valor mobiliário: evolução e conceito

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RDS VIII (2016), 2, 309-342 Valor mobiliário: evolução e conceito PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM Sumário: 1. Introdução. § 1.º O termo valor mobiliário: evolução semântica e vocábulos sucedâneos: 2. Origem francesa e expansão latina; 3. Direito português: das origens civilís- ticas à consolidação terminológica; § 2.º Evolução legislativa nacional; 4. Até ao Código do Mercado de Valores Mobiliários; 5. Código do Mercado de Valores Mobiliários; 6. Versão original do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários; 7. A versão atual do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários: Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março; 8. Valores mobiliários e instrumentos nanceiros: da versão original do Código ao Decreto-Lei n.º 357- A/2007, de 31 de outubro. § 3.º Evolução legislativa europeia: 9. Até à Diretriz DSI; 10. Diretriz n.º 93/22/CEE, de 10 de maio; 11. Diretriz n.º 2004/39/CE, de 21 de abril. § 4.º O conceito de valor mobiliário: 12. Elementos legislativos nacionais e europeus; 13. O valor mobiliário enquanto bem ou situação jurídica; 14. Características da situação jurídica representada; 15. Conclusões. 1. Introdução I. No núcleo do Direito dos valores mobiliários encontramos, como não poderia deixar de ser, o conceito de valor mobiliário. Foi em seu torno que todo o edifício jurídico foi construído e desenvolvido. A hegemonia hoje alcançada pelo conceito de instrumento nanceiro, conquanto inegável, não afeta o papel tradicionalmente ocupado pelos valores mobiliários e a função nuclear que ainda hoje desempenham no seio dos mercados nanceiros 1 e do regime jurídico mobiliário. 1 Conceito de mercado nanceiro, veja-se, o nosso Direito dos valores mobiliários, I, Almedina, Coimbra, 2015, 24-25. Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 309 Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 309 18/10/16 11:28 18/10/16 11:28

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Valor mobiliário: evolução e conceito

PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM

Sumário: 1. Introdução. § 1.º O termo valor mobiliário: evolução semântica e vocábulos sucedâneos: 2. Origem francesa e expansão latina; 3. Direito português: das origens civilís-ticas à consolidação terminológica; § 2.º Evolução legislativa nacional; 4. Até ao Código do Mercado de Valores Mobiliários; 5. Código do Mercado de Valores Mobiliários; 6. Versão original do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários; 7. A versão atual do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários: Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março; 8. Valores mobiliários e instrumentos fi nanceiros: da versão original do Código ao Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de outubro. § 3.º Evolução legislativa europeia: 9. Até à Diretriz DSI; 10. Diretriz n.º 93/22/CEE, de 10 de maio; 11. Diretriz n.º 2004/39/CE, de 21 de abril. § 4.º O conceito de valor mobiliário: 12. Elementos legislativos nacionais e europeus; 13. O valor mobiliário enquanto bem ou situação jurídica; 14. Características da situação jurídica representada; 15. Conclusões.

1. Introdução

I. No núcleo do Direito dos valores mobiliários encontramos, como não poderia deixar de ser, o conceito de valor mobiliário. Foi em seu torno que todo o edifício jurídico foi construído e desenvolvido. A hegemonia hoje alcançada pelo conceito de instrumento fi nanceiro, conquanto inegável, não afeta o papel tradicionalmente ocupado pelos valores mobiliários e a função nuclear que ainda hoje desempenham no seio dos mercados fi nanceiros1 e do regime jurídico mobiliário.

1 Conceito de mercado fi nanceiro, veja-se, o nosso Direito dos valores mobiliários, I, Almedina, Coimbra, 2015, 24-25.

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II. Dogmaticamente e sem negar a volatilidade que sempre caracterizou o preenchimento do conceito de valor mobiliário, parte relevante da doutrina especializada tendia a reconhecer, numa tradição que remonta, pelo menos, aos escritos oitocentistas de Buchère2, a assunção, pelo termo, de dois sentidos distintos: (i) um sentido estrito, abrangendo ações, obrigações e outros instru-mentos similares; e (ii) um sentido amplo, abarcando, por recurso ao panorama moderno, as mais variadas fi guras, desde os títulos do mercado monetário aos instrumentos estruturados e derivados.

Em resultado da intervenção europeia, o conceito de valor mobiliário lato sensu foi substituído pelo de instrumento fi nanceiro, passando os valores mobi-liários (stricto sensu) a englobar a mais vasta categoria de instrumentos fi nanceiros.

III. Com o presente estudo pretendemos revisitar o conceito de valor mobiliário, atribuindo especial ênfase aos desenvolvimentos legislativos – por-tuguês e europeu – e ao correspondente impacto no seu preenchimento dog-mático e sistemático.

§ 1.º O termo valor mobiliário: evolução semântica e vocábulos suce-dâneos

2. Origem francesa e expansão latina

I. A polissemia da locução valor mobiliário difi culta a localização do exato momento em que terá começado a ser empregue com um sentido análogo ao que atualmente lhe é atribuído. Julgamos, contudo, ser possível apontar para a viragem do século XVIII para o século XIX, mais especifi camente para a lei de 22 de frimário de an VII (12 de fevereiro de 1798)3-4. Neste diploma encontra-mos as seguintes expressões: “eff ets mobiliers”, “objets mobiliers”; “actions mobiliers” e “valeurs mobiliers”. Apesar das pertinentes dúvidas então suscitadas5, quanto ao exato sentido assumido pelos diversos termos utilizados, torna-se evidente, da

2 Ambroise Buchère, Traité théorique et pratique des valeurs et eff ets publics, Marescq Ainé, Paris, 1869. 3 Législation sur l’enregistrement.4 O termo havia sido já empregue anteriormente em, pelo menos, um outro diploma, datado de dezembro 1790: s. 5, 1.º: “Les actes, soit entre-vifs ou à cause de mort, contenant dons ou legs de sommes déterminées et de valeurs mobilières désignées et susceptibles d’estimation”. Porém, não é claro com que propósito foi a expressão utilizada: Recueil des lois de la République Française, concernant l’ordre judi-ciaire, depuis 1790, editado por J. P. Crosilhes, Tomo I, Montauban, 1798, 158. 5 M. Championnière e M. Rigaud, Traité des droits d’enregistrement, de timbre et d’hypothèques, et des contraventions a la loi du 25 ventose an XI, Tomo II, 2.ª ed., Charles Hingary, Paris, 1839, 500.

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leitura do diploma, que o legislador pretendeu distinguir os bens móveis (objets mobiliers) dos valores mobiliários (valeurs mobiliers).

II. Nas décadas que se seguiram, a locução é assumida pela pujante Ciência Económica6, primeiro, e, posteriormente, pela Ciência Jurídica7.

A adoção do termo pelas doutrinas italianas ocorre praticamente em simul-tâneo, em face da reconhecida ascendência cultural francesa8.

Entre nós, a divulgação do termo ocorre, com maior notoriedade, a partir da década de 60 do século passado e, em 1972, é publicada a obra pioneira de A. Correia da Cunha, Acções, obrigações e outros valores mobiliários: colectânea de notas e apontamentos (1972)9.

3. Direito português: das origens civilísticas à consolidação terminológica

I. O termo valor mobiliário tem antigas raízes no Direito português. No Código de Seabra, por exemplo, a expressão surge em inúmeros artigos: 58.º, 151.º, 906.º, 929.º ou 2010.º. Todavia, em nenhum dos referidos preceitos assume o vocábulo um preenchimento análogo ao que modernamente lhe é atribuído: a locução é empregue como sinónimo de bem móvel, patrimonial, corpóreo ou incorpóreo, fungível ou infungível. Recorrendo aos exemplos de Cunha Gonçalves, o conceito de valor mobiliário abrangia mobília, quadros, estátuas, adornos, títulos de créditos, joias e dinheiro10.

Com a apuração do conceito jurídico moderno, a expressão deixou de ser utilizada com este sentido mais coloquial. Trata-se, contudo, de um desen-volvimento particularmente recente. No início da segunda metade do século

6 Bulletin des sciences géographiques, économie publique; voyages, Tomo VIII, Paris, 1826, 68: breves considerações comparatísticas sobre os mercados britânico e francês.7 Ambroise Buchère, Traité théorique et pratique des valeurs et eff ets publics, Marescq Ainé, Paris, 1869; Henri Lefèvre, Traité des valeurs mobilières et des opérations de bourse: placement & spéculation, E. Lachaud, Paris, 1870. 8 Gaetano Castellano, I titoli di massa, 50 Banca, Borsa, 1987, 22-37, 23; Vicenzo Vito Chionna, Le origini della nozione di valore mobiliare, 44/4 RivS 1999, 831-866, 834 ss. A primeira obra em que o termo é empregue no respetivo título data de 1926: I valori mobiliari, da autoria de Riera. 9 Livraria Clássica, Lisboa, 1972. 10 Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito civil em comentário ao Código Civil português, II, Coimbra ed., Coimbra, 1930, 68-69. Vide, ainda, com idênticas considerações, a página 369, do mesmo Volume, e Tratado de Direito civil em comentário ao Código Civil português, X, Coimbra ed., Coimbra, 1935, 451: “A expressão “valores mobiliários” ... refere-se a todos os bens mobiliários”.

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passado, e certamente por infl uência do Código Civil então em vigor, encon-tramos diplomas em que a expressão é ainda empregue num sentido amplo11.

II. No âmbito da legislação comercial, o termo não é aproveitado pelo Código Ferreira Borges, de 1833. Já a locação valor é empregue num único artigo – 118.º, por duas vezes – e com a seguinte composição “valores indossáveis”12.

Conquanto se aproxime do preenchimento que buscamos, a expressão valor não se encontrava, à época, consolidada, quer ao nível legislativo, como a lei-tura do Código o demonstra, quer ao nível doutrinário, sendo então evocada com o sentido mais coloquial de preço ou importância monetária de um deter-minado título13.

Por seu lado, o termo título desempenha um papel de alguma relevância no Código Ferreira Borges, surgindo em inúmeros contextos, isolada ou de forma composta: “título legal” (175.º); “título de dívida” (315.º); “título de obrigação commercial” (320.º); “título da obrigação” (896.º). Apesar de na maioria dos casos nos remeter para o conceito de título de crédito, a expressão assumia, então, um preenchimento mais extenso: “Chama-se titulo em geral o acto que serve de provar o direito que temos a uma cousa”, nas palavras do Autor mate-rial do Código14-15. O elemento distintivo é colocado na representatividade em desfavor da suposta circulabilidade16.

