 213 Ibid., p. 23.

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cristologia, podemos abordar diretamente a prática do cristão que queremos

defender no mundo atual, no processo de construção de sua identidade.

Uma prática que enfatize somente o Cristo da fé perde, na história, o lugar

de construção da identidade cristã. É na dinâmica da história que o processo de

transformação acontece, lugar do encontro entre Deus e o ser humano. Recusar a

dimensão histórica de Jesus é correr o risco da idolatria. Sabemos o quanto, no

mundo atual, essa tendência tem lugar. Não são poucas as correntes que, ou por

ingenuidade ou má fé, aderem ao fideísmo como proposta religiosa. Então, nesse

caso, a religião, que deveria desvelar o divino presente na realidade histórica,

acaba servindo de ópio, motivo, já presente na história do cristianismo, de muitas

acusações contra os cristãos. 214 Outra grave conseqüência, diante da negação

histórica, recai no comprometimento do seguimento de Jesus, pois prevalece a

contemplação como identificação de uma autêntica realidade cristã. Na verdade,

há um falso entendimento do que representa o seguimento. Gesché abordou essa

idéia ao falar sobre “uma cristologia em que a face de Cristo arrebate toda

atenção”. 215 A construção da identidade cristã fica comprometida, pois a

alteridade, que possibilita o reconhecimento da identidade, não acontece.

Recordando, ainda, sobre a exigência do seguimento, caberia a indagação do autor

acerca de nossa relação com Cristo. Precisamos abandonar a contemplação que

nos impede de enxergar o caminho à frente e, “pelas costas”, 216 fazer o

seguimento, a fim de identificar a direção tomada para chegar à salvação. E essa

direção exige uma nova relação com o Cristo, olhar para frente e reconhecer os

diferentes caminhos durante o percurso da história. A contemplação tem a grande

riqueza de permitir, no silêncio, embebido pelo mistério da revelação, a

interpelação que Jesus nos faz para retomar o caminho de volta, como fizeram os

apóstolos no monte da transfiguração.

O cristão precisa ter clareza sobre a cristologia assumida para que

promova, no mundo em que vive, a verdadeira realidade de fé expressa em Jesus

Cristo. Só assim, poderá representar, com legitimidade, o discurso da fé,

assumindo a identidade narrativa como elo dinamizador entre a realidade histórica

e de fé de Jesus Cristo. Isso significa reconhecer na história o caráter dialético

214 Essa reflexão do papel da religião se fundamenta no 2º capítulo desse trabalho 215 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 23. 216 Ibid., p. 23.

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entre as duas dimensões. Mais. Significa afirmar que a história é processual e o

cristianismo manifesta no tempo essa historicidade. O cristão expressa no “hoje” o

que foi no “ontem”, anunciado por Jesus, para que o “amanhã” possa acontecer na

dinâmica revelada por Deus, onde um futuro foi antecipado como realidade

possível. Dessa forma, o cristão tem a possibilidade de produzir uma prática fértil,

onde não há lugar para a dogmatização, mas para um reencontro com a

autenticidade da fé dos apóstolos, aquela que deu origem à narrativa de Jesus

Glorificado. O cristão pode, então, confessar a fé em Jesus ressuscitado e não ter

receios da falta de instrumentais teóricos, pois a força do anúncio carrega a

compreensão de uma autêntica cristologia, que não foi dada do nada, mas da

narrativa dos primeiros discípulos. Assim nasceu e se multiplicou a comunidade

de fé, mantendo aquilo que traz na sua origem, “o dogma”, “a confissão de fé”.217

