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VALIDADE CONSTITUCIONAL DA EXIGÊNCIA DE
CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS SOBRE O VALOR DO ICMS
INCIDENTE NAS OPERAÇÕES DE VENDAS DE BENS E
SERVIÇOS
PARECER DO DR. EDMAR OLIVEIRA ANDRADE FILHO ENCAMINHADO PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS À
PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL.
Praia de Botafogo, 190 sala 1.30722253-900 Rio de Janeiro RJ Brasil
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I. DOS FATOS E DA CONSULTA
O Presidente da República, representado pelo Advogado Geral da União,
ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, uma Ação Declaratória de
Constitucionalidade que, naquele Tribunal, recebeu o número 18.
O propósito da referida Ação é a obtenção de pronunciamento acerca da
validade constitucional da norma do artigo 3º, parágrafo 2º, I, da Lei nº
9.718/98, que, interpretada a contrario sensu, determina o cômputo do
valor do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, na
base de cálculo das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS, instituídas
com fulcro no inciso I do artigo 195 da Constituição Federal1.
Antes do ajuizamento da referida Ação Declaratória de
Constitucionalidade, a Suprema Corte iniciou o julgamento do RE nº
240.785, no qual é pleiteada a declaração de inconstitucionalidade de
preceito da Lei Complementar nº 70/91 que autoriza a União a exigir a
contribuição ao COFINS calculada sobre o valor total das vendas de bens
e serviços sem a exclusão do valor do ICMS incidente nas operações que
constituem fato gerador deste imposto e das referidas contribuições.
Pois bem, para instruir a defesa dos argumentos apresentados na ADC nº
18, me é solicitada a apresentação de uma Parecer Jurídico sobre sete
quesitos que vieram acompanhados de uma breve exposição acerca do
tema, que transcrevo a seguir.
1 A rigor, as contribuições ao PIS e ao PASEP foram instituídas antes do advento da Constituição Federal e as leis que as instituíram têm fundamento de validade no artigo 239 da Constituição Federal. Sigo, no entanto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que decidiu que também essas contribuições têm fundamento de validade constitucional no inciso I do artigo 195 e no artigo 239 da Constituição Federal. Vide, a respeito: Agravo Regimental no RE nº 456.197 – SP.
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O Supremo Tribunal Federal está julgando o Recurso Extraordinário - RE nº 240.785 e prestes a iniciar o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC nº 18. Nesses dois casos discute-se sobre a constitucionalidade do procedimento de apuração da base de cálculo adotado pelo fisco federal, o qual mantém no cálculo da receita bruta (base de cálculo do PIS e da COFINS) o valor do ICMS devido na operação de venda do produto ou do serviço prestado. Isso é feito já que não há dispositivo legal que determine a exclusão de tal valor da base de cálculo das referidas contribuições, bem como pelo fato que se tratar de um “custo ou despesa” (de natureza tributária), o qual, juntamente com os demais custos (de natureza tributária e não-tributária) e com o lucro, compõem o valor da mercadoria ou do serviço, isto é, a receita bruta. Em face disso, pergunta-se:
1. Os valores recolhidos a título de tributos devidos pela realização de um fato gerador podem ser considerados como “custo ou despesa” de uma mercadoria ou de um serviço?
2. Caso a resposta ao item anterior seja sim, indaga-se se o valor recolhido a título de ICMS numa dada operação de venda de mercadoria ou de prestação de serviços é considerado como “custo ou despesa” dessa mercadoria ou desse serviço?
3. Caso a resposta ao item anterior seja sim, indaga-se se o fato do valor recolhido a título de ICMS ser destinado aos Estados e ao Distrito Federal descaracteriza-o como “custo ou despesa”? Os demais “custos ou despesas” também não são repassados a terceiros (fornecedores, empregados, terceirizados, fiscos federal, estaduais, municipais, prestadores de serviços etc.)?
4. Enfim, há alguma razão contábil ou jurídica para afirmar-se que, caso seja considerado “custo ou despesa”, o valor do ICMS incidente não deve compor o valor da mercadoria ou do serviço?
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5. Caso o valor do ICMS incidente seja considerado “custo ou despesa” e componha o valor da mercadoria ou do serviço, haveria alguma razão para excluí-lo do conceito de receita bruta para fins de cálculo do PIS e da COFINS?
6. Há alguma vedação constitucional no sentido de que o valor referente a incidência ou pago a título de uma determinada exação tributária não possa compor a base de cálculo de outra exação tributária ou da mesma?
7. Por fim, haveria algum óbice processual para o ajuizamento ou cabimento e conhecimento da ADC nº 18, por haver recurso extraordinário (RE nº 240.785), que trata do ICMS na base de cálculo do PIS e COFINS? O julgamento da ADC nº 18 terá precedência em relação ao RE nº 240.785? Havendo precedência, quais seriam os efeitos da decisão da ADC nº 18 sobre o mencionado recurso extraordinário pendente de julgamento?
O tema central da consulta (distribuído de acordo com os seis primeiros
quesitos acima formulados) diz respeito à constitucionalidade da
exigência das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS sobre o valor do
ICMS incidente sobre vendas de bens e prestações de serviços. A outra
questão (sétimo quesito) diz respeito ao processamento e julgamento da
ADC ajuizada.
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II. DA VALIDADE CONSTITUCIONAL DA CONSIDERAÇÃO DO ICMS
NA BASE DE CÁLCULO DAS CONTRIBUIÇÕES
AO PIS-PASEP E COFINS
Na ADC nº 18 pleiteia-se a declaração constitucionalidade de norma de lei
federal em face do artigo 195, I da Constituição Federal. Pois bem, de
acordo com a redação original do inciso I do artigo 195 da Constituição
Federal, a União estava autorizada a instituir contribuição social:
“I. dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro.”
Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, o
inciso I do artigo 195 foi desdobrado em três alíneas – “a”; “b” e, “c” – e
passou a ter o seguinte enunciado:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro.
A questão central em debate é saber se – em face desse preceito
constitucional – o valor do ICMS incidente na venda de bens e serviços
pode ou não compor a base de cálculo das contribuições ao PIS-PASEP e
COFINS, nos casos em que as operações que deram ensejo à incidência
das normas que regem a apuração e o recolhimento do ICMS são
tributadas pelas referidas contribuições.
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Essa mesma norma constitucional está em debate no julgamento do RE nº
240.785. Neste caso, o voto condutor, já proferido, revela que são
basicamente três os argumentos em favor da tese que considera
inconstitucional o cômputo do valor do ICMS na base de cálculo das
contribuições ao PIS-PASEP e COFINS. A primeira objeção decorre da
pré-compreensão de que o valor do ICMS “representa um desembolso a
beneficiar a entidade de direito público que tem competência para cobrá-
lo”; a segunda – que é um desdobramento lógico da primeira – afirma
que “se alguém fatura ICMS, esse alguém é o Estado”. E, por fim, há o
entendimento de que o valor do ICMS não pertence ao vendedor que
assume a posição jurídica de “mero depositário”.
No fundo, esses argumentos sustentam que o valor do ICMS incidente nas
vendas de bens e serviços não pode ser considerado “faturamento” ou
“receita” porquanto o referido valor representa parcela que não pertence
ao sujeito passivo das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS: trata-se,
de acordo com este ponto de vista, de valor de terceiros que é levado aos
“cofres públicos”.
Com a devida vênia, esses argumentos estão construídos sobre uma
premissa falsa. De fato, consoante será demonstrado, o valor do ICMS
incidente sobre a venda de bens e serviços não pertence tout court ao
Estado que tem poderes constitucionais de exigir esse tributo e, portanto,
não representa o montante que será levado aos cofres públicos, e,
ademais, o vendedor não assume a posição jurídica de depositário do
valor do ICMS incidente nas vendas de bens e serviços. De igual modo,
será demonstrado que o valor do ICMS incidente sobre venda de bens e
serviços constitui – em primeiro lugar – receita bruta do vendedor,
enquanto parte integrante e indissociável do preço, e, ao mesmo tempo,
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constitui despesa operacional necessária ao normal funcionamento das
sociedades empresárias ou entidades que lhes são equiparadas.
Por fim, será demonstrado que a incidência de tributo sobre tributo
(contribuições sobre o valor do ICMS) é admitida pela Constituição
Federal, e que, em razão disto, não há ofensa ao texto e ao espírito da
Constituição o fato de que o valor do ICMS seja parte integrante do valor
da “receita bruta” do vendedor.
II.1 O ICMS COMO PARTE INTEGRANTE
DA RECEITA BRUTA
Na raiz das objeções contrárias à incidência das contribuições ao PIS-
PASEP e COFINS sobre a parcela do preço de venda que corresponde ao
valor do ICMS incidente na operação tem origem no pré-compreensão de
que o ICMS não constitui preço do bem ou serviço e que, portanto, não
poderia compor o montante do faturamento ou da receita bruta.
O artigo 195, I da Constituição Federal outorgou à União o poder de
instituir contribuição sobre o faturamento (texto original, de 1988) e,
depois, sobre o faturamento ou receita (Emenda Constitucional 20/98).
Antes do advento da primeira Medida Provisória que deu origem à Lei nº
9.718/98, as contribuições devidas ao PIS e ao PASEP deveriam ser
calculadas com base nas Leis Complementares nº 7 e nº 8, posteriormente
substituídas pela Lei nº 9.715/98. A contribuição ao COFINS foi instituída
em 1991, com a edição da Lei Complementar nº 70/91.
Na vigência da Lei Complementar nº 7/70, a base de cálculo da
contribuição devida ao PIS era o faturamento do sexto mês anterior. Essa
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base de cálculo foi estabelecida pelo § único do artigo 6º da referida Lei
Complementar, que tem o seguinte enunciado:
Art. 6.º - A efetivação dos depósitos no Fundo correspondente à contribuição referida na alínea b do art. 3º será processada mensalmente a partir de 1º de julho de 1971.
§ único - A contribuição de julho será calculada com base no faturamento de janeiro; a de agosto, com base no faturamento de fevereiro; e assim sucessivamente.
A Lei nº 9.715/98 modificou totalmente a legislação da referida
contribuição (PIS-PASEP) e estabeleceu – no inciso I do artigo 2º – que as
pessoas jurídicas de direito privado e as que lhes fossem equiparadas pela
legislação do imposto de renda, inclusive as empresas públicas e
sociedades de economia mista e suas subsidiárias, deveriam pagar a
contribuição apurada com base no faturamento do mês. O conceito
normativo de faturamento consta do enunciado do artigo 3º da citada Lei
nº 9.715/98, nos seguintes termos:
“Considera-se faturamento a receita bruta, como definida pela legislação do imposto de renda, proveniente da venda de bens nas operações de conta própria, do preço dos serviços prestados e do resultado auferido nas operações de conta alheia”.
No que concerne à contribuição COFINS, a Lei Complementar nº 70/91,
dispôs que:
“Art. 1° Sem prejuízo da cobrança das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), fica instituída contribuição social para financiamento da Seguridade Social, nos termos do inciso I do art. 195 da Constituição Federal, devida pelas pessoas jurídicas inclusive as a elas equiparadas pela legislação do imposto de
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renda, destinadas exclusivamente às despesas com atividades-fins das áreas de saúde, previdência e assistência social.
Art. 2° A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza”.
Posteriormente a Lei nº 9.718/98, que tratou da cobrança das
contribuições ao PIS-PASEP e COFINS, modificou a base de cálculo das
referidas contribuições, de modo que a base de cálculo comum passou a
ser a receita bruta da pessoa jurídica, assim considerada o total das
receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de
atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as
receitas. Vejamos o texto legal:
Art. 2° As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as alterações introduzidas por esta Lei.
Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica.
§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.
A Suprema Corte, quando do julgamento do RE nº 346.084-6, declarou a
inconstitucionalidade do § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, acima
transcrito de modo que a base de cálculo passou a ser o valor
correspondente à receita bruta.
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As leis citadas não fazem referência do valor do ICMS. A referência é
feita em interpretação a contrario: de fato, o inciso I do parágrafo 2º do
artigo 3º da Lei 9.718/98, prescreve a exclusão do montante da receita
bruta, dentre outras parcelas, da correspondente ao valor do Imposto
sobre Produtos Industrializados e do ICMS cobrado pelo vendedor dos
bens ou prestador dos serviços na condição de substituto tributário. O
valor do ICMS incidente sobre o valor dos bens e serviços nas operações
enquadráveis no conceito de “receita bruta” não pode ser excluído do
montante desta, daí ser correto dizer – por interpretação a contrario
sensu – que sobre tal parcela incidem as contribuições sociais ao PIS-
PASEP e COFINS.