11 Decreto n.º 45 266, de 23 de setembro de 1963 (Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência), artigo 165.º/1, d): “transmissão de quaisquer valores mobiliários ou imobiliários”. 12 O preceito terá tido como fonte próxima os artigos 89.º e 90.º do Código Comercial de Espa-nha: Gaspar Pereira da Silva, Fontes proximas do Codigo Commercial portuguez, Typ. Commercial Portuense, Porto, 1843, 40. 13 José Ferreira Borges, Diccionario juridico-commercial, 2.ª ed., Typ. de Sebastião José Pereira, Porto, 1856, 414-416: “Esta palavra em direito cambial importa o preço da letra”. Não se encontra, ao longo das linhas que o Autor dedica ao termo, qualquer indício da sua utilização enquanto sinónimo de título de crédito ou conceito próximo. Também Diogo Sampaio Pimentel, emprega a expres-são no sentido de “valor do título”: Annotações ao Codigo de Commercio portuguez, II, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1866, 85-86.14 Diccionario, cit., 402.15 Sobre a vida e obra de José Ferreira Borges: José Maria Barbosa de Magalhães, em Juriscon-sultos portugueses do século XIX, Vol. II, coordenação de José Pinto Loureiro, Ordem dos Advoga-dos, Lisboa, 1960, 202-311; Miriam Afonso Brigas, Ferreira Borges e a organização do foro comercial no Código comercial de 1833: algumas refl exões, I, inédito, FDL, Lisboa, 1999, 82-109.16 Veja-se o nosso: A circulabilidade enquanto característica e função dos títulos de crédito, 147 O Dir, 2015, 111-113.

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III. Menos de 50 anos volvidos sobre a entrada em vigor do Código Fer-reira Borges17 o diploma foi revogado, dando lugar ao Código Veiga Beirão, de 1888. O novo Código Comercial português volta a não fazer qualquer menção ao conceito de valor mobiliário. A prevalência continua a ser dada à expres-são título, ora isoladamente (352.º ou 356.º), ora de forma composta: “títulos nominativos” (399.º); “títulos de crédito mercantil” (Título XX, do Livro II); “títulos de crédito negociáveis” (463.º/2 e 3 ou 477.º).

IV. O termo título havia já assumido, mesmo antes da entrada em vigor do Código Comercial, uma dupla dimensão: em sentido amplo era utilizado com o conteúdo que lhe era atribuído por Ferreira Borges, ou seja, documento comprovativo de um direito; e em sentido estrito era empregue enquanto denominação geral, agregadora dos mais distintos papéis comerciais18. A dou-trina de então incluía, no leque dos títulos de crédito, os dois valores mobiliá-rios nucleares: ações e obrigações19.

Entre os grandes nomes da comercialista portuguesa da viragem do século XIX para o século XX, a imagem valor mobiliário apenas parece ter sido uti-lizada por Ruy Ulrich20 – por evidente infl uência francesa21 –, sem, todavia, avançar qualquer defi nição22. De fora fi cam nomes sonantes como Veiga Bei-

17 A vida política e pública de Ferreira Borges impeliu os seus rivais e inimigos a dirigirem inú-meras críticas, nem sempre fundadas, à sua magna obra: António Menezes Cordeiro, Direito comercial, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, 99.18 Inocêncio de Sousa Duarte, Diccionario de Direito commercial, Escriptorio, Lisboa, 1880, 482: entrada de “título”.19 Mário de Figueiredo, Caracteres gerais dos títulos de crédito e seu fundamento jurídico, F. França Amado, Coimbra, 1919, 10. 20 Ruy Ennes Ulrich, Da bolsa e suas operações, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1906.21 O termo é mencionado repetidamente (vide, em especial, páginas 61 e 62) no capítulo dedicado à evolução histórica das bolsas (50-70). Ora, de entre a bibliografi a referida, contam-se diversos autores franceses que utilizavam a expressão, veja-se o caso paradigmático de Emmanuel Vidal, Bourse des valeurs mobilières. Já a doutrina italiana utilizada, e atendendo apenas a vocábulos próxi-mos, recorre à expressão “valori negoziabili” (Luigi Franchi, Manuale del Diritto commerciale, Parte I, UTET, Roma, 1890, 230-231) ou simplesmente “valori” (Albero Marghieri, Il Diritto commer-ciale italiano esposto sistematicamente, I, 2.ª ed., Riccardo Marghieri, Nápoles, 1886, 391 ss). Camillo Supino dá prevalência à curiosa expressão “capitale improdutivo”: La borsa e il capitale improduttivo, Ulrico Hoepli, Roma, 1898. 22 A atenção de Ulrich, como de resto o título da obra o deixa transparecer, centra-se nas opera-ções em si e não tanto no objeto das operações. Apresenta-os como títulos e reconhece que são coisas fungíveis: cit., 424 ss.

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rão23, José Tavares24 ou Caeiro da Mata25. O facto de a matéria dos valores mobiliários/títulos de crédito negociáveis ter estado, durante longas décadas, afastada da Cadeira de Direito Comercial e dos respetivos Manuais Universitá-rios muito terá contribuído para o estado da questão26.

V. Ao longo de toda a primeira metade do século XX, o panorama doutri-nário não sofreu particulares alterações, sendo poucos os autores que recorrem ao termo: Cunha Gonçalves, que no seu Comentário ao Código Comercial havia dado prevalência à expressão título27, reconhece, no Tratado de Direito civil, que a locução valor mobiliário é empregue, no âmbito da terminologia comercial, com o sentido de título de crédito28, representa uma notória exceção.

A coexistência de distintas nomenclaturas estende-se à prática legislativa29. Veja-se, com propósitos meramente exemplifi cativos: (i) o Regimento do ofício de corretor (Decreto de 10 de outubro de 1901): “títulos” (48.º); “valores ou títulos” (50.º); “papéis de crédito” (54.º); “títulos ou papéis de crédito” (74.º); e (ii) o Regulamento do serviço de operações das Bolsas de fundos públicos e particulares e outros papéis de crédito (Decreto de 10 de outubro de 1901): “papéis de crédito” (artigo 1.º); “fundos e mais títulos de crédito” (25.º); “títulos ou papéis de cré-dito” (27.º, § único, X); “papéis de crédito cotados” (22.º); “títulos cotados” (25.º)30; e “valores cotados” (26.º)31; ou (iii) Decreto de 20 de dezembro de 1926 (Cria as Câmaras de Compensação de Lisboa e Porto): “efeitos comerciais” (6.º, § único).

23 Francisco da Veiga Beirão, Direito commercial portuguez: esboço do curso, Imprensa da Univer-sidade, Coimbra, 1912.24 Curso de Direito comercial, I, França Amado, Coimbra, 1901, 33: títulos de crédito negociáveis. 25 José Caeiro da Mata, Direito commercial português, Imprensa da Universidade, Lisboa, 705 ss: trata da matéria relacionada com a bolsa de valores de forma muito sucinta e apenas no que aos seus aspetos institucionais respeita.26 Sobre o ensino do Direito dos valores mobiliários: Paula Costa e Silva, Direito dos valores mobiliá-rios: relatório, Lisboa, 2005 e o nosso Direito dos valores mobiliários, I, Almedina, Coimbra, 2015, 196 ss.27 Luiz da Cunha Gonçalves, Comentário ao Código comercial português, II, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, 1916, 363: a título meramente exemplifi cativo. 28 Tratado, X, cit., 451.29 Amadeu José Ferreira, Valores mobiliários escriturais: um novo modo de representação e circulação de direitos, Almedina, Coimbra, 1997, 25 ss. Todos os diplomas que se seguem podem ser consultados em Carlos Alberto Rosa, Carlos Botelho Moreno e Diogo Miranda Barbosa, Legislação dos mercados monetário, cambial e fi nanceira anotada, Almedina, Coimbra, 1972.30 “Os fundos e mais títulos de crédito ... serão admitidos à cotação”.31 Admissão de “valores à quotação”.

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Ao longo deste período, marcado por uma forte imprecisão terminológica e conceitual, o termo título de crédito assume, pese embora as fl utuações evi-denciadas, um papel congregador.

VI. O fi nal da década de 50 trouxe consigo novidades terminológicas. Tudo indica que o artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 42 641, de 12 de novem-bro de 1959, que Promulga disposições destinadas à execução do Decreto-Lei n.º 41 403, que reorganizou o sistema de crédito e a estrutura bancária, terá sido o primeiro preceito legal em que o termo valor mobiliário é empregue com um sentido que os juristas de hoje imediatamente compreenderiam: “compra e venda de títulos e mais valores mobiliários”. Repare-se que a expressão coexiste, neste diploma, com os termos mais tradicionais de “título” (56.º) e de “papel de crédito” (52.º).

VII. Seis anos volvidos, com o Decreto-Lei n.º 46 342, de 20 de maio de 1965, que Regula a constituição e funcionamento de fundos de investimentos mobiliários e das correspondentes gestoras e entidades depositárias, foram dados passos decisivos, no sentido da assimilação legislativa da expressão. O termo é aproveitado na defi nição de fundos de investimento mobiliário – apresentados como “conjun-tos de valores mobiliários pertencentes a uma pluralidade de pessoas, singulares e colectivas, em que cada participante será titular de quotas-partes dos valores que os integram” (2.º) – e é colocado no centro da atividade das sociedades gestoras – que poderão “comprar, vender, subscrever, trocar ou receber quais-quer valores mobiliários” (4.º, § único). Fica a dúvida se a expressão “valor mobiliário” é utilizada, pelo legislador, apenas no sentido de títulos cotados ou negociáveis em bolsa ou se abrange todas as modalidades mobiliárias32. Embora nos inclinemos para o primeiro sentido, não podemos deixar de notar que alguns preceitos apontam para uma possível analogia semântica, o que seria perfeitamente natural, dada a incerteza conceitual ainda vivida.

O reconhecimento transversal é evidenciado com a sua inclusão no artigo 1728.º/2, b) do Código Civil de 66: “São designadamente considerados bens próprios ... os prémios de amortização de títulos de crédito ou de outros valores mobiliários”33.