O Concílio Vaticano II tem, em uma das suas formulações, a seguinte

preocupação pastoral: “Na origem: que a apresentação doutrinária seja

revivificada nas fontes da fé, na palavra viva de Deus, no Evangelho de Jesus

Cristo, na tradição viva da Igreja, na própria vida da Igreja”.218 Reconhecemos

que a preocupação levantada por Gesché se encontra na mesma perspectiva do

Vaticano II, quando salienta a importância de uma eficaz articulação entre a

história e o evento da ressurreição de Cristo, encontrada na fonte dos relatos do

evangelho, configurando a identidade do Cristo da fé e, por meio Dele, a

possibilidade da construção da identidade cristã. Assumimos, na história, o que

nos legitima a partir da narrativa evangélica, de que algo a mais, na própria

história, foi inaugurado, sem que representasse uma visão reduzida da história. Há

uma intrínseca relação das narrativas com a história, por isso a importância do seu

reconhecimento para não cair na tentação de uma apologia histórica reducionista,

que impeça de assumir o Reino como realidade escatológica. A opção de uma

existência teologal precisa do amadurecimento da fé, ou seja, uma atitude

responsável que nos é solicitada por Jesus diante do seu “eis-me aqui”.

Poderíamos, sem exageros, afirmar que a história representa o termômetro

para inferir a fidelidade do segmento de Cristo. Reconhecer na história uma fonte

que nos oferece a dinamicidade da Palavra de Deus, como nos diz Gesché, é

“reencontrar a fonte sempre viva e original do que se tornou a experiência

217 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 107. 218 Compêndio do Vaticano II, Introdução Geral, p. 10.

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cristológica.”219 De toda a nossa reflexão, o maior resultado para a legitimidade

do cristão se encontra em fortalecer a atualização do anúncio presente no dogma

de fé. Um enunciado cristalizado, a-histórico, perde o sentido de sua afirmação,

tornando a fé uma resposta esvaziada de conteúdo e uma religião passível de

manipulações. Todo o ritual perde seu sentido, contribuindo para práticas míticas,

mágicas e esotéricas.220 É, portanto, fundamental que o cristão esteja atento à

cristologia que envolve sua prática religiosa. Aqui, ao falar da religião estendemos

à Igreja um papel essencial na construção da identidade cristã. A Igreja, na sua

genuína missão evangelizadora, é responsável pelo desvelamento de nossa

identidade cristã, pois é nela que encontramos a mensagem viva da Boa Nova para

todos os seres humanos. Uma Igreja que não realize essa dinâmica integradora

entre o mundo e o Evangelho traz, em si, a cristalização dogmática de Cristo.

Recorremos ao Documento de Aparecida, recente, que nos fala da preocupação

dos bispos da Igreja da América Latina e Caribenha com a missão da nossa Igreja.

Como afirma o Documento, algumas sombras existem na vida eclesial, apesar de

muitas esperanças.

“Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II, seja algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar; lamentamos a ausência de uma autêntica obediência e do exercício evangélico da autoridade, das infidelidades à doutrina, à moral e à comunhão, nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres ...” 221

Portanto, o desafio está em superar essas sombras que nos impedem

fidelidade aos ensinamentos de Cristo, que significa promover a vida e a

dignidade a todos os homens e mulheres subjugados a um sistema de exclusão. A

Igreja, animada pelo Espírito, deve responder aos sinais dos tempos, porque só

assim poderá realizar o que Jesus fez e nos deixou como missão: a concretização

do Reino.

Ainda na perspectiva de Gesché sobre a identidade narrativa como

impedimento na cristalização do dogma, relembramos a importância da fé para a

legitimidade do cristão na realidade atual. Expressar uma fé sem conteúdo

teológico, alienada de racionalidade, sem fundamento histórico ou por demais

reduzida à história, institucionaliza a Igreja, fazendo com que perca sua força

219 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 107. 220 Ibid., p. 109. 221 CELAM, Documento de Aparecida, n. 100b.

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mediadora na realização do Reino. No pior dos casos, permite que se identifique

com o próprio Reino, trazendo conseqüências à sua aceitação diante de um mundo

que tende a rejeitar as grandes tradições institucionais. Como cristãos “não

devemos encarregar o dogma de pensar por nós. É a própria fé que nos pede

para permanecermos sempre intrigados.”222

Essa realidade nos traz um grande desafio: conhecer as novas relações que

o mundo descortina pelo acelerado índice de informações tecnológicas que

transformam a cultura, a arte, a política, a economia, enfim, tudo que envolve o

ser humano. A religião não está isenta do alcance dessa devastação, que gera

instabilidade e desequilibro nas relações pessoais. O Concílio Vaticano II tem, nos

seus documentos, muitas afirmações sobre a urgência de uma nova eclesiologia e

atuação pastoral. Uma preocupação em responder às exigências do mundo atual e

em promover um diálogo frutífero com a modernidade. Na introdução do

Compêndio do Vaticano II há um indicativo que nos fala sobre a apresentação

pastoral da doutrina ao mundo atual:

“Deve a doutrina estender-se aos problemas reais e que são a preocupação constante, não raro angustiante, dos homens de hoje (e não de outros tempos). O que implica um conhecimento exato e uma análise precisa desse mundo que importa salvar. O bom pastor conhece suas ovelhas.”223

Reconhecemos, com Gesché, que a identidade narrativa nutre,

positivamente, cada dimensão refletida, dando à cristologia uma autêntica

expressão para o mundo atual, que, cada vez mais, exige diálogo entre as

diferentes possibilidades de vida. E a perpectiva religiosa, presente na proposta

teologal, apresentada pela Igreja, queremos que seja parte reconhecida nesse

diálogo, pois tem sua estrutura antropológica e teológica bem organizada.

A partir da compreensão de uma cristologia autêntica, portanto fiel à

identidade de Jesus, reconhecida pelos discípulos, podemos relacionar o tema ao

próprio crente que assume, como membro da comunidade, o anúncio da Boa Nova,

nesta visão cristológica. Vimos exaustivamente quem é o ser humano para Gesché,

integrado em todas as suas relações fundamentais, que o permitem poder

reconhecer-se como filho de Deus, capaz de Deus e de um destino para Deus. Um

ser humano que é criado para amar. Portanto, capaz de responder, na fé, à

interpelação de Deus. Esse ser humano, único diante de Deus, dá a sua resposta

222 GESCHÉ, A., O Cristo, p. 111. 223 Compêndio Vaticano II, Introdução Geral, p. 11.

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individual, mas vive a sua fé inserida na comunidade, participando como membro

da Igreja de Cristo. “Evangelizar não é para quem quer que seja um ato

individual e isolado, mas profundamente eclesial”. 224

Nesse sentido não há como desvincular o ser humano, que proclama sua

fé em Jesus Cristo, da Igreja, comunidade que é depositária da missão de Jesus

Cristo. Na verdade, não há como dissociar o ser humano de uma intrínseca relação

com Deus, na perspectiva do pensamento de Gesché. Estamos, agora,

preocupados em sinalizar o conteúdo de fé que expressa uma visão de mundo, de

Igreja e do cristão, que tanto procuramos defender para uma legítima existência

teologal. Precisamos focar o tema do capítulo que perseguimos como um possível

resultado da prática cristã, o amor cristão como construtor de uma nova prática

eclesial e humana.

Fizemos, até então, uma reflexão voltada para as conseqüências práticas de

um enfoque, maior ou menor, em uma das dimensões da identidade de Jesus, a

histórica e da fé, caracterizando a importância da identidade narrativa como

equilíbrio positivo para a vivência da fé cristã. Desejamos, agora, dando

continuidade às reflexões práticas, abordar, antes mesmo de falar sobre o amor

cristão, falar da missão de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. Porque temos a

certeza de que, ao falar da mensagem do Evangelho, vinculamos o Cristo e a ação

gratuita do amor de Jesus à Boa Nova que anuncia. Também, ao falar do ser

humano que opta por Cristo, estaremos falando do amor de Jesus que deve ser

resgatado com maior visibilidade na vida do cristão, para compreender a missão

que o mundo exige. Essa reflexão está relacionada ao pensamento que Gesché

desenvolveu do olhar sobre a vítima presente no Evangelho, que é considerada

prioridade na ação de Jesus. E a justiça, importante, mas limitada como ação

jurídica, pois não tem a preocupação com a salvação da vítima, prioridade no

Evangelho de Jesus Cristo. Seguiremos, ainda, no esforço de explicitar a autêntica

vida que o cristão deve assumir na adesão que fez ao seguimento de Jesus Cristo.