Pois bem, o valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços
constitui parte integrante e indissociável do preço e, por conseguinte,
integra o montante da receita bruta, para todos os efeitos legais,
tributários e comerciais.
O valor do ICMS integra o valor das mercadorias e serviços (base de
cálculo ordinária do imposto) por expressa determinação legal. De fato,
após estabelecer – no inciso I do artigo 13 – que o a base de cálculo do
ICMS deve corresponder ao valor da mercadoria ou serviço, o inciso I do
parágrafo 1º do artigo 13 da Lei nº 87/96, dispõe que:
“§ 1o Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:
I - o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”.
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O preceito em questão repete o enunciado do parágrafo 7º do artigo 2º do
Decreto-lei nº 406/68, que dispunha sobre o antigo ICM (Imposto sobre a
Circulação de Mercadorias). Discorrendo acerca do sentido e do alcance
da regra do parágrafo 7º do artigo 2º do Decreto-lei nº 406/68, o douto
ALCIDES JORGE COSTA2 observa que o mandamento da inclusão do
valor do ICM na sua própria base de cálculo implica unicamente na
fixação de uma alíquota real superior à alíquota nominal. Vejamos:
“De todas as normas contidas no artigo 2º do Decreto-lei nº 406/68, destacamos apenas, para um comentário, o parágrafo 7º, segundo o qual “o montante do imposto de circulação de mercadorias integra a base de cálculo a que se refere este artigo, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”. O dispositivo não interfere na estrutura do ICM e se o comentamos é porque torna a alíquota real superior à nominal”. (grifamos)
A Lei Complementar nº 87/96, ao dispor que o valor do ICMS deve ser
considerado no valor da operação, está a dizer que o imposto em questão
integra o valor do preço das mercadorias e serviços.
Para FRAN MARTINS3 o preço corresponde: “à importância em
dinheiro que o comprador se obriga a pagar ao vendedor em troca da
propriedade da coisa vendida”. Preço, de acordo com a definição de
PEDRO NUNES4, corresponde – em geral – à prestação pecuniária que
deve ser cumprida comprador em face do vendedor. Vejamos:
2 COSTA, Alcides Jorge. ICM na constituição e na lei complementar. 1. ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 158.
3 MARTINS, Franº Contratos e obrigações comerciais. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 164.
4 NUNES, Pedro. Dicionário de tecnologia jurídica. v. 2. 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, p. 710.
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“Preço. Correspectivo determinado na compra e venda, expresso em moeda ou valor fiduciário equivalente. Prestação pecuniária que o comprador efetua ou se obriga a efetuar ao vendedor para pagamento da coisa adquirida”.
Em igual sentido, PONTES DE MIRANDA5 leciona que: “a prestação do
preço é prestação correspectiva à do objeto comprado”.
Ora, no modelo engendrado pela Lei Complementar nº 87/96, o ICMS é
calculado por dentro; ou seja, se o ICMS integra o preço da mercadoria
ou do serviço, parece cristalino que participa materialmente do valor do
faturamento ou da receita bruta. Afinal, o valor da receita a ser auferida
na venda ou na prestação de serviços corresponderá ao preço a ser pago
pelo adquirente e recebido pelo vendedor ou prestador, assim considerado
o valor total da mercadoria ou serviço vendido. É este valor – o do preço –
que será auferido ou recebido pelo vendedor ou prestador do serviço.
O inciso V do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei das Duplicatas (Lei Federal
nº 5.474/68) estabelece – textualmente – que no documento denominado
“duplicata” deverá ser discriminada a “importância a pagar”. Vejamos:
“Art. 2º No ato da emissão da fatura, dela poderá ser extraída uma duplicata para circulação como efeito comercial, não sendo admitida qualquer outra espécie de título de crédito para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador. § 1º A duplicata conterá: I - a denominação "duplicata", a data de sua emissão e o número de ordem; II - o número da fatura; III - a data certa do vencimento ou a declaração de ser a duplicata à vista; IV - o nome e domicílio do vendedor e do
5 MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. v. 39. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, p. 33.
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comprador; V - a importância a pagar, em algarismos e por extenso”.
Qual seria essa “importância a pagar”? A resposta é intuitiva: é o valor
do preço dos bens, sem separação do valor de eventuais tributos contidos
no seu montante.
Ainda que se admita – em homenagem ao princípio da livre iniciativa –
que alguém possa vir a realizar vendas ou prestações de serviços com
preços decompostos (em que o ICMS é calculado por fora); ainda assim, o
valor do imposto compõe o preço, no sentido que este vocábulo tem para o
Direito Comercial.
Imaginemos a hipótese em que um determinado vendedor pretenda
vender uma mercadoria cujo valor é R$ 100,00 (+) o valor do ICMS, cuja
alíquota – para fins de exemplo – é 18%. Neste caso, o preço de venda
corresponderá a R$ 118,00; e sobre ele será calculado o valor do ICMS,
que seria igual a R$ 21,24. Neste exemplo, o valor de R$ 18,00 não possui
um caráter jurídico próprio e desvinculado do valor da mercadoria
(preço): não se trata de “recuperação de despesa” ou de qualquer outra
figura de caráter indenizatório.6 Trata-se – sim – de preço e nada mais.
Afinal, o Estado, nos contratos de compra e venda e de prestação de
serviços, não participa como sujeito da relação jurídica e, portanto, não
“fatura” o valor do imposto. A ser plausível a idéia de que o Estado
“fatura” o ICMS, ter-se-ia que admitir que ele atua como sujeito em todas
as relações firmadas cujo objeto seja uma operação tributável pelo
referido imposto.
6 Registro que, no caso, o vendedor poderia incluir no preço da mercadoria o valor do ICMS a ser calculado “por dentro”: em tais circunstâncias, o preço final seria R$ 143,90 e o valor do ICMS devido seria igual a R$ 25,90. No exemplo quero demonstrar o caráter do ICMS “separado” e não a exatidão matemática.
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Ademais, o modelo de não-cumulatividade adotado pela Lei nº 87/96 está
em conformidade com a Constituição Federal, segundo a reiterada
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. De fato, quando do
julgamento do RE 212.209-2 RS, o Plenário da Corte decidiu:
“Tributário. Base de cálculo do ICMS: inclusão
no valor da operação ou da prestação de serviço
somado ao próprio tributo.
Constitucionalidade. Recurso desprovido”.
Por ocasião do julgamento do RE 212.209-2, o ilustre Ministro
MOREIRA ALVES, deixou consignado que o denominado cálculo “por
dentro” é um mecanismo essencial na compleição do ICMS não-
cumulativo. Vejamos o que disse Sua Excelência:
“Se o ICMS não for um imposto pode dentro, jamais chegaremos ao que se deve chegar com a observância do princípio da não-cumulatividade, com o seu jogo de compensações”. (Grifamos)
Quando do julgamento do RE 254.202-4, o Ministro MARCO AURÉLIO,
a despeito de ter entendimento contrário ao estabelecido pelo Plenário da
Corte Suprema, esclareceu em seu voto o seguinte:
“A tese alfim prevalecente foi no sentido de que o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços é imposto por dentro, constituindo assim base de cálculo para o próprio tributo. O Colegiado Maior entendeu que as compensações futuras de débitos e créditos dos contribuintes, de modo a tornar não-cumulativo o imposto, corrigem eventuais distorções”.
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Há quem considere, no entanto, que esse fenômeno – o cálculo do ICMS
por dentro – tem efeitos unicamente no campo do referido imposto e,
portanto, essa circunstância não poderia, validamente, legitimar a
incidência de contribuições incidentes sobre o faturamento ou receita.
Vejamos, a respeito, a doutrina de ROQUE CARRAZA7:
“O faturamento (que etimologicamente, advém de fatura) corresponde, em última análise, ao somatório do valor das operações negociais realizadas pelo contribuinte. Faturar, pois, é obter receita bruta proveniente da venda de mercadorias ou, em alguns casos, da prestação de serviços.
Noutras palavras, faturamento é a contrapartida econômica, auferida, como riqueza própria, pelas empresas em razão do desempenho de suas atividades típicas. Conquanto nesta contrapartida possa existir um componente que corresponde ao ICMS devido, ele não integra nem adere ao conceito que ora estamos cuidando. Em conseqüência, o ICMS não integra o valor da operação, a não ser para os específicos efeitos de cálculo dele próprio”. (grifamos)
O douto professor adota uma antiga doutrina de GERALDO ATALIBA
E CLÉBER GIARDINO, que consideram que o valor do ICM integra o
preço apenas e tão somente para efeito de apuração deste imposto – o
ICM ou ICMS. Vejamos:
“Em conseqüência, o ICM não integra o valor da operação, a não ser para os específicos efeitos de cálculo dele próprio. O ICM não integra o preço, senão para facultar a chamada recuperação econômica do tributo, que foi legalmente
7 CARRAZA, Roque. ICMS. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 496-497.
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impedida – pela mesma lei fiscal – por outras vias”. (grifamos)
Tal assertiva não resiste a um confronto com a realidade econômica e
jurídica. No tráfego econômico o valor do ICMS é parte integrante e
indissociável do preço dos bens e serviços. O ICMS integra o valor do
preço das mercadorias e serviços para todos os fins: de fato, considerado
“por dentro” ou “por fora”, o ICMS constitui preço e isto é da mecânica
do tributo que decorre do seu ordenamento jurídico específico.
O Estado que detém o poder de exigir o ICMS não participa da relação
jurídica decorrente da compra e venda de bens e serviços e, portanto, o
imposto é devido por quem realiza o fato gerador do tributo. Os
particulares não podem modificar esse quadro para – por exemplo –
atribuir ao comprador o dever de arcar com o ICMS incidente na
operação de venda ou prestação de serviços. As avenças entre particulares
não podem modificar lei de ordem pública: se não fosse por essa razão,
seria em face dos claros termos do enunciado do artigo 123 do Código
Tributário Nacional, que tem a seguinte redação:
“Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.
Onde há o interesse público os particulares não têm poder de disposição,
salvo nas hipóteses admitidas pela Lei. A regra do artigo 123 do CTN cria
uma zona de imunidade (no sentido da teoria geral do direito) para o
Estado credor contra os pactos dos particulares, de modo a não permitir
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que os efeitos destes afetem a obrigação ou crédito de que ele é torna-se
titular.
Quando há uma venda ou prestação de serviços, o valor da operação
(preço) é exigido pelo vendedor sem qualquer divisão ou separação. Não
há cobrança em separado do valor do ICMS: afinal, o Estado não tem
direito de receber o valor do ICMS incidente por ocasião da venda ou
prestação de serviços porque o vendedor tem o direito constitucional de abater
os valores correspondentes aos créditos.
Qualificado como parte indissociável do preço, o valor do ICMS integra a
receita do vendedor e não existe óbice constitucional para que assim seja.
Um eventual impedimento haveria se o valor do ICMS não pudesse ser
enquadrado como parte integrante do faturamento ou da receita.
Editadas com fundamento de validade no artigo 195, I da Constituição
Federal, a Lei Complementar nº 70/91 e a Lei nº 9.718/98, elegeram a
“receita bruta” como base de cálculo das contribuições ao PIS e COFINS.
Anteriormente, as leis complementares 7 e 8, ambas de 1970, elegeram o
faturamento como base de cálculo das contribuições ao PIS e PASEP. Na
vigência da Lei Complementar nº 70/91, faturamento (conforme previsto
na ordem constitucional vigente à época) era representado pelo montante
da “receita bruta” da venda de bens e serviços. Com o advento da
Emenda Constitucional nº 20/98, a incidência poderia recair – a critério
do legislador – sobre o faturamento ou sobre a receita bruta. Assim,
faturamento foi sinônimo de “receita bruta” até o advento da Emenda
Constitucional nº 20/98: após isto, receita bruta passou a englobar o
faturamento e outras parcelas além do total das vendas de bens e serviços,
conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento
do RE 346.084.
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A expressão “receita bruta” foi adotada pelo ordenamento jurídico
brasileiro muito antes do advento da Constituição Federal, por
intermédio dos artigos 43 e 44 da Lei nº 4.506/64, que tem a seguinte
redação:
Art. 43. O lucro operacional será formado pela diferença entre a receita bruta operacional e os custos, as despesas operativas, os encargos, as provisões e as perdas autorizadas por esta lei.
Art. 44. Integram a receita bruta operacional:
I - O produto da venda dos bens e serviços nas transações ou operações de conta própria.
