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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO FLUXOS E TROCAS NOS ANTIGOS CULTOS DE MISTÉRIO: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS SIMBÓLICOS EM JOÃO 2, 1-11. por RUY ROCHA JÚNIOR Orientador: Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira. Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo para obtenção do grau de mestre. SÃO BERNARDO DO CAMPO, AGOSTO DE 2011

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

FLUXOS E TROCAS NOS ANTIGOS CULTOS DE MISTRIO:

APROXIMAES E DISTANCIAMENTOS SIMBLICOS EM JOO 2, 1-11.

por

RUY ROCHA JNIOR

Orientador: Dr. Paulo Augusto de Souza

Nogueira.

Dissertao apresentada em cumprimento

parcial s exigncias do programa de Ps-

Graduao em Cincias da Religio da

Universidade Metodista de So Paulo para

obteno do grau de mestre.

SO BERNARDO DO CAMPO, AGOSTO DE 2011

2

A dissertao de mestrado sob o ttulo Fluxos e trocas nos Antigos Cultos de Mistrio:

Aproximaes e distanciamentos simblicos em Joo 2, 1-11, elaborada por Ruy Rocha

Jnior foi apresentada e aprovada em 31 de Agosto de 2011, perante banca examinadora

composta por Paulo Augusto de Souza Nogueira (Presidente/UMESP), Rui de Souza

Josgrilberg (Titular/UMESP) e Jos Geraldo Grilo (Titular/UNIFESP).

__________________________________________

Prof/a. Dr/a. Paulo Augusto de Souza Nogueira

Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof/a. Dr/a. Leonildo Silveira Campos

Coordenador/a do Programa de Ps-Graduao

Programa: Cincias da Religio

rea de Concentrao: Literatura e Religio no Mundo Bblico

Linha de Pesquisa: Estudos Histricos Literarios do Mundo Bblico

ii

3

Dedico esse trabalho:

A Velma, em testemunho ao seu amor... Por Apreo.

A Masa, pela sensibilidade e amizade, essenciais.

iii

4

Agradecimentos:

Aos docentes, em especial meu Orientador Paulo Nogueira, pela oportunidade de

cursar a Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo.

Ao Professor Rui, por me ensinar que a alegria est nas coisas aparentemente inteis.

Aos colegas Helder, verson, Sandros, Anderson, Mauro, Rogrio, Francisco e

tantos outros que ajudaram a suprir minhas limitaes.

A minha irm Rose, que incentivou o gosto pela leitura.

A famlia Goulart, com muito carinho, por tudo que aprendi convosco.

Obrigado ao Absoluto pela oportunidade de trilhar todas as Sendas que me foram

oferecidas...

iv

5

De Baco, o vinho... De ti meu corao!

Eis o vinho, a bebida dos deuses, o presente... Da terra a vinha,

onde o homem repete o ato criador de Deus.

Dele a videira eterna, entrelaada nas imensas possibilidades... Criar...

De Baco, o vinho, mosto que nasce no Lagar,

para depois ressuscitar inmeras eras...

Vinho suave, do tempo, do porto... Local onde ti acompanho de longe, vendo sua

nau singrar as guas, cortante como a navalha que distancia hoje meu

pensamento do seu...

Empresta-me o Tirso, Baco! Para que eu possa encant-la

e roubar-lhe um sorriso.

Da deusa furtei as rosas para deix-las na alcova onde a musa repousa,

espalhei as ptalas de forma que no ofusquem sua atrativa beleza.

Acomodei-as em crculos circunsfricos, para que entenda que a equao

de minhas palavras no so matemtica, no somam, ou subtraem...

Nem multiplicam, tampouco dividem. Compartilham!

E se mesmo assim no vos impressiono, derramo o vinho, esparramando-o

em seu corpo revelado, at que as sinuosidades encontrem-se atreladas a um

nico desejo. De Baco, o vinho... De ti meu corao! A Velma, Por Ruy Jr.

v

6

Rocha Jr, Ruy. Fluxos e trocas nos Antigos Cultos de Mistrio: Aproximaes e

distanciamentos simblicos em Joo 2, 1-11. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista

de So Paulo (Dissertao de Mestrado), 2011.

Sinopse

O presente estudo analisa algumas ressignificaes simblicas dos Antigos Cultos de

Mistrio, bem como alguns desdobramentos de suas realidades histricas.

