universidade severino sombra curso de letras...

31
UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA CURSO DE Letras VALORES E MISÉRIAS DAS VIDAS SECAS Lenilson Vidal de Souza Vassouras 2007

Upload: vothien

Post on 10-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA CURSO DE Letras

VALORES E MISÉRIAS DAS VIDAS SECAS

Lenilson Vidal de Souza

Vassouras 2007

Universidade Severino SombraCentro de Letras, Ciências Sociais Aplicadas e Humanas Curso de Letras

Valores e Misérias das Vidas Secas

Lenilson Vidal de Souza

Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado ao Curso de Letras da Universidade Severino Sombra, para obtenção do grau de Professor em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e suas respectivas Literaturas.

Orientador: Profª Regina Pentagna Petrillo

Vassouras 2007

Universidade Severino SombraCentro de Letras, Ciências Sociais Aplicadas e Humanas Curso de Letras

Valores e Misérias das Vidas Secas

Lenilson Vidal de Souza

Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado ao Curso de Letras da Universidade Severino Sombra, para obtenção do grau de Professor em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e suas respectivas Literaturas.

Aprovado em dezembro de 2007, com média................

Banca examinadora

___________________________________Prof.

___________________________________Prof.

___________________________________Prof.

Vassouras 2007

Agradeço à Profª Regina Pentagna Petrillopor ter disponibilizado os ensaios críticospertinentes à pesquisa.

Dedico o presente trabalho monográfico aosmeus pais e à minha amiga Ana Paula por

todo apoio que me foi dado.

O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra o homem é uma metáfora de si mesmo.

PAZ, Otávio.

Resumo

Este trabalho monográfico demonstra os aspectos relevantes e

inovadores que o escritor Graciliano Ramos utilizou em suas obras, em

especial Vidas Secas. O objetivo deste trabalho foi o de salientar a importância

da linguagem como instrumento de libertação, mas também de dominação,

caracterizar e exemplificar a técnica narrativa utilizada pelo escritor para dar

voz a seres esgarçados mentalmente devido à extrema rusticidade do meio em

que viviam.

Sumário

1. Introdução

1.1.O Modernismo: Pressupostos gerais da primeira e segunda fases

1.2.Graciliano Ramos: Vida e obra

1.3.O caráter universal da obra de Graciliano Ramos

1.4.Perfil literário do autor

1.5.Vidas Secas: Resumo dos capítulos

2. Vidas Secas: Considerações gerais e a questão da linguagem

3. A técnica narrativa

4. Conclusão

5. Referência Bibliográfica

I. INTRODUÇÃO

Um grande número de críticos apontam a maestria formal de Vidas

Secas, de Graciliano Ramos. Nesta obra, salienta Alfredo Bosi, o escritor

abre ao leitor o universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher, seus filhos e uma cachorra, tangidos pela seca e pela opressão dos que sabem mandar: o `dono´, o `soldado amarelo´ ... (1983, 149).

A dificuldade de comunicação desta família dentro dos códigos da

linguagem verbal é sem dúvida um dos temas centrais do universo ficcional de

Vidas Secas. Apesar da quase incapacidade de falar dos personagens deste

livro, o escritor, através de uma técnica especial, constrói um discurso

poderoso a partir do silêncio. Através deste discurso, possibilita a expressão

destes seres que a sociedade pôs a margem, impossibilitando-os de dominar

com destreza a linguagem verbal o que, para o retirante, significa dominação e

estagnação e, para os que conseguem se comunicar, poder e coerção.

Este trabalho monográfico foi desenvolvido essencialmente através da

pesquisa bibliográfica e teve como escopo primordial refletir sobre o papel

social da linguagem: seu poder de dominação, submissão, mas também de

libertação, e ainda, apontar e detalhar a técnica narrativa usada por Graciliano

Ramos para instituir voz a seres quase incapazes de falar.

Para fundamentar a hipótese e os objetivos traçados este trabalho irá

se basear na fortuna crítica sobre o assunto, levando sobretudo em

consideração os estudos de Antônio Candido1 e Alfredo Bosi2

Acreditamos que o escopo da pesquisa possibilitará mostrar que a

técnica usada por Graciliano deu possibilidade de expressão a personagens

incapazes de falar, devido à rusticidade extrema em que vivem. Abre, assim, ao

11 CANDIDO, ACANDIDO, Antônio. ntônio. Ficção e Confissão – ensaios sobre Graciliano Ramos.Ficção e Confissão – ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 102-108.Editora 34, 1992, p. 102-108.22 BOSI, Alfredo. BOSI, Alfredo. Céu, inferno – ensaios de crítica literária e ideológica.Céu, inferno – ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988, p. São Paulo: Ática, 1988, p. 10-32.10-32.

leitor o universo esgarçado e miserável desses seres que a sociedade deixou à

margem, impossibilitando-os de desenvolver a expressão lingüístico-verbal e,

desta forma, permanecendo sob poder dos que "sabem mandar".