Ao discorrer acerca do conteúdo normativo desse preceito, JOSÉ LUIZ
BULHÕES PEDREIRA8, afirmou:
“A receita bruta operacional da empresa nas transações ou operações de conta própria corresponde ao produto das vendas dos bens ou serviços, conforme a atividade que constitua o seu objeto”. (grifamos)
Em obra mais recente, o mesmo JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA9
oferece uma outra definição de receita bruta, nos seguintes termos:
“A quantidade total de valor financeiro adquirido pela sociedade como receita é designada “receita bruta”, para distingui-la do valor que remanesce depois de deduzidos os sacrifícios financeiros que a sociedade suporta para ganhá-la.”
8 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto de renda. 2. ed. Rio de Janeiro: Justec, 1971, p. 6-11.
9 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Finanças e demonstrações financeiras da companhia. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 459.
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Há tempos o valor da receita bruta – na acepção de faturamento – tem
sido considerado como o somatório das vendas de mercadorias e serviços.
Quando do julgamento do RE nº 150.755, em 18 de novembro de 1992, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que:
“A alusão a “receita bruta”, como base de cálculo do tributo, para conformar-se ao art. 195, I, da Constituição, há de ser entendida segundo a definição do Dl. 2.397/87, que é equiparável à noção corrente de “faturamento” das empresas de serviços”.
Por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade
nº 1, em que eram contestados vários aspectos da Lei Complementar
70/91, alguns ministros da Suprema Corte trataram da questão da base de
cálculo da contribuição ao COFINS: Leia-se MOREIRA ALVES:
“Note-se que a Lei Complementar nº 70/91, ao considerar o faturamento como “a receita bruta das vendas de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza” nada mais fez do que lhe dar conceituação de faturamento para efeitos fiscais, como bem assinalou o eminente Ministro ILMAR GALVÃO, no voto que proferiu no RE 150.764, ao acentuar que o conceito de receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços e serviços “coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, foi sempre entendido como produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei 187/36).” (grifamos)
De igual modo, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE deixou consignado:
“O conceito de “receita bruta” não discrepa do “faturamento”, na
acepção que este termo é utilizado para efeitos fiscais, ou seja, o que
corresponde ao produto de todas as vendas, não havendo qualquer razão
19
para que lhe seja restringida a compreensão, estreitando-o nos limites do
significado que termo possui no direito comercial”.
No magistério de PAULO DE BARROS CARVALHO10:
“Penso que ao tratar desse tema deva ser dito que faturamento representa o ingresso bruto de recursos externos, provenientes de operações de venda a prazo ou à vista, de mercadorias, produtos ou serviços, tanto no mercado interno como no exterior. Faturamento é a soma das faturas referentes a determinado período e fatura o documento representativo da venda já consumada ou concluída”.
O ICMS – como já foi dito – constitui parcela do faturamento. Com
efeito, como parte do preço da venda de bens ou da prestação de serviços,
integra o valor das vendas e prestações de serviços que, do ponto de vista
jurídico-contábil – compõem o montante da receita bruta.
Essa conclusão não muda mesmo diante da adoção de um conceito mais
amplo de “receita”. Vejamos, a respeito, a doutrina do ilustre professor
GERALDO ATALIBA:11
“O conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada. Entrada é todo dinheiro que ingressa nos cofres de entidade. Nem toda entrada é uma receita. Receita é a entrada que passa a pertencer à entidade. Assim, só se considera receita o ingresso de dinheiro que venha a integrar o patrimônio da entidade que o recebe”.
10 CARVALHO, Paulo de Barros. Cofins: a lei nº 9.178/98 e a emenda constitucional nº 20/98. Revista de direito tributário nº 75. São Paulo: Malheiros, p. 182.
11 ATALIBA, Geraldo. ISS e base imponível. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: RT, 1978, p. 81-85 e 91, passim.
20
Nem todo fluxo de dinheiro ou bens para o patrimônio social é
considerado como receita. JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA12 explica:
“As quantidades de valor financeiro que entram no patrimônio da sociedade em razão de seu funcionamento e capitalização não são receitas: na transferência de capital de terceiros a sociedade adquire apenas o poder de usar o capital: na de capital próprio adquire a propriedade de capital destinado a aumentar o capital estabelecido”.
Em outro lugar, BULHÕES PEDREIRA13 observa: “receita é a
quantidade de valor financeiro, originário de outro patrimônio, cuja
propriedade é adquirida pela sociedade empresária ao exercer as
atividades que constituem as fontes do resultado”. Para caracterizar
receita é necessário o ingresso de bens que entram definitiva e
incondicionalmente para o patrimônio social do adquirente. Por esta
razão, MARCO AURÉLIO GRECO,14 considera que:
“Nem todo “dinheiro” que “entra” no universo da disponibilidade da pessoa jurídica integra a base de cálculo da COFINS. Não basta ser uma “entrada” (mera movimentação financeira) é preciso que se configure como “ingresso”, no sentido de entrada com sentido de permanência e que resulte da exploração da atividade da exploração da atividade que corresponda ao seu objeto social (ou dele decorrente).”
O conceito jurídico de “receita” como ingresso não destoa daquele
adotado no âmbito das Ciências Contábeis. Para SÉRGIO DE
IUDICIBUS15: “entende-se por receita a entrada de elementos para o
12 Idem, p. 456.13 Ide, p. 455-456.14 GRECO, Marco Aurélio. COFINS na Lei 9.718/98: variações cambiais e regime de
alíquota acrescida. Revista Dialética de Direito Tributário nº 50, p. 129. 15 IUDÍCIBUS, Sérgio. Teoria da contabilidade. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.164.
21
ativo, sob a forma de dinheiro ou direitos a receber, correspondentes,
normalmente, à venda de mercadorias, de produtos ou à prestação de
serviços”.
A rigor, faturamento (tomado o vocábulo como representativo do total
das vendas de bens ou serviços de um dado período) e receita guardam
entre si uma relação de todo-parte ou gênero-espécie. Receita é gênero
que designa todas as formas de acréscimos patrimoniais a título definitivo
e atual16, enquanto que faturamento uma parte desses acréscimos.
Diante do exposto, parece claro que o ICMS incidente sobre a venda de
bens ou serviços enquadra-se perfeitamente em qualquer uma dessas
categorias; afinal, é princípio comezinho de lógica que a espécie está
contida no gênero.
Destarte, não há qualquer impedimento constitucional a vedar a
incidência das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS sobre essa parcela
da receita. Não existe, na Constituição Federal, nenhuma regra explicita
ou qualquer mandamento implícito que imponha a incidência sobre a
“receita líquida”. Portanto, ao permitir – para determinação da base de
cálculo das citadas contribuições – a exclusão do valor do IPI e do ICMS
devido no regime de substituição tributária, a Lei 9.718/98 não violou a
Constituição Federal. A Lei, a rigor, poderia exigir a contribuição
inclusive sobre o valor dos citados tributos, posto que o mesmo é recebido
pelo vendedor e faz parte da fatura ou documento equivalente.
16 Escrevi sobro tema no livro “PIS E COFINS: conceitos normativos de receita e faturamento”. 1. ed. São Paulo: MP, 2008.
22
II.2 O VALOR DO ICMS INCIDENTE SOBRE A VENDA DE
BENS E SERVIÇOS NÃO É LEVADO
AOS COFRES PÚBLICOS.
Uma outra objeção à incidência das contribuições sociais ao PIS-PASEP e
COFINS sobre o valor do ICMS é a pressuposição que o valor deste
imposto não pode ser caracterizado como “receita” porquanto o valor
respectivo não pertence ao contribuinte do citado imposto, e, por esta
razão, é “levado aos cofres públicos”.
Tal pressuposição é incompatível com a estrutura do ICMS, que é
imposto não-cumulativo, cujo valor final a ser recolhido resulta do
confronto entre débitos e créditos. Portanto, é necessário distinguir entre
“imposto incidente” sobre as vendas e prestações e serviços e “imposto
devido”. Este último – o imposto devido – é que deve ser “levado aos
cofres públicos” e não o valor do ICMS “incidente”, que compõe o valor
do preço das mercadorias e serviços e que constitui encargo (despesa) de
funcionamento normal da sociedade empresária.
O caráter não-cumulativo do imposto consta do enunciado do inciso I do
parágrafo 2º do artigo 155 da Constituição Federal, verbis:
“I - será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação, relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado, ou pelo Distrito Federal”.
O valor do ICMS incidente sobre o valor da vendas de bens e serviços é
apenas um elemento para determinação do valor a ser recolhido ao
23
sujeito ativo; afinal, para se encontrar o valor a ser efetivamente pago
(“levado aos cofres públicos”) é necessário considerar os valores relativos
aos denominados “créditos”, conforme expõe didaticamente EROS
GRAU17 ao fazer referência ao antigo ICM:
“Na sistemática de imposição sobre valores agregados – que, no caso brasileiro, por força de disposições constitucionais, aplica-se ao ICM e IPI – implica na atribuição ao produtor ou distribuidor do produto, do direito ao aproveitamento dos valores de tributos incidentes sobre entradas de mercadorias (insumos, matérias-primas ou o próprio produto), no seu estabelecimento”.(....)
“Assim, para que o contribuinte calcule o tributo a recolher aos cofres públicos em um determinado período, aplicará sua alíquota de incidência às operações que no período se verificarem e, de tal quantia, abaterá o montante de tributo relativo às mercadorias entradas no estabelecimento, no mesmo período – e outras, se especificadas em lei”. (grifamos)
Igual lição é proferida por GERALDO ATALIBA e CLÉBER
GIARDINO18 ao discorrerem sobre o direito de crédito outorgado pela
norma constitucional pretérita, que tem a mesma mensagem da atual.
Vejamos:
“Em síntese, o débito de ICM obtém-se aplicação da alíquota legal sobre a base de cálculo – valor da operação. Tal débito é liquidado, em regra, parcialmente por compensação: o contribuinte utiliza o crédito de
17 GRAU, Eros Roberto. Correção monetária: concordata e créditos fiscais. 1. ed. São Paulo: RT, 1984, p. 73-74.
18 ATALIBA, Geraldo; e GIARDINO, Cléber. ICM: abatimento constitucional: princípio da não-cumulatividade. Revista de Direito Tributário nº 29/30. São Paulo; RT, 1984, p. 123.
24
que dispõe (resultante do seu direito constitucional de abatimento do ICM referente a operações anteriores) e só recolhe, em dinheiro, o saldo devedor. Liquida, assim, o seu débito, parcialmente com crédito (compensação) e parcialmente com dinheiro”. (grifamos)
Resta cristalino, portanto, que o valor do ICMS incidente nas operações
que constituem base de cálculo das contribuições ao PIS-PASEP e
COFINS não é, em regra, o valor que é levado aos cofres públicos. De
igual modo, esse mesmo valor não “pertence” integralmente ao Estado
como um direito que nasce da realização da operação que constitui o fato
gerador. Na compostura estrutural do ICMS os créditos não podem ser
desconsiderados e – ademais – o valor do débito (imposto incidente) é
dívida própria do sujeito passivo, que a liquida com duas “moedas”:
dinheiro e créditos.
A análise dos elementos da relação jurídica que se estabelece entre o
contribuinte do ICMS e o sujeito ativo da obrigação tributária confirma
assertiva de que o valor desse tributo (o incidente sobre a venda de bens e
serviços) não “pertence” ao Estado.
Essa relação não é típica de mandatário; ou seja, o contribuinte do ICMS
não age por conta e ordem do Estado, o sujeito ativo, e, em razão disto, o
valor do ICMS embutido no preço da mercadoria ou serviço não
“pertence” ao sujeito ativo e o contribuinte não é mero depositário do
valor do ICMS.
O agir por conta e ordem de outrem é o traço essencial do contrato de
mandato, referido no artigo 653 do Código Civil de 2002, que tem o
seguinte enunciado:
25
“Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato”.
Discorrendo sobre as características e efeitos jurídicos do contrato de
mandato, o ilustre ORLANDO GOMES19, afirma:
“O mandato é a relação contratual pela qual uma das partes se obriga a praticar, por conta de outra, um ou mais atos jurídicos. O contrato tem a finalidade de criar essa obrigação e regular os interesses dos contratantes, formando a relação interna, mas, para que o mandatário possa cumpri-la, é preciso que mandante lhe outorgue o poder de representação”.