Essa dissertao avalia os possveis fluxos e trocas ocorridos nos entornos

mediterrneos, concentrando-se nas ressignificaes que os mistrios sofreram nessas

fronteiras, discorrendo igualmente sobre sua possvel influncia numa percope bblica.

Na investigao sero levantadas hipteses referentes a relao dos cultos mistricos

com a expanso helenstica, bem como suas possveis interfaces com uma fonte primria do

Novo Testamento. Com base no estudo dos principais mistrios presentes nas fronteiras

romanas, e na avaliao da literatura neotestamentria, sero consideradas as aproximaes

e distanciamentos simblicos entre o culto Dionisaco e o texto de Joo 2, 1-11.

Palavras-Chave:

Sincretismo, Cultos de Mistrio, Civilizao Helenstica, Culto Dionisaco, Novo

Testamento, Cristianismo.

vi

7

Rocha Jr, Ruy. Flows and trade in Ancient Mystery Cults: Symbolic similarities and

differences in John 2, 1-11. So Bernardo do Campo: Methodist University of So Paulo

(Masters Program Dissertation), 2011.

Abstract:

This study examines some symbolic resignifications of the Ancient Mystery Cults,

as well some developments of their historical realities.

This dissertation evaluates the possible flows and exchanges occurring in

Mediterranean environments, focusing on the reframes that the mysteries suffered in these

borders, also discussing on their possible influence on a biblical passage.

In the investigation some hypothesis will be made concerning the relation with the

mysterical cults of the Hellenistic expansion, as well their possible interfaces with a primary

source of the New Testament.

Based on the study of the major mysteries in the Roman frontiers, and in the

evaluation of the New Testament literature, will be considered the approaches and symbolic

differences between the Dionysian cult and the text of John 2, 1-11.

Keywords:

Syncretism, Cults of Mystery, Hellenistic Civilization, Dionysian Cult, New

Testament, Christianity.

vii

8

Sumrio

Introduo .................................................................................................................... 9

Captulo I Civilizao Helenstica e Cultura Mediterrnea:

Espao de ressignificaes dos Antigos Cultos de Mistrio ........................................ 13

1 - Civilizao, Longa Durao e Mistrios:

Aspectos Conceituais ........................................................................................... 16

1.1 - Plis e Religio Grega:

Identidades Fludas em ressignificao ................................................................ 27

1.2 Sobre deuses e heris .................................................................................. 38

1.3 Urbe: Novos caminhos

para as ressignificaes ........................................................................................ 44

Captulo II - Ressignificaes nas fronteiras romanas:

Um olhar acerca dos principais cultos mistricos .......................................................... 51

1 - Antigos Cultos de Mistrio: Ressignificaes iniciticas ............................... 56

1.1 - Telein, Telete, Telestes e Telesterion:

Hierofanias, Epopteia e renascimento inicitico .................................................. 58

1.2 - Os principais Cultos de Mistrio do mundo romano .................................... 72

Captulo III - Ressignificaes mistricas nas fronteiras literrias:

Aproximaes e distanciamentos simblicos em Joo 2, 1-11 ..................................... 94

1 - Dionsio e vinho: Aproximaes e distanciamentos ....................................... 98

1.1 - Vestgios de Dionsio na Palestina:

Aproximaes e distanciamentos simblicos em Joo 2, 1-11 ......................... 115

1.2 Conexes Sforis/Can, Jesus/Dionsio ..................................................... 123

Concluso .................................................................................................................... 136

Bibliografia ................................................................................................................. 141

viii

9

Introduo:

Algumas consideraes preliminares so importantes para a compreenso de como

essa pesquisa ser conduzida, pois o estudo da histria avanou muito no ltimo sculo.

Ferramentas de observao surgiram, outras foram esquecidas, mas o tempo ainda

um dos itens mais importantes para compreender - no julgar - a ao humana nas

permanncias/ rupturas histricas, nas palavras do mestre Marc Bloch:

Ora, esse tempo verdadeiro , por natureza, um continuum. tambm perptua

mudana. 1

A histria no neutra, feita de verses inconclusas, acaba escrita pelos vencedores,

e mesmo inexata, contm aspectos importantes para a compreenso da evoluo do

conhecimento humano, pois:

A incompreenso do presente nasce fatalmente da ignorncia do passado. 2

A histria hoje uma cincia complexa, alm das fontes tradicionais, no abre mo

de outros mecanismos que ajudem na frgil compreenso das aes humanas no tempo.

