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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E
HUMANIDADES
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
LUIZ FERNANDO RAMALHO
O DIÁLOGO ENTRE A GEOGRAFIA HUMANA DE
MILTON SANTOS E A COMUNICAÇÃO SOCIAL
São Bernardo do Campo, 2016
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E
HUMANIDADES
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
LUIZ FERNANDO RAMALHO
O DIÁLOGO ENTRE A GEOGRAFIA HUMANA DE
MILTON SANTOS E A COMUNICAÇÃO SOCIAL
Dissertação apresentada em cumprimento parcial às
exigências do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação Social da Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP), para a obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Fábio Botelho Josgrilberg
São Bernardo do Campo, 2016
FICHA CATALOGRÁFICA
R141d Ramalho, Luiz Fernando O diálogo entre a geografia humana de Milton Santos e a
comunicação social / Luiz Fernando Ramalho. 2016. 121 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Escola de
Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016. Orientação : Fábio Botelho Josgrilberg. 1. Geografia humana 2. Comunicação social 3. Santos,
Milton - Crítica e interpretação I. Título. CDD 302.2
FOLHA DE APROVAÇÃO
A dissertação de mestrado intitulada: “O DIÁLOGO ENTRE A GEOGRAFIA
HUMANA DE MILTON SANTOS E A COMUNICAÇÃO SOCIAL”, elaborada por LUIZ
FERNANDO RAMALHO, foi apresentada e aprovada em ____ de _____________
de 2016, perante banca examinadora composta pelo Prof Dr. Fábio Botelho
Josgrilberg (Presidente/UMESP), Profa. Dra Magali Cunha (Titular/UMESP) e Prof.
Dr. Fábio Betioli Contel (Titular/USP).
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Botelho Josgrillberg
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
___________________________________________________________________
Profª. Drª. Magali Cunha
Titular Programa de Pós-Graduação em Comunicação - UMESP
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Betioli Contel
Titular Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas - USP
Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social
Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de Pesquisa: Inovações Tecnológicas na Comunicação Contemporânea
SUMÁRIO
Introdução Geral ................................................................................................................................ 9
Capítulo I - REFLEXÕES SOBRE IDEIAS E PENSAMENTOS DE MILTON SANTOS .......... 16
1.1 Introdução do capítulo ............................................................................................................ 16
1.2 Introduzindo a Natureza do Espaço ..................................................................................... 17
1.2.1 Arranjos sistêmicos dos objetos e das ações .............................................................. 24
1.2.2 As unicidades como uma das bases da globalização ................................................ 29
1.2.3 O período técnico atual ................................................................................................... 40
1.2.4 As redes e o espaço geográfico .................................................................................... 43
1.2.5 O cotidiano e sua relação com espaço ......................................................................... 45
Capítulo II – COMUNICAÇÃO SOCIAL CONTEMPORÂNEA: REDES E SISTEMAS
DIGITAIS ............................................................................................................................................ 49
2.1 Introdução do capítulo ............................................................................................................ 49
2.2 Tecnologia e Comunicação na Contemporaneidade ......................................................... 50
2.2.2 Interface e usabilidade .................................................................................................... 56
2.2.3 Redes de telecomunicações .......................................................................................... 59
2.3 A comunicação social em rede ............................................................................................. 63
2.4 Persuasão e Mobilização nas Redes: o ativismo digital .................................................... 68
2.4.1 O cidadão comum e o alcance da mensagem............................................................. 71
2.4.2 Conhecimento e liberdade, alienação e manipulação ................................................ 73
2.4.3 Tecnologia e controle ...................................................................................................... 74
2.4.4 Uma consciência coletiva? ............................................................................................. 75
2.5 A cibercultura e o ciberespaço .............................................................................................. 77
2.5.1 Uma nova lógica de pensamento .................................................................................. 79
2.5.2 Um ciberespaço de convívio .......................................................................................... 81
Capítulo III - A COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA E A GEOGRAFIA HUMANA DE
MILTON SANTOS ............................................................................................................................. 82
3.1 Introdução ................................................................................................................................ 82
3.2 Unicidade das técnicas de comunicação digital ................................................................. 83
3.2.1 Comunicação digital e compreensão mútua ................................................................ 87
3.3 Comunicação digital reorganizando o espaço e o tempo .................................................. 90
3.3.1 Menos locomoções para o mesmo resultado .............................................................. 94
3.3.2 Quem se locomove, o faz melhor .................................................................................. 96
3.4 A vida cotidiana monitorada por objetos .............................................................................. 99
3.4.1 Dispositivos programados para registrar dados ........................................................ 101
3.5 O papel do comunicador na construção do espaço ......................................................... 103
4 CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 106
5 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 111
Apêndice - VIDA E OBRA DE MILTON SANTOS ....................................................................... 115
RESUMO
A presente dissertação é um trabalho teórico que se apoiou por um lado na obra do
intelectual brasileiro Milton Santos no campo da Geografia Humana, e por outro na
Comunicação Social contemporânea, como bases para uma análise que tentou
identificar e as interfaces entre as duas áreas. Ao longo do texto, buscou-se apontar
as contribuições do autor para o campo da comunicação social, considerando
principalmente os novos meios de comunicação digital que se apresentam, a
comunicação intermediada por dispositivos computacionais, em bases digitais e
conectadas por redes globais. O texto se discute as principais ideias apresentadas
por Santos, como a ontologia do espaço, os sistemas de objetos, sistemas de ação,
os sistemas técnicos, a unicidade da técnica, do tempo e do motor, delineando
aquilo que o Santos vai chamar de meio técnico-científico-informacional. O trabalho
sugeriu pontos de relação entre os temas citados com pensamentos teóricos e
exemplos práticos oriundos da comunicação, numa abordagem dialética e em
perspectiva interdisciplinar, intercambiando conhecimentos no sentido de entender
qual é a influência da comunicação na criação do espaço geográfico.
Palavras-chave: geografia humana; comunicação social; Milton Santos; crítica e
interpretação.
ABSTRACT
This thesis is a theoretical work that is supported, in one hand, on the work of the
Brazilian intellectual Milton Santos in the field of Human Geography, and in the other
on contemporary social communication, as the basis for an analysis that attempted to
identify the interfaces between the two areas. Throughout the text, we attempted to
point out the author's contributions to the field of social communication, especially
considering the new digital media and the present intermediated communication that
happens in computer devices, digital bases and connected by global networks. The
text discusses the main ideas presented by Santos as the ontology of space, object
systems, systems of action, technical systems, the uniqueness of the technique, time
and engine, outlining what the author will call technical-scientific-informational. The
work suggested points of connection between the themes cited theoretical thoughts
and practical examples coming from communication, in a dialectical approach and
interdisciplinary perspective, exchanging knowledge in order to understand what is
the influence of communication on the creation of geographical space.
Key-words: human geography; Social Communication; Milton Santos; criticism and
interpretation.
9
Introdução Geral
Pode parecer estranho um aluno de uma Faculdade de Comunicação focar
seu trabalho em um autor da geografia. A admiração pela obra do geógrafo e
intelectual brasileiro Milton Santos me acompanha desde a graduação em Relações
Públicas. Naquela época, nas aulas de realidade socioeconômica e política
brasileira, tive a oportunidade de ler “Por uma outra globalização” e aprender um
pouco sobre sua trajetória. As análises dos fatores e das realidades sociais,
juntamente com a crítica ao processo de globalização foram substanciais para minha
formação acadêmica e humana. Outro grande ponto de satisfação é usar como
principal referência um autor que tem suas raízes no Brasil, um profundo conhecedor
da realidade brasileira e que faz suas análises a partir desse ponto de vista, não se
deixando levar pelos vários anos que estudou e lecionou na Europa.
No decorrer das disciplinas do mestrado, ouve novamente o contato com a
obra de Santos, agora com A Natureza do Espaço, um livro que apresenta conceitos
pertinentes ao pensamento comunicacional contemporâneo. Assim, após averiguar
que poucos trabalhos existem nesse sentido, julgamos interessante relacionar
teoricamente as ideias de Milton Santos com os fenômenos contemporâneos da
comunicação social. Tendo a consciência de que são dois universos muito amplos,
tentamos fechar o foco em pensamentos principais do autor e em acontecimentos
atuais envolvendo a comunicação por redes digitais.
De antemão, reconhecemos que as inquietações intelectuais que motivaram a
construção dessa dissertação possuem uma profundidade muito maior do que a que
foi aqui apresentada, pois não houve tempo hábil para a realização de uma pesquisa
de campo. Certamente um trabalho que pode ser ampliado, revisto e aprofundado
nos próximos passos de minha iniciante vida acadêmica. O que se fez foi um
trabalho teórico e reflexivo que tentou indicar pontos de contato entre os conceitos
geográficos de Santos e as práticas comunicacionais contemporâneas, sobretudo as
que acontecem no ambiente digital, apoiado em autores da comunicação que
debatem tais fenômenos. Ao longo do texto foram utilizados exemplos práticos de
dinâmicas novas, em busca de evidenciar o ponto de vista.
No primeiro capítulo, fazemos um apanhado de conceitos presentes na obra
de Milton Santos que nos pareceram mais pertinentes à proposta, realizando uma
10
análise dissertativa com o intuito de assimilar com mais profundidade e firmeza os
pontos de vista do autor.
O segundo capítulo fala sobre os meios de comunicação social na
contemporaneidade, a migração para a base digital e tecnológica que realiza a
mediação das relações hodiernas e alguns de seus principais efeitos na vida
cotidiana dos indivíduos.
O capítulo terceiro busca mesclar os anteriores, apontando aqueles que
seriam, no nosso ponto de vista, algumas das interfaces entre a comunicação e a
geografia, buscando exemplos práticos que evidenciam a alteração do espaço por
meio da comunicação.
Por fim, na conclusão há um resumo que busca sintetizar os resultados
reflexivos do trabalho, citando os principais pontos conclusivos que se extraíram da
dissertação.
A pretensão aqui nunca foi a de criar um trabalho com uma conclusão que
encerre o assunto, até porque, quando tratamos de realidades que estão em pleno
desenrolar histórico, não se pode colocar um ponto final. Ainda mais em se tratando
de uma realidade com alto grau de dinamismo, em que revoluções sociais ou novos
fenômenos podem eclodir de um dia para o outro, como se tem realmente
constatado que acontece. A velocidade de alteração da realidade hoje faz com que
os conhecimentos obtidos e desenvolvidos não sejam mais aplicáveis com grande
rapidez. Mas a satisfação reside na possibilidade de, ao menos, ter apontado um
caminho para que novos trabalhos sejam realizados, ou para que outros pontos de
vista sejam adotados, reconhecendo nessa dissertação uma semente para um
trabalho de doutoramento com maior profundidade e pesquisas empíricas.
Passamos, assim, após essa breve apresentação, a tratar dos temas e das
reflexões abordados ao longo do trabalho, realizando uma introdução geral da
dissertação.
Inerente e essencial a todo processo de organização social, a comunicação é
um fenômeno que perpassa as fronteiras culturais, do espaço e do tempo. Ela está
presente em qualquer tipo de comunidade, independente do território, crenças ou
racionalidade. É também fundamental para a transmissão de qualquer tipo de
11
conhecimento, de modo que é preciso aprender antes a se comunicar, a lidar com os
sistemas de linguagem adequados, para depois conseguir adquirir outros
conhecimentos e formar pensamentos e reflexões mais complexas. Sobre a
comunicação, Santos escreve que “esse processo, no qual entram em jogo diversas
interpretações do existente, isto é, das situações objetivas, resulta de uma
verdadeira negociação social, de que participam preocupações pragmáticas e
valores simbólicos” (SANTOS, 1996, p. 253).
A amplitude do fenômeno permite também que os estudiosos da comunicação
percebam em outas áreas facetas de pensamentos ou estruturas de ideias
pertinentes a seus trabalhos, mesmo que essas informações não se dediquem
originalmente aos estudos sobre comunicação. Isso porque, a comunicação social,
sobretudo com a evolução das técnicas e dos meios, passou a adotar – ou criar -
novos termos, muitas vezes metafóricos ou de significado aproximado, para explicar
suas novas formas de ser, de se realizar e dos novos lugares em que se
estabelecem. Josgrilberg aponta que:
Entre ideias vagas e conceitos mais estruturados, as pesquisas sobre os fenômenos comunicacionais navegam entre os limites e possibilidades de metáforas ecológicas; figuras que inspiram a formulação de novas perguntas e compreensões, mas que também carregam ambições de validação científica. (JOSGRILBERG, 2015).
Da mesma forma, outros campos científicos ou atividades profissionais
passaram também a usar termos comuns nos estudos da comunicação para
complementar o significado de suas atividades, já que muitos sofreram grande
alteração após o surgimento ou a evolução de algumas tecnologias computacionais.
Como exemplo simples, é perceptível que o verbo “publicar”, isto é, tornar uma
informação pública e notória, não faz parte apenas da rotina de comunicadores,
como jornalistas ou redatores. Hoje, em potência, todos podem publicar informações
em blogs ou redes sociais na internet. Os grandes meios de comunicação perderam
essa “exclusividade” de uso. Outro exemplo de importação é o conceito de
“transparência”, um termo original da física óptica e que hoje é muito comum no
campo da política e da comunicação institucional, referindo-se ao compromisso de
instituições com a abertura de seus dados e trâmites. Ser transparente, hoje,
12
significa possibilitar o livre acesso das informações ao público, uma atitude
eticamente aprovada e que não tem ligação denotativa com a óptica.
Contudo, atemo-nos às metáforas adotadas pela comunicação. Josgrilberg
observa que “as metáforas espaciais, em especial, são recorrentes no campo das
ciências sociais, seja por sua familiaridade com a linguagem cotidiana, seja por ser a
espacialidade uma dimensão fundamental da vivência fenomenológica dos
indivíduos” (JOSGRILBERG, 2015). O próprio conceito de “rede” teve,
gradativamente, suas definições estendidas às mais diversas áreas (anatomia,
química, neurologia, entre muitas outras), principalmente depois da criação da
distribuição da eletricidade, através das redes elétricas, ou mesmo das ferrovias e
rodovias que se distribuem no território como tal, chegando ao ponto de ser, hoje,
tratada como sinônimo de “internet” pelo senso comum e até por alguns dicionários.
Santos fala sobre isso, observando que, em geral, o termo se proliferou
acriticamente nas ciências humanas e sociais (1996). A popularização do termo
acompanhou o crescimento e a concentração das diversas redes que compõem o
espaço contemporâneo, sobretudo o urbano. Josgrilberg aponta que:
As diferentes relações e práticas sociais no espaço urbano, onde há maior concentração de rede de telecomunicações, e mediação das distâncias contribuíram para uma estimulante imbricação de vocabulários que articula geografia, arquitetura, telecomunicações, ciências da computação e cultura cotidiana. (JOSGRILBERG, 2015)
Certamente, esse intercâmbio constante de termos e busca incessante por
conceitos que expliquem os fenômenos contemporâneos se devem as
transformações que o ser humano exerce no meio em que vive, inserindo sempre
novos objetos técnicos que levam a novos sistemas de ação e significados.
Conforme McLuhan (1964) escreveu, toda nova tecnologia inserida em uma
sociedade altera, mesmo que implicitamente, toda uma estrutura de ações e
símbolos, de relações entre agentes e objetos. Josgrilberg (2015) também escreve
que “toda nova técnica leva a uma nova percepção do mundo e do tempo”. Isso,
sem dúvidas, inclui as dinâmicas e significados das palavras e da linguagem.
Nesse sentido, os estudos do intelectual brasileiro Milton Santos na área da
geografia humana, tratando da epistemologia da geografia, dos problemas do
espaço urbano, da questão filosófica da técnica, das formas de organização e
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interação humana com o território, as problemáticas do processo de globalização, e
sobretudo a ontologia do espaço, oferecem uma vasta gama de conceitos e
pensamentos totalmente pertinentes ao campo da comunicação social, à fase do
desenvolvimento tecnológico que se apresenta e ao período histórico no qual a
humanidade se encontra, que simplesmente transbordam a disciplina da geografia.
Santos apresenta um olhar analítico e reflexivo completo ao que chama de
sistemas de ações e sistemas de objetos, componentes daquilo que é um dos
maiores enfoques de sua obra: o espaço. Para o autor, é este o objeto ao qual o
corpus da geografia é subordinado (SANTOS, 1996). Ou seja, o espaço é – ou
deveria ser - o principal foco dos trabalhos e estudos geográficos, pois é somente
através dele e nele que se dão as relações humanas e os acontecimentos naturais.
Conforme constata Dias:
A geografia proposta por Milton Santos é uma ciência da transformação por interpretar a dialética do mundo contemporâneo de maneira militante, ao trazer a maioria da população como centro de uma geografia que reconhece o espaço como uma instância social, a partir da compreensão de que este não é apenas materialidade. O espaço é materialidade conjugada com as ações humanas, e sem essas a materialidade do espaço perde todo o seu sentido de existência. (DIAS, 2008, p. 91).
A abordagem humana que Santos faz da geografia é a grande característica
que atrai a comunicação social, e as ciências sociais aplicadas em geral, revelando
uma possível e clara convergência de estudos e relação entre os campos. Essa
convergência se fortalece com o emergir das novas técnicas comunicacionais nos
mais variados territórios, e com a evolução galopante das tecnologias
computacionais, respaldadas pela união da técnica com a ciência. Dentre os
diversos objetos técnicos que invadiram o cotidiano das pessoas e proporcionaram a
ruptura com o período histórico anterior, destacam-se dois, que são a base para os
demais: o computador e a internet.
Além de estandardizar a técnica e permitir o fluxo de informações em
velocidade quase instantânea, a internet (que é uma rede telemática) também
proporciona a criação de ambientes digitais, nos quais se pode e hospedar dados e
manter relações interpessoais. Como a obra de Santos trata profundamente da
questão do espaço, acreditamos ser pertinente o debate que se apresenta em torno
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deste novo lugar digital, aquele que alguns teóricos chamam de ciberespaço. O
debate aumenta devido à popularidade das redes sociais, que passaram a sediar
boa parte de novas relações entre os indivíduos. Sobre isso, Josgrilberg comenta:
O ciberespaço é um elemento do espaço e não “outro espaço”. O conceito de espaço não é uma metáfora ou um sistema independente (ciber), mas algo concreto articulado por sistemas de objetos e sistemas de ações, mobilizados por técnicas do atual período. (JOSGRILBERG, 2015).
Aceitando que o ciberespaço é um lugar dentro do espaço, e não algo a parte,
possibilitado pela concentração de tecnologia e pelas redes de telecomunicações,
principalmente pela internet, entendemos também que sua existência não depende
apenas dos sistemas técnicos, mas também da ampla aceitação e apropriação das
redes por usuários domésticos, não especialistas. Essa é uma questão social e
cotidiana de suma importância. Consideramos também um ponto concernente da
obra de Santos seus pensamentos sobre os fluxos de dados e de informações, que
aumentou exponencialmente com a implementação de sistemas técnicos
hegemônicos em todo mundo. O autor considera que, sendo a informação um
combustível desse período, os objetos e as técnicas são pensados e concebidos sob
esta lógica, sendo eles próprios, também, informação. Assim, estimula-se os fluxos a
manterem-se sempre ativos, apesar de as informações nem sempre serem valiosas,
podendo, inclusive, confundir ao invés de esclarecer. Para a comunicação social,
esta é uma questão muito importante.
Há também uma questão fundamental que se apresenta: o controle. As
aplicações sociais não neutras - e isto observa-se mais explicitamente na internet -
acabam exercendo sobre os usuários um grande poder de controle, que não é tão
aparente, mas que se mostra à uma reflexão mais profunda sobre como elas
funcionam e quais são suas finalidades. Certamente, suas idiossincrasias são
imbricadas por ideologias e intencionalidades oriundas dos países e das empresas
onde são desenvolvidas, atores cada vez mais hegemônicos, restando às regiões
periféricas apenas aceitá-las e usá-las, sob a pena de permanecer ainda mais fora
do processo de globalização caso não o façam. Essa discrepância também é
observada por Santos e também será discutida no trabalho:
Essas técnicas da informação (por enquanto) são apropriadas por alguns Estados e por algumas empresas, aprofundando assim o processo de criação de desigualdades. É desse modo que a
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periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhes escapa a possibilidade de controle. (SANTOS, 2000, p. 39)
Portanto, os possíveis diálogos entre a obra de Santos e as questões
contemporâneas da comunicação são diversas. É evidente que, dada tamanha
grandeza da obra desse intelectual, que publicou mais de quarenta livros em vários
idiomas, além dos mais de 400 artigos, praticamente todas as disciplinas das
ciências humanas e sociais aplicadas podem encontrar algum pensamento
concernente e contribuinte.
Como um crítico rígido ao processo de globalização, Santos se manteve
atento a evolução dos sistemas técnicos, das tecnologias da informação e
comunicação, como se deu (e ainda se dá) a distribuição desse conhecimento e
quais são os efeitos disso para a sociedade. Não resta dúvidas que, além da própria
geografia, seus trabalhos agregam muito às disciplinas de história, sociologia,
etnografia, economia, ecologia, tecnologia, educação, saúde, entre muitas outras,
sem falar aos setores políticos de planejamento e, finalmente, à própria
comunicação social.
Após esta breve introdução, apresenta-se a pergunta de pesquisa que
norteará a dissertação: quais são as contribuições da geografia humana de Milton
Santos para a comunicação social? Quais são os possíveis diálogos entre o
pensamento do autor e as atuais questões relacionadas aos sistemas técnicos e de
objetos que sustentam os novos processos de comunicação?
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Capítulo I - REFLEXÕES SOBRE IDEIAS E PENSAMENTOS
DE MILTON SANTOS
1.1 Introdução do capítulo
Nascido na pequena cidade de Brotas de Macaúbas, interior da Bahia, Milton
Almeida dos Santos, conhecido mais tarde como Professor Milton Santos, pode ser
considerado um exemplo de brasileiro a ser seguido, com uma belíssima trajetória
intelectual e educacional, amplamente reconhecida dentro e fora do Brasil, conforme
consta em sua bibliografia disponível no site oficial do autor, citado nas referências.
Doutor em Geografia pela Universidade de Estrasburgo, na França, graduou-
se em Direito dez anos antes na Universidade Federal da Bahia. Pesquisador nato,
desde o início da carreira realizava estudos importantes sobre sua localidade e
exercia amplamente atividades públicas, assumindo cargos. Conforme citado,
chegou a ser redator do Jornal À Tarde e diretor da Imprensa Oficial da Bahia,
cargos que lhe conferem importância política e crítica.
A trajetória internacional notória talvez não tivesse acontecido não fosse o
golpe militar de 1964, que o fez ter de buscar exílio na França. Se mudou diversas
vezes de cidade e de país, lecionando em importantes universidades, como a
Universidade de Paris, Universidade de Toronto e no Massachusetts Institute of
Technology (MIT) em Boston, entre algumas outras não menos importantes.
Quando volta ao Brasil, enfrenta algumas dificuldades para se recolocar nas
universidades Brasileiras, mas logo ingressa por concurso na Universidade de São
Paulo - USP. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa de doze universidades
brasileiras e sete universidades estrangeiras e em 1994 torna-se o único geógrafo
da América Latina a receber o Prêmio Vautrim Lud, o maior dentro da Geografia
mundial.
Reconhecido como importante personagem na proposta por uma nova
geografia, também foi crítico profundo do processo de globalização e suas
implicações sociais. Sua abordagem humana da geografia reconhece a atividade
social como peça chave para a criação do espaço geográfico.
Sendo um dos principais autores da geografia brasileira, é até hoje admirado,
não apenas pela grandiosidade de sua obra, em número, profundidade e rigor, mas
17
também pela alegria e simplicidade de ser. Sempre enfrentou com discernimento e
firmeza as questões relacionadas ao preconceito racial e fez de seu intelecto uma de
suas maiores riquezas.
Trabalhou até o fim de sua vida, orientando alunos, escrevendo e atuando.
Suas últimas obras são frutos de uma vida de dedicação e de ampla experiência.
Dentre todas elas, lançamos olhar mais detalhado sobre o livro que é considerado
seu maior trabalho, por organizar diversos de seus próprios pensamentos face ao
momento atual da sociedade e seus fenômenos. Mais informações sobre a vida e
obra de Milton Santos podem ser encontradas no Apêndice único da dissertação.
1.2 Introduzindo a Natureza do Espaço
Com a primeira edição publicada em 1995 pela editora Hucitec, A Natureza do
Espaço: técnica e tempo, razão e emoção, juntou diversos debates e ideias que
Santos apresentou em obras anteriores, revisitando-os com uma abordagem
amadurecida, fazendo um rico apanhado de citações e evoluindo seu próprio
pensamento. Para muitos leitores do autor, este livro pode ser considerado o ápice
de sua trajetória intelectual, resultado do trabalho de toda uma vida, obra de notável
rigor científico e admirável clareza. O livro apresenta importantes reflexões para se
pensar o mundo atual, a sociedade e a realidade contemporânea.
O eixo ao redor do qual os temas giram, conforme o título do livro adianta, é o
espaço e sua ontologia. Contudo, não enquanto conceito cosmológico ou astrofísico,
nem exclusivamente a distância entre dois pontos. Trata-se daquilo que o autor
chama de espaço geográfico, uma soma de objetos, sistemas e elementos (técnicos,
sociais, informacionais), que resulta no ambiente em que vida humana se realiza.
Logo no início, Santos esclarece que o espaço vem a ser o principal objeto, não
apenas do livro, mas da disciplina da geografia, ao qual ela deve (ou deveria) se
submeter. Esse conceito não surgiu repentinamente, mas foi construído no decorrer
dos anos de pesquisa e reflexão. Josgrilberg traça bem a linha do tempo da
construção do conceito de espaço para Santos, pontuando suas transformações:
A evolução teórica do conceito de espaço evoluiu de um “um conjunto de fixos e fluxos” (Santos, 1978) para a tentativa de se pensar a “configuração territorial” e as “relações sociais” (Santos, 1988), até se consolidar como “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ação” (Milton Santos, 2002, 62). Em sua definição última, a proposta de Santos não prescinde da ação
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humana, valorizando, portanto, outra noção fundadora em sua ontologia do espaço: a técnica. (JOSGRILBERG, 2015).
É nítido que todas as conceituações que Santos propôs fazem sentido lógico,
cada uma à sua época, de modo que a nova ideia não invalida a anterior, mas a
complementa, sendo todas cabíveis e importantes para a concepção de suas
sucessoras. A última delas, todavia, introduz uma noção fundadora do espaço que
tem vital importância para a dissertação: a técnica. Sem dúvidas, a técnica é e tem
se tornado cada vez mais definidora do espaço e do período temporal, sobretudo no
modelo de vida atual. Para Santos, ela não é única e se apresenta como sistema:
um sistema técnico. Além disso, Santos se dedica a esmiuçar outros conceitos
importantes para a criação do espaço, como os sistemas de objetos e os sistemas
de ação, falando sobre o híbrido que mescla matéria, intencionalidade, redes e ação
humana. Lancemos olhar sobre cada um dos elementos que, segundo Santos,
compõem a natureza do espaço, iniciando por aquilo que o autor chamou de
sistemas técnicos no espaço geográfico:
As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas. Os sistemas técnicos envolvem formas de produzir energia, bens e serviços, formas de relacionar os homens entre eles, formas de informação, formas de discurso e interlocução. (SANTOS, 1996, p.141)
A abordagem ampla atribuída ao termo demonstra bem o ponto de vista que
Santos assume e a importância que dá ao fenômeno técnico. O espaço geográfico
em seu pensamento, representado pelo local onde as pessoas habitam,
independentemente de ser uma cidade, área rural, metrópole, megalópole,
comunidade, tribo ou qualquer outro tipo de arranjo, é fruto da atividade humana que
ali se desempenha. Essas atividades, postas em conjunto, estão sendo cada vez
mais determinadas por técnicas hegemônicas e globais. Desconsideram-se como
espaço geográfico, assim, os ambientes livres de atividade humana (raros
atualmente, é verdade), considerando-os como paisagens naturais, artificiais ou
mistas. Portanto, sempre que nos referimos a espaço ao longo do texto, está se
considerando a atividade humana no ambiente físico, composto por objetos técnicos
e coisas naturais. Por si só, tais elementos apenas existem, pois “só por sua
presença, os objetos técnicos não têm outro significado senão o paisagístico. Mas
eles aí estão também em disponibilidade, à espera de um conteúdo social”.
(SANTOS, 1997, p. 85). Também deve-se entender que as ações humanas que
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criam o espaço possuem “no momento atual, uma função atual, como resposta às
necessidades atuais da sociedade”. (SANTOS, 1997, p.84).
A intervenção que fazemos no sentido de civilizar o ambiente, atribuindo-lhe
existência social, é feita através do trabalho que, por sua vez, necessita de uma
técnica. Portanto, se decidimos (ou decidiram) enquanto sociedade que a melhor
alternativa para atender as demandas energéticas atuais é queimar combustíveis
fósseis, por exemplo, se aplicam as técnicas pertinentes a este objetivo, com todas
suas implicações. Se decidimos que é melhor construir prédios do que viver em
ocas, que se desenvolvam as técnicas que realizem tal tarefa. Ainda como exemplo,
se decidimos que transmitir ao vivo uma partida de futebol via televisão para milhões
de telespectadores é algo válido, que faz sentido, o fazemos através de técnicas
desenhadas e dispositivos tecnológicos específicos para tal. Mas a noção que aqui
se busca é mais ampla: a transmissão do jogo (e os dois exemplos anteriores) não
deve ser entendida apenas como processos tecnológicos de comunicação digital
entre câmeras, computadores, servidores, antenas, satélites e televisores, mas
como possuidora de uma lógica própria de existência e disposição na sociedade que
também é técnica, neste caso, uma técnica de entretenimento, por exemplo. Assim,
pode-se descrever inúmeros processos da vida cotidiana que existem submetidos à
técnica e que possuem ligação com forma de criar os respectivos espaços de
convívio social. Santos observa que “as técnicas oferecem respostas à vontade de
evolução dos homens e, definidas pelas possibilidades que criam, são a marca de
cada período da história” (2001, p. 63).
A análise de Santos parece não subordinar a técnica ao âmbito científico,
apesar do trabalho possuir profundo rigor e compromisso com a ciência, mas a
aproxima da filosofia, da reflexão e da crítica, aplicando um enfoque que é, ao
mesmo tempo, abrangente e profundo. Neste sentido, é um fenômeno de
fundamental relevância na forma como percebemos e produzimos a realidade. Já faz
algum tempo que a paisagem mais comum ao homem deixou de ser o ambiente
rural, mais próximo à natureza e a vida selvagem. Ela foi transferida para o ambiente
urbano, concretizado pelas cidades. Sendo atualmente a principal forma de
organização e de arranjo social, estima-se que 85% do total da população brasileira
viva em cidades (IBGE, 2010). O processo paulatino conhecido como êxodo rural fez
com que as pessoas buscassem uma nova forma de trabalho, deixando para trás as
práticas do campo com a esperança de uma vida mais digna e melhor, de modo
20
geral. Esse fenômeno pode ser observado nas mais diversas regiões do globo,
principalmente durante as últimas cinco ou seis décadas. No Brasil, o êxodo se
acentuou a partir da década de 60, com a abertura da economia para a entrada de
investimentos internacionais, que trouxe grandes indústrias para o país, gerando
empregos e atraindo trabalhadores rurais para os locais onde elas foram instaladas.