Segundo a doutrina de MARIA HELENA DINIZ20, no contrato de
mandato, em face da outorga de representação, o mandatário age em
nome e por conta do mandante, verbis:
“É uma representação convencional, em que o representante pratica atos que dão origem a direitos e obrigações que repercutem na esfera jurídica do representado. Realmente, o mandatário, como representante do mandante, fala e age em seu nome e por conta deste. Logo, é o mandante quem contrai as obrigações e adquire os direitos como se tivesse tomado parte pessoalmente no negócio jurídico.”
Para SILVIO RODRIGUES, o mandatário assume a obrigação de agir
em nome do mandante “com o necessário zelo e diligência, transferindo-
lhe as vantagens que em seu lugar auferir, prestando-lhe afinal, contas de
sua gestão”.21 19 GOMES, Orlando. Contratos. 24. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2001, p. 347. Os grifos
constam do original.20 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 333-334.21 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 279.
26
A relação jurídica que emerge da realização do fato tributário referido na
hipótese normativa é regida pelo direito público; portanto, um eventual
mandato só poderia ser cogitado em virtude lei. A Lei – no caso, a Lei
Complementar nº 87/96 ou o Código Tributário Nacional – não cogita de
mandato ou qualquer outra forma de ação em nome de outrem. O
vendedor ou prestador é o próprio devedor do ICMS; o Estado não é
credor do comprador que, por vezes, pode estar localizado fora do seu
território e aquém do campo territorial da potestade tributária que lhe é
outorgada pela Constituição Federal.
Na relação jurídica em que há mandato é essencial a efetiva ação de uma
pessoa, individual ou coletiva, que age em nome do mandante. O
contribuinte do ICMS é devedor por débito próprio, que responde com
seu patrimônio em caso de falta de pagamento: afinal, após o confronto
entre débitos e créditos, o valor devido, se não pago, pode ser objeto de
ação executiva e não de prestação de contas.
Por estas razões, o sujeito passivo do ICMS deve e responde pelo débito.
Portanto, neste caso, a responsabilidade pode ser entendida em face da
teoria dualista da obrigação, segundo a qual dois elementos compõem a
relação de obrigação: o debitum e a obligatio (a dívida e a
responsabilidade)22. Sobre assunto, BARROS LEÃES23 observa:
“O Código Tributário Nacional distingue perfeitamente a relação de débito da relação de responsabilidade na obrigação tributária, atribuindo ao fato gerador a gênese da primeira relação, e ao ato de lançamento, a dupla função
22 LACOMBE, Américo Masset. Obrigação tributária. 1. ed. São Paulo: RT, 1977, p. 41-42. 23 LEÃES. L. G. Paes de Barros. Obrigação tributária. 1. ed. São Paulo: Bushatsky, 1971,
p. 36. A questão é abordada, também, por: JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva indireta. 1. ed. Belém: Cejup, 1986, p. 53-61.
27
de declarar o prévio nascimento da obrigação tributária por ocorrência do fato gerador, e, mediante essa constatação, a de constituir a correspondente relação de responsabilidade e eventuais relações acessórias” (grifamos)
Conceber que o vendedor de mercadorias e serviços possa ser considerado
como “mandatário” do sujeito ativo é admitir que o sujeito passivo da
obrigação (contribuinte ou responsável) é o adquirente dos referidos bens.
A prosperar tal tese, o vendedor, em tais circunstâncias, seria um
responsável tributário, quando – na verdade – a lei diz que ele é o
contribuinte e devedor.
O Estado tem pretensão contra o sujeito passivo eleito pela lei como sendo
aquele que deve satisfazer a obrigação tributária. No ICMS, salvo
disposição legal em contrário, o sujeito que deve o tributo é o vendedor ou
prestador do serviço. Ele, o vendedor ou prestador, deve cumprir a
obrigação principal e as obrigações acessórias. AMÍLCAR DE ARAÚJO
FALCÃO24 ensina:
“Assim sendo, todo aquele que se vir investido, por força da lei, na obrigação de pagar um tributo, automaticamente adquire o status de sujeito passivo tributário e, como tal, lhe incumbirão todos os deveres e lhe serão concedidos todos os direitos inerentes à relação tributária. Cabe-lhe, pois, prestar o tributo na forma e prazo regulares, como lhe cabem, ademais, todos os deveres acessórios, de fazer declaração, para lançamento, de dar informações etc.” (grifamos)
Se o valor do ICMS incidente sobre a venda de mercadorias ou serviços
não constitui receita do vendedor ou prestador, então teríamos uma
24 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Substituo legal tributário. Revista de Direito Público nº 8. São Paulo: RT, 1969, p. 44-45.
28
esdrúxula situação em que a incidência da norma jurídica tributária
sobre o fato mencionado na hipótese normativa estabeleceria uma relação
jurídica trilateral, tendo – de um lado – o adquirente, como devedor e – de
outro lado – como credores, o Estado e o vendedor ou prestador.
Esse teratológico arranjo, se admitido, faria ruir um princípio
fundamental do direito tributário, o da legalidade da designação do
sujeito passivo. Vejamos uma antiga lição de RUBENS GOMES DE
SOUSA25:
“É princípio incontroverso, em Direito Tributário, o de que o fisco é terceiro em relação às convenções particulares sujeitas à tributação; uma das conseqüências desse princípio é a de que o fisco exige o tributo da pessoa designada pela lei como obrigada ao seu pagamento, ignorando as convenções particulares porventura tendentes a deslocar a incidência daquela pessoa para outra, operando tais convenções exclusivamente entre as partes. O princípio pode portanto ser sintetizado dizendo-se que o fisco só toma conhecimento do contribuinte legal, isto é, da pessoa expressamente designada pela lei como obrigada ao pagamento do tributo.” (grifamos)
Ora, uma relação jurídica trilateral como a acima cogitada é admissível
unicamente em tese: na prática, ela é impossível em razão do caráter não-
cumulativo do ICMS, de onde emerge que o montante do direito do
credor-Estado não corresponde ao valor ICMS incidente sobre a venda ou
sobre a prestação de serviços: de fato, o débito tributário (que tem como
contrapartida o crédito do Estado) é obtido pelo confronto entre débitos e
créditos em determinado período.
25 SOUSA, Rubens Gomes de. Impostos indiretos: restituição. Revista de Direito Administrativo nº 24. Rio de Janeiro: FGV, 1946, p. 40.
29
Imagine-se, por outro lado, os casos das vendas a consumidores finais que
não são identificados e adquirem bens e serviços mediante simples
“cupons”. O Estado, acaso fosse verdadeiramente credor do ICMS
incidente em tais circunstâncias, deveria ter condições de fiscalizar cada
operação, o que – convenhamos – não é praticável.
Porque é falsa a assertiva de que o Estado “fatura” o valor do ICMS é
que, havendo venda a prazo seguida de inadimplemento por parte do
devedor, o credor (vendedor ou prestador dos serviços) poderá adotar as
medidas necessárias à cobrança do preço e eventuais acréscimos sem
solicitar o concurso do Estado para que venha defender o “seu” crédito.
Ora, o Estado não tem pretensão (interesse processual) contra o
comprador porquanto não é parte na relação jurídica de compra e venda
ou de prestação de serviços. Nada obstante tudo isso, há o fato
incontroverso de que o vendedor não pode desincumbir-se da obrigação
legal de pagar o tributo devido sob o argumento de que o devedor é o
comprador.
II.3 O VENDEDOR NÃO É MERO DEPOSITÁRIO DO VALOR
DO ICMS INCIDENTE NA VENDA DE BENS E SERVIÇOS
Consoante já foi demonstrado, nas operações em que há incidência do
ICMS, a única relação jurídica de índole tributária existente é a que se
forma entre o Estado competente para arrecadar esse imposto e o
vendedor. Da relação jurídica que se estabelece entre vendedor e
comprador, o Estado não participa.
Pois bem, a configuração jurídica dessas duas relações jurídicas infirma a
tese de que o vendedor é “mero depositário” do valor do ICMS.
30
Depositário – de acordo com o Dicionário Houaiss26 da Língua Portuguesa
– é aquele que: “recebe a guarda de um depósito”. No ordenamento
jurídico brasileiro, a figura do depositário tem uma conformação jurídica
típica. Ele surge no contrato de depósito, referido no artigo 627 do Código
Civil Brasileiro, que tem o seguinte enunciado:
“Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.”
O artigo 629 do mesmo Código, por sua vez, estabelece que: “o
depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada
o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence”.
Se a lei tributária não indica um conceito para “depositário”, urge
considerar o que se contém em outro lugar do ordenamento jurídico:
afinal, há casos em que o ordenamento interpreta a si próprio. Bem a
propósito, vejamos a lição do Ministro CEZAR PELUSO, em voto
proferido quando do julgamento do RE n. 346.084:
“Quando o legislador, para responder a estratégias normativas, pretende adjudicar a algum velho termo, novo significado, diverso dos usuais, explicita-o mediante construção formal do seu conceito jurídico-normativo, sem prejuízo de fixar, em determinada província jurídica, conceito diferente do que usa noutra, o que pode bem ver-se ao art. 327 do Código Penal, que define “funcionário público” para efeitos criminais, e ao art. 2° da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/92), que atribui, para seus fins, análogo conceito à expressão “agente público”.
26 HOUAISS, Antonio et alli. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 942.
31
Quando não haja conceito jurídico expresso, tem o intérprete de se socorrer, para a re-construção semântica, dos instrumentos disponíveis no próprio sistema do direito positivo, ou nos diferentes corpos de linguagem”. (grifamos)
Na legislação tributária não há um conceito de depositário. Logo, o
recurso ao Código Civil é imperioso e adequado.
Na definição de M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, “o depósito
caracteriza-se em ter sido dada a coisa para ser guardada”27. Nesse tipo
depósito – denominado “voluntário” – bem se vê que o depositário é
aquele que recebe algo vindo do depositante.
No caso presente, para que pudesse ser caracterizada a figura do
depósito, seria necessário admitir que o vendedor recebeu algo para
custodiar (o dinheiro na quantia representativa do ICMS incidente sobre
a venda de bens e serviços) e que este algo já havia sido integrado ao
patrimônio do Estado. Convém repisar e atentar para o fato de que o
valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços sequer é o
montante que o Estado pode arrecadar: é necessário ter presente que o
valor do “ICMS incidente” não é igual ao montante do “ICMS devido”,
em razão da necessária consideração dos créditos, em atenção ao
mandamento constitucional que consagra o regime não-cumulativo para o
ICMS.
De outra parte, não poderia ser cogitada a hipótese de haver, no caso, um
“depósito necessário”, assim considerado aquele em que “o depositante
procede em cumprimento de determinação de lei”28. O elemento essencial
27 MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de. Contratos no direito civil brasileiro. v. 1. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 149.
28 ESPÍNOLA, Eduardo. Dos contratos nominados no direito civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1956, p. 329.
32
no contrato de depósito – voluntário ou necessário – é o dever de
custodiar. Vejamos a doutrina de PONTES DE MIRANDA29:
“No contrato de depósito, o elemento de custódia é assaz relevante, característico, pelo que se insere no conteúdo da relação jurídica e pela função que exerce. O escopo de custódia e de seguridade, que tem o depositante, faz nascer, da parte do depositário, o dever de custodiar”. (grifamos)
Ora, para que alguém adquira o dever de custodiar é necessário que
tenha recebido o objeto da custódia do depositante ou de alguém que o
represente. No caso, o Estado não faz depósito algum e o comprador
também não o faz. O vendedor não é representante do Estado na relação
jurídica de compra e venda (ou de prestação de serviços) e tampouco o
comprador o é. Este – o comprador – pode ser uma pessoa comum que
adquire bens num supermercado qualquer e que não tenha conhecimento
algum sobre tributação, ou pode estar localizado em outra unidade da
Federação, sem que o Estado arrecadador possa exercer sobre ele o poder
de fiscalização que é inerente ao poder de tributar.
Portanto, é um sofisma afirmar que há, neste caso, uma relação entre
depositante e depositário.
Bem por isso, a falta de pagamento do ICMS não pode ser considerada
uma forma de “apropriação indébita” prevista no artigo 168 do Código
Penal. Para caracterização do fato típico punível como apropriação
indébita – a lição é de JOSÉ PAULO DA COSTA JUNIOR30 – é
necessária a ocorrência de “dolosa apropriação de uma coisa alheia
29 MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de direito civil. v. 42. 1. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, p. 319.
30 COSTA JUNIOR, Paulo José. Comentários ao Código Penal. 7. ed, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 511.
33
recebida do proprietário”. O vendedor, no caso, nada recebe do Estado
porquanto este ainda não é proprietário de nada: haverá propriedade
somente quando este vier a receber o montante que a lhe garante que –
vale repisar – depende do cômputo dos créditos.
