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V Seminário da Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, desigualdade e Desenvolvimento GT 3 Políticas Públicas e Desenvolvimento DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR: ACESSO E PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES QUILOMBOLAS Tiara Melo - UFBA 1 Dyane Brito Reis UFRB 2 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora bolsista CAPES. Psicóloga. [email protected] 2 Professora Adjunta CFP-UFRB. Professora Colaboradora do PPGESIU-UFBA. Doutora em Educação. [email protected]

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V Seminário da Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, desigualdade e

Desenvolvimento

GT 3 – Políticas Públicas e Desenvolvimento

DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR: ACESSO E PERMANÊNCIA

DE ESTUDANTES QUILOMBOLAS

Tiara Melo - UFBA1

Dyane Brito Reis – UFRB2

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade da

Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora bolsista CAPES. Psicóloga. [email protected]

2 Professora Adjunta CFP-UFRB. Professora Colaboradora do PPGESIU-UFBA. Doutora em Educação.

[email protected]

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DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR: ACESSO E PERMANÊNCIA

DE ESTUDANTES QUILOMBOLAS 3

Tiara Melo - UFBA

Dyane Brito Reis Santos –UFBA e UFRB

RESUMO

Falar em democratização do ensino superior, nos remete sobretudo à discussão do acesso

de grupos sociais historicamente excluídos do processo educacional às Universidades

Brasileiras. As práticas discriminatórias do passado ainda se fazem presentes, visto que,

a maioria de suas vítimas, principalmente a população negra, ainda não saíram totalmente

da zona de exclusão que foi imposta séculos atrás. A visibilidade desses grupos

minoritários tem sido prioridade no campo das políticas de Ações Afirmativas, que

preconizam a erradicação das desigualdades e todas as formas de discriminação, atitudes

de superioridade ou qualquer atividade que exclua alguma parte da população em

qualquer campo social. Leis que garantam a proteção, o direito de reivindicação e a

participação mais efetivas de tais minorias deve estar aliadas ao reconhecimento da

individualidade das mesmas, suas fraquezas e necessidades especificas não podem ser

igualadas a de outros grupos, visto que as condições e vivencia dos mesmo diferem entre

si. Sanar essas diferenças requer também a oferta de uma educação de qualidade para

todos e todas como forma de ascensão social, sobretudo sujeitos pertencentes a

comunidades tradicionais, neste contexto, a política de acesso à educação superior através

das cotas se delineia como uma possibilidade real de equidade no ensino superior. A

presença dessas minorias, sobretudo os estudantes quilombolas, no espaço universitário,

até então fechado, promovem mudanças na academia que precisam ser refletidas.

Palavras Chave: Acesso; Permanência; Estudantes Quilombolas

INTRODUÇÃO

Este artigo, é parte da pesquisa que estamos desenvolvendo no Programa de Pós

Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade (PPGEISU-UFBA) e que

pretende compreender o acesso e permanência (material e simbólica) de jovens negros

oriundos de comunidades remanescentes de Quilombo, na Universidade Federal do

Recôncavo da Bahia - UFRB, ao longo dos 10 anos de sua existência. Nesse texto, a partir

de um estudo secundário buscaremos abordar o acesso e permanência de estudantes de

camadas populares, quilombolas nas instituições de ensino superior, tomando como

objeto as ações afirmativas e o seu desenvolvimento, especialmente no Brasil. Neste

3 Trabalho apresentado no V Seminário da Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e

Desenvolvimento – realizado entre os dias 02, 03 e 04 de dezembro de 2015, em Cachoeira, BA, BRASIL.

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sentido, trazemos para o debate o conceito de Ação Afirmativa e a conjuntura social,

política e ideológica que permeia o conceito, considerando a evolução na concepção de

direitos humanos e o uso desta medida como política pública, capaz de promover a

reparação e facilitar a ascensão de grupos minoritários, sobretudo no ambiente

educacional. No âmbito nacional, situamos a adoção das ações afirmativas com recorte

étnico racial a partir do envolvimento reivindicatório dos movimentos sociais negros.

Sustentamos, aqui, a influência negativa da “suposta democracia racial” na formação da

identidade brasileira e a tese do branqueamento enquanto política nacional como fatores

imperativos que contribuíram para a história de negação do homem negro aos bens

materiais e simbólicos. Sem pretender esgotar todo o assunto referente a temática,

abordamos o uso do Sistema de Cotas como mediador na superação deste passado e a

importância da conjugação com outras políticas que garantam não só o acesso mas

também a permanência destes sujeitos na instituição de ensino.

AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO MUNDO

As Políticas de Ações Afirmativas, de modo geral, são definidas como políticas que

favorecem grupos excluídos na sociedade, visando uma reparação compensatória e/ou

preventiva em busca da correção da discriminação e desigualdade vivida por estes grupos

ao longo da história, por meio da valorização social, econômica, política e cultural durante

um período determinado, logo, as ações afirmativas são apresentadas como medidas

concretas, especiais e temporárias que objetivam compensar um passado discriminatório

pautadas no direito à igualdade, compreendendo que a igualdade deve ser pensada a partir

do respeito à diferença e à diversidade (SANTOS, 2009; PIOVESAN, 2005). Respondem

a essa denominação diversos procedimentos, frutos da pressão de setores da sociedade,

destinados a diminuir as iniquidades existentes, tais como as medidas protetivas a estilos

de vida, políticas de identidade, dentre outros (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS,

2013). Sua efetivação presume a existência de um Estado capaz de suprir as carências

particulares- frutos da desigualdade social, ofertando um tratamento desigual aos

historicamente tratados como desiguais (SANTOS, 2009; PIOVESAN, 2005; 2008;

SILVA FILHO, CUNHA, 2014).

De acordo com Moehlecke, (2002) a expressão ação afirmativa surge nos Estados Unidos

em 1960 em um cenário permeado por reinvindicações, sobretudo, expressadas no

movimento pelos direitos civis, que empunhava a bandeira da extensão da igualdade de

oportunidade para todos os cidadãos norte-americanos. Entretanto, as políticas de ação

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afirmativas não são uma criação americana, como sinaliza o então Ministro do Supremo

Tribunal de Justiça Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2010), elas nascem na Índia com o

intuito de reverter a desigualdade entre as pessoas em decorrência do sistemas de castas

que durante muito tempo expôs os excluídos à tensões sociais. Segundo Daflon (2008, p.

3-4),

Medidas de favorecimento a minorias discriminadas começaram

a ser aplicadas na Índia pelos colonizadores britânicos no fim do

século XIX e tiveram sua continuidade assegurada pela

Assembléia Constituinte [sic] após a conclusão do processo de

independência em 1947. Além de possuir a mais duradoura

experiência com a ação afirmativa de que se tem registro, a Índia

apresenta uma multiplicidade de desafios a essas políticas, uma

vez que entre seus beneficiários há minorias culturais a proteger

(as tribos), grupos estigmatizados cuja militância de modo geral

alega não pleitear a afirmação de sua identidade degradada, mas

sim a assimilação à sociedade (os “Intocáveis”) e grupos que,

apesar de discriminados, entende-se que sofrem mormente de

privação econômica (as “Other Backward Classes”). A ação

afirmativa no país não se restringe às cotas no ensino superior,

mas também é aplicada nas legislaturas, educação, serviços

públicos e promoções no emprego.

No caso específico dos Estados Unidos, tomando como ponto de partida a expressão real

do preconceito, racismo, intolerância e violência, surgem como protagonistas os

movimento sociais negros organizados a partir dos anos 604 e a remoção das leis

segregacionistas por parte do estado americano. Na medida que as leis formais de

segregação começaram a ser eliminadas, o período se mostrou propício para o surgimento

das ações reparatórias reivindicadas pelo movimento negro por meio da cobrança de um

Estado participativo no que tange a melhoria das condições básicas da população negra.

Todavia, torna se impossível pensar que qualquer proposta de mudança com vistas ao

favorecimento dos excluídos atraíssem à todos, especialmente por se tratar de uma nação

que historicamente apresentava fortes antagonismos raciais. Por outro lado, apesar das

críticas dos seus opositores, a experiência exitosa na sociedade americana comprova

mudanças significativas que favoreceram à ascensão social dos afro - americanos

(MUNANGA, 2001, SANTOS, 2009).

4 Nos referimos aos movimentos negros como o Black Power e os Panteras Negras organizados nos meados

de 1960, principais forças atuantes, apoiados por liberais e progressistas brancos e sensibilizados pela

defesa dos direitos.

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Na mesma época, experiências semelhantes ocuparam lugar de destaque nos países em

que ascenderam as ações afirmativas, entre eles, a Europa Ocidental, Nigéria, África do

Sul, Malásia, Austrália e Argentina. Dentre as apresentações assumidas pelas ações

afirmativas o sistema de cotas parece ser amplamente conhecido e consiste na visão de

Moehlecke (2002, p. 199),

[...] estabelecer um determinado número ou percentual a ser

ocupado em área específica por grupo(s) definido(s), o que pode

ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais ou

menos flexível. Existem ainda as taxas e metas, que seriam

basicamente um parâmetro estabelecido para a mensuração de

progressos obtidos em relação aos objetivos propostos, e os

cronogramas, como etapas a serem observadas em um

planejamento a médio prazo [...].

Contudo é necessário ressaltar que, para além das cotas, as políticas de ações afirmativas

envolvem um conjunto de outras medidas de caráter especial e transitório, voltadas à

atender certo grupo minoritário e devem ser suprimidas logo que a erradicação dos

motivos que levaram a sua adoção seja realmente findada. As diversas modalidades de

ações afirmativas assumidas nos distintos países que implementaram têm buscado:

considerar o critério racial, de gênero ou qualquer outro aspecto que caracterize o grupo

como minoritário a fim de promover a integração social; afastar o critério referente a

antiguidade para pessoas com potencial econômico elevado em determinados ambientes

de trabalho; definir zonas eleitorais distritais para o fortalecimento minorias políticas que

lá se encontram; estabelecer o sistema de cotas ou reserva de vagas para pessoas que

fazem parte de setores marginalizados (SANTOS, 2009; MOELHECKE, 2002; BRASIL,

2010).