Embora a seduo da periodizao seja ainda um obstculo, as novas prticas

historiogrficas abriram possibilidades nunca antes aventadas. Nesse sentido, interessante

que os pesquisadores do fenmeno religioso avaliem suas diversas interfaces de forma

interdisciplinar, o que nem sempre ocorre na prtica cotidiana. A observao histrica conta

hoje com o auxilio da geografia, psicologia, antropologia e da arqueologia, o que a tornou

uma cincia interdisciplinar par excellence.

Dado a essas especificidades, e baseados em nossa formao acadmica, escolhemos

os Antigos Cultos de Mistrio como objeto de estudo por dois motivos. Pela afinidade com

o tema, j que as questes referentes aos processos iniciticos fazem parte de nosso modus

vivendi pessoal. E por entender o cristianismo como um fenmeno religioso histrico, uma

estrutura com conjunturas especificas que viabilizaram a sua sobrevivncia na histria de

longa durao. Os Cultos de Mistrio representam algumas dessas situaes, j que

estiveram presentes tanto nos encontros produzidos pela expanso helenstica, como na

evoluo do cristianismo primitivo. Apesar de possurem mitos, cultos e prticas prprias,

em muitos casos participaram das intensas ressignificaes que erigiram o imaginrio

cristo.

1 Marc BLOCH, Apologia da Histria ou O oficio do historiador, p. 55.

2 Ibid. p. 65.

10

O cristianismo no passou inclume, participou de hospedagens culturais mtuas,

onde elementos simblicos foram ressignificados. A histria crist evoluiu historicamente

reinterpretando a cultura judaico/greco-romana, fatos que forjaram uma mentalidade

prpria. Esse processo produziu uma religio universal dotada de uma das teologias mais

avanadas e complexas da histria. Surge ainda uma questo de consenso geral, ou seja, a

quase impossibilidade de abarcar cientificamente todos os cultos mistricos num nico

estudo. Mesmo que seus desdobramentos estejam interligados, eles no constituem um

nico modus operandi, ao contrrio, seu desenvolvimento marcado por fluxos e trocas.

De fato, como afirmamos anteriormente, o cristianismo uma religio baseada em

acontecimentos histricos, contudo, embora apresente a dade permanncia/ruptura em sua

trajetria, ele no se caracteriza por um bloco coeso, mas sim por diversos desdobramentos

que modelaram as variadas modalidades dessa religio singular. Por isso a existncia de

diversos cristianismos nos agrada, vai de encontro viso das grandes estruturas histricas,

onde o desenrolar dos acontecimentos marcado por vrios encontros, e neles detectamos

ressignficaes das mais variadas esferas. A metfora de Braudel sobre o edifcio resume um

pouco do que falamos:

Para abreviar o raciocnio com uma imagem, digamos que a sociedade, uma vez

passadas as provas, um prdio de vrios andares. Mudaram os ocupantes, permaneceram

os andares. 3

Sob esse prisma, o cristianismo seria um edifcio (estrutura), onde a pluralidade das

suas conjunturas (andares) gestou uma religio original, mas como toda manifestao

cultural, ela ressignificou elementos comuns a outras realidades culturais.

Quando lembramos o desenvolvimento do cristianismo, fato ora as realidades se

aproximaram, ora tomam distncia. Dessa forma parece coerente admitir que essa religio

monotesta seja resultado de um processo de fluxos e trocas, um modus operandi que

acontece em qualquer manifestao coletiva, seja ela religiosa ou no. Na histria de longa

durao, as conjunturas de curta e mdia durao se revelam, tomam corpo, sofrem

permanncias e, finalmente, geram rupturas.

Apesar de singulares, elas mantm relao com a longa durao, portanto

necessrio determinar as possveis conexes entre macro e micro histria, essa uma das

tarefas que propomos nessa dissertao.

3 Fernad BRAUDEL, Reflexes sobre Histria, p. 342.

11

Ao reconstrurmos a histria crist, encontramos outras clivagens presentes nos

diversos cristianismos, essa dissertao buscar estudar um desses recortes usando uma

metodologia interdisciplinar. Para tal empreitada utilizaremos uma digresso que parte da

macro para a micro histria, no caso, avaliaremos o contexto onde se desenvolveram

determinados mistrios, bem como o caso especifico das possveis aproximaes e

distanciamentos simblicos em Joo 2, 1-11.