Bem se vê a falta de lastro jurídico para a tese que sustenta que há a
figura do depositário em relação ao ICMS incidente ou devido na venda
de bens e serviços. Devedor do ICMS é vendedor que, como já foi dito,
está obrigado a recolher o montante devido estipulado em lei e que, em
princípio, responde com seu patrimônio em caso de inadimplência. A
dívida tributária nasce do fato gerador e não de um negócio jurídico ou
imposição legal de realizar a custódia de algo que pertence a algum
terceiro.
II.4 O VALOR DO ICMS INCIDENTE SOBRE A VENDA DE
BENS E CONSTITUI CUSTO OU DESPESA
DO VENDEDOR OU PRESTADOR
Consoante exposto no item II.1, acima, o valor do ICMS incidente sobre a
venda de bens ou serviços integra o montante da receita bruta porquanto
faz parte indissociável do preço que é recebido pelo vendedor. Todavia,
esse mesmo valor – a despeito de integrar a receita bruta – constitui um
custo ou despesa da operação normal da sociedade.
Assim sendo, no direito positivo brasileiro, no Direito Societário e no
Direito Tributário, o ICMS incidente sobre venda de bens e serviços
recebe uma dupla qualificação jurídica. Em primeiro lugar, ele é receita
bruta, porquanto o valor respectivo faz parte do preço; a rigor, essa
decomposição é meramente cerebrina porquanto, na prática, existe um só
valor a ser considerado, o do preço da mercadoria. Esse preço é o que
34
constará – eventualmente – da duplicata a ser emitida nos termos da lei
que rege a circulação deste documento. Em segundo lugar, o ICMS
incidente sobre tais operações é uma espécie de custo (sentido lato)
qualificável como “despesa” da sociedade empresária.
O Direito Societário, na parte que trata das regras sobre contabilidade,
explica esse fenômeno. Afinal, o processo de qualificação dos fatos
contábeis leva em consideração a relação jurídica subjacente. Assim, para
fins contabilísticos, uma venda representa uma “receita” e em relação a
ela, os encargos de produção ou venda representam custos ou despesas
inerentes. Essa inerência decorre da aplicação do princípio contábil
universalmente aceito da “correlação entre receitas e despesas”, que
adentrou a ordem jurídica brasileira por intermédio do parágrafo 1º do
artigo 187 da Lei nº 6.404/76:
“§ 1º Na determinação do resultado do exercício serão computados:
a) as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda; e
b) os custos, despesas, encargos e perdas, pagos ou incorridos, correspondentes a essas receitas e rendimentos”.
Para os Professores da Universidade de São Paulo, IUDÍCIBUS,
MARTINS e GELBCKE31, o princípio que dá arrimo a esse mandamento
legal impõe o de considerar que: “toda despesa diretamente delineável
com as receitas reconhecidas em determinado período, com as mesmas
receitas deverá ser confrontada”.
31 IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; e GELBCKE, Ernesto Rubens. Manual de contabilidade das sociedades por ações. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 45.
35
O valor do ICMS incidente sobre vendas e prestações de serviços é um
custo latu sensu da operação da empresa. De acordo com a acatada
doutrina de JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA32, custo, em sentido
amplo, é:
“Sacrifício, privação ou perda de valor financeiro sofrido pela pessoa como meio ou requisito para alcançar objetivo”.
O Direito da Contabilidade (Direito Societário, na parte pertinente às
normas sobre demonstrações contábeis) o vocábulo “custo” é adotado em
acepção menos lata, para fazer referência aos gastos vinculados à
produção de bens ou serviços. Neste, contexto, a definição oferecida JOSÉ
LUIZ BULHÕES PEDREIRA33, é a seguinte:
“Custo dos bens e serviços vendidos é o montante de capital financeiro aplicado pela pessoa jurídica para adquirir ou produzir os bens ou serviços cuja venda gerou a receita bruta”.
Releva sublinhar que custo e despesa são espécies de reduções
patrimoniais que afetam o rédito patrimonial (lucros e perdas) em
momentos distintos, de acordo com a lição de RICARDO MARIZ DE
OLIVEIRA34:
“Ambos os gastos, sejam custos, sejam despesas, oneram a conta de lucros e perdas, apenas que em circunstâncias e momentos diversos. Enquanto as despesas são debitadas a lucros e
32 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Finanças e demonstrações financeiras da companhia. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 459.
33 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda: pessoas jurídicas. v.1 1. ed. Rio de Janeiro: Justec, 1979, p. 189.
34 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Fundamentos do imposto de renda. 1. ed. São Paulo: RT, 1977, p. 165.
36
perdas tão logo sejam incorridas, os custos somente afetam os resultados da empresa à medida em que os bens que representam sejam alienados, perdidos, depreciados, amortizados ou exauridos”. (grifamos)
No livro “Imposto de Renda das Empresas”, apresento os traços
distintivos entre custo e despesas nos seguintes termos35:
“As despesas, via de regra, fluem direta e imediatamente para o resultado no momento em os bens, serviços e utilidades correspondentes são adquiridos ou consumidos. Os custos, por outro lado, são agregados em contas de ativo (estoques ou serviços em andamento) e só afetam os resultados no momento em que a empresa obtém receita pela venda das mercadorias ou pela prestação de serviços”.
O valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços constitui –
num primeiro momento – receita porque integra o montante do preço e
do valor financeiro a ser recebido do comprador ou tomador dos serviços,
e, num segundo momento – uma despesa operacional. De fato, o ICMS é
imposto que incide sobre a “circulação” de bens ou serviços, que é etapa
posterior à produção dos bens ou serviços.
Vejamos, uma vez mais, a doutrina de JOSÉ LUIZ BULHÕES
PEDREIRA36 acerca do conceito jurídico-contábil de despesa operacional:
“Despesa é a mutação patrimonial que importa redução do patrimônio líquido sem ter por contrapartida aquisição de novo direito ou o
35 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Imposto de renda das empresas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 142.
36 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda: pessoas jurídicas. v.1 1. ed. Rio de Janeiro: Justec, 1979, p. 196.
37
aumento de valor de direito existente. Essa característica a distingue do custo de aquisição ou produção, que também é mutação patrimonial que importa redução do patrimônio líquido mas tem por contrapartida acréscimo de valores ativos”.
Graficamente, o valor do ICMS (assim como são os demais tributos
incidentes sobre as vendas) deve ser apresentado nas demonstrações
contábeis como “dedução da receita bruta” no pressuposto de que eles
integram o valor desta: só se deduz – para fins de demonstração – algo
que está contido no montante. O inciso I do artigo 187 da Lei 6.404/76, ao
tratar da confecção da “demonstração do resultado” dispõe que:
“Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará:
I – a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos”.
Ao oferecer comentários analíticos acerca desse preceito legal, JOSÉ
LUIZ BULHÕES PEDREIRA37 explica:
“RECEITA BRUTA, DEDUÇÕES DA RECEITA E RECEITA LÍQUIDA – A quantidade total de valor financeiro adquirido pela sociedade como receita é designada “receita bruta”, para distingui-la do valor que remanesce depois de deduzidos os sacrifícios financeiros que a sociedade suporta para ganhá-la e que são tratados como “deduções da receita bruta”, e não custos.
São exemplos dessas deduções as vendas canceladas, os créditos originários de vendas
37 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Finanças e demonstrações financeiras da companhia. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 459.
38
que não são pagos, os custos com garantias ou serviços incorridos depois de completadas as vendas, e os tributos que incidem em razão da venda ou prestação de serviços”. (grifamos)
No consagrado livro “Manual de Contabilidade das Sociedades por
Ações”, IUDÍCIBUS, MARTINS e GELBCKE38 ensinam:
“Os impostos incidentes sobre vendas devem ser deduzidos da receita bruta de vendas. A receita bruta deve ser registrada pelos valores totais, incluindo os impostos sobre ela incidentes (exceto, como já mencionado, o Imposto sobre Produtos Industrializados), os quais são assim registrados em contas devedoras, apresentadas como redução das vendas brutas na Demonstração do Resultado do Exercício”. (grifamos)
Em igual sentido, AMÉRICO OSWALDO CAMPIGLIA39 ao discorrer
sobre o sentido e o alcance da regra do artigo 187 da Lei nº 6.404/76,
ensina:
“A receita bruta das vendas e serviços constitui o ponto de partida da demonstração, cujo montante será deduzido dos abatimentos, descontos e impostos incidentes sobre a venda, sendo a diferença “a receita líquida”. A obrigatoriedade da indicação da “receita bruta” veio atender ao princípio do full disclosure, dado que, anteriormente, fazia-se constar da demonstração de lucros e perdas somente o lucro bruto das vendas isto é, a diferença entre a receita bruta e o custo das vendas e serviços, seguindo o vezo difundido de que “o segredo é a alma dos negócios”.
38 IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; e GELBCKE, Ernesto Rubens. Manual de contabilidade das sociedades por ações. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 364.
39 CAMPIGLIA, Américo Oswaldo. Comentários à lei das s.a. v.5 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 185.
39
Manda a lei que, da receita bruta, se deduzam os abatimentos e os descontos concedidos aos compradores bem como os impostos incidentes sobre a venda ou serviços (ICM ou ISS), e os impostos faturados (IPI), evidenciando-se, pela diferença, o valor da venda líquida, dessa forma se enseja ao acionista ou analista o conhecimento de todos os elementos que entram na composição da receita básica da campanha”. (grifamos)
Um singelo exemplo numérico ilustra a fórmula legal de demonstração da
receita bruta e da receita líquida. Supondo uma venda no valor de R$
200,00 e ICMS calculado pela alíquota de 18%, teríamos:
RECEITA BRUTA R$ 200,00
(-) Impostos incidentes sobre vendas R$ 36,00
RECEITA LÍQUIDA R$ 164,00
A representação contábil como “dedução da receita bruta” confirma o
caráter jurídico-contábil do valor do ICMS incidente sobre vendas como
um sacrifício financeiro necessário ao regular funcionamento da
sociedade empresária. Trata-se, portanto, de uma despesa necessária à
manutenção da atividade produtora das receitas, como também são os gastos
com aquisição de outros insumos (capital financeiro e físico (bens e
mercadorias) e trabalho). Essa despesa é paga a terceiro do mesmo modo
que um salário é pago a um operário: a diferença está na “moeda” de
pagamento, porquanto o ICMS é pago parte em dinheiro e parte em
créditos.
Releva notar que a despesa relativa ao ICMS não traz – de fato –
qualquer contrapartida para o sujeito passivo. Não é por outra razão que
o artigo 16 do Código Tributário Nacional estabelece que: “Imposto é o
40
tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente
de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.
Portanto, cai no vazio a tese de que o ICMS não pode constituir base de
cálculo das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS porque o referido
valor não representa benefício algum para o vendedor.
Diante do exposto, claro está que o valor do ICMS incidente sobre venda
de bens e serviços: (a) integra o valor da receita para todos os fins,
inclusive para fins contábeis; e, (b) ao mesmo tempo, constitui despesa
operacional do sujeito passivo, do mesmo modo que são todas as demais
despesas inerentes ao normal funcionamento da empresa.
41
II.5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO VEDA A COBRANÇA DE
TRIBUTO SOBRE TRIBUTO
Uma importante objeção à exigência das contribuições ao PIS-PASEP
sobre o valor do ICMS sobre venda de bens e serviços tem em mira a
eventual inconstitucionalidade da incidência de imposto sobre imposto.
Afinal, incidindo sobre a receita, as contribuições ao PIS-PASEP e
COFINS alcançam o valor do ICMS que é parte do preço das
mercadorias ou serviços.
A Constituição Federal, ao outorgar o poder de tributar entre União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, o faz – salvo exceções – com base
em fatos com determinado conteúdo material; a lei, por sua vez, deve
estabelecer uma base de cálculo que mantenha estrita afinidade com
aquele conteúdo material.
A grandeza representativa da base de cálculo pode ser afetada por valores
relativos a tributos, de modo que há tributo sobre tributo. Assim, pode
ocorrer – e com freqüência ocorre – que certos fatos tenham uma
compleição econômica tal a sua representação em moeda seja
determinada por conteúdos econômicos que refletem “custos” de
operações anteriores que carregam tributos que incidiram anteriormente.
No ordenamento jurídico brasileiro, esse é um problema sério que se
agrava, em certas circunstâncias, nos casos em que um mesmo fato é
alcançado por mais de um tributo (bis in idem).
