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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E ECONÔMICAS CURSO DE DIREITO Poliana Ferreira Shymidt RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA RELIGIOSA Governador Valadares 2009

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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE

FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E EC ONÔMICAS

CURSO DE DIREITO

Poliana Ferreira Shymidt

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE

CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA R ELIGIOSA

Governador Valadares

2009

1

POLIANA FERREIRA SHYMIDT

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE

CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA R ELIGIOSA

Monografia para obtenção do grau de bacharel em Direito apresentada a Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce. Orientador: Armando Lacerda Gobira

Governador Valadares

2009

2

POLIANA FERREIRA SHYMIDT

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE

CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA R ELIGIOSA

Monografia para obtenção do grau de bacharel em Direito apresentada a Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.

Governador Valadares, ____ de _______________ de 2009.

Banca Examinadora:

________________________________________________ Prof°: Orientador: Armando Lacerda Gobira - Orienta dor

Universidade Vale do Rio Doce

________________________________________________ Prof. (XXXXXXXXXXXXXXXX) - Convidado

Universidade Vale do Rio Doce

_________________________________________________ Prof. (XXXXXXXXXXXXXXX) - Convidado

Universidade Vale do Rio Doce

3

Dedico este trabalho primeiramente a

Deus, pois sem Ele, nada seria possível e

não estaria aqui, desfrutando desse

momento que é tão importante.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a deus, pois estiveste sempre comigo.

Aos meus queridos pais e familiares, que sempre me deram força e incentivo para

realização desse trabalho.

Aos meu tão querido amor, pelo apoio, amor e compreensão pelas horas roubadas

do seu convívio.

Aos mestres, por dividirem comigo muitos saberes acumulados ao longo da história

de vida de cada um.

De mono muitíssimo especial ao meu orientador Prof. Armando Lacerda Gobira,

pela colaboração para a execução deste trabalho.

E, finalmente, a todos que de uma forma ou de oura contribuíram para que este

sonho fosse enfim realizado, minha eterna gratidão.

5

DURANTE ESTE TRABALHO...

As dificuldades não foram poucas...

Os desafios foram muitos...

Os obstáculos, muitas vezes, pareciam intransponíveis.

O desânimo quis contagiar, porém, a garra e a tenacidade foram mais

fortes, sobrepondo esse sentimento, fazendo com que eu seguisse a

caminhada, apesar da sinuosidade do caminho.

Agora, ao olhar para trás, a sensação do dever cumprido se faz

presente e posso constatar que as noites de sono perdidas, chuvas,

tombos, choros, as viagens; o cansaço dos encontros, os longos

tempos de leitura, digitação, discussão; a ansiedade em querer fazer e

a angústia de muitas vezes não o conseguir, não foram em vão.

Aqui estou, como sobrevivente de uma longa batalha, porém, muito

mais forte e hábil, com coragem suficiente para mudar a minha postura,

apesar de todos os percalços...

Como dizia Antoine Saint Exupèry em sua obra prima “O Pequeno

Príncipe”:

“Foi o tempo que perdeste com a tua rosa, que fez a tua rosa tão

importante .”

6

RESUMO

Este estudo tem como tema “Transfusão de sangue: liberdade de consciência versus responsabilidade civil médica”, objetivando apontar as divergências existentes entre a Liberdade Religiosa, uma garantia Constitucional e a responsabilidade Médica de acordo com Código Civil e leis especiais. O tema apresentado foi de grande relevância, pois tornou-se em todo o mundo civilizado, assunto palpitante, que interessa aos advogados, promotores, juízes de todos os graus, e diretamente, ao estudante acadêmico de Direito. Questionou-se se é razoável que o ordenamento jurídico permita a recusa de certo indivíduo à realização da transfusão de sangue, imprescindível à preservação de sua vida, por convicções religiosas? A metodologia empregada para a realização desse estudo foi a qualitativa descritiva feita através de pesquisas bibliográficas, exame de livros, artigos, além de jurisprudências. Concluiu-se que a orientação da doutrina é no sentido de não sacrificar totalmente um direito em virtude do outro. No caso de paciente inconsciente e desacompanhado de familiares precisar de transfusão de sangue, a transfusão deve ser feita sem demora, pois trata-se de um iminente perigo de vida, e salvar vidas humanas é dever do médico. Mas, quando se trata de paciente lúcido que se negar à transfusão, o médico possui a alternativa de buscar todos os métodos de tratamento ao seu alcance, respeitando a vontade do paciente. Os direitos fundamentais precisam ser analisados com vistas à evolução histórica e cultural, devendo o Estado intervir somente quando não existir outra forma de se resolver um problema.

Palavras-chave: Direitos fundamentais; Liberdade e vida; Transfusão de sangue em

Testemunhas de Jeová; Conflito de direitos fundamentais.

7

ABSTRACT

This study has the theme "Blood transfusion: freedom of conscience versus medical liability", aiming to sharpen the differences between the Religious Freedom, a constitutional guarantee and Medical liability in accordance with Civil Code and special laws. The theme was of great importance presented, as it was throughout the civilized world, beating matter, of concern to lawyers, promoters, judges at all levels, and directly, the academic student of law. Questionou if it is reasonable that the law permits the refusal of certain individuals to carry out the transfusion of blood, vital to the preservation of their lives, by religious convictions? The methodology employed for this study was the qualitative descriptive done by bibliographic searches, review of books, articles, and jurisprudence. It was concluded that the orientation of the doctrine is not to totally sacrifice a right under the other. In the case of a patient unconscious and unattended for family members need blood transfusion, the transfusion should be done without delay, because it is an imminent danger to life, and save lives is the duty of the doctor But when it comes to patient lucid which deny the transfusion, the doctor has the option to seek all methods of treatment to them, respecting the will of the patient. Fundamental rights must be examined with a view to historical and cultural developments, the State should intervene only when there is another way to solve a problem. Keywords: Fundamental rights; freedom and life; Blood transfusion in Jehovah's Witnesses; Conflict of fundamental rights.

8

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 09

2 RECUSA À TERAPIA TRANSFUNSIONAL POR MOTIVAÇÃO

RELIGIOSA....................................................................................................

11

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS GARANTIDOS PELA

CONSTITUIÇÃO............................................................................................

16

3.1 LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA................................... 16

3.2 DIREITO À PRIVACIDADE...................................................................... 20

3.3 DIREITO À VIDA...................................................................................... 21

4 RECUSA DA TRANSFUSÃO DE SANGUE PELO PACIENTE .................

23

4.1 VISÃO DAS DIFERENTES CORRENTES DOUTRINÁRIAS.................. 25

4.1.1 Comunitarista ...................................................................................... 25

4.1.2 Procedimentalista ............................................................................... 27

4.1.3 Liberal ................................................................................................... 29

5 A RESPONSABILIDADE MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE

SANGUE CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE

CRENÇA RELIGIOSA ....................................................................................

34

6 DECISÕES JURISPRUDENCIAIS ..............................................................

36

7 CONCLUSÃO ..............................................................................................

39

REFERÊNCIAS...............................................................................................

41

9

1 INTRODUÇÃO

A recusa dos pacientes da religião Testemunhas de Jeová em receber

transfusões de sangue em situações de iminente risco de desperta a atenção dos

meios de comunicação social e vida tem suscitado debates nos meios médicos e

jurídicos.

Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, diante, basicamente, da

interpretação que fazem das passagens bíblicas dos Livros de Gênesis, 9:3-4 [01];

Levítico, 17:10 [02] e Atos 15:19-21 [03], recusam-se a se submeter a tratamentos

médicos ou cirúrgicos que incluam transfusões de sangue1. Na impossibilidade de se

valerem de tratamentos alternativos (sem sangue), negam-se a receber transfusões,

mesmo que isso possa levá-las à morte (LEIRIA, 2009).

É inegável que a postura firme das Testemunhas de Jeová em rechaçar as

transfusões de sangue tem alavancado o progresso científico de descoberta e

aprimoramento de tratamentos alternativos. Ademais, elas organizaram uma rede,

de âmbito internacional, de Comissões de Ligações com Hospitais (COLIH),

existentes em 230 países e territórios, que auxiliam na transferência de pacientes

para hospitais ou equipes médicas que usam alternativas às transfusões de sangue.

Também fazem trabalho de esclarecimento junto aos profissionais de saúde quanto

a esses tratamentos alternativos, bem como em relação aos riscos das transfusões

de sangue (LEIRIA, 2009).

Em tal hipótese, não é difícil perceber a gravidade da escolha a ser feita pelos

médicos: respeita-se a autonomia de vontade do paciente ou intenta-se salvar a

vida? Por outro lado, as conseqüências dessa escolha poderão se revelar

desastrosas para o médico, em termos de responsabilidade civil.