Antes do desenvolvimento do objetivo central, foram apresentados: um

panorama geral da estética modernista, um comentário sobre a produção

artística do escritor a fim de situar a obra em estudo na produção do romancista

e, em seguida, uma síntese dos capítulos de Vidas Secas.

1.1. O MODERNISMO – PRESSUPOSTOS GERAIS DA PRIMEIRA E

SEGUNDA FASE.

Com a realização da Semana de Arte Moderna em 1922, foi dado um

impulso para o processo de renovação da mentalidade artística nacional,

iniciando-se, assim, a chamada primeira fase do Modernismo no Brasil.

Apesar das divergências de idéias e dos diferentes grupos que se

formaram após a Semana de Arte Moderna, pode-se afirmar que a primeira

fase do Modernismo foi acentuadamente anarquista, revolucionária e crítica.

Atingiu seu objetivo: destruiu as velhas estruturas artísticas e criou uma nova

estética; tirou o país do atraso cultural em que se encontrava; levou a

inteligência brasileira a refletir sobre seus problemas, sua gente e sua realidade

e buscar soluções dentro do contexto nacional; fez com que os intelectuais

descobrissem as tradições, as lendas, o folclore e a linguagem popular; libertou

o Brasil do fascínio pela Europa.

Na primeira fase do Modernismo brasileiro não havia um programa a

ser seguido pelos escritores. Sobre isso é bem esclarecedor este trecho de

Mário de Andrade (1981,47):

Já um autor escreveu, como conclusão condenatória, que a

estética do Modernismo ficou indefinível... Pois essa é a

melhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma

estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de

espírito revoltado e revolucionário que, se a nós nos

atualizou sistematizando como constância da inteligência

nacional o direito anti-acadêmico da pesquisa estética e

preparou o estado revolucionário das outras manifestações

sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo,

profetizando estas guerras de que uma civilização nova

nascerá.

Por seu dinamismo e vibração, a primeira fase do Modernismo pode ser

considerada de combate. É o momento em que se derrubam as velhas

concepções para se abrir caminho à nova arte que nasce.

Assim, a segunda fase do Modernismo brasileiro (1930-1945) já não

tem a necessidade de destruir as velhas estruturas e de ser polemico e

revolucionário. A geração de 22 já havia legado às gerações posteriores a

consciência nacionalista, o desejo de pesquisa, a liberdade criadora e a

renovação da linguagem. Os escritores da segunda fase darão continuidade às

conquistas da primeira, porém, voltam-se para os problemas políticos e sociais.

É um Modernismo mais construtivo, mais político e preocupado com a

existência humana.

O período que vai de 1930 a 1945 é considerado a “era do romance

brasileiro”. Nunca, anteriormente, em um espaço de tempo tão curto, houve

tantos romancistas dotados de capacidade criadora tão expressiva. As obras

mais significativas desse período têm por tema a realidade econômica, social e

política das varias regiões do Brasil. Chamados romances regionalistas de 30

ou neo-realistas, têm sua estréia em 1928, com A Bagaceira, de José Américo

Almeida. Esses romances apresentam uma visão critica do contexto

nacionalista; denunciam a centralização do poder, as desigualdades regionais,

as injustiças sociais; descrevem a luta inútil dos sertanejos contra a seca, a

fome e a miséria.

Quanto ao aspecto formal, os romancistas de 30, se não absorveram

todas as propostas renovadoras da primeira geração modernista, também não

caíram no exagero de criar uma linguagem artificial e discursiva. Há a presença

de frases curtas, o aproveitamento do aspecto sonoro das palavras, do

vocabulário regional e da fala popular. Entre os romancistas mais

representativos desse período, temos: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz,

Jorge Amado, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos.

1.2. GRACILIANO RAMOS: VIDA E OBRA

Graciliano Ramos nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro

de 1892. Fez apenas os estudos secundários em Maceió. Após rápida

passagem pelo Rio de Janeiro, fixa-se em Palmeira dos Índios, interior de

Alagoas. Jornalista e político, chega a exercer o cargo de prefeito da cidade.

Estréia em livros em 1933 com o romance Caetés, nessa época trabalhava em

Maceió dirigindo a Imprensa Oficial e a Instrução Pública, e trava conhecimento

com José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em março de

1936 é preso por atividades, consideradas subversivas sem, contudo, ter sido

acusado formalmente; após sofrer humilhações de toda a sorte e percorrer

vários presídios, é libertado em janeiro do ano seguinte. Essas experiências

pessoais são tratadas no livro Memórias do Cárcere. Em 1945, com a queda da

ditadura de Getúlio Vargas e a volta do país à normalidade democrática,

Graciliano filia-se ao Partido Comunista Brasileiro, o qual integra até 1947,

quando o partido é considerado novamente ilegal. Em 1952 viaja para os

países socialistas do Leste Europeu, experiência descrita em Viagem. Falece

no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953.