Essa forma de tributação existe em outros países desde que foi declarada
falência dos sistemas tributários baseados na quimera do tributo único.
42
Discorrendo acerca dos inconvenientes do tributo único, ALBERTO
DEODATO40 explica:
“Num imposto único, a soma pedida pelo Estado seria enorme. O contribuinte trataria de fugir ao encargo, com facilidade: - transformação de bens, fuga do capital para o estrangeiro. Mais: o imposto, sendo pesado, seria mal recebido. Daí a necessidade de execuções, que tornariam governos impopulares. Jèze bem diz: “imposto único, imposto iníquo”.
Em regra, – salvo nos casos em que a Constituição Federal é omissa a
respeito do critério material possível de um tributo – as normas
tributárias alcançam fatos com significação econômica de acordo com o
critério material traçado na norma constitucional. A eleição desse critério
material decorre de um juízo de valor realizado pelo Poder Constituinte
no âmbito da política tributária: assim, se as escolhas implicam a
incidência de tributo sobre tributo impõe-se reconhecer que não ofende a
Constituição Federal – salvo nos casos em que ela mesma proíbe – a
incidência tributária sobre perspectiva econômica que esteja afetada pela
agregação de outros tributos.
Nesta perspectiva, parece intuitivo – por exemplo – que a incidência do
IPI sobre a venda de produtos fabricados abrange toda a carga de
tributos não recuperáveis que incidiram nas etapas anteriores, como os
tributos sobre folha de salários, aquisição de capital financeiro etc.
Bem a propósito, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu
não haver burla à Constituição o fato de haver incidência de tributo sobre
tributo: de fato, quando o julgamento do RE nº 212.209-3, aquele 40 DEODATO, Alberto. Manual de ciência das finanças. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1967,
p. 122.
43
Tribunal decidiu pela validade constitucional da incidência do ICMS
sobre o valor do próprio imposto (no chamado “cálculo por dentro”). No
bojo da referida decisão o Ministro ILMAR GALVÃO proferiu alentado
voto no qual destaca a questão da validade constitucional da incidência de
tributo sobre tributo. Vejamos:
“Aliás, como assinalou e emitente Ministro Moreira Alves, o princípio da não-cumulatividade aplicável ao ICMS não tem outro sentido senão e justamente impedir a tributação em cascata, é um meio de se compensar o que se pagou pelo mesmo tributo anteriormente. Por meio da compensação, anula-se praticamente a incidência do ICMS sobre o tributo que integra o preço da mercadoria relativamente a operações anteriores. Se, na verdade, não pudesse haver tributo embutido na base de cálculo de um outro tributo, então não teríamos que considerar apenas o ICMS, mas todos os outros. O problema se mostra relativamente à contribuição para o IAA e para IBC, não havendo como afastar essas contribuições da base de cálculo do ICMS. Por que então, o problema em torno do ICMS sobre ICMS e não do ICMS sobre o IPI, sobre as contribuições (COFINS, PIS)? Na verdade, o preço da mercadoria, que serve de base de cálculo ao ICMS, é formado de uma série de fatores: o custo; as despesas com aluguel, empregados, energia elétrica; o lucro; e, obviamente, o imposto pago anteriormente. O problema, diria que é até de ordem pragmática, em face da dificuldade, quase incontornável, de eliminar-se da base de cálculo de um tributo tudo o que decorreu de tributação”. (grifamos)
44
O direito tributário – consoante antigo ensinamento de CASTRO
NUNES41 e de GERALDO ATALIBA42 –, é direito de superposição, de
modo que as normas tributárias impositivas tomam fatos da vida
econômica e que já foram considerados por outras normas, sem
necessariamente determinar o expurgo de eventuais repercussões fiscais
decorrentes de operações anteriores ao fato tributável, causadas pelo
mesmo tributo ou por outro, de competência de outro ente federativo
(tributação em cascata e bitributação). Uma das fórmulas clássicas para
que seja evitada a incidência em cascata é a imposição do regime de não-
cumulatividade que, no ordenamento jurídico brasileiro, é exigível apenas
para alguns tributos. No plano do direito tributário internacional são
conhecidas várias figuras que visam a eliminar os inconvenientes da
pluritributação, como são: a isenção, o tax credit, subdividido em tax
sparing e matching credit.
A repercussão econômica dos tributos é fato que a ordem jurídica positiva
não desconhece. Assim, temos, por exemplo, o enunciado do parágrafo 5º
do artigo 65 da Lei nº 8.666/93, que prevê a possibilidade de revisão dos
preços contratados nas relações negociais das quais participa o Poder
Público. O preceito da Lei das Licitações dispõe que:
“§ 5o Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso”.
41 NUNES, Castro. Problemas da partilha tributária. Revista de direito administrativo nº 1. v. 1, fascículo 1. Rio de Janeiro: DASP, 1945, p. 9.
42 ATALIBA, Geraldo. Mesa de debates: direito penal tributário. Revista de direito tributário nº 64. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 29.
45
Eis uma norma que consagra uma cláusula rebus sic stantibus em razão
do pressuposto de que os tributos podem interferir no valor dos bens
econômicos. A repercussão dos tributos – em certas circunstâncias – não
pode ser desconsiderada sob pena de quebra do equilíbrio financeiro dos
contratos firmados pelo poder público, que é uma garantia que está
ancorada em diversos princípios constitucionais, como exposto por CAIO
TÁCITO43.
Ademais, parece claro que – a despeito da inexistência de proibição
constitucional – a incidência tributo sobre tributo é inevitável no sistema
federativo brasileiro em que quatro pessoas de direito políticas detêm
parcelas do poder de tributar.
A escolha dos fatos geradores – da matéria tributável – é feita pelo Poder
Constituinte e nada indica que ele não tenha plena consciência de que
certos fatos tributáveis “carregam” valores relativos a outros tributos.
Quando quis evitar ou minorar os eventuais efeitos econômicos da
repercussão dos tributos no preço dos bens e serviços, o Poder
Constituinte erigiu o sistema da não-cumulatividade, mas limitou a sua
aplicação a alguns tributos.
Portanto, somente haveria óbice à exigência de tributo sobre tributo se
houve proibição constitucional expressa ou implícita. No caso, há um dado
a mais, que não pode ser relegado à irrelevância: as contribuições ao PIS-
PASEP e COFINS são típicos tributos indiretos, que são repassados para o
adquirente e assim sucessivamente até que chegue ao consumidor final que
suporta toda da carga tributária da cadeia de circulação entre a produção e o
consumo.
43 TÁCITO, Caio. Temas de direito público: estudos e pareceres. v. 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 255.
46
Em resumo, a exigência das contribuições sobre parcelas que embutem
outros tributos é admitida pela ordem constitucional, salvo nos casos em
que ela própria – a ordem constitucional – dispõe em sentido contrário.
III – DO CABIMENTO E DO JULGAMENTO
DA ADC 18
São várias as questões em torno do cabimento, do conhecimento e do
julgamento da ADC nº 18.
Além da comprovação da existência de controvérsia judicial relevante, a
jurisprudência da Suprema Corte rechaça a possibilidade de fiscalização
abstrata da constitucionalidade de norma revogada ou de norma
constitucional (parâmetro de controle) revogada. Deste modo, além do
requisito relativo à existência de controvérsia judicial relevante em torno
da norma questionada, é imprescindível que esta esteja em vigor
prospectivo e que a norma constitucional objeto do contraste esteja – de
igual modo – produzindo efeitos.
III.1 ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS DE CABIMENTO DA ADC
Uma primeira contestação é dirigida à própria existência da ADC, tendo
em vista que a matéria objeto da referida ADC já se encontra em
julgamento perante a Suprema Corte.
A Ação Declaratória de Constitucionalidade foi criada pela Emenda
Constitucional nº 3/93 como mais um mecanismo de fiscalização abstrata
da constitucionalidade de leis e atos normativos. Ao regulamentar a
aplicação do preceito constitucional que prevê este tipo de Ação Direta, a
Lei nº 9.868/99, dispõe, no inciso III do artigo 14, que a petição inicial da
47
ADC deve conter a indicação dos fatos necessários e suficientes para
demonstrar a “a existência de controvérsia judicial relevante sobre a
aplicação da disposição objeto da ação declaratória”.
Requisito essencial para o acolhimento da ADC é a existência – em
concreto – de um estado de incerteza sobre a legitimidade constitucional
da norma impugnada de modo a ensejar o surgimento de decisões
judiciais conflitantes (controvérsia judicial) de largo alcance social e
econômico. Antes mesmo do advento da Lei nº 9.868, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal já formulava tal exigência, consoante se lê do
voto do Ministro MOREIRA ALVES44, quando do julgamento da ADC nº
1, verbis:
“Visando a ação declaratória de constitucionalidade à preservação da presunção de constitucionalidade do ato normativo, é ínsito a essa ação, para caracterizar-se o interesse objetivo de agir por parte dos legitimados para propô-la, que preexista controvérsia que ponha em risco essa presunção, e, portanto, controvérsia judicial no exercício do controle difuso de constitucionalidade, por ser esta que caracteriza inequivocamente esse risco. Dessa controvérsia, que deverá ser demonstrada na inicial, afluem, inclusive, os argumentos pró e contra a constitucionalidade, ou não, do ato normativo em causa, possibilitando a esta Corte o conhecimento deles e de como têm sido eles apreciados judicialmente”. (Grifamos)
Sob o aspecto instrumental, a ADC visa a eliminar a insegurança jurídica.
A segurança jurídica é uma idéia imanente à noção e à finalidade do
direito, considerado como instituição erigida para arbitrar relações entre
44 Voto publicado na Revista de Direito Administrativo nº 201. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 135.
48
sujeitos. De acordo com THEOPHILO CAVALCANTI FILHO45, o direito
constitui, por sua própria natureza, uma garantia de ordem social e “esse
papel ele principalmente desempenha através da certeza e segurança que
oferece”.
Vista desta perspectiva, a segurança jurídica diz respeito à função
primordial do direito, que é a orientação de condutas e que, portanto,
exige que as regras de convivência social e do jogo econômico sejam
editadas e conhecidas com antecedência, de modo a permitir que as
pessoas possam saber o que devem fazer ou não fazer, o que podem fazer
ou deixar de fazer, ou o que não devem fazer ou deixar de fazer, e, ainda,
quais as conseqüências respectivas. A segurança jurídica traduz a idéia de
certeza, que constitui um valor de grande importância para vida em
sociedade, segundo a sempre respeitada doutrina de MIGUEL REALE46:
“O mínimo de fundamento axiológico, exigido pela sociedade em qualquer circunstância, postula, também, a certeza do Direito, põe e exige um Direito vigente. O princípio da certeza preside – em díade indissolúvel com o da segurança – todo o evolver histórico da vigência do Direito, e, por via de conseqüência, a toda história do Direito Positivo”. (grifamos)
É certo que essa previsibilidade do direito positivo é relativa porque ele é
um objeto em constante mutação e plasmado em linguagem onde
45 CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito. 1. ed. São Paulo: RT, 1964, p. 75-76.
46 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 601. Em outra obra (Teoria tridimensional do direito: situação atual. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 87), o citado autor observa: “certeza e segurança, embora não se confundam, são valores que imediatamente se implicam, pois, de maneira mediata, todos os valores se correlacionam, segundo o princípio da “solidariedade axiológica” bem posto em relevo por Nicolai Hartmannº Prefiro dizer que certeza e segurança formam uma “díade” inseparável, visto como, se é verdade que quanto mais o direito se torna certo, mais gera condições de segurança”. No livro O direito como experiência, o citado autor afirma: “Não se compreende o direito, hoje em dia, sem um mínimo de legislação escrita, de certeza, de tipificação da conduta e de previsibilidade genérica (p. 273)”.
49
predominam termos vagos e ambíguos e, além disso, não consegue
abarcar todas as possibilidades de condutas na vida em sociedade.
Todavia, a exigência de previsibilidade é um bloqueio para que as
incertezas que são imanentes ao direito não passem do tolerável ou
razoável ou para não permitir que ela (a incerteza) seja utilizada como
justificativa para legitimar o arbítrio.
Sem um mínimo de segurança jurídica a liberdade e os direitos
fundamentais nada valem.