Abordamos, acima, novas relações impostas pelo mundo, referendadas por

uma avançada e acelerada transformação tecno-científica. O Documento de

Aparecida, já citado, sinaliza, na apresentação missionária do anúncio, que o

missionário deve proclamar a “boa nova da dignidade humana, da vida, da

224 PAULO IV, Evangelii Nuntiandi, n. 60.

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família, do trabalho, da ciência e da solidariedade com a criação.”225 Portanto,

pensemos no ser humano explicitado por Gesché, integrado, em toda a sua

plenitude, à criação de Deus. Lá no primeiro capítulo abordamos esse ser, criado à

Imagem e Semelhança de Deus, conferindo-lhe uma existência livre para amar e

desejar Deus. Uma liberdade, permitida na alteridade, que lhe dá muitas

possibilidades, diferentes opções, mas sempre fundada na sua dignidade de ser

humano, de responder à vocação humana. O ser humano recebe o mais precioso

dom, o da liberdade em Deus, de poder optar por uma existência em Deus, que o

torna capaz de responder, na fé, a essa vocação.

Da mesma forma, em relação à vida e à família. Reconhecemos, na

alteridade, a necessidade de construir relações. É na relação com o outro que o ser

humano descobre a dignidade da vida, pois identifica, na confiança estabelecida

na relação, uma exigência do relacionamento e crescimento entre os Homens.

Assim, o relato do Gênesis descreve que Deus criou o homem e a mulher numa

relação de igualdade e cooperação, não de dominação. Aqui acontece a riqueza do

respeito às diferenças, que só é possível viver quando o ser humano sai de si em

direção ao outro, superando as dificuldades de um individualismo, tão comum nos

dias atuais. Na relação com o outro temos a possibilidade de Deus, da experiência

do amor, dom recebido e partilhado por Deus na criação dos seres humanos.

Temos a concreta manifestação de uma relação de amor, de viver uma comunhão

no amor de Deus com o próximo. Mais. De constituir, no amor entre o homem e a

mulher, a comunhão trinitária, configurando a comunhão esclesial.

Na outra dimensão das relações fundamentais, a relação com o mundo,

encontramos a mediação do trabalho, que Deus ofereceu como dom para que o

Homem fosse colaborador, co-participante de sua criação, criando-o criador. O ser

humano é capaz, na produção do trabalho, transformar a realidade que o cerca. O

trabalho dignifica o homem e a mulher, dando-lhes a possibilidade de desenvolver

o dom da criação, enaltecendo-os, assim, diante de Deus, pois constroem cultura,

contribuindo, na criação, para o desenvolvimento humano. É pelo trabalho que o

ser humano se reconhece criado criador, em comunhão com uma vida mais

integrada. Da mesma forma, a ciência, fruto do desenvolvimento do trabalho do

Homem. Desenvolvê-la representa uma preocupação com a vida de toda uma

225 CELAM, Documento de Aparecida, n. 103.

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humanidade, com a criação cultural, recebida e desenvolvida para um futuro mais

completo de possibilidades.

Por fim, a solidariedade, considerada, hoje, essencial na convivência entre

os Homens. Um aspecto que o ser humano desenvolveu como exigência da

modernidade e vem sendo assumida como constitutiva de sua condição humana.

Foi desenvolvida no uso da liberdade do ser humano. Uma solidariedade que se

estende ao cosmo. O ser humano não foi feito para viver isoladamente. O homem

e a mulher foram feitos à semelhança de Deus, por isso chamados a participarem

da criação, responsáveis pelo cuidado, pela preservação e integração entre as

criaturas. Existe, hoje, uma séria preocupação com a preservação da natureza, de

modo geral com a ecologia.

A nova geração vem sendo educada na perspectiva dessa preocupação,

mas sabemos o quanto a cobiça do ser humano ainda desrespeita e destrói a

relação do Homem com o cosmo. Não apenas na interrupção da vida gerada pela

natureza, mas na dominação que isso gera do Homem pelo Homem e,

principalmente, na impossibilidade de uma contemplação da natureza como

presença reveladora de Deus. Esta abordagem se encontra na tradição judaico-

cristã, que sempre manifestou a unidade do ser humano com o cosmo, numa

integrada relação, sem a falsa idéia, que prevaleceu na história, de que Deus

entregou ao Homem a criação para que a dominasse, como o fez, explorando-a.