No âmbito dos direitos humanos, as políticas de ações afirmativas surgem como

poderosas ferramentas de inclusão social na medida em que buscam “remediar um

passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade

substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais e as

mulheres, entre outros grupos” (PIOVESAN, 2005, p. 49). Sua origem e, sobretudo,

exequibilidade só foi possível a partir de uma nova proposta ética de proteção dos direitos

do homem, da superação de valores e princípios universais pautados na proteção geral e

abstrata com base na igualdade formal (PIOVESAN, 2005; 2008; MUNANGA, 2001).

Para Silva Filho e Cunha (2014), os Direitos Humanos tem se constituído, ao longo da

história, como campo de concretização da justiça social - independente de nação, raça,

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Estado, etnia, condições físicas, idade, gênero ou orientação sexual, por meio de

reivindicações e luta dos atores sociais. Assim, em consonância com os avanços político-

culturais, os Direitos Humanos devem emprestar o máximo de concretude a igualdade

material, conjugando os campos dos direitos econômicos, sociais e culturais,

transcendendo o plano formal de inspiração liberal provenientes da Revolução Francesa5.

A transposição do princípio da isonomia em oportunidade iguais concretas, especialmente

aquelas destinadas à participação equitativa aos bens sociais, é alcançada pela justiça

distributiva ou compensatória. Encontra-se fundamentada no reconhecimento da posição

social que cada grupo ocupa e objetiva promover a inclusão destes, sobretudo, aqueles

que ao longo dos anos ocuparam a periferia das camadas sociais (BRASIL, 2010). Nesse

seguimento, as ações afirmativas cumprem uma finalidade pública, essencial para uma

proposta de democracia que assegure as vivências heterogêneas e plurais na sociedade,

refletindo a consciência ética compartilhada pelos Estados a partir do consenso

transnacional, prescrevendo parâmetros mínimos de proteção universais (PIOVESAN,

2005).

POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO BRASIL: Uma breve digressão

No Brasil, as Políticas de Ações Afirmativas foram adotadas com o processo de

redemocratização do país, quando, ao romper com o silêncio do regime autoritário

imposto pela ditadura diferentes grupos e organizações passaram a reivindicar

publicamente seus direitos e reclamar ao poder público um posicionamento mais ativo

diante das questões emergentes e a adoção de medidas reparativas para grupos raciais,

étnicos e de gênero (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013). O termo chega ao

país influenciado pelos debates e experiências dos países onde foram desenvolvidas as

ações afirmativas, predominando a imprensa e dividindo opiniões nos meios de

comunicação e entre intelectuais6 (MOEHLECKE, 2002; SANTOS, 2009).

O primeiro registro do que podemos chamar atualmente de ação afirmativa é datada em

1968, quando técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho se

posicionaram a favor de uma lei que garantisse que empresas do setor privado

5 A igualdade formal de inspiração liberal provenientes da Revolução Francesa preconiza que os homens

nascem e permanecem livres e iguais em direitos, as diferenças sociais não podem ser fundadas senão sobre

a utilidade comum. Para maior aprofundamento no assunto ver Piovesan (2005; 2008), Munanga (2006).

6Interpretado equivocadamente como sistema de cotas e, mais preciso, cotas para acesso ao ensino superior.

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oferecessem uma cota mínima para empregados de cor contudo, não foi dado

continuidade aos procedimentos para elaboração da legislatura (MOEHLECKE, 2002).

No âmbito do movimento negro, essas não foram as primeiras manifestações do grupo

em busca de melhoria das condições de vida e, prever uma constituição de medidas

destinadas à atender demandas de grupos historicamente excluídos, sugere a compreensão

do seu desenvolvimento sócio-cultural, das circunstâncias políticas e das ações coletivas

que as impulsionaram (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013; GUIMARÃES,

1999; SANTOS, 2009), especialmente por se tratar de uma nação de ampla extensão

territorial, marcada pela diversidade étnica e cultural na constituição identitária de seus

povos, e que também apresenta-se com intensa desigualdade socioeconômica a clara

divisão de classe.

De acordo com Assis e Canen (2004), não há como negar ou ignorar as relações

assimétricas de poder entre as diferentes matrizes culturais e raciais, formadas ao longo

da história, que determinaram e ainda dividem o território brasileiro (ASSIS E CANEN,

2004). A abolição da escravatura – com a proposta de libertar o homem negro do

cativeiro, retirando de sua condição de objeto de posse e, portanto, de responsabilidade

do seu senhor, na verdade acabou por expor os egressos da escravidão a condição de

vulnerabilidade e insegurança social.