Para prosperar no novo ambiente, os que se arriscaram precisaram aprender
novas técnicas, não só de trabalho, mas de vida. Esse é um bom exemplo para
entendermos o conceito de técnica que se aplicará ao longo dessa dissertação. Para
se adaptar e construir seu novo meio, o homem sempre criou, aprendeu e aplicou
novas técnicas. A priori, já existe o ambiente, o meio, composto por elementos
estáticos ou móveis e por um conjunto infinito de outras coisas, que a princípio é
natural. O ser humano, através de seu trabalho, transforma continuamente esse
ambiente em algo novo, artificial. O direcionamento desse trabalho se altera
conforme a intenção de quem o realiza, enquanto sua operacionalização
necessariamente invoca uma técnica. Ou seja, uma maneira de fazer específica,
formas de combinar os elementos e arranjar processos a fim de produzir um
resultado. Nas palavras de Santos, a técnica é “a principal forma de relação entre o
homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio”, complementando que “as
técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem
realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (SANTOS, 1997, p. 25).
Assim, quem deixou a zona rural, encontrou na cidade outros elementos: o
cimento abundante em todas as edificações, o pavimento que expande e define o
que é transitável, a linha do horizonte substituída por edifícios, o crescimento
vertical, o trânsito dos automóveis e tantas outras características que a maioria das
cidades têm em comum. Para viver, precisou se adaptar, aprender as técnicas
pertinentes ao novo meio, não apenas as do trabalho, mas também as da vida
cotidiano e tudo que nela cabe: como se locomover, como buscar alimento, como
habitar o espaço, como se comportar e se relacionar. Ou seja, a técnica em seu
sentido amplo e filosófico, já proposto por Sorre (1948) e apontado por Santos
(1997), que vai além das práticas mecânicas ou procedimentais. Ao passo que as
aprendia e as aplicava, o homem também as reinventava, como ainda o faz,
sabendo disso ou não.
É fato que não somente os trabalhadores rurais que migraram de região
passaram por esse processo. As evoluções das diversas técnicas com as quais o
21
homem modifica o meio atingiram a vida de praticamente todas as pessoas inseridas
na sociedade, independente de classe, condição financeira, crença ou cultura,
obviamente, de maneiras diferentes. Muitas profissões desapareceram
recentemente, e muitas outras têm surgido. Antigas formas de fazer e entender o
mundo estão ficando para trás, ultrapassadas por inovações. Hoje, elas são
contínuas, estão em acelerado ritmo e algo importantíssimo de se destacar: muitas
delas ocorreram recentemente nos modos e meios de comunicação interpessoal,
sobretudo com a significante ampliação do acesso à tais aparatos. Isso concedeu à
comunicação um papel central dentro dos modos vida atual. Wolton (2005) teve essa
percepção:
A comunicação assume seu lugar normativo ao passar de uma sociedade fechada a uma sociedade aberta. Desenvolve-se muito, portanto, com o crescimento urbano, o êxodo rural, a fragmentação das estruturas sociais tradicionais, o enfraquecimento das classes sociais e da família ampliada. É o símbolo da libertação em relação à tradição, da mobilidade em relação à estabilidade, de uma sociedade menos hierárquica, mais centrada em si e na relação com o outro. (WOLTON, 2005, p. 26)
Mas tudo isso acaba de ser assim. No princípio da civilização, nossos
ancestrais mais longínquos criavam objetos e técnicas rudimentares, ao longo de
intervalos maiores de tempo, muitas vezes apenas modificando o uso e não a forma
de um objeto. Um galho utilizado como bastão para golpear uma caça, ainda é um
galho, empregado em um novo uso. Um próximo passo, talvez, seria afiar uma de
suas pontas com a ajuda de rochas e transformá-lo numa lança, agora promovendo
também a alteração de sua forma. Seguindo o raciocínio, podemos pensar nos
diversos utensílios e técnicas que durante milhares de anos foram sendo
implementados na superfície do planeta, alterando lentamente a paisagem e os
modelos de vida dos grupos humanos, até chegar ao sistema globalizado e
capitalista hegemônico que hoje se apresenta e que abordaremos mais adiante. Por
agora, o foco está nas técnicas e suas repercussões.
Sem entrar nos méritos, é preciso estar claro que o número de
desdobramentos sociais e ocasionais que uma técnica proporciona é muito grande
e, por vezes, imprevisível. Ela pode resultar em um objeto, em uma nova forma de
organização social, em sucessos ou fracassos de uma comunidade, em construção
ou destruição de um espaço geográfico, no aumento ou diminuição da qualidade de
22
vida, dependendo sempre da maneira como é aplicada e da intenção daqueles que a
aplicam. De maneira geral, tem uma forte ligação com a utilidade. Dificilmente se
desenvolve e se aplica uma técnica que não tenha fim prático, mesmo que seja para
uma prática filosófica ou intelectual. Mesmo ainda que seja para um fim que
prejudique uns em benefício de outros, como as técnicas de guerra ou atividades
violentas. Em todos esses casos, há sempre algo a ser alcançado. Há sempre uma
busca por resultados. Em síntese, ela gera mudanças. Daí a busca constante por
técnicas mais eficientes.
É necessário entender que as técnicas, mas não só elas, exercem influência
direta e indireta no espaço que construímos e, portanto, na existência social. A
maneira como edificamos o território e alteramos a paisagem tem relação íntima com
a técnica que se utiliza para fazê-lo. Pierre George fala sobre isso:
A influência da técnica sobre o espaço se exerce de duas maneiras e em duas escalas diferentes: a ocupação do solo pelas infraestruturas das técnicas modernas (fábricas, minas, ‘carrières’, espaços reservados à circulação) e, de outro lado, às transformações generalizadas impostas pelo uso da máquina e pela execução dos novos métodos de produção de existência. (GEORGE, 1974 apud SANTOS, 1997, p.28).
Com a revolução industrial iniciada na segunda metade do século XIII, um dos
eventos mais importantes na história da sociedade contemporânea, pode-se dizer
que a preocupação com as técnicas ganhou outro nível. Antes disso, os modos de
produção de objetos eram predominantemente artesanais, que não deixam de ser
trabalhos técnicos, técnicas artesanais, mas que lhes proporcionavam distribuição
limitada e valor próprio. O surgimento das máquinas como mão de obra e
ferramenta, o maior domínio sobre as energias provenientes da água, do vapor e do
carvão, e a sofisticação das técnicas mecânicas de produção permitiu que os objetos
deixassem de ser apenas produzidos, mas pudessem também ser reproduzidos em
escala consideravelmente maior, de forma padronizada e com nível de qualidade
aceitável. As técnicas de produção industrial e engenharia de produção se
espalharam pelo mundo ocidental e se tornaram foco de atenção.
Para sustentar esse novo modo de produção, foi preciso juntamente criar a
demanda que consumiria essa nova e crescente oferta de objetos, para que não
somente o objeto físico fosse aceito (ou desejado), mas também toda a
racionalidade que o envolve, de modo a viabilizar e justificar o processo. Talvez seja
esse o ponto na história no qual as técnicas passam a ganhar uma aplicação lógica
23
que é, também, ideológica. Salta para além das linhas de montagem industriais,
passando a ser parte determinante da vida cotidiana do homem anônimo. Com mais
técnicas imbricadas na vida ordinária, o espaço geográfico passa a refletir direta e
indiretamente os efeitos dessa alteração e a paisagem passa por transformações.
Considera-se:
O espaço visto como um conjunto de objetos organizados segundo uma lógica e utilizados (acionados) segundo uma lógica. Essa lógica de instalação das coisas e de realização das ações se confunde com a lógica da história, à qual o espaço assegura continuidade. (SANTOS, 1997, p. 34)
Para entender como o fenômeno técnico altera o espaço geográfico, e como
isso atinge tanto a materialidade quanto a ideologia vigente, podemos pensar no
exemplo da criação e reprodução dos automóveis. Antes de existirem, a forma de
organizar e dispor as áreas públicas em uma cidade era totalmente outra. Como
pavimentar os passeios, com qual métrica? Tudo isso se altera severamente com a
inserção desse novo elemento, que traz consigo racionalidade e proposta de uso, e
estende seus efeitos colaterais em diversas direções. Foi preciso, exemplificando,
criar técnicas para administrar e regulamentar o trânsito, para produzir e
disponibilizar os combustíveis, para promover a segurança dos condutores e dos
pedestres, para cobrir buracos que atrapalhem a locomoção, entre tantas outras
coisas que até hoje passam constantemente por aprimoramentos, formando um
sistema complexo de técnicas e que faz sentido para quem o vê e utiliza. Baudrillard
(1968), já disse que “o automóvel é um dos mais importantes signos do nosso tempo
e seu papel na produção do imaginário tem profunda repercussão sobre o conjunto
da vida do homem, incluindo a redefinição da sociedade e do espaço”. (Apud
SANTOS, 1997, p. 54). Como já foi dito, portanto, a técnica aqui não se restringe a
forma de aplicação específica, mas como ela se entranhou nos modos de vida
atuais, de modo amplo, difuso, e diretamente responsável pela criação do espaço
geográfico, conforme explica Santos:
Quando geógrafos escrevem que a sociedade opera no espaço geográfico por meio dos sistemas de comunicação e transportes, eles estão certos, mas a relação, que se deve buscar, entre o espaço e o fenômeno técnico, é abrangente de todas as manifestações da técnica, incluídas as técnicas da própria ação. Não se trata, pois, de apenas considerar as chamadas técnicas da produção, ou como outros preferem, as “técnicas industriais”, isto é, a técnica específica, vista como um meio de realizar este ou aquele resultado específico. (...) Só o fenômeno técnico na sua
24
total abrangência permite alcançar a noção de espaço geográfico. (SANTOS, 1997, p. 31)
Estando ciente da abordagem, há mais uma característica essencial
relacionada à questão técnica atual: sua aproximação – ou fusão – com a ciência.
Isto é, a ciência, aponta Santos (1997), principalmente no com as duas grandes
guerras do século XX, se aproximaram muito das técnicas, deixando de ser restrita à
laboratórios em universidades, e passando a servir fortemente a indústria e os
interesses econômicos em geral. Trabalharemos esse fenômeno mais afundo ainda
nesse capítulo. O que fica por agora é visão ampliada do fenômeno técnico e sua
realização através de sistemas técnicos, indissociáveis de outros sistemas: os
sistemas de objetos e os sistemas de ação.
1.2.1 Arranjos sistêmicos dos objetos e das ações
Para entendermos o conceito de espaço que Santos propõe, é preciso
caracterizar as colunas que sustentam a ideia central. Conforme apontado
anteriormente, as técnicas assumem tal papel e se organizam como sistema.
Juntamente, Santo aponta a existência dos “sistemas de objetos” e os “sistemas de
ação”. Ambos os termos aparecem em um dos conceitos de espaço mais defendidos
pelo autor: “O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”. (Ibidem, p. 51). O
conjunto indissociável diz respeito à união dos diversos sistemas que compõem a
vida cotidiana, que apenas funcionam juntos. São solidários pois são
interdependentes e se sustentam mutuamente em muitos casos, mas também são
contraditórios, pois há muitos pontos de conflito e atritos aos quais os sistemas não
podem escapar.
Para Santos, os sistemas de objetos representam a materialidade, as formas
físicas, naturais ou artificiais, que estão disponíveis para que o homem aplique sua
ação. Esta ação similarmente emerge como sistema: sistemas de ação, e refere-se
ao trabalho exercido pelo ser humano sobre os objetos. Se olhamos para os
sistemas de objetos isoladamente, excluir-se-á a realidade atribuída pelos sistemas
de ação, a realidade simbólica, filosófica, intencional, ideológica e cognitiva que o
homem dá ao mundo. O que resta é uma visão parcial e restrita. Da mesma forma,
25
não há ação humana que não envolva, em algum nível, os objetos, as
materialidades, sobretudo na atualidade altamente tecnológica e consumista que
construímos, onde a busca por bens de consumo é constante. Portanto, são
sistemas de ação que também não fazem sentido sozinhos. Apesar disso, vale
lançar olhar sobre cada um dos conceitos para aprofundar o entendimento das
relações que se estabelecem entre tais sistemas e quais papeis eles desempenham
na vida cotidiana do ser humano contemporâneo.
Quando fala dos sistemas de objetos, Santos (1997) inicia realizando uma
distinção entre “objeto” e “coisa”. Termos que no cotidiano possuem utilização quase
sinônima, aqui se diferenciam entre aquilo que a natureza cria no caso deste (rios,
montanhas, nuvens, árvores, etc.), e aquilo que o homem cria para aquele
(artefatos). Apesar de citar outros autores que concordam com a ideia, Santos
admite que essa classificação é intuitiva de modo geral e que “no princípio, tudo
eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas,
dádivas da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjunto de
intenções sociais, passam, também, a ser objeto”. (Ibidem, p.53).
É nítido que o processo de artificialização da natureza é constante e
crescente em nossa sociedade mundializada, basta notar que, na maior parte do
tempo, aqueles que vivem em cidades estão muito mais cercados por objetos
artificiais do que coisas naturais, e isso não é de agora. Mesmo para os habitantes
da zona rural, a quantidade de objetos que ajudam na realização da vida cotidiana
não é pequena e ela só se modifica para cima. O que vemos é um vasto conjunto
de sistemas de objetos compondo o espaço. A criatividade para sua obtenção e
utilização parece ser parte importante da natureza humana, haja visto que nossos
ancestrais mais longínquos já a utilizavam, criando objetos rudimentares, mas que
foram o início do processo. Deparamo-nos, agora, com um ponto de evolução da
artificialização que é inédito e que traz consigo profundas reflexões éticas, morais e
filosóficas.
Mas como e por quê se criam os objetos? Primeiro, eles podem ser simples,
como uma bifurcação em madeira feita estilingue, e podem ser sofisticados, como
uma estação espacial orbitando o planeta. Independentemente do caso, são frutos
complexos do acúmulo de conhecimento, tempo, técnica e intencionalidade. O que
define sua complexidade não é sua forma em si, mas a soma desses elementos que
foram acionados em sua concepção, necessariamente humanos e que precisam ser
26
logicamente combinados para resultarem em algo útil. A utilidade guarda o porquê.
Objetos servem, de alguma forma, ao homem. Assim, também é ele um registro de
informações: aquilo que se pode inferir sobre. Como coloca Santos, “a complexidade
estrutural de um objeto é sua informação porque é a forma como pode comunicar-se
com outro objeto, ou servir a uma pessoa ou empresa ou instituição” (1997, p. 56).
A razão de ser de um objeto, portanto, vem de uma necessidade identificada
no espaço. Objetos compõem o espaço, e por ele são determinados. Santos
assegura que “o espaço é formado de objetos; mas não são os objetos que
determinam os objetos. É o espaço que determina os objetos: o espaço visto como
um conjunto de objetos organizados segundo uma lógica e utilizados (acionados)
segundo uma lógica (1996, p. 34). Percebe-se, portanto, que é um fenômeno
necessariamente social, isto é, não aconteceria fora da existência humana, já que
“toda criação de objetos responde a condições sociais e técnicas presente num dado
momento histórico” (IBID, p. 56).
Assim, os processos de criação, reprodução, distribuição e consumo dos
objetos, formam sistemas ao coexistirem e se correlacionarem logicamente. Hoje
multiplicam-se, somam-se e destroem-se. Existem aqueles que são fixos: prédios,
viadutos, estações de metrô, terminais rodoviários, monumentos e edificações
imóveis, objetos geográficos. E há os objetos móveis, que seguem pelos fluxos das
ações humanas, que se locomovem ou se transportam com mais facilidade pelo
espaço. Ambos, contudo, são artificiais e à ambos se aplica a lógica sistêmica.
Isso aplicado em escala global, surte uma quantidade indeterminada de
efeitos que simplesmente não se consegue acompanhar, ou mesmo, observar.
Conforme se constata, no atual período os objetos distribuídos mundialmente levam
consigo suas tecnologias, sua materialidade, seus significados, suas ideologias, sua
racionalidade e suas técnicas de utilização. Esse fenômeno se deu principalmente
pelo processo de globalização, que interligou mercados, transpôs barreiras de tempo
e espaço, aproximou algumas culturas, excluiu outras e, no geral, alterou os modos
de vida da espécie humana.
Há, portanto, uma “população” de objetos inseridos em nossas vidas que
fazem todo tipo de coisa e sem os quais a vida contemporânea entraria em colapso.
Com o passar do tempo, boa parte deles ganharam características comuns: a
obsolescência programada que o modelo de consumo adota como fundamental,
sustentando setores industriais e comerciais ao redor do mundo. Ou então a
27
capacidade de conexão com redes, transmissão e armazenamento de dados, a alta
tecnologia que se incorporou a outros tantos. Podemos dizer que, no tempo atual, os
objetos são cada vez menos rudimentares, artesanais e cada vez mais sofisticados,
industrializados e padronizados, e sua distribuição é mais generalizada.
Vale aqui salientar brevemente o grupo de objetos técnicos que se introduziu
rapidamente em nosso dia a dia e alteraram explicitamente nossas formas de se
relacionar com o outro. São os dispositivos computacionais ligados à internet.
Através de computadores, celulares smartphones, tabletes, e todos os derivados
correlatos, a distribuição de mensagens e informações pulverizou-se de uma só vez.
A comunicação social passou a acontecer por vias inéditas, novas, diferentes, e com
isso emergiu um novo mundo de possibilidades, uma nova cultura. Trataremos
especificamente desse tema em outros capítulos, mas não havia como deixar de
citar os aparelhos que saltaram do estágio “inexistente” direto para o “indispensável”
num período de tempo que, em termos históricos, equivale a um piscar de olhos.
Abordando então os sistemas de ações, pensamos sobre o verbo do termo.
Talvez ele seja um dos mais próximos da existência humana: o verbo agir. Tudo que
o homem faz é agir. É através da ação que os homens alteram a realidade e a si
próprios. Apoiado em Everett M. Rogers (1962), Santos pontua que a ação é um
comportamento orientado, ou seja, não surge ao acaso como um acontecimento
qualquer, mas sim surge por um motivo e busca um objetivo. Complementando com
os estudos de Alfred Schutz (1967) e Abraham Moles (1974), o autor entende que a
ação, por sua própria natureza, necessita de uma projeção prévia, um planejamento
de seu praticante, e que invariavelmente ela resulta em uma modificação ou
alteração do meio em que se insere ou ao qual se destina. O verbo agir é elementar.
É somente através dele que as transformações se realizam, em todas as vertentes
da vida social, pois apenas o homem pode realizar uma ação. Santos afirma que “a
ação é o próprio do homem. Só o homem tem ação, porque só ele tem objetivo,
finalidade. A natureza não tem ação porque ela é cega, não tem futuro” (1996, p.
67).
E se cada indivíduo é capaz de desempenhar suas ações, de acordo com
suas necessidades e intencionalidades, transformando a realidade, a junção de
todas as ações das individuais cria sistemas de ações que coexistem, que se
chocam, se atritam, se completam, cooperam, dando corpo aos fatos cotidianos e
animando a materialidade. Nossas ações estão sempre interligadas, isto é, uma
28
ação gera uma mudança e será a partir dela que a próxima ação se dará, talvez com
o nome de “reação”, que nada mais é do que uma resposta ao estímulo anterior.
Existem também ações conjuntas. Ao passo que se organiza, o homem cria grupos,
como empresas, instituições, sindicatos, governos, que se normatizam e orientam as
ações dos indivíduos que as compõem, visando um objetivo maior, somente
alcançável com a participação de todos. Ou seja, a ação orientada de vários
indivíduos resulta em uma ação coletiva maior. Essa orientação, na grande maioria
das vezes, é centralizada e um comando e não decidida pelos realizadores. Numa
empresa, por exemplo, o dono tem mais poder de decisão, por estar acima na
escala hierárquica, de tal modo que seu trabalho é apontar os rumos, mas não
necessariamente realizar a ação.
Importante fixar que, conforme coloca Santos, “as ações resultam de
necessidades, naturais ou criadas” (1996, p. 67). Podemos dizer que, antes da
globalização, as ações eram mais presas no espaço e orientadas pelo território,
atendendo as necessidades locais. A relação com o tempo também era diferente,
com prazos maiores e ritmos mais desacelerados. Hoje, contudo, com a
internacionalização do capital, o avanço da diplomacia e das relações comerciais
entre os países, observa-se que “muitas das ações que se exercem num lugar são o
produto de necessidades alheias, de funções cuja geração é distante e das quais
apenas a resposta é localizada naquele ponto preciso da superfície da Terra”. (IBID,
p. 65). A exportação de mão de obra é um exemplo explícito.
Encontram-se atualmente na China e outros países asiáticos boa parte da
produção de bens de consumo que abastecem o mundo todo, mas que não são
criações chinesas. A engenharia do produto, o design, a tecnologia empregada, o
posicionamento no mercado, o investimento em marketing, as técnicas de produção,
é tudo decidido fora da região que produz o objeto, e isso se tornou muito comum
devido ao baixo custo operacional exercido em tais países. Para além do debate da
exploração de mão de obra, observa-se claramente que “as ações são cada vez
mais estranhas aos fins próprios do homem e do lugar. Daí a necessidade de operar
uma distinção entre a escala de realização das ações e a escala do seu comando. ”
(IBID, p. 65).
Então, é preciso estar claro que, no arranjo social, existem aqueles que
decidem o que vai ser feito e aqueles que realizam o que foi decidido. O poder
decisivo é restrito à um número menor de pessoas, mas em diversos níveis de
29
hierarquia pode-se constatar esse tipo de relação. Na escala global, países mais
desenvolvidos economicamente costumam abrigar tais “centros de comando” que
abrigam duas fábricas em países menos desenvolvidos e distribuem seus objetos
para todo o planeta.
Sendo os sistemas de ação um dos principais influenciadores da criação do
espaço segundo as ideias de Santos, o distanciamento da sua relação com o
território e a aceleração do tempo certamente alteram o espaço que se cria. Isso, por
sua vez, transforma nossa percepção do mundo e, ao mesmo tempo, transforma o
modo como agimos no mundo, participando do sistema através do consumo e
orientando nossas ações a partir do novo sistema de objetos que se dispõe.
Também é preciso reforçar que, apesar do olhar individual lançado sobre os dois
tipos de sistemas (de objetos e de ação), eles são indissociáveis na prática. Um está
a todo momento influenciando e acontecendo junto com o outro, num emaranhado
complexo que ainda une a intencionalidade e as técnicas do fazer. Para Santos,
essa grande família de elementos é determinante dos períodos da história humana:
Todo e qualquer período histórico se afirma com um elenco correspondente de técnicas que o caracterizam e com uma família correspondente de objetos. Ao longo do tempo, um novo sistema de objetos responde ao surgimento de cada novo sistema de técnicas. Em cada período, há, também, um novo arranjo de objetos. Em realidade, não há apenas novos objetos, novos padrões, mas igualmente, novas formas de ação. (SANTOS, 1997, p. 77).
Um outro desdobramento nítido do atual período, com a distribuição massiva
e global de diversos objetos, é o avanço daquilo que Santos (1997) chama de as
“unicidades”. São elas: da técnica, do tempo e do motor.
1.2.2 As unicidades como uma das bases da globalização
“No começo da história social do Planeta, havia tantos sistemas técnicos
quantos eram os lugares e os grupos humanos. ” (Santos, 1997, p. 151). Entender
as unicidades propostas por Santos são pontos fundamentais para uma leitura
ampla de seus pensamentos. No item do livro dedicado a este tema, o autor explica
que em tempos remotos, quando a humanidade se organizava em grupos isolados
pela distância geográfica, cada qual possuía seus próprios sistemas de técnicas, que
raramente sofriam influência externa ou eram intercambiados com outros grupos. As
30
barreiras do espaço e do tempo dificultavam qualquer intercâmbio de
conhecimentos, objetos, técnicas, ações, simbologias, informações em geral. Assim,
as estruturas sociais de cada grupo eram independentes e suas formas de fazer
eram originais, isto é, “os sistemas técnicos eram locais” (SANTOS, 1996, p. 152).
Durante longo período histórico, as comunidades humanas tinham um foco
centralizado em si mesmas, e isso inclui seu tempo e seu território. Os habitantes de
regiões áridas, por exemplo, tinham que se organizar de forma própria para
conseguir água, diferentemente de habitantes de uma região com abundância
hídrica. Essa localidade se aplica à caça (espécies disponíveis na região), coleta de
alimentos, habitação, agricultura e tantas outras práticas humanas que estavam
submetidas a tais condições. Não havia, pois, a necessidade (ou sequer o
conhecimento) de outras formas de ação, outras técnicas, outros objetos, senão
aqueles que ali existiam ou ali eram criados, naquele tempo e naquele local
específico.
Conforme os grupos humanos se tornavam mais populosos e as formas de
locomoção evoluíam, passaram a ocorrer mais contatos entre as comunidades e,
consequentemente, mais trocas culturais. Essas “trocas”, muitas vezes, foram
impostas durante processos de colonização. Os modos de vida dos colonizadores
em detrimento absoluto dos demais, o que obviamente gerou (e ainda gera)
confrontos e devastações culturais, étnicas e ambientais. Nesses casos, sistemas de
ação e de objetos (inteiros ou não) eram incorporados ao território conquistado,
mediante o uso de violência. A cultura local era desprezada, ou mesmo proibida, e
os forasteiros assumiam o controle sobre o novo espaço. No período das grandes
navegações, por exemplo, é sabido que os impérios impunham brutalmente seus
sistemas técnicos aos nativos das colônias, com total descaso ao que antes ali
havia, visando apenas os interesses do império.
Conforme Santos demonstra, um dos efeitos desse processo é a diminuição
do número de sistemas técnicos e de sistemas de objetos independentes e únicos,
pois comunidades que antes realizavam sua vida de forma própria, passaram a usar
sistemas alheios, trazidos e implantados por aqueles que possuíam maior domínio
sobre as técnicas de locomoção pelo espaço (no caso das grandes navegações) e
sobre outros poderosos instrumentos de dominação, dentre os quais se destaca a
pólvora e a arma de fogo. Essa diminuição tem impacto direto na pluralidade e na
diversidade cultural contida na superfície do planeta, causando uma redução
31
drástica e contínua, que ainda se observa nos tempos atuais e unificando as formas
humanas de fazer e de ser: instaura-se uma tendência a unicidade. Em verdade,
pode-se dizer que desde o início desse processo até hoje, ele apenas avançou.
Jamais retrocedeu.
Sendo constante e crescente, a busca pela unicidade das técnicas
acompanhou a expansão e declínio dos impérios, a conquista de colônias em novos
territórios e o aumento das relações diplomáticas, a revolução industrial, atingindo
seu ápice no século XX, conforme descreve o autor:
A morte dos impérios, que o fim da segunda guerra mundial vai precipitar, coincide com a emergência de uma técnica capaz de se universalizar. [...] A partir da segunda metade do século XX, a escolha de tal forma e com tal rapidez se afunila que, cedo, há apenas um modelo. Em outras palavras, não há mais escolha (SANTOS, 1997, p. 153)
Essa constatação elucidativa nos abre os olhos para a padronização que se
apresenta ao redor do mundo contemporâneo, com técnicas e objetos que possuem
essa capacidade de universalização, de sedução e de conexão. Para aqueles que já
tiveram a oportunidade de viajar para outros países, próximos ou distantes, fica
perceptível a semelhança dos meios e modos de vida, das ferramentas e objetos,
das marcas e estilos, dor moldes e formatos de organizações, das idiossincrasias
em geral. As nossas possibilidades de escolha são praticamente extintas e
cuidadosamente controladas, de sorte que, podemos escolher entre faces diferentes
da mesma moeda.
Não se desconsidera aqui a tendência de conservação de traços culturais
locais que vem se apresentando em diversos países. É claro que os povos
dominados também apresentaram diferentes formas de resistência e, na maioria das
vezes, as técnicas impostas se fundem com as previamente existentes, gerando
novas formas de vida. Mesmo assim, nos parece que os resgate de culturas locais
hoje tem fins muito mais turísticos e paisagísticos do que culturalmente plenos, isto
é, são práticas que não mais realizam a vida, mas que servem de atração para
mostrar como, em outro tempo, ela era ali realizada.
Dentro do movimento de padronização, Santos destaca três fatores que
considera como base do fenômeno da globalização e das transformações
contemporâneas do espaço geográfico: a unicidade da técnica, do tempo e do
motor.
32
Abordaremos primeiramente a unicidade técnica. Como já foi dito, antes da
globalização havia uma diversidade maior de técnicas para a realização das tarefas
diárias das comunidades, cada qual com seu respectivo conjunto de objetos. De
acordo com as ideias de Santos, as trocas desiguais de conhecimentos técnicos ao
longo da história foram paulatinamente diminuindo esse número diverso de técnicas.
Grupos humanos que antes viviam separados passaram a viver juntos, fundindo
novos sistemas culturais, combinando técnicas, criando novas e excluindo outras.
Seguindo por esse caminho, o processo se complexificou, ganhou escala e criou as
bases que sustentam o sistema atual: globalizado, capitalista, tecnológico, científico
e informacional, possuidor de sistemas e subsistemas técnicos universalistas, e
interligados por uma unicidade técnica.
Considerando uma universalidade técnica, Santos afirma que em áreas como
a antropologia, o termo não é recente. Aponta para alguns comportamentos
entendidos como “universais” que já eram observáveis logo no início da pré-história
humana. A arqueologia de fato revela que antigas civilizações compartilhavam de
práticas muito similares, sem nunca, ou pouquíssimas vezes terem se encontrado,
argumentando que “o sílex lascado era o mesmo sobre todo o planeta” (HUMBERT,
1991 apud SANTOS, 1997, p. 154). Utensílios feitos de pedra lascada e polida
pertencentes a grupos humanos praticamente isoladas entre si. Uma coincidência
que, naquela época, parece demonstrar uma tendência natural de criar tipos de
instrumentos específicos. Aqueles que, invariavelmente, facilitam a vida. Era o início
da atuação humana sobre o meio. Obviamente, cada objeto tinha suas
particularidades, já que eram artesanais, mas os seus fins eram similares.
No entanto, essa tendência à uma habilidade universal foi observada em
período embrionário da espécie, até mesmo em termos de comunicação. Não era
algo profundamente pensado, mas como que um acontecimento prático da vida,
uma ação natural de um ser com inteligência suficiente para manusear um
instrumento. Outras espécies também demonstram tal comportamento, mas o ponto
aqui é outro. Tudo isso é muito diferente da universalização das técnicas que vem
acontecendo na história humana recente. Santos explica o porquê em quatro partes:
Em primeiro lugar, não é uma tendência, mas uma realidade. Em segundo lugar, essa realidade vem fazer parte dos lugares praticamente num mesmo momento, sem defasagens notáveis. Em terceiro lugar, esse fenômeno geral dá lugar a ações que também têm um conteúdo universal. Daí a possibilidade de programas semelhantes para todos os quase todos os países,
33
como esses famosos planos de ajustamento do Banco Mundial e do FMI, com apoio das grandes potências industriais e financeiras. Em quarto e último lugar, esses objetos técnicos semelhantes e atuais existem numa situação de interdependência funcional, igualmente universal. No começo da história, alguns objetos se universalizam, mas se dão isoladamente. Hoje, o que é universal é todo um sistema de objetos. (IBID, p.154)
Não se considera mais como tendência, então. A abrangência é completa,
com poucas áreas ausentes. Não apenas os objetos, mas os conteúdos passam a
ser universais e, o ponto que damos mais destaque: a relação de interdependência
funcional. De fato, cada vez mais os objetos são feitos com capacidade de conexão
e isso para que eles recebam e transmitam dados. Essa capacidade pode até não
ser determinante para seu funcionamento isolado, mas sua aplicabilidade se reduz
muito caso ela não exista, a ponto de ser inviável ao consumidor. O sistema como
um todo passa a ser logicamente interdependente.