Graciliano Ramos é hoje considerado por grande parte da crítica nosso

melhor romancista moderno. Além disso, é tido como o autor que levou ao

limite o clima de tensão presente nas relações homem/ meio natural, homem/

meio social, tensão essa geradora de um conflito intenso capaz de moldar

personalidades e de transfigurar o que os homens têm de bom. Nesse contexto

violento, a morte é uma constante. Assim encontramos suicídios em Caetés e

São Bernardo, um assassinato em Angústia e as mortes do papagaio e da

cachorra Baleia em Vidas Secas.

Em seus romances a lei maior é a da selva. Portanto, a luta pela

sobrevivência parece ser o grande ponto de contato entre todos os

personagens. Em conseqüência, uma palavra se repete em toda a obra de

Graciliano Ramos: bicho, ou ainda, como no início de Vidas Secas, viventes,

aqueles que só têm uma coisa a defender: a vida.

Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo e não guardava lembrança disto. (ramos,2000, 11)

As condições subumanas nivelam animais e pessoas. Pensemos um

pouco nessa curiosa "família": dois humanos adultos, identificados apenas

pelos nomes Fabiano e Sinhá Vitória (eles não tinham sobrenome), dois

humanos infantis sem nome, identificados apenas como "o mais velho" e "o

mais novo", e dois bichos - o papagaio e a cachorra Baleia - um identificado

pela espécie e outro pelo nome próprio. O papagaio é sacrificado, devorado

canibalisticamente, em nome da sobrevivência dos demais; a cadela Baleia

também é sacrificada em nome da sobrevivência dos demais - doente, ela

atrapalhava a caminhada da família.

A tensão permeia toda a obra de Graciliano Ramos: evolui de Caetés

até Vidas Secas, num crescendo que passa por São Bernardo e Angústia.

Acentua-se ainda mais na passagem da ficção à realidade, atingindo o ápice no

livro em que relata suas experiências na cadeia, o qual, entretanto, ultrapassa o

plano pessoal para retratar o Brasil em importante momento histórico, quando a

convivência homem/ meio social torna-se impossível. A obra é universal se

considerarmos que descreve as humilhações sofridas por todos os prisioneiros

políticos na ausência de um estado de direito.

O crítico Antônio Cândido (1992,103) divide a obra de Graciliano

Ramos em três categorias:

A. Romances narrados em 1ª pessoa (Caetés, 1933; São Bernardo,

1934; Angústia, 1936), nos quais se evidencia a progressiva pesquisa da alma

humana, ao lado do retrato e da análise social.

B. Romance narrado em 3ª pessoa (Vidas Secas, 1938), no qual se

enfocam os modos de ser e as condições de existência, segundo uma visão

distanciada da realidade.

C. Autobiografias (Infância, 1945; Memórias do Cárcere, 1953), em

que o autor se coloca como problema e como caso humano; nelas transparece

uma irresistível necessidade de depor.

Candido (1992,102) conclui:

(...) no âmago de sua arte, há um desejo intenso de testemunhar sobre o homem, é que tanto os personagens criados quanto, em seguida, ele próprio, são projeções deste impulso fundamental, que constitui a unidade profunda de seus livros.

Graciliano Ramos é autor de enredos que envolvem a seca, o

latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga, a cidade. Seus personagens são

seres oprimidos, moldados pelo meio – Luís da Silva, pela cidade; Paulo

Honório e Fabiano, pelo sertão. E, dentro das estruturas vigentes, não há nada

a fazer a não ser aceitar a força do “inevitável”.

Obras de Graciliano Ramos:

§ Caetés – romance

§ São Bernardo – romance

§ Angústia – romance

§ Vidas Secas – romance

§ Infância – romance

§ Insônia – contos

§ Memórias do Cárcere (2 volumes) – memórias

§ Viagem – impressões sobre a Tcheco – Eslováquia e a URSS

§ Linhas Tortas – crônicas

§ Viventes das Alagoas – crônicas

§ Alexandre e Outros Heróis (“História de Alexandre”, “ A Terra dos Meninos

Pelados” e “ Pequena História da República”)

§ Cartas – correspondência íntima

§ A Terra dos Meninos Pelados – conto infanto-juvenil

§ O Estrilo de Prata (Coleções Abre-te Sésamo) – conto infanto-juvenil

1.3. O CARÁTER UNIVERSAL DA OBRA DE GRACILIANO RAMOS

Focalizando os problemas socais do Nordeste, Graciliano Ramos

expressa em sua obra uma visão bem mais profunda e crítica das relações

humanas, superando o meramente regional para atingir uma dimensão bem mais

abrangente e universal. A respeito dessas considerações, Maurício Gomes de

Almeida (1999, 31) diz:

A universalidade de criação artística não se constitui à custa de seu caráter regional: com freqüência, torna-se um desdobramento harmonioso deste. Isso porque, atrás do homem de determinada região, com sua problemática específica, encontra-se uma essência que é comum a todos os homens. Compete ao criador saber revelá-la, não confundindo regionalismo com exotismo pitoresco, este sim grandemente limitado. O drama de Fabiano e sua família em Vidas Secas – conquanto o romance tenha suas raízes profundamente mergulhadas na realidade social e telúrica do sertão – ultrapassa de muito o seu significado regional: é o eterno drama do homem oprimido pelas circunstancias, que luta assim mesmo para afirmar a dignidade de sua condição.