A condição de homem livre não conferiu ao negro garantias ou amparo por parte do

Estado, atenção específica nas suas necessidades básicas, tão pouco indenização pelo

tempo cativo, pela retirada abrupta da sua nação, pela morte real e simbólica da sua

cultura. Ao contrário, o projeto de liberdade se mostrou fragilizado quando não pesou as

consequências concretas de uma abolição sem estratégias de cuidado, prestação de auxílio

ou assistência, que viessem assegurar ao negro a inclusão na sociedade. A liberdade sem

uma proposta de inclusão na sociedade se tornou a principal fonte explicativa do quadro

de miséria, submissão e falta de amparo formado após a promulgação da Lei Áurea.

Segundo Silva e Araújo (2011), a herança do passado escravagista levou a população

negra a compor um quadro vulnerável predominado por negação de bens materiais e

simbólicos necessitando de amparo específico na legislação e propostas de ações relativas

a proteção dos seus direitos humanos.

Uma possível explicação dos motivos ideológicos por traz da dificuldade encontrada pelo

negro no período que procedeu a abolição, tem destaque a construção da identidade

brasileira forjada a partir da suposta “democracia racial” e a defesa da eugenia com base

no clareamento da população brasileira. Construída a partir de 1820, o mito alcança seu

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ápice em 1930, ano da publicação do clássico Freyriano “Casa Grande e Senzala”7 Tal

obra, além de representar a esperança de um ambiente capaz de proporcionar o convívio

social harmônico e pacífico entre as diferentes raças e postos hierárquicos que formaram

a nação, argumentava a favor do ideal de raça a ser alcançado num futuro próximo. Tinha

como referência para este ideal a generalização de poucos casos de ascensão social do

mulato e, seu reconhecimento se dava, antes de tudo, pela depreciação do negro visto

como portador de comportamentos e estética incompatíveis com o que se esperava de

uma nação civilizada (BERNADINO, 2002).

Segundo Bernadino (2002), a abolição da escravatura e a Proclamação da República

foram acontecimentos fundamentais para a estruturação do mito da democracia racial

visto que, antes dos mesmos, jamais poderia se falar em igualdade entre negros e brancos.

Soma-se a esses fatos a correspondência entre abolicionistas brasileiros e norte-

americanos e a percepção da sociedade brasileira, vista como utópica em contraponto ao

ambiente tenso vivenciado nos Estados Unidos.

Neste seguimento, o sociólogo Joaze Bernadino (2002) propõe ainda, ao lado do mito da

suposta democracia racial formou-se no Brasil o ideal de branqueamento como política

nacional que estimulava a entrada de brancos europeus com o objetivo de suprir a

necessidade de mão de obra qualificada e alinhar as diretrizes políticas e econômicas do

país rumo ao progresso8.

Libertos e entregues à própria sorte, restou aos negros adentar o submundo do trabalho

braçal; vivenciar dificuldades no acesso e permanência em instituições escolares9, até

mesmo completa negação de acesso à educação formal. Em busca por estratégias para sua

existência, ainda que as condições para o exercício da cidadania fossem vetadas à eles, é

possível identificar nestas trajetórias formas de sobrevivência ligadas ao envolvimento

com movimentos sociais de classe e raça.

Mesmo sem a integração na vida social normativa as manifestações de resistência e luta

estavam presentes, até mesmo antes do fim do sistema colonial escravagista,10 e, mais

intenso, na ocasião pós abolição. A comprovação deste fato é a existência dos primeiros

7A obra apresenta a realidade brasileira a partir da influência social e cultural na relação entre os habitantes

da casa – grande e da senzala e enfatiza a miscigenação entre as raças na formação da nação. 8A tese do Branqueamento foi reforçada tanto pela alta taxa de mortalidade dos negros, fruto do desamparo

destinado aos negros Bernadino (2002). 9 Para estudos sobre acesso e permanência dos negros na educação formal após abolição ver Barros (2005);

Dias (2005); Cruz (2005). 10Admitimos também, para efeito de esclarecimento, os quilombos como símbolo de organização social

revolucionaria, e movimento em direção a um funcionamento mais pleno, livre da coerção e violência a

que estavam submetidos os negros.

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jornais para a população negra em 1920, com temáticas relacionadas as condições de vida

do grupo e artigos que abordavam a discriminação racial e a pouca mas significativa

presença de negros matriculados em uma instituições de ensino superior, em São Paulo,

antes mesmo da Lei do Ventre Livre promulgada em 1871 (SANTOS, 2009; PORTES E

SOUZA, 2013).

Os primeiros passos em direção a uma ação afirmativa ocorrem em 1930 quando é

fundado a Frente Negra Brasileira, importante entidade formada por afrodescendentes,

pautada na ideia de progressão do negro via educação. O trabalho desenvolvido pela

frente negrina revelou não só a insatisfação do negro com a sua real condição, mas

também buscou apresentar propostas quanto ao acesso a espaços públicos, políticos,

educacionais e de trabalho, a partir da união dos esforços formados por lideranças

potencialmente voltadas para a luta destes ideais. Em 1936 a Frente negra é lançada como

partido político, entretanto não deu continuidade aos seus objetivos em razão do

impedimento da existência de partidos políticos no governo de Getúlio Vargas (SANTOS,

2009).