Desta forma, este estudo questiona se é legítima a recusa das Testemunhas

de Jeová em se submeter à tratamentos médicos/cirurgias que envolvam a

administração de sangue e seus derivados, mesmo nos casos de iminente risco de

vida?

Estudar a responsabilidade civil médica diante da transfusão de sangue

contra a vontade do paciente por motivo de crença religiosa se justifica, por se tratar

1 Para as Testemunhas de Jeová é inaceitável receber transfusões de sangue total (glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaqueta e plasma). Entretanto, dizem que é uma questão de consciência – cabe ao adepto decidir – se aceitará frações desses quatro componentes primários do sangue. Os glóbulos brancos, por exemplo, podem ser fonte de interleucinas e interferons (usados para tratar infecções virais e algumas espécies de câncer).

10

de um assunto que possui importantes reflexos na esfera médica – acarretando

dilemas éticos, pois os médicos estão condicionados a enxergar a manutenção da

vida biológica como o bem supremo – e no âmbito jurídico, no qual se debate se é

direito do paciente recusar um tratamento médico por objeção de consciência

quando este, aparentemente, é o único meio apto a lhe salvar a vida.

A questão é delicada e é considerada pela doutrina como um caso de difícil

resolução porque não existe uma regra jurídica escrita que de plano privilegie um

dos princípios em conflito, não se trata de uma situação em que a mera subsunção

da norma ao caso já define o seu desfecho, quase que automaticamente. Pelo

contrário, deve-se analisar todos os direitos fundamentais envolvidos na situação

concreta e procurar extrair do sistema a sua vontade preponderante.

Partindo do ponto de que essa interpretação é a base de um dogma religioso

e como tal deve ser admitido, respeitado e analisado, pela ótica jurídica, esta

pesquisa, com base em bibliografia variada incluindo internet, artigos de revistas

jurídicas e pareceres de juristas renomados, tem como objetivo de analisar a colisão

dos direitos fundamentais mediante análise dos direitos fundamentais à liberdade

religiosa e à vida, garantidos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e o

Código de Direito Civil, quanto à responsabilidade civil médica diante da transfusão

de sangue contra a vontade do paciente por motivo de crença religiosa.

Portanto, o assunto será dividido, para melhor entendimento, da seguinte

forma:

Inicialmente aborda-se a recusa à terapia transfunsional por motivação

religiosa, posteriormente trata-se sobre os direitos fundamentais garantidos pela

constituição Federal: Liberdade de consciência e de crença, direito à privacidade e

direito à vida. Enfatiza-se ainda, sobre a recusa da transfusão de sangue pelo

paciente, analisando-se a visão das diferentes correntes doutrinárias: Comunitarista,

Procedimentalista e Liberal. Estuda-se ainda, a responsabilidade médica diante da

transfusão de sangue contra a vontade do paciente por motivo de crença religiosa e

finalmente as decisões jurisprudenciais.

11

2 RECUSA À TERAPIA TRANSFUNSIONAL POR MOTIVAÇÃO REL IGIOSA

Segundo Carvalho e Goldim (2001), a recusa à terapia transfusional por

motivação religiosa, manifestada por pacientes em perigo de vida não é mais

freqüente do que se imagina e, consequentemente, desencadeia uma série de

conseqüências que merecem a atenção, quanto ao aspecto dos Direitos

Fundamentais, por se tratar de situação diretamente ligada ao ser humano,

envolvendo sua liberdade, vida e dignidade.

Afirma-se que determinados textos do Antigo Testamento proíbem o povo de

Deus de alimentar-se com sangue e de acordo com TOKARSKI (2005) o

fundamento para a proibição do recebimento de transfusão baseia-se nos seguintes

textos bíblicos:

“Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento: eu vos dou tudo isto,

como vos dei a erva verde. Somente não comereis carne com a sua alma, com seu

sangue (Gênesis 9: 3-4.)” (BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 56).

“A todo israelita ou a todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer

qualquer espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei do

meio de meu povo (Livro Levítico 17:10)” (BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 161).

Embora estes versículos não estejam expressos em termos médicos, as

Testemunhas consideram que proíbem a administração de transfusão de sangue

total, de papas de hemácias, e de plasma, bem como de concentrados de leucócitos

e de plaquetas. Entretanto, o entendimento religioso das Testemunhas não proíbe

de modo absoluto o uso de componentes, como a albumina, as imunoglobulinas e

os preparados para hemofílicos; cabe a cada Testemunha decidir individualmente se

deve aceitar a esses (JAMA, 1981; 246:2471-2472).

As Testemunhas crêem que o sangue retirado do corpo deve ser inutilizado,

de modo que não aceitam a autotransfusão de sangue retirado de antemão e

guardado. As técnicas de coleta ou de hemodiluição intra-operatórias que envolvam

guardar o sangue para ser reposto, lhes são inaceitáveis. Entretanto, muitas

Testemunhas permitem o uso de equipamento de diálise, do coração-pulmão

artificial (não se empregando sangue como volume de escorva), e o

reaproveitamento intra-operatório, caso a circulação extracorpórea seja ininterrupta;

12

o médico deve consultar o paciente sobre o que a consciência deste lhe dita (JAMA,

1981; 246:2471-2472).

De acordo com Soriano (2002) as Testemunhas de Jeová não têm a intenção

de renunciar à vida quando negam a terapia transfusional. Apenas manifestam a

vontade de serem submetidas a tratamento alternativo ao sangue.

Não obstante, os que professam a orientação das Testemunhas de Jeová não pretendem renunciar à vida, porquanto almejam continuar vivos. Assim sendo não recusam tratamento médico. Argumentam, entretanto, que se poderiam utilizar tratamentos alternativos para se evitarem as transfusões sangüíneas, que, por sinal podem acarretar inúmeras infecções, inclusive a temível AIDS (SORIANO, 2002, p. 118).

Uma publicação médica explanou extensivamente os riscos envolvidos nas

transfusões:

As transfusões são perigosas. Podem causar reações do tipo hemolítico,

leucoaglutinante e alérgico. O perigo principal é a infecção induzida pela transfusão.

O maior perigo é a transmissão da hepatite não-A, não-B. Calcula-se que de 5% a

15% dos doadores voluntários são portadores deste vírus. Os testes laboratoriais

prévios à doação, para detectar os anticorpos contra o "core" da hepatite B,

permitem detectar entre 30% e 40% dos portadores do vírus da hepatite não-A, não-

B. A vasta maioria dos casos de hepatite pós-transfusional são subclínicos, visto que

a enfermidade evolui durante vários anos. Uma alta porcentagem de receptores

infectados contraem cirrose (BRUMLEY et al., 1999).

Algumas pesquisas mostram que pelo menos cerca de 5% do total de

pessoas que recebem transfusões de sangue nos E.U.A contraem hepatite (o que

representa uma margem de 175.000 por ano), e que cerca de 4.000 morrem! As

perspectivas não são muito animadoras, pois outros vírus ainda não detectáveis nos

testes de bolsas de sangue podem causar a hepatite. Isso sem mencionar diversas

outras doenças que são contraídas como a sífilis, malária, vírus da herpe, a

toxoplasmose, tripanossomíase, tifo, leishmaniose e a temível AIDS (MARINI, 2005).

O mais preocupante é que os testes realizados nos bancos de sangue não

geram a segurança que muitos pacientes imaginam ter. Um dos diretores da Cruz

Vermelha Americana, ao abordar os autos custos que envolvem tais testes,

declarou: "Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para

cada agente infeccioso que poderia ser disseminado" (ASSOCIAÇÃO TORRE DE

13

VIGIA, 1990, p. 10). O Dr. Neil Blumberg, diretor da Unidade de Medicina

Transfusional e do Banco de Sangue da Universidade de Rochester, de Nova York,

E.U.A., numa estimativa conservadora, afirmou que o número de mortos em seu

país devido a tais infecções provenientes das transfusões gira em torno dos 10.000

a 50.000 por ano (ASSOCIAÇÃO TORRE DE VIGIA, 1990).

De fato, as transfusões não têm o caráter salvador que o público imagina.

Ademais, apresenta um desconfortável grau de periculosidade e morbidade. Devido

a estes riscos, a Presidential Commission on the Human Immunodefidiency Vírus

Epidemic (E.U.A.), recomendou que antes de realizar uma transfusão de sangue, o

médico deve obter o consentimento de seu paciente, e que o procedimento deve

incluir uma explicação dos riscos implicados na transfusão de sangue e de seus

componentes, entre eles a possibilidade de contrair o HIV, bem como informações

sobre terapias alternativas à transfusão de sangue homólogo2 (MARINI, 2005).

De modo geral, pacientes que não aceitam sangue como tratamento são

pessoas que prezam sua vida. Pessoas esclarecidas que, procuram tratamento

médico sempre que dele necessitam, reivindicando não o "direito de morrer", como

de forma sensacionalista vez por outra se alega, mas apenas que desejam receber

um tratamento de qualidade, porém isento de hemotransfusão (BASÍLIO, 2005).