1.4. O PERFIL LITERÁRIO DO AUTOR

A década de 30 caracterizou-se pela presença do romance regionalista

ou nordestino. A obra de Graciliano Ramos, embora seja desse período e tenha

uma temática comum ao grupo do Nordeste, difere dos outros autores na

maneira de explorar o regionalismo. Em seus romances, delineia-se a

paisagem do sertão agreste, a degradação humana e a exploração dos

poderosos. Porém, ao mesmo tempo que é fiel aos hábitos e valores do

Nordeste, investiga com perspicácia o interior do ser humano. Mais do que o

enredo, mais do que o meio físico, importa a personagem. Seus protagonistas

mergulham em si mesmos para refletir sobre suas ações, sua miséria, seus

dramas, seus sonhos, enfim, sobre o grande conflito humano que é existir.

Não é só na capacidade de transformar o regional em universal que

está a grandeza de Graciliano Ramos. Seu valor literário revela-se também na

maneira como manipula as palavras, as frases, os fatos. A respeito do seu

estilo, comenta Otto Maria Carpeaux (s/d, 455):

É muito meticuloso, quer eliminar tudo o que não é

essencial, as descrições pitorescas, o lugar-comum das

frases feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de

eliminar ainda páginas inteiras, capítulos inteiros, eliminar

os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo: para

guardar aquilo que é essencial (... ) sua linguagem é

objetiva, enxuta, sem colorido.

Seu primeiro romance, Caetés, não se aproxima das tendências da

época, por ter uma linha naturalista. Embora a narrativa seja feita em primeira

pessoa pela personagem João Valério, o conflito humano cede lugar a uma

caracterização fotográfica e irônica do interior do sertão alagoano.

É com o aparecimento do romance São Bernardo que Graciliano se

revela um escritor incomparável. O narrador-personagem Paulo Honório,

proprietário da Fazenda São Bernardo, concentra a narrativa em torno do seu

conflito existencial. Os fatos têm pouca importância, as personagens são

apenas mencionadas, a descrição do ambiente fica nas entrelinhas. Através de

frases curtas, secas e objetivas, Paulo Honório volta-se para si mesmo e, sem

tentar ludibriar o leitor, assume seu egoísmo, sua brutalidade todos os seus

erros.

Consagrado com São Bernardo, publica Angústia. O elemento gerador

do romance é o narrador-personagem Luís da Silva, um modesto burocrata e

um escritor frustrado, oprimido pela miséria. Ao descobrir que está sendo traído

pela noiva Marina, sua vida transforma-se em um caos. Misturam-se

pesadelos, projetos, sonhos, passado e presente. Chega à alucinação, ao

delírio, à autodestruição e enforca seu rival, o rico Julião Tavares. Luís da Silva

é o personagem mais dramático da moderna ficção brasileira.

Depois de Angústia, publica Vidas Secas, sua única obra escrita em

terceira pessoa. Narra com simpatia e compaixão o drama do vaqueiro

Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória e seus filhos (o menino mais velho e o

menino mais novo) na luta para sobreviver à árida vida do sertão brasileiro.

Com relação ao estilo de Graciliano Ramos, comenta Álvaro Lins (2000,

153) :

Parece-me que Vidas Secas representa ainda uma evolução ma obra do Sr. Graciliano Ramos quanto ao estilo e à qualidade estritamente literária. Em nenhum outro encontramos tanta beleza e tanta harmonia na construção verbal. E somente aqui este autor, de espírito tão pouco poético, consegue atingir às vezes um estado de poesia. Foi também em Vidas Secas que o Sr. Graciliano Ramos pela primeira vez se libertou por inteiro de algumas quedas no mau gosto ou na vulgaridade de expressão, com que nos surpreende, tão freqüentemente, em São Bernardo e até em Angústia. Afinal, se Angústia é sua maior realização como ficcionista, Vidas Secas é a obra que nos oferece toda a sua medida como escritor.”

Do ponto de vista formal, Graciliano talvez seja o escritor brasileiro de

linguagem mais sintética. Em seus textos enxutos, a concisão atinge seu

clímax: não há uma palavra a mais ou a menos. Trabalha a narração com a

mesma maestria tanto em 1ª como em 3ª pessoa.