Silva e Araújo (2011) lembram que a identidade nacional forjada em torno do mito da

democracia racial não impediu os efeitos do sistema escravocrata. Nesta perspectiva,

Bernardino (2002) conclui que o mito da democracia racial e o ideal de branqueamento

trouxeram consequências que deram origem a uma realidade social em que a voz do negro

empoderado é percebido como um discurso incômodo, demasiado emotivo e dificulta o

reconhecimento da categoria raça do ponto de vista analítico e de intervenções práticas

imprimindo um quadro de diferenças sociais que se revela como um dos mais graves e

estáveis do mundo ocidental.

Importantes acontecimentos ocorreram, na década de 4011, que influenciaram na

estruturação do movimento social negro trazendo - lhe maior visibilidade a causa, com

ramificações entre os estados brasileiros e notoriedade no contexto internacional. Na

pauta dos encontros estavam presentes; a exigência de participação do Estado,

especialmente na elaboração de leis que punissem a discriminação racial e preconceito e

a concessão de bolsas de estudos para estudantes negros na universidade e no ensino

secundário (SILVA, 2005).

11 Os acontecimentos emblemáticos ocorridos na década de 40 foram, a Convenção Nacional do Negro, em

São Paulo, no ano de 1945; a Conferência Nacional do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1949, e o I

Congresso Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1950. Para aprofundamento na questão vide Silva

(2005).

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No ambiente acadêmico, o consenso sobre a democracia racial no país perdurou até a

metade dos anos 50 quando então, foi revelado, a partir de estudos sobre as relações

raciais no Brasil que, após o período de escravidão, os negros sofreram consequências

negativas que dificultaram o acesso tanto ao mercado de trabalho quanto à educação.

Estava constatada a farsa que envolvia a suposta democracia racial. Apesar disso,

somente no final dos anos 70 é que a ideia de uma classe de estudantes acadêmicos

racialmente igualitárias começa a ser pensada, associada ao ressurgimento dos

movimentos sociais.

A educação, como caminho para a superação das desigualdades, era considerada

essencialmente a única forma que permitiria ao homem negro alcançar igualitariamente

as possibilidades que os brancos tinham, com oportunidades de progredir, integrar-se,

lutar contra a falta de recursos e combater as mazelas a quais estavam expostos

(SANTOS, 2009). Merece destaque o ano de 1978, momento em que diversas entidades

negras, sensibilizadas com a questão da discriminação racial, fundaram em São Paulo o

Movimento Negro Unificado conta a Discriminação Racial (posteriormente abreviado

para MNU) que apresentava como prioridade ações voltadas para a educação do negro

(SANTOS, 2009; CALHEIROS E STANDHER, 2010).

No final dos anos 80 o quesito cor é reintroduzido no censo demográfico brasileiro e

tornou possível a comprovação estatística das desigualdades raciais entre brancos e

negros. (SANTOS, 2009). Ações compensatórias destinadas aos negros no âmbito

educacional foram proposta pelo Deputado Federal Abdias do Nascimento entretanto, por

falta de apoio na esfera legislativa, o projeto foi arquivado. A questão da educação do

negro foi retomada no início da década de 90 nas reuniões regionais do Movimento Negro

(MOEHLECKE, 2002; REIS, 2009).

Em 20 de novembro de 1995 o Governo, sob a Liderança de Fernando Henrique Cardoso,

influenciado pela Marcha Zumbi dos Palmares – marco do movimento negro nacional,

decretou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População

Negra (GTI) (PIOVESAN, 2005; SANTOS, 2009). Com o objetivo de introduzir a

temática do negro na agenda nacional, o GTI foi inicialmente alvo de críticas e funcionou

de maneira precária quanto ao corpo técnico, infraestrutura e recursos financeiros

(SANTOS, 2009). A estratégia discursiva e política deste governo buscou promover o

reconhecimento por parte do Estado brasileiro de que a escravidão e o tráfico de escravos

constituíram violações graves e sistemáticas dos direitos humanos porém, não houve

efetivos investimentos em medidas para diminuir as iniquidades (LIMA, 2010).

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Se por um lado, o GTI para não conseguiu cumprir exitosamente seus objetivos, por

outro, foi fundamental para o início de discussões sobre a temática nas entranhas

governamentais e o reconhecimento da existência de desigualdade racial no país

(SANTOS, 2009).

No início dos anos 2000, uma maior disponibilidade de dados e indicadores sociais

revelaram detalhadamente a dimensão das desigualdades raciais no Brasil ampliando o

espectro de possibilidades para se pensar alternativas para a superação destas

desigualdades (HERINGER, 2014). Em 2001, é apresentado documento oficial brasileiro

à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban, que propunha a adoção

de medidas de cunho afirmativo para a população negra no âmbito da educação superior

e do trabalho. Nesse mesmo ano, políticas de ação afirmativa para a população negra são

aprovadas tendo como fundamento o sistemas de cotas e pautados na crença da

necessidade de representação desse extrato populacional em diversos setores sociais

(PIOVESAN, 2005; REIS, 2009; MOEHLECKE, 2002).