Com essa equivocada compreensão do texto bíblico o ser humano submeteu a

natureza à sua dominação, destruindo-a e manipulando-a em função de seus

interesses econômicos e de poder. O Homem cristão precisa, pautado na

perspectiva bíblica, retomar a unidade rompida na modernidade, quando o ser

humano, em busca de sua autonomia, distanciou-se da realidade sagrada. O que

trouxe a grave conseqüência da crise ecológica.226

Relacionando à perspectiva de Gesché, a ação salvífica de Deus atua em

toda dimensão da vida existencial do ser humano. No capítulo que abordamos a

destinação, falamos do empenho do ser humano na superação dos obstáculos em

busca da sua realização, ou seja, a aceitação que faz da oferta salvífica de Deus

em sua vida. O crente tem, na adesão à pessoa de Cristo, a possibilidade de

226 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, p. 191.

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participar de sua salvação. Essa realidade foi, de fato, manifestada na história da

humanidade, na Encarnação do Filho de Deus.

“Desse modo, integra Deus a multiplicidade das criaturas na felicidade eterna da comunhão do Filho e do Pai. Como conseqüência fundamental desse desígnio divino toda criatura não é apenas meio, mas tem seu sentido enquanto intrinsecamente ordenada à manifestação do Filho na história.Cada criatura participa da finalidade salvífica do Criador.” 227

O que nos é confirmado pela teologia é que toda a criação tem seu papel

na salvação do ser humano em Deus. E Gesché tratou, na defesa do cristão, de

trazer à luz elementos fundamentais na construção de um novo sujeito que possa

atuar, de forma integrada com o cosmo, pensando as circunstâncias de sua

liberdade histórica.

A partir de Gesché, sinalizamos uma possibilidade de pensar o tema a

partir da criação, compreendendo todo seu esforço de oferecer à teologia recursos

para um diálogo que o mundo atual exige. Assim fez o autor, nos temas propostos,

para pensar o ser humano e Deus, sempre a partir da criação, como fez com a

questão do mal. É necessário revisitar a criação para pensar a relação da

solidariedade do ser humano com o cosmo, melhor dizendo, da integração do ser

humano com o cosmo, desde sempre presente na tradição, sem que nenhum

elemento seja absolutizado diante do outro.

“A idéia de criação implica que Deus quer algo de novo e de diferente. Que tenha consistência própria e seja querido como tal e, por isso mesmo, em sua diferença, pelo ato divino que a presidiu. É aí que teremos um princípio de inteligibilidade do cosmo que não seja uma redução a si mesmo, nem uma redução ao homem, nem muito menos uma redução a Deus. Isso poderia ser novo.”228

Uma outra reflexão prática exige destaque maior no presente trabalho: o

amor cristão. De tudo o que foi apresentado neste capítulo, a atuação do cristão no

mundo, sem o envolvimento desmedido do amor, não resultaria numa ação

diferente da dos não crentes, que também são capazes de amar sem medidas um

projeto, por exemplo, revolucionário. Onde, então, estaria a diferença, insistida

por Gesché, para o reconhecimento e legitimidade do cristão no mundo atual?

Em Gesché, vimos a caridade como núcleo central do cristianismo, sendo

ponto de partida e chegada para o desenrolar dos muitos aspectos trabalhados. Na

227 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, p. 194. 228 GESCHÉ, A., O Cosmo, p. 9. 230 Toda essa reflexão sobre o amor cristão se encontra no segundo capítulo, na abordagem sobre o mal. Cf. GESCHÉ, A., O Mal.

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apresentação de alguns relatos bíblicos, o autor mostrou Jesus atuando em defesa

da vítima, revelando a prática da justiça do Reino. A ação salvadora de Deus é

apresentada na pedagogia de Jesus Cristo. Podemos relembrar o bom samaritano,

onde Jesus se preocupa mais com a vítima do que em perseguir os culpados. Essa

diferença o cristão precisa fazer na sua prática, dar testemunho do amor de Cristo,

que tem a preocupação com a salvação e não com a condenação. O tema já teve o

seu lugar neste trabalho, quando tratamos da problemática do mal. Precisamos,

apenas, reforçar que o autor não desconsidera a preocupação com a punição, em si,

daquele que desencadeou o mal. Apenas defende que o amor de Jesus,

manifestado na realização do Reino, não se reduz à justiça do Homem, que enfoca

mais a condenação. A justiça do Reino não corresponde à justiça dos Homens.