32 Amadeu Ferreira, Valores mobiliários escriturais, cit., 28: assume esta posição.33 A versão fi nal do preceito é idêntica à prevista nos respetivos trabalhos preparatórios (Guilherme Braga da Cruz, Regime dos bens do casamento. Disposições gerais – regimes de comunhão. Anteproject para o Novo Código Civil, 122 BMJ, 1963, 205-222, artigo 54.º, 218), sendo, consequentemente, de elaboração anterior ao Decreto-Lei 46 342, de 1965. Fica ainda a dúvida se não será anterior ao próprio Decreto-Lei n.º 42 641, de 1959: no BMJ n.º 122, são publicados dois estudos, um

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VIII. A partir da década de 70 do século passado, a expressão assume toda a sua plenitude: (i) no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 397/71, de 22 de setembro, as obrigações convertíveis em ações são descritas como um novo tipo de valor mobiliário; (ii) a locução é invocada no título do Decreto-Lei n.º 55/72, de 16 de fevereiro, que Fixa novas formas a observar na emissão de acções das sociedades comerciais e adopta medidas que visam à protecção dos investimentos em valores mobi-liários”; e (iii) no Decreto-Lei 8/74, de 14 de janeiro, que Regula a organização, o funcionamento e as operações das bolsas valores, a expressão assume um papel incontornável.

Este último diploma marca, de forma decisiva, a consolidação do termo valor mobiliário no sistema jurídico-fi nanceiro português. As denominações do primeiro código mobiliário – Código do Mercados dos Valores Mobiliários – e do supervisor sectorial – Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários – sur-giram, certamente, de forma natural, na mente dos legisladores e governantes de então.

§ 2.º Evolução legislativa nacional

4. Até ao Código do Mercado de Valores Mobiliários

I. O Decreto-Lei n.º 46 342, de 20 de maio de 1965, primeiro diploma em que o termo valor mobiliário é utilizado de forma generalizada, fornece-nos poucos pistas, quanto ao seu conteúdo jurídico. Todavia, da leitura conjunta dos artigos 1.º e 10.º, podemos retirar os seguintes elementos: os valores mobi-liários são títulos emitidos por entidades públicas ou privadas e negociáveis em bolsa. A expressão título não parece ser utilizada com um sentido de título de crédito, mas simplesmente com o de representação titulada, independente-mente da natureza jurídica do bem aí inscrito34.

da autoria de Braga de Cruz e um outro da de Manuel Gonçalves Pereira; ora, como Gonçalves Pereira esclarece, logo na primeira página do seu anteprojeto, o Professor Braga da Cruz viu-se impossibilitado de terminar o trabalho que iniciara. Deste facto, podemos retirar duas conclusões: (i) Gonçalves Pereira apenas principiou os seus estudos após Braga da Cruz se encontrar “impossi-bilitado”; e (ii) os textos apenas foram publicados conjuntamente, em 1963. Acresce, que o ante-projeto de Braga da Cruz foi publicado em três partes: as duas primeiras em 1957 (BMJ n.º 63, 23-191 e BMJ n.º 69, 353-429) e a última em 1963, incompleta e protelada em decorrência dos factos ora descritos. Terá o termo valor mobiliário sido primeiro aproveitado por Braga da Cruz? E terá sido incluído no projeto antes de 1959, conquanto apenas publicado em 1963? 34 Amadeu Ferreira, Valores mobiliários escriturais, cit., 28.

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II. Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 55/72, de 16 de fevereiro. O diploma, em face do seu objeto – regulação da emissão de ações das sociedades comerciais –, não fornece novos elementos. Recorrendo, também aqui, a uma interpretação sistemática, retira-se uma defi nição muito próxima da que é avançada em 1965: títulos negociáveis em bolsa. Curiosamente, as expressões são apresentadas, em diversas passagens, como sinónimos (3.º/1: “quaisquer títulos ou valores mobi-liário”), sendo demonstrativo das difi culdades linguísticas e de conceitualização então sentidas.

III. O Decreto-Lei n.º 8/74, de 14 de janeiro, manteve a linha assumida nos diplomas de 65 e 72, permanecendo o conceito de valor mobiliário intrin-secamente associado à negociação em bolsa: “bolsas de valores mobiliários”, que têm “por objecto a realização de operações sobre valores mobiliários”. A expressão título, que continua a ser amplamente utilizada, divide o prota-gonismo com a expressão valor, assumindo conteúdos análogos. Quanto ao termo título, este não parece ser utilizado, também aqui, no sentido específi co de título de crédito.

Mas o diploma traz importantes novidades. O legislador, numa prática ainda hoje seguida em inúmeros ordenamentos, elenca os valores/títulos pas-síveis de serem cotados em bolsa. Por maioria de razão, apenas estes poderão ser defi nidos como valores mobiliários. Atente-se ao conteúdo do artigo 34.º:

(Valores que podem ser admitidos à cotação)

1. Só serão admitidos à cotação em bolsa:a) Os fundos públicos nacionais e estrangeiros e os títulos aos mesmos equipa-

rados;b) As acções e obrigações legalmente emitidas por empresas privadas, nacionais

ou estrangeiras;c) Quaisquer outros valores mobiliários que, por disposição de lei ou portaria

do Ministro das Finanças, possam ser objecto de cotação ofi cial.2. Para os efeitos do presente diploma consideram-se fundos públicos:a) Os títulos da dívida pública nacional;b) Os títulos emitidos pelos governos das provinciais ultramarinas;c) Os títulos emitidos por institutos públicos;d) Os títulos emitidos pelos corpos administrativos;e) Quaisquer outros títulos nacionais que por disposição da lei venham a ser

classifi cados como fundos públicos;f) Os títulos estrangeiros de natureza semelhante à dos anteriores.3. São equiparados a fundos públicos nacionais os títulos emitidos por quais-

quer empréstimos emitidos por quaisquer empresas ou entidades com garantia do Estado português, das províncias ultramarinas ou dos corpos administrativos.

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4. São equiparados a fundos públicos estrangeiros os títulos emitidos por quais-quer empresas ou entidades com garantia de um Estado estrangeiro e os representa-tivos de empréstimos emitidos por instituições fi nanceiras internacionais.

IV. A ideia de que os valores mobiliários são (i) títulos (ii) negociáveis em bolsa regulamentadas, seguida em inúmeros diplomas subsequentes, marca o período que termina com a entrada em vigor do Código do Mercado de Valo-res Mobiliários35.

5. Código do Mercado de Valores Mobiliários

I. No pioneiro CdMVM, o legislador português, ao bom estilo anglo-saxó-nico, hoje adotado pelo legislador comunitário e, em grande medida, também pelo germânico, dedicou um artigo inicial (3.º) a elencar um conjunto de defi -nições base, contando-se entre elas o inevitável conceito de valor mobiliário, 3.º/1, a):

Para efeito deste diploma consideram-se: valores mobiliários, as acções, obri-gações, títulos de participação e quaisquer outros valores, seja qual for a sua natu-reza ou forma de representação, ainda que meramente escritural, emitidos por quaisquer pessoas ou entidades, públicas ou privadas, em conjuntos homogéneos que confi ram aos seus titulares direitos idênticos, e legalmente susceptíveis de negociação num mercado organizado.

A origem do preceito não é clara36. A proximidade com a defi nição apresentada pelo legislador francês no

artigo 3.º/1 do Règlemente générale de la société interprofessionnelle pour la compensa-tion des valeurs mobilières, na versão de 1984:

Pour l’application du règlement général, le terme de valeurs mobilières s’entend d’un ensemble de titres de même nature, cotés ou susceptibles de l’être, issus du même émetteur et conférant par eux-mêmes, des droits identiques à leurs détenteurs ; tous droits détachés d’une valeur mobilière, négociables ou susceptible de l’être, sont assimilés à une valeur mobilière.

35 Decreto-Lei n.º 371/78, de 30 de novembro, que estabelece normas sobre emissões de ações, obrigações e ofertas públicas de compra, venda ou troca de valores mobiliários; ou Decreto-Lei n.º 23/87, de 13 de janeiro, que estabelece novas normas sobre a oferta de valores mobiliários. 36 Para um apanhado geral das fontes inspiradores do CdMVM, apesar de incompleto, vide José Nunes Pereira, Quinze anos de codifi cação em Portugal, VIII DVM, 2008, 265-317, 268-269.

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ou com a defi nição avançada pelo legislador espanhol, no artigo 2.º (versão original) da Ley 24/1988, de 24 de julho:

Quedan comprendidos en el ámbito de la presente Ley los valores negociables emitidos por personas o entidades públicas o privadas, y agrupados en emisiones Reglamentariamente se establecerán los criterios de homogeneidad en virtud de los cuales un conjunto de valores negociables se entenderá integrado en una emisión.

não basta para que se conclua por uma receção direta, mas apenas por uma consolidação do conceito nas diversas Ciências Jurídicas europeias.

III. A decisão de apresentar defi nições introdutórias gerais lembra, como já tivemos oportunidade de sublinhar, o estilo americano, em especial o que foi adotado pelo célebre Securities Act 1933, na sua s. 237. A demarcação dos valores mobiliários expressamente identifi cados – ações e obrigações – refl ete a condi-ção ainda embrionária do mercado bolsita português.

A referência à natureza dos valores mobiliários e à categoria de valores escriturais tem origens internas: veja-se o disposto no artigo 1.º/1 do Decreto--Lei n.º 229-D/88, de 4 de julho: “As acções ... pode revestir forma meramente escritural”; e a proximidade com uma passagem do respetivo preâmbulo: “o capital das sociedades anónimas pode ser representado por ações sob forma mera-mente escritural”.

A parte fi nal “legalmente susceptíveis de negociação num mercado organi-zado” assemelha-se a um trecho da Recomendação da Comissão n.º 77/534, de 27 de julho, relativa a um código europeu de conduta respeitante às transações de valores mobiliários: “entendem-se por valores mobiliários: todos os títulos transaccionados ou susceptíveis de serem transaccionados num mercado organizado”.

IV. O conceito de valor mobiliário contido no artigo 3.º/1, a) é delimitado negativamente pelo disposto no artigo 2.º/2, que exclui do seu campo de apli-cação os valores mobiliários de natureza monetária, salvo se o contrário resultar de legislação específi ca, alínea a); e os valores mobiliários sujeitos a legislação especial, alínea b).

Na prática, a defi nição proposta pelo legislador tem um campo de aplicação tendencialmente circunscrito ao próprio CdMVM.

37 À época da elaboração do CdMVM o texto da s. 3 do Securities Act 1933 assumia uma extensão que fi ca muito aquém das proporções hoje assumidas.