1.5. VIDAS SECAS: RESUMO DOS CAPÍTULOS

Capítulo I - "Mudança" : Fugindo da seca, essa família de retirantes

encontra uma fazenda abandonada. Instala-se ali, mas, com a época das

chuvas, o dono volta e Fabiano tem de submeter-se às suas ordens. Fica então

trabalhando como vaqueiro.

Capítulo II - "Fabiano" : Esse capítulo descreve Fabiano fisicamente e

psicologicamente. Fabiano se identificava mais com os animais do que com os

próprios homens.

Capítulo III - "Cadeia" : Narra o episódio em que Fabiano, tendo ido à

feira para comprar mantimentos, encontra um soldado amarelo que o convida a

jogar. Ao perceber todo o dinheiro, Fabiano xinga o soldado e acaba preso.

Capítulo IV - "Sinhá Vitória" : Este capítulo aborda a vida da dona de

casa Sinhá Vitória e seu sonho: possuir uma cama de lastro de couro.

Capítulo V - "O menino mais novo" : Conta a admiração que o menino

tinha pelo pai, a vontade de imitá-lo e de ser igual a ele.

Capítulo VI - "O menino mais velho" : O menino interroga a mãe sobre

o que é o inferno, mas a mãe não sabe responder. O menino sai ao encontro

de Baleia, desabafando, censura a ignorância da mãe.

Capítulo VII - "Inverno" : Chovia há vários dias, a família reunida em

torno do fogo, estava feliz porque o pasto ficaria verde e haveria comida para o

gado. Entretanto, Sinhá Vitória começa a ficar amedrontada com a

possibilidade de que a água leve a casa e eles teriam de ir morar no morro

como as preás.

Capítulo VIII - "Festa" : Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos preparam-

se para ir à festa de natal na cidade. Partem às três horas da tarde, o calor era

intenso. A família que saíra de casa com roupa nova, chega à festa

descomposta. Fabiano toma um porre e acaba dormindo com a família no

meio da rua.

Capítulo IX - "Baleia": Descreve o triste fim de Baleia. Ao ficar doente,

Fabiano é obrigado à matá-la para que não contamine o resto da família.

Capítulo X - "Contas": Nesta parte tem-se o acerto de contas do patrão

com Fabiano. Ele percebe que sempre saía no prejuízo, sabia que estava

sendo lesado, mas, incapaz de expressar-se, de dominar a palavra, não

consegue argumentar.

Capítulo XI - "O soldado amarelo": Fabiano reencontra o soldado

amarelo no meio da caatinga. Pensa em matá-lo, mas desiste. Chega à

conclusão que "governo é governo".

Capítulo XII - "O mundo coberto de penas": Fabiano e sua família

preparam-se para partir no período da seca, que é anunciado pelas aves de

arribação. Fabiano atira nos pássaros para garantir alimento para a família para

os próximos dias.

Capítulo XIII - "Fuga": Nesta última parte, tem-se a família preparando-

se para uma nova mudança em busca de um sonho: "Chagariam a uma terra

desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a

mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos,

como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.".

Personagens:

v Fabiano: nordestino pobre e ignorante.

v Sinhá Vitória: mulher de Fabiano, sofrida, mãe de dois filhos,

lutadora e inconformada com a miséria em que vivem.

v Filhos: crianças pobres, sofridas e que não têm noção da miséria

em que vivem.

v Baleia: cadela da família, tratada como gente, muito querida pelas

crianças.

v Patrão: contratou Fabiano para trabalhar em sua fazenda,

desonesto, ludibriava o pobre nordestino na hora do acerto de contas.

v Outros personagens: o soldado amarelo, seu Inácio (dono do Bar).

II – VIDAS SECAS: CONSIDERAÇÕES GERAIS E A QUESTÃO DA LINGUAGEM

Publicado em 1938, Vidas Secas aborda a problemática da seca e da

opressão social. Ao contrário dos romances anteriores, é uma narrativa em 3ª

pessoa.

O romance tem um caráter fragmentário. São “quadros”, episódios que

acabam se interligando com uma certa autonomia. Como coloca o critico

Affonso Romano de Sant´Anna (1981,165):

Estamos sem duvida, diante de uma obra singular onde os personagens não passam de figurantes, onde a estória é secundaria e onde o próprio arranjo dos capítulos do livro obedecem a um critério aleatório

Mesmo com essa estrutura descontínua, há uma proximidade entre o

primeiro capitulo: Mudança – a chegada de uma família de retirantes – e o

ultimo: Fuga – a mudança da família que, diante da seca, foge para o sul. Esse

caráter mostra que o romance é cíclico, onde o mundo se fecha para a família

de Fabiano, saindo de uma mera classificação regionalista para mostrar o

drama que o homem sofre com a opressão do mundo.