Essa relação de dependência se sustenta através de necessidades sociais
criadas para a manutenção da vida contemporânea, que encontram soluções nos
sistemas de objetos respectivamente criados. Mesmo que para boa parte da
sociedade, isso lhes pareça uma escolha entre outras, há que se identificar no atual
período técnico seu caráter invasor, que vem de cima para baixo e de poucos para
muitos. Isto é, poucas empresas são donas das tecnologias que são mundialmente
utilizadas para a realização de processos também globais:
O subsistema atual de técnicas hegemônicas é, por sua natureza, um sistema invasor. Isso explica a maior rapidez e generalidade de sua expansão, comparando com os anteriores subsistemas hegemônicos. Ele acaba impondo-se, diretamente ou indiretamente, pelo seu papel unificador dos processos globais.
(IBID, p. 155).
Além do surgimento das organizações que extrapolam as fronteiras das
nações, sejam elas privadas ou não, que também foi essencial para a criação do
atual período técnico hegemônico, outro ponto chave observado por Santos é o novo
combustível do sistema: a informação. Ela passa, agora, a ser o que corre livre pelas
artérias e veias das estruturas, as redes telemáticas, possibilitando a comunicação
entre diversos pontos remotos, simultaneamente comandados por inúmeros atores.
Elas carregam através dos mais diversos códigos os dados com os quais o novo
espaço se realiza. A digitalidade emerge repentinamente e traga par dentro de si boa
34
parte da vida social, de modo que se torna bem difícil permanecer fora dela. É sobre
essa universalização das técnicas que Santos aplica o conceito da unicidade:
O surgimento de numerosos Estados nacionais, a criação de organismos supranacionais, a entrada em cena da informação e do consumo como denominador comum universal, tudo isso trabalha para facilitar o triunfo das técnicas baseadas na informação e que iriam revolucionar doravante a economia e a política, antes de incluir a cultura no processo global das mudanças. (IBID, p. 153)
Quando Santos diz que as técnicas baseadas na informação revolucionam
primeiro a economia e a política antes da cultura, pode-se considerar uma crítica do
autor ao processo de globalização, recorrente em outras obras. Para ele, a
globalização possui práticas perversas para a humanidade, no sentido de atender
aos interesses econômicos antes dos sociais. Com isso, decisões lucrativas para
uns poucos são tomadas em detrimento do bem-estar de outros muitos, geralmente
“a partir de um conjunto técnico homogeneizado, sistêmico, preenchido e
comandado por relações mundializadas sistematicamente unificadas. ” (IBID, p.
156).
A velocidade das trocas de informação e a popularização do acesso aos
dispositivos não alteram apenas a natureza do espaço, mas também a percepção
geral que temos do tempo.
É nesse ponto que passamos a abordar a unicidade do tempo. O tempo é
algo que intriga o homem, por sua natureza misteriosa que não se vê, mas que
exerce suas influências sobre tudo que conhecemos. Nada está fora do tempo ou
livre de sua ação. O conceito aqui, contudo, deixa de lado seus aspectos físicos ou
filosóficos para tratar da utilização e da influência prática do tempo no dia a dia da
sociedade. Para se organizar e facilitar sua vida, o ser humano dividiu os ciclos
naturais observados em “fatias” determinadas de tempo, criando os horários. Assim,
os momentos contidos num dia deixaram de ser referenciados apenas pela posição
do sol, mas passam a ter uma atribuição direta:
Por muitos séculos a contagem das horas era realizada a partir da observação do movimento diário aparente do Sol no céu, principalmente pelo uso de relógios de Sol, porém isso levava ao problema da determinação da hora do meio-dia, que é associada à passagem do Sol pelo meridiano local, e, portanto, variava de uma cidade para outra. Os viajantes acertavam os relógios toda vez que chegavam a uma nova localidade (SOBREIA, 2012, p. 11)
35
O tempo, assim como a técnica, possuía forte ligação com o local geográfico,
pois a posição do sol é sempre relativa ao ângulo de que se observa. A prática de
contar as horas apenas com referência da posição do sol em relação ao território
funcionou por um período, mas não demorou precisar de aprimoramentos. Nesse
caso, o problema que trouxe a necessidade de uma organização internacional dos
horários é oriundo do avanço técnico dos meios de transporte. Com as linhas férreas
e a máquina de locomoção movida a vapor, conseguia-se viajar muito mais rápido
entre uma cidade e outra. Isso começou a gerar problemas de compatibilidade de
horários entre as estações e para os próprios passageiros:
A definição de um sistema mundial da Hora Legal, com um marco inicial para contagem das horas, tornou-se urgente em virtude da diminuição dos intervalos de tempo entre as viagens, que se tornaram mais rápidas, com o uso de ferrovias no século XIX. (SOBREIA, 2012, p. 12)
Um fato que, por si só, demonstra nitidamente as profundas alterações que
uma nova técnica traz (ou causa) para a sociedade na qual se instala. Nesse
cenário, nasceu o Fuso Horário, uma proposta de divisão imaginária do globo em 24
superfícies de tamanhos iguais. Dentro de cada uma delas, há um horário oficial
para todo aquele território. A ideia passou a valer, talvez como única saída viável
para o período histórico que se iniciava. Ela facilitou muito os problemas de
organização entre os países, contribuindo para o aumento das relações diplomáticas
e da economia internacionalizada. O impacto na vida das populações humanas não
foi pequeno, de modo que Sobreia afirma que “o tema dos Fusos Horários é um dos
mais importantes para se correlacionar a rotação da Terra e suas implicações nas
atividades cotidianas dos cidadãos”. (SOBREIA, 2012, p. 11).
É claro que o movimento da Terra em torno do Sol e de si mesma,
inevitavelmente, nos condiciona a uma determinada noção de tempo, pois percebe-
se que as coisas estão sempre mudando: o clima, a luz, o ambiente. Mas essa é
uma questão invariável e humanamente incontrolável. A percepção do tempo que
aqui tratamos altera-se empurrada pela evolução dos processos e pela criação de
novas tecnologias. A viagem que demorava dez horas a cavalo, cai para uma hora a
bordo de locomotiva à vapor sobre trilhos. Surge também o automóvel, rodovias
começam a cortar o continente.
O avião aparece oficialmente no início do século XX e a tecnologia motora e
aerodinâmica se desenvolve muito no período entre guerras, época em que surge a
36
aviação comercial e que diminui ainda mais a barreira do espaço e do tempo, em
termos de locomoção em longas distâncias. Assim a vida passa a ser organizada
com base nas novas possibilidades existentes e a nova percepção do tempo começa
a se demonstrar generalizada, possibilitando a convergência dos momentos:
O processo de convergência dos momentos corre paralelamente ao desenvolvimento das técnicas, sobretudo as técnicas da velocidade e da medida do tempo. A conquista da velocidade permite um deslocamento mais rápido das coisas, dos homens e das mensagens. (IBID, p. 159).
Grande parte dos processos que realizam a vida cotidiana se aceleram
levados pelo avanço das tecnologias. Um deles em especial inaugurou uma fase que
vem alterar diretamente, entre tantos outros derivados, a comunicação social. O
telégrafo permitiu, pela primeira vez na história da humanidade, a comunicação
instantânea entre pontos geograficamente distantes. Samuel Morse inova ao criar
um aparelho e que se comunica com outro ponto terminal através de um código
produzido para esse fim. Inicia-se aí a criação de redes que conectam pontos
através de cabos. O primeiro deles percorria 60 quilômetros entre a cidade de
Baltimore e a capital Washington, nos Estados Unidos e foi através dele que a
primeira mensagem oficial transmitida através de uma rede telemática aconteceu.
Depois disso, seguiram-se a invenção de outros meios de comunicação através de
redes, como o telefone, o rádio, a televisão e, finalmente, a internet, tópicos que
trataremos no próximo capítulo.
Atualmente, nos encontramos na fase do capitalismo tecnológico
informacional. A unicidade alcança o tempo e faz convergir os momentos. Não se
pode afirmar cegamente que o tempo, em si, se unifique, afinal, sua dimensão física
é complexa, mas o que ocorre é “possibilidade de conhecer instantaneamente
eventos longínquos” (SANTOS, 1997, p. 157). Ou seja, fatos que antes eram
restritos à localidade e ao tempo, ou que demoravam dias para serem relatados a
outras regiões, passam a ser instantaneamente e simultaneamente comunicados. A
convergência ocorre, pois, um momento que antes era enraizado no espaço e no
tempo em que se desencadeou, passa a ser acessíveis a todos que tenham
interesse.
A fronteira do espaço é rompida pela capacidade de transmissão de
informações em tempo real a distância. Exemplo que podemos desenvolver é a
transmissão para o mundo todo, ao vivo, em rede internacional de rádio, televisão e
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internet, de um evento que acontece em um ponto específico da superfície terrestre:
uma partida de futebol, ou um ataque terrorista. A fronteira do tempo é vencida pela
agilidade (praticamente instantânea) com que a informação consegue viajar, por sua
simultaneidade e multidirecionalidade:
O evento é uma manifestação corpórea do tempo histórico, algo como se a chamada flecha do tempo apontasse e pousasse num ponto dado da superfície da terra, povoando-o com um novo acontecer. Quando, no mesmo instante, outro ponto é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência dos momentos e sua unicidade se estabelece através das técnicas atuais de comunicação (SANTOS, 1997, p. 157).
Na prática, hoje pode-se ter fácil acesso a informações de fontes distantes,
diversas. Com isso, cria-se a impressão e a sensação de que o mundo vive e
compartilha os mesmos momentos, apenas divididos pelos interesses de quem
consome a informação, além de utilizar o mesmo sistema técnico e de objetos,
estandardizando a vida em seus mais variados aspectos e utilizando o consumo e a
informação, respectivamente, como pilar e combustível. A esse processo, Santos
atribui o nome de “convergência de momentos”, isto é, momentos que antes eram
únicos e diversos, agora convergem para um mesmo, específico.
Ainda no exemplo da transmissão internacional ao vivo de eventos via
televisão, é importante pensar que antes disso se tornar uma realidade, as pessoas
necessariamente realizavam outras atividades, momentos individuais, únicos,
localizados no tempo e no espaço. Depois que as transmissões se iniciaram e a
televisão se popularizou, transportando imagens e áudios, milhões de espectadores
passaram a convergir seus momentos, através de um aparato técnico, para o ponto
onde o evento transmitido se realiza. Todos que assistem estão compartilhando um
mesmo momento, com uma nova percepção de tempo:
Hoje, a simultaneidade percebida não é apenas a que era trazida, no início do século, pelo telégrafo, pelo cabo submarino ou pelo telefone [...]. Hoje, as mensagens e os dados chegam aos escritórios e lares diretamente, praticamente sem intermediários. Trata-se, além disso, da transmissão imediata de imagens, realizada com a televisão. (IBID, p. 159)
É um período completamente novo no que diz respeito a percepção cognitiva
do tempo, pois “a informação ganhou a possibilidade de fluir instantaneamente,
comunicando a todos os lugares, sem nenhuma defasagem” (IBID, p. 158). Com
38
isso, as empresas que produzem e transmitem as informações que alimentam o
sistema assumem papel estratégico na dinâmica da sociedade contemporânea. O
teor dos conteúdos veiculados pela mídia passam a exercer severa influência no
comportamento das massas. Essa alteração marca uma nova época histórica:
Durante milênios, a história do homem faz-se a partir de momentos divergentes, como uma soma de acontecimentos dispersos, disparatados, desconexos. Já a história do homem da nossa geração é aquela em que os momentos convergiram, o acontecer de cada lugar podendo ser imediatamente comunicado a qualquer outro, graças a esse domínio do tempo e do espaço à escala planetária. A instantaneidade da informação globalizada aproxima os lugares, torna possível uma tomada de conhecimento imediata de acontecimentos simultâneos e cria entre lugares e acontecimento uma relação unitária à escala do mundo. Hoje cada momento compreende, em todos os lugares, eventos que são interdependentes, incluídos em um mesmo sistema global de ralações. (IBID, p. 162)
Dessa maneira, passamos a organizar nossas relações, nossos fazeres
cotidiano, nossa vida em geral. A reformulação pela qual a sociedade tem passado
desconstrói a antiga noção de tempo que reinou absoluta e dá lugar a uma nova
dimensão, que é ubíqua, geral, global e, ao mesmo tempo, específica. Do modo
paralelo, de acordo com as ideias de Milton Santos, apresenta-se a unicidade do
Motor.
Por fim, passamos a dissertar sobre a unicidade do motor. A palavra “motor”
no contexto explorado por Santos não se refere a máquinas criadas pelo homem
para realizar trabalhos mecânicos, como motores à vapor, ou motores de
automóveis. O conceito aqui se refere aos modos como a sociedade globalizada
entende e valora os bens de consumo, as commodities, as informações, as
tecnologias. Seria o “motor” que gira as engrenagens da sociedade contemporânea,
que também passam a ser globais e não mais localizados no tempo e no espaço. Ou
seja, é outro tipo de unicidade percebida em nossa sociedade, que compartilha e
negocia globalmente valores sociais e econômicos. O conceito de mais-valia passa a
ser globalizado e utilizado pela grande maioria das nações. Santos diz que “agora,
tudo se mundializa: a produção, o produto, o dinheiro, o crédito, a dívida, o consumo,
a política e a cultura” (IBID, p. 162)
Em termos de produção, empresas multinacionais passam a levar seus
métodos, seus prazos e sua cultura para além das fronteiras de origem, o que obriga
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a nova localidade a se adaptar em função dos novos negócios a serem
desenvolvidos.
O produto acompanha a mesma lógica, devendo ser pensado para atender as
necessidades não apenas do local, mas de todo o planeta. Seu valor se aplica
internacionalmente e varia pouco, conforme os impostos de cada país.
O dinheiro talvez seja a maior expressão da unicidade do motor, passando a
ser balizado da mesma forma em todo o mundo e variando de valor conforme
especulações internacionais, simultâneas, instantâneas e conectadas. Fatos locais
derrubam ou elevam moedas em todo o mundo. Sua expressão se dá através de
créditos e dívidas, mas o objetivo universal do sistema, invariavelmente, é o lucro.
O consumo, já citado, é um denominador comum da sociedade globalizada. É
através dele que se considera uma nação saudável economicamente ou não.
Conscientemente ou não, é ele o grande objetivo do cidadão contemporâneo. O que
se busca é ter mais dinheiro para consumir mais e mais.
A política não fica fora do processo. Com a emergência de organização
internacionais, uma nação passa a ter influência política em outras, através dessas
organizações. Assim, a “comunidade internacional” está sempre sentinela para os
acontecimentos políticos de cada nação, pronta para intervir caso julgue necessário.
É óbvio (e notório) que interferências internacionais políticas geram conflitos e,
algumas vezes, confrontos, pois há divergências culturais não observadas
integralmente.
E a cultura, que recebe também uma forma internacional construída pela
soma dos diversos fatores internacionais que hoje se aplicam. Há uma nova forma
de compreender o mundo, que é universal, causada pela facilitação do intercâmbio
de pessoas, dados, informações, produtos, moedas, técnicas e tecnologias.
Todas os fenômenos citados são agora possíveis pois há modos viáveis e
surpreendentes de exercer o controle. É sabido que existem atores que estão em
posição privilegiada de controle, possuidores dos aparatos tecnológicos que
sustentam o processo de globalização e com grande capacidade de influência sobre
os rumos do processo.
De modo geral, o que se tem visto é a continuidade em uma direção que o
autor caracteriza como perversa em seu livro Por uma outra globalização, por
incentivar a competição larga escala, que gera excluídos. O poder econômico como
tônica das decisões:
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Tudo que serve à produção globalizada também serve à competitividade entre as empresas: processos técnicos, informacionais e organizativos, normas e desregulações, lugares. Tudo o que contribui para construir o processo de globalização, como ele atualmente se dá, também contribui para que a relação entre as empresas - e, por extensão, os países, as sociedades, os homens - esteja fundado numa guerra sem quartel. (IBID, p. 169)
É a guerra por espaço no mercado que ganha nova escala. Para Santos, a
mais-valia possui importante papel na organização da sociedade atual. Busca-se
aumentar seu valor relativo, acelerando a produtividade e reduzindo custos, não com
fins ecológicos, mas financeiros. Busca-se o aumento de demandas, para o aumento
de consumo. Busca-se mais a vantagem competitiva, e menos cooperação. O autor
arremata:
Como esta é a lei da produção e da circulação das firmas globais, a cada momento a maior mais-valia está buscando ultrapassar a si mesma. Suprema ironia: essa mais-valia tão fugaz não pode ser medida; e, ao mesmo tempo, se torna a principal alavanca, senão o motor unitário, das ações mais características da economia globalizada. (IBID, p. 169)
Essa característica vem a ser, juntamente com outras, uma das faces do
espaço social que se desenvolveu na superfície do planeta na última metade de
século que vivemos. Um meio que une as técnicas de produção, os objetos de alta
tecnologia, o conhecimento científico, e usa a informação como combustível.
1.2.3 O período técnico atual
Hoje é muito difícil conceber, mesmo em pensamento, um mundo – uma
realidade – diferente da que se apresenta, no que se refere aos modos de vida, dada
a profunda imersão no sistema que nos é imposta. É um jogo complexo com regras
criadas por poucos, sistematicamente protegidas e que nos oferece alternativas
limitadas de escolha, negligencia a criatividade e oprime o “anormal”, isto é, o
diverso.
O homem, assim como as demais espécies que habitam o Planeta, sempre
tiveram a disposição os recursos oferecidos pela natureza em seu meio natural.
Conforme já dito, tal disponibilidade permite escolhas, orientadas pela necessidade e
intencionalidade, geralmente buscando facilitar a vida. A humanidade retira do
ambiente natural coisas que lhe são úteis, transformando-as em objetos e
41
desenvolvendo técnicas de uso. Ela normatiza e organiza o meio natural de uma
nova maneira, com formas de cultivo, caça, domesticação e criação de animais,
além de modificar as organizações sociais e, consequentemente, o espaço
geográfico:
A evolução que marca as etapas do processo de trabalho e das relações sociais marca, também, as mudanças verificadas no espaço geográfico, tanto morfologicamente, quanto do ponto de vista das funções e dos processos. É assim que as épocas se distinguem umas das outras. (SANTOS, 1997, p. 77)
Durante milênios, a tecnologia humana não foi muito além de objetos rústicos
e mecânicos. Conforme passou a dominar e entender melhor as leis físicas, as
reações químicas, a biologia, a matemática e outras ciências fundamentais, pode
sofisticar seus aparatos. O nível de domínio das técnicas chave de um período,
alinhada aos aparatos materiais de um tempo e espaço específico, possibilitam a
definição de épocas, conforme indica o autor.
Com revolução industrial, o advento do comércio e dos sistemas técnicos
mais complexos, acompanhados por sistemas de objetos igualmente sofisticados,
conhecemos um período que torna a questão técnica uma peça central no debate da
sociedade, um período e um meio técnico.
Sobre o meio técnico, Santos explica que “a razão do comércio, e não a razão
da natureza, é que preside à sua instalação. Em outras palavras, sua presença
torna-se crescentemente indiferente às condições preexistentes” (1997, p. 189).
Por não considerar as razões naturais, nesse período se inicia uma
degradação mais aguda da natureza, tanto pela extração de matérias primas, quanto
pelo surgimento dos poluentes residuais de indústrias, do próprio comércio e do
novo modo de vida do homem, cada vez mais urbano.
Mesmo assim, ainda os fluxos de informação eram restritos naquela época,
pois “os sistemas técnicos vigentes eram geograficamente circunscritos, de modo
que tanto seus efeitos estavam longe de ser generalizados, como a visão desses
efeitos era, igualmente, limitada” (SANTOS, 1997, p. 189).
Enfim, depois da segunda guerra mundial, acontece o advento daquilo que o
autor chama de meio “técnico-científico-informacional”. Uma união que tem a
informação como sua última aliada e “que se distingue dos anteriores pelo fato da
profunda interação da ciência e da técnica” (SANTOS, 1997, p. 190).
42
A ciência, outrora residente das universidades e laboratórios, uma atividade
mais intelectual e acadêmica, passa a interagir mais com às técnicas de produção,
com a indústria e o comércio, adotando as regras do mercado.
Esse movimento não é instantâneo e nem total, mas observa-se a partir daí o
aumento das tecnologias embutidas nos objetos e a informação como parte
fundamental de suas concepções, que não apenas os compõem, mas também flui
entre eles, já que muito são conectados por redes telemáticas. Sobre isso, o autor
esclarece que:
A informação não apenas está presente nas coisas, nos objetos técnicos, que formam o espaço, como ela é necessária à ação realizada sobre essas coisas. A informação é o vetor fundamental do processo social e os territórios são, desse modo, equipados
para facilitar a sua circulação (SANTOS, 1997, p. 191).
A criação desse novo meio modifica o espaço. A preservação da natureza fica
negligenciada e o planeta passa a sofrer ainda mais com a degradação ambiental.
Há o aumento da extração de recursos, levado pelo aumento da população mundial,
e das paisagens artificiais, urbanas ou industriais, que sobrepõem as paisagens
naturais, fenômeno que Santos chama de “cientificização e tecnicização da
paisagem” (1997, p. 191).
Equipar os espaços significa torná-los capazes de abrigar pessoas, receber e
transmitir informações e os fluxos materiais e imateriais. Isto é, inseri-los na lógica
hegemônica do mercado globalizado, garantindo assim a realização dos processos
do período. Para que isso seja possível, há que se padronizar em nível global os
sistemas de objetos, sistemas de ações e sistemas técnicos.
Uma outra grande alteração que se constata neste período, é a interligação
total dos espaços e das localidades por redes. A redes dispostas de modo
geograficamente estratégico, permitem o fluxo das matérias, dos volumes físicos: as
rotas de cargas marítimas, as rodovias, estradas, ferrovias, o tráfego aéreo. Mesmo
as ruas e avenidas, ou o metrô de uma cidade podem ser assim consideradas. São
linhas formando uma rede entre diversos pontos.
E as mais recentes redes telemáticas, pelas quais circulam informações,
dados, energia elétrica, que possibilitam a comunicação através de diferentes
tecnologias: a telefonia, o rádio, a televisão, a internet. Tudo viaja pelos cabos
submarinos intercontinentais, pelas redes de fibra óptica, pelas ondas de satélites e
antenas.
43
O funcionamento e a saúde do atual período dependem profundamente das
condições da fluidez que as redes proporcionam. Com isso, os mercados, além de
globais, são interdependentes. A distribuição geográfica das redes é peça-chave do
suporte técnico e tecnológico do processo de globalização e sua importância é
imensurável para a manutenção da vida cotidiana que hoje se leva.
1.2.4 As redes e o espaço geográfico
O conceito de rede é amplo e, em partes, abstrato. Seria aceitável dizer que
uma rede é a interligação de vários pontos por meio de algum tipo de uma linha
conectora, seja ela física ou abstrata. Santos diz que elas podem ser enquadradas
em duas grandes vertentes: “a que apenas considera o seu aspecto, sua realidade
material, e uma outra, onde é também levado em conta o dado social” (1997, p.
209). Um dicionário convencional dirá, que rede pode ser uma malha de fios, um
entrelaçamento têxtil regular, ou uma grade tecida por materiais que a possibilitem.
Para nosso trabalho, a conceituação de George (1970) em seu Dicionário da
Geografia é mais pertinente:
a) Polarização de pontos de atração e difusão, que é o caso das redes urbanas; b) projeção abstrata, que é o caso dos meridianos e paralelos na cartografia do globo; c) projeção concreta de linhas de relações e ligações, que é o caso das redes hidrográficas, das redes técnicas territoriais e, também das redes de telecomunicações hertzianas, apesar da ausência de linhas e com uma estrutura física limitada a nós. (GEORGE, 1970, p. 4 apud SANTOS, 1996, p. 209).
A limitação das estruturas físicas pontuada por P. George, que faz referência
a dificuldade de acesso às redes que algumas regiões enfrentavam da década
naquele tempo, foi muito reduzida (ou praticamente anulada) desde então, já que
não existem, hoje, centros urbanos fora da rede elétrica, da telefonia ou mesmo da
internet.
Nos períodos que antecederam os impérios e a industrialização, algumas
relações já se organizavam como redes, mas de forma isolada, localizada e numa
escala era imensamente menor.
As relações cotidianas eram restritas e minguadas, coerentes com os
mercados, comércios e estruturas organizacionais daqueles períodos. Como
escreveu Santos, “o tempo era vivido como um tempo lento” (1997, p.211). A fase
44
dos impérios coloniais expande essa escala, mas não muito, adicionando novos
pontos com redes marítimas de navegação, criando e fortalecendo o mercado entre
nações e as relações diplomáticas, o tráfego de bens e de informações.
O evoluir das tecnologias, dos objetos e das técnicas sempre refletiu no
aumento do número de redes, bem como na expansão e modernização das já
existentes, ao passo que, a atualidade, no período técnico-científico-informacional,
elas são ubíquas e totalmente indispensáveis para a sustentação dos sistemas
técnicos, sociais, políticos e econômicos vigentes.
Falhas ou problemas nessas redes podem significar uma crise instantânea e
aguda no mercado de valores internacionais, com repercussões graves e rápidas em
todo o mundo. Podem significar também riscos sérios a integridade e segurança das
nações, pois existem informações sigilosas e estratégicas circulando o tempo todo,
considerando que “os suportes das redes encontram-se, agora, parcialmente no
território, nas forças naturais dominadas pelo homem (o espectro eletromagnético) e
parcialmente nas forças recentemente elaboradas pela inteligência e contidas nos
objetos técnicos” (SANTOS, 1997, p. 210), isto é, nos computadores e servidores
espalhados pelo globo, passíveis de invasões e fraudes.
E as redes hoje não alcançam apenas o mercado, a indústria, o comércio, a
mídia ou a política. Elas se impõem fortemente ao cotidiano das pessoas, junto com
seus objetos de suporte tecnológico. A internet (que passou a ser sinônimo de rede
para o senso comum) se tornou, em pouco tempo, um fortíssimo meio de
comunicação interpessoal e midiático, assumindo importância central em diversas
profissões, criando novas atividades e encerrando outras, por torná-las inviáveis e
antiquadas.
Temos exemplos naqueles que desenvolvem atividades intelectuais
(professores, advogados, escritores, estudante, contadores, entre outros), que
dificilmente redigem um trabalho manuscrito e o enviam pelo correio tradicional. Os
editores de texto digitais em computadores e o E-mail simplesmente engoliram tais
atividades, devido à sua praticidade. No meio artístico isso também aconteceu:
músicos, produtores, designers, artistas plásticos, entre outros, transferiram boa
parte de seus afazeres e processos para o computador e, também, para a internet.
Das profissões surgidas, o leque é grande: programadores, técnicos em informática,
técnicos em redes, engenheiros da computação, desenvolvedores, analistas,
profissionais da tecnologia da informação.
45
Há ainda aplicações online alheias ao profissionalismo. O uso doméstico,
completamente repleto de valor social, que continua em constante crescimento. Isto
é, as relações sociais passam a acontecer, também, através de redes sociais digitais
em escala mundial, ampla e profunda.
Podemos dizer que o indivíduo contemporâneo sente-se pressionado – ou
fortemente induzido - a participar desse novo universo digital, sob pena de duras
consequências caso não o faça. Parte considerável do cotidiano acontece em tais
redes, fazendo-nos identificá-las ou entendê-las como um espaço. O ciberespaço.
Isso não só altera o espaço real, como propõe uma nova discussão. O tema das
redes será abordado também no próximo capítulo, com um foco comunicacional.
1.2.5 O cotidiano e sua relação com espaço
Importantes ideias debatidas por Santos encontram-se neste item, dando
corpo ao que o autor chama de dimensão espacial do cotidiano. Depois de diversos
tratamentos teóricos a assuntos particulares, o esforço se direciona a descrever o
modo como a vida cotidiana dos indivíduos se desenrola, atingidas pelos inúmeros
vetores que a influenciam, em percepções geográficas profundas e complexas, pelo
menos à primeira vista. Sobre o cotidiano, Milton diz que “esta categoria da
existência se presta a um tratamento geográfico do mundo vivido que leve em conta
as variáveis [...]: os objetos, as ações, a técnica, o tempo” (SANTOS, 1996, p. 252).
O cotidiano, objetivamente, é composto por uma série de ações que, ao
serem repetidas dia após dia, tornam-se uma rotina na vida das pessoas e
constroem a realidade de todos. Geralmente, o cotidiano do cidadão hodierno é
preenchido por ações comuns e que podem ser divididas em grandes grupos: o
trabalho/emprego, os estudos, o lazer, o ócio.
O frenesi estabelecido, principalmente nas metrópoles, que abrigam o maior
número de pessoas, impede muitas vezes o indivíduo de refletir sobre sua condição
cotidiana, ou de questionar a razão das coisas serem como são, e não de outro jeito.
Com isso, as relações e articulações sociais seguem acontecendo de acordo com os
anseios de cada um e de todos, mesmo que a comunicação em seu cerne, isto é, o
ato de tornar algo comum, siga negligenciada.
Neste ponto, assumindo a importância da comunicação para a construção da
realidade e dos espaços, o autor faz suas considerações sobre o tema: “Esse
46
processo [a comunicação], no qual entram em jogo diversas interpretações do
existente, isto é, das situações objetivas, resulta de uma verdadeira negociação
social, de que participam preocupações pragmáticas e valores simbólicos”
(SANTOS, 1997, p. 253).
De fato, estamos mais servidos de informação, pois o sistema de objetos do
qual dispomos e que utilizamos possui esse compromisso intencional de nos
entregar a informação e solicitar uma resposta. Contudo, isso não significa
necessariamente de que as populações em geral estejam se comunicando melhor,
tornando-se mais esclarecidas, mais lúcidas e críticas. Não por incapacidade, mas
pela extrema complexidade que abarca a dimensão do real e do essencial.
Santos coloca que “a localidade se opõe à globalidade, mas também se
confunde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho” (1997, p. 258). O cotidiano
do período técnico-científico-informacional, projetado e projetor do espaço,
representa o entrelaçamento sistêmico dos objetos técnicos, do sistema de ações,
do sistema técnico unificado, a onipresença das redes e do tempo acelerado.
Contudo, há ainda lugar para aquilo que não está programado, que é surpreendente
e é inesperado, já que o homem não é escravo de sua natureza e pode, sempre,
escolher caminhos diferentes, seja por necessidade ou por criatividade:
O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e criatividade. (SANTOS, 1996, p. 258).
Mesmo assim, as normas estruturantes da sociedade vêm de cima, e com a
globalização, elas deixam de ter um território e passam a ser globais, pois todo o
sistema deve servir aos interesses hegemônicos do centro. O espaço local fica em
desvantagem e suas lógicas praticamente se tornam inviáveis. Talvez seja essa
umas das razões paras os grandes êxodos rurais, o aumento das cidades em busca
de uma vida diferente, mais alinhada com as regras contemporâneas.