No Estado de Direito, plasmado pelo pressuposto de que o cidadão além
deveres, tem direitos privados e públicos47, a idéia de a segurança jurídica
aponta, indica, ou impõe, a realização das liberdades e, ao mesmo tempo,
funda o sistema de valores constitucionais baseados no respeito aos
direitos fundamentais:48 afinal, a ausência de segurança jurídica significa
a desconsideração da liberdade como valor fundamental. A esse respeito
vejamos a lição de JOHN RAWLS49:
“Um sistema jurídico é uma ordem coercitiva de normas públicas destinadas a pessoas racionais, com o propósito de regular sua conduta e prover a estrutura da cooperação social. Quando essas regras são justas, elas estabelecem uma base para expectativas legítimas. Constituem as bases que possibilitam que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem, com razão, quando não vêem suas expectativas satisfeitas. Se as bases dessas reivindicações forem incertas, incertos também serão os limites das liberdades dos homens”.
47 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 61. 48 LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Seguridad jurídica. El derecho y la justicia. 1. ed.
Madri: Trotta, 1996, p. 483.49 RAWLS, Johnº Uma teoria da justiça. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 257-
258.
50
É isto, sem certeza não há liberdade. De acordo com PEDRO EIRÓ50 dois
elementos caracterizam a segurança jurídica: a previsibilidade e a
estabilidade: “a cada um deve ser assegurado o conhecimento antecipado
das conseqüências jurídicas que poderão resultar a prática de um
determinado ato jurídico”; assim, “a previsibilidade implica não só a
possibilidade de conhecimento e apreensão das normas jurídicas, mas
também a suscetibilidade de prefigurar os efeitos jurídicos que irão
resultar da prática de determinado ato jurídico”.
O cabimento da ADC nº 18, segundo me parece, atende perfeitamente este
primeiro requisito. De fato, com a continuidade do julgamento do RE nº
240.785, e a sinalização de que aquele Tribunal declararia a invalidade da
norma que determina – por interpretação a contrario sensu – a incidência
das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS sobre a parcela do ICMS
incidente nas operações de venda de mercadorias e prestações de serviços,
instaurou-se um estado de insegurança jurídica, de modo que a lei votada
pelo Congresso Nacional passou a sofrer sério e grave abalo na sua
presunção de constitucionalidade, e, por isso, sobrevieram decisões
judiciais contrárias e favoráveis à tese da invalidade referida.
Não se pode deixar de levar em consideração que o ajuizamento da ADC
nº 18 visa a salvaguardar – também – a aplicação do princípio da
solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos
objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de
participação no custeio e diversidade da base de financiamento da
seguridade social. A receita pública oriunda das contribuições ao PIS-
PASEP e COFINS está afeta à seguridade social onde os princípios da
solidariedade e do equilíbrio atuarial imperam, consoante decidiu a
50 EIRÓ, Pedro. Noções elementares de direito. 1. ed. Lisboa: Verbo, 1997, p. 123-124.
51
Suprema Corte no julgamento da ADI 3120, sendo relator o Ministro
CEZAR PELUSO.
III.2 VIGÊNCIA ATUAL DA NORMA CONSTITUCIONAL ADOTADA
COMO PARÂMETRO DE CONTROLE
Contra o cabimento da ADC há uma outra contestação que diz respeito à
eventual revogação da norma constitucional que serve de parâmetro para
a realização do juízo de constitucionalidade. Cogita-se da hipótese de o
enunciado do inciso I, do artigo 195 da Constituição Federal ter sido
revogado em razão da modificação introduzida no seu texto pela Emenda
Constitucional 20/98. Se houve – efetivamente – a revogação, o parâmetro
de controle utilizado na ADC seria imprestável em face da jurisprudência
da Suprema Corte firmada quando do julgamento da Representação nº
1.016-SP, em cuja ementa se lê:
“É incabível a representação com o fito de obter-se declaração de inconstitucionalidade de lei em abstrato em face da Constituição já revogada ao tempo da propositura dessa ação.”
Uma análise acurada e comparativa dos textos constitucionais em questão
revela que não houve a cogitada revogação.
Pois bem, de acordo com a redação original do inciso I do artigo 195 da
Constituição Federal, a União estava autorizada a instituir contribuição
social:
“I. dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro.”
52
Com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, o inciso I do artigo
195 foi desdobrado em três alíneas – “a”; “b” e, “c” – e passou a ter o
seguinte enunciado:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro.
O preceito constitucional em questão trouxe novidade em dois aspectos.
Em primeiro lugar, alargou o rol de potenciais contribuintes; antes eram
contribuintes os empregadores e os empregados (referência à figura da
“folha de salários”) e desde então passaram a ser: o empregador; a
empresa; a entidade equiparada à empresa; os empregados; e, os
prestadores de serviços a qualquer título, mesmo sem vínculo
empregatício. Em segundo lugar, alargou o campo material de possível
incidência da contribuição social para incluir, além da folha de salários,
“os demais rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa
física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”; e, para
incluir a possibilidade de a lei instituir contribuições calculadas sobre o
montante da receita. Nenhuma nova regra foi instituída em relação à
incidência sobre o faturamento.
A norma constitucional em questão – o inciso I do artigo 195 da
Constituição Federal – não sofreu modificação o advento da Emenda
Constitucional nº 20/98 na parte alusiva à matéria em debate na ADC nº
18, qual seja, a questão relativa à incidência das contribuições ao PIS-
53
PASEP e COFINS sobre o faturamento, única circunstância em que cabe
a discussão sobre a eventual incidência ou não sobre o valor do ICMS.
Portanto, a referida Emenda Constitucional, que foi objeto de profunda
análise do Plenário do Supremo Tribunal Federal ocasião do julgamento
do RE 346.084, não revogou o inciso I do artigo 195 da Constituição
Federal: a Emenda modificou apenas e tão somente alguns aspectos do
campo material de possível incidência da contribuição social a ser
instituída com fundamento de validade naquele preceito constitucional.
Perceba-se que o “faturamento”, como hipótese de incidência tributária,
está explicitamente mencionado em ambos os enunciados: antes da
Emenda e depois dela. De fato, ambas as normas permitem que a União
institua contribuição social sobre o “faturamento” ou sobre a “receita”,
que vem a ser gênero, do qual as receitas decorrentes do faturamento são
espécies.
Portanto, quanto a esta matéria (base de cálculo) a norma do inciso I do
artigo 195 da Constituição Federal não foi modificada, de modo que não
existem duas normas; a revogada e a que remanesce depois da
modificação.
A modificação introduzida pela Emenda Constitucional nº 20/98 não
importou ab-rogação da norma: todavia, se admitíssemos – para
argumentar – que houve tal revogação, chegaríamos à conclusão de que
ocorreu simples derrogação quanto a alguns elementos da norma. De
acordo com CAIO MÁRIO DA SILVA51, há grande diferença entre uma
figura e outra:
51 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v.1. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 80.
54
“A revogação pode ser total ou parcial, por atingir a totalidade ou apenas uma parte de seus dispositivos. À revogação total dá-se o nome de ab-rogação; a parcial chama-se derrogação, apagando a primeira a eficácia completa da lei anterior, e atingindo a segunda apenas uma parte dela, enquanto deixa íntegras as disposições não alcançadas.” (grifamos)
O artigo 3º, parágrafo 2º, I, da Lei nº 9.718/98 foi editado com base no
artigo 195, inciso I, da Constituição Federal e nele encontra fundamento
de validade, seja em qual for o texto considerado. Portanto, o parâmetro
constitucional – a despeito da mutação ocorrida em seu enunciado –
permanece incólume e fazendo parte da ordem constitucional presente e,
portanto, suscetível de embasar e viabilizar o exame de lei com base nele
editada no regime de fiscalização abstrata da constitucionalidade.
III.3 VIGÊNCIA ATUAL DA NORMA DA LEI ORDINÁRIA SUJEITA AO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A jurisprudência da Suprema Corte tem rechaçado a pertinência do
controle concentrado de constitucionalidade de norma infraconstitucional
já revogada (Rp. 1.034).
No caso, questiona-se o fato a possível revogação da norma da lei
ordinária posta em confronto com a Constituição Federal em razão do
advento – após a sua edição – de normas que instituíram o denominado
“regime não-cumulativo” para as contribuições ao PIS-PASEP e
COFINS. Parece claro, no entanto, que a norma do artigo 3º, parágrafo
2º, I, da Lei nº 9.718/98 não foi revogada com o advento do regime da não-
cumulatividade das contribuições ao PIS-PASEP, introduzido na ordem
jurídica nacional por intermédio das Leis nº 10.637/02 e Lei 10.833/03.
55
Com efeito, o artigo 8º da Lei nº 10.637/02, prescreve que para um grupo
de contribuintes “permanecem sujeitas às normas da legislação da
contribuição para o PIS/Pasep, vigentes anteriormente a esta Lei, não se
lhes aplicando as disposições dos arts. 1o a 6º”. Igual mandamento é
encontrado no caput do artigo 10 da Lei nº 10.833/03.
Portanto, sob essa perspectiva, não há óbice algum para a tramitação e
julgamento da ADC nº 18. Afinal, a norma objeto do controle de
constitucionalidade continua a produzir efeitos gerais e alcança um
grande número de contribuintes haja vista que o regime da não-
cumulatividade não é obrigatório para um grupo de pessoas e um
determinado grupo de receitas.
III.4 PREFERÊNCIA NO JULGAMENTO DA ADC 18
A matéria objeto da ADC nº 18 é – do ponto de vista material – a mesma
que está sendo discutida no RE 240.785-MG, cujo julgamento já foi
iniciado e interrompido por pedido de vista.
A despeito da anterioridade do RE, parece não haver óbice à apreciação
da ADC, tendo em vista a possibilidade de pedido e deferimento de
preferência para julgamento, previsto no Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal, em razão do pedido cautelar nela contido. De fato, o
artigo 130 do RISTF dispõe:
“Art. 130. Poderá ser deferida a preferência, a requerimento do Procurador-Geral, de julgamento relativo a processo em que houver medida cautelar”.
56
Nem mesmo os processos conexos devem ser julgamentos conjuntamente.
O enunciado do caput do artigo 126 do RISTF diz textualmente:
“Art. 126. Os processos conexos poderão ser objeto de um só julgamento.”
Nada impede, no entanto, que ambos os casos sejam julgados
conjuntamente em face do disposto no artigo 127 do RISTF, segundo o
qual: “podem ser julgados conjuntamente os processos que versarem a
mesma questão jurídica, ainda que apresentem peculiaridades”. A
possibilidade de haver o julgamento conjunto independe da ocorrência de
conexão tal como definida no artigo 103 do Código de Processo Civil, isto
porque a hipótese de conexão está prevista no artigo 126.
III.5 DA EFICÁCIA PROSPECTIVA DA DECISÃO PROFERIDA
NA ADC 18
Na Petição Inicial da ADC nº 18, o autor requer a declaração de
constitucionalidade de preceito de lei ordinária vigente e,
subsidiariamente – na hipótese de não acolhimento do pleito em favor da
constitucionalidade da norma – requer a concessão de eficácia
prospectiva da decisão, com fulcro no artigo 27 da Lei nº 9.868/98, que
tem o seguinte enunciado:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
57
Uma vez demonstrados os pressupostos de cabimento da medida e sendo,
eventualmente, declarada a inconstitucionalidade da norma sob contraste,
parece ser razoável cogitar que a decisão deve adotar – como marco
inicial da supressão da lei – a data de 1º de janeiro do ano seguinte ao da
declaração, em razão dos efeitos financeiros da mesma sobre o orçamento
da União aprovado pelo Congresso Nacional. Ora, o Orçamento é
instituto de caráter materialmente constitucional, de modo que – diz
RICARDO LOBO TORRES52 –: “todas as decisões fundamentais das
políticas públicas passam necessariamente pelo orçamento”. E o douto
Professor acrescenta:
“É materialmente constitucional, posto que essencial ao Estado de Direito, que se constitui na via tributária e na dos gastos públicos. A disciplina básica da receita e da despesa estabelece-a a Constituição, que deve estampar os princípios e as normas que tratem simultaneamente de ambas as faces da mesma moeda – as entradas e os gastos públicos”.
Ademais, a matéria constitucional em debate na ADC 18 diz respeito a
norma vigente há quase quarenta anos. De fato, a tributação sobre o
faturamento existe na ordem jurídica brasileira desde o advento da Lei
Complementar nº 7/70. As questões jurídicas em torno do tema já
passaram pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça que fez editar duas
Súmulas, as de nº 68 e 94. Portanto, a inconstitucionalidade – se vier a ser
declarada pela Suprema Corte – não é daquelas que possam ser
qualificadas como “clamorosas”: antes, trata-se de questão que está na
“moldura”, para utilizar o vocábulo adotado por HANS KELSEN ao
52 TORRES, Ricardo Lobo. O orçamento na constituição. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 1-2, passim.
58
fazer menção às situações em que a decisão de um mesmo fato pode
ensejar decisões em sentidos opostos. Leiamos HANS KELSEN53 :
“O direito a aplicar, em todas essas hipóteses, forma uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”.