Com o mesmo amor que Jesus transformou as relações entre os Homens e Deus,

sem medidas, gratuito, misericordioso, o cristão deve assumir a sua prática. É o

que Gesché chamou de excesso do amor, que só Deus poderia oferecer como

caminho na superação de nossas limitações humanas.230

Vimos os elementos da alteridade e da liberdade como fundantes na

construção da identidade. Vimos que o ser humano é confirmado a partir do outro,

portanto um outro desfigurado fere a condição humana, reduzindo as

possibilidades da identidade poder ser reconhecida e legitimada. A identidade

cristã precisa, para se fortalecer diante do mundo, assumir como condição de sua

legitimidade a luta pelo fim de todo tipo de exclusão que impede o ser humano de

ter uma vida plena. A comunidade de fé é responsável por fortalecer a comunhão

desse amor entre os Homens, pois tem no sacramento da Eucaristia a doação do

Corpo de Cristo, onde sempre podemos rememorar a práxis de Jesus, que nos

salvou convidando-nos a participar dessa salvação. “Na Eucaristia, nutrem-se as

novas relações evangélicas que surgem do fato de sermos filhos e filhas do Pai e

irmãos e irmãs em Cristo”.231

A sociedade atual exige, por parte do cristão, criatividade na sua prática,

principalmente na Igreja, que é mediadora dessa ação pastoral. É importante que

se reconheça que a ação voltada à construção de um novo sujeito de fé exige um

conhecimento dessa fé, que possibilite uma verdadeira práxis de sua inserção

eclesial. Acreditamos que a criatividade encontra-se no preceito atualizado por

231 CELAM, Documento de Aparecida, n. 158.

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Jesus: “amai-vos uns aos outros como eu vos amo. Ninguém tem maior amor do

que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 12-13). Amar na mesma

intensidade e gratuidade com que fez na sua época. Revisitar todos os conceitos e

expressões que a teologia ofereceu, como propôs Gesché ao tratar de temas bem

conhecidos, pode significar para o cristão uma criatividade, novidade necessária

às novas exigências de novos tempos. O núcleo central do cristianismo, “o amor

fraterno”, na verdade, exige sempre criatividade, pois a dinâmica do amor rejeita

relações cristalizadas. Entendemos, aqui, o que falamos da doutrina como fonte

viva de vida para que a comunidade de fé, movida e sustentada pelo Espírito,

produza e permaneça com os frutos (Jo 15, 16).

Juntos com Gesché, reconhecemos que o cristão, cada vez mais, precisa

testemunhar, na prática do amor, o novo sujeito que deseja ser diante do mundo

em que se encontra. A sociedade da época de Jesus trazia outras exigência e foi lá

que nos foi anunciado esse novo Homem de fé, na Encarnação, no encontro

definitivo do Transcendente com a imanência, unindo todas as possibilidades do

finito se lançar ao (in)finito, tornando-se um em todos e todos em um (Jo 17, 21).

Por isso, o cristão deve viver a sua fé na realidade concreta que o cerca, tornando

viva e atual a ação de Jesus.

Podemos entender que o cristão precisa amar o próximo como critério de

sua salvação, reconhecendo que só podemos proclamar o nosso amor a Deus

através outro, o próximo, sem rejeição alguma (1Jo 4, 20). A prática do fiel e de

sua compreensão eclesial não podem vir dissociadas, sob o risco de desmoralizar a

prática ou a visão eclesial que apresenta. A prática do cristão representa um

testemunho eclesial, pois não temos como afirmar a fé em Jesus Glorificado sem a

mediação da comunidade cristã. Reconhecemos que o amor de Deus pelo próximo,

que se revela no amor entre os Homens, não se limita a um espaço físico. O

critério absoluto do amor de Deus é o próximo, ele estando ou não no espaço da

comunidade. 232

232 MIRANDA, M. F., A Salvação de Jesus Cristo, pp.131-133 O autor desenvolve o tema com muita propriedade e profundidade. Importante conferir.

