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  • 7/29/2019 Valor19-O papa, a famlia e o Estado

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    O papa, a famlia e o estado

    Fbio Wanderley Reis

    Em sua visita ao Brasil, Bento XVI se manifestou, como esperado,sobre assuntos variados, com reaes desencontradas de religiosos, da

    imprensa e do pblico em geral. Sem embargo dos muitos temas difceis

    (alguns no s para catlicos), a conexo da visita com a VI Conferncia do

    Episcopado Latino-Americano e as disputas teolgicas envolvidas impem

    destacar como questo central das discusses suscitadas a de at que ponto se

    justificar, diante da doutrina catlica, a politizao mais direta da atuao

    da Igreja. Se isso leva o papa at avaliao de capitalismo e marxismo e

    recomendao obviamente problemtica de um ponto de vista leigo de umconsenso moral baseado na idia de Deus como condio da obteno de

    estruturas sociais justas, h um aspecto especfico das pregaes papais que

    uma perspectiva sociolgica permite talvez examinar brevemente com

    proveito: o tema da famlia e do papel da mulher.

    Do modo como a posio de Bento XVI a respeito foi noticiada na

    imprensa, ele teria proposto que as mulheres deveriam receber assistncia

    estatal para se dedicarem exclusivamente famlia e educao dos filhos,

    posio que foi alvo, por exemplo, de crtica aberta da ministra Nilca Freire,

    da Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres. Na verdade, a

    reproduo textual das palavras do papa que pude ver registra plenamente,

    em vez de exclusivamente; contudo, parte esse pormenor de alguma

    relevncia (seria talvez possvel falar de uma dedicao plena que no fosse

    exclusiva), parece bem claro que a inteno do papa, no obstante a

    denncia do machismo latino-americano, reafirmar a tradicional viso

    catlica da famlia: o homem o provedor, enquanto a mulher se dedica s

    tarefas domsticas e aos filhos. Ora, essa viso e seu questionamento esto no

    prprio cerne do debate atual sobre o funcionamento do estado de bem-estar e

    como caberia transform-lo, e a objeo da ministra, apontando o mundo real

    e a participao econmica das mulheres, se ajusta a aspectos importantes

    dele.

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    H tempos, vrios estudiosos (Karl Polanyi, mais recentemente Claus

    Offe) falam do papel do estado de bem-estar como agente da

    desmercantilizao, ou da imposio de limites penetrao difusa dos

    mecanismos de mercado com a expanso do capitalismo. Mas a peculiaridadeda situao das mulheres estaria, na viso de muitos (includo certo

    feminismo), em que o estado de bem-estar opera em vrios casos com a

    ateno voltada para desmercantilizar o provedor masculino, enquanto adere

    a uma posio familialista que atribui unidade domstica a maioria das

    responsabilidades e encargos de welfare e garante, assim, na expresso de

    G. Esping-Andersen (Social Foundations of Postindustrial Economies), o

    aprisionamento das mulheres em seu status pr-mercantilizado. Ainda que

    essa linguagem arrevesada possa ter ressonncias negativas (aos ouvidos dopapa, sem dvida, mas talvez at de gente de esquerda), a idia que a

    insero no mercado pode significar a criao de condies favorveis

    independncia pessoal e, para as mulheres, ao avano rumo igualdade entre

    os sexos.

    Seja como for, Esping-Andersen faz de idias como essa o fundamento

    da distino entre duas perspectivas, uma conservadora e outra

    socialdemocrtica, descritas como representadas, em seu contraste quanto s

    polticas recomendadas, de um lado por catlicos e norte-americanos (alm de

    confucianos do leste asitico), de outro lado por escandinavos. A poltica

    conservadora vista como empenhada em reproduzir instituies pr-

    capitalistas num mundo mercantilizado, com as polticas pr-famlia

    buscando restaurar os valores familiais tradicionais. J a perspectiva

    socialdemocrtica envolveria a desfamilializao dos encargos de bem-

    estar, e polticas pr-famlia redundariam antes, aqui, no que H. Hernes

    chamou de women-friendly welfare state, um estado de bem-estar atento s

    mulheres e empenhado na reduo do peso das responsabilidades familiares

    (com a promoo de creches, por exemplo), de modo a favorecer a insero

    profissional das mulheres no mercado de trabalho.

    Por certo, seria descabido colar, sem mais, um sinal negativo na

    perspectiva conservadora sobre o assunto e outro, positivo, na perspectiva

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    socialdemocrtica. Afinal, mesmo do ponto de vista do mercado de trabalho, a

    intensificao do trabalho feminino se tem associado por toda parte com a

    precarizao daquele mercado, e nos prprios pases escandinavos temos a

    estratificao resultante da grande proporo de mulheres que se encaminham

    para o emprego pblico, transformando-se em profissionais justamente doestado de bem-estar. Alm disso, ainda que a situao nos pases

    paradigmticos da socialdemocracia possa ser melhor em diversos respeitos,

    no se podem esquecer ou minimizar as patologias ligadas desestabilizao

    ou precarizao da prpria famlia como instituio, que se correlaciona com

    indicadores sociais negativos de diversos tipos e especialmente relevante na

    ptica da socializao dos mais jovens e de sua insero social apropriada.

    Sem falar da dilacerante questo do aborto, que emerge com fora

    precisamente no contexto de tais problemas e, apesar da afirmatividade azedade parte a parte nos enfrentamentos que produz, tem sido objeto de

    experimentos legais, como nos Estados Unidos, cujos resultados esto longe

    de ser tranquilizadores de um ponto de vista socialmente sensvel, ainda que

    desligado de vises religiosas conservadoras.

    Como quer que seja, parece difcil rejeitar o rumo sugerido pela

    perspectiva socialdemocrtica numa avaliao que combine a ateno para a

    realidade contempornea com valores que, de uma forma ou de outra, no h

    como deixar de reafirmar.

    Valor Econmico, 21/5/2007

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