O direito do paciente que não aceita sangue por convicções religiosas não é

diferente do direito de qualquer pessoa de escolher o tipo de tratamento médico que

deseja para si, o que se baseia nos princípios constitucionais do direito à vida e livre

disponibilidade, dignidade, liberdade de consciência e crença, liberdade de culto,

não privação de direitos por motivo de crença religiosa e privacidade (BASÍLIO,

2005).

Bastos (2001) afirma que atualmente, com a grande evolução da ciência

médica quanto ao desenvolvimento de tratamentos e cirurgias sem a utilização de

sangue, a transfusão já não é considerada com a única terapêutica capaz de salvar

a vida do paciente que dela necessite.

2 Porque respeitar a escolha de tratamento médico sem sangue", Dr.Philip Brumley, José Cláudio Del Claro e Miguel Grimaldi Cabral de Andrade, Julho de 1999, pg.10.

14

Há sim outros tratamentos alternativos – desenvolvidos e utilizados por médicos alopatas, e não por sectários de uma religião específica – que atingem o mesmo resultado. São eles: os expansores do volume do plasma, os fatores de crescimento hematopoéticos, a recuperação intra-operatória do sangue no campo cirúrgico, a hemostasia meticulosa etc. O fato de se ter mais de um tratamento em substituição à transfusão de sangue já nos leva logo a concluir que este não é o único modo de salvar a vida do paciente. Pode-se, portanto, prescindir dele por outras formas alternativas de tratamento (BASTOS, 2001, p. 493).

Constantino (1998), em réplica às críticas tecidas ao seu artigo "Transfusão

de Sangue e Omissão de Socorro", explica que as denominadas Testemunhas de

Jeová interpretam erroneamente a passagem bíblica de Atos, cap. 15, vers. 20, em

que os Apóstolos, trazendo algumas regras do Antigo para o Novo Testamento,

recomendaram aos novéis cristãos (isto é, aos recém-convertidos do Paganismo ao

Cristianismo), que se abstivessem do sangue; a sobredita seita vê, aqui, uma

proibição implícita da realização de transfusões sanguíneas. Entretanto, o leitor

atento, lendo todo o capítulo 15 de Atos, entende que a questão posta em debate

era se algumas normas do Judaísmo (Antigo Testamento) deveriam ou não

prevalecer no Cristianismo (Novo Testamento); a conclusão foi a de se conservarem

as regras contidas no versículo 20, entre elas, a abstenção do sangue; porém, tal

proibição, oriunda do Antigo Concerto, era a de se comer o sangue dos animais

(GÊNESIS, 9:4; LEVÍTICO, 3:17). Só dos animais, pois, naquela época, nem se

sonhava com transfusões sangüíneas, entre seres humanos... As Testemunhas

retrucam que o sangue humano equipara-se ao sangue dos animais, o que é uma

falácia, pois a própria Bíblia diz que "a carne (natureza física) dos homens é uma e a

carne dos animais é outra" (I CORÍNTIOS, 15:39). Por fim, argumentam as

Testemunhas que, se não se pode comer, pela boca, o sangue, não se pode,

também, ingeri-lo pela veia, em uma transfusão.

Contudo, a reação metabólica é completamente diferente, ao se comer o

sangue (de animais) e ao se tomar uma transfusão de sangue (humano) pela veia:

quando se come o sangue (animal) - pela boca, é óbvio -, o organismo absorve as

gorduras e proteínas, mas a massa sangüínea é posta fora, após a digestão, pelas

fezes; quando se toma uma transfusão de sangue (humano), pela veia, a massa

sangüínea aplicada não é eliminada pela digestão, mas incorpora-se no sangue do

paciente (LEME, 2005).

15

Os fiéis desta religião, os intitulados Testemunhas de Jeová, não aceitam a

transfusão de sangue por entender que "o sangue de outrem é impuro, moralmente

contaminado" (KFOURI NETO, 2003, p. 173).

Entretanto, não cabe aqui analisar as justificativas bíblicas para esta recusa,

objetiva-se apenas informar o possível fundamento religioso que leva os seguidores

desta religião a preferirem a morte a uma transfusão sanguínea.

16

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS GARANTIDOS PELA CONSTITU IÇÃO

3.1 LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA

As testemunhas muitas vezes processam médicos e hospitais quando se

vêem desrespeitadas na sua crença religiosa. Por exemplo, no Canadá, o Tribunal

de Recursos de Ontário, no ano de 1990, apoiou um processo de indenização por

danos, pelo fato de que um médico desconsiderou o Cartão em que estava expressa

a não aceitação da infusão de sangue pelo paciente em toda e qualquer

circunstância. Nos Estados Unidos, têm sido instaurados vários destes processos

(SÁ, 2000).

A liberdade de consciência proporciona ao indivíduo manifestar seus

pensamentos, sentimentos e convicções, e esse direito está tutelado na Constituição

como um "direito e garantia fundamental" (art.5º, VI, C.F.), decorrente do

fundamento da "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III, C.F.). Quando se analisa o

tripé "liberdade de consciência" (a qual projeta a "liberdade de crença"), "direito a

privacidade" (art.5º, X. C.F.) e "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III C.F.),

chega-se à conclusão de que o mesmo está inquestionavelmente ligado à

substância humana (BRASIL, 1998).

“O dispositivo constitucional concretiza uma das vertentes da liberdade de

expressão de pensamento: a liberdade de espírito” (BASTOS, 2001, p. 497).

A liberdade está intimamente ligada à legalidade, pois, em conjunto,

significam que as pessoas são livres para exercerem quaisquer atos, salvo os

proibidos em lei.

Liberdade, consiste esse direito em poder a pessoa direcionar suas energias,

no mundo fático, em consonância com a própria vontade, no alcance dos objetivos

visados, seja no plano pessoal, seja no plano negocial, seja no plano espiritual

(BITTAR, 2003)

O direito à liberdade possui vários elementos que o compõe, sendo que,

interessa para o presente a elucidação do direito à liberdade religiosa, em seus

aspectos da liberdade de consciência, de crença e sua livre manifestação.

“No mesmo contexto da liberdade de pensamento, há que se destacar a

liberdade de opinião, cuja característica é a escolha pelo homem de sua verdade,

não importando em que domínio: ideológico, filosófico ou religioso" (BASTOS, 2001,

17

p. 497) destaca a liberdade de consciência como sendo expressão da liberdade de

opinião quando tem como objeto: a moral e a religião. A intenção é, então, garantir a

liberdade de espírito sob a ótica religiosa e moral.

Faz-se necessário diferenciar a liberdade de consciência com a de crença,

pois estas não se confundem, já que "uma consciência livre pode determinar-se no

sentido de não ter crença alguma" (BASTOS, 2001, p. 497).

Nesse contexto, percebe-se que o direito à liberdade de consciência e de

crença como valores diferentes que se igualam na medida, que a Constituição

protege a recusa à prática de determinados atos devido à autonomia individual, que

pode se consubstanciar em motivações de ordem religiosa ou não. Define-se, assim,

que a recusa dar-se-á por motivos de foro íntimo, materializado em convicções

pessoais, e será garantida, desde que não contrarie a ordem pública ou não importe

em ofensa a outro valor que, considerando o caso concreto, se imponha como

superior e, assim, prevaleça (LEME, 2005).

Tem-se presente, que a liberdade religiosa é uma das formas por que se

explicita a liberdade. Compreende-se que "não há verdadeira liberdade de religião

se não se reconhece o direito de livremente orientar-se de acordo com as posições

religiosas estabelecidas" (BASTOS, 2001, p. 499), ou seja, o direito à liberdade

religiosa pressupõe a sua livre manifestação.

Dessa forma, respeitados os preceitos de ordem pública, isto é, as

imposições legais, há o direito dos indivíduos manifestarem a orientação religiosa

por eles seguida, sendo-lhes assegurado o direito de recusa à prática de atos que

atentem contra as suas convicções pessoais (BASTOS, 2001).

A Teoria dos Direitos Fundamentais registra, pelo menos, três “gerações” ou

“dimensões” de direitos fundamentais, e a liberdade religiosa é um direito de 1ª

geração.

“A primeira geração é aquela em que aparecem as chamadas liberdades

públicas, “direitos de liberdade”, que são direitos e garantias dos indivíduos a que o

Estado omita-se de interferir em uma esfera juridicamente intangível” (GUERRA

FILHO, 1999, p. 40).

Só há plena liberdade política e cultural, se houver plena liberdade religiosa,

como também a expansão da liberdade religiosa fica ameaçada se não houver plena

liberdade política.