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V. Ao contrário do que seria expectável e, pelo menos numa perspetiva científi ca, desejável, o conceito avançado no artigo 3.º/1, a) não assume, den-tro do CdMVM, o monopólio conceitual do termo valor mobiliário.

Numa perspetiva densifi cadora, importa atender ao importante número de preceitos que alargam o leque de valores mobiliários aí referidos. Veja-se o caso paradigmático do artigo 47.º/1, que acrescenta à lista aí prevista os fundos públicos e os valores mobiliários convertíveis em ações.

Todavia, é do reconhecimento de diferentes graus ou tipos de valores mobiliários que maiores difi culdades de conceitualização advêm.

Logo no artigo 3.º/2 (alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 196/95, de 29 de julho38), o legislador reconhece a existência de dois tipos de mecanis-mos equiparáveis a valores mobiliários,

a) Os direitos de conteúdo económico destacáveis desses valores, desde que sus-ceptíveis de negociação autónoma no mercado secundário39;

b) Os instrumentos fi nanceiros, nomeadamente futuros e opções, negociados em bolsa, traduzidos em contratos padronizados a prazo que tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas.

Curiosamente, ambos os mecanismos são apresentados, no artigo 607.º/2 e para efeitos de aplicação do Título V – Dos intermediários fi nanceiros –, como efetivos valores mobiliários:

São considerados valores mobiliários ... além dos defi nidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, os direitos e os instrumentos fi nanceiros a eles equiparados por força do n.º 2 do mesmo artigo.

O artigo 3.º parece abranger o conceito de valor mobiliário stricto sensu e o artigo 607.º o conceito de valor mobiliário lato sensu.

VI. O diploma reconhece, ainda, um conjunto de exceções aos princípios gerais, contidos nos artigos 2.º e 3.º, e que abre as portas a classifi cações mistas ou intermédias:

38 Estas alterações foram motivadas, como do preâmbulo do diploma se retira, pela necessidade de regulamentar de forma mais precisa o crescente mercado dos derivados. 39 A versão original do CdMVM continha já um preceito com conteúdo análogo, 3.º/2: “Equipa-ram-se aos valores mobiliários referidos na alínea a) do número anterior os direitos de conteúdo económico destacáveis desses valores ou sobre eles constituídos, desde que susceptíveis de nego-ciação autónoma no mercado secundário”.

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O disposto no artigo 130.º exclui, do âmbito de aplicação do capítulo res-peitante à emissão, os seguintes valores mobiliários:

a) De fundos públicos nacionais, desde que emitidos ou solidariamente garantidos pelo Estado Português;

b) De obrigações de caixa;c) De unidades de participação de fundos de investimento abertos40;d) De títulos de capital, pelas caixas de crédito agrícola mútuo;e) De valores mobiliários, por associações benefi centes ou humanitárias ou por

fundações de interesse social, com vista à obtenção dos meios necessários à rea-lização dos seus fi ns desinteressados;

f) De acções correspondentes a aumentos de capital por incorporação de reservas;g) De acções destinadas à substituição de outras da mesma sociedade, sem que daí

resulte aumento de capital social ou alteração dos direitos ou das posições rela-tivas dos accionistas;

h) De quaisquer outros valores mobiliários que venham a ser exceptuados pela legislação especial por que se rejam.

E o artigo 422.º/1 (antigo 424.º) prevê a possibilidade de se realizarem em bolsa, campo por excelência dos valores mobiliários, “contratos de futuros e opções relativos a instrumentos dos mercados monetário e cambial”, sujeitos à regulação do CdMVM.

VII. Em termos sucintos e apenas atendendo à letra da lei, o CdMVM reconhecia as seguintes categorias de valores mobiliários:

a) valores mobiliários em sentido estrito [3.º/1, a)]: conceito primário;b) valores mobiliários em sentido amplo (607.º/2): aos valores em sentido

estrito acrescem os instrumentos fi nanceiros, mas apenas para efeitos de intermediação;

c) valores mobiliários sujeitos ao CdMVM e valores mobiliários sujeitos a legislação especial [2.º/2, b) e 130.º, mas apenas no que respeita à sua emissão];

d) valores mobiliários monetários e cambiais sujeitos a legislação própria [2.º/2, a)] e sujeitos ao CdMVM (422.º/1);

e) instrumentos equiparáveis a valores mobiliários (3.º/2): correspondem, numa perspetiva substantiva, aos instrumentos fi nanceiros abrangidos, nos termos do artigo 607.º/2, pelo conceito de valor mobiliário em sentido amplo.

40 A exceção estendia-se aos fundos de investimento fechados, mediante o preenchimento dos requisitos previstos no n.º 2 do mesmo artigo.

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6. Versão original do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários

I. A elaboração do Anteprojeto do Título I do novo Código fi cou a cargo do Professor Ferreira de Almeida, do Dr. Amadeu Ferreira e do Dr. Paulo Câmara41, três dos nomes mais sonantes do Direito dos valores mobiliários português.

O preceito, nos moldes previstos no Anteprojeto enviado a 22 de setembro de 1999 ao Ministro da Finanças, assumiu o seguinte conteúdo:

Artigo 1.º Valores mobiliários

1. São valores mobiliários, além de outros que a lei como tal qualifi que:a) as ações;b) as obrigações;c) os títulos de participação;d) as unidades de participação em instituições de investimento coletivo;e) os direitos à subscrição, à aquisição ou à alienação de valores mobiliários refe-

ridos nas alíneas anteriores, que tenham sido emitidos de modo autónomo;f) os direitos destacados dos valores mobiliários referidos nas alíneas anteriores

a) a d), desde que o destaque abranja a emissão ou série ou esteja previsto no acto da emissão.

2. Por regulamento da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, neste Código abreviadamente designada por CMVM, ou, tratando-se de valores mobi-liários de natureza monetária, por aviso do Banco de Portugal, podem ser reco-nhecidos como valores mobiliários outros documentos representativos de situações jurídicas homogéneas que visem, directa ou indirectamente, o fi nanciamento de entidades públicas ou privadas e que sejam emitidos para distribuição junto do público, em circunstâncias que assegurem os interesses dos potenciais adquirentes.

A versão fi nal do artigo 1.º, que resultou, no dizer de Paulo Câmara, de um esforço de compromisso entre os membros da Comissão42, permaneceu inalterada, tendo entrado em vigor, através do Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, com esse exato conteúdo43.

41 Trabalhos preparatórios do Código dos valores mobiliários, CMVM, Coimbra, 1999, 36. 42 Paulo Câmara, Manual, cit., 96.43 Conta-se apenas uma única alteração, introduzida não pelo Decreto-Lei n.º 486/99, mas pela Declaração de Retifi cação n.º 23-F/99, de 31 de dezembro, que emendou a alínea f ) do 1.º/1: “onde se lê “nas alíneas anteriores a) a d),”, deve ler-se “nas alíneas a) a d)””.

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II. No artigo 1.º do CVM, a Comissão conseguiu equilibrar as preten-sões de continuidade, aduzidas nos trabalhos preparatórios e no preâmbulo do diploma44, com a necessidade de adequar o regime jurídico dos valores mobiliá-rios às constante e progressivas inovações geradas pelos mercados fi nanceiros45.

Do ponto de vista renovatório, sublinha-se: (i) o abandono da técnica anglo-saxónica de elencar um conjunto nuclear de defi nições, tanto mais que, como vimos para o CdMVM, o legislador demonstra uma tendência ora para ignorar as suas próprias defi nições, ora para multiplicar as conceitualizações assumidas; (ii) a tomada de posição quanto à disputa em torno da atipicidade/tipicidade dos valores mobiliários; e (iii) a inclusão, na lista base não taxativa, de novas categorias de valores mobiliários.

III. Quanto querela tipicidade/atipicidade46, o legislador optou pela pri-meira: são valores mobiliários apenas os mecanismos assim descritos por lei, por regulamento da CMVM ou por aviso do BP.

O princípio da tipicidade foi, desde o início, assumido como uma trave basilar do novo Direito dos valores mobiliários. A Comissão propôs-se a:

Tipifi car os valores mobiliários através da conjugação de critérios de natu-reza substancial, indicadores das suas características gerais, com a necessidade de reconhecimento em concreto por entidade pública (Ministro das Finanças47 ou CMVM) dos requisitos exigíveis para a sua emissão e negociação48.

A decisão de tipifi car os valores mobiliários reconhecidos por lei apresenta--se sustentada em critérios de segurança e transparência, sendo a suposta rigidez contrabalançada pela legitimidade de a CMVM e de o BP “legalizarem” novos instrumentos desenvolvidos pelos mercados49.

44 Ponto 1.º: “Sem afectar a continuidade dos mercados e evitando rupturas sistémicas”.45 Para um apanhado geral das diferenças entre os dois Códigos, no que respeita ao conceito de valor mobiliário, vide José de Oliveira Ascensão, O actual conceito de valor mobiliário em III DVM, 2001, 37-60.46 Pedro Pais de Vasconcelos, O problema da tipicidade dos valores mobiliários, III DVM, 2001, 61-72 e Paulo Câmara, Manual, cit., 126-127. 47 Substituído pelo Banco de Portugal, na versão fi nal do Anteprojeto. 48 Trabalhos preparatórios, cit., 53. 49 Trabalhos preparatórios, cit., 177: “Esse pareceu ser o caminho adequado para combinar o dina-mismo e a criatividade dos agentes nos mercados com a necessária segurança que nestes deve existir”.

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Não pode deixar de ser notado, que dos três membros responsáveis pelo anteprojeto, dois – Amadeu Ferreira50 e Paulo Câmara51 – haviam já tomado posição sobre questão, assumindo-se expressamente partidários da teoria da atipicidade.

7. A versão atual do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários: Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março

I. Quatro anos volvidos sobre a entrada em vigor do CVM foram introdu-zidas, através do Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março, importantes altera-ções que modifi caram, de forma inequívoca e decisiva, as pretensões iniciais da Comissão.O artigo 1.º passou a assumir o seguinte conteúdo52:

São valores mobiliários, além de outros que a lei como tal qualifi que:a) As ações;b) As obrigações;c) Os títulos de participação;d) As unidades de participação em instituições de investimento coletivo;e) Os warrants autónomos;f) Os direitos destacados dos valores mobiliários referidos nas alíneas a) a d),

desde que o destaque abranja toda a emissão ou série ou esteja previsto no ato de emissão;

g) Outros instrumentos representativos de situações jurídica homogéneas, desde que sejam susceptíveis de transmissão em mercado.