Essa situação – vista de uma perspectiva histórica – revela que a cobrança
das contribuições ao PIS-PASEP e COFINS sobre a parcela do ICMS que
constitui parte indissociável do preço não ofende a consciência jurídica e
não cria problemas de ordem econômica; afinal, a carga tributária é
efetivamente suportada pelo consumidor final dos bens ou serviços.
A inexistência – no caso – de flagrante fraude à Constituição, revela a
presença da boa-fé subjetiva, na medida em que as leis vêm sendo
aplicadas há longo tempo e com o placet do respeitável Superior Tribunal
de Justiça. O caso enseja, portanto, a consideração à vista do princípio
fundamental que consagra a boa-fé, consoante lição deixada pelo ilustre
Ministro LEITÃO DE ABREU, em voto proferido por ocasião do
julgamento do RE nº 79.343, aqui tomada a contrario sensu:
“A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo ato, e fundado nele, operou na presunção de
53 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Batista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 390.
59
que estava procedendo amparo do direito objetivo”.
A boa-fé é um princípio geral de direito que exclui toda e qualquer
ilicitude porque parte do pressuposto de que o Direito não é regido por
mores matemáticos. Assim, para FRANCESCO CARNELUTTI, age de
boa-fé aquele demonstra “vontade conforme ao direito”.54 Ter vontade
conforme o direito é agir no pressuposto de que a ação ou omissão
adotada em cada caso é lícita, mesmo que existam dúvidas razoáveis
acerca da licitude: afinal, o direito não é uma ciência exata.
Se a norma objeto do controle de constitucionalidade na ADC nº 18 vier a
ser declarada inconstitucional com efeitos ex tunc, os prejuízos para a
União e para a sociedade serão imensos na medida em que aquela deixará
de arrecadar receita prevista no orçamento e deverá eventualmente
suportar o encargo econômico de devolver parte do que recebera, sem que
para isto haja previsão orçamentária.
Neste contexto, calham como luva, as palavras da douta Ministra
CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA55: “A produção de efeitos ex nunc,
ou até mesmo em momento futuro da declaração de inconstitucionalidade
pelo Supremo Tribunal Federal, responde, exatamente, à ânsia de que
seja integralmente cumprido o quanto determinado no art. 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil, segundo o qual “art. 5º - na aplicação da lei, o
juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum”.
IV. DAS CONCLUSÕES E DAS RESPOSTAS AOS
54 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. 1. ed. São Paulo: Lejus, 1999, p. 432.55 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício de
inconstitucionalidade. Em: Constituição e segurança jurídica: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 185.
60
QUESITOS
Feitas as anteriores considerações, é possível alinhar oito proposições
conclusivas acerca dos temas submetidos à nossa apreciação, a saber:
(i) O valor do ICMS incidente na venda de bens e serviços constitui
parcela integrante e indissociável do preço e, em razão disto, compõe o
montante do faturamento (ou da receita bruta) para todos os fins,
inclusive comerciais. Integrando o faturamento ou a receita, este valor
pode – validamente – ser considerada na base de cálculo das contribuições
instituídas com fulcro no inciso I do artigo 195 da Constituição Federal;
(ii) O valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços – porque
integrante do preço – constitui receita em sentido amplo, assim
considerado o ingresso financeiro a título definitivo: de fato, o valor total
do preço recebido, antes da “separação” do valor do ICMS devido, entra
no patrimônio do vendedor e passa a integrar o montante do seu capital
de giro. Nem lei, nem as práticas do mercado, impõem qualquer forma de
separação entre o valor do ICMS e do preço das mercadorias e serviços;
logo, como tal (preço), esse valor é considerado “receita” em razão da
qualificação que lhe é atribuída pela ordem jurídica;
(iii) O valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços não
corresponde – em regra – ao valor a ser recolhido; logo, é um sofisma
considerar que o mesmo deve ser carreado aos cofres públicos. Afinal, em
razão da técnica da não-cumulatividade que preside o ICMS, o imposto
devido em cada período corresponderá ao líquido que vier a ser apurado
do confronto entre os valores totais relativos aos débitos (valor do ICMS
incidente sobre operações tributáveis) e créditos, decorrentes da aquisição
de bens e serviços;
61
(iv) Na relação jurídica de compra e venda – estabelecida entre
comprador e vendedor – o Estado não é parte; não há relação jurídica
trilateral que legitime a conclusão de que o Estado “fatura”. Ademais, o
vendedor não age como mandatário do Estado: ele deve recolher o ICMS
por ter – na condição jurídica de contribuinte – realizado o “fato
gerador” da obrigação tributária principal;
(v) Não tem amparo no ordenamento jurídico vigente a tese de que o
vendedor é mero depositário do valor do ICMS incidente sobre as vendas
que efetua e que constituem – ao mesmo tempo – fatos geradores das
contribuições devidas ao PIS-PASEP e COFINS. O comprador ou o
Estado não “entregam em depósito” ao vendedor o montante do ICMS
para fins de custódia, mesmo porque o valor que cabe ao Estado depende
do confronto entre débitos e créditos;
(vi) O valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e serviços constitui
despesa operacional do vendedor. Tal como qualquer insumo (materiais,
financeiros e trabalho), o valor do ICMS é uma despesa que será paga
com duas moedas: dinheiro e créditos por aquisições. Não se pode exigir
qualquer contraprestação no pagamento do citado imposto; afinal, todo
imposto – por força do artigo 16 do Código Tributário Nacional – é
devido independentemente de ação estatal específica;
(vii) Não há, na ordem jurídica constitucional, qualquer norma que, de
algum modo, impeça a incidência de tributo sobre tributo. Ao realizar a
distribuição de competências tributárias entre os entes da Federação
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios) o Poder Constituinte não
ignora o fato de que todos os tributos repercutem no valor dos bens
62
econômicos e, quando quis evitar essa repercussão, impôs o regime não-
cumulativo;
(viii) A ADC n. 18 atende aos pressupostos constitucionais para o seu
ajuizamento e conhecimento. Visa a referida ação a restaurar a segurança
jurídica e a hipotecar prestígio aos princípios da solidariedade e do
equilíbrio atuarial, posto que está em jogo vultoso valor de receita pública
afeta à seguridade social. A norma constitucional que constitui o
parâmetro de controle está em pleno vigor assim como também vige a
norma infraconstitucional. Se a decisão for contrária ao pleito de
declaração de constitucionalidade da lei ordinária em questão, os efeitos
devem ser prospectivos em homenagem ao princípio da boa-fé e da
preservação do orçamento público, onde está prevista a arrecadação da
receita e não previsão para a devolução por via de compensação ou outra
forma de restituição.
Expostas estas conclusões passamos a responder aos quesitos
apresentados, na ordem de formulação.
1. Os valores recolhidos a título de tributos devidos pela realização de um
fato gerador podem ser considerados como “custo ou despesa” de uma
mercadoria ou de um serviço?
Resposta: Sim, no ordenamento jurídico brasileiro o
valor do ICMS incidente sobre a venda de bens e
serviços constitui custo (sentido amplo) de operação
da sociedade empresarial e entidades equiparadas.
Tal valor é qualificado como despesa operacional que
– graficamente – é deduzido do valor da receita
bruta até a apuração da receita líquida. Essa despesa
63
é paga, tal como ocorre com qualquer insumo –
como o salário de um operário, por exemplo –, com
dinheiro e créditos.
2. Caso a resposta ao item anterior seja sim, indaga-se se o valor recolhido
a título de ICMS numa dada operação de venda de mercadoria ou de
prestação de serviços é considerado como “custo ou despesa” dessa
mercadoria ou desse serviço?
Resposta: Há que fazer uma distinção entre
“imposto incidente” e “imposto devido”. O primeiro,
– o imposto incidente – compõe o valor do preço das
mercadorias e serviços e, ao mesmo tempo, constitui
encargo (despesa) de funcionamento normal da
sociedade empresária. Assim, o valor a ser recolhido
corresponde ao montante do “imposto incidente”
menos o valor dos créditos. O valor do imposto
incidente sobre as vendas de bens ou serviços é que
constitui despesa operacional do vendedor.
3. Caso a resposta ao item anterior seja sim, indaga-se se o fato do valor
recolhido a título de ICMS ser destinado aos Estados e ao Distrito Federal
descaracteriza-o como “custo ou despesa”? Os demais “custos ou
despesas” também não são repassados a terceiros (fornecedores,
empregados, terceirizados, fiscos federal, estaduais, municipais,
prestadores de serviços etc.)?
Resposta: O valor do tributo recolhido aos cofres do
Estado é determinado por duas parcelas: em
primeiro lugar, encontra-se o valor do débito
64
(corresponde ao valor do imposto incidente sobre o
valor das vendas de bens e serviços) e dele deve ser
subtraído o valor do crédito. Portanto, o valor do
imposto incidente é despesa como são os demais
insumos e o valor devido (débito menos crédito) é
que deve ser levado aos cofres públicos.
4. Enfim, há alguma razão contábil ou jurídica para afirmar-se que, caso
seja considerado “custo ou despesa”, o valor do ICMS incidente não deve
compor o valor da mercadoria ou do serviço?
Resposta: O valor do ICMS incidente sobre a venda
de bens e serviços constitui parte indissociável do
preço das mercadorias e serviços, por exigência legal
e pela práxis econômica. De fato, quando alguém
emite uma fatura (ou documento equivalente) o faz
no valor do preço dos bens e o ICMS está nele
embutido; é este valor – o do preço – é que será
auferido pelo vendedor. Não há, na Constituição
Federal, regra impeditiva alguma que determine a
exclusão do ICMS do preço das mercadorias e
serviços e a Suprema Corte – quando do julgamento
do RE 212.209 – RS – já sufragou o entendimento de
que não é inconstitucional a incidência de tributo
sobre tributo.
5. Caso o valor do ICMS incidente seja considerado “custo ou despesa” e
componha o valor da mercadoria ou do serviço, haveria alguma razão
para excluí-lo do conceito de receita bruta para fins de cálculo do PIS e da
COFINS?
65
Resposta: Não. Não há, na Constituição Federal,
regra alguma que determine a cobrança de
contribuições ao PIS-PASEP e COFINS sobre a
receita líquida. Desde antes do advento da
Constituição Federal de 1988, a incidência da
contribuição ao PIS-PASEP sobre o “faturamento”
pressupunha a tributação incidente sobre a receita
bruta, assim considerada a proveniente da venda de
bens e serviços. Assim, sendo parte indissociável do
preço, o valor do ICMS tem o caráter jurídico de
“receita”, qualificado como “receita bruta”.
6. Há alguma vedação constitucional no sentido de que o valor referente a
incidência ou pago a título de uma determinada exação tributária não
possa compor a base de cálculo de outra exação tributária ou da mesma?
Resposta: Não. Presume-se que o Poder Constituinte
– ao distribuir competências tributárias baseadas em
materialidades definidas – tem consciência de que
certos fatos carregam (fenômeno da tributação em
cascata) o valor de tributos que incidiram em
operações anteriores. Quando o legislador
constituinte entendeu que deveria evitar esse efeito
“cascata”, dispôs sobre critérios de eliminação, como
é a técnica da não-cumulatividade.
7. Por fim, haveria algum óbice processual para o ajuizamento ou
cabimento e conhecimento da ADC nº 18, por haver recurso
extraordinário (RE nº 240.785), que trata do ICMS na base de cálculo do
66
PIS e COFINS? O julgamento da ADC nº 18 terá precedência em relação
ao RE nº 240.785? Havendo precedência, quais seriam os efeitos da
decisão da ADC nº 18 sobre o mencionado recurso extraordinário
pendente de julgamento?
Resposta: Não há óbice processual algum. A
preferência pode ser requerida com base no artigo
130 do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal. A decisão proferida no julgamento da ADC,
se antagônica àquela proferida no julgamento do
RE, prevalece em razão do fato de que passará a
representar a jurisprudência do Tribunal segundo a
atual composição.
São Paulo, abril de 2008.
EDMAR OLIVEIRA ANDRADE FILHO
Doutor e Mestre em Direito Tributário pela PUC – SP
Professor no IBMEC-SP
Membro Benemérito da APET – A. Paulista de Estudos Tributários
Autor do livro Imposto de Renda das Empresas. 5. ed. Atlas, 2008.
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