18

A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorram (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres (MIRANDA, 1993, p. 359).

O fenômeno religioso é também comunitário. A religião implica a relação de

uma pessoa com outra. A liberdade religiosa é também das confissões religiosas. Se

o Estado puser os cidadãos em condições que os impeçam de praticar a religião,

apesar de lhes conceder o direito de ter uma religião, não haverá, nesse caso,

liberdade religiosa (SÁ, 2000).

Ao abordar os aspectos que integram a "liberdade de culto", Bastos (2001, p.

13) elucida que “a religião não pode (...) contentar-se com sua dimensão espiritual,

isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai, contudo, via de regra,

procurar uma externação (...) a que se denomina ‘liberdade de culto’”.

Entende-se por liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem

qualquer opção religiosa do indivíduo. Assim, as restrições decorrentes da

invocação religiosa estariam, igualmente, albergadas sob este título, sendo certo

que, como dito, não há verdadeira liberdade de religião se não se reconhece o

direito de livremente orientar-se de acordo com as posições religiosas estabelecidas.

O culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas,

templos, dentre outros. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em

todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação.

De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício

dos cultos religiosos, mas apenas proteção aos locais de culto e as suas liturgias

(BASTOS, 2001).

Segundo Marini (2005), a liberdade de religião não consiste apenas em o

indivíduo estar autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os

preceitos de sua fé. Dentre estes se destacam os cultos religiosos e suas liturgias.

Isto também abrange a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida,

como na literatura, na melodia ou na escolha de tratamentos médicos.

Jean Rivero, na obra Les Libertés Publiques (1977 apud FERREIRA FILHO,

1994, p. 148), sobre a ‘especificidade do fato religioso’, tece as seguintes

considerações:

19

A religião afirma a existência de realidades sobrenaturais, a propósito das quais o homem está em situação de dependência: a religião organiza as relações que esta dependência postula. O crente adere a esta informação, aceita esta organização de suas relações com o sobrenatural. Em vista disso, sua adesão transborda largamente a simples profissão de uma opinião num outro domínio, pois ela comporta, não uma mera preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade considerada como objetiva, transcendente e superior a todas as outras. Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente conseqüente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.

De acordo com Amaral (2007) admitindo que o artigo 5º da Constituição

Federal estabelece como inviolável a liberdade de consciência e de crença, o

mesmo dispositivo legal dispõe, no entanto, que ninguém será privado de direitos

por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.

Portanto, mesmo que haja previsão constitucional acerca do direito à crença,

insta salientar que nenhum direito é absoluto, porquanto encontra limites nos demais

direitos igualmente consagrados na Constituição Federal. Assim, havendo conflito

entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, deve ser utilizado o princípio

da harmonização, haja vista que a CF também garante o direito à vida (AMARAL,

2007).

Entendimento contrário é destacado por Weingartner Neto (apud Bastos

2001, p. 20).

O Estado deve levar a sério o fato de que a religião ocupa um lugar central na vida de muitas pessoas, devendo, portanto, ‘consideração e respeito por todas as formas de religiosidade, mesmo pelas mais inconvencionais (núcleo da livre escolha de crença – CPJ 1.1.2). O Estado tem, neste contexto, um dever de abster-se de perturbar; a adesão/abandono de uma confissão religiosa, a educação religiosa das crianças por seus pais ou responsáveis, o serviço religioso, o uso de indumentária própria ou de símbolos religiosos, etc. Trata-se de uma reserva de intimidade religiosa cujo mérito intrínseco é insindicável pelo Estado.

Porém, conforme elucida Amaral (2007, p. 1) “A ninguém é dado o direito de

dispor da vida, de modo que o direito à liberdade religiosa não pode sobrepor ao

direito à vida, constituindo dever de todos preservá-la”.

20

3.2 DIREITO À PRIVACIDADE

O Direito fundamental à Privacidade decorre da tutela constitucional no art.5º,

X: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,

assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua

violação" (BRASIL, 1998).

A privacidade é uma necessidade básica do ser humano, que deve garantir

ao indivíduo o direito de conduzir a vida com o mínimo de interferência, seja por

parte de uma outra pessoa ou do próprio Estado e, segundo Ferreira Filho (1994),

esse direito é a projeção do próprio fundamento constitucional da dignidade da

pessoa humana.

O jurista elucida que o direito à privacidade é dos que reclamam a não-

interferência, a não-ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo o

grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades

públicas clássicas que impõem um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em

benefício do titular que não pode ser violada por quem quer que seja. Reflete ela a

dignidade humana cuja primeira e principal expressão é a liberdade. Dela decorre

que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida como entender – fora

dos olhos da curiosidade e da indiscrição alheias – desde que não fira o direito de

outrem (FERREIRA FILHO, 1994).

Agrega, com base em famoso julgado da Suprema Corte Americana, que

duas são as facetas desse direito: a) evitar a divulgação de questões pessoais, e, b)

independência em tomar determinada espécie de decisões importantes.

Ferreira Filho (1994) frisou, que a doutrina e jurisprudência americana incluem

no direito à privacidade as decisões relativas ao próprio corpo (vacinações, testes de

sangue obrigatórios); concepção e contracepção; tratamentos médicos; e estilos de

vida.

A Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (o famoso Pacto de San

José da Costa Rica), no seu artigo 11, itens 1 e 2, garante a proteção da lei contra

interferências arbitrárias na vida privada, honra e dignidade do indivíduo (FERREIRA

FILHO, 1994).

O jurista Bastos (2001, p. 19) em parecer, bem gizou que:

21

Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos.

De acordo com Marini (2005), nesse contexto, a transfusão de sangue

forçada, ferem a honra, a intimidade e a privacidade do indivíduo, o que é uma

afronta à tutela do art.5º, X, da Constituição Federal.

3.3 DIREITO À VIDA

O direito à vida está previsto no "caput" do art.5º da Constituição. Este

consiste não só no direito de não ser morto pelo Estado ou algum particular, mas

também á uma vida digna, ou seja, também é uma projeção do fundamento

constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, C.F.) (BRASIL, 1998).

Esse direito fundamental à vida é garantido e serve como prerrogativa do

indivíduo ao estabelecer um limite à atuação estatal. Dessa forma, é entendido como

inviolável: há a obrigação do Estado e de particulares em não realizar condutas que

atentem contra o direito à vida. No Estado de Direito Democrático e Social, não se

permite à disponibilidade do direito à vida, por reconhecer a supremacia da

dignidade da pessoa humana como seu fundamento e entender a vida como

pressuposto básico para que se manifestem os outros direitos fundamentais que, em

conjunto, formam o substrato mínimo necessário à dignidade humana (LEME, 2005).

Registre-se, como argumento lógico, que a própria etimologia da expressão

“direito à vida digna” pressupõe uma inicial existência de vida, para a posterior

obtenção da sua dignidade, sendo esta uma qualidade da vida. Resumindo, poderá

haver vida sem dignidade, mas nunca dignidade sem vida (MACEDO, 2006).

De acordo com Cernicchiaro (1999) o bem da vida não é passível de

disposição, pois, o Direito Penal brasileiro volta-se para um quadro valorativo. Nesse

contexto, oferece particular importância à vida (bem jurídico). Daí ser indisponível (o

homem não pode dispor da vida). A irrelevância penal do suicídio decorre de Política

Criminal, a fim de a pessoa que tentou contra a própria vida seja estimulada a mudar

22

de idéia, o que provocaria efeito contrário se instaurando inquérito policial, processo

e, depois, condenação, cumprimento da pena.

O direito à vida é pressuposto material do exercício dos demais direitos,

constitui antecedente lógico do direito fundamental à liberdade e apenas será por

este sobrepujado havendo manifestação consciente do paciente, na qual invoque de

forma inconteste a sua vontade de não realizar a transfusão. Isto se ele não estiver

em estado de perigo iminente3.

Analisando uma situação fática, de acordo com Kfouri Neto (2003) no relato

de um obstetra, descrito em sua obra, o médico conta que o seguinte:

Para salvar a vida de uma paciente, que se recusava terminantemente, por motivos religiosos, a consentir em transfusão, após difícil parto, praticou tal ato, contra a vontade da parturiente e de seu marido. A mulher, após obter alta, não foi aceita em seu lar, pelo cônjuge, nem pôde mais freqüentar a Igreja, sendo repudiada por todos (KFOURI NETO, 2003, p. 176).

Trata-se de situação extremamente delicada, a qual requer um juízo de

ponderação minucioso, que leve em consideração todos os valores envolvidos

(KFOURI NETO, 2003).