Em um estudo sobre a obra, Álvaro Lins (2000, 103) comenta:

Além de ser o mais humano e comovente dos livros de ficção do Sr. Graciliano Ramos, Vidas Secas é o que contém maior sentimento da terra nordestina, daquela parte que é áspera, dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos que a ela estão ligados teluricamente. O que impulsiona os seres desta novela, o que lhes marca a fisionomia e os caracteres, é o fenômeno da seca. No primeiro capitulo, Fabiano e a sua família são retirantes, em busca de um novo pedaço de terra. Alojam-se como servidores de uma fazenda e é aí que vamos conhecê-los através de alguns episódios e muitos monólogos. A cada figura da novela - Fabiano, Vitória e os filhos - o romancista dedica um capítulo, que é como um retrato de caracterização, em que o próprio personagem se apresenta ao leitor. Da família também faz parte a cachorra Baleia, e o capítulo que lhe é dedicado se acha revestido de uma humanidade talvez

maior que a dos seres humanos, sendo esta uma das páginas mais famosas do Sr. Graciliano Ramos.

O homem é um ser que fala. A palavra se encontra no limiar do

universo humano, pois é ela que caracteriza fundamentalmente o homem e o

distingue do animal. Se a palavra, que distingue o homem de todos os seres

vivos, se encontra enfraquecida em sua possibilidade de expressão, é o próprio

homem que se desumaniza.

A linguagem, além de veículo de comunicação, representa a forma por

excelência pela qual o ser humano se apropria da realidade que o cerca,

conferindo-lhe um sentido. Na Literatura, é belo (e triste) o exemplo que

Graciliano Ramos nos dá com Fabiano, personagem principal de Vidas Secas.

A pobreza de seu vocabulário prejudica a tomada de consciência da exploração

a que é submetido, e a intuição que tem de sua situação não é suficiente para

ajudá-lo a reagir de outro modo.

A carência da linguagem, nos personagens de Vidas Secas, torna-se

causa e expressão concreta da incapacidade de compreenderem o mundo em

que vivem. Como conseqüência, a sua atuação reduz-se quase a um esquema

primitivo de estímulo-resposta, no nível da sobrevivência.

A respeito disso define Rui Mourão ( s/d, 508 ) :

O certo é que ninguém ali tem condições para enxergar muito além do que se encontra à frente de seus próprios olhos e todos se consomem quase que na pura percepção sensorial direta.

No livro percebe-se que Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos

demonstram uma aceitação passiva e resignada da "sina" em que vivem como

algo inevitável:

Tinha obrigação de trabalhar para os outros (...) nascera com esse destino (...) Tinha vindo ao mundo para amansar brabo (...) Era sina. O pai vivera assim, o avô também. (ramos, 2000, 96)

Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, mal-tratados, machucados por um soldado amarelo. (ramos, 2000, 38)

A incapacidade de Fabiano e dos seus de usarem bem a linguagem,

de falar "palavras difíceis" isola essas criaturas das outras pessoas e também

impede que elas "lutem" por seus direitos. Em uma parte do livro a exploração

do trabalho de Fabiano aparece quando, por simples ignorância, na hora do

ajuste de contas, é confundido e ludibriado nos saldos e nos lucros. Sente-se

enganado, mas nada pode fazer:

Na palma das mãos as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado. (ramos, 2000,96)

Fabiano assim vai associando a linguagem ao mundo dos "homens

sabidos", e passa a temer a ambos. As palavras lhe parecem dotadas de um

poder mágico e admira os que conseguem pronunciá-las. A respeito disso

comenta Alfredo Bosi (1988, 10):

A linguagem de Fabiano e dos seus é tida por impotente, lacunosa, truncada; e a esfera do seu imaginário dá-se em retalhos de sonho e desejos de um tempo melhor, tempo do fim das secas, com trabalho e moradia estável de onde a família não deseja ser expulsa pelo dono do gado nem bem finde a estação das águas.

III. A técnica narrativa

Em Vidas Secas, Graciliano Ramos conseguiu ressaltar a humanidade

dos que estão nos níveis sociais e culturais mais humildes, mostrando a

condição humana intangível e presente na criatura mais ignorante. Saber

descobrir e ainda por cima revelar essa "riqueza" escondida, é uma grande

tarefa para o romancista. Percebe-se através da leitura do livro que Graciliano

Ramos deu voz a seres que não sabiam expressar os seus próprios

sentimentos através da linguagem verbal.

O universo verbal dos personagens é extremamente limitado e a

comunicação entre eles, além de reduzida a um mínimo indispensável à vida

cotidiana, realizada mais por gestos do que por palavras, é coisa rara.

Em Vidas Secas Graciliano transcende o realismo descritivo e para

desvendar o universo mental das criaturas cujo silêncio ou inabilidade verbal

são inerentes, o narrador tem de inventar para elas um expressivo universo

interior por meio do discurso indireto livre.