II. A remodelação da alínea e) assume duas dimensões distintas: (i) substan-tiva ou jurídica; e (ii) formal ou linguística.

Na sua versão original, o preceito tinha o seu campo de aplicação circuns-crito a direitos emitidos autonomamente sobre os valores mobiliários referidos nas alíneas a) a d). Com as alterações introduzidas, o legislador veio, como de resto já o havia feito com o Decreto-Lei n.º 172/99, de 20 de maio, a alargar

50 Valores mobiliários escriturais, cit., 24, 36.51 Emissão e subscrição de valores mobiliários em Direito dos Valores Mobiliários, Lex, Lisboa, 1997, 201-241, 221 ss.52 Para um apanhado geral das transformações operadas, vide José de Oliveira Ascensão, O novíssimo conceito de valor mobiliário, VI DVM, 2006, 139-162.

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a classe de ativos sobre os quais esses valores mobiliários, agora descritos como warrants, podem ser emitidos53.

Numa perspetiva formal, a alteração representa uma viragem linguística his-tórica: a Comissão presidida por Ferreira de Almeida fez do uso da língua por-tuguesa um dos alicerces da sua atuação; tendo esta linha sido igualmente assu-mida pelo legislador no preâmbulo do CVM54. A introdução do termo warrant veio quebrar os esforços até então desenvolvidos. Ora, não há razão para que o legislador não procure sucedâneos linguísticos nacionais, mesmo que para o efeito tenha de recorrer a alguma criatividade. Para além do evidente enrique-cimento da língua portuguesa, a procura por termos próprios consubstancia um importante elemento na conceitualização e consolidação jurídica dos institutos transpostos – pense-se nos termos locação fi nanceira (leasing) e cessão fi nanceira (factoring) e em toda a carga dogmática contida em ambas as expressões.

III. A eliminação do n.º 2 e a inclusão de uma nova alínea g) representam uma profunda alteração da conceção originariamente seguida: a doutrina da tipi-cidade, expressamente assumida pelo legislador de 99, foi substituída, de forma igualmente perentória, pela doutrina da atipicidade. O texto do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março, é especialmente esclarecedor:

É um objectivo da fl exibilização e de defesa da inovação fi nanceira que jus-tifi ca o abandono, no presente decreto-lei, do princípio da tipicidade dos valores mobiliários, substituído por um princípio de liberdade de criação destes valores. O mercado de valores mobiliários português revela, actualmente, a experiência e a maturidade necessárias à revogação daquele princípio que, em 1999, foi consa-grado, fundamentalmente, por razões de segurança. Segue-se, assim, de perto a prática internacional e as soluções consagradas nas legislações estrangeiras e vai-se ao encontro de recentes indicações comunitárias, dando-se primazia ao dinamismo e à criatividade dos intervenientes no mercado na emissão de possíveis novos tipos de valores mobiliários. Reserva-se, naturalmente, a função supervisora da Comis-são do Mercados de Valores Mobiliários (CMVM) para os casos em que esses valores mobiliários são destinados ao público.

A alínea g) revela, todavia, uma certa continuidade, quer em relação ao artigo 1.º/2 do CVM quer em relação ao artigo 3.º/1, a) do CdMVM, embora

53 A regulação jurídica dos warrants autónomos – nos termos descritos no texto principal –, cuja inclusão na versão original do CVM fora inicialmente pretendida, apenas não ocorreu em virtude do estado de gestação mais avançado do CVM, quando comparado com o desta matéria especí-fi ca: Paulo Câmara, Manual, cit., 99.54 Ponto 2: “... escrever o Código sem recurso a terminologia estrangeira”.

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neste último caso em menor grau: a homogeneidade e a suscetibilidade de negociação/transmissão em mercado, enquanto elementos nucleares do con-ceito de valor mobiliário, atravessam as três fases legislativas. O mesmo poderá ser afi rmado quanto à abertura do sistema aos denominados valores mobiliários escriturais.

Da passagem do CdMVM para a versão de 99 do CVM nota-se uma que-bra com a tradição francesa, tendo-se deixado cair a expressão clássica “emitidos por quaisquer pessoas ou entidades, públicas ou privadas”.

Da versão de 99 para a versão de 2004 destacamos ainda duas importantes modifi cações: (i) o abandono da visão clássica que atribui à emissão de valores mobiliários uma função de fi nanciamento55; e (ii) a eliminação da parte fi nal do n.º 2 – emissões públicas – por manifesta incompatibilidade com o reconheci-mento, no próprio Código, da coexistência de ofertas públicas e privadas.

8. Valores mobiliários e instrumentos fi nanceiros: da versão original do Código ao Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de outubro

I. Na sua versão original, o CVM assentava, de modo idêntico ao que se verifi cava no diploma que revogou, em duas dimensões do conceito de valor mobiliário: (i) em sentido estrito, que corresponde, grosso modo, ao conteúdo do artigo 1.º; e (ii) em sentido lato, positivado no artigo 2.º/3,

Para efeitos do número anterior, as referências feitas neste Código a valo-res mobiliários devem ser entendidas de modo a abranger outros instrumentos fi nanceiros.

e que parece assumir, cumulativamente, a denominação de instrumento fi nan-ceiro; sendo essa sinonímia destacada no próprio preâmbulo, no ponto 756:

Daí que a expressão “valor mobiliário” utilizada ao longo do Código signifi ca também “instrumento fi nanceiro”.

55 Carlos Ferreira de Almeida, Valores mobiliários: o papel e o computador em Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais: Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. I: Congresso Empresas e Sociedades, Coimbra ed., Coimbra, 2007, 621-629, 623: sem negar o impacto das alterações introduzidas, continua a atribui à emissão de valores mobiliá-rios a função clássica do fi nanciamento. 56 Não nos parece, assim, que a expressão instrumento fi nanceiro tenha assumido, logo com a versão original do CVM, uma autonomização dogmática ou absorvido o conceito base de valor mobiliário. Com posição aparentemente oposta: Oliveira Ascensão, o actual conceito, cit., 43-44.

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A estes dois tipos base, acresciam (iii) valores mobiliários de natureza mone-tária, sujeitos ao CVM consoante as suas características não fossem incompa-tíveis com o respetivo regime jurídico (2.º/2): (iv) valores mobiliários sujeitos ao CVM; (v) valores mobiliários parcialmente sujeitos ao CVM (111.º: exclui a aplicação da parte respeitante à emissão); e (vi) valores mobiliários sujeitos a legislação especial – caso dos valores mobiliários monetários incompatíveis com o regime geral (2.º/2).

Embora introduzindo importantes novidades, com especial destaque para o pujante conceito de instrumento fi nanceiro, a sistematização conceitual da versão original do CVM é particularmente próxima da prevista no CdMVM.

II. Foi apenas com o Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de outubro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretriz n.º 2004/39/CE, de 21 de abril (DSI), que o Direito dos valores mobiliários sofreu uma profunda e revo-lucionária modifi cação.

As alterações em nada afetaram o conceito de valor mobiliário stricto sensu, aperfeiçoado com o Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março; foram antes dirigidas ao conceito de valor mobiliário lato sensu, vertido, globalmente, no artigo 2.º, e consumido pelo de instrumento fi nanceiro57.

No renovado artigo 2.º, o conceito de instrumento fi nanceiro passa a abranger, de acordo com o disposto no seu n.º 2:

a) Os valores mobiliários;b) Os instrumentos do mercado monetário, com exceção dos meios de pagamento;c) Os instrumentos derivados para a transferência do risco de crédito;d) Os contratos diferenciais;e) As opções, os futuros, os swaps, os contratos a prazo e quaisquer outros contratos

derivados relativos a:

i) Valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendibilidade ou relativos a outros instrumentos derivados, índices fi nanceiros ou indicadores fi nancei-ros, com liquidação física ou fi nanceira;

ii) Mercadorias, variáveis climáticas, tarifas de fretes, licenças e emissão, taxas de infl ação ou quaisquer outras estatísticas económicas ofi ciais, com liquidação fi nanceira ainda que por opção de umas das partes;

iii) Mercadorias, com liquidação física, desde que sejam transacionadas em mercado regulamentado ou em sistema de negociação multilateral ou, não

57 Esta viragem terminológica é posta em evidência no preâmbulo do diploma: “Relativamente ao elenco dos instrumentos fi nanceiros, impõe-se clarifi car os instrumentos fi nanceiros que, além dos valores mobiliários, devem assim ser qualifi cados”.

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se destinando a fi nalidade comercial, tenham características análogas às de outros instrumentos fi nanceiros derivados nos termos do artigo 38.º do Regulamento (CE) n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de agosto;

f) Quaisquer outros contratos derivados, nomeadamente os relativos a qualquer dos elementos indicados no artigo 39.º do Regulamento (CE) n.º 1287/2006, da Comissão, de 10 de agosto, desde que tenham características análogas às de outros instrumentos fi nanceiros derivados, nos termos do artigo 38.º do mesmo diploma.

À luz das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de outubro, e deixando para um momento posterior considerações mais dog-máticas, o CVM assenta na seguinte sistematização conceitual e terminológica:

a) valores mobiliários, que poderão ou não estar sujeitos, total ou parcialmente, ao CVM, veja-se o já referido artigo 111.º;

b) instrumentos fi nanceiros, categoria que passa a desempenhar o papel até então interpretado pelo conceito de valor mobiliário lato sensu;

c) meios de pagamento, fi gura autónoma não reconduzível aos conceitos de valor mobiliário ou de instrumento fi nanceiro – corresponde a anterior categoria valor mobiliário monetário não sujeito ao CVM (artigo 2.º/2 da versão original do CVM e artigo 2.º/2, a) do CdMVM).

§ 3.º Evolução legislativa europeia

9. Até à Diretriz DSI

I. O fi nal da década de 70 do século passado marca uma viragem histórica, no que ao Direito europeu respeita: as instituições comunitárias, que até então haviam mostrado pouco interesse pelas questões relacionadas com o mercado e a sua regulação, dão início a um longo e paulatino processo de intervenção legislativa e de regulação fi nanceira.

Para além das alterações legislativas e regulatórias introduzidas em decor-rência da ação comunitária58, contam-se, ainda, importantes modifi cações ter-minológicas e conceituais, com um tremendo impacto nas Ciências Jurídicas dos Estados Membros.