Já Marini (2005), entende que a Constituição Federal, além de garantir o

funcionamento biológico do indivíduo, garante também seu bem estar físico,

emocional-psicológico e espiritual. Dessa forma o legislador vai além de prover a

mera existência biológica do indivíduo, objetivando também resguardar sua

intimidade, privacidade, consciência, crença, segurança, dentre outros. Percebe-se

que, todos esses bens jurídicos devem ser levado em consideração, pois, por mais

que um médico bem intencionado realize uma transfusão de sangue forçada

acreditando que é o melhor para salvar a vida de seu paciente, na realidade, ele

poderá estar ferindo os sentimentos mais íntimos do cidadão, estigmatizando-o

permanentemente com a infelicidade! O ideal é obter a cura física do ser humano

sem ferir-lhe psicologicamente.

3 Um risco de dano determinado, palpável e iminente, ou seja, que está para acontecer" ou "em vias de concretização" (NUCCI, 2002. P.418). Entende-se que é aquela situação em que o paciente tenha sofrido hemorragia de grande monta ou necessite ser submetido a uma intervenção cirúrgica, ou até mesmo quando está no meio desta, e torna-se imprescindível a transfusão sanguínea para preservação de sua vida (LEME, 2005).

23

4 RECUSA DA TRANSFUSÃO DE SANGUE PELO PACIENTE

Nos casos em que é possível o tratamento alternativo e é desnecessária a

transfusão sangüínea, é evidente que a liberdade religiosa do paciente deverá ser,

sempre, respeitada. Nesse particular, não há dúvida alguma. Todos os pacientes,

nessa condição, são tratados, sem a administração de sangue, por via endovenosa,

mediante, principalmente, a infusão de fluidos (soro à base de cloreto de sódio,

ringer etc.) e a administração de eritropoitina exógena e de expansores sintéticos de

plasma, independente da religião professada pelo paciente. A terapia transfusional

só é utilizada, quando há risco de vida4 e a infusão de fluidos e demais terapias

alternativas são insuficientes. Eis que surge, nesse ponto, não apenas um problema

médico, mas jurídico, sem dúvida alguma, de difícil solução (MENITOVE, 1997).

A recusa do paciente em efetuar transfusão sanguínea não pode ser

comparada com os casos de aborto e eutanásia porque, diferentemente deles, não é

um ato de escolha pela morte. A recusa em realizar a transfusão sanguínea não é a

causa direta da morte da pessoa, este é apenas um procedimento indicado para

restaurar a saúde do paciente, apesar de não prometer a cura, pois, o que colocou a

vida humana em risco foi uma doença ou a realização de um procedimento cirúrgico

prévio que exige a realização da transfusão (DWORKIN, 2001).

Portanto, se não há uma similitude entre as hipóteses fáticas do aborto e da

eutanásia com a recusa da paciente em realizar uma transfusão sanguínea, não se

pode estender por via de interpretação sistemática, as proibições jurídicas das

primeiras para a última, não se permite por via de interpretação extensiva que se

restrinja a autonomia da pessoa nesse caso da testemunha de Jeová:

Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores (DWORKIN, 2001, p. 319).

4 Há risco de choque hipovolêmico, portanto, risco de vida, "quando a perda de sangue atinge aproximadamente 25 a 30% do volume sangüíneo". Os níveis de Hb/Ht (hemoglobina/hematócrito) são variáveis, considerando-se os mecanismos compensatórios. Daí a necessidade de monitoramento individual para se determinar se os tecidos do paciente estão sendo (ou não) perfundidos adequadamente com o suprimento de oxigênio.

24

A questão da autonomia está relacionada à idéia de integridade, à permissão

da valorização dos valores, das convicções e interesses de cada um, de modo a que

o direito individual de autonomia torne possível a autocriação, está o jurisfilósofo

americano Dworkin (2001, p. 316), para quem o Direito:

Permite que cada um conduza a sua própria vida, em vez de se deixar conduzir ao longo desta, de modo que cada qual possa ser, na medida em que um esquema de direitos possa tornar isso possível, aquilo que fez de si próprio. Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores.

Não se pode negar que há um impulso no ser humano em geral na tentativa

de evitar a morte a qualquer preço pelo medo que o desconhecido lhe causa, pela

angústia de não saber do depois, pelo medo do vazio, do nada. Mas o homem

acaba esquecendo que, para alguns, angústia maior é uma vida sem dignidade, sem

seus princípios norteadores, sem suas convicções íntimas e sua moral (LOPEZ,

2006).

Mas o Direito é um dos instrumentos sociais mais capazes de frear os

impulsos humanos, de impedir as decisões baseadas na vontade de apenas um ou

de poucos indivíduos, porque a lei está posta para indicar o caminho e os

fundamentos das escolhas mais relevantes. Portanto, voltando à apreciação do caso

concreto, se o Estado decidir que um indivíduo tenha sua dignidade destruída ou ao

menos profundamente abalada, porque entende que a vida humana tem mais valor,

há que se rever todo o fundamento do Estado de Direito na sociedade brasileira, a

começar pela disposição do art.1º, III da CF. Um Estado que pratica o referido juízo

de peso também deveria ser compelido, por exemplo, a alimentar diariamente as

milhares de crianças que acabam morrendo de desnutrição por falta de alimento, de

doenças decorrentes da falta de saneamento básico, pessoas que morrem pela falta

de medicamentos e de vagas nos hospitais, enfim, todas as milhares de causas

indiretas das incontáveis mortes diárias no Brasil de uma maioria excluída e

miserável (LOPEZ, 2006).

A vida humana deveria ser uma razão para promover a dignidade, não para

destruí-la. Se a testemunha de Jeová for obrigada a realizar o procedimento que

viola profundamente suas convicções, poderá até sobreviver à doença ou à

operação, mas terá uma sobrevida sem dignidade pessoal, provavelmente apartada

25

de seu meio social, e profundamente abalada em sua integridade, seu amor-próprio,

suas perspectivas (LOPEZ, 2006).

Havendo a recusa do tratamento por parte do paciente ou de seu

representante legal, cada caso, em particular, poderá ser solucionado a critério

médico, nas situações de emergência, ou através da tutela jurisdicional, quando

houver a necessidade de se recorrer a esse meio de resolução de conflitos. Nesse

último caso, o médico pode obter uma liminar, autorizando a realização do

tratamento. O médico é o único árbitro, que deve tomar as decisões nas situações

de emergência. Em face do iminente perigo de vida, em alguns casos, não há

tempo, para se recorrer ao judiciário. Assim se manifestou Constantino (1998, p. 56):

é o médico quem vai "definir se é necessária uma transfusão de sangue ou outro

tratamento alternativo; sendo a transfusão necessária, o profissional da medicina

não pode omitir-se de aplicá-la, em razão da religião de seu paciente, pois a vida é o

direito maior, irrenunciável, de ordem pública".

4.1 VISÃO DAS DIFERENTES CORRENTES DOUTRINÁRIAS

Quanto à recusa de transfusão de sangue pelo paciente, faz-se necessário

abordar as correntes Comunitaristas, procedimentalista e liberal.

4.1.1 Comunitarista

Formada por teóricos como Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e

Alasdair MacIntyre, a corrente “comunitária” participa dos debates contemporâneos

sobre os ideais de justiça social defendendo a tradição aristotélica. Quando se

referem às sociedades modernas como “pluralistas”, os comunitários interpretam tal

adjetivação de modo distinto dos teóricos liberais, concebendo o pluralismo como a

diversidade de identidades sociais, específicas culturalmente e únicas do ponto de

vista histórico. Do ponto de vista público, o pluralismo se expressa através de uma

grande variedade de valores diferentes, incomensuráveis e incompatíveis

defendidos por comunidades e grupos distintos (LEITÃO, 2007).

26

Tal ênfase na multiplicidade de identidades sociais e culturais étnicas

presentes na sociedade contemporânea certamente advém da descrença na

existência de um sujeito universal e a-histórico, crendo ser impossível a concepção

de uma identidade individual constituída sem referência à comunidade social na qual

se insere. Concebendo a justiça como a virtude na aplicação de regras conforme as

especificidades de cada meio ou ambiente social, criticam os liberais por não serem

capazes de lidar com situações intersubjetivas e de ver os diálogos apenas como

uma “sucessão alternada de monólogos” (LEITÃO, 2007).

Grosso modo, isso implica que, ainda que implicitamente, tais pensadores

dão prevalência às coletividades sobre os indivíduos, ou seja, a autodeterminação

das comunidades tem precedência sobre os direitos fundamentais individuais, pois,

afinal de contas, é a comunidade que determina que direitos ela considera

fundamentais. Um exemplo concreto disso é a condenação pelos comunitários do

instituto do judicial review, ou seja, da declaração de inconstitucionalidade de leis

pelo poder judiciário quando contrárias a uma vontade legislativa efetivamente

popular e majoritária (LEITÃO, 2007).