O novo status assumido pela comunicação e pela informação traz consigo um
debate sobre as noções e dimensões espaciais desse período, como ponto
estratégico de suas causas. Não fosse a capacidade de comunicação horizontal
oferecida pela internet, multidirecional e descentralizada, talvez nossa percepção do
espaço e do tempo não tivesse se alterado tanto:
47
Com o papel que a informação e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o cotidiano de todas as pessoas assim se enriquece de novas dimensões. Entre elas, ganha relevo a sua dimensão espacial, ao mesmo tempo em que esse cotidiano enriquecido se impõe como uma espécie de quinta dimensão do espaço banal, o espaço dos geógrafos. (SANTOS, 1997, p. 257).
É dessa forma que seguimos agora um caminho de duas lógicas. Uma mais
antiga, a local, que nos influencia segundo a realidade localizada no tempo e no
território. A outra, recente, é a lógica global, que nos atinge através dos meios de
comunicação e passa a exercer cada vez mais influência sobre nosso entendimento
da realidade.
Na conclusão do livro A Natureza do Espaço, Santos faz um comparativo
entre a ordem que impera no sistema a nível global e como isso é percebido ou
sentido pelas localidades territoriais. Em sua primeira afirmação, o autor diz que o
anseio da ordem global é impor uma racionalidade padrão, mas que as localidades,
mesmo adotando parte dessa imposição, reagem de acordo com suas próprias
racionalidades ao estímulo (SANTOS, 1997).
Isso, de fato, pode ser percebido quando vemos que, mesmo com a unicidade
técnica, as localidades, em diferentes níveis, mantém parte de seus costumes,
expressam parte de sua cultura e de suas particularidades. Em cada uma das
diferentes localidades, a junção da ordem global com a ordem local cria um lugar
diferente, um espaço único.
Santos também conclui que “a razão universal é organizacional, a razão local
é orgânica. No primeiro caso, prima a informação que, aliás, é sinônimo de
organização. No segundo caso, prima a comunicação” (SANTOS, 1997, p. 272).
Esta citação é particularmente interessante por fazer essa oposição entre o global
que informa e o local que comunica. De fato, ao pensarmos em grande escala, o que
se pode fazer é informar, já que o sentido é único e não se considera as condições
do interlocutor. Já a nível local, a comunicação se dá, pois, os interlocutores
compartilham o tempo e o território, há uma troca e uma transformação dos atores.
Outra grande disparidade está nas escalas utilizadas entre essas ordens,
como Santos coloca, na ordem global o cotidiano é submisso, está num nível abaixo,
de modo que deve encontrar meios de se adaptar. Já a ordem local se organiza no
próprio cotidiano, nas relações ordinárias do dia a dia, no espírito de comunidade,
48
proximidade, confiança e vizinhança. Ela entende e conserva seu território, enquanto
o que é global sequer possui um território.
Por fim, mesmo construindo a impressão de rivalidade e considerando
abertamente a oposição, Santos diz que “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de
uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente” (SANTOS, 1997,
p. 273). Isso reforça a percepção de que, verdadeiramente, a ordem global não é
capaz de cobrir totalmente a ordem local, de substituí-la completamente. O que
acontece é a coexistência dialética, solidária e contraditória, que cria o espaço
geográfico.
49
Capítulo II – COMUNICAÇÃO SOCIAL CONTEMPORÂNEA:
REDES E SISTEMAS DIGITAIS
2.1 Introdução do capítulo
A vida do homem comum mudou muito nas últimas décadas. Boa parte das
inserções tecnológicas acontecidas em nossa sociedade afetaram fortemente, entre
milhares de coisas, campo da comunicação social. A ampliação da internet, do
acesso à banda e aos dispositivos computacionais conectados (smartphones,
tabletes, computadores, entre outros), transferiu significantes processos da vida
cotidiana para o meio digital, que se estabelece a partir do momento em que há
inúmeros pontos terminais se conectando à uma mesma rede, material ou imaterial,
e comunicando-se entre si, com estabilidade e consistência e interessante liberdade.
Cria-se, assim, um denso tecido comunicacional pelo qual a informação, o
combustível do nosso período, flui rapidamente e multidirecionalmente.
A existência digital, tão presente e tão significativa na atualidade, nos oferece
uma nova interpretação para palavra espaço, como uma outra dimensão. A
discussão em torno do conceito é grande, na busca de expressar fielmente a
percepção que se tem, como se houvesse um novo lugar. Ao longo do texto, para
referirmo-nos à essa noção de ambiência digital, utilizaremos o termo “ciberespaço”
segundo visão de Lèvy:
O termo ciberespaço especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (LÈVY, 1999, p. 17).
Da mesma forma, utilizaremos o ocasionalmente o termo “cibercultura”,
segundo a visão desse mesmo autor, e trataremos deles com mais atenção adiante.
Os termos fazem referência a esse novo ambiente que permite a comunicação
interpessoal, horizontal e de massa, ao mesmo tempo. Também é um tipo de
50
ambiente que estamos utilizando para guardar dados e arquivos digitais, capazes de
arquivar enormes quantidades de informações em pouquíssimo espaço físico.
O ciberespaço traz consigo uma maneira de pensar e entender o mundo que
já reconhece as novas possibilidades. Como que uma cultura conectada e habituada
com um cotidiano repleto de objetos eletrônicos digitais. Uma cibercultura. Isso se
aplica a forma de mandar mensagens, de se corresponder, se relacionar, estudar,
aprender, ensinar, e tantos outros verbos que acontecem - ou podem acontecer - no
espaço digitalizado. Basta perceber com mínima atenção como passamos a realizar
ações cotidianas através do computador.
Criamos em muito pouco tempo uma dependência extrema de um sistema
tecnológico, de modo que, em muito ambientes de trabalho, se porventura o sinal de
internet falha durante um período do dia, os funcionários são simplesmente
dispensados, pois não há o que se fazer fora da rede. É uma fase de comunicação
social digital e horizontal, que segmenta e organiza muito melhor os fluxos de
informação e favorece valores democráticos, quando comparada à fase anterior, na
qual os grandes conglomerados de informação detinham o monopólio sobre o
discurso. Naquela época, havia bem menos espaço para individualidades,
localidades, especificidades, principalmente na mídia de massa. O processo de
evolução tecnológica que se deu nas duas ou três últimas décadas foi tão rápido,
que por vezes nos sentimos “teletransportados” para um novo mundo com
tecnologias de alto nível e seguindo um caminho que se mostra ainda mais
promissor. É a incrível percepção de que estamos passando por um período que é
novo, com bruscas mudanças nos modos de vida, mas já com um pé no próximo,
sem mal termos nos acostumado com esse.
2.2 Tecnologia e Comunicação na Contemporaneidade
Há cerca de 20 ou 30 anos, para uma pessoa comum conseguir transmitir
uma informação que chegasse a um grupo numeroso de pessoas, dispunha-se de
algumas opções: um megafone ou um sistema de áudio, se pensarmos em pessoas
reunidas fisicamente, com as quais se pudesse falar; o texto escrito, impresso em
papel, copiado e espalhado fisicamente, em seus diversos formatos: livros, revistas,
artigos, estudos, pesquisas, relatórios, arquivos, tudo dependendo de uma existência
51
material e um deslocamento físico. Os filmes em VHS, fitas sonoras e outros
aparatos correlatos também eram opção, mas com um nível de restrição
relativamente alto.
Para alguém que trabalhasse em empresas de telecomunicações ou de
imprensa, a tarefa poderia ser um pouco mais fácil. Um jornalista, um fotógrafo, um
redator, um apresentador conseguiria, com mais facilidade, atingir grupos maiores
de pessoas com suas produções, mas mesmo assim, algo nem sempre praticável. A
comunicação de massa passava por sua longa fase unidirecional e homogênea,
controlada por poucos e direcionada para muitos.
Para o contato interpessoal, entre duas pessoas apenas, já haviam os
aparelhos que persistem até hoje ou não. Basicamente, o telefone, o fax, a carta, o
telegrama, que consideram em sua lógica de aplicação a informação em duas vias:
ida e volta da mensagem entre os interlocutores. Ou seja, proporcionam sempre ao
outro o direito de resposta e estabelecem, assim, o processo de comunicar. Havia,
claro, a forma mais comum e natural da comunicação social: a pessoal, face a face,
mediada apenas pelas mensagens sonoras das palavras, pelos gestos, pelas
expressões e cognições naturalmente humanas. Assim, dentro das possibilidades
existentes, as pessoas realizavam suas vidas. Os modos de organização, de
entendimento, de percepção, de conexão e comunicação interpessoal, praticamente
tudo era analógico. Bem diferente do cenário atual, que se construiu em muito pouco
tempo e revolucionou a vida de toda a humanidade.
E qual é o cenário? A resposta, nem de longe, é simples. Castells (1996)
explica que, segundo o paleontólogo Stephen J. Goul, é uma característica da
história da evolução humana passar por longos períodos de estabilidade social, com
técnicas e modos de vida variando minimamente. Tais período são divididos por
intervalos relativamente rápidos de tempo nos quais importantes eventos de
mudança acontecem, ajudando a moldar a próxima época estável. Considerando tal
dinâmica, Castells percebe que:
No final do século XX vivemos um desse raros intervalos na história. Um intervalo cuja característica é a transformação da nossa “cultura material” pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da
informação. (CASTELLS, 1996, 67).
52
Diversas outras revoluções na cultura material, técnica e social já foram
observadas e vividas durante a história, ao passo em que a ciência, a criatividade e
a engenhosidade humana aumentam e se estabelecem. Para cada uma delas, há
um fio condutor, um elemento-chave robusto que principia reações em cadeia. Se
pensarmos na energia elétrica, por exemplo, quando surgiu, mostrou-se mais
interessante para determinadas aplicações como a iluminação artificial de
ambientes, produção de calor ou mesmo na realização de trabalhos mecânicos,
superando fontes energéticas mais antigas como o vapor ou o próprio fogo.
No caso do atual período “técnico-científico-informacional” conforme
considerações de Santos (1997), o emergir da tecnologia da informação pode ser
considerada o elemento-chave, pois é em torno dele que a grande maioria dos
desdobramentos tem acontecido. As possibilidades de comunicação mediada por
computadores e dispositivos gera alteração nas mais diversas áreas da atuação
humana. O fazer e o existir do homem passam a ser, também, digitais. Isso se
reflete não apenas em sua vida individual, mas nas organizações e instituições que o
homem instaura:
Uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado. Economias por todo o mundo passaram a manter interdependência global, apresentando uma nova forma de relação entre a economia, o Estado e a sociedade em um sistema de geometria variável. (CASTELLS, 1996, p. 39)
A sociedade no último século passou por um profundo processo de
complexificação dos modos de vida. Muito disso ocorreu impulsionado pelo aumento
populacional no Planeta, que trouxe demandas de abastecimento e de serviços até
então inexistentes. Paralelamente, as duas grandes guerras, mas sobretudo a
segunda, motivou uma intensa busca por mecanismos computacionais e novos
modos de comunicação, que representavam imensa vantagem estratégica sobre os
inimigos. Os avanços foram notáveis. Os embriões tecnológicos de muitos dos
dispositivos e das redes de objetos que hoje temos à disposição podem ser
encontrados no período entre guerras e na imediata sequência da segunda guerra.
Para Castells (1996) a história das tecnologias da informação possui três
principais pontos de apoio que sustentaram as principais mudanças que culminaram
no atual período: a criação da microeletrônica, dos computadores e das redes de
53
telecomunicação. A soma de, principalmente, esses elementos, resulta no modelo
de sociedade que aí está posto, surpreendente e intrigante:
As tecnologias digitais e a comunicação mediada por computadores têm tido, certamente, um papel de protagonista neste novo mundo que se convulsiona e desenvolve em uma espécie de revolução digital que nos coloca diante de objetivos muito complexos [...] (GONZALEZ, 2012, p. 52)
Lançando olhar mais específico, trataremos de cada um dos citados pontos
que nos parecem ser os principais sustentadores do período técnico-científico-
informacional, já almejando uma proximidade entre as ideias de Santos (1997) e as
expressões que se referem aos fenômenos comunicacionais contemporâneos.
Antes disso, contudo, acreditamos ser importante entender um pouco sobre a
parte técnica dos aparelhos que dão sustentação as redes e que utilizamos para nos
conectarmos a elas: os dispositivos computacionais. A evolução das tecnologias
eletrônicas diminuiu gradativamente o tamanho dos aparelhos, fazendo surgia a
microeletrônica. Nesse campo, o destaque vai para aquele que, até hoje, é o menor
componente de um computador: o transistor. Relativamente simples se observado
isoladamente, possui uma função igualmente simples: ele interrompe ou amplifica
uma corrente elétrica. Contudo, quando combinados em circuitos integrados, em
grandes números, são capazes de computar praticamente qualquer coisa. Por isso,
podemos atribuir à sua invenção, em 1947, feita pela empresa Bell Laboratories em
Nova Jersey (CASTELLS, 1997), o ponto inicial de uma severa alteração nos
sistemas eletrônicos. A capacidade de computar dados utilizando um código binário
tornou possível a digitalização e o processamento automatizado de informações.
Hoje, dificilmente se encontra um dispositivo computacional que não
contenha, ao menos, algumas centenas de milhares de transistores. Seu baixíssimo
custo é outro motivo para sua enorme aplicação, de modo que grande parte dos
produtos considerados eletroeletrônicos atuais tiveram seus circuitos
eletromecânicos substituídos por microprocessadores computacionais contendo
milhões de transistores, com programação específica para a realização de
determinadas funções. Não é difícil encontrar exemplos: um aparelho antigo de ar
condicionado, que funcionava com o acionamento “físico” de botões, isto é, girar ou
pressionar alguns deles, hoje oferece uma interação digitalizada. A temperatura não
é mais ajustada por um potenciômetro mecânico, mas por um comando digital
codificado. Geralmente, ainda pode ser programado para ligar, desligar, mudar de
54
função, e tantas outras aplicações que variam entre modelos. Agora pense em tudo
mais ao redor que se transformou e funciona seguindo esta lógica.
McLuhan (1964) relatou que as áreas sociais que recebem a inserção de uma
nova tecnologia, à princípio não sentem o efeito, ficam como que anestesiadas. O
reconhecimento da mudança acontece devagar. No caso da eletrônica não foi
diferente: “apesar da importância do transistor, nos primeiros instantes de seu
desenvolvimento não se percebeu o impacto que o novo dispositivo causaria na
indústria eletrônica”. Claro que, apenas os transistores desorganizados não
explicitavam todas as suas possibilidades de aplicação. Foi somente na década de
1970 que a empresa Intel Corporation desenvolveu e nomeou o revolucionário
microprocessador: um conjunto de transistores dispostos de forma lógica, criando
uma unidade de processamento em um chip.
Mehl afirma que “o que torna o microprocessador interessante é justamente
sua capacidade de ser programável”. Castells afirma que nesse ponto “começava a
disputa pela capacidade de integração cada vez maior dos circuitos contidos em
apenas um chip”. (1996, p.77). Com circuitos mais poderosos cada vez menores, foi
possível aumentar a quantidade de transístores dentro de um único chip, e esse
crescimento é expressivo. Castells conta que, “enquanto que em 1971 cabiam 2.300
transístores em um chip, do tamanho da cabeça de uma tachinha, em 1993 cabiam
35 milhões” (1996, p. 78). Até então, os computadores tinham tamanhos
monumentais e capacidade de processamento irrisórias.
As variadas aplicações e a evolução dos microprocessadores, tornaram
possível o desenvolvimento da computação pessoal que hoje conhecemos, sendo
esta outra coluna de sustentação da atual revolução nas tecnologias da informação.
Os computadores com microprocessadores rapidamente exerceram fascínio sobre a
sociedade, devido as inúmeras possibilidades de aplicação a que se prestam.
Mesmo suas primeiras versões, que não ofereciam métodos tão amigáveis de
interação com o homem, não foram rejeitadas, isto é, havia demanda comercial
interessada em adquirir as novas máquinas. Foi nessa época que grandes empresas
de computação pessoal e tecnologia começaram a surgir, como as mundialmente
conhecidas Apple e Microsoft.
A ampla aceitação e a constante evolução das tecnologias computacionais
criaram novas faces da sociedade, novas formas de pensar. Abriu-se caminho para
a cunhagem e popularização de termos como “cibercultura” ou “tecnocultura”, ainda
55
muito discutidos, mas que, no geral fazem referência a uma cultura humana
cibernética, fortemente ligada à existência digital. Essa busca por novos termos, a
fim de explicar, definir e descrever fielmente os fenômenos sociais inéditos, está
sempre em curso. É fato que um conjunto grande de novas palavras foi inserido no
cotidiano, relativas à essa nova “cultura”. A transformação foi mesmo enorme:
No transcorrer do século XX, diferentes aspectos foram estruturando a sociedade contemporânea, complexificando-a, sendo que a partir dos anos de 1950, os recursos sociotécnicos provenientes da tecnocultura e motivadores da atual cibercultura passaram a ser o centro desse processo e, assim, a denotar características que até então não se mostravam evidentes. (SCHWINGEL, 2004, p. 43)
O tema cibercultura será abordado mais adiante, mantendo o foco aqui na
base tecnológica que transformou a sociedade. Os objetos característicos do nosso
tempo possuem sério compromisso com a informação e a comunicação. São
elementos que estão na base lógica de suas concepções. A utilidade de um
dispositivo tecnológico está muito ligada à sua capacidade de se conectar às redes e
a outros dispositivos. Também a capacidade de receber, processar e transmitir
dados digitalizados. São máquinas computacionais que se comunicam entre si e
permitem ao homem também fazê-lo, num fluxo de informações automatizadas,
programadas e codificadas que é enorme, contínuo, crescente e globalmente
generalizado:
A tecnologia da informação é para esta revolução o que as novas fontes de energia elétrica foram para as revoluções industriais sucessivas, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear, visto que a geração e distribuição de energia foi o elemento principal na base da sociedade industrial. (CASTELLS, 1996, p. 68).
Assim sendo, a nova base tecnológica traz ao cidadão comum hodierno uma
proposta de uso que é comunicativa. Para fazer parte desse novo ambiente digital, é
preciso se comunicar. Para não ficarem excluídas, as pessoas aderem ao uso de
dispositivos e assumem um papel ativo na comunicação. Passam a expressar
opiniões através das redes, a trocar conteúdos, a participar de grupos, as chamadas
“comunidades virtuais”, consumir informação e propagá-la. Conectam-se à internet e
passam a ter uma existência virtual.
56
Inevitavelmente, a popularização das tecnologias computacionais conectadas
à uma rede, as chamadas tecnologias da informação, atinge em cheio os meios de
comunicação tradicionais no final do século XX. Constata-se que “a virada do século
coincide com a passagem da comunicação centralizada, vertical e unidirecional, [...]
as possibilidades trazidas pelo avanço técnico das telecomunicações, relativas à
interatividade e ao multimidialismo. (SODRÉ, 2002, p. 11). São possibilidades
inéditas, em escalas inéditas e que perceptivelmente estão alterando os modos de
vida no mundo todo.
2.2.2 Interface e usabilidade
Quando as tecnologias computacionais começaram a evoluir e ganhar
destaque no mundo científico, nas décadas de 1940 e 1950, ainda não haviam
formas amigáveis de interação entre o homem e a máquina, no que diz respeito a
facilidade de interação e de comando. Assim, realizar uma programação ou coletar
dados era um trabalho extremamente técnico e dificultoso, por mais simples que
seus resultados pudessem ser. Cabia aos especialistas e desenvolvedores da época
realizar esta tarefa. Johnson (2001) conta que, naquela época, "a língua franca da
computação moderna fora até então uma mistura desnorteante e obscura de código
binário e comandos abreviados" (p. 16). No final da década de 1960, então, surge o
vislumbre daquilo que mudaria a relação dos seres humanos com as máquinas.
Doug Engelbart apresenta ema proposta de interface gráfica ao usuário, a GUI
(graphic user interface), com uma série de metáforas ilustrativas intermediando as
ações e reações entre a máquina e o usuário. Johnson afirma que "Engelbart teve
uma carreira notavelmente eclética e visionária, mas por essa única demonstração já
merece sua reputação de pai da interface contemporânea" (2001, p. 17).
Nomes seminais para as tecnologias da informação despontavam naquela
época, como John Von Neumann e seus esforços no campo da inteligência artificial,
arquitetando os elementos do computador com base no cérebro humano, modelo
que perdura hegemônico até hoje; ou um importante influenciador daquele período:
Vannevar Bush, autor do célebre artigo "As We May Think" (Como podemos
pensar)1 na revista The Atlantic Monthly, descrevendo uma proposta de tornar mais
1 Tradução livre do autor.
57
acessível as informações e os conhecimentos obtidos pela ciência. Há ainda nomes
como Claude Shannon, responsável pela teoria matemática da comunicação, isto é,
uma ideia de codificação de informações segundo uma lógica matemática aplicado a
circuitos elétricos, algo que se observa atualmente e que deu origem ao conceito de
"bit"; ou mesmo Alan Turing, que apesar de ter trabalhado sob sigilo durante anos,
conseguiu desenvolver uma máquina computacional capaz de decodificar
mensagens, algo que representou imensa vantagem estratégica no período da
segunda guerra mundial (ISAACSON, 2014). A lista de inventores, cientistas e
pesquisadores que contribuíram para a criação do conjunto de elementos que hoje
são presentes na vida da maioria das pessoas é enorme, demonstrando que
diversas mentes foram importantes no processo geral.
Quando falamos no avanço das tecnologias, pensamos muito no avanço
observável nos elementos físicos dos equipamentos, os hardwares. No entanto,
essa é a parte que passa mais desapercebida quando um indivíduo leigo utiliza o
objeto. Não é sua existência material que exerce a principal atração ou que prende a
atenção dos usuários, mas sim aquilo que se realiza no programa e que se observa
nos outputs e inputs do sistema. Por outputs consideramos aquilo que o objeto
entrega à pessoa: um áudio, uma imagem que forma um texto, uma mensagem, um
vídeo, uma fotografia, isto é, aquilo que já foi devidamente processado por meio de
códigos e que chega do modo inteligível ao usuário. Já os inputs são as formas
pelas quais conseguimos inserir dados e comandos nos dispositivos: teclados,
microfones, câmeras fotográficas, entre outros sensores, que apresentam esses
dados codificados ao sistema.
Para que tudo isso funcione de acordo com a proposta, há um programa
agindo em conjunto, um software, não menos complexo que a tecnologia física em
termos de desenvolvimento, mas que trabalha para sustentar e possibilitar a relação
entre a pessoa e o dispositivo. Existem milhões de programas com diferentes tipos,
para diferentes funções, mas quase sempre eles têm algo em comum, um atributo
essencial e completamente indispensável nos dias de hoje. Estamos nos referindo a
uma interface gráfica:
Em seu sentido mais simples, a palavra se refere a softwares que dão forma à interação entre usuário e computador. A interface atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra. Em outras palavras, a relação governada pela interface é uma relação semântica,
58
caracterizada por significado e expressão, não por força física. (JOHNSON, 2001, p. 17).
Em seu livro chamado "Cultura da Interface" (2001), Johnson se esforça para
demonstrar como o contato com as interfaces é fundamental para a manutenção da
sociedade moderna, como isso mudou nossas vidas, ao ponto de tornar-se uma
nova cultura. A importância da interface para o processo de ascensão da era digital
pode ter sido negligenciada no âmbito das discussões sobre o tema, mas seu
desenvolvimento, sobretudo dos modelos gráficos, é profundamente responsável
pela severa apropriação tecnológica de pessoas não especialistas sobre os meios
de comunicação digital. Engelbart introduziu uma nova maneira de lidar com os
dados digitais, deixando de lado as linhas de códigos e comandos para uma
representação gráfica que se mostrou bem mais compatível com a cognição
humana. Em outras palavras, o usuário do computador não precisaria mais entender
os mesmos códigos que o computador entende, mas poderia apenas demonstrar
sua intenção dentro daquela interface, seja através do teclado ou apontando algo na
tela com o (então novíssimo) mouse.
Ao arrastar um ícone de um lugar para o outro dentro de uma interface
gráfica, por exemplo, o usuário está aplicando seu referencial espacial real de
interação com o ambiente, “pegando” um objeto de um lugar e colocando-o em
outro. Assim, consegue executar esse ato sem grandes dificuldades, pois ele faz
sentido cognitivo. O trabalho da interface é entender esse comando, traduzi-lo e
transmiti-lo codificado à máquina, onde a alteração é processada e gravada. Se esse
mesmo processo precisasse ser feito sem a mediação de uma interface gráfica,
pouquíssimas pessoas teriam capacidade técnica para realizá-lo, pois seriam linhas
de comando codificadas ao invés de imagens. Códigos fazem menos sentido diante
do conjunto de habilidade cognitivas humanas. Johnson explica que:
Os seres humanos pensam através de palavras, conceitos, imagens, sons, associações. Um computador que nada faça além de manipular sequências de zeros e uns não passa de uma máquina de somar excepcionalmente ineficiente. Para que a mágica da revolução digital ocorra, um computador deve também representar-se a si mesmo ao usuário, numa linguagem que este compreenda. (JOHNSON, 2001, p. 17).
Evidentemente que as primeiras propostas de interface gráfica eram
radicalmente inferiores ao que hoje se apresenta, mas o fio condutor da ideia se
manteve: a utilização de metáforas espaciais. Não é mais preciso dar um comando
59
para a exclusão de um arquivo, basta “jogá-lo” na lixeira, isto é, uma representação
metafórica de um ato que existe fora do ambiente digital e que, inclusive, ajuda a
criar a ilusão de ambiência digital, mas que, em verdade, se realiza em códigos
ininteligíveis dentro do computador. Assim são as demais formas de organização e
de interação através de interfaces: abrimos janelas que nos levam a um programa,
deixamos uma pasta na área de trabalho, ou dentro de alguma outra pasta que,
além do nome também assume a aparência de uma pasta física.
Há, portanto, duas importantes características na base da revolução
tecnológica digital, especialmente pertinentes para o presente trabalho. Primeira: a
íntima relação dos processos de comunicação com as práticas digitais, considerando
que a aplicação de um sistema de interface gráfica nada mais é do que um brilhante
processo de tradução e comunicação entre linguagens totalmente diferentes, que faz
com eficácia singular máquina e ser humano se entenderem e produzirem, juntos,
inúmeros trabalhos. Segunda: a referência espacial recorrentemente adotada para
desenvolver as representações gráficas dos comandos em uma interface,
levantando novamente a importância da noção de espaço para as atividades
humanas.
Mesmo assim, a junção das interfaces gráficas amigáveis ao usuário leigo e
dos microprocessadores cada vez mais poderosos não seria suficiente para produzir
os efeitos que revolucionaram a sociedade e atribuíram o status de “era de
informação” ao nosso momento histórico. Também foi preciso que tudo isso
estivesse conectado, em uma mesma rede, que também emergia no borbulhante
cenário pós-guerra.
2.2.3 Redes de telecomunicações
Um exercício interessante para iniciar o tema das redes de telecomunicações
é o esforço de imaginar uma existência humana atual que não esteja ampla e
profundamente conectada por redes. Para os que nasceram antes da década de
1990, restam memórias do tempo em que não havia telefonia móvel, ou internet.
Mesmo assim, já haviam muitas redes de telecomunicações, como o rádio, a
televisão, ou o telefone fixo. Para aqueles que nasceram depois desse período,
conceber o modo de vida antigo pode ser mais difícil, pois muitos provavelmente já
60
tiveram uma formação educacional e pessoal que utilizasse ou permeasse a
computação, os dispositivos e a internet. Mesmo com acesso restrito, o assunto era
bastante comentado, sobretudo dentro das escolas. Aos que estão nascendo mais
recentemente, digamos, depois de 2010, fica difícil dizer como estará este cenário
daqui 5 ou 10 anos, dada a evolução tecnológica rápida e constante. Fato é que a
vida de hoje se realiza em grande parte por meio das redes de telecomunicações
estabelecidas em todo o planeta. Desde os mais elaborados e complexos sistemas
financeiros globais aos mais simples atos, como enviar uma mensagem de texto
para um amigo. Sem a capacidade de conexão veloz2 oferecida sobretudo pela
internet, e sem a horizontalização da comunicação social que ela proporcionou, o
cotidiano das cidades seria completamente diferente, mesmo que se tivesse à
disposição os mesmos equipamentos. Sem as redes de telecomunicações, eles
perderiam boa parte de suas funções e a organização da sociedade seria outra.
Esse pensamento vai ao encontro das constatações de Castells (1999) que
também enxerga na década de 1990 um período de grande difusão da computação
e implementação mais severa da rede - a internet. Para ele, é a partir daí que se
observa a inserção dos respectivos aparelhos especializados que se comunicam
entre si - não apenas os computadores, mas também dispositivos móveis diversos -
nos mais diferentes âmbitos da vida social: no trabalho, nas casas, nas escolas, em
locais públicos ou em qualquer outro lugar, ligados ou capazes de se ligar a uma ou
mais redes.
Fica claro então que, a capacidade dos computadores e demais dispositivos
de estabelecer uma comunicação lógica entre si por intermédio da rede, de estarem
conectados, de forma automatizada ou não, é tão importante quanto sua capacidade
de processar dados. A percepção de Castells evidencia a ampla aceitação que
ocorreu durante e após a última década do século passado, resultado de um
conjunto de fatores (evolução da base tecnológica, das interfaces amigáveis, do
acesso à rede, o valor mais acessível, as possibilidades de aplicação) que
transformou as tecnologias digitais da informação em uma verdadeira febre, no
sentido de contagiar um grande número de pessoas de forma epidêmica. A diferença
é que essa "epidemia" nunca mais retrocedeu, pelo contrário, aumentou muito e
2 O termo “veloz” aqui não faz referência à pacotes de velocidade comercializados por empresas provedoras do
serviço de internet. Ele expressa uma comparação com os meios de comunicação antes do surgimento da internet, que eram consideravelmente mais restritos.
61
continua nesse rumo. Junto com ela, os novos modelos de vida que agora impõem a
necessidade de uma existência virtual aos indivíduos.
Considerando que a "existência virtual do indivíduo" significa fazer-se
presente na internet através de uma disponibilidade comunicacional, como um
endereço de E-mail, um perfil em mídias sociais, entre outras, verifica-se que sua
presença virtual se realiza perante os demais quando ele (o indivíduo), de alguma
forma, se comunica na rede. No ambiente digital, "existir" e "comunicar" parecem ser
duas faces da mesma moeda. Wonton (2006) assegura que, hoje em dia, as
pessoas não aceitariam mais viver em uma sociedade hierarquizada e que não
garantisse o direito de livre expressão. Ele fala do irreversível processo de
apropriação da palavra pelo cidadão, a possibilidade de expressar publicamente
suas opiniões que somente foi alcançável com a expansão das redes de
telecomunicação e as redes de dados, sobretudo a internet, tanto conceitualmente
quanto estruturalmente. Não queremos aqui colocar a telefonia fixa ou móvel, os
sistemas de rádio e televisão e a internet em nível de igualdade no que diz respeito a
sua base tecnológica e seus efeitos sobre a sociedade. A semelhança que se
explora é a criação e implementação de redes que sustentam um ou mais meios de
comunicação, interpessoal e entre máquinas. São diferentes tecnologias, diferentes
aparelhos, diferentes estímulos, mas com aplicações e percepções semelhantes.