Graciliano usou em Vidas Secas uns discursos especiais, que não é

intromissão narrativa. Ele procurou agir como uma espécie de procurador dos

personagens, que está legalmente presente, mas ao mesmo tempo ausente.

Ou seja, o narrador não quer se identificar com os personagens. Ele simpatiza

com os retirantes e defende os direitos deles, mas ao relatar com objetividade,

o narrador deixa claro que os diretos que está defendendo não são os seus.

Em Vidas Secas o narrador adere de tal forma ao personagem, que se

torna muitas vezes difícil traçar a fronteira exata entre os discursos de um e de

outro.

Por meio do uso sistemático de recursos como o discurso indireto livre3,

dos monólogos interiores4 e dos fluxos de consciência5 dos personagens,

Graciliano revela aos leitores o universo mental de seres tangidos pela seca e

pela opressão dos que sabem mandar: "os homens que dominam a linguagem

verbal".33 Discurso Indireto Livre – técnica que funde a fala do narrador com a da personagem. Discurso Indireto Livre – técnica que funde a fala do narrador com a da personagem.44 Monólogo Interior – processo literário de apresentar os pensamentos íntimos da personagem. Monólogo Interior – processo literário de apresentar os pensamentos íntimos da personagem. 55 Fluxo de consciência – técnica de escrita literária na qual as percepções e os pensamentos de Fluxo de consciência – técnica de escrita literária na qual as percepções e os pensamentos de uma personagem nos são apresentados à medida e da maneira que vão ocorrendo.uma personagem nos são apresentados à medida e da maneira que vão ocorrendo.

Fabiano e sua família são seres ilhados por esta incapacidade de

verbalização dos próprios sentimentos (um exemplo deste obstáculo aparece

no capítulo "Cadeia" - "Era um bruto sim, senhor, nunca havia aprendido, não

sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um

homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?" ). Para estes personagens

o narrador/autor elabora uma linguagem virtual a partir do silêncio.

Em Vidas Secas o narrador necessita aparecer como mediador entre o

universo nebuloso do personagem e o leitor, não para tecer considerações

pessoais, mas para "traduzir" verbalmente o que se passa no universo mental

destes seres. Por isso, para conferir à sua "tradução" o máximo de fidelidade e

concretude possíveis, o narrador se vale extensamente do discurso indireto

livre, o qual como sabemos, representa uma incorporação, pelo discurso

indireto, dos torneios frasais do sujeito falante (ou pensante). Abaixo um

exemplo do que foi salientado:

Ouviu o falatório desconexo do bêbado, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido; conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais (...) tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? (Ramos, 2000, 35).

No período inicial, o narrador nos dá a conhecer um fato percebido

por Fabiano ("Ouviu...") e sua conseqüente reação ("caiu"). O segundo período

aparentemente, expressa comentário do narrador - "Ele também dizia..." - , mas

a leitura do período seguinte revela que estávamos enganados, pois o vaqueiro

"irou-se com a comparação", o que não poderia ocorrer se a comparação não

tivesse sido feita por ele próprio. O que aparentemente exprimia um juízo

externo sobre o personagem era apenas a manifestação de sua dolorosa

autoconsciência. O caso ilustra bem a estratégia narrativa utilizada em Vidas

Secas por Graciliano Ramos. O narrador adere de tal forma ao personagem

que se torna muitas vezes difícil traçar uma fronteira exata entre a fala de um e

de outro. O restante do parágrafo, em discurso indireto livre, concretiza

claramente as reflexões de Fabiano.

Por meio do uso freqüente desse processo, Graciliano Ramos, embora

construindo sua narrativa em terceira pessoa, com narrador onisciente, logra

"oferecer ao leitor a objetividade de um texto que se inventa". A respeito disso

Frederick G. W. Comenta (1999, 90)

O leitor deve lembrar-se sempre que aquele que narra limitou-se, quase exclusivamente, a ver as coisas como sendo representar a realidade, o autor não pode afirmar nada diretamente, mas apenas sugerir as coisas. Parte da grandeza do romance está em que Graciliano Ramos é capaz de ir mais além dos limites da mente do personagem e apresentar coisas que não são mencionadas; é uma espécie de duplo nível de consciência: a do narrador e a da personagem.

Ao colocar-se alternadamente por trás de diferentes personagens,

mostrando as coisas pelo modo como eles vêem, o narrador está se valendo

de um sistema de perspectivas múltiplas, que aprofunda o potencial expressivo

da narrativa, tornando multifacetada a imagem que esta projeta da realidade

social e existencial do homem sertanejo. Todos os membros da família,

incluindo Baleia, ocupam o centro focal de pelo menos um capítulo, Fabiano de

vários. Por sua vez, em alguns casos ("Inverno" e, sobretudo, "Festa"), o

narrador ao invés de fixar-se em um único personagem, movimenta-se

rapidamente de um para outro, justapondo impressões e sentimentos diversos,

resultando do conjunto uma imagem propositalmente fragmentada e

descontínua do real, que corresponde, por sua vez, à forma também

fragmentada pela qual a realidade é apreendida pelos personagens retirantes.