II. A expressão valor mobiliário, hoje constante no artigo 57.º do TCE59, terá sido pela primeira utilizada pelo legislador comunitário na Diretriz n.º

58 Direito dos valores mobiliários, I, 95 ss.59 O termo não é empregue na versão original do Tratado (1957).

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64/223, de 25 de fevereiro60, voltando a ser empregue na Diretriz n.º 69/335, de 17 de julho61, na Diretriz n.º 73/183, de 29 de junho62 e em outros diplomas do mesmo período63.

Todavia, foi apenas na Recomendação n.º 77/534, da Comissão, de 25 de julho de 1977 (relativa a um código europeu de conduta respeitante às transacções rela-tivas a valores mobiliários), que o Direito europeu avançou uma tímida defi nição de valor mobiliário:

Todos os títulos transaccionados ou susceptíveis de serem transaccionados num mercado organizado.

Esta conceção terá sido seguida na Diretriz n.º 79/279, de 5 de março64: apesar de não ser avançada qualquer defi nição introdutória, a expressão é sem-pre empregue no sentido de título transacionável em bolsa.

Na Diretriz n.º 80/390, de 17 de março65, e conquanto o conceito seja empregue com esse sentido, é aberta a porta, indiretamente, à categoria de valores mobiliários não transacionável em bolsa66.

Esta dupla dimensão é reconhecida pela Diretriz n.º 85/611, de 20 de dezembro67, quando autoriza os organismos de investimento coletivo de valo-res mobiliários a investirem em valores não negociados em mercados regula-mentados, artigo 19.º/2, a). O mesmo diploma faz ainda referência a títulos de crédito equiparáveis a valores mobiliários, artigo 19.º/2, a).

III. Com a Diretriz n.º 89/298, de 17 de abril68, é testada uma nova defi nição:

60 Relativa à realização de liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços nas actividades relacio-nadas com o comércio por grosso. Artigo 4.º. 61 Relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais. Artigo 12.º.62 Relativa à supressão das restrições à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços em matéria de actividade não assalariadas dos bancos e outras instituições fi nanceiras. Artigos 1.º e 3.º.63 Resolução do Conselho de 22 de março de 1971, III, n.º 2 e 3; Diretriz n.º 77/91, de 13 de dezembro – 2.ª Diretriz Societária –, artigos 1.º e 15.º64 Relativa à coordenação das condições de admissão de valores mobiliários à cotação ofi cial de uma bolsa de valores.65 Relativa à coordenação das condições de conteúdo, de controlo e de difusão do prospecto a ser publicado para a admissão à cotação ofi cial de valores mobiliários numa bolsa de valores.66 Nos considerandos iniciais (não numerados): “parece sufi ciente de limitar, por agora, a coorde-nação à admissão de valores mobiliários à cotação ofi cial numa bolsa de valores”. 67 Que coordenada as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM).68 Que coordena as condições de estabelecimento, controlo e difusão do prospecto a publica no caso de oferta pública de valores mobiliários.

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Valores mobiliários: as acções e outros valores negociáveis equiparáveis a acções, as obrigações com um prazo de pelo menos um ano e os outros valores negociáveis equiparáveis a obrigações, bem como quaisquer outros valores nego-ciáveis que permitam adquirir tais valores mobiliários mediante subscrição e troca.

Em termos sucintos, o conceito de valor mobiliário abrange (i) ações e valores equiparáveis; (ii) obrigações e valores equiparáveis; e (iii) warrants cons-tituídos sobre ações e obrigações. O diploma exclui, do seu campo de aplica-ção, um vasto conjunto de valores mobiliários (artigo 2.º) e reconhece, ainda, a existência de valores mobiliários não negociáveis em bolsa.

Curiosamente, nesse mesmo ano, o legislador comunitário volta a propor um outro conceito de valor mobiliário, no artigo 1.º/2 da Diretriz relativa à Informação Privilegiada (89/592, de 13 de novembro):

2. Valores mobiliários:a) As acções e as obrigações, bem como os valores equiparáveis a acções e

obrigações;b) Os contratos ou direitos que permitem subscrever, adquirir ou ceder os

valores referidos na alínea a);c) Os contratos a prazo, as opções e instrumentos fi nanceiros a prazo relativos

aos valores referidos na alínea a);d) Os contratos indexados relativos aos valores referidos na alínea a) quando

sejam admitidos à transacção num mercado regulamentado e fi scalizados por autoridades reconhecidas pelos poderes públicos, de funcionamento regular e directa ou indirectamente acessível ao público.

IV. Neste primeiro período, o termo valor mobiliário assume contor-nos hegemónicos: o preenchimento dos instrumentos e demais mecanismos referenciados encontram no conceito de valor mobiliário o seu fundamento último, tanto numa perspetiva terminológica como dogmática.

Substantivamente, o conceito assume dois sentidos: (i) sentido estrito: cor-respondendo, groso modo, ao conteúdo que lhe é imputado pela Diretriz n.º 89/298 – ações, obrigações e warrants –; e (ii) sentido lato: reconduzível à defi nição propagada pela Diretriz n.º 89/592– às fi guras incluídas no conceito em sentido estrito acrescem outros instrumentos, com especial destaque para a então crescente categoria dos derivados.

10. Diretriz n.º 93/22/CEE, de 10 de maio

I. A Diretriz n.º 93/22, de 10 de maio, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários, – abreviada entre nós por DSI (Diretriz dos

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Serviços de Investimento) – veio lançar as bases da revolução linguístico-con-ceitual que se seguiu, tanto no Direito da União, como no Direito dos Estados Membros.

Numa perspetiva terminológica e conceitual, aspetos que agora nos inte-ressam, a DSI sustentou um novo conceito comunitário de valor mobiliário. De acordo com o disposto no artigo 1.º/4, e apenas para efeitos da presente Diretriz, entende-se por valor mobiliário69:

– acções e outros valores equivalentes a acções,– obrigações e outros título de dívida negociáveis no mercado de capitais e– quaisquer outros valores habitualmente negociados que confi ram o

direito à aquisição desses valores mobiliário por subscrição ou troca ou que dêem origem a uma liquidação em dinheiro, com a exclusão dos meios de pagamento.

A defi nição aqui apresentada, estranhamente descrita pelo legislador comu-nitário como “extremamente lata”, apenas abrange, propositadamente, “os ins-trumentos negociáveis”. Uma vez mais se reconhece, de forma indireta, que a negociabilidade em bolsa não consubstancia um elemento intrínseco do con-ceito de valor mobiliário.

II. O interesse conceitual da DSI não reside, todavia, na defi nição de valor mobiliário, que de resto pouco difere da sugerida pela Diretriz n.º 89/298, mas no leque de mecanismos reconduzidos, em Anexo (Secção B), ao termo instrumento:

1. a) Valores mobiliários. b) Unidades de participação em organismos de investimento colectivo.2. Instrumentos do mercado monetário.3. Futuros sobres instrumentos fi nanceiros, incluindo instrumentos equiva-

lentes que dêem origem a uma liquidação em dinheiro.4. Contratos a prazo relativos a taxas de juros (FRAs).5. Swaps de taxas de juro, de divisas ou swaps relativos a um índice sobre

acções (equit swaps).

69 A defi nição apresentada nos considerandos introdutórios – não numerados – apresenta-se mais extensa e precisa: “por valores mobiliários se entende as categorias de títulos habitualmente nego-ciados no mercado de capitais como, por exemplo, os títulos da dívida pública, as acções, os valores negociáveis que permitem a aquisição de acções por subscrição ou troca, os certifi cados de ações, as obrigações emitidas em série, os warrants sobre índices e os títulos que permitem adquirir tais obrigações por subscrição”.

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6. Opções destinadas à compra ou à venda de qualquer instrumento abran-gido pela presente secção do anexo, incluindo os instrumentos equiva-lentes que dêem origem a uma liquidação em dinheiro. Estão nomeada-mente incluídas nesta categoria as opções sobre divisas e sobre taxas de juro.

III. A solução avançada foi seguida pela maioria das Diretrizes de 2.ª Gera-ção, com o legislador comunitário ora remetendo diretamente para a secção B do Anexo da DSI70, ora transcrevendo, conquanto nem sempre ipsis verbis, a defi nição avançada no artigo 4.º/171.

Ao longo deste período, o legislador comunitário, tendo sempre o con-teúdo da DSI como fundamento base, foi aperfeiçoando a terminologia jurí-dica. Veja-se o caso paradigmático da Diretriz n.º 2003/71, de 4 de novem-bro72, na qual são avançadas duas novas categorias de valores mobiliários73: valores mobiliários representativos de capital – ações, valores equiparáveis e quaisquer outros valores negociáveis que concedam o direito de aquisição de valores representativo; e (ii) valores mobiliários não representativos de capital – conceito preenchido dicotomicamente74.

IV. Sem negar o ambiente de harmonização construído em torno da con-ceitualização professada pela DSI, não podemos deixar de notar que, pon-tualmente, outros métodos e preenchimentos foram adotados. Veja-se o caso paradigmático da Diretriz n.º 2004/25, de 21 de abril75, onde se avança uma defi nição particularmente restrita: “títulos negociáveis que conferem direitos de voto numa sociedade76.

70 Relativa à liquidação de valores mobiliários (98/26, de 19 de maio), artigo 2.º, h). 71 Diretriz n.º 2001/108, de 21 de janeiro (que altera a Diretriz n.º 85/611, que coordenada as disposi-ções legislativas, regulamentares e administrativas respeitante a alguns organismos de investimento colectivo em valores mobiliários (OICVM)), no que diz respeito aos investimentos OICVM), artigo 1.º/1: “enten-dem-se por valores mobiliário:

– acções de sociedades e outros títulos equivalentes a acções de sociedade, – as obrigações e outros títulos representativos de dívida,– quaisquer outros valores negociáveis que confi ram o direito de aquisição desses valores mobi-

liários mediante subscrição ou permuta”.72 Relativa ao prospecto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à nego-ciação e que altera a Diretriz 2001/34.73 Artigo 2.º/1, a).74 Artigo 2.º/1, b) e c).75 Relativa às ofertas públicas de aquisição.76 Artigo 2.º/1, e).

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V. O período conceitual marcado pela DSI é particularmente impreciso. A intenção do legislador comunitário terá passado pelo abandono da dicotomia clássica valor mobiliário stricto sensu/valor mobiliário lato sensu em favor da con-traposição valor mobiliário/instrumento.

Conquanto não seja avançada uma defi nição da fi gura, podemos retirar, da leitura dos considerandos, uma intenção de criar uma nova categoria jurídica, necessariamente elástica e imprecisa, que englobasse os mais diferentes meca-nismos fi nanceiros dos diversos Estado-Membros.