Na medida em que vê a constituição como um projeto social, como uma forma

de afirmação da identidade política de uma comunidade, o pensamento comunitário

dá máxima importância à participação popular na interpretação e aplicação da

constituição. Assim, ele se tornou muito influente entre os constitucionalistas mais

progressistas, particularmente entre os americanos e os alemães, tendo chegado

aos brasileiros por intermédio dos ibéricos. A adoção entusiástica do comunitarismo

pela vanguarda constitucional brasileira corresponde ao desejo de romper com a

tradição positivista, formalista e civilista que inspira todo nosso ordenamento jurídico,

e teve grande impacto no processo constituinte de 1987 (LEITÃO, 2007).

O comunitarismo propõe que o indivíduo seja considerado membro inserido

numa comunidade política de iguais. E, para que exista um aperfeiçoamento da vida

política na democracia, se exiga uma cooperação social, um empenhamento público

e participação política, isto é, formas de comportamento que ajudem ao

enobrecimento da vida comunitária. Consequentemente, o indivíduo tem obrigações

éticas para com a finalidade social, deve viver para a sua comunidade organizada

em torno de uma só idéia substantiva de bem comum (GONÇALVES, 1998).

A liberdade e a identidade do homem não são características ontológicas

inatas à pessoa. Pelo contrário, aquilo que dá sentido à existência, são os conteúdos

27

substanciais (daí o comunitarismo defender uma ética perfeccionista) que tecem a

história própria de cada um. Estes conteúdos já estão inscritos na cultura, precedem

o indivíduo, por isso ele é pré-determinado na forma de definir a sua identidade e

exercer a sua liberdade (GONÇALVES, 1998).

Em relação ao grupo social, também a responsabilidade deve ser geral, isto é,

deve haver o interesse de cada um no bem-estar de outros membros do grupo. Não

só o interesse dele deve ser igual, mas também se faz necessário igual interesse por

todos os integrantes que compõem o grupo (QUEIROZ, 2002).

Não obstante a existência de uma hierarquia e de papéis distintos, as regras

devem dizer respeito ao interesse de todos os componentes do grupo; inclusive, nas

comunidades autênticas que satisfazem diversas condições, tem-se que estas

podem promover injustiças, serem responsáveis pela produção de conflitos entre

integridade e justiça de uma instituição. Conforme exemplificado no caso das

testemunhas de Jeová, a tribo religiosa poderá tomar decisões comunitárias injustas,

diante de pessoas que veneram, por exemplo, outro credo. Destarte, verdadeiras

obrigações comunitárias podem ser injustas de duas maneiras: a concepção de

interesse eqüitativo pode ser diferente para cada um dos membros e, ainda, o

próprio grupo pode ser injusto para com indivíduos que não são membros do

referido (QUEIROZ, 2002).

4.1.2 Procedimentalista

A proteção dos direitos fundamenta-se em uma compreensão

procedimentalista, onde o Tribunal Constitucional deve proteger o sistema de

direitos, que proporcionam a autonomia privada e pública dos cidadãos

(HABERMAS, 2003, p.324).

Tal função é legítima e justificada porque, segundo Habermas (2003, p. 330):

O tribunal constitucional, ao intervir na legislação política e ao suspender as normas aprovadas pelo parlamento, tem que apelar para uma autoridade derivada, inferida do direito de autodeterminação do povo. E nesse processo, ele só poderia recorrer a argumentos que justifiquem um apelo à soberania do povo.

28

Assim o papel da Suprema Corte, na compreensão procedimentalista, é o de

vigiar a manutenção da Constituição e prestar atenção aos procedimentos e normas

organizacionais das quais depende a eficácia legislativa do processo democrático,

tal compreensão fixa-se no caráter democrático do problema de legitimidade do

controle jurisdicional da constituição (HABERMAS, 2003).

Segundo Habermas (2003), a defesa da legitimidade do direito, também se dá

através do tribunal constitucional. Para ele a constituição determina procedimentos

políticos, segundo os quais, os cidadãos assumindo seu direito de

autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir

condições justas de vida. São as condições processuais da gênese democrática das

leis que asseguram, acima de tudo, a legitimidade do direito.

Assim a competência principal do tribunal constitucional é verificar se as

condições processuais da gênese das leis foram democráticas. Nesse sentido é o

posicionamento de Habermas (2003, p.326):

O tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. O esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do estado, não correspondem mais a esta intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada também é ameaçada através de posições de poder econômicas e sociais e dependentes por sua vez, do modo e da medida em que os cidadãos podem efetivamente assumir o direito de participação e de comunicação de cidadãos do Estado. Por isso o tribunal precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e de condições procedimentais do processo de legislação democrático.

O papel da Suprema Corte é o de vigiar a manutenção da constituição e

prestar atenção aos procedimentos e normas organizacionais das quais depende a

eficácia e a legitimidade legislativa do processo democrático (HABERMAS, 2003).

O controle abstrato das normas, na visão de Habermas (2003), deve garantir

uma origem democrática das leis, tal processo se dá ouvindo as vozes das minorias

e mantendo os canais de comunicações dessas vozes acessíveis de inclusão na

elaboração das leis.

29

Defende-se o controle abstrato das normas dando se atenção à gênese das

leis, para evitar que a vontade das maiorias tirânicas, influenciem o processo

democrático (HABERMAS, 2003).

Assim, o judiciário através do controle abstrato de normas, auxilia a manter o

processo democrático da elaboração das leis.

Dworkin (2001, p. 85) entende que a teoria de Ely está distorcida. “Se o

Tribunal não pode fazer os julgamentos sobre processo que Ely recomenda, sem

fazer os julgamentos sobre substância que ele condena, estão sua teoria está

distorcida e seus próprios argumentos”.

Diante desse contexto pode-se perceber que na doutrina procedimentalista a

viabilidade de uma fundamentação está baseada na regra da razoabilidade prática,

sem referência a pontos de partida objetivos.

Um direito fundamental se tem ou não se tem, não se pode ter pouco, tê-lo

prima facie. Direitos humanos, no sentido central e denso, quer dizer, direitos que

exigem respeito absoluto. A afirmação da existência de direitos e seus correlativos

deveres válidos sempre e sem ressalvas, mesmo contra interesses desejos,

utilidades e convenções humanas supõe a referência a uma fonte, um fundamento

absoluto, distinto do sujeito humano e capaz de vincular a vontade de modo

inexorável (TESSLER, 2002).

Mas se o direito à vida é direito humano básico, o direito de morrer com

dignidade também se inclui no espectro dos direitos humanos básicos e quem vai

decidir quando suspender o tratamento médico atendendo o desejo do paciente?

Percebe-se, que de acordo com a corrente procedimentalista há sentido

forçar, exigir a proteção de uma vida à custa da dignidade dessa pessoa, porque o

sacrifício desse ato de imposição acaba sendo muito maior: a morte moral do

indivíduo.

4.1.3 Liberal

Os liberais espreitam a possibilidade de elaboração e fundamentação de um

ideal de justiça. Este deve ser capaz de assegurar a cada um dos atores sociais a

possibilidade de realização de seu projeto pessoal de vida, e que tal possibilidade

seja factível a todos. Neste aspecto, faz-se necessário a garantia de uma

neutralidade por parte do Estado, diante da prioridade dada à autonomia privada e

30

aos direitos fundamentais. Estes dois componentes devem ser protegidos das

interferências que podem advir das deliberações públicas, quaisquer que sejam elas

(DANTAS, 2007).

O campo vislumbrado como eficaz para consecução de tal objetivo é o Direito;

e é dele o papel de garantir a dita neutralidade estatal, bem como a prioridade da

autonomia privada e dos direitos fundamentais. O fundamento deste Direito é dado

através do papel atribuído ao sistema de direitos e garantias pela Constituição. A

interpretação desta Constituição deve se pautar pelos princípios e normas,

entendendo o Direito como prioritário sobre quaisquer das concepções de bem. À

mesma Constituição cabe a função de garantir liberdades negativas assecuratórias

da autonomia moral individual (DANTAS, 2007).

Os pensamentos de Ronald Dworkin e John Rawls são dois dos grandes

pilares de sustentação do edifício teórico liberal. Tratemos de Rawls (DANTAS,

2007).

O objetivo primeiro de Rawls é definir a idéia de Liberdade como sendo a

capacidade que cada cidadão deve ter de realizar seu projeto individual dentro do

que considere uma vida digna, sem interferência externa que o impeça. Para tanto,

Rawls enumera dois princípios (não exaustivos) de justiça. Utilizando-se da

metodologia do contrato, os dois princípios elaborados são os que as partes

escolheriam na chamada “Posição Original”, o momento da contratação. O primeiro

princípio (e prioritário) é o que deve assegurar direitos e liberdades básicas a todos.