A pressão dos movimentos negros impulsionaram o governo seguinte, liderado por Luiz

Inácio Lula da Silva, a criar a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade

Racial (Seppir), avançando mais que o governo anterior ao encaminhar para o Congresso

Nacional Brasileiro o Projeto de Lei nº 3.627 de 20 de maio de 200412, que estabelece a

reserva de vagas em instituições públicas de ensino superior para estudantes oriundos do

ensino público, especialmente negros e indígenas (SANTOS, 2009).

Em 2012, sob o governo da Presidenta Dilma Rousseff, foi sancionada a Lei 12.711 que

dispõe sobre o ingresso nas Universidades Federais e nas Instituições Federais de Ensino

Técnico de Nível Médio, reservando 50% das vagas, em cada concurso seletivo, para

estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Desta

reserva, a metade deverá ser preenchida por estudantes, cujas famílias tenham renda igual

ou inferior a um salário mínimo e meio. Deste percentual 50% das vagas reservadas em

cada Instituição deverão ser preenchidos por pretos, pardos e indígenas, respeitando-se a

composição da Unidade da Federação onde está instalada a Instituição, segundo o último

Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (BRASIL, 2012).

12 O projeto de Lei Nº 3.627, DE 2004 institui o Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes

egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação

superior.

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ACESSO E PERMANÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR: A QUESTÃO DO

ESTUDANTE QUILOMBOLA

Sem dúvidas, a partir da década de 90 houve uma evolução significativa acerca das

questões raciais no cenário brasileiro marcado, especialmente, pela aproximação entre o

movimento negro e o Estado. Os reflexos do encontro em Durban repercutiram na esfera

governamental nos anos seguintes e desde então podem ser verificadas propostas de

políticas públicas de abrangência nacional com recorte raça/etnia na educação superior

(LIMA, 2010). De acordo com Moehlecke (2002), a redemocratização no Brasil é ainda

um processo recente, com diversas lacunas aparentes, apontado nos dados referentes à

discriminação e desigualdades raciais e o impacto negativo no desempenho educacional,

acesso ao ensino superior, divulgados nos últimos anos. Neste sentido, falar em

democratização do ensino superior, nos remete sobretudo à discussão do acesso de grupos

sociais historicamente excluídos do processo educacional, às Universidades Brasileiras.

O fundamento para a criação de ações afirmativas com recorte étnico racial na educação

repousa, principalmente, em evidencias numéricas e também na evidência de mecanismos

excludentes criados pelas próprias instituições de Ensino Superior desde a seleção do

sujeito até sua permanência enquanto estudante universitário. De acordo com Munanga

(2001, p. 33):

Num pais onde os preconceitos de discriminação racial não

foram zerados, ou seja, onde os alunos brancos pobres e negros

pobres ainda não são iguais, pois uns são discriminados uma vez

pela condição socioeconômica e os outros são discriminados

duas vezes pela condição racial e pela condição socioeconômica,

as políticas ditas universais [...] não trariam as mudanças

substanciais esperadas.

Os critérios de raça e etnia utilizados anteriormente para excluir os afrodescendentes

devem hoje ser utilizadas para incluir e atenuar os efeitos do passado discriminatório

(PIOVESAN, 2005). A questão fundamental que se coloca para Munanga (2001), é como

aumentar o contingente negro no ensino superior uma vez que os ensinos básico e

fundamental público não oferecem ferramentas para que os mesmos estudantes, de

origem popular possam competir em pé de igualdade com estudantes vindos da rede

particular e que continuam a usufruir das vantagens adquiridas ao longo do tempo.

Ainda de acordo com o autor, as políticas de ações afirmativas são muito recentes na

história da ideologia antirracista e, experiências exitosas ou não, em países que convivem

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com a questão do racismo podem servir como ponto de partida para se pensar em soluções

locais, levando em consideração as particularidades culturais e históricas do racismo à

brasileira.

No âmbito nacional, temos acompanhado o que Portes e Sousa (2013) chamaram de

“manifestações exultantes e alarmistas”, acerca da ampliação do acesso do jovem negro

ao ensino superior, resultado da implementação das políticas públicas de expansão do

acesso à educação superior. Ao analisar a implementação de tais medidas no Brasil,

Heringer (2014)13 conclui que se trata de uma história de sucesso, fruto de um longo

caminho de disputa e negociações. Sua pesquisa revelou a ampliação expressiva ao acesso

a instituições de ensino superior por estudantes pretos e pardos (de 10% em 2001 para

35% em 2011), resultado da combinação assertiva de um conjunto de medidas de inclusão

para a população específica e também de políticas voltadas para a expansão do próprio

sistema de educação superior. Outro aspecto apontado pela autora como avanço é a maior

legitimidade alcançada por estas política. A inscrição do ingresso nas universidades

federais na ordem jurídica, como aparato legal para sua execução, trouxe segurança

legalística e fortaleceu, sobretudo, o caráter político e ideológico da equidade e relevância

das ações afirmativas. Entretanto, mesmo avançado na direção certa, a velocidade ainda

é insuficiente para alcançar as grandes dificuldades existentes entre grupos racialmente

distintos e, a ausência de debate entre os juristas mais o critério particular usado por cada

um deles no julgamento dos casos14, transparece a sua fragilidade.