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CONCLUSÃO

Um bom começo para conclusão desse trabalho seria ter como ponto de

chegada a indagação feita por Jesus aos discípulos: “quem dizeis que eu sou?”

(Mt 16, 15). Ou mesmo, iniciar pela apresentação que Jesus faz de si com o “eis-

me aqui”. Ambas as narrativas permitem a construção da identidade cristã. Para

alcançar esse resultado caminhamos juntos com Gesché na compreensão de quem

é o ser humano que proclama a fé no cristo Glorificado. Afirmar, como Pedro o

fez, a identidade de Jesus Cristo, reconhecendo-O como o Filho de Deus, é

possível quando assumimos, na nossa condição humana, a responsabilidade do

sentido que damos à nossa afirmação. Atestamos a existência da identidade de

Cristo como resultado de uma práxis de vida. Reconhecemos as dimensões,

histórica, de Jesus de Nazaré e, da Ressurreição, que deu sentido à confissão de fé

que Pedro fez, ainda diante de Jesus, “Tu és o Filho de Deus” (Mt 1, 22).

A identidade narrativa, elo apresentado como articulador da unidade da

práxis de Jesus, permitiu representar a realidade histórica como realidade de fé.

Lembramos o que foi dito anteriormente sobre o conteúdo da fé: servir ao

reconhecimento legítimo do cristão presente no mundo e autenticar a fé

proclamada no seguimento de Jesus Cristo. Não há como ser cristão, seguir Jesus

Cristo, sem conhecer a fé proclamada. A alteridade, que permitiu o desabrochar da

fé como resposta individual do diálogo entre o ser humano e Deus, não pode

permanecer fechada nela mesma, pois tem o sério risco de se esvaziar num

reducionismo de uma lógica utilitarista de Deus. A fé em Jesus Cristo exige a

práxis vivida por Cristo. Isso é o que queremos evidenciar na prática do cristão,

não uma prática que evidencie somente uma das dimensões da realidade

existencial de Jesus em detrimento da outra, trazendo à tona todas as dificuldades

elencadas neste trabalho, que impedem o diálogo da teologia com as outras

ciências presentes no mundo atual. Principalmente, a dificuldade do cristão de ser

reconhecido e legitimado, na sua prática, se desconsiderar somente a história

como possibilidade de uma vida cristã ou mesmo uma fé ativista que rejeita ou

minimiza a oração como suporte da espiritualidade cristã.

A cristologia, como conteúdo de fé, precisa ser defendida e vivenciada

como revelação de um Deus humano que anunciou, antecipadamente, uma nova

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realidade existencial, a teologal. O Reino é a antecipação da construção dessa

nova realidade que testemunhamos na fé proclamada. Portanto, a práxis de Jesus

Cristo é condição fundamental para a identidade cristã ocupar o seu lugar como

possibilidade de uma existência construída livremente. Reconhecemos a

identidade do cristão quando narramos, juntos com os apóstolos, o Cristo

Ressuscitado, morto e crucificado. Podemos, então, fazer outro importante

questionamento para o cristão, depois de ter destacado a práxis como critério do

seguimento de Jesus Cristo: como anunciar a mensagem do Cristo Ressuscitado

nos tempos atuais, de modo a provocar o desejo de uma adesão apaixonada pela

pessoa de Jesus? Já destacamos no último capítulo, os sinais dos tempos, a

história como processo, dinamizada pelo Espírito, portanto, atualizada e à espera

de que o Homem saiba discernir, com os critérios da justiça do Reino, os

caminhos que o cristianismo inaugurou na sua história. A primeira herança

recebida é a desfatalização dessa história, que permitiu Jesus agir e, por isso, ser

condenado, porque assumiu a luta pela libertação de tudo que impedia o ser

humano de ter vida digna, tanto no âmbito individual como social e econômico.