IV. CONCLUSÃO

A crítica é unânime em considerar a obra de Graciliano Ramos como

uma das mais expressivas e valiosas da literatura brasileira. Partindo do interior

de um Brasil esquecido e marginalizado, atinge o ser humano na sua totalidade

existencial. Viviana de Assis (s/d, 456) comenta:

O Estado do Alagoas, que tinha o defeito de ser pequeno e

estar repleto, emigrou com ele, a bordo do Manaus, para o

Rio – e nunca o deixou. A terra está em seus livros. Ele

repartiu generosamente o Nordeste que tinha dentro de si.

Mostrou toda miséria do sertão, mas lutou por ele com as

armas que dispôs.

Vidas Secas narra com simpatia e compaixão o drama do vaqueiro

Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória e seus filhos na luta pela sobrevivência em

uma terra árida e agreste. Faz parte da família a cachorra Baleia, uma das

personagens mais importantes do livro. Baleia é identificada em sentimento e

ação com seu dono, demonstra o nível de animalidade em que vivem os

sertanejos.

Através da leitura dos capítulos que compõem Vidas Secas, chama

atenção a carência de linguagem verbal que torna a comunicação entre os

personagens não somente algo difícil, mas também penoso. No capítulo

"Inverno", quando a família se reúne no interior da casa, o problema se

manifesta de forma dramática:

Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes, uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro... (Ramos, 2000, 77)

A pobreza da linguagem é ao mesmo tempo causa e efeito do processo

de embrutecimento a que a hostilidade do meio submete o homem sertanejo.

Pressionado pela exploração da sociedade - sob a forma do patrão ou das

próprias autoridades, fiscais e soldados – resta ao homem do agreste, para

sobreviver, senão "aceitar" a condição de bruto: "Precisavam ser duros, virar

tatus” (Ramos, 2000, 29).

Graciliano Ramos mostra em seu livro a vida áspera da caatinga do

sertão, onde os seres humanos nivelam-se aos demais "viventes": bois,

cavalos, o papagaio, a cachorra. Ao fazer isso, o autor, de forma indireta,

denuncia as condições subumanas em que vegeta o sertão.

A admirável realização ficcional de Vidas Secas mostra um autor

preocupado com a realidade de seu tempo, em especial a condição em que

viviam (ou vivem) os sertanejos. A poderosa visão social de Graciliano Ramos

neste livro não depende apenas do fato de ter ele feito "romance regionalista",

ou "romance proletário", mas do fato de ter sabido criar em todos os níveis,

desde o pormenor do discurso até o desenho geral da composição, os modos

literários de mostrar a visão dramática de um mundo opressivo.

Hoje, Fabiano, sua mulher e os dois meninos são conhecidos na

América, na Europa e na Ásia. E se ouve nos mais diferentes idiomas as

perguntas de Sinhá Vitória:

Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo como bicho? com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos como bichos?” (Ramos, 2000, 47).

V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro

(1857-1945). Rio de Janeiro: Copbooks, 1999.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando -

Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1990.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

__________. Céu, inferno - ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo:

Ática, 1988.

CANDIDO, Antônio e CASTELLO, Aderaldo. Presença da literatura brasileira -

história e antologia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

__________. Ficção e confissão - ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de

Janeiro: Editora 34, 1992.

COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Global, 1999.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SCHWARZ, Roberto (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo:

Brasiliense, 1983.

[1] CANDIDO, Antônio. Ficção e confissão - ensaios sobre Graciliano

Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 102-108.

[2] BOSI, Alfredo. Céu, inferno - ensaios de crítica literária e ideológica.

São Paulo: Ática, 1988, p. 10-32.

[3] Todas as transcrições de Vidas Secas, feitas neste estudo, referem-

se à 80ª edição da obra, Record, 2000.

[4] CANDIDO, Antônio. In: Douglas Tufano. Estudos de Literatura

Brasileira. São Paulo: Moderna, 1981.

[5] ALMEIDA, Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance

brasileiro. P 311.

[6] LINS, Álvaro. Jornal de Crítica - Segunda Série. Rio de Janeiro,

1946. pp. 73-82.

[7] MOURÃO, Rui. Estruturas, p. 158.

[8] BOSI, Alfredo. Céu, inferno - ensaios de crítica literária e ideológica,

p. 10.

[9] Discurso indireto livre: técnica que funde a fala do narrador com a

do personagem.

[10] Monólogo interior: processo literário de apresentar os

pensamentos íntimos de uma personagem.

[11] Fluxo de consciência: técnica de escrita literária, na qual as

percepções e os pensamentos de uma personagem nos são apresentados à

medida e da maneira que vão ocorrendo.