Portes e Sousa (2013) chamam atenção para a diferença entre acesso e permanência. Para

os autores apenas a ampliação do acesso não é suficiente, é preciso que a universidade

disponha de práticas que facilitem a permanência deste estudante no ensino superior e

consiga concluir o curso. Nas palavras dos autores:

Para estudantes oriundos dos estratos mais empobrecidos,

abrirem-se as portas da universidade para que eles ingressem

nela não é suficiente. É preciso que, através de políticas de

assistência estudantil, sejam garantidas melhores condições

materiais e culturais (2013, p. 64).

13 Para acesso ao estudo completo ao longo dos dez anos da implementação das políticas de ações

afirmativas no ensino superior: HERINGER, R. R. Um balanço de 10 anos de políticas de ação afirmativa

no Brasil. Tomo (UFS), v. 1, p. 13-29, 2014. 14 A Juíza Fernanda Duarte (2010), chama atenção para a consideração particular do jurista, por exemplo,

na seleção do critério usado para avaliar o percentual de vagas e a forma de identificação dos beneficiário.

Lembramos aqui o caso emblemático da UNB, em Brasília - DF, que adotou o uso da fotografia para

identificação do candidato na seleção de vestibular em 2004. O caso foi julgado pela Corte brasileira e, em

2010, os métodos utilizados foram avaliados como proporcional e eficazes, compatíveis com o princípio da

igualdade humana.

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De acordo com Heringer (2014), a questão da permanência aparece como um desafio na

relação entre a instituição pública e as necessidades específica dos estudantes negros. E,

embora já se tenha avançado em termos de alcance e recursos disponíveis, com criação

de programas específicos na área de moradia e permanência material, muitas vezes na

prática, o que se encontra são ações de assistência estudantil e permanência material

integradas, sobrepostas ou até mesmo confundidas. Para Portes e Sousa (2013) há ainda

a constatação de necessidades que ultrapassam o plano material e que requer atenção

específica por parte da instituição voltada para as necessidades médicas, pedagógicas,

artísticas, psicológicas, social e psiquiátricas.

Se por um lado, a proposta de superação das desigualdades no acesso a instituições de

ensino superior com a adoção de políticas de ações afirmativas, direciona para uma

multiplicidade de contextos regionais de conexão de forças e também, de parcerias

estratégicas, que modificará o perfil do estudante universitário e também da instituição

(CALMON E LÁZARO, 2013; PORTES E SOUSA, 2013). Por outro, pesquisadores na

área de educação15 lembram que muitos destes estudantes recém ingressos nas

universidades brasileiras, necessitam de auxílio materiais, mas também de ordem

acadêmica ,a fim de que possam ter uma permanência bem sucedida no curso.

Portes e Sousa (2013) afirmam ainda existir, nos dias de hoje, dentro da própria instituição

desigualdades entre os cursos, estando os de maior prestígio, concorrência e carga horária

disponíveis apenas para uma pequena parcela do estrato social, em sua maioria

esmagadora, a elite. Um outro estudo realizado por Silva (2007), sobre o Sistema de Cotas

descreve a eficácia quanto à democratização desse acesso, ao admitir uma presença

expressiva de negros em universidades estaduais e federais, além de viabilizarem o

ingresso em cursos considerados de maior prestígio, como Direito e Medicina. Nos resta

saber em que medida jovens negros estão, de fato, ingressando nesses cursos de maiores

prestígios e quais estratégias utilizadas para sua permanência, especialmente, os oriundos

de comunidades tradicionais, os quilombolas.

Em estudo anterior, Santos (2009) afirma que o sistema de cotas raciais já são uma

realidade na maioria nas Universidades Públicas no Brasil, contudo, é necessário

compreender o acesso de jovens negros ao ensino superior por meio das cotas (escolha

pelo tipo de curso); as condições para a permanência material (aquisição de textos e livros,

15 Portes e Sousa (2013).

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despesas com deslocamento, alimentação dentre outros); assim como a sua permanência

simbólica, visto que o debate sobre a temática viabiliza a revisão de crenças e

pressupostos que dão sustentação a identidade racial brasileira bem como possibilita o

rompimento histórico da cultura universitária de exclusão baseada na meritocracia

elitista.

A esse respeito, Portes e Sousa (2013) afirma que a ampliação de vagas para o acesso no

ensino superior abre espaço para novas discussões - relacionadas à reflexão sobre o

processo seletivo, meritocracia, a ocupação nos cursos de maior prestígio, preconceito e

discriminação, ao mesmo tempo que revela a dificuldade do jovem pobre e egressos de

escolas públicas, carecidos de conhecimentos na sua escolarização e que apresentam

dificuldades para permanecer e realizar a graduação.