Certo é, porém, que a falta de meios materiais pode impedir o desfrute que estes

direitos e garantias permitem. Assim, erige-se o segundo princípio, no sentido de

garantir a distribuição eqüitativa de bens primários. Esta distribuição, juntamente

com a garantia de direitos e liberdades, revelaria a existência de respeito mútuo em

tal sociedade, de maneira que o indivíduo que a integre possuiria a capacidade de

ter um sentido de justiça, e uma concepção individual de bem. Rawls entende que

os direitos e liberdades básicas são inalienáveis, e desta sua característica decorre

o fato de ser a Constituição o meio fixador, não só das restrições garantidoras

desses direitos e liberdades, mas também de sua prioridade (DANTAS, 2007).

Numa outra vertente surge o pensamento de Dworkin. Sua teoria aparece

como um “liberalismo novo” depurado da perspectiva utilitária, mas mantendo-se

crítico aos limites do positivismo. Dworkin extrapola tais limites, lançando luzes à

concepção moral incrustada de forma substantiva nos princípios jurídicos. Estes são

31

utilizados como alavanca possibilitadora de um salto para além de uma visão

meramente instrumental do Direito. Através dos princípios, poderemos então

entender o Direito não como um conjunto de normas e regras “únicas”, tal como os

positivistas, mas sim como uma atitude interpretativa, fundamentada em uma

concepção de complementariedade. Esta complementariedade abre espaço para a

exigência de que tanto o Estado (e a figura do Juiz Hércules), quanto os indivíduos

adequem suas ações a um conjunto de princípios morais/jurídicos compartilhados.

Assim, os princípios exigiriam uma estrutura política que viabilize o poder político de

maneira horizontal e comprometido com a justiça, além de normas que realizem de

forma eqüitativa a distribuição de recursos e oportunidades (DANTAS, 2007).

Sem dúvida, a idéia de um sistema político íntegro resgata o papel de “fiel da

balança” entre os direitos individuais e o bem estar da sociedade, que o liberalismo

tradicional havia deixado em algum lugar do passado. Isto porque a integridade

política vai exigir que as decisões públicas tomadas pelos atores sociais devam ser

justificadas pelos princípios políticos morais compartilhados. A legitimidade de tal

entendimento é clara: nas sociedades democráticas contemporâneas, é corrente a

idéia de que todos devam ser tratados com igual respeito e consideração. Neste

sentido, Dworkin constrói três princípios: o da participação, o da igual implicação e o

da pessoalidade das convicções morais e políticas, de forma que nenhum governo

possa moldar concepções individuais de bem, nem sobrepujar nenhum direito

individual, ainda que em nome do “bem estar social” (DANTAS, 2007).

No que concerne às relações entre liberalismo e justiça, o autor referido

sustenta preliminarmente que a concepção de igualdade é um dos princípios

centrais do pensamento liberal, tendo diversas repercussões no âmbito jurídico.

Nesse sentido, Dworkin (2001) salienta que o termo “liberalismo” tem sido utilizado

desde o século XVIII para descrever um conjunto de posicionamentos políticos e

econômicos. Desse modo, a teoria política possui como pressuposto a idéia de que

o liberalismo constitui uma certa moralidade específica e constante ao longo de

determinados tempos.

Dworkin (2001) salienta que existem duas formas básicas de liberalismo,

quais sejam, o liberalismo baseado na neutralidade e aquele fundamentado na

igualdade. Essas duas vertentes liberais apresentam distinções relevantes em

relação ao modo pelo qual devem ser implementadas metas e políticas

governamentais. O liberalismo baseado na neutralidade considera precípua a

32

concepção de que o governo não deve intervir em questões preponderantemente

morais ou axiológicas, de modo a se vincular de modo mais preciso a um certo

ceticismo moral e religioso. Já o liberalismo baseado na igualdade sustenta que o

governo deve tratar seus cidadãos da forma mais equânime possível, defendendo-

se a neutralidade moral apenas nos casos em que a isonomia assim exija.

Além dessa abordagem a respeito das duas formas primordiais de liberalismo,

Dworkin (2001) também faz explanações acerca da teoria da igualdade complexa.

Conforme elucida o referido autor, tal teoria se assenta em duas idéias

preponderantes. A primeira é atinente ao fato de que cada modalidade de recurso

dever ser distribuída segundo o princípio mais adequado e viável à sua esfera. Já a

segunda de tais idéias concerne ao fato de que eventuais êxitos em uma esfera

social não produzem excessos que propiciem a preponderância em uma outra

esfera.

Dworkin (2003), em seu livro intitulado Domínio da Vida, Aborto, eutanásia e

liberdades individuais, ao abordar o tema da autonomia da vontade, expressa a

seguinte opinião:

Nos contextos médicos, essa autonomia está freqüentemente em jogo. Por exemplo, uma testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstâncias desse tipo (DWORKIN, 2003, p. 319).

Lorenzetti (1998) também sugere que o Direito adota progressivamente uma

atitude cautelosa, dando primazia à liberdade do indivíduo, favorecendo sua

autodeterminação. Mais adiante ele completa:

Adota-se, assim, a regra do consentimento prévio para o ato do médico, de sorte que a sua contraface, a negativa, é válida. Por esta via chega-se a admitir o direito a recusar tratamentos médicos, mesmo contrariando o sugerido pelo médico e diante de uma situação de risco (LORENZETTI, 1998, p. 134).

A colombiana Restrepo (1997), ao concluir um trabalho voltado

especificamente ao estudo dos conflitos na eficácia jurídica da vontade do paciente,

diz que:

33

...el obligar a un paciente a someterse a un tratamiento que no quiere, cuando

su voluntad se torna seria y dotada de otras condiciones que la hacen relevante,

constituye una clara violación a su dignidad y a su integridad psíquica, moral y hasta

física5 (RESTREPO 1997, p. 186).

Esta mesma autora apresenta a posição da Corte Constitucional Colombiana

sobre o tema:

El sometimiento obligatorio de una persona a un tratamiento resulta inconstitucional porque "cada quien es libre de decidir si es o no el caso e recuperar su salud". "Si yo soy dueño de mi vida, a fortiori soy libre de cuidar o no de mi salud cuyo deterioro lleva a la muerte que, lícitamente, yo puedo infringirme 6 (RESTREPO, 1997, p. 187).

Enfim, muitos outros autores poderiam ser citados, mas o intuito não é

realizar uma coletânea de posicionamentos semelhantes, e sim solidificar a idéia de

que esse é um entendimento de inúmeros juristas e órgãos constitucionais dos mais

variados países, não é uma posição isolada, mas está crescendo e tomando força

em vários Estados Democráticos de Direito, inclusive na América latina.

Diante deste contexto entende-se, que de acordo com a corrente liberal a

liberdade religiosa deve receber prevalência em face do direito à vida, extraindo-se o

dever do médico em respeitar esta vontade e não efetuar a transfusão sanguínea.

5 Obrigar um paciente a submeter-se a um tratamento, quando sua vontade se torna séria e dotada de outras condições que a fazem relevante, constitui uma clara violação à sua dignidade e à sua integridade física, psíquica e moral. 6 A submissão obrigatória de uma pessoa a um tratamento resulta inconstitucional porque "cada um é livre para decidir se é ou não caso de recuperar sua saúde". "Se eu sou dono de minha vida, a princípio sou livre para cuidar ou não de minha saúde cuja deterioração leva à morte que, licitamente, eu posso imputar-me".

34

5 A RESPONSABILIDADE MÉDICA DIANTE DA TRANSFUSÃO DE SANGUE

CONTRA A VONTADE DO PACIENTE POR MOTIVO DE CRENÇA R ELIGIOSA

Quando a responsabilidade médica questiona-se se o médico realizar o

tratamento, sem a autorização do paciente ou responsável, estará sujeito, em tese, à

responsabilidade civil e criminal e praticado crime de constrangimento ilegal, previsto

no art. 146 do CP (SORIANO, 2001).

A orientação do Conselho Federal de Medicina - CFM é que:

No Brasil, a questão é enfocada, primeiro, pelo CFM, que buscou fixar-lhe abordagem ética, nos seguintes termos: "Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética, deverá observar a seguinte conduta: 1° Se nã o houver perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2a. Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis7 (KFOURI NETO, 2003, p. 171).

Percebe-se que se o médico segue, estritamente, a recomendação ética do

Conselho Federal de Medicina não deverá ser responsabilizado civilmente, se

praticar uma transfusão sangüínea sem a autorização do paciente, pois terá

cumprindo o seu dever ético e legal.

Em nenhuma hipótese poder-se-ia buscar reparação de eventual dano - de natureza moral - junto ao médico: se este realizasse, p.ex., a transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável - provado o grave e iminente risco de vida; se não a realizasse, diante do dissenso consciente do paciente capaz, seria impossível atribuir-lhe culpa. De qualquer modo, sendo o paciente menor de dezoito anos, incumbirá ao facultativo, como medida de cautela - e se as circunstâncias permitirem - requerer ao juízo da Infância e da Juventude permissão para realizar o ato indesejado pelos responsáveis (KFOURI NETO, 2003, p. 173).