No primeiro captulo trataremos algumas questes conceituais sobre a longa durao

de Braudel, bem como sua relao com a dade civilizao/cultura. Explanaremos a

proximidade dos cultos mistricos com a Civilizao Helenstica, do qual o Imprio

Romano foi seu legitimo herdeiro. Feitas as devidas consideraes, demonstraremos como

os mistrios transitam em conjunturas especificas, ou seja, nas cidades mediterrneas.

Construiremos nossas principais ideias sobre as ressignificaes religiosas com base

nessas premissas ocorridas na Plis e na Urbe, pois, embora os mistrios sejam fenmenos

religiosos tipicamente urbanos, eles guardam certa nostalgia das archs ritualsticas dos

antigos cultos da natureza. Por isso destacaremos os fluxos e trocas ocorridos no modus

operandi urbano, associando-os as teorias de Walter Burkert, Jean-Pierre Vernant e outros

helenistas, entre os pontos importantes figuram a formao das identidades fludas da Plis.

Ao abordar a cidade-Estado grega, modelo organizacional adotado por boa parte das

culturas mediterrneas, aprofundaremos algumas especificidades da religio grega e sua

relao hibrida com os mistrios, anlise que abrir precedentes para a construo das

conjunturas mistricas nas fronteiras romanas.

No segundo captulo trataremos de questes referentes ao cotidiano dos principais

cultos mistricos que tiveram seu pice no Imprio Romano, destacando principalmente

suas ressignificaes nas fronteiras romanas. Nesse estudo lanaremos um olhar no

significado da palavra mistrio, sua amplitude e sentido, analisando tambm alguns pontos

comuns do imaginrio dos processos iniciticos.

O captulo se deter nas principais definies sobre Telein, Telete, Telestes e

Telesterion, Hierofanias, avaliando as conexes existentes entre a Epopteia e o

renascimento inicitico. Com base nisso determinaremos os principais cultos mistricos que

mais se aproximam do modelo romano.

12

No ltimo captulo estudaremos as teorias que dizem respeito s identidades fludas

em ressignificao, aqui apresentadas sob o prisma das aproximaes e distanciamentos do

culto dionisaco com a percope de Joo 2, 1-11.

Avaliaremos os desdobramentos existentes nessa conjuntura especifica a partir da

nossa fonte principal - o texto de Joo 2, 1-11 - associada as possveis conexes que o

remetem a cidade de Sforis. Esse espao urbano possui uma particularidade marcante, ele

ostenta a presena fsica de um mosaico que indicaria vestgios do culto a Dionsio na

regio da Palestina. Sendo assim, apresentaremos uma breve explanao do deus Dionsio,

sua mitologia, ritos e popularidade, buscando investigar as possveis relaes deste mistrio

com o texto joanino, e da cidade de Can com Sforis.

Pois acreditamos que a dialtica crist foi fruto de vrias tenses que reinterpretaram

a cultura mediterrnea helenstica e os judasmos, ressignificando-os de forma a gerar

novas prticas religiosas, entre elas, o cristianismo primitivo e suas fontes literrias.

13

Captulo I - Civilizao Helenstica e Cultura Mediterrnea:

Espao de ressignificaes dos Antigos Cultos de Mistrio.

Os Pases em torno do mar Mediterrneo formam o bero do cristianismo. Ao

Leste situavam-se os plos de culturas e imprios mais antigos: o vale do Nilo, no Egito; as

terras do Tigre e do Eufrates, que no passado formaram os centros da Sumria, de Acad.,

Assur e Babilnia; Sria, Israel e costa fencia; e a Anatlia, com os imprios hitita e ldio.

A oeste, a cultura minica centrada na ilha de Creta j fora enterrada havia muito tempo nas

lavas e sob as cinzas da erupo do vulco Tera (c. a47a a.C.), deixando vrias cidades-

Estado gregas como herdeiras.4

O primeiro captulo dessa dissertao expe algumas questes concomitantes com a

citao introdutria da obra de Helmut Koester 5. Surgem aqui algumas importantes interfaces

para as escolhas metodolgicas que direcionaram nossa pesquisa: Os Antigos Cultos de

Mistrio so fenmenos religiosos histricos?