Tanto é que, ocasionalmente, um meio substitui o outro nas atividades humanas,
quando há uma falha em algum deles.
Assim, as percepções de Castells (1999) quanto a profunda inserção de
tecnologias da informação na vida cotidiana, a apropriação da palavra e do direito de
expressão apontado por Wolton poucos anos depois, são aspectos de um
movimento de social generalizado e abrangente que realizou-se, evidentemente, por
meio das redes telemáticas, materiais ou imateriais, que costuram o globo e
possibilitam a comunicação.
Basicamente, a estrutura física de uma rede de transmissão de dados, como
a internet, se constrói em volta de grandes servidores, geralmente
supercomputadores que permitem determinada quantidade de acessos por pontos
terminais, utilizando protocolos de Internet internacionalmente aceitos. Os dados
fluem por uma vastíssima rede de cabos que interligam cidades, países e
continentes, além do grande número de antenas e satélites que também transmitem
dados por redes imateriais, verdadeiras “autoestradas” de informação.
62
Todas essas relações entre estruturas tecnológicas passaram a ficar mais
clara após a criação da Web (world wide web) que ofereceu ao usuário um sistema
mais fácil de organização e busca de dados (Castells, 1999). Sobre a Web, o autor
conta seus criadores, um grupo de pesquisa liderado por Tim Beners Lee, tiveram
referência da cultura hacker dos anos 70. Além disso:
Basearam-se parcialmente no trabalho de Ted Nelson que, em seu panfleto de 1974, “Computer Lib”, convocava o povo a usar o poder dos computadores em benefício próprio. Nelson imaginou um novo sistema de organizar informações que batizou de “hipertexto”, fundamentado em remissões horizontais. A essa ideia pioneira, Berners Lee e seus colegas acrescentaram as novas tecnologias adaptadas do mundo da multimídia para oferecer uma linguagem audiovisual do aplicativo. (CASTELLS, 1999, p. 88)
A Web trouxe aos não especialista a possibilidade de atuarem ativamente na
rede. A soma de todas as evoluções tecnológicas concomitantes e complementares
deram à luz a uma sociedade multiconectada, com redes ubíquas. Um período
dinâmico representado principalmente pela figura do computador no qual a
informação e o conhecimento são fatores determinantes dos processos em rede.
Podemos afirmar que as redes técnicas de telecomunicação são a espinha dorsal da
vida contemporânea. Santos afirma que “mediante as redes, há uma criação paralela
e eficaz da ordem e da desordem no território, já que as redes integram e
desintegram, destroem velhos recortes espaciais e criam outros”. (1997, p. 222). A
saúde e estabilidade dessas redes significam a saúde e estabilidade de
praticamente todos os sistemas que delas usufruem ou mesmo que somente nela
existem, como já foi dito anteriormente. Por estarem em praticamente todos os
lugares, sua existência é um híbrido que une conceitos aparentemente antônimos e
ofusca a percepção de sua natureza. Santos continua:
O fato de que a rede é global e local, una e múltipla, estável e dinâmica, faz com que sua realidade, vista num movimento de conjunto, revele a superposição de vários sistemas lógicos, a mistura de várias racionalidades cujo ajustamento, aliás, é presidido pelo mercado e pelo poder público, mas sobretudo, pela própria estrutura socioespacial. (SANTOS, 1999, p. 88)
Nesta citação, Santos demonstra as disparidades que as redes conseguem
abranger no mundo contemporâneo: se expressam localmente e globalmente, ao
mesmo tempo; ela é una por sua capacidade de aglutinação e por lidar com a
mesma base técnica e protocolar, mas também é múltipla por poder ser segmentada
63
quando necessário; é estável por se apoiar em um robusto aparato tecnológico, ao
passo que é dinâmica e fluida, isto é, capaz de chegar nas menores reentrâncias da
sociedade. A superposição apontada se refere as diversas camadas tecnológicas
que se sobrepõem ao longo do tempo, criando um tecido comunicacional complexo
em sua forma de exercer o controle e o acesso, ao acionar os pontos fixos e
distribuir os devidos fluxos.
2.3 A comunicação social em rede
Analisar com mais detalhes os mecanismos e sistemas tecnológicos que
suportam modus operandi da vida contemporânea contribui para o debate da
comunicação social em rede e sistemas digitais. As novas técnicas de comunicação
em rede seus desdobramentos sociais: como isso tem alterado os costumes, a
cultura, os interesses, as referências simbólicas, os hábitos, a memória, os valores,
as normas que regem a sociedade. Sobretudo, porque comunicar pressupõe uma
relação e é justamente nesse ponto em que as maiores alterações podem ser
percebidas. As novas formas de comunicar desencadearam deferentes tipos relação
entre as pessoas, algumas delas radicais, outras nem tanto, mas que por vezes
passam despercebidas no decorrer cotidiano ou são ignoradas por aqueles que as
praticam.
Conforme aponta Sodré (2002), quando a comunicação social acontecia em
base oral ou escrita, os principais recursos disponíveis vinham da linguagem: a
palavra, o conceito. O livro e da imprensa eram os instrumentos adequados para as
circunstâncias. O autor, apoiado em Miège (1999), aponta primeiramente para o
tempo da imprensa de opinião, artesanal e específica em suas abordagens, com
tiragens restritas valorizando a manifestação de ideias e a existência local.
Antecessora da imprensa comercial, dimensionada ao período industrial/comercial e
moldada segundo suas lógicas. Nela se incluiu publicidade ao conteúdo. Evoluiu-se,
então, para a mídia de massa, possuidora de íntima relação com o marketing e com
a valorização do espetáculo em seus métodos de produção audiovisuais. Mais
recentemente, enfim, a comunicação generalizada, aquela permitida pela rede
mundial de computadores, pela sua abrangência, pela digitalização da vida,
momento atual que compartilhamos.
64
Diversas foram as camadas tecnológicas que se depositaram sobre a
comunicação ao longo da história moderna. A invenção do rádio e da televisão que
fez emergir a noção do audiovisual. O computador e a internet, que permitiram criar
simulações virtuais de diversas experiências da vida analógica, além de práticas
totalmente inéditas. O olhar holístico sobre a evolução geral dos meios pelos quais a
comunicação aconteceu ou acontece permite perceber que a chegada de um novo
modelo principal não necessariamente desconsidera ou anula o anterior. Muitas
vezes eles se unem, ou simplesmente coexistem, fato que não exclui as alterações
sociais profundas que são exercidas. Se coexistem, os meios se relacionam e dão
origens a novos conceitos e práticas comunicacionais. Consideremos a citada
imprensa de opinião como exemplo: não podemos dizer que ela tenha
completamente deixado de existir, com seus traços artesanais e personalizados. Ela
pode ter mudado de forma, de base tecnológica, de meio e de linguagem, mas
encontram-se fragmentos de sua essência em práticas atuais, como o ato de
escrever um blog na internet, característico por conter opiniões críticas de seus
autores. E quanto a transmissão ao vivo de um programa televisivo? Prática
primeiramente possibilitada pelos aparatos característicos da mídia de massa, agora
pode também ser simultaneamente transmitido pela internet ou acessado
posteriormente por um internauta.
Em ambos os casos, os objetivos comunicacionais almejados são similares.
Tanto na imprensa de opinião, quanto no blog, há que se propor uma reflexão ao
leitor. Tanto na transmissão ao vivo pelo sistema televisivo, quanto pela internet,
busca-se informar os telespectadores em tempo real. Esses traços comuns são
evidências mais estáveis dos processos de comunicação. Por mais que os meios e
as tecnologias mudem, algumas características são mantidas. A grande alteração,
portanto, acontece na mediação da comunicação pela tecnologia. Essa alteração
tem sido objeto de estudo recente de muitos pesquisadores em todo o mundo e em
diversas áreas do saber. De acordo com Castells (2006):
A comunicação em rede transcende fronteiras, a sociedade em rede é global, é baseada em redes globais. Então, a sua lógica chega a países de todo o planeta e difunde-se através do poder integrado nas redes globais de capital, bens, serviços, comunicação, informação, ciência e tecnologia. (CASTELLS, 2006, p. 18).
65
Quando falamos em comunicação em rede nos tempos atuais, estamos
falando basicamente da sociedade em rede, de globalização. Afinal, o que é esse
processo senão uma fluidez generalizada de informações e comandos? Um fluxo
frenético de dados que influencia severamente a vida das pessoas. O processo de
globalização certamente não existiria se não houvesse a conexão global por redes,
com destaque para a internet, que é uma delas. Os indivíduos transferem, cada vez
mais, seus diálogos, suas relações, suas fontes de informação, de lazer e trabalho,
para algum tipo de rede digital. Fazem isso por escolha, por sedução ou por se
sentirem profundamente induzidos, direta ou indiretamente. Pode não ser explícito,
mas alterar o meio de comunicação muda muita coisa, inclusive as noções de
espaço e tempo social.
Os desdobramentos são diversos. Podemos citar as perspectivas legais que
permeiam a vida em sociedade, como as questões de propriedade intelectual ou
pirataria de conteúdos tratadas por Lessig (2004), que analisa casos emblemáticos
como a manutenção de patentes farmacêuticas e o copyright. As reorganizações
econômicas da produção da informação e inovação, justiça, desenvolvimento social
e impactos sociais causados pela internet, explorados por Benkler (2006), derivadas
de algo que o autor chama de uma “mudança para um ambiente de comunicação
construído sobre processadores baratos com altas capacidades computacionais,
interconectados em uma rede impregnante”.
A organização em rede da sociedade revela um processo que Castells (2007)
chamou de comunicação de massa autocomandada:
Com a difusão da sociedade em rede, e com a expansão das redes de novas tecnologias de comunicação, dá-se uma explosão de redes horizontais de comunicação, bastante independentes do negócio dos media e dos governos, o que permite a emergência daquilo a que chamei comunicação de massa autocomandada. É comunicação de massas porque é difundida em toda a Internet, podendo potencialmente chegar a todo o planeta. É autocomandada porque geralmente é iniciada por indivíduos ou grupos, por eles próprios, sem a mediação do sistema de media. (CASTELLS, 2007, p. 24)
A comunicação, portanto, alcança outro nível de existência, que não é rasa
nem efêmera em suas consequências. Ela tem em si um desejo que extrapola as
técnicas e as tecnologias, apesar de se expressar por meio delas. Wolton já disse
que “a comunicação existe desde que os homens vivem em sociedade, isto é, desde
66
sempre” (2006, p. 25), e assim sendo, há que se ter cautela ao caracterizar o atual
período. De fato, as tecnologias e as técnicas midiáticas, evoluíram
exponencialmente e as redes tornaram-se extensões indispensáveis da existência
social contemporânea. Não podemos, contudo, submeter a comunicação ao
fenômeno técnico. A comunicação plena é aquela que busca harmonizar a relação,
que é democrática e que conta com informações relevantes em vez de dados soltos,
desconexos. Cabestré (et al, 2013) diz que “[...] podemos inferir que a internet, como
nova expressão das tecnologias digitais, oferece uma série de dados. O processo de
converter esses dados em informação depende de seleção e interpretação. ” (p. 169).
Aplicando isso ao cotidiano da vida social, poderíamos afirmar que as pessoas
estejam se comunicando melhor por causa das redes digitais?
A resposta provável é sim, apesar de não haver dependência nessa relação e
de ser um processo que leva algum tempo. Ter acesso à uma ferramenta não
garante o uso ideal da mesma. É certo que aumento das possibilidades tecnológicas
e, sobretudo, do acesso à internet, fez com que a grande maioria das pessoas
recebesse mais estímulos, consumisse mais informações e expressasse mais
opiniões. Castells não tem dúvidas de que “a internet tem, assim, um papel
crescente, ao ser, simultaneamente, um meio de comunicação de massas e um
meio de comunicação interpessoal, constituindo-se como o elemento central no novo
sistema dos media. ” Vemos dois principais motivos: 1) o alcance da mensagem
aumentou em escala exponencial. Quem antes falava com a família e vizinhos,
agora pode utilizar as redes para falar com a cidade ou o mundo, dependendo da
relevância de sua informação; 2) o número de emissores também cresceu
exponencialmente. O receptor abandona sua posição de passividade ao ter em
mãos dispositivos que são mediadores da comunicação: uma chance de responder à
mensagem, de se expressar, de se tornar também um emissor.
O engendramento entre tecnologia, comunicação e redes digitais distribui pelo
globo uma mesma maneira de comunicar. O sistema de objetos que realiza a
mediação das comunicações é comum e segue lógicas que são semelhantes entre
si. Isso se reflete nos hábitos e aplica sobre culturas e sociedades locais uma lógica
de comportamento global. Cabestré (2013) observa que:
Os meios de comunicação, cada vez mais acessíveis e obedecendo uma nova lógica de produção de conteúdo em que os antigos emissores e receptores passam a ser denominados interagentes, subvertem mercados, fronteiras e possibilitam a
67
hibridização cultural. Desta forma, a possibilidade de pensar globalmente e agir localmente reforça os movimentos de alteração da estrutura das sociedades. (CABESTRÉ, et al, 2013, p. 168).
O pensamento global passa a acontecer a partir do momento em que os
estímulos chegam de toda a parte do mundo e isso é percebido pelo indivíduo,
causando uma convergência de momentos e apresentando referências simbólicas
de culturais alheias, que simplesmente ultrapassam barreiras do espaço e do tempo.
“Ortiz (1999) destaca que o espaço agora é deslocalizado devido à flexibilidade
proporcionada pelas tecnologias digitais. ” (CABESTRÉ, et al, 2013, p. 167). Contudo, o
agir é mais local do que global, se comparado com o pensar, pois é uma expressão
que muitas vezes depende da materialidade. O sistema de objetos que realiza a
mediação das comunicações é padronizado, funcionando a partir de lógicas
semelhantes entre si, independente do território. Isso se reflete nos hábitos e aplica
sobre culturas e sobre as sociedades locais “camadas” de novos valores,
percepções, desejos e conhecimentos que tornam o comportamento do indivíduo
mais globalizado. Existe também (e cada vez mais) o agir no ciberespaço, que pode
ser tanto local quanto global, cujo boa parcela é representada por atividades
originárias do mundo físico que ganham versões digitalizadas. A capacidade de
simulação que o ambiente digital oferece tem sugado (as vezes por completo)
atividades analógicas para o digital, padronizando-as para gerar escala, algo que
parece satisfazer os usuários. O engendramento entre tecnologia, comunicação e
redes digitais está distribuindo pelo globo uma mesma maneira de agir. Esse agir,
necessariamente, é comunicativo. Cabestré (2013) observa que:
Os constantes processos de transformação de cunho social, político e econômico ocorridos no mundo contemporâneo têm alterado a estrutura das sociedades, imprimindo novos hábitos e valores que, por sua vez, focalizam a informação como bem simbólico, estratégico e imaterial. O resultado desse processo é o fenômeno de transição de uma sociedade baseada na indústria para uma sociedade que se embasa na informação como insumo essencial (CABESTRÉ, et al, 2013, p. 166).
O processo de interligação do planeta por redes de telecomunicação não
aconteceu por acaso. Tampouco a proliferação de objetos e dispositivos que se
conectam às redes. Esse sistema é a base material do famigerado processo de
globalização e é o que dá sustentação à face mais voraz do capitalismo,
internacionalizando não apenas capitais, mão de obra, produtos e serviços, mas
mercados inteiros, publicidade, consumo. As marcas globais nunca venderam e
68
faturaram tanto como na atualidade, pois agora possuem entrada em mercados
inexplorados, controle sobre a comunicação que influencia diretamente a cultura
local, e acesso à bancos de dados gerados pelos próprios indivíduos, que
proporcionam uma assertividade incrível em termos de marketing e publicidade:
À medida que a globalização permitia que as trocas comerciais fossem ampliadas e transgredissem as barreiras cartográficas, abria espaço para a construção de um mundo cada vez mais hibridizado. O capitalismo, por sua vez, atravessa um surto de universalização e é impulsionado pelo uso de novas tecnologias, divisão transnacional do trabalho e mundialização dos mercados. (CABESTRÉ, et al, 2013, p. 167).
No entanto, apesar da comunicação em rede global permitir a entrada
desenfreada do capitalismo e o avanço da globalização, existe um movimento que
vem “de baixo”, isto é, daqueles que fazem o uso doméstico da rede, os indivíduos
comuns que utilizam a internet para os mais diversos fins. Um movimento com fortes
traços militantes, revolucionários e progressistas, que contrapõem os poderes
estabelecidos e se manifesta contra práticas abusivas ou repressivas de Estados ou
instituições. Esses movimentos são horizontais, orgânicos e descentralizados. É um
dos fenômenos mais interessantes e intrigantes da chamada “era digital” e que
parecem estar no início de sua existência histórica. Estamos nos referindo ao
ativismo digital, ou “ciberativismo”, um termo que busca definir a organização online
de ativistas e a mobilização de simpatizantes de causas diversas.
2.4 Persuasão e Mobilização nas Redes: o ativismo digital
Em dezembro de 2010, o tunisiano Mohammad Bouazizi teve sua pequena
banca de frutas e legumes confiscada pela polícia. Não era a primeira vez. Com uma
história sofrida, baixa qualidade de vida e cansado dos abusos de autoridades
corruptas, o jovem de 26 realizou um protesto extremo: ateou fogo ao próprio corpo
em frente ao prédio sede do governo. Um sacrifício brutal motivado pela insatisfação
e revolta que sentia da ditadura e da vida que levava à duras penas.
A população da Tunísia, que enfrentava um alto índice de desemprego, um
custo de vida desproporcional e uma enorme insatisfação com o governo, se
sensibilizou com a autoimolação do jovem. A atitude de Bouazizi é considerada o
ponto inicial do processo reconhecido como “Primavera Árabe”. A partir daí uma
69
sequência incrível de acontecimentos se principiou, manifestações e mobilizações
em diversos países do mundo árabe, derrubando ditaduras e repercutindo no mundo
todo. As pessoas foram às ruas em protestos massivos, com objetivos
compartilhados em uma organização atípica.
Em junho de 2013 algo semelhante aconteceu no Brasil. A população de
diversas cidades foi às ruas unida, com um clamor afinado, expressando a
insatisfação com a gestão política e todos os problemas derivados. Nesse caso, o
fator que desencadeou o processo foi o aumento de vinte centavos na tarifa do
transporte público na cidade de São Paulo. Ativistas do Movimento Passe Livre
iniciaram atos contrários ao aumento, realizando a convocação de pessoas através
das redes sociais. Em pouco tempo, o número de participantes aumentou de
algumas centenas na cidade de São Paulo, para milhares em todo o Brasil,
sobretudo após a repórter Giuliana Vallone ser atingida no olho por uma bala de
borracha, enquanto fazia a cobertura jornalística um ato contra o aumento da
passagem, num movimento repressivo da Polícia Militar. A foto da jovem sentada na
sarjeta com o olho inchado e sangrando foi amplamente divulgada na imprensa e na
internet, gerando revolta e sensibilizando a população. A partir daí, parece que o
clima mudou. A imprensa tradicional, que até então utilizava uma abordagem
negativa ao noticiar os protestos, passou a assumir uma postura diferente, mais
positiva ou imparcial.
Uma onda de protestos tomou conta do Brasil. Os cartazes mostravam
levados pelos manifestantes deixavam claro que aquilo tudo não era só pelos 20
centavos. Foi um momento oportuno para o povo soltar o grito oprimido, de
expressar a revolta. Haviam causas diversas na mesma multidão. Uma massa
heterogênea compartilhando a experiência de ir para às ruas lutar por direitos e,
como esclareceu Žižek: “O que a maioria dos manifestantes compartilha é um
sentimento fluido de desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas
particulares. ” (p. 184, 2013).
Quem se posicionou contrário ao movimento usou a heterogeneidade para
tentar descaracterizar os protestos, ou menosprezá-lo, dizendo não haver uma
liderança, um objetivo definido. A verdade é que, tanto aqueles que participaram,
quanto aqueles que criticaram, não estavam preparados para compreender
exatamente o que estava acontecendo, seja pela falta de reflexão, pela falta de
referências, ou ambas as coisas. De forma geral:
70
Podemos pensar essas manifestações como um terremoto [...] que perturbou a ordem de um país que parecia viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos. Mas, sobretudo – e isso é o mais importante –, fez renascer entre nós a utopia. (ROLNIK, 2013, p.10)
Movimentos similares à Primavera Árabe e às manifestações no Brasil em
meados de 2013 também aconteceram em outros locais do planeta. E qual seria o
elo que une as mobilizações sociais que passaram a ser recorrente no noticiário
internacional? Todas elas foram (e continuam sendo) organizadas, alinhadas,
debatidas e promovidas nas redes sociais digitais. O “espaço público” digital tem
sido cada vez mais utilizado politicamente. A dinâmica que as redes sociais
proporcionam tem sido recorrentemente utilizada para o debate de questões sérias,
construtivas. Os atores (usuários) começam a apresentar um comportamento
colaborativo que traz desdobramentos concretos. É um fenômeno que ficou
conhecido como “ativismo digital”. Dentre todas as importantes características que o
conceito pode apresentar, a principal delas é o fato de que são mobilizações que
podem extrapolar as redes sociais digitalizadas, ganhar corpo no espaço público
real, isto é, nas cidades:
Essas tecnologias de comunicação não são apenas ferramentas de descrição, mas sim de construção e reconstrução da realidade. Quando alguém atua através de uma dessas redes, não está simplesmente reportando, mas também inventando, articulando, mudando. Isto, aos poucos, altera também a maneira de se fazer política e as formas de participação social. (SAKAMOTO, 2013, p. 170).
Outro caso exemplar recente foi a ocupação de escolas estaduais de São
Paulo por estudantes, em razão do anúncio de uma reformulação que acarretaria no
fechamento de várias unidades escolares. Ao perceberem isso, os estudantes se
mobilizaram e fizeram a ocupação das escolas em várias cidades. Boa parte do
processo de mobilização aconteceu via internet e os adolescente conseguiram
atingir seus objetivos: diante da pressão, o governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin, retrocedeu na decisão de fechar escolas. Disse que vai consultar a
comunidade e estudar melhor a proposta. Em resumo, existe algo novo acontecendo
na dinâmica comunicativa da sociedade que está presente em todos esses
acontecimentos contemporâneos que passamos a assistir recorrentemente. Žižek,
referindo-se aos protestos no mundo atual, acredita que:
71
O que une esses protestos é o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma única questão, pois todos lidam com uma combinação específica de (pelo menos) duas questões: uma econômica, de maior ou menor radicalidade, e outra político-ideológica, que inclui desde demandas pela democracia até exigências para a superação da democracia multipartidária usual. (2013, p. 186)
Podemos dizer que os protestos e manifestações de diversos grupos e com
diversas causas tornaram-se mais frequentes, principalmente nas grandes cidades.
Em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, a ocorrência de protestos é bastante
comum. Claro que não atos volumosos como aqueles de 2013, mas que mostram
que grupos formados por representantes de alguma classe ou defensores de alguma
causa estão mais mobilizados e organizados que antes. A impressão que fica é de
um povo que está aprendendo a usar o potencial das mídias sociais para se
organizar e promover suas ideias, encontrar semelhantes, buscar conhecimento e,
se for preciso, convocar levantes populares. Um processo elucidativo e
emancipador. Obviamente, há quem use a rede apenas como forma de
entretenimento ou para compartilhar bobagens, mas também há quem use essa
poderosa ferramenta para transformar a realidade.
2.4.1 O cidadão comum e o alcance da mensagem
Quando uma nova tecnologia é disponibilizada, suas possibilidades de uso
não se explicitam logo de cara, até porque, muitas delas são desconhecidas.
Propostas que permanecem latentes até aflorarem diante de práticas criativas e
inovadoras. O advento da internet e das redes sociais digitais despejou sobre a
sociedade uma enorme quantidade de aplicações que estão sendo reveladas
paulatinamente. Antes do surgimento da internet, o cidadão comum tinha um papel
totalmente passivo perante os meios de comunicação. Ou seja, o poder de
comunicar estava centralizado nas mãos de poucas empresas de mídia. Agora, as
pessoas podem, mais do que expressar opiniões, transmiti-las por meio de uma
ferramenta midiática que é global, descentralizada e relativamente barata. Passam a
ter “voz”, isto é, acesso a um canal propício e aberto ao discurso de todos, com
mecanismos de compartilhamento, avaliação, discussão e propagação de
informações:
72
As novas mídias digitais exercem um papel central nesses movimentos sociais contemporâneos, circulando a informação, abrindo espaços para críticas sociais e facilitando novas formas de mobilização social (TUFTE, 2013, p. 63)
O primeiro impacto desse sistema criado na internet está na dinâmica de
organização e de consumo de informações da sociedade. Nas redes digitais,
protegido atrás dos computadores, o usuário é constantemente incentivado a
comentar algo do que a se calar. Ele é muito mais incentivado a criar ou compartilhar
um conteúdo do que a se abster. A usabilidade das redes tem uma característica
convidativa ao diálogo e ao discurso. É difícil não dar opiniões quando vemos
diversas pessoas agindo dessa maneira, expondo suas vidas, comentando
conteúdos e se posicionando sobre os temas que querem. Já que o estado de “estar
online” é representado por uma interação comunicativa, os usuários fazem das redes
sociais um verdadeiro espaço de vida e comunicação social.
A segunda alteração está no próprio indivíduo e na sua percepção das
possibilidades. O usuário das redes sociais começa a desenvolver um olhar mais
crítico e utilitário da ferramenta, apropriando-se para usos profissionais e
organizacionais. As redes deixam de ser apenas um espaço de diversão e assume
um papel de extrema importância na construção da realidade. O indivíduo passa a
desenvolver um pensamento orientado pelas novas lógicas de comunicação social
digital. Ele já sabe que agora tem o poder de se expressar, mas começa a entender
qual é o verdadeiro valor disso para sua vida. Reclamar de uma marca que o lesou,
expor alguma injustiça, uma história pessoal, promover causas, ou seja, seu papel é
predominantemente ativo. Isso faz emergir uma massa de dados gigantesca, que
isoladamente não significam muita coisa, mas que ocasionalmente repercutem em
grandes audiências, as vezes mundiais. Com um olhar mais crítico, o indivíduo
passa a selecionar melhor o tipo de informação que consome e de qual fonte.
Dia a dia, a decisão do que é pauta (ou não) sai das mãos dos
conglomerados de comunicação e passa para as dos usuários das redes sociais e
da internet. Não estamos aqui dizendo que essa decisão é consciente ou pensada,
mas algo natural e implícito, fruto de uma seleção feita por todos e por cada um. Os
grandes veículos ainda possuem grande poder de orientação, informação e
persuasão, mas o deslocamento desse poder é nítido. Ele ainda existe, mas não é
mais um monopólio. O indivíduo, por sua vez, amplia sua criticidade perante a mídia
73
e se transforma em um potencial veículo de comunicação, já que também pode
publicar seu próprio conteúdo.
2.4.2 Conhecimento e liberdade, alienação e manipulação
O alienado não é aquele que simplesmente não sabe sobre a verdade. Este é
o ignorante. O alienado é aquele que não sabe sobre a verdade, mas tem plena
convicção de que sabe, isto é, é iludido. A alienação tem sido há muito tempo uma
poderosa arma de manipulação. Alimenta-se a audiência com informações
selecionadas, a fim de causar sobre ela um impacto já previsto e cuidadosamente
planejado. Antes da era digital, essa prática tinha poucas chances de dar errado,
pois o poder de comunicação era centralizado e não havia um espaço público para o
debate popular. Pelo menos, não um espaço ativo e com a escala numérica que
atinge hoje em dia com as redes sociais.
A intenção aqui não é sugerir que a internet e suas redes são a solução para
os problemas da humanidade, mas mostrar que elas são ferramentas
poderosíssimas de comunicação que não precisam necessariamente seguir as
lógicas mercadológicas ou as pautas dos meios tradicionais. Estamos em uma fase
do desenvolvimento humano em que conseguimos encontrar praticamente qualquer
informação online e é esse o potencial que permanece subjugado, menosprezado.
Se é possível desenvolver uma comunicação horizontal, multidirecional, com
baixíssima hierarquia e alto grau de liberdade, é possível alterar qualquer tipo de
realidade. Os conhecimentos disponíveis apenas precisam ser estruturados para
que deixem de ser dados desconexos e passem a ser relevante para a vida das
pessoas.
Quanto mais conhecimentos uma pessoa adquire, isto é, informação
estruturada, mais livre ela consegue ser, no sentido de entender criticamente a
realidade em que está inserida e tomar melhores decisões para sua própria vida. O
contrário da liberdade que estamos sugerindo não seria a “escravidão” de um
sistema, mas uma dependência ignorante de conceito impostos, muitas vezes
tradicionais e pouco questionados. Aquilo que se entende por “verdade” há muito
tempo, mas que é subjetivo e implicitamente imposto para a sociedade. A partir do
momento que todos podem publicar informações e se comunicar livremente, sem
que haja uma moderação rígida, não há uma razão para não se discutir (ou
74
rediscutir) conceitos, regras, parâmetros e lógicas estabelecidas. O debate aprimora
o pensamento e agora existe um lugar onde ele poda acontecer de forma
organizada, registrada, acessível e com um grau de liberdade maior que o do
sistema técnico anterior.
2.4.3 Tecnologia e controle
Além de criar um espaço de debate, as novas tecnologias vinculadas à
internet oferecem formas de controle inéditas. Esse controle não tem relação com
censura, mas com o registro dos fluxos de informação. Um histórico de atividades
que guarda todas as informações de usuários que são interessantes aos provedores
das plataformas e que servem de provas, não necessariamente criminais, caso seja
necessário averiguar alguma atividade. Os efeitos disso atingem toda a humanidade
e já se discute sobre o “direito ao esquecimento”, isto é, ao direito de um fato ser
naturalmente esquecido com o passar do tempo.
A digitalização dos processos burocráticos, administrativos e o registro das
atividades que acontecem na rede faz com que atos ilícitos ou impróprios sejam
facilmente rastreados e os infratores, identificados. Faz também com que haja uma
base de dados totalmente pertinente aos mais diversos estudos, pesquisas e
averiguações. Podemos saber quantas pessoas pesquisaram por determinado
termo, de onde elas pesquisaram, em quais países, cidade, de que tipo de
dispositivo. Os hábitos que a pessoa mantém na internet passam a ser guardado e
utilizados seletivamente por sistemas de publicidade cada vez mais assertivos, o que
parece ser benéfico tanto para o anunciante quanto para o público alvo. O registro
das atividades online permite, portanto, um controle que também é inédito.