Temos, a partir daí, um critério que já foi reconhecido como critério para salvação:

o compromisso com o outro desfigurado na sua humanidade, com o pobre que

pode estar presente no sujeito ou mesmo na estrutura invisível da sociedade, com

aqueles que não enxergamos, mas existem nos porões da humanidade.233

A comunidade de fé, herdeira da mensagem cristã da salvação, deveria ser

responsável pela criação de ações pastorais que promovam uma prática

transformadora, assentada na vivência do amor cristão. Devemos reconhecer na

Igreja a mediação fundamental da expressão desse amor. Bento XVI, na Encíclica

“Deus é Amor”, escreve a todos os cristãos.

“O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de tudo para cada um dos fiéis, mas o é também para a comunidade eclesial inteira, e isso, em todos os seus níveis: desde a comunidade local, passando pela Igreja particular, até a Igreja universal, na sua globalidade.”234

Torna-se bastante pertinente acentuar o que a Encíclica afirma como dever

de todo crente e de toda comunidade de fé o amor ao próximo, como amor

radicado em Deus. A nossa indagação é a de muitos que buscam atuar com a

233 Cf. MESTERS, C., Seis dias nos porões da humanidade. 234 BENTO XVI, Deus é amor, n. 20.

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mesma fidelidade e obediência que Jesus atuou em relação à sua missão. Quem é

o meu próximo? Em toda a apresentação de Gesché fomos conduzidos pelos

relatos bíblicos, que mostravam a opção de Jesus pelo excluído como exigência

absoluta da possibilidade de construção da identidade essencialmente cristã.

O cristão tem na Eucaristia sua maior fonte de riqueza, pois é nela que

Jesus estendeu o amor de Deus a todos os seres humanos, concedendo-nos parte

no Reino. Quando abordamos a destinação como realidade existencial, vimos que

Gesché trabalhou a perspectiva escatológica como uma opção teologal que o

cristianismo trazia como novidade e realidade concreta, construída no exercício da

liberdade existencial do ser humano. Sabendo que toda ação do cristão representa

um testemunho de vida, registramos, então, que a prática da justiça do Reino pode

ser uma possível ação criativa para o diálogo com o mundo atual, que vem

sinalizando um distanciamento cada vez maior da comunhão entre os seres

humanos, evidenciando um individualismo exacerbado nas relações sociais.

Buscando exprimir a unidade do Evangelho na vida do cristão, lembramos

o texto da carta de São Paulo aos Coríntios, citado no início do terceiro capítulo, e

a narrativa de São Lucas, nos Atos, desejando realizar na prática o que Deus fez

conosco ao se revelar na condição humana, amando-nos perdidamente.

“ Perseveravam eles na doutrina dos Apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações. Todos os fiéis vivam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um.” (At 4, 42. 44)

Esperamos que as intuições de Gesché, que trouxemos neste trabalho,

ajudem o leitor a responder com mais fundamento à pergunta de Jesus: “e vós,

quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). E desejamos que as respostas – tantas

quantas as experiências pessoais com Ele – se concretizem num generoso “eis-me

aqui” frente aos desafios do mundo atual.

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4 Referência bibliográficas

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_____. A Igreja no atual pluralismo cultural e religioso. Atualidade Teológica, ano IX, fasc. 21. Rio de Janeiro: PUC, 2005, p. 345-352. _____. A Igreja numa sociedade fragmentada. São Paulo: Loyola, 2006. QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, 2ª ed.. São Paulo: Paulus, 1989. RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico. São Paulo: Loyola, 2005. RÚBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão, 3ª ed.. São Paulo: Paulus, 2001. _____. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para nossos dias, 8ª ed.. São Paulo: Paulinas, 2003. _____. Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?. Petrópolis: Vozes, 2004. SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1983. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia I: problemas de fronteira, 2ª ed.. São Paulo: Loyola, 1986. 4.3 Bibliografia de ciências humanas BAUMANN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. _____. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, 8ª ed.. Petrópolis: Vozes, 2006. _____. A Interpretação das culturas. LTC. 2000 KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia, empresa. Porto Alegre: Sulina, 2004. _____. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PALÁCIO, Carlos. Novos Paradigmas ou fim de uma era teológica? In FABRI, M. (Org.) Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Soter/Loyola,1997. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, 3ª tir.. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1999. VATIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, 2ª tir. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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