11. Diretriz n.º 2004/39/CE, de 21 de abril

I. Desde o relatório Lamfalussy que se exigia uma atualização da DSI. A renovação chegou com a DMIF (2004/39, de 21 de abril)77 e com ela uma revolução conceitual: a hegemonia do termo valor mobiliário, abalada pela introdução da expressão instrumento, na DSI, é defi nitivamente posta em causa com a DMIF, sendo substituída, pelo menos no que à sua dimensão lata res-peita, pelo locução instrumento fi nanceiro. A própria denominação dos diplomas é indicativa desta revolução: DSI – relativa aos serviços de investimento do domínio dos valores mobiliários –; DMIF – relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros.

II. Para efeitos de aplicação da DMIF, entende-se por:

Valor mobiliário:

[A]s categorias de valores que são negociáveis no mercado de capitais, com exceção dos meios de pagamento, como por exemplo:

a) Ações de sociedade e outros valores equivalentes a ações de sociedades, de sociedades de responsabilidade ilimitada (partnership) ou de outras entidades, bem como certifi cados de depósitos de ações;

b) Obrigações ou outras formas de dívida titularizada, incluindo certifi cados de depósitos desses títulos;

c) Quaisquer outros valores que confi ram o direito à compra ou venda desses valores mobiliários ou que dêem origem a uma liquidação em dinheiro, determi-nada por referência a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendimento, mercadorias ou outros índices ou indicadores;

77 Relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros, que altera as Diretrizes 85/611 e 93/6 e a Diretriz 2000/12 e que revoga a Diretriz 93/22.

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Instrumento do mercado monetário:

[A]s categorias de instrumentos habitualmente negociadas no mercado mone-tário, como por exemplo bilhetes do Tesouro, certifi cados de depósito e papel comercial, com exclusão dos meios de pagamento.

Instrumento fi nanceiro:

1) Valores mobiliários;2) Instrumentos do mercado monetário;3) Unidades de participação em organismos de investimento colectivo;4) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo de taxa de juro e quaisquer outros

contratos derivados relativos a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendibilidades ou outros instrumentos derivados, índices fi nanceiros ou indi-cadores fi nanceiros que possam ser liquidados mediante uma entrega física ou um pagamento em dinheiro;

5) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo de taxa de juro e quaisquer outros con-tratos derivados relativos a mercadorias que devam ser liquidados em dinheiro ou possam ser liquidados em dinheiro por opção de uma das partes (por qual-quer razão diferente do incumprimento ou outro fundamento para rescisão);

6) Opções, futuros, swaps e quaisquer outros contratos derivados relativos a mer-cadorias que possam ser liquidados mediante uma entrega física, desde que sejam transaccionados num mercado regulamentado e/ou num MTF;

7) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo e quaisquer outros contratos sobre derivados relativos a mercadorias, que possam ser liquidados mediante entrega física, não mencionados no ponto 6 e não destinados a fi ns comerciais, que tenham as mesmas características de outros instrumentos fi nanceiros derivados, tendo em conta, nomeadamente, se são compensados ou liquidados através de câmaras de compensação reconhecidas ou se estão sujeitos ao controlo regular do saldo da conta margem;

8) Instrumentos derivados para a transferência do risco de crédito;9) Contratos fi nanceiros por diferenças (fi nancial contracts for diferences).10) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo de taxa de juro e quaisquer outros

contratos sobre derivados relativos a variáveis climáticas, tarifas de fretes, licen-ças de emissão, taxas de infl ação ou quaisquer outras estatísticas económicas ofi ciais, que devam ser liquidados em dinheiro ou possam ser liquidados em dinheiro por opção de uma das partes (por qualquer razão diferente do incum-primento ou outro fundamento para rescisão), bem como quaisquer outros contratos sobre derivados relativos a ativos, direitos, obrigações, índices e indi-cadores não mencionados na presente Secção e que tenham as mesmas caracte-rísticas de outros instrumentos fi nanceiros derivados, tendo em conta, nomea-damente, se são negociados num mercado regulamentado ou num MTF, se são compensados e liquidados através de câmaras de compensação reconhecidas ou se estão sujeitos ao controlo regular do saldo da conta margem.

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III. A DMIF deu continuidade aos passos timidamente prosseguidos pela DSI: o conceito de valor mobiliário lato sensu dá lugar ao de instrumento fi nan-ceiro. Quanto ao conceito de valor mobiliário stricto sensu, é de notar uma certa continuidade, iniciada com a Diretriz n.º 89/298, de 17 de abril.

O peso decisivo do conceito de instrumento fi nanceiro contrasta com a sua indefi nição dogmática. De modo idêntico ao que se verifi cou na DSI, com o mais singelo instrumento, também na DMIF não é avançado qualquer concei-tualização da expressão instrumento fi nanceiro. Não é de estranhar: o legislador comunitário também não propõe, em nenhum dos incontáveis diplomas dedi-cados ao tema, uma defi nição precisa de valor mobiliário stricto sensu. Cabe as Ciências Jurídicas – europeia e nacionais – a tarefa de encontrar um conteúdo adequado às realidades reconduzidas a ambos os termos e que satisfaça as exi-gências dogmáticas dos ordenamentos jurídicos sistematizados.

Esse preenchimento não terá, sequer, que ser comum a todos os sistemas; devendo, pelo contrário, atender às especifi cidades culturais e jurídicas de cada Ciência Jurídica.

IV. A 15 de maio de 2014, foi publicada a Diretriz n.º 2014/65, a 2.ª Dire-triz relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (DMIF 2). O diploma não trouxe especiais novidades no campo ora estudado, limitando-se o legis-lador europeu a aperfeiçoar a lista de instrumentos fi nanceiros contida no res-petivo anexo:

1) Valores mobiliários;2) Instrumentos do mercado monetário;3) Unidades de participação em organismos de investimento coletivo;4) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo de taxa de juro e quaisquer outros

contratos derivados relativos a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendibilidades, licenças de emissão ou outros derivados, índices fi nanceiros ou indicadores fi nanceiros que possam ser liquidados mediante uma entrega física ou um pagamento em dinheiro;

5) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo e quaisquer outros contratos de deri-vados relativos a mercadorias que devam ser liquidados em dinheiro ou pos-sam ser liquidados em dinheiro por opção de uma das partes, exceto devido a incumprimento ou outro fundamento para rescisão;

6) Opções, futuros, swaps e quaisquer outros contratos de derivados de mercado-rias, que possam ser liquidados mediante entrega física, desde que sejam nego-ciados num mercado regulamentado, num MTF ou num OTF, com exceção dos produtos energéticos grossistas negociados num OTF que só possam ser liquidados mediante entrega física;

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7) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo e quaisquer outros contratos de deri-vados de mercadorias, que possam ser liquidados mediante entrega física, não mencionados no ponto 6 da presente secção e não destinados a fi ns comer-ciais, que tenham as mesmas características de outros instrumentos fi nanceiros derivados;

8) Derivados para a transferência do risco de crédito;9) Contratos diferenciais fi nanceiros por diferenças (fi nancial contracts for diff erences);10) Opções, futuros, swaps, contratos a prazo de taxa de juro e quaisquer outros

contratos de derivados relativos a variáveis climáticas, tarifas de fretes, taxas de infl ação ou quaisquer outras estatísticas económicas ofi ciais, que devam ser liquidados em dinheiro ou possam ser liquidados em dinheiro por opção de uma das partes, exceto devido a incumprimento ou outro fundamento de rescisão, bem como quaisquer outros contratos de derivados relativos a ativos, direitos, obrigações, índices e indicadores não mencionados na presente sec-ção e que tenham as mesmas características de outros instrumentos fi nanceiros derivados, tendo em conta, nomeadamente, se são negociados num mercado regulamentado, num OTF ou num MTF;

11) Licenças de emissão constituídas por quaisquer unidades reconhecidas para efeitos de cumprimento dos requisitos da Diretiva 2003/87/CE (regime de comércio de licenças de emissão).

§ 4.º O conceito de valor mobiliário

12. Elementos legislativos nacionais e europeus

I. O legislador não avança uma defi nição precisa de valor mobiliário78. Contudo, o disposto na alínea g) do artigo 1.º, faz expressa referência a um conjunto de elementos que deverão ser assumidos como ponto de partida para qualquer solução:

Documentos representativos de situações jurídicas homogéneas, desde que sejam suscetíveis de transmissão em mercado.

Na busca da natureza jurídica dos valores mobiliários devemos ainda ter em consideração as características dos valores mobiliários tipifi cados, em espe-cial as que compõem as ações e as obrigações, enquanto modalidades clássicas.

78 Por todos: Amadeu Ferreira, Direito, cit., 125 ss.; José de Oliveira Ascensão, O novíssimo conceito de valor mobiliário, VI DVM, 2006, 139-162; Paulo Câmara, Manual, cit., 89 ss.; Engrá-cia Antunes, Instrumentos, cit., 51 ss.

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Não será sistemática e cientifi camente defensável atribuir ao conceito de valor mobiliário um elemento nuclear que não encontre nos seus exemplares origi-nários uma notória identidade79.

II. O legislador europeu mostrou-se sempre mais cauteloso do que o nacio-nal, no que ao conceito de valor mobiliário respeita. Não encontramos em nenhum diploma comunitário uma defi nição que se aproxime, em termos de densidade ou de pormenor, da que se encontra na alínea g) do artigo 1.º.

A intervenção europeia teve sempre como objeto central a regulação da negociação em bolsa dos valores mobiliários e não propriamente a conceituali-zação dogmática do instrumento. Desde a Recomendação n.º 77/534, de 25 de julho, que a pedra toque é colocada na suscetibilidade de negociação em bolsa.

13. O valor mobiliário enquanto bem ou situação jurídica

I. De acordo com o disposto no artigo 362.º do CC:

Diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fi m de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.

Enquanto documento representativo, os valores mobiliários são objetos, ou seja, são coisas.

A desmaterialização dos valores mobiliários coloca, contudo, um problema: poderão os valores mobiliários escriturais, representados não em papel, mas em registos em conta (artigo 46.º/1), ser descritos como documentos? A resposta é sim. Para além de o conceito de objeto permitir essa interpretação, o pró-prio legislador, ao defi nir documento eletrónico, aponta, de forma inequívoca, nesse sentido80:

Documento eletrónico: documento elaborado mediante processamento ele-trónico de dados.