No Brasil temos o exemplo da lei complementar nº 131, de 27 de maio de
2009, a Lei da Transparência, que visa incentivar a participação popular nos
processos de elaboração de diretrizes e planos de ação, além de disponibilizar o
acesso pleno aos dados públicos orçamentários, ou seja, quanto os agentes
públicos estão gastando, quanto estão ganhando, quando e como estão investindo o
dinheiro dos impostos, entre diversos outros dados. Na mesma linha do conceito de
comércio eletrônico (e-commerce), surge o conceito do governo eletrônico (e-gov),
ou o e-governo, com o objetivo de estreitar o relacionamento entre população e os
75
poderes políticos, tornar os processos mais participativos, promover a transparência
de dados e a democracia:
Os desafios das democracias modernas traduzem-se na manutenção de canais de interatividade que aperfeiçoem os processos de gestão através da tecnologia. Assim, o capital social seria um ingrediente do engajamento cívico, no qual os indivíduos de uma sociedade atuam buscando objetivos comuns. (RODRIGUES, p. 252, 2013)
Contudo, não podemos acreditar que a disponibilização de um canal é o
suficiente para que o a população passe a participar mais dos processos políticos de
um Estado. Sem falar em todas as falhas e falácias que esse sistema pode criar, o
exercício da cidadania é algo que parte de uma cultura política madura, com
indivíduos que entendem claramente seu papel na sociedade e sabem qual é o
dever de cada um dos políticos e servidores agentes públicos. Sabem como
acontecem os processos públicos, quais são os poderes instituídos e como eles se
relacionam. Infelizmente, no Brasil ainda é notória a falta de consciência política que
se instala em diversas camadas da sociedade, mesmo nas classes financeiramente
mais elevadas. Basta olhar para o quadro político geral, com diversos elementos
investigados ou suspeitos de participar de esquemas de corrupção, mas que mesmo
assim são reeleitos a cada nova eleição.
Como dito anteriormente, acreditamos que as novas tecnologias que
permitem o controle de tantos processos podem contribuir muito com o avanço do
pensamento e da consciência política em todo o mundo. Por sua própria essência, a
internet é um meio de comunicação democrático e, assim sendo, é muito mais
provável que ela auxilie a democracia de que a atrapalhe. Precisamos, contudo, de
tempo para que seus usuários se acostumem com as práticas e amadureçam suas
percepções, um processo que já começa a apresentar eventos em diferentes partes
do planeta.
2.4.4 Uma consciência coletiva?
A base tecnológica de funcionamento de um computador é baseada no
cérebro humano, mesmo que este ainda não tenha sido totalmente desvendado.
Existem as entradas de dados, a unidade de processamento dos dados, o
armazenamento das informações e a devolução, ou seja, as saídas de resposta
desse sistema. Um grupo de pessoas que trabalham junto ao redor de determinado
76
desafio colocam seus cérebros para atuar em conjunto, colaborativamente. Essa
colaboração é definida através da comunicação entre essas pessoas, com metas a
serem atingidas, metodologia do trabalho, divisão das tarefas, etc. Os resultados do
trabalho humano, contudo, estão sujeitos a influências de muitos fatores externos,
naturalmente humanos: falta de foco, relacionamentos conturbados, egocentrismo,
vaidade, entre tantas outras coisas. No entanto, quando computadores são
colocados para atuar em conjunto, os resultados podem ser incríveis.
Apoiado na visão mcluhiana das tecnologias como extensões do homem, os
computadores e a internet podem ser vistos como continuações das mentes
humanas que se estendem para todas as partes. Essa rede está mais robusta. A
quantidade de dados gerados e transmitidos todos os dias assustadoramente
grande. Começam a surgir sistemas capazes de processar essa massa de dados e
apresentar resultados. Podemos citar o aplicativo de trânsito Waze como exemplo
de um sistema baseado em dados que ajuda seus usuários a se locomover com
mais eficiência pelas cidades. O usuário que utiliza os dados processados para
seguir a melhor rota até seu destino, é o mesmo que alimenta o sistema com dados
e o torna mais inteligente e eficaz. Então, temos um sistema que atua como uma
consciência coletiva, considerando todos que estão ativos, seus respectivos dados e
sugerindo melhores rotas para cada um deles. Na prática, é um sistema que
gerencia grande parte do trânsito das cidades. Sobre a relação entre tecnologia e
mente humana, Castells entende que:
Computadores, sistemas de comunicação, decodificação e programação genética são todos amplificadores e extensões da mente humana. O que pensamos e como pensamos é expresso em bens, serviços, produção material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistemas de transporte e comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens. (CASTELLS, 1996, p. 69)
A informação e a comunicação assumem um valor chave na sociedade
contemporânea, juntamente com as atividades ligadas à tecnologia da informação. A
soma de sistemas mais sofisticados, computadores com processadores
extremamente capazes, e o grande número de pessoas conectadas, faz surgir um
ecossistema informacional tecnológico que se comporta como uma espécie de
consciência coletiva, isto é, uma edificação virtual suspensa, invisível, feita com a
colaboração voluntária ou não dos usuários da rede, que processa informações e as
devolve com um valor maior ao promovidas, conforma visto anteriormente,
77
evidenciando um comportamento organizado e colaborativo de ação, como se uma
consciência comum agisse separada do indivíduo. Os computadores podem ser
comparados aos cérebros, enquanto as redes seriam as conexões nervosas. É uma
metáfora ainda em desenvolvimento, pois a tecnologia continua evoluindo e as
formas de apropriação tecnológica também
Não podemos deixar de pontuar, contudo, que as grandes e positivas
possibilidades que as tecnologias da informação oferecem, componentes dessa
possível “consciência coletiva”, não são distribuídas democraticamente no globo.
Coexistem regiões que permanecem fora do mundo globalizado, tecnológico e
informacional. Santos (2001) já chamou a atenção para as escolhas políticas
desiguais que geram excluídos do sistema. O conceito bem aceito da “brecha
digital”, também explorado por Castells (1996):
[...] a velocidade da difusão tecnológica é seletiva tanto social quanto funcionalmente. O fato de países e regiões apresentarem diferenças quanto ao momento oportuno de dotarem seu povo do acesso ao poder da tecnologia representa fonte crucial de desigualdade em nossa sociedade. As áreas desconectadas são cultural e espacialmente descontínuas: estão nas cidades do interior dos EUA ou nos subúrbios da França, assim como nas favelas africanas e nas áreas rurais carentes chinesas e indianas. (CASTELLS, 1996, p. 70).
Ou seja, é preciso ter cuidado com o excesso de otimismo com a internet e as
redes sociais em geral. Elas são sim ferramentas emancipadoras, mas ainda há
muito caminho pela frente, guiado pela democracia, cidadania e diplomacia.
Conforme os usuários vão aprimorando seus domínios sobre as redes, sobre as
tecnologias e amadurecendo sua educação política e cidadã, passamos a viver em
espaços que são mais dignos e solidários. Acreditamos que é necessário acreditar e
praticar ações que contribuam para a existência de uma consciência mais ampla e
profunda, visando o bem da sociedade enquanto seres humanos, e não enquanto
mercado financeiro. Os protestos e manifestações tendem a continuar, articulados
pelas redes sociais, e há ainda outras maneiras de usar a tecnologia em favor da
democracia e da emancipação do indivíduo que precisam ser postas em prática.
Estamos falando de uma nova cultura, que existe em um novo espaço.
2.5 A cibercultura e o ciberespaço
78
Os termos cibercultura e ciberespaço são derivações do conceito de
cibernética, um termo que foi utilizado pela primeira vez num livro de Norbert Wiener,
de 1948, intitulado “Cybernetics”, no qual o autor fala sobre sistemas digitais
baseados em computadores e sobre a importância da informação, algo
extremamente embrionário naquela época, mas que passou a estimular mais
estudos nesse sentido, sobretudo com a participação de outros grandes cientistas,
como o renomado John von Neumann. Wiener é considerado por muitos como o pai
da cibernética.
Com o passar dos anos o termo foi sendo lapidado e passou a emprestar o
prefixo “ciber” para outras palavras, invocando sempre o significado de algo que se
realiza ou existe em um plano virtual, vinculado à computação e à internet. Então,
quando falamos em cibercultura e ciberespaço, estamos nos referindo à uma cultura
digital que depende de um espaço para acontecer que também é digital. Segundo
Lèvy (1999) “longe de ser uma subcultura dos fanáticos pela rede, a cibercultura
expressa uma mutação fundamental da própria essência da cultura” (p. 247). Lèvy
fala sobre um “dilúvio” informacional que atingiu a sociedade, junto com os aparatos
tecnológicos, fazendo emergir o conceito, algo que considera como “um fenômeno
irreversível e parcialmente indeterminado” (2010, p. 211).
O termo é eficaz e rapidamente compreendido para quando queremos
referenciar a sociedade globalizada atual, com sociedades interligadas, hábitos
universalizados e todos os efeitos oriundos da atual fase da história humana. Uma
cultura que deixa de ser totalmente analógica e passa ter uma existência virtual.
Para que ela exista, é preciso também haver um local, ou pelo menos uma
percepção de espaço que faça sentido. Assim, surge também o termo ciberespaço,
que abriga dados e conecta pontos de comunicação. Lèvy esclarece que:
A palavra “ciberespaço” foi inventada em 1984 por William Gibson em seu romance de ficção científica Neuromance. No livro, esse termo designa o universo das redes digitais, descrito como campo de batalha entre as multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural... O ciberespaço de Gibson torna sensível a geografia móvel da informação, normalmente invisível. O termo foi imediatamente retomado pelos usuários e criadores de redes digitais. Existe hoje no mundo uma profusão de correntes literárias, musicais, artísticas e talvez até políticas que se dizem parte da “cibercultura” (LÈVY, 1999:92 apud OLIVEIRA, 2011, p. 2).
79
A metáfora espacial também é pertinente para que as dinâmicas da
comunicação digital sejam melhores compreendidas por pessoas não especialistas.
De maneira geral entendemos o ciberespaço como o ambiente digital em que as
relações acontecem, sejam quais forem. É aquilo que vemos na tela de um
dispositivo, uma representação gráfica dos dados que estão gravados no
determinado disco rígido, ou em algum servidor externo. Os dados digitais ocupam
espaço físico, de modo que é preciso de discos fisicamente maiores para comportar
mais dados. No entanto, este espaço é totalmente irrisório perto daquele que seria
preciso para arquivar a mesma quantidade de informações no mundo analógico, isto
é, fora do ciberespaço.
No ciberespaço, muitas lógicas sociais também são alteradas. Lèvy (1999)
observa “o ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente
dos lugares geográficos (telecomunicação, telepresença) e da coincidência dos
tempos (comunicação assíncrona) ”. A comunicação rompe de vez as barreiras do
espaço geográfico e do tempo cronometrado. Ela é instantânea entre locais
extremamente distantes um do outro. Traços como esse nos fazem pensar sobre a
formação de uma inteligência que, de fato, é coletiva, criada por uma cibercultura.
Lèvy segue:
[...] nos casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positivo da alteração, de sua compreensão e apropriação. (LÈVY, 1999, p. 30).
Aqui Lèvy fala sobre a relação da cibercultura com o ciberespaço e comenta
sobre a exclusão que o novo sistema pode gerar para aqueles que não se apropriam
adequadamente das ferramentas tecnológicas vigentes. Contudo, e como já dito,
alterar a base técnica predominante de uma sociedade cria alterações que se
desenrolam lentamente e aos poucos passam a estar presentes nos hábitos dos
indivíduos. O processo de alteração mais lento não está na maneira como se utiliza
praticamente uma ferramenta, mas como se organiza a lógica do pensamento.
2.5.1 Uma nova lógica de pensamento
80
A era digital decretou a morte de um objeto que faz parte da vida de
praticamente todas as pessoas: a lista telefônica. Tudo bem que ela ainda existe,
mas a lógica de pensamento da população já amadureceu muito. Hoje em dia, que
precisa de um número de telefone, busca na internet. Tanto por ser bem mais rápido
e prático, quanto por geralmente encontrar ali mais do que um telefone. Encontra-se
mais informações relevantes que certamente influenciarão a decisão do usuário. O
telefone, aliás, só irá ser acionado caso essa pessoa sinta-se satisfeita e plenamente
atraída pelo conteúdo que encontrou.
O que muda no caso da lista telefônica (algo aplicável para centenas de
outros casos) é uma mudança na lógica de pensamento do indivíduo. Como se uma
chave fosse virada, ele agora utiliza a internet para buscar contatos, aceitando e
seguindo suas lógicas. A cibercultura talvez possa ser entendida como essa nova
maneira de pensar o mundo, a partir das possibilidades que a tecnologia oferece. É
por isso que vemos diferentes tipos de apropriações, invenções e inovações
tecnológicas aparecer corriqueiramente. Há tanto aqueles que constroem algo para
um uso específico, quanto aqueles que alteram o propósito de um objeto e acabam
usando-o para um outro fim. Sodré observa que:
[...] a tecnocultura - essa constituída por mercados e meios de comunicação, [...] implica uma transformação das formas tradicionais de sociabilização, além de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Implica, portanto, um novo tipo de relacionamento do indivíduo com referências concretas ou com o que se tem convencionado designar como verdade, ou seja, uma outra condição antropológica. (SODRÉ, 2002, p. 27).
Quando encaramos um problema, buscamos uma solução que seja coerente
com as ferramentas e os conhecimentos que temos à mão para encontrar uma
solução. Acionamos nossa base de referências e de experiências para tomar novas
decisões. Assim, quanto mais ferramentas e conhecimento estruturado conseguimos
acumular, melhor passam a ser nossas decisões perante as aporias da vida.
Contudo, agora conseguimos acessar experiências alheias e aprender com elas.
Conseguimos participar gratuitamente de fóruns de debates online que suprem os
anseios e abastecem com suficiente informação. Conseguimos nos comunicar
horizontalmente e mobilizar pessoas. Há uma nova lógica de pensamento instalada
e que se fortalece a cada dia.
81
2.5.2 Um ciberespaço de convívio
Mais do que um local digital de armazenamento de dados, a internet e,
sobretudo, as redes sociais digitais passaram a ser locais de convívio humano
digitalizado. A troca de informações entre pessoas não é algo frio, mas sim algo
capaz de muitas vezes suprir as necessidades emocionais humanas como a
saudade, a solidariedade, a raiva, a cumplicidade, o amor, entre tantos outros. Para
muitos, essa passou a ser a alternativa mais viável para manter relacionamento
social.
A questão importante não está exatamente na capacidade que todo o sistema
tem de proporcionar, por exemplo, uma vídeo-chamada entre pessoas, mas no fato
de as pessoas sentirem-se satisfeitas com esse tipo de interação. A aprovação dos
amigos demonstrada através de “likes” no Facebook e Instagram alimentam o ego e
o a autoestima de quem publicou. Muitas vezes, isso parece ser suficiente para
quem está habituado com a nova forma de pensamento, com a cibercultura e o
ciberespaço, pelo menos por alguns dias. Depois é preciso gerar um novo conteúdo
em busca de mais aceitação. Reconhecendo tal prática como verdadeira, podemos
pensar que parte da personalidade, das emoções e sensações humanas,
principalmente daqueles que se sentem parte da cibercultura, foram também
transferidas para o mundo digital, para o ciberespaço.
Se antes disso já podíamos constatar que a comunicação exercia influência
sobre o espaço geográfico, agora temos um novo conceito de espaço que é
totalmente inseparável das práticas de comunicação social. A união do conceito de
espaço geográfico com a comunicação por meios digitais é o foco do próximo
capítulo.
82
Capítulo III - A COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA E A
GEOGRAFIA HUMANA DE MILTON SANTOS
3.1 Introdução
A comunicação social e a geografia humana, apesar de se encontrarem em
departamentos diferentes dentro da academia, possuem muitos pontos de contato
no teor de seus estudos. Ambas trabalham com a matéria prima humana, o social
aplicado, e reconhecem o mundo como uma unidade viva e dinâmica, que se articula
e se organiza o tempo todo. Ambas percebem o espaço como um ecossistema
relacional que está sempre sendo construído e desconstruído, num movimento
contínuo entrelaçado pelas comunicações, os fluxos de informação, os sistemas de
objetos, sistemas de ações e a ocupação doo território.
Começamos a nos dar conta da proximidade dos campos ao perceber a
comunicação e a informação tornaram-se grandes forças de organização do espaço.
Se antes elas tinham um poder de influência que era limitado pelas incapacidades
técnicas de transmissão, hoje a comunicação digital generalizada está
revolucionando as formas de existência e interação humana. Essa revolução se
reflete nas formas de ocupação do espaço físico, concreto. Por espaço, utilizamos a
definição de Santos (1997) citada no capítulo primeiro, um ambiente ocupado e
ativado pela existência social.
Além disso, a fase conhecida como a “era da informação e comunicação” traz
consigo um novo conceito de espaço: o que no capítulo anterior chamamos de
ciberespaço, que possui uma racionalidade própria, com idiossincrasias inéditas e
aparentemente globais. Santos observa que:
Em nossa época, o que é representativo do sistema de técnicas atual é a chegada da técnica da informação, por meio da cibernética, da informática, da eletrônica. Ela vai permitir duas grandes coisas: a primeira é que as diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas. A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era possível. Por outro lado, ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo, permitindo, tem todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico. (SANTOS, 2001, p.25)
83
O intercâmbio dos modos de fazer que passa a acontecer entre as técnicas
diversas, promove um tipo de regulação que diminui justamente a diversidade e
altera a percepção da relação seminal entre o tempo e o espaço. Quando Santos
(2001) cita uma aceleração do processo histórico, faz referências às periodizações
históricas segmentadas pelas técnicas. Ou seja, o que antes servia para dividir as
épocas, agora serve um sistema que padroniza as atividades e deturpa severamente
uma realidade há muito estabelecida. Em suma, podemos dizer que a maneira como
nos comunicamos interfere diretamente no espaço que construímos, da mesma
forma com que o espaço pode influenciar a forma como as informações fluem,
afetando as comunicações. Essa relação funciona como uma engrenagem, em giro
constante. Não há como uma delas se mover sem interferir as demais. O processo
de construção da realidade, isto é, daquilo que reconhecemos como mundo,
perpassa necessariamente pelas questões da comunicação e do espaço geográfico.
No presente capítulo, trataremos dos pontos de interface que parecem ligar e
dialogar com a comunicação social e a geografia humana de Milton Santos. As
percepções e constatações desse notório intelectual brasileiro são de grande valia
para o estudo social e comunicacional, tanto do cenário brasileiro quanto mundial. O
espaço, o tempo, a informação e a comunicação são diferentes eixos que constroem
parte da existência, e que possuem complexas relações entre si. Nossa tentativa é
elucidar, mesmo que minimamente, algumas dessas relações que nos parecem urgir
no atual período, o mesmo que Santos chamou de técnico-científico-informacional.
3.2 Unicidade das técnicas de comunicação digital
O conceito de unicidade técnica trabalhado por Santos (1997), quando
colocado face aos meios de comunicação digital que hoje intermedeiam as relações
humanas, revelam que há em pleno emprego uma unicidade técnica comunicacional
e racional que exerce efeitos visíveis e invisíveis do espaço geográfico, que é social.
Sabemos que “o espaço social se realiza por técnicas racionais e não por técnicas
mágicas ou religiosas” (GERTEL, 1993, p. 22). Se tais técnicas, cada vez mais unas
empiricamente, possuem em seu âmago o transporte e de informações e a conexão
com uma rede global de comunicação, é possível presumir que a criação do espaço
geográfico é hoje, mais do que nunca, uma criação comunicacional.
84
É comunicacional tanto pela maneira como ocorre, sendo uma constante
negociação de sentidos baseada em símbolos e referências anteriores, o que acaba
exercendo influências no espaço físico real, quanto por criar, por si só, um novo
espaço, o ciberespaço. Podemos dizer ele é um “local” quase que completamente
comunicacional e informacional, que quando aglomera suficiente energia em
determinado ponto, exerce efeitos no mundo físico. É a ideia da comunicação como
“cimento social” que Maffesoli (2003) trabalha em seus estudos sobre a teoria pós-
moderna da comunicação. Para o autor:
A comunicação é a cola do mundo pós-moderno. Dito de outra forma, a comunicação é uma forma de reencarnação desse velho simbolismo, simbolismo arcaico, pelo qual percebemos que não podemos nos compreender individualmente, mas que só podemos existir e compreendermo-nos na relação com o outro. Nesse sentido, a ideia de individualismo não faz muito sentido, pois cada um está ligado a outro pela mediação da comunicação. (MAFFESOLI, 2003, p. 13).
Se consideramos então a comunicação como um cimento social, que edifica e
estabelece as estruturas sociais, poderíamos usar a metáfora para pensar que o
ciberespaço é constituído quase que completamente com cimento, pois, assim como
a comunicação, sua existência depende de meios e bases materiais (sociais ou
tecnológicas) que sustentem seu conceito e que expressem seus resultados. O que
seria a comunicação sem o ato de comunicar? O que seria o ciberespaço sem sua
representação gráfica em telas de dispositivos? É parte integral e indispensável dos
objetos que compõem o cenário atual o profundo engendramento da comunicação
digital com os fluxos severos de informação. Santos (1997) esclarece que:
Neste período, os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e de sua localização, eles já surgem como informação; e, na verdade, a energia principal de seu funcionamento é também a informação. (SANTOS, 1997, p. 190)
Acontece que, para que consiga alcançar uma escala global, as
intencionalidades dos objetos técnicos, os meios de comunicação e as interfaces
exibidas nas telas de dispositivos estão passando a ser muito parecidos, as vezes
idênticos na grande maioria dos países, com técnicas de uso e de produção
igualmente padronizadas. Esse fenômeno acontece a partir do momento em que se
assume a informação como uma das principais energias organizadoras do espaço,
85
pois “numa era da informação, talvez a de hoje, não se pensa por si mesmo, mas se
é pensado, formado, inserido numa comunidade de destino. Vale repetir: a forma é
formante. A informação também liga, une, junta” (MAFFESOLI, 2003, p.14). Para além
das necessidades básicas e invariáveis da sobrevivência, no início da história das
sociedades, os diferentes povos desenvolviam diferentes estilos de vida, métodos de
convívio e de cultura, orientados pelos fatores locais e geográficos de sua existência.
Santos (1997) diz que:
Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas suas partes ou aspectos considerados fundamentais ao exercício da vida, valorizando, diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condições naturais que constituíam a base material de existência do grupo. (SANTOS, 1997, p. 187).
As formas de comunicação seguiam essa lógica enraizada no ponto
geográfico em que a comunidade se instalava, sendo determinadas por fatores e
necessidades essencialmente naturais que se traduziam nas atividades e nos
costumes de cada grupo de pessoas localizado no tempo e no espaço. Como vimos
no capítulo primeiro, a evolução nos leva para um período técnico, representado
pelo início da mecanização dos processos, criação das máquinas e artificialização
da base material da existência humana. A comunicação também passa a equivaler e
atender as necessidades do ambiente, como um instrumento organizador das
relações e das estruturas de poder e de produção. Hoje, o fluxo livre de informações,
que são essencialmente formadoras e transformadoras, junto com a evolução dos
aparelhos tecnológicos e da ciência em favor da indústria, permite que seja mais
fácil popularizar objetos e técnicas com forte valor ideológico embutido. Surge “algo
novo, que estamos chamando de meio técnico-científico-informacional” (Santos,
1997, p. 190).
A principal diferença do período atual para os anteriores é que, agora, a
informação (junto com a comunicação), passa a ter um papel quase protagonista no
cotidiano do cidadão. A mudança não é instantânea e podemos dizer que estamos
passando por essa transformação, mas se observa com significante clareza que as
práticas e técnicas de comunicação e informação assumiram um papel de centro na
existência social e no espaço geográfico. Se antes a informação era utilizada como
meio para diversos fins, hoje ela passa a ser o fim de atividades diversas, pois quem
não domina as técnicas de comunicação contemporânea, mesmo que minimamente,
está sujeito a ser (ou sentir-se) excluído do sistema. Verdadeiramente, a
86
“comunicação e informação descrevem um modus vivendi característico da pós-
modernidade.” (MAFFESOLI, 2003, p.14).
As consequências são inúmeras. A apropriação popular da internet faz com
que o consumo de informações aumente, gera uma demanda intelectual massiva e
praticamente obrigou os espaços a se adequarem para seus fluxos. Os objetos
passam a ser feitos para atender essas novas demandas, pois agora “a informação
é o vetor fundamental do processo social e os territórios são, desse modo,
equipados para facilitar a sua circulação” (Santos, 1997, p. 191). A influência da
informação no cotidiano das massas e no espaço geográfico é algo que já podia
constatado há algum tempo, sem saber que a continuidade do movimento técnico-
científico-informacional atingiria os níveis de interação e intensidade que
observamos hoje, aproximadamente 15 anos após a virada do século:
O papel crescente da informação nas condições atuais da vida econômica e social permite pensar que o espaço geográfico e o sistema urbano considerado como o esqueleto produtivo da Nação, são atualmente hierarquizados por fluxos de informação superpostos a fluxos de matéria não propriamente hierarquizantes. Os objetos são utilizados segundo um modelo informacional que amplia a esfera do trabalho intelectual; na verdade, os novos objetos já nascem com um conteúdo em informação, de que lhe resultam papeis diferenciados na vida econômica, social e política. (SANTOS, 1988, apud GERTEL, 1993, p. 17.)
Ao adequarmos os sistemas de objetos e as técnicas para atender e realizar
os fluxos de informação que possibilitar a comunicação, construímos uma existência
material artificial, que atende os interesses ideológicos do processo de globalização,
mas que também oferece aos usuários uma forma extremamente convidativa de
relacionamento social, através da digitalidade. Como são objetos que já possuem
em informação e racionalidade em sua própria existência, o apelo comercial é forte e
sua proposta de uso também. Santos reconhece essa característica ao dizer que
A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as quais, ao contrário das técnicas das máquinas, são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que o seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas doces estarão a serviço do homem. (SANTOS, 1999, p.2)
O processo de globalização simplesmente não se sustentaria sem que
houvesse a tecnologia e suas respectivas técnicas, mas principalmente se esses
87
objetos não exercessem a sedução que faz com que os indivíduos não só os
aceitem, mas não vivam separado deles.
Os atores que abastecem a sociedade com esse aparato são os mesmos que
criam as demandas e intelectuais e bombardeiam os indivíduos com estímulos de
adesão aos costumes e práticas desse novo momento, levando em consideração
que aquilo que circula na rede muitas vezes “são informações pragmáticas,
manipuladas por uns poucos atores, em seu próprio benefício. O mercado
informático é controlado por um punhado de firmas gigantes, situada num pequeno
número de países. (SANTOS, 1997, p. 161), lembrando que o autor escreveu isso
sem conhecer o nível de controle que empresas como o Google ou o Facebook
atingiram. Assim, há um trabalho corroborado no sentido de readequar os espaços e
os tempos de forma que passem a atender e expressar a dinâmica da vida
contemporânea: Santos aponta que:
Os espaços assim requalificados atendem sobretudo aos interesses dos atores hegemônicos da economia, da cultura e da política e são incorporados plenamente às novas correntes mundiais. O meio técnico-científico-informacional é a cara geográfica da globalização. (SANTOS, 1997, p. 191).
Transitar pelos novos espaços, que são, portanto, essa expressão geográfica
da globalização, nos leva a reflexões sobre como a comunicação tem acontecido
cotidianamente. Como a unicidade das técnicas de comunicação e sua ampla
aceitação estão refletindo no dia a dia das pessoas, dos grupos sociais, dos
movimentos e instituições, dos estados e nações? Dizer que vivemos na era da
informação e da comunicação é uma afirmação que pode esconder uma ideia de
que, agora, há uma alta eficiência comunicacional entre os indivíduos, que os dados
são transformados em informações relevantes para a vida daqueles que aceitam
participar das redes sociais digitais, ou que estar inserido no sistema vigente
significa necessariamente ser bem situado, esclarecido e detentor dos
conhecimentos disponíveis ao consumo.
3.2.1 Comunicação digital e compreensão mútua
Por vezes, a cultura globalizada nos coloca diante do diverso. Antes da era
digital, a possibilidade de visualizar uma notícia internacional iria depender da
gravidade do acontecimento e dos recursos técnicos disponíveis para a transmissão
88
dessa mensagem. A notícia fluía por vias restritas e seu grau de penetração nas
rugosidades do espaço social era menor. O espaço e o tempo ainda representavam
barreiras a serem ultrapassadas pela comunicação. Mesmo com o rádio, a televisão
e o telefone, a oralidade mantinha um nível de importância maior nas relações
humanas. Não que a comunicação oral tenha deixado de ser importante. Ela
continua sendo, por meio da linguagem, uma das melhores (senão a melhor) formas
de expressão que o indivíduo pode desenvolver. Mas é inegável que a comunicação
digital, via mensagens de texto em plataformas, ocupou um grande lugar na vida dos
indivíduos e diminuiu a utilização oralidade face a face. Uma pessoa que exerça
suas atividades pela internet, por exemplo, pode se comunicar com diversas
pessoas, particular ou publicamente, sem que emitir uma única palavra sonora, tudo
via mensagens.
Hoje, todavia, a generalização dos fluxos de comunicação nos coloca
constantemente em contato com notícias e informações de realidades alheias. Ao
obter conhecimento de outras culturas, de outros modos de vida, poderíamos supor
que as comunidades humanas passariam a se entender melhor, seriam mais
diplomáticas e menos violentas umas com as outras. Não apenas aquelas que
habitam em locais diferentes, mas que possuem características físicas, culturais e
religiosas diferentes. Já que todo tipo de informação é mais acessível que antes,
poderíamos estar próximos a eliminar todo tipo de preconceito, que tem a ignorância
como terreno fértil. Com o acesso à informação, as pessoas passariam a adquirir
mais conhecimento e deixariam de ser intolerantes. Entenderiam com mais
facilidade que existem outros modelos de vida e que o respeito é um valor
verdadeiramente global. O que estamos querendo dizer é que a humanidade
conectada por redes poderia ser o princípio de uma humanidade conectada por
valores, pois estamos focando o pensamento na comunicação enquanto essência, e
não necessariamente enquanto prática. É bem verdade que:
Novas palavras surgem para rotular velhas práticas ou velhas palavras são ressignificadas para caracterizar a nova força de práticas sempre existentes. Comunicação e informação dão nova potência a um dos mais sólidos arcaísmos: estar em relação. Mesmo se agora se trata de relações mediadas tecnologicamente. As ditas ciências da comunicação e da informação têm dificuldade para pensar o mundo sensível e compreender essa vibração em comum. Prefere-se então focalizar coisas aparentemente mais objetivas, deixando-se de lado o cerne da questão: o que
89
comunicar quer dizer? Estar junto, estar em relação, estar em vibração comum. (MAFFESOLI, 2003, p.16)
O pensamento do autor expressa bem o conceito amplo e pleno da
comunicação, e parece não haver impedimentos técnicos para que ela prospere.
Entretanto, nem tudo é técnica. Wolton (2006) observa a questão de outro ponto de
vista, mostrando que o fato de estarmos mais visíveis e mais acessível, parece estar
exercendo um outro tipo de influência sobre as pessoas. O contato com o diferente
pode estar aumentando a tensão entre grupos e isso começa também a influenciar
os espaços. Santos reconhece que “o período histórico atual vai permitir o que
nenhum outro período ofereceu ao homem, isto é, a possibilidade de conhecer o
planeta extensiva e profundamente.” (2001, p. 31). Essa possibilidade faz com que
as diferenças culturais se evidenciem a ponto de gerar conflitos entre diferentes
grupos sociais. Santos reconheceu que “as novas condições técnicas deveriam
permitir a ampliação do conhecimento do planeta, dos objetos que o formam, das
sociedades que o habitam e dos homens em sua realidade intrínseca.” (2001, p. 38),
mas realizando um diagnóstico atual, podemos dizer que salta aos olhos novos
movimentos de repressão, opressão, de crimes de ódio, separatistas ou
ultraconservadores, que também se consolidam com base nas novas técnicas
unificadas de comunicação digital, sendo que muitas vezes seus atos em si
acontecem inteiramente dentro do ciberespaço. Da mesma forma como grupos se
organizam através das redes para realizar manifestações em busca da liberdade ou
da melhoria da qualidade de vida, há grupos que se utilizam das ferramentas para
propagar atos de violência. O ponto é que, ao mesmo tempo que o acesso à
informação nos dá conteúdo para sermos melhores enquanto humanos, também
alimenta aqueles que procuram brechas para realizar atos vis.