Sim, todavia algumas questes despontam com essa afirmao, a principal diz respeito

maneira como a diversidade de suas prticas pode estar concatenada as realidades

histrico/culturais de longa durao. Os mistrios aqui tratados so aqueles encadeados a

civilizao helenstica, desenvolvida num local singular: o Mediterrneo. Da mesma forma os

cultos mistricos associam-se a cultura grega, como afirma Marvin W. Meyer em seu

compndio6 de textos sagrados, e Helmut Koester em sua monumental obra introdutria ao

Novo Testamento:

O cristianismo no se desenvolveu como representante de apenas uma cultura e

religio local antiga, a de Israel, por exemplo, mas como parte dominante da cultura

universal do mundo helenstico-romano. O elemento dominante dessa nova cultura era o

grego. Os gregos forneceram a lngua de unificao, com relao qual o prprio aramaico,

a lngua do Oriente anteriormente persa, e o latim, o idioma dos novos senhores polticos e

militares, ficavam em segundo e terceiro lugares. A filosofia, a arte, a arquitetura, a cincia

e as estruturas econmicas gregas constituram os laos que mantinham os vrios povos e

naes do Imprio Romano unidos como partes de um s todo, de um nico mundo que

abrangia Mesopotmia e sria no leste, Espanha e Glia no Oeste, Egito e frica no sul e

Alemanha e Bretanha no norte. Quando os missionrios cristos levavam sua mensagem ao

mundo, chegavam como precursores de uma religio helenstica.7

4 Helmut KOESTER, Introduo ao novo testamento I histria, cultura e religio do perodo helenstico, p.

XXIII. 5 Ibid, pp. 1 208.

6 Marvin W. MEYER, The Ancient Mysteries: A Sourcebook of Sacred Texts, pp.1-14.

7 Helmut KOESTER, Introduo ao novo testamento: 1 - histria cultura e religio do perodo helenstico,

p.XXIII.

14

Antes de adentrarmos ao estudo do universo simblico dos principais cultos mistricos

escolhidos, surgem discusses preliminares. Os mistrios tratados nessa dissertao so

fenmenos histricos que transitam num mundo impulsionado pela geografia mediterrnea.

Ela eficazmente uniu portos atravs das calmarias e tormentas de um oceano singular,

as embarcaes singravam essas guas quase sempre com pretenses comerciais ou

geopolticas. No eram s mercadorias e guerreiros que circulavam, inconscientemente as

naus mesclaram culturas to dispares quanto prximas, extrapolando o material para

ressignificar tambm o imaginrio.

Assim esto de acordo A. G. Hamman8 e Wayne A. Meeks

9, alm do j citado Helmut

Koester. Foi a realidade mediterrnea e sua interligao com a historia crist inicial que levou

March Bloch a formular a seguinte mxima:

"Porque o cristianismo {, j o disse,} por essncia uma religio histrica: quero

dizer, uma religio cujos dogmas primordiais assentam em acontecimentos. 10

Alm de histrica, ela uma estrutura de longa durao com originalidade prpria,

certamente tambm sofreu influencias e, como qualquer realidade histrica, as ressignificou.

J os mistrios so conjunturas especficas, sua anlise carece das mais complexas

dificuldades, dada amplitude dos fluxos e trocas ocorridos no Mediterrneo.

sempre numa certa situao histrica que o sagrado se manifesta. At as

experincias pessoais e mais transcendentes sofrem a influncia do momento histrico. 11

Igualmente devemos lembrar a falta de documentao histrica, textos especficos e

outros componentes que pudessem reconstruir algumas peculiaridades.

Mircea Eliade sugere um ponto que levamos em conta:

Mas a empresa do historiador das religies muito mais ousada do que a do

historiador que se prope a constituir um acontecimento ou uma srie de acontecimentos

custa dos escassos documentos conservados, pois no s tem de traar a histria de

determinada hierofania (rito, mito, deus ou culto), como, em primeiro lugar, tem de

compreender e tornar compreensvel a modalidade do sagrado revelada atravs dessa

hierofania. 12

8 A.G. HAMMAN, A vida cotidiana dos primeiros cristos (95-197), pp.5-58.

9 Wayne A. MEEKS, O mundo moral dos primeiros cristos, pp. 5-56.

10 Marc BLOCH, Apologia da Histria ou O oficio do historiador, p.58.

11 Mircea ELIADE, Tratado de Histria das Religies, p. 9.

12 Ibid. pp. 11-12.

15

Embora Marc Bloch reitere que o cristianismo uma religio histrica atrelada a fatos,

algo aparentemente bvio, uma sria questo persiste nos lampejos iniciais de nosso trabalho.

Como qualquer realidade humana, tambm a realidade das religies revela na

histria milenar por ns conhecida -, junto com a mudana contnua de ritos, de crenas, de