II. Apesar da consagração legislativa de coisa, no Código Civil, é comum, entre nós, recorrer a expressão bem para designar coisas incorpóreas ou ima-

79 A nossa atenção terá, necessariamente, de se circunscrever aos elementos mobiliários dos títulos tipifi cados: Costa e Silva, Direito, cit., 144-145. 80 Artigo 2.º, a) do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto.

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teriais81. Não se trata, certamente, de um dogma jurídico: o próprio Código Civil utiliza o termo bens imóveis (p. ex.: artigo 39.o/4), necessariamente coisas corpóreas, e o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, apresenta as obras como coisas incorpóreas (p. ex.: artigo 10.o/1).

Se o emprego indiferenciado das locuções se apresenta aceitável na maioria das situações, a comunidade jurídica tende a excluir o emprego da expressão coisa de áreas muito específi cas: a vida, a imagem, a integridade moral e demais bens de personalidade não são coisas, são bens; também a prestação, no âmbito de um mandato, é descrito como bem e não como coisa82.

Em face desta dicotomia, e atendendo ao conteúdo das situações jurídicas mobiliárias, de seguida esclarecidas, é evidente que o termo mais correto será o de bem mobiliário e não o de coisa mobiliária; basta, para o efeito, atender às obrigações, enquanto valores mobiliários creditícios; assumindo o pagamento periódico de juros e a entrega do capital a função de bem (prestações) da relação estabelecida entre o emitente e os obrigacionistas.

III. Nos termos ora descritos, a prestação de um título creditício assume-se como bem; mas será o próprio valor mobiliário um bem ou uma situação jurí-dica? A resposta terá de ser a seguinte: o valor mobiliário é um bem, mas um bem que não se esgota na prestação per se: engloba, também, o próprio docu-mento, escritural ou titulado, que representa a posição jurídica. Dito de outra forma: o documento, escritural ou titulado, representativo da posição jurídica de acionista ou de obrigacionista é apenas parte do respetivo valor mobiliário; este, enquanto bem que é, engloba todas as prestações inerentes à posição ocu-pada pelo titular.

O facto de uma determinada situação jurídica ser representada num docu-mento não é juridicamente indiferente: altera tanto o conteúdo da situação – que passa a poder ser negociado em mercado regulamentado – como o con-teúdo do próprio bem subjacente – que passa a incorporar o documento repre-sentativo, para além de todas as novas prestações inerentes à representação.

IV. Seguindo este raciocínio, são situações jurídicas não o valor mobiliário per se, mas as situações encabeçadas pelos titulares desses valores mobiliários – desde o mais singelo direito de crédito dos obrigacionistas à mais complexa parti-cipação social dos titulares de ações de sociedade abertas –, assim como todas as

81 Direito dos valores mobiliários, I, 224 ss.: para mais indicações.82 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, III, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, 163-164.

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situações emergentes da emissão, do depósito ou dos contratos fi nanceiros de intermediação ou de aconselhamento.

O recurso à expressão situação mobiliária, utilizada noutros campos – Direito bancário: situação jurídica bancária83; ou Direito do trabalho: situação jurídica laboral84 –, concede uma consistência dogmática que de outro modo não seria alcançável. Ao mesmo tempo, permite um enquadramento fundado na conce-ção moderna do Direito enquanto Ciência reguladora de “relações” estabele-cidas entre pessoas e entre pessoas e coisas. Acresce que a relevância atribuída ao conceito de situação jurídica mobiliária fortalece a inclusão do núcleo do Direito dos valores mobiliários no campo do Direito comum85.

V. A abstração da discussão é facilitada se for acompanhada de alguns exem-plos elucidativos86:

1. A, comprador, e B, vendedor, celebram um contrato de compra e venda, sobre o imóvel X:

– bem: imóvel X;– situação jurídica encabeçada por A: direito a exigir a entrega da coisa +

dever de pagar o preço;– situação jurídica encabeçada por B: direito a exigir o pagamento do preço

+ dever de entregar a coisa.

2. A, intermediário fi nanceiro, e B, investidor não qualifi cado, celebram um contrato de consultoria fi nanceira:

– bem: consultoria fi nanceira;– situação jurídica encabeçada por A: direito a exigir o pagamento do ser-

viço prestado + dever de prestar consultoria fi nanceira;– situação jurídica encabeçada por B: direito à consultoria fi nanceira +

dever de pagar o serviço prestado.

83 Menezes Cordeiro, Direito bancário, cit., 325 ss.84 Veja-se o trabalho clássico de Menezes Cordeiro, Da situação jurídica laboral: perspectivas do Direito do trabalho, Separata ROA, 1982. A centralidade da situação jurídica laboral mantém-se nas obras de referência contemporâneas: Pedro Romano Martinez, Direito do trabalho, 7.a ed., Almedina, Coimbra, 2015, 125 ss. ou Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do trabalho, Parte I, 3.a ed., Almedina, Coimbra, 2012, 383 ss: com importantes diferenças em relação ao conteúdo da situação jurídica laboral.85 Direito dos valores mobiliários, I, 214 ss. 86 Apenas se referem os direitos e deveres mais característicos. Não se busca uma exposição exaustiva.

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3. A, obrigacionista, adquire um conjunto de obrigações emitidas por B, entidade emitente:

– bem: respetivo valor mobiliário, que abrange não apenas o título como as próprias prestações que nele surgem representadas, de entre as quais se destacam: a prestação de juros, a entrega do capital, a informação e a participação em assembleias de obrigacionistas;

– situação jurídica encabeçada por A: direito a transacionar a situação jurí-dica em mercado regulamentado; direito a exigir o pagamento dos juros; direito a exigir a restituição do capital; direito à informação; e direito a participar nas assembleias de obrigacionistas + dever de pagar o preço;

– situação jurídica encabeçada por B: direito a exigir a entrega do preço + dever de pagar os juros; dever de restituir o capital; e dever de prestar todas as informações devidas e pedidas.

4. A, acionista, adquire um conjunto de ações emitidas por B, sociedade comercial:

– bem: respetivo valor mobiliário, que abrange não apenas o título como as próprias prestações que nele surgem representadas, de entre as quais se des-tacam: parte dos lucros, participação na vida da sociedade e informação;

– situação jurídica encabeçada por A: direito a transacionar a situação jurí-dica em mercado regulamentado; direito a quinhoar nos lucros; direito a participar na vida da sociedade; direito à informação (artigo 21.o do CSC) + obrigação de entrada e dever de quinhoar nas perdas (artigo 20.o do CSC);

– situação jurídica encabeçada por B: direito a exigir a entrega do preço + dever de distribuir os lucros e dever de informação.

A distinção entre bem e situação jurídica, perfeitamente liquida nos con-tratos mais simples – caso paradigmático do de compra e venda –, torna-se artifi cial nos contratos mais complexos, para mais quando envolvem múlti-plas prestações incorpóreas. Tratam-se, em grande medida de perspectivas ou dimensões diferentes da mesma realidade.

14. Características da situação jurídica representada

I.  A situação jurídica representada consubstancia uma situação jurídica homogéna, negociável em mercado regulamentado e indissociável do docu-mento que a representa.

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II. A característica da homogeneidade é comum a todos os valores mobiliá-rios: (i) as ações que compreendam direitos iguais formam uma categoria, artigo 302.º/2 do CSC; (ii) as obrigações conferem, aos seus titulares, direitos de cré-dito iguais sobre a entidade emitente, 348.º/1 do CSC; ou (iii) o património dos fundos de investimento é representado por partes de conteúdo idêntico que asseguram aos seus titulares direitos iguais, artigo 7.º do RJOIC.

A homogeneidade permite ainda distinguir os valores mobiliários dos documentos representativos de situações jurídicas individuais, caso paradigmá-tico dos títulos de crédito87.

III. A título introdutório, esclareça-se que o que se negoceia são direitos e não coisas, pelo que a negociabilidade é uma característica da situação e não do documento em si mesmo.

A recondução ao universo das situações jurídicas mobiliárias não depende de uma negociação efetiva, o sistema basta-se com essa possibilidade, ou seja, com a negociabilidade da situação. Esta característica é posta em evidência através da coexistência de duas grandes categorias de sociedades abertas: (i) as cotadas em mercados regulamentados; e (ii) as não cotadas em mercados regu-lamentados. As ações destas últimas, conquanto não sejam transacionadas em bolsa, continuam a ser, quer numa perspectiva sistematizadora, quer para efeitos do regime mobiliário, efetivos valores mobiliários.

IV. No ponto anterior, demonstrámos que a representação de uma deter-minada situação jurídica num documento altera tanto o conteúdo da situação como do próprio bem. Na prática, uma determinada situação só poderá ser des-crita como sendo mobiliária se estiver devidamente representada e um docu-mento só será mobiliário se a situação que representa também o for. A assunção desta dimensão é cumulativa e indissociável. Vejamos um caso elucidativo.

Uma ação de uma sociedade anónima comum é um documento repre-sentativo de uma situação jurídica homogénea, mas não sendo negociável em bolsa, não pode ser descrita como sendo um valor mobiliário. Com a abertura do seu capital ao público e a consequente mobiliarização da sociedade, os acio-nistas passam a ser titulares de situações jurídicas passíveis de serem transaciona-das em mercados regulamentados, trata-se de um plus, i.e., de um direito que anteriormente não detinham. Esse direito corresponde, inevitavelmente, a uma nova prestação, i.e., um bem.

87 Para um apanhado sucinto das duas fi guras: José de Oliveira Ascensão, Valor mobiliário e título de crédito, 56 ROA, 1996, 837-875.

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O facto de o direito a transacionar em mercado regulamentando estar intrinsecamente associado à representação mobiliária torna as duas realidades indissociáveis: sem direito a transacionar a situação jurídica em mercado regu-lamentado não há valor mobiliário e sem valor mobiliário a situação jurídica perde a sua qualidade mobiliária88.

15. Conclusões

À luz da análise ora prosseguida, podemos apresentar o valor mobiliário como:

Documento representativo de uma situação jurídica homogénea, negociável em mercado regulamentado e indissociável do documento que a representa.

Enquanto bem, o valor mobiliário não se confunde com a situação repre-sentada ou com os factos que a originam.

88 A possibilidade de converter valores mobiliários escriturais em titulados e vice-versa (49.º e 50.º), bem como a reconstituição de valores destruídos ou perdidos (51.º), não contraria aposição defendida no texto principal, apontando, pelo contrário, para a necessidade de garantir a coexis-tência de ambas as realidades jurídicas.

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