Nesses termos, situamos também a questão do estudante que pertence a comunidade

tradicional quilombola. Segundo Calheiros e Stadtler (2010) os quilombos acompanham

a história brasileira desde a sua constituição, os quilombolas, por sua vez, desenvolveram

uma relação com o Estado e ocuparam lugar de destaque ao interagir e se relacionar com

outras instâncias de poder. Entretanto, parece haver uma incompreensão por parte dos

brasileiros deste lugar, que gera equívocos e duvidas quando se discute a questão do

grupo. Marques (2009) ressalta que tais grupos não precisam apresentar nenhuma relação

com o que convencionalmente estamos acostumados a tratar como quilombos.

A pauta das comunidades quilombolas entrou no Plano Plurianual (PPA)16 pela primeira

vez em 2004. Desde então, houve um aumento na inclusão de demandas do grupo

quilombola, com repercussões nas ações orçamentárias. No mesmo ano foi lançado o

Programa Brasil Quilombola e, em 2007, instituída a Agenda Social Quilombola17 que

agrupa ações voltadas às comunidades em diversas áreas. A educação aparece incluída

no eixo que dispõe sobre a infraestrutura e prevê a consolidação de mecanismos efetivos

para a construção de equipamentos a atender esta demanda. No eixo Direitos e Cidadania,

encontramos a estimulação da presença ativa de representantes quilombolas em espaços

coletivos de controle e participação social em conselhos e fóruns municipais, estaduais e

nacionais de política pública para promover o acesso das comunidades ao conjunto de

ações definidas pelo governo, e seu envolvimento no acompanhamento das ações

16 Estabelece as diretrizes, objetivos e metas para as três esferas governamentais no período de quatro anos.

A ordem temática prevista no PPA de 2012-2015 prevê iniciativas de coordenação, acompanhamento e

avaliação das ações governamentais direcionadas para as comunidades quilombolas. 17 Para mais informações sobre o Programa Brasil Quilombola acesse:

http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-quilombola

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implementadas em cada município onde houver território quilombola. A coordenação

geral do Programa Brasil Quilombola é de responsabilidade da SEPPIR em parceria com

outros órgãos do Governo Federal, conforme a necessidade da comunidade e a

competência de cada órgão.

A política de acesso ao curso superior garante legalmente o acesso a estas instituições.

Para estes estudantes, está disponível também o Programa Bolsa Permanência18 que

garante um valor diferenciado, em razão de suas especificidades com relação à

organização social comunitária onde vivem, condição territorial, as regras sociais de sua

cultura costumes, idiomas, matrizes religiosas e passado.

Ao longo deste texto, buscamos entender a história das Ações Afirmativas no Mundo e

mais especificamente no Brasil, onde a ideia de uma Democracia Racial forjou a nossa

identidade e impediu uma visão mais real sobre as relações entre brancos e negros em

nosso pais. A adoção de medidas de cunho compensatório na educação superior, por sua

vez, trouxe novamente a questão sobre “quem é sujeito de Direito no Brasil

(GUIMARÃES, 1999) e reatualizou o debate em torno do Brasil como país com

oportunidades iguais para todas e todos, em que pesem as distorções econômicas e sociais

apresentadas pelos indicadores sociais, sobretudo quando analisado à luz da perspectiva

racial.

03 anos após a efetivação da Lei de Cotas e mais de uma década após a implantação do

sistema de reserva de vagas elas Universidade Brasileira, cabe uma reflexão apurada

sobre o acesso e permanência dos estudantes de origem quilombola, suas especificidades

e sobretudo as contribuições que o espaço acadêmico tem permitido para a preservação

da sua identidade étnico racial e empoderamento.

Não se pode negar o papel social que as instituições de ensino superior cumpriram ao

longo da sua existência e também as várias formas de expressão do racismos no cotidiano

do tecido social, especialmente, “quando ligadas a critérios de fenotipia [sic] como a cor

da pele, a tessitura do cabelo, os traços corporais que denotam pertencimento a um

determinado grupo étnicorracial [sic] – negros, quilombolas” (PASSOS, 2005, p. 4-5).

Não se pode negar também que a Academia possui uma estrutura curricular com uma

abordagem que não é a dos povos africanos ou das comunidades tradicionais e muito dos

18 O Programa de Bolsa Permanência – PBP é uma ação do Governo Federal de concessão de auxílio

financeiro a estudantes matriculados em instituições federais de ensino superior em decorrência de sua

vulnerabilidade social e econômica e para estudantes indígenas e quilombolas. Informações:

http://permanencia.mec.gov.br/

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conhecimento trazidos por este “novo estudante universitário” sempre são colocados em

xeque, quando confrontados com o “discurso acadêmico tradicional”.

A permanência simbólica, tão cara quando pensamos a passagem do estudante pelo ensino

superior, requer que se pensem práticas de ensino que permita ao estudante se identificar

com o meio universitário ao mesmo tempo em que será reconhecido pelos seus pares.

Este é um princípio básico da existência social.

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