Os movimentos terroristas, por exemplo, também passam a se apropriar da
internet para mobilizar seus seguidores, propagar conteúdos de ódio, organizar
ataques e conseguir informações estrategicamente valiosas de seus alvos. Unificar
globalmente as bases técnicas de informação e comunicação é algo que apresenta
benefícios surpreendentes, mas ao mesmo tempo vulnerabiliza questões de
segurança internacional e individual, pois os meios de obter informações e
programar os sistemas que realizam a vida passam a ser os mesmos em qualquer
lugar do mundo. Casos emblemáticos como o de Julian Assange e os vazamentos
do seu site, WikiLeaks, ou do grupo de hackers que se autointitula Anonymous,
90
revelam perspectivas importantes do novo cesto de possibilidades que a unicidade
das técnicas de informação e o avanço da globalização trazem consigo. O acesso ao
conhecimento é um recurso que serve a todos e ele pode ser utilizado tanto para
fazer prosperar a compreensão mútua entre os povos, quanto para promover atos
que declinam as relações diplomáticas. São consequências aparentemente
inevitáveis da fase que a sociedade atravessa, que demanda uma série de novas
reflexões.
Se busca-se abastecer globalmente a sociedade com uma série de objetos e
sistemas técnicos que são unificados em suas aplicações e modos de uso, é preciso
estar ciente dos aspectos negativos que isso pode trazer ao próprio sistema
estabelecido.
3.3 Comunicação digital reorganizando o espaço e o tempo
Um outro ponto de contato entre a ideia de criação do espaço proposta por
Santos (1997) e a comunicação social contemporânea pode ser observada em
adequações e reorganizações nas infraestruturas dos ambientes que abrigam a vida
humana. A mudança de uma base analógica para digital e a popularização dos
aparelhos de acesso à internet tem feito órgãos públicos e estabelecimentos
privados adequarem seus espaços para atender a demanda social de conexão que
hoje urge na sociedade. Podemos dizer que um espaço de convívio, seja profissional
ou não, que não oferece aos frequentadores um sinal de internet, sem falar nos
pontos de energia elétrica para carregar os aparelhos, são menos atraentes aos
eventuais consumidores. Criou-se em bem pouco tempo uma dependência de
conexão fortemente explícita nos hábitos dos cidadãos hodiernos. As alterações no
espaço geográfico começam a aparecer, induzidas por esse novo comportamento
humano. Talvez fosse sobre isso que Santos estivesse se referindo quando diz que
“com a globalização, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se torna
funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da
história.” (2001, p. 81). Ou seja, os locais passam a ser adaptados às novas práticas.
Quando falamos em alterações no espaço geográfico, referimo-nos ao
conceito de espaço proposto por Santos, isto é, uma instância social, aliado à ideia
de espaço público enquanto um lugar de todos, acessível a todos, aquele que se
91
difere do espaço privado. Um elemento essencial para a formação das cidades e
centros urbanos. Lugares como as ruas, as praças e parques, nos quais os
indivíduos transitam ou permanecem por um período, se reúnem, protestam e
conflitam, realizam atividades de lazer ou outras condizentes com o espaço público,
isto é, um ambiente de não-privacidade. Tais espaços são constantemente
readequados e, não raro, resinificados, dando suporte ao conceito habermasiano de
esfera pública. Em sua definição mais atual, Habermas (2003a) sugere que a esfera
pública é o local onde as ideias são colocadas e debatidas por aqueles que possuem
uma “opinião pública”. De acordo com o autor, “a esfera pública pode ser descrita
como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e
opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se
condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas” (HABERMAS, 2003b, p.
92). Ainda segundo o autor, pode acontecer de a esfera pública coincidir com o
espaço público, ou seja, acontecer alocada nele, mas não há uma relação de
necessidade nesse caso, sobretudo com as redes de comunicação digital. É um
fenômeno que o autor vai chamar de “generalização da esfera pública”:
Quanto mais elas [as esferas públicas] se desligam de sua presença física, integrando também, por exemplo, a presença virtual de leitores situados em lugares distantes, de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia, tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para a generalização da esfera pública (HABERMAS, 2003b, p. 93).
Se antes a esfera pública tinha maior dependência do espaço concreto, hoje
ela assume novos formatos em novas estruturas, principalmente com a
popularização do acesso à internet. Por abrigar os debates de opiniões e originar
uma opinião pública, possui importância política ímpar que se reflete na vida privada
dos indivíduos. Assim, o acesso à internet passa a ter importância política e abre um
vasto campo de debate e discussões acerca das novas dinâmicas de comunicação e
o que pode ou não ser considerado como esfera pública.
A guinada ascendente dos meios de comunicação digital na vida cotidiana foi
tão severa que, em maio de 2011, a ONU (Organização das Nações Unidas)
submeteu ao conselho de direito humanos um relatório especial chamado Report of
the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of
opinion and expression (Relatório Especial sobre a promoção e proteção do direito à
92
liberdade de opinião e expressão), tratando do direito individual de acesso à internet.
O relatório vai de encontro ao bloqueio do sinal de internet e restrição de sites por
censura de conteúdos praticado por governos de países como o Egito, Turquia,
China, Arábia Saudita, Irã, entre alguns outros. Segundo o relatório, interromper o
sinal de internet é violar o direito humano de liberdade de expressão, ou seja, o
direito de acesso à internet passa a ser um direito humano reconhecido.
O relatório se fez necessário numa época em que sérias restrições de acesso
à rede tornaram-se mundialmente públicas. Em 2011 no Egito, durante os dias de
tensos protestos que terminaram tirando o presidente Hosni Mubarack do poder,
foram registrados cortes nos serviços de internet no país inteiro. O governo, ao
perceber que as mobilizações estavam sendo organizadas através de sites de redes
sociais, mandou interromper o serviço e desconectou o país num movimento
autoritário de censura. Castells conta que:
Desde o primeiro dia dos protestos, o governo egípcio censurou a mídia no país e tomou medidas para bloquear os sites de mídia social que ajudaram a convocar os manifestantes e a difundir notícias sobre o que estava ocorrendo nos locais públicos. Em 27 de janeiro, ele bloqueou as mensagens de texto e os serviços de mensagens do Blackberry. Nas noites de 27 e 28 de janeiro, o governo egípcio bloqueou quase totalmente o acesso à internet. (CASTELLS, 2013, p. 37).
As duas ferramentas mais utilizadas pelos manifestantes, o Facebook e o
Twitter, ficaram indisponíveis. No entanto, o efeito dessa atitude foi reverso. Ao invés
de desarticular o movimento, o governo do Egito inflamou ainda mais a população e
chamou ainda mais a atenção do mundo. Com criatividade e uma grande ajuda de
grupos internacionais, os manifestantes egípcios passaram a utilizar outros meios de
comunicação para continuar mobilizando e informando a população. Foram criados
mecanismos que utilizaram as redes de telefonia fixa e de fax, dentre outras redes
que se mantiveram, para integrar e disseminar as mensagens pertinentes ao
movimento. Castells relata que:
[...] diferentes meios contribuíram para a formação de uma densa rede multimodal de comunicação que manteve o movimento conectado com o Egito e com o mundo em geral. Militantes publicaram um manual de instruções sobre a comunicação por diferentes canais, e qualquer informação enviada por um dos múltiplos canais ainda disponíveis seria disseminada por meio de panfletos impressos e distribuída por pessoas reunidas nas praças ocupadas e nas manifestações. (CASTELLS, 2013).
93
Por fim, o governo foi deposto e a internet restabelecida em 1º de fevereiro
daquele ano. O caso emblemático do Egito acendeu a discussão sobre o direito de
acesso à internet e mostrou a importância das redes sociais digitais nos processos
contemporâneos de organização e mobilização social. Desde então, pode-se
observar diversas iniciativas de promoção do acesso à internet e o debate sobre
esse novo direito humano estabelecido. Na cidade de São Paulo podemos tomar
como exemplo o projeto “Wifi Livre SP”, que disponibiliza o acesso livre e gratuito à
internet em 120 praças e locais públicos da cidade, através de redes sem fio. Apesar
da velocidade de conexão ser considerada baixa para os padrões atuais (são 512
Kpbs efetivos por usuário), não se pode negar que disponibilizar o acesso gratuito ao
público representa um grande avanço dos direitos sociais e civis, uma poderosa
ferramenta de comunicação e cidadania. A infraestrutura garante o acesso por meio
de dispositivos que se conectem pelo sistema wi-fi e assegura a neutralidade do
acesso, deixando claro que “o prestador de serviço (empresa que fornece o sinal)
não está autorizado a filtrar o tráfego por IP de origem ou de destino, por aplicação
ou por conteúdo, exceto para cumprir legislação em vigor”.
Essa evidência de adequação de áreas públicas para atender as novas
demandas sociais de comunicação digital mostra que, de fato, há um movimento de
readequação dos espaços com o objetivo de facilitar o acesso àquilo que Santos
(1997) chamou de instrumentos que são “meios para conhecer”. Para o autor, “as
porções do território assim instrumentalizadas oferecem possibilidades mais amplas
de êxito que outras zonas igualmente dotadas de um ponto de vista natural, mas que
não dispõem desses recursos de conhecimento.” (SANTOS, 1997, p.193). Os
exemplos explorados por Santos nesse caso são de equipamentos que realizam
análises meteorológicas ou servem a agricultura e indústria. Mesmo assim, o sentido
explorado é similar, senão o mesmo: equipar o território com instrumentos que
permitam o acesso a dados e gerem conhecimento. Entendemos ainda que, no caso
das praças em São Paulo, possibilita-se também a comunicação digital, além do
acesso a informações. Com o aumento do número de pessoas com utilizando a
internet, há outros desdobramentos que se expressam no espaço urbano.
94
3.3.1 Menos locomoções para o mesmo resultado
Buscando um efeito prático da comunicação social por meios digitais na vida
do indivíduo, pensamos que, agora, as pessoas saem menos de seus lugares
geográficos para atividades que antes necessariamente tinham que acontecer
presencialmente. Não encontramos um estudo que comprove a percepção, mas as
evidências nos fazem pensar que muito provavelmente é isso que acontece. A
possibilidade de comunicação digital faz com que as pessoas se locomovam menos,
usem menos o espaço público urbano e “transitem” mais pelo ciberespaço.
Podemos começar buscando exemplos do mundo profissional. Muitas
empresas equipam suas salas com dispositivos audiovisuais que permitem a
realização de reuniões em tempo real entre pessoas através de uma conferência via
vídeo. A prática também é aplicada em cursos de ensino à distância, onde apenas
um professor pode dar aula para centenas, talvez milhares de alunos, que estão em
diferentes localidades, também em tempo simultâneo. O serviço de comunicação
através de voz e vídeo em tempo real já nem podem ser considerados novos. O
Skype, que é um dos mais populares softwares de comunicação por voz e vídeo via
internet, iniciou suas atividades em 2003. Os exemplos seguem com o Google
Hangout, ou o serviço que funciona nos dispositivos da Apple, o Facetime, todos
utilizados para ligações de vídeo via internet.
Além da utilização profissional, isto é, voltada para práticas mercadológicas,
podemos pensar no plano de convivência social e entretenimento. Também
buscamos e encontramos esse tipo de satisfação no mundo digital e certamente,
inúmeras vezes, deixamos de sair às ruas por isso. Comunicar é também uma forma
de lazer, uma atividade que se faz em um momento de ócio no cotidiano:
A comunicação pode ser, como nas conversas sem razão de ser de todo dia, um ato em si: conversar por conversar, para estar junto, para passar o tempo, para dividir um sentimento, uma emoção, um momento, um pequeno nada de cada dia. Comunicar por comunicar. (MAFFESOLI, 2003, p.17).
Lembremos das já saudosas (mas ainda ativas) salas de bate papo online,
que abrigam grupos de pessoas em um ambiente digitalizado que faz referência
metafórica à uma sala onde a conversa flui livremente. Linguagem verbal e por
imagens são postadas, é possível interagir, entrar e sair. Na mesma lógica seguem
diversos outros exemplos de aplicações e softwares que permitem diferentes tipos
de relação não profissional, inclusive com aspectos sexuais, que certamente faz com
95
que as pessoas se satisfaçam sem que precisem se locomover fisicamente. Agora,
se pensarmos em tudo que pode ser feito via internet e que antes precisava ser feito
pessoalmente, deparamo-nos com uma lista relativamente grande. Multiplicar isso
pela população virtualmente ativa de um local, isto é, que acessa a internet com
frequência, nos ajuda a entender que o efeito desses fenômenos no tráfego de uma
cidade pode ser realmente grande. E por que pensamos no efeito sobre a cidade?
Pois:
A principal forma de organização social sobre o território são as cidades. O ambiente urbano é organizado de maneira a atender as necessidades diárias de seus habitantes e, atualmente, o papel da informação na urbanidade que toma conta do espaço processa o meio externo ao Homem, porém produzido como extensor das relações sociais, as funções dos elementos da comunicação recriam o espaço geográfico. (GERTEL, 1993, p. 18.).
Se estamos falando de locomoção, estamos falando em deslocamento físico
num intervalo de território. O espaço, contudo, não é o único a ser transposto
facilmente quando se utiliza uma tecnologia de comunicação digital para realizar
uma função que poderia ser feita presencialmente, mas também o tempo é reduzido
a quase zero. A locomoção de um ponto para outro numa cidade populosa pode ser
algo penoso e demorado, com o trânsito provocado por excesso de veículos e a
lotação dos transportes públicos. No meio digital isso simplesmente não existe. Há
também os riscos habituais que uma cidade oferece, como acidentes, assaltos e
afins. Vemos então que, comparando a mesma atividade no mundo físico e no
ciberespaço, há uma diminuição drástica dos elementos negativos que podem atingir
os transeuntes do espaço público urbano tradicional, diante das possibilidades do
ciberespaço.
Como se não fosse suficiente, ao economizar tempo e distância de
deslocamento, se economiza dinheiro, uma outra grande influência social trazida
pela comunicação mediada por computadores. Menos pessoas circulando na rua
significa menos dinheiro circulando também. De uma forma ou de outra, esse
dinheiro também passa a circular pela internet. Basta olhar para os números
crescentes de faturamento do comércio eletrônico ano após ano. Sobre o tecido
social formado por questões da relação entre espaço e tempo, realidade e
digitalidade, comunicação e informação, Schwingel disserta que:
96
Para as teorias sociais clássicas, o tempo domina o espaço, o que condiz com a afirmação de Lemos (1996) de que o espaço deixa de existir em função do tempo real no ciberespaço. No entanto, Castelss, ao analisar a nova lógica espacial de uma sociedade global e informacional em que os fatores econômicos poderão “ser reduzidos à geração de conhecimento e a fluxos de informação” (Castells 1999:405) afirma que na sociedade em rede é o espaço que organiza o tempo. (SCHWINGEL, 2004, p. 45)
Em outras palavras, na lógica espacial contemporânea, que envolve a
conexão por redes de comunicação, o tempo parece ser mais influenciado pelo
espaço do que o contrário. Deduzimos assim, que, se uma atividade é oferecida em
uma versão online de si mesma, independente de qual for, há fatores importantes
que podem fazer com que o indivíduo que tem acesso à rede prefira ficar em casa e
realizá-la online. Os efeitos dessa opção são variados e numerosos, mas há um
deles que nos parece óbvio e anterior aos demais: são menos pessoas circulando
pelos espaços públicos urbanos, ou pelo menos, com uma frequência menor.
3.3.2 Quem se locomove, o faz melhor
A tecnologia não atende apenas aqueles que preferem permanecer em casa
quando podem escolher. Ela também busca facilitar a locomoção no espaço das
pessoas que precisam ir à algum lugar. Muitas grandes cidades passaram a se
equipar de maneira a fornecer dados para que seus munícipes transitem com mais
eficiência. Mais uma vez trazemos a ideia dos “meios para conhecer” de Santos,
quando o autor diz que “numa região desprovida de meios para conhecer, [...] a
mobilização dos mesmos recursos técnicos, científicos, financeiros e organizacionais
obterá uma resposta comparativamente mais medíocre.” (1997, p. 193). Nesse
quesito, talvez o melhor exemplo de um meio para conhecer que, além de coletar
dados, os torna estruturados, processa e entrega pronto ao usuário na forma de uma
informação extremamente útil e inteligível, é o aplicativo para dispositivos móveis
Waze.
Para os pouco familiarizados, o Waze é um software gratuito em formato de
aplicativo para dispositivos móveis que calcula e traça rotas de trânsito para seu
usuário, após este informar seu destino. O conjunto de dados processados e os
sistemas de comunicação digitais envolvidos nesse processo são surpreendentes
em seus resultados. O Waze utiliza a localização por GPS (global position system),
juntamente com um vasto banco de dados colaborativo, criado pelos próprios
97
usuários, para realizar o cálculo de rota, considerando informações determinantes,
como tráfego congestionado, acidentes no caminho, comandos policiais, e uma série
de outros eventos que podem atrapalhar o percurso. Assim, ele sugere a rota mais
rápida, mesmo que seja uma rota alternativa. Também é possível escolher a rota por
proximidade, mas no geral a rota orientada pelo menor tempo é a sugerida pelo
padrão do aplicativo. Dentre as funcionalidades, também é possível visualizar outros
usuários no mapa em tempo real, ver o tempo estimado de congestionamento,
encontrar estabelecimentos, cadastrar seus locais preferidos como “casa” e
“trabalho”, adicionar mais de um destino à uma mesma viagem, tornar-se visível ou
invisível para os demais usuários, entre outras coisas que facilitam muito o
transporte por veículos no ambiente urbano.
O sistema do Waze também é programado para estudar e “memorizar” os
hábitos de seus usuários, tornando-se uma poderosa ferramenta personalizada.
Após alguns dias realizando o mesmo percurso no mesmo horário, por exemplo, ele
“entende” esse movimento como um hábito e manda alertas sugerindo o caminho.
Ele também se integra à agenda virtual da pessoa e monitora o trânsito, enviando
alertas que avisam com antecedência a hora que o usuário deve sair de casa para
chegar ao compromisso no horário marado.
Quando analisamos o Waze como um serviço que ajuda indivíduos a
encontrarem caminhos pelas tramas de um mapa urbano, pode parecer que sua
função é a mesma que a de um aparelho GPS comum. Enxergamos, porém, dois
principais motivos que fazem do Waze um ótimo exemplo de como as tecnologias de
comunicação digital estão exercendo influência na realidade espacial das cidades:
1) o Waze é um software social e colaborativo: ele permite que as pessoas se
comuniquem e colaborem umas com as outras. Se um Wazer (nome dado ao
usuário do aplicativo) presencia um acidente, ele pode cadastrar com poucos toques
esse evento no mapa real da cidade. Com isso, um alerta é disparado aos usuários
próximos e o sistema passa a considerar essa informação no cálculo das rotas
solicitadas à partir de então. Ele se encarrega de avisar a todos que pretendiam
passar naquela rua. Dentro ainda sua sua característica social colaborativa, também
é possível compartilhar caminhos e rotas com amigos, familiares ou a quem possa
interessar, para que saibam para onde você está indo, de onde está vindo, como
98
está o caminho e a que horas o usuário vai chegar. O sistema mantém as pessoas
atualizadas com informativos disparados de tempos em tempos.
2) a popularização dos usuários de Waze faz dele um sistema que rege o
trânsito das cidades: tirando o fico do usuário individual e ampliando para todos os
usuários, que em 2014 já somavam 50 milhões em todo mundo, o que temos é um
sistema gerenciando o trânsito de veículos nas cidades, alterando rotas
automaticamente e dividindo os fluxos de automóveis. O poder representado nessa
atividade é gigantesco, pois atribui-se a um algoritmo, um sistema criado e
programado por uma empresa privada, a função de administração do tráfego urbano.
Ele pode criar ou dissipar congestionamentos, desviar rotas e causar uma série de
outros acontecimentos imprevisíveis. No geral, podemos dizer que o Waze sempre
busca amenizar aglomerações de veículos em uma única via, distribuir melhor a
ocupação das vias públicas e engrenar melhor os fluxos de automóveis, mas os
desdobramentos da utilização massiva do aplicativo são diversos. Positivos como
uma pessoa que chega mais cedo ao trabalho, duvidosos como a possível alteração
no número de acidentes de trânsito (para mais ou para menos?), ou negativos, como
sugerir uma rota rápida, mas urbanamente insegura, como nos casos na cidade do
Rio de Janeiro em que usuários foram guiados por caminhos dentro de favelas e
acabaram assaltados ou mesmo mortos3.
Todas essas percepções de alterações efetivas na reorganização dos
espaços acarretadas pelo uso de tecnologias de comunicação digital são pertinentes
pois, quando falamos em “alterar o espaço”, não há necessariamente uma alteração
física na cidade, uma edificação como um monumento representativo da mudança.
O espaço, como visto no capítulo primeiro nos conceitos de Santos (1997) é
justamente um conjunto de fixos e fluxos, de sistemas de objetos e sistemas de
ações, com profundo valor social, ou seja, que depende da atividade humana, não
apenas uma paisagem concretizada em objetos naturais ou artificiais. O autor
explica que “o sentido que têm as coisas, isto é, seu verdadeiro valor, é o
fundamento da correta interpretação de tudo que existe” (SANTOS, 2001, p. 32).
Uma leitura semelhante é feita por Gabrioti:
Quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre os objetos como realidade física, mas como realidade social, formas-conteúdo, isto é, objetos sociais já valorizados, aos quais ela (a
3 Notícia citada nas referências.
99
sociedade) busca oferecer ou impor um novo valor. (GABRIOTI, 2012, p. 65).
Se consideramos a atribuição de novos valores à objetos do cotidiano como
uma reorganização do espaço, assumimos que os símbolos e conteúdos presentes
nos objetos representam parte importante na ontologia do espaço. Isto é, uma
racionalidade que habita cada objeto, que apresenta uma proposta de uso, mas que
varia com a interpretação subjetiva de cada indivíduo. A racionalidade do indivíduo e
do objeto se chocam e resultam em uma outra, que por sua vez influencia o espaço.
Portanto, o valor do espaço não é objetivo, mas varia com os conteúdos racionais
atribuídos pelos que o habitam. Por isso, são diversos: “Há espaços marcados pela
ciência, pela tecnologia, pela informação, por essa mencionada carga de
racionalidade; e há outros espaços. Há os espaços do mandar e os espaços do
obedecer. (SANTOS, 1997, p. 242).
Começam a tomar forma no horizonte tecnologias ainda mais novas que
passam a trabalhar com o conceito e aplicação de realidades virtuais atribuídas aos
espaços reais. São alterações tão profundas na percepção cognitiva humana, que é
difícil prever quais serão os novos desdobramentos sociais e o que passaremos a
assumir, enquanto sociedade, como realidade.
3.4 A vida cotidiana monitorada por objetos
Quando Santos nos fala sobre os sistemas de objetos, começamos a tomar
consciência sobre a quantidade deles que nos cercam. O indivíduo contemporâneo
tem mais contato com aquilo que é artificial do que com o naturalmente existe.
Diferente das outras espécies que habitam o planeta, o ser humano desde sua pré-
história apresenta a capacidade engenhosa de construir coisas diferentes das que
existem, combinando e transformando elementos, sempre no sentido de facilitar
algum processo que realiza para sobreviver. A princípio, como já visto, os objetos
eram rudimentares. A complexificação dos modos de vida, das organizações sociais,
dos modos de trabalho e das necessidades humanas fez com que os objetos
seguissem na mesma toada e tornassem-se muito sofisticados, com alto nível de
tecnologia agregada.
100
O nível de complexidade que atingimos na atualidade é muito alto se
comparado aos dos nossos antepassados. Os objetos computacionais, que
começaram com os computadores, mas que agora se multiplicam em outras formas,
roubaram a cena e parecem ter deixado os demais num plano inferior de sofisticação
e importância. Um dos motivos é o fato de que os dispositivos computacionais
recentes são extremamente eficientes para realizar as práticas da vida moderna.
Com um único smartphone, por exemplo, é possível realizar o trabalho de um
telefone comum, de um gravador de áudio, de uma câmera fotográfica, uma câmera
de vídeo, o trabalho tradicional do correio (mensagens de textos diversas), e de
inúmeras outras tarefas que se fundem em um único aparelho, que além de tudo é
esteticamente atraente (comparando com o design de aparelhos antigos), possuem
uma fonte de alimentação energética própria, isto é, baterias elétricas recarregáveis,
são pequenos, leves e compactos. Todas essas características podem soar banais
hoje em dia, por terem se tornado comuns. Elas foram verdadeiramente banalizadas,
já que os equipamentos desse tipo se tornaram muito popular num curtíssimo
espaço de tempo.
Os sistemas de objetos computacionais assumiram uma posição de evidência
que ofuscou fortemente os demais sistemas. Acontece como que uma naturalização
do que é menos sofisticado. Mas, observando a função desses dispositivos por um
outro ponto de vista, percebemos que eles têm servido para uma atividade
parcialmente oculta que busca identificar e registrar automaticamente os fluxos que
circulam pelo espaço, a fim de atender interesses que nem sempre são natos dos
usuários que fornece os dados, muitas vezes sem saber. Acreditamos que esse
possa ser outro ponto de encontro entre as ideias de Milton Santos e a comunicação
social contemporânea, pois, no nosso ponto de vista, o cotidiano é o tempo
respectivo do espaço social, isto é, o presente que se realiza a cada dia, de modo
ordinário. Estando o cotidiano completamente tomado por objetos técnicos que
trazem consigo suas intencionalidades conectivas e informacionais, edificam-se
outras dimensões, conforme observa o autor:
Com o papel que a informação e comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o cotidiano de todas as pessoas assim se enriquece de novas dimensões. Entre elas, ganha relevo a sua dimensão espacial, ao mesmo tempo em que esse cotidiano enriquecido se impõe como uma espécie de quinta dimensão do espaço banal, o espaço dos geógrafos (SANTOS, 1997, p. 257)
101
O que Santos reconhece como o “espaço dos geógrafos” é o conjunto
completo dos elementos do cotidiano, pois ele acredita que “o geógrafo é obrigado a
trabalhar com todos os objetos e todas as ações” (1997, p. 257), isto é, ter uma
percepção holística dos acontecimentos, sem segmentos específicos. Perguntamo-
nos se não seria essa também o ponto de vista do comunicador, obrigado da mesma
forma a encarar o cotidiano em sua totalidade para realizar suas análises e ações,
considerando causas e os efeitos das movimentações sociais que animam a
materialidade. Presumimos que sim, pois o espaço geográfico atual se expressa
como conteúdo sistematicamente agregado aos complexos sistema de objetos
informacionais, em bases digitais. Se o conteúdo passa a ser ainda mais necessário
para a compreensão de mundo, o comunicador assume um papel importante no
planejamento das “formas-conteúdo” e de todas as mensagens e intencionalidade
que serão transmitidas, explicitamente ou não, por aquele objeto. Santos coloca que:
Através do entendimento desse conteúdo geográfico do cotidiano poderemos, talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) dessa relação entre espaço e movimento sociais, enxergando na materialidade, esse componente imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam. (SANTOS, 1997, p. 257)
O autor reconhece, então, que o cotidiano foi ocupado por esses objetos e
suas lógicas informacionais, nos quais o conteúdo embutido é fator chave para o
reconhecimento do espaço geográfico. O que observamos, adiante, é que tais
objetos, além de induzir ativamente ao uso comunicacional e informacional, com
mensagem que convidam os usuários a se relacionarem, expandirem a rede de
contatos, a conhecer a vida de outras pessoas ou vasculhar os dados alheios,
também realiza automaticamente uma grande coleta de dados, que passam a ser
utilizados pelas empresas detentoras das tecnologias dominantes para os mais
diversos fins, principalmente, os publicitários e propagandísticos.
3.4.1 Dispositivos programados para registrar dados
Quando utilizamos os dispositivos computacionais conectados para realizar
as tarefas do dia a dia, o ato é codificado para uma linguagem de programação
inteligível para os sistemas de computação, conforme vimos no capítulo anterior.
Podemos dizer que hoje, uma das principais áreas do saber responsável pela
102
construção da nova realidade digital é a tecnologia da informação, junto com a
comunicação social. No geral, os sistemas de informação são programados para
realizar funções específicas quando acionados pelo usuário, mas recentemente eles
passaram a coletar dados automaticamente, criando uma espécie de registro digital
do cotidiano. Esse registro automático se soma àquele que já acontece
deliberadamente, quando o usuário compartilha os acontecimentos ordinários do seu
dia a dia nas redes sociais digitais diversas. Navegar pela chamada “linha do tempo”
oferecida pelo Facebook, por exemplo, nada mais é do que conferir as atividades
cotidianas daqueles aos quais o usuário se conecta, registradas ativamente em uma
plataforma digital. Considerando que o Facebook é a maior rede social na internet,
com a marca surpreendente de 1 bilhão de usuários ativos diariamente em todo o
mundo4, o resultado prático da utilização dessa rede social é um gigantesco banco
de dados diário, formado colaborativamente por todos os usuários, que possui um
valor simplesmente inestimável do ponto de vista estratégico e amostral.
Lembremos que esse é um registro consentido pelos usuários, que aceitam
os termos de uso para acessar a rede. Agora, contudo, observamos que há também
um tipo de registro que ocorre de forma menos nítida, talvez desavisada, com intuito
de reconhecer padrões de comportamento e organizar com mais assertividade os
fluxos de informações que chegarão a cada usuário. Santos já havia percebido que,
“como hoje nada fazemos sem esses objetos que nos cercam, tudo o que fazemos
produz informação.” (1997, p. 258), mesmo tendo escrito isso quando essa realidade
era muito mais incipiente, mas no sentido de notar um conteúdo informacional em
qualquer tipo de ação realizada nesses objetos. A empresa Google, como exemplo,
é conhecida por monitorar e salvar automaticamente as formas de interação que o
usuário realiza, desde os dados pesquisados em seu sistema de buscas online,
quanto nos caminhos geográficos que os usuários do seu sistema operacional para
smartphones, o Android, realizam em suas atividades.
Apesar desse tipo de registro não acontecer do modo oculto, ele é muito
menos percebido pelos usuários, que apenas recebem os estímulos resultantes
dessa massa de dados coletada. O interesse das empresas nesse caso é
comercialmente estratégico, pois, conhecer a fundo os hábitos de vida e consumo de
4 Fonte citada nas referências.
103
uma pessoa é fundamental para atingi-la com propagandas assertivas. Quanto mais
alimentamos os sistemas com dados sobre nosso cotidiano, mais entregamos a eles
os caminhos para que cheguem até nossas mentes, nossos corações e nossos
bolsos. As plataformas de marketing digital online utilizam esses dados para
selecionar automaticamente quem vai ver qual tipo de anúncio. Essa prática virou as
teorias tradicionais do marketing de cabeça para baixo, pois regras são subvertidas,
valores alterados e ações reposicionadas.
Os bancos de dados criados a partir do monitoramento automático são
conhecidos como Big Data, em referência ao grande volume de dados que
diariamente compõem sua base. Schonberger (2013) afirma que “os dados são para
a sociedade da informação o que o combustível é para a economia industrial: o
recurso crítico que possibilitou inovações com as quais as pessoas podem contar.” O
que vemos é a recriação de um cotidiano em formato digital, extremamente denso,
com camadas de tempo sobrepostas em um espaço digitalizado inacessível ao
entendimento humano. Apenas sistemas de análises conseguem extrair desse vasto
campo de dados ordinárias, informações que tornem-se relevantes para algum fim
da vida prática. Neste ponto a comunicação escapa do âmbito social (se é que isto é
possível) e acontece entre sistemas e máquinas computacionais, que, apesar de
terem sido programadas por homens, realizam tarefas automaticamente e começam
a ser capazes de tomar decisões baseada no conceito de persistência de dados.
A dimensão espacial do cotidiano possui agora uma nova vertente, que é
imensamente mais efetiva quando pensamos em utilizar referências passadas para
tomar melhores decisões no presente. Há um forte indicativo de que num futuro
próximo, a evolução e sofisticação dos sistemas que constroem, leem e processam
os dados colhidos pelos diversos objetos presentes no cotidiano das pessoas, sejam
capazes de nos ajudar a tomar melhores decisões para nossas vidas.
3.5 O papel do comunicador na construção do espaço
Entendemos que as formas de comunicar de uma sociedade exercem grande
influência na existência dela própria, isto é, aquilo que se assume coletivamente
como realidade e entende como mundo. Ao assumirmos, ao longo da dissertação,
que a comunicação e a informação passaram a ter um valor central na sociedade
104
contemporânea e na construção do espaço geográfico, juntamente consideramos
que os comunicadores passam a ter uma responsabilidade diferente, talvez maior,
perante esta mesma sociedade. As atividades relacionadas à comunicação talvez
tenham sido às que sofreram maior impacto das novas tecnologias, pois agora o
valor comercial é atribuído à conteúdos imateriais, que são dados codificados. “A
informação e o conhecimento tornaram-se os maiores produtores de riqueza das
sociedades contemporâneas. Em realidade, o que se comercializa hoje é
conhecimento” (CABESTRÉ, et al, 2013, p. 167).
Nesse sentido, o teor das informações que circulam pelo sistema tem efeito
direto sobre as manifestações sociais perante o espaço. As informações são dados
qualitativos que podem ser entendidos como comandos em seus efeitos práticos. A
qualidade desse comando é o que faz variar a execução de algo no tempo e no
espaço (GERTEL, 1993). É nítido que “As profissões da comunicação estão em
plena expansão, sem, contudo, virem acompanhadas da mesma legitimidade que as
outras profissões. ” (WOLTON, 2006, p.104). Possivelmente, a falta de legitimidade
citada por Wolton seja reflexo do nível de originalidade e ineditismo que as práticas
de comunicação contemporânea apresentam. Até bem pouco tempo atrás, nada
disso que reconhecemos como sociedade da informação, ou o período técnico-
científico-informacional, existia. Então, simplesmente não haviam teorias ou práticas
que pudessem orientar as atividades dos profissionais. Vemos agora o surgimento
de cursos específicos para as técnicas de comunicação digital, mas ainda de
maneira aparentemente pouco menos profunda ou consolidada do que os estudos
tradicionais da comunicação social, pois é tudo muito recente. A falta de
consolidação é também fruto do dinamismo constante das práticas, que não se
mantém por muito tempo do mesmo modo, estão sempre mudando e sendo
reinventadas. Segundo Santos, no atual período:
O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isso tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica social, a informação constitui um dado essencial e imprescindível. (SANTOS, 2001, p.39)
Ora, se as informações fornecidas para a maioria da humanidade confundem
mais do de esclarecem, não podemos acreditar que esse é um fenômeno fruto do
acaso. É possível (para não dizer provável) que seja exatamente essa a intenção de
daqueles que definem as “pautas” globais, que distribuem os dados e organizam os
105
fluxos de acesso, e que existem comunicadores que servem conscientemente esse
sistema alienante. Ao considerarmos, junto com Maffesoli (2006), a comunicação
como um cimento social, podemos estender a metáfora ao comunicador, que
passaria então a ser o pedreiro, ou melhor, o empreiteiro das edificações sociais e
espaciais da contemporaneidade. Portanto, cabe ao comunicador, encontrar dentro
do denso emaranhado de redes, dados, objetos e sistemas digitais, uma maneira de
comunicar e informar que seja orientada pela ética e busque construir espaços que
sirvam ao desenvolvimento social e esclareçam mais do que confundam. Como
produtor do conteúdo que se agrega aos objetos, os profissionais da comunicação
têm a possibilidade de realizar ações extremamente significativas para o cotidiano
das pessoas. Pode ser que, de modo geral, essa percepção ainda não tenha se
instalado completamente dentre os profissionais da comunicação. Contudo, de
acordo com a reflexão proposta ao longo do texto, entendemos que gradativamente
o comunicador passe a assumir uma postura compatível com a de um poderoso
agente de criação e alteração do espaço e norteie, assim, suas atividades com
valores morais e éticos e nobres, dignos da posição que passou a ocupar dentro do
período técnico-científico-informacional.
106
4 CONCLUSÃO
A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a
existência de uma técnica globalizada, direta ou indiretamente
presente em todos os lugares, e de uma política planetariamente
exercida que une e norteia os objetos técnicos. Juntas elas
autorizam uma leitura, ao mesmo tempo geral e específica,
filosófica e prática, de cada ponto da Terra. (SANTOS, 2001, p.
171)
Abrimos a conclusão com essa citação para assumir que nos enquadramos
entre os de grande sorte. É uma decisão de pensar nossa época estando submerso
nela mesma, algo desafiador e que, muitas vezes, pode deturbar a visão do
observador, ou torna-la restrita. A sorte, talvez, more nas ferramentas que permitem
acesso tão fácil ao vastíssimo conjunto de informações que existem na internet. É
preciso dizer que estudar a obra de um autor brasileiro com tamanho prestígio é, por
si só, algo gratificante. Quando nos propusemos a criar interfaces entre a geografia
humana de Milton Santos e a comunicação social contemporânea, definimos
questões, apresentadas na introdução, que norteariam a pesquisa e que buscamos
responder ao longo do texto. Um fato que emergiu durante o trabalho é que unir
campos tão vastos de conhecimento social não se mostrou uma tarefa fácil,
sobretudo no sentido de delimitações dos conceitos a serem tratados, dos exemplos
a serem explorados e das conclusões parciais que apareceram ao longo da jornada.
A complexidade do mundo contemporâneo, mesmo que vista em partes, não é algo
amigável ao olhar despretensioso, muito menos à análise profunda, tanto pela
quantidade de objetos quanto pela qualidade das ações possíveis de se
desempenhar através deles. Santos vai ao encontro dessa percepção:
Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que aos objetos nos unem. Nos últimos cinquenta anos criam-se mais coisas do que nos cinquenta mil precedentes. (SANTOS, 2001, p. 171)
Buscamos então, durante o trabalho, encontrar os pontos de contato que
pudessem aproximar a geografia humana da comunicação social, e dissertar sobre
eles. De modo geral, percebemos que a teoria que trata da natureza do espaço
proposta por Santos (1997) coloca como principal elemento criador e definidor do
107
espaço a existência social. Por sua vez, essa existência, que nada mais é do que um
conjunto de indivíduos realizando suas práticas habituais dentro dos modelos de
vida vigentes, depende de uma relação entre as pessoas que compõem a
sociedade, uma organização que é mediada pela comunicação social. As técnicas
de comunicação, os meios e a linguagem passam a ser, assim, subfatores
importantes para a definição do espaço geográfico, pois se um deles se altera, as
relações sociais se alteram e o espaço se altera. Pudemos constatar através da
citação e análise de acontecimentos atuais, como os novos meios de comunicação
digital passaram a influenciar e exercer mudanças no espaço público das cidades
em diversas partes do mundo, tanto no sentido do ativismo e militância na internet,
quanto nos aplicativos que alteram as formas de interação dos homens entre si, das
suas abordagens no ambiente, da forma como se locomovem ou realizam as
atividades cotidianas.
Assim, expressamos de modo singelo em um esquema uma linha de
pensamento que acabou se delineando ao longo da dissertação, fazendo crescer
consideravelmente a compreensão quanto a importância da comunicação social
para a criação de um espaço geográfico, dentro da abordagem e dos conceitos
propostos por Santos (1997):
a) Materialidade + existência social criam o espaço;
b) Existência social depende da comunicação e suas técnicas;
c) Técnicas de comunicação diferentes criam uma existência social diferente;
d) Novas técnicas de comunicação criam um novo espaço.
Então, compreendemos que a comunicação social é um fator chave para a
natureza do espaço, pois de acordo com as técnicas e as intenções que carrega,
pode criar existências espaciais completamente diferentes. Entendemos que a as
contribuições de Santos para a comunicação social surgem do destrinchamento do
processo de formação do espaço, atribuindo às relações sociais um papel
protagonista e essencial para a realização da vida cotidiana. Dessa maneira, o autor
assume que a comunicação é decisiva e que a informação é o combustível do
momento. As técnicas e os sistemas de ações tendem a se unificar, seguindo um
padrão global, da mesma forma que os objetos tendem a seguir e possuir
racionalidade e funcionalidades que são comunicacionais.
108
Uma outra contribuição que também dialoga com a comunicação social está
na construção do espaço através de lógicas de rede. Mais do que nunca, as redes
passam a assumir uma característica de localidade que altera severamente a
organização espacial da vida, enquanto acontece por meio de técnicas digitais de
comunicação que tornam confusa a distinção do que local e o que é global. A
conexão de pontos no espaço costura uma rede robusta que permite uma ampla
fluidez dos fluxos de comunicação e, conforme visto, quando as informações e os
comandos podem fluir mais livremente, menos há necessidade de deslocamento
físico de objetos ou pessoas, alterando mais uma vez o espaço por meio da
comunicação digital.
Outra abordagem possível que dialoga a geografia com a comunicação é
sobre o ciberespaço, uma metáfora que se realiza através de interfaces gráficas que
transmutam códigos digitais em informações legíveis e interpretáveis, criando a
ilusão de um outro espaço. Após entender as bases da geografia humana de
Santos, pudemos perceber que a noção de espaço se constrói coletivamente na
sociedade através de representações, mesmo que não haja uma materialidade
equivalente. No espaço comum, físico, as percepções humanas e o conjunto de
relações se somam à paisagem natural ou artificial, aos objetos físicos e aos
elementos edificados. No entanto, a noção do ciberespaço é exibida e vivenciada
através de interfaces gráficas que representam, isto é, traduzem dígitos e dados em
imagens. Tanto para transformar, quanto para consumir o que se apresenta na
interface de uma tela, é preciso que o processo de comunicação entre máquina e
máquinas e entre homens e máquinas, aconteça de modo eficaz. Seria então o
ciberespaço um novo espaço construído completamente dentro de sistemas de
comunicação digital e inteligíveis por outros sistemas de comunicação social?
Há ainda a questão da racionalidade presente nos objetos técnicos em
contato com as intencionalidades daqueles que usam. Compreendemos que um
objeto, por si só, traz consigo uma carga de conteúdo que representa uma proposta
de uso. Essa proposta entra em choque com a intenção, necessidade e capacidade
daqueles que o usam. Se os objetos passam a ter diversas funcionalidades,
entendemos que eles possuam mais conteúdos embutidos. Isso nos leva a pensar
que, agora que temos objetos especificados para os fluxos diversos de informação, o
109
papel do comunicador na definição e agregação dos conteúdos às formas atinge um
nível mais alto de importância. Santos coloca que:
Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo, o homem pouco a pouco descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato pode ser menos aleatório. As coisas valem pela sua constituição, isto é, pelo que podem oferecer. Os gestos valem pela adequação às coisas a que se dirigem. Ampliam-se e diversificam-se as escolhas, desde que se possam combinar adequadamente técnica e política. Aumentam a previsibilidade e a eficácia das ações. (SANTOS, 2001, p. 172)
Ao encontro de Santos, observamos que há uma ampliação das escolhas que
se dispõem ao indivíduo. Acreditamos também de que a sociedade globalizada está
passando por uma fase de reconhecimento e apropriação das tecnologias digitais,
entendendo paulatinamente, num processo coletivo, quais são as possibilidades
guardadas em uma base técnica comunicacional conectada por redes digitais.
Deparamo-nos com acontecimentos sociais que se vinculam à internet, que
dependem dela e que, algumas vezes, existem apenas nela. Resta admitir que
alcançar o entendimento sobre a importância da comunicação social para a
construção do espaço geográfico é algo que desperta a curiosidade e inquieta para a
realização de estudos e pesquisas empíricas sobre o assunto, na busca de constatar
em quais medidas pode ser aplicada a afirmação, em quais casos, em qual
intensidade, considerando que seja esta uma afirmação aplicável, algo também a ser
testado. Mesmo assim, o pensamento conclusivo que nos parece mais curioso e
intrigante é que, desde o momento em que passamos a transferir as relações sociais
para as redes digitais de comunicação, surge como que naturalmente uma noção de
espaço que não é diretamente imposta, que se consolida nos termos metafóricos
que dão “ambiência” aos conjuntos de dados e passam a satisfazer boa parte das
necessidades dos indivíduos.
Isso nos faz pensar que, talvez, para se criar espaço geográfico, seja mais
importante deter um conjunto de informações bem arranjado e comunicá-lo de forma
eficaz do que usufruir necessariamente de uma localidade física, mas que não
possua uma rede de relações sociais estáveis e estabelecidas. Em outras palavras,
parece que a natureza do espaço depende mais dos meios de comunicação social
do que de uma existência física local, pois é uma construção coletiva, hoje suportada
110
por redes, na qual os indivíduos assumem como espaço aquilo que, para eles,
parece espaço ou funciona como tal.
111
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Apêndice - VIDA E OBRA DE MILTON SANTOS
Histórico de vida de Milton Santos
Localizada no interior do estado da Bahia, na região da Chapada Diamantina,
encontra-se a pequena cidade de Brotas de Macaúbas. Atualmente, com pouco mais
de 10 mil habitantes, sua economia se baseia em atividades rurais e agropecuárias,
deixando para trás o período que vivia da extração de minérios como ouro e
diamantes. Foi ali que nasceu Milton Almeida dos Santos, mais conhecido como
Milton Santos, filho de Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos
Santos, ambos professores primários, no dia 03 de maio de 1926. Seus avós
maternos também eram professores, de forma que Milton teve seus primeiros
ensinamentos em casa, como matemática, português e francês, indo para a escola
somente aos dez anos de idade. O colégio, fez em Salvador, no Instituto Baiano de
Ensino, após ser aprovado em primeiro lugar como aluno interno no exame de
admissão. Lá conheceu a literatura de Eça de Queiroz, Rui Barbosa, Machado de
Assis, Castro Alves e tantos outros que eram estudados e debatidos entre os
colegas.
Durante o colégio, Milton criou um jornal interno intitulado O Farol, e
posteriormente a publicação O luzeiro, que continha textos seus e de amigos.
Findado esse período, ingressa no curso de direito da Universidade Federal da
Bahia, muito provavelmente influenciado por seu tio Agenor, irmão de sua mãe, um
importante advogado em Brotas de Macaúbas. No curso, sempre participou
ativamente dos movimentos estudantis, muitas vezes como líder. Numa dessas
ocasiões, conheceu o dono do jornal A Tarde, Simões Filho, que o convidou para ser
redator do jornal e que posteriormente seria um grande admirador de seus textos.
“Durante o tempo em que permaneceu nesse jornal, escreveu 116 artigos versando
sobre a zona do cacau, a cidade do Salvador, Europa e África e Cuba e outros
temas locais e globais” (SILVA, 2002). Em 1948, com apenas 22 anos, lança seu
primeiro livro: O Povoamento da Bahia: suas causas econômicas, que lhe garantiu
116
ingresso como professor de ginásio em Ilhéus. Seu próximo livro sai em 1953:
Estudos sobre Geografia, seguido por Ubaitaba: estudo de geografia urbana (1954)
e aquele é considero seu primeiro livro a ganhar grande importância: A Zona do
Cacau: introdução ao estudo geográfico (1955), no qual tratou da região cacaueira
no sul da Bahia e suas respectivas cidades, comparando essa economia a um tipo
colonial. A repercussão do desta obra foi tão boa que acabou sendo incluída na
Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional.
Nos anos seguintes, o autor segue produzindo, já com notoriedade no cenário
acadêmico nacional, contribuindo para o jornal, lecionando, laçando livros e
participando eventos. Pode-se dizer que sua influência francesa se inicia no
Congresso Internacional de Geografia de 1956, onde Milton conhece pessoalmente
autores da geografia que já havia lido, como Pierre Monbeig, André Cailleux, Pierre
Birot, Pierre Deffontaines, todos franceses, (além de Orlando Ribeiro, que era
português), inclusive um dos maiores influenciadores de seu pensamento, Jean
Tricart. É nessa ocasião que Tricart o convida para realizar o doutoramento em um
dos institutos de Geografia mais reconhecidos da Europa, o da Universidade de
Estrasburgo, na França, depois de identificar a sapiência e a qualidade do jovem
autor. Foi nessa primeira temporada fora do Brasil que Milton afirmou ter sofrido
profunda mudança em seu pensamento político e em sua concepção de mundo. O
resultado deste curso foi a tese que virou livro: O Centro da Cidade de Salvador,
considerado um clássico da geografia.
Quando retorna da França em 1958, Milton Santos leciona na Faculdade
Católica de Filosofia. Em 1959, com a ajuda do reitor Edgard Santos e de
professores franceses, organiza um grupo de pesquisa dentro da UFBA, chamado
Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia, uma
proposta inovadora no meio acadêmico, que fez sucesso. Silva comenta que “além
de atrair jovens vindos de todo o Brasil e da França, no Laboratório a motivação era
constante: trabalhos de campo, seminários, cursos, apresentações de trabalhos,
leituras comentadas, reuniões científicas, enfim, um ambiente de efervescência
cultural e científica” (SILVA, 2002). Inicia-se um período de grande produção
intelectual, com mais de 60 títulos produzidos, não apenas de Milton, mas também
de outros pesquisadores nacionais e estrangeiros que contribuíam com o
Laboratório. Dos livros de Milton, são dessa época Rede Urbana do Recôncavo
117
(1959), A cidade como centro de região: definições e métodos de avaliação da
centralidade (1959) e Mirianne em preto e branco (1960). Em 1963, Milton Santos
torna-se presidente da Associação Brasileira de Geografia
Naqueles anos, o canário político estava conturbado. O então presidente
Jânio Quadros, que Milton havia conhecido em uma viagem à Cuba e que o indicara
a ser subchefe da casa civil da Bahia, renuncia em 1961, fazendo assumir o cargo o
vice João Goulart, que passou a adotar medidas e propor reformas que diminuiriam
o poder econômico das elites. Entre elas, o direito a voto dos analfabetos, o crédito
aos produtores rurais, valorização do ensino e dos professores, concessão de canais
de comunicação a estudantes, entre outros. Estas medidas levaram a direita
brasileira e os militares a se articularem para depô-lo. Diversas historiadores
consideram o fato que desencadeou o golpe militar em 1964 – que já vinha sendo
preparado - foi um comício realizado no Rio de Janeiro, no qual João Goulart
anunciou um plano de reforma agrária e a nacionalização de refinarias de petróleo
estrangeiras. Naquela sexta-feira, 150 mil pessoas estavam reunidas para
presenciar aquele que ficou conhecido como “o comício das reformas”. Dias depois,
o golpe aconteceu, com a tomada das principais cidades do país por tropas militares.
O presidente deposto se exila no Uruguai e o Marechal Castelo Branco assume a
presidência da república.
A esta altura, Milton já exercia o cargo de presidente da Comissão de
Planejamento Econômico na Bahia, mas foi preso com golpe militar, deixando o
cargo. A notícia de sua prisão fez com que as universidades francesas com as quais
tinha contato oferecessem exílio. Foi solto, mas não encontrou viabilidade para
continuar seu trabalho no Brasil, devido as novas estruturas vigentes. Assim, parte
novamente para Toulouse, onde fica por três anos lecionando e orientando
trabalhos. Segue então para a cidade de Bordeaux e reside lá por mais um ano. De
lá, vai para Paris, cidade em que convive com outros brasileiros exilados, além de
pesquisadores franceses. Posteriormente, devido ao grande prestígio que já havia
conquistado, Milton passa por outros países desenvolvendo trabalhos, lecionando e
pesquisando. A ONU e o governo Venezuelano financiam um estudo sobre Caracas,
passa também por Lima, no Peru, Columbia (EUA), Toronto (Canadá), por dois anos
leciona no MIT (Massachuselts Institute of Technology, em Cambridge), e por fim,
vai à Nigéria, comandar um Laboratório de Geografia. Ao todo, foram 13 anos fora
118
do Brasil (com duas visitas pontuais), período em que “estruturou a base do
pensamento que analisa o impacto social provocado pelo desenvolvimento urbano
político e econômico” (SILVA, 2002) e lançou os livros A cidade nos países
subdesenvolvidos (1965), Aspects de la géographie et de l'économie urbaines des
pays sous-développés (1969), Dix essais sur les villes des pays sous-développés
(1970), Les villes du Tiers Monde (1971), Modernisations et "espaces dérivés"
(1971), Le métier de géographe en pays sous-développé: un essai méthodologique
(1971), Dimension temporelle et systèmes spatiaux dans les pays du Tiers Monde
(1972), Geografia y economia urbanas en los paises subdesarrollados (1973), além
de diversos artigos.
Em terras brasileiras, lança em 1978 o livro que havia publicado em francês:
Por uma Geografia Nova e que também é considerado um marco entre os
geógrafos. Mesmo com prestígio internacional, Milton Santos penou para conseguir
encontrar uma colocação nas universidades brasileiras em seu regresso. Realizou
trabalhos no Rio de Janeiro e em São Paulo como consultor e chegou a ser
contratado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro como professor assistente.
Em 1984 faz um concurso para a Universidade de São Paulo e é aprovado. Fica
claro que sua ausência nas universidades neste período tinha muito mais relação
com o período político do país do que com sua capacidade intelectual e docente. Daí
em diante, juntamente com o fim do regime militar, pode dar continuidade à sua
carreira acadêmica singular. Dentre todas as funções que exerceu, destacam-se a
de Presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
Planejamento Urbano e Regional, Consultor no Senado Federal da Venezuela para
questões metropolitanas, Coordenador de Arquitetura e Urbanismo da FAPESP,
Consultor das Nações Unidas, Organização Internacional do Trabalho, Organização
dos Estados Americanos e UNESCO, além de professor convidado de várias
universidades nacionais e estrangeiras.
Estabeleceu escritório e residência em São Paulo onde passou os anos finais
de sua vida, sempre em plena atividade. Ganhou ainda mais notoriedade, sobretudo
na grande mídia, após receber o prêmio Vautrin Lud, equivalente ao prêmio Nobel
da geografia. Passou a ser entrevistado em diversos programas de televisão. Por
volta do ano de 1994 foi diagnosticado com câncer de próstata e, em 2001, aos 75
anos, veio a falecer após passar cinco dias internado no Hospital do Servidor Público
119
Estadual em São Paulo. Casou-se duas vezes: primeiramente com Jandira Rocha,
com quem teve seu primeiro filho, Milton Filho, e anos depois com Marie Hélène, que
deu à luz Rafael. Seu último prêmio recebido foi o Multicultural Estadão Cultura em
2000, ocasião em que discursou em agradecimento, dizendo entre outras coisas
algo que ilustra, ao mesmo tempo, o alcance de sua obra e sua humildade:
Meu desejo secreto, o desejo dos pensadores, e é difícil confessa-lo, é que o seu trabalho possa ter alguma repercussão, sobretudo quando ele ultrapassa os limites da sua própria área e da universidade. O fato de seu o trabalho ter uma visibilidade em camadas mais amplas da sociedade dá ao seu autor, não a certeza que ele tenha o aplauso geral, mas um certo conforto de ver que o seu discurso não é um discurso fechado. (SANTOS apud SILVA, 2002)
Produção intelectual de Milton Santos e suas repercussões
Milton escreveu muito, desde sua juventude. Ao todo, foram mais de 300
artigos publicados em revistas científicas e mais de 40 livros, em diferentes idiomas:
português, francês, espanhol, inglês e japonês. O rigor de seus trabalhos desde
cedo foi reconhecido, bem como a seriedade e humildade que sempre demonstrou
ao longo de sua carreira. Grosso modo, podemos dizer que o autor sempre esteve
atento a epistemologia da geografia, sendo um crítico assíduo do pensamento
neopositivista. Seus estudos também evoluíram muito a questão do espaço e sua
dimensão social, além de ter também sido um crítico ferrenho do processo de
globalização.
De uma maneira geral, sua obra pode ser dividida em três grandes fases: a
primeira delas é o início de sua carreira, quando residia na Bahia e escrevia sobre
este estado, estudava a região e suas dimensões populacionais, econômicas e
políticas. Durante este período também atuou como jornalista e realizou seu curso
de doutorado na França. Os títulos oriundos dessa fase são: O Povoamento da
Bahia: suas causas econômicas (1948); Estudos sobre Geografia (1953); Os
estudos regionais e o futuro da geografia (1953); Ubaitaba: estudo de geografia
urbana (1954); A zona do cacau: introdução ao estudo geográfico (1955); Problemas
de geografia urbana na zona cacaueira bahiana (1956); O papel metropolitano da
cidade de Salvador (1956); Estudos de geografia da Bahia: geografia e planejamento
(1958); O centro da cidade de Salvador: estudo de geografia urbana (tese de
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doutorado) (1958); Rede Urbana do Recôncavo (1959); A cidade como centro de
região: definições e métodos de avaliação da centralidade (1959); e Marianne em
preto e branco (1960).
A segunda fase é aquela em que Milton deixa o Brasil após ser preso assim
que o regime militar assume o Brasil, o período de seu exílio na França e em outros
países no qual conquista admiração e reconhecimento na comunidade acadêmica
internacional. Os livros oriundos dessa fase são: A cidade nos países
subdesenvolvidos (1965); Aspects de la géographie et de l'économie urbaines des
pays sous-développés (1969); Dix essais sur les villes des pays sous-développés
(1970); Les villes du Tiers Monde (1971); Modernisations et "espaces dérivés"
(1971); Le métier de géographe en pays sous-développé : un essai méthodologique
(1971); Dimension temporelle et systèmes spatiaux dans les pays du Tiers Monde
(1972); Geografia y economia urbanas en los paises subdesarrollados (1973); O
trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1978); Por uma geografia nova: da crítica
da geografia a uma geografia crítica (1978); Espaço e Dominação (1978); Pobreza
Urbana (1978); Espaço e Sociedade (1979); Espaço Divino (1979); Economia
espacial: críticas e alternativas (1979); A urbanização desigual: a especificidade do
fenômeno urbano em países subdesenvolvidos (1980); Manual de geografia urbana
(1981); Pensando o espaço do homem (1982); Ensaios sobre a urbanização latino-
americana (1982); Espaço e Método (1985); e O espaço do cidadão (1987).
A terceira e última fase da obra de Milton Santos é representada pelo tempo
que viveu em São Paulo, após passar 13 anos exilado. Atua como professor da USP
e passa a receber vários prêmios e títulos. Seus livros nesse período falam sobre o
processo de globalização, o meio técnico-científico informacional, que trata da
transformação que o homem faz através das técnicas no espaço natural, sobretudo
aquelas difundidas e ampliadas pelo processo de globalização, a filosofia da técnica
apoiada pela geografia, entre outros temas concernentes. Desse período nascem:
Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da
geografia (1988); Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo (1990); A
Urbanização Brasileira (1993); O Novo mapa do mundo: fim de Século e
Globalização (1993); O Novo mapa do mundo: Natureza e sociedade de hoje: uma
leitura geográfica (1993); O Novo mapa do mundo: Globalização e espaço latino-
americano (1993); Território, Globalização e Fragmentação (1994); Por uma
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economia política da cidade: o caso de São Paulo (1994); Técnica, Espaço, Tempo:
Globalização e meio técnico-científico informacional (1994); A natureza do espaço:
técnica e tempo, razão e emoção (1996); Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal (2000); e O Brasil: território e sociedade
no início do século XXI (2001).
Tamanha produção intelectual, sendo todas muito bem elaboradas, frutos da
dedicação e organização ferrenha por parte do pesquisador, só poderia culminar em
reconhecimento à altura. Milton Santos lecionou em importantes universidades na
Europa, África, América do Norte e do Sul, dentre as quais recebeu diversos títulos
de Doutor honoris causa. São eles: Universidade de Toulouse (1980) onde se
doutorou; Universidade Federal da Bahia (1987); Universidade de Buenos Aires
(1992); Universidade Complutense de Madri (1994); Universidade Estadual do
Centro Oeste, Estado da Bahia (1995); Universidade Estadual da Bahia (1995);
Universidade Federal de Sergipe (1995); Universidade Federal de Santa Catarina
(1995); Universidade Estadual do Ceará (1996); Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1996); Universidade de Passo Fundo (1996); Universidade de
Barcelona (1996); Universidade Nacional de Cuyo, Argentina (1997); Universidade
Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP (1997); Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (1998); Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999);
Universidade de Brasília (1999); Universidade Federal de Pernambuco (1999).
Dentre os outros prêmios e títulos que recebeu, encontram-se a maior
distinção dentro da geografia, equivalente ao prêmio Nobel, o Prêmio
Internacional de Geografia Vautrin Lud, em 1994; Recebe também a Medalha do
Mérito, Universidad de La Habana, em Cuba, 1994; a Ordem Nacional do Mérito
Científico pelo Governo Brasileiro em 1995; também é premiado com a Medalha da
Câmara Municipal de São Paulo, em 1995; Prêmio do Mérito Tecnológico pelo
Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo, em 1995; Ordem do Mérito do
Sevidor Público pela Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo,
em 1996; prêmio Jabuti de 1997 para o melhor livro de ciências humanas, com “A
Natureza do Espaço”; o Colar do Centenário pelo Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo, em 1997; o Prêmio Personalidade do Ano do Instituto de Arquitetos do
Brasil em 1997; o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo em 1997; a Medalha
Anchieta, na Câmara Municipal de São Paulo em 1997; o Prêmio Vozes Expressivas
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do Final do Milênio pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro em
1997; o Título de Cidadão Bauruense, pela Câmara Municipal de Bauru em 1997; o
prêmio O Brasileiro do Século, na categoria Educação, Ciência e Tecnologia pela
Revista Istoé de 1998; o Título Homem de Ideias de 1998; a Ordem 16 de
septiembre na Venezuela em 1998; Prêmio Gilberto Freyre de Brasilidade, em 1999;
a 11ª Medalha Chico Mendes de Resistência, cedida pelo Grupo Tortura Nunca
Mais, no Rio de Janeiro em 1999; a Medalha do Mérito da Fundação Joaquim
Nabuco, em Recife no ano de 1999; a Ordem do Mérito da Fraternidade Ecumênica,
na categoria Educação, pelo Parlamento Mundial da Fraternidade Ecumênica em
Brasília, também em 1999;
É preciso ainda dizer que esta vasta lista não está completa. Existem diversos
outros prêmios de menor repercussão que acabam não relatados ou considerados
na carreira de Milton Santos. Com isso, pode-se ter uma ideia da qualidade de seus
trabalhos, de sua seriedade como pesquisador e de sua capacidade como intelectual
e docente.