Considera-se igualmente, afastada a responsabilidade penal conforme elucida

Cernicchiaro (1999, p. 51).

7 Arquivos-CRM-PR de 16/61/62.

35

Em decorrência não configura constrangimento ilegal (compelir, mediante violência, ou grave ameaça, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a que não está obrigada por lei) compelir médico a salvar a vida do paciente de perigo iminente e promover a transfusão de sangue, se cientificamente recomendada para esse fim. Aliás, cumpre fazê-lo, presente a necessidade. O profissional da medicina (em qualquer especialidade) está submetido ao Direito brasileiro. Tanto assim que as normas da deontologia médica devem ajustar-se a ele. Daí, não obstante ser adepto de "Testemunha de Jeová", antes de tudo, precisa-se cumprir a legislação vigente no país.

Segundo dispõe o art. 146 do Código Penal:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou

depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência,

a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a

execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de

seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio.

Portanto, de acordo com o dispositivo legal acima, a intervenção médica ou

cirúrgica, realizada sem o consentimento do paciente ou de seu representante, é

perfeitamente justificável em face do iminente perigo de vida.8 Esse perigo de vida

está presente nos casos em que a transfusão sangüínea é imprescindível (FRANÇA,

1998, p. 51).

O iminente perigo de vida justifica, plenamente, a existência do estado de

necessidade, que afasta tanto a responsabilidade civil como penal.

8 Essa conduta tem, inclusive, a chancela do Código de Ética Médica (resolução no. 1.246/88), que diz ser vedado ao médico: "Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.

36

6 DECISÕES JURISPRUDENCIAIS

Ao analisar a visão de alguns Tribunais acerca da matéria, percebe-se que

não há muitas decisões jurisprudenciais que abordam especificamente a questão e,

portanto, serão descritas apenas duas visões, procurando melhor representam o

entendimento global da questão.

“A jurisprudência por ele consultada não registra sequer uma demanda

indenizatória que condenasse o médico à reparação civil por ter procedido à

transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável”

(KFOURI NETO 2003, p. 175).

Na seara penal, o TACrimSP manifestou-se sobre a matéria e, nas palavras

do autor supracitado, o acórdão "contém preciosas lições - e serve de paradigma",

as quais entende-se pertinente colacionar:

A vida humana é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade que ao

indivíduo, egoisticamente, e a lei vigente exerce opção axiológica pela vida e pela

saúde, inadmitindo a exposição desses valores primordiais na expressão literal do

texto, a perigo direto e iminente [...] Uma vez comprovado efetivo perigo para a

vítima, não cometeria delito nenhum o médico que, mesmo contrariando a vontade

expressa dos por ela responsáveis, à mesma tivesse ministrado transfusão de

sangue9.

No acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Des.

Sérgio Gischkow Pereira aborda a matéria de forma a resumir seus pontos de maior

relevância e profere, com propriedade, o seu posicionamento acerca do tema.

Segue, portanto, parte do seu voto, pois, considerando-se uma decisão justa:

CAUTELAR. TRANSFUSAO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Não

cabe ao poder judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar

tratamento médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e

salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é

direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para

salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer

que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico

9 TJRGS. Apelação Cível. 595000373. 6ª.C.C. Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira. Julgada em 28.03.1995. Disponível em www.tjrs.gov.br

37

e ao hospital demonstrar que utilizaram à ciência e a técnica apoiadas em séria

literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O

judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade

hospitalar. Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida

literatura médico - cientifica (não importando naturais divergências), deve ser

concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das

Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art.

146, §3°, I, do Código Penal). [...] O direito à vi da antecede o direito à liberdade, aqui

incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela

liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que

morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de

direito, que, aliás, norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor

às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores

brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais

relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e

não exterminá-la. [...] Abrir mão de direitos fundamentais, em nome de tradições,

culturas, religiões, costumes, é, queiram ou não, preparar caminho para a

relativização daqueles direitos e para que venham a ser desrespeitados por outras

fundamentações, inclusive políticas. [...] É o voto10.

Mas recentemente saiu uma decisão no Tribunal de Justiça de Minas

Gerais11:

Número do processo: 1.0701.07.191519-6/001(1) Relator: ALBERTO VILAS BOAS Data do Julgamento: 14/08/2007 Data da Publicação: 04/09/2007 Ementa:PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta

10 TJRGS. Apelação Cível. 595000373. 6ª.C.C. Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira. Julgada em 28.03.1995. Disponível em www.tjrs.gov.br 11 TJMG. Processo Civil. 1.0701.07.191519-6/001. Rel Alberto Vilas Boas. Julgada em 14/08/2007. Disponível em www.tjrs.gov.br

38

hospitalar. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR E DERAM PROVIMENTO. Acórdão: Inteiro Teor

39

7 CONCLUSÃO

Com base na pesquisa bibliográfica que se empreendeu é possível agora,

esboçar algumas considerações que esclarecem os resultados de estudos, podendo

concluir que, a questão que envolve a indicação médica de transfusão de sangue

em pacientes Testemunha de Jeová é das mais polêmicas e conhecidas. Esta

situação envolve um confronto entre um dado objetivo com uma crença, entre um

benefício médico e o exercício da autonomia do paciente.

Num Estado de Direito Democrático e Social, a liberdade é requisito da

democracia. A autonomia individual deve ser respeitada e, com ela, o direito de

consciência e de crença. As manifestações religiosas não se limitam ao exercício da

religião em templos. Entende-se que pressupõe a prática religiosa, com respeito aos

seus dogmas, em todas as circunstâncias da vida.

Não existem verdades inabaláveis, teorias indestrutíveis, impressões

irrefutáveis e que é saudável, senão fundamental ao jurista saber mudar de opinião

quando lhe seja demonstrado que outra tese é mais coerente, mais perspicaz ou

simplesmente mais justa para a solução do caso concreto. Portanto, faz-se

necessária a ponderação dos valores envolvidos, com aplicação dos princípios

específicos de Hermenêutica Constitucional, optando-se, finalmente, pelo direito que

melhor assegure a dignidade da pessoa humana.

A vontade manifesta do paciente 'Testemunha de Jeová", no sentido da

recusa da transfusão de sangue, encontra respaldo no disposto no art. 5.", 11, VI,

VI11 e X, da Constituição Federal de 1988, inserindo-se em sua esfera de liberdade,

que abrange inclusive a disponibilidade do direito á vida.

Esta mesma liberdade não se refere em aniquilar direito de igual envergadura

e garantido a todo e qualquer cidadão que, amparado na dignidade da pessoa

humana e no seu pressuposto (intangibilidade da vida), atua em favor de terceiros,

ainda que contra suas próprias vontades.

Em se tratando daqueles que possuem dever legal de agir (art. 13, s 2.", CP),

a intervenção em favor da vida não pode ser recusada sob pretexto algum, quando

tal intervenção é a única capaz de impedir a ocorrência do evento danoso.

Desta forma, todo profissional deve que trabalhar com a realidade de que

nem sempre seus clientes concordarão com o seu modo de pensar. Este é um fato

40

natural da vida. Por isso, é de fundamental importância que o médico tenha uma

mente democrática, não levando para o lado pessoal, e ser versátil em aprimorar

seus conhecimentos.

Não existe uma regra definitiva para ser aplicada à questão, pois a discussão

já se inicia ao tentar-se definir se há ou não uma verdadeira colisão de direitos

fundamentais, neste contexto cabe ao julgador valorar o caso concreto e analisar os

direitos em jogo. A orientação da doutrina é no sentido de não sacrificar totalmente

um direito em virtude do outro.

No caso de paciente inconsciente e desacompanhado de familiares precisar

de transfusão de sangue, a transfusão deve ser feita sem demora, pois trata-se de

um iminente perigo de vida, e salvar vidas humanas é dever do médico

Mas quando se trata de paciente lúcido que se negar à transfusão, o médico

possui a alternativa de buscar todos os métodos de tratamento ao seu alcance,

respeitando a vontade do paciente.

O assunto é multifacetado e complexo. Talvez esteja nas mãos da ciência

médica a solução para o problema, uma vez que a ciência jurídica costuma ficar à

mercê de uma lenta evolução.

Ademais, não se pode esquecer que um dos objetivos do Estado Democrático

de Direito é respeitar a posição dos diferentes grupos sociais que o compõem.

Dessa forma, os direitos fundamentais precisam ser analisados com vistas à

evolução histórica e cultural, devendo o Estado intervir somente quando não existir

outra forma de se resolver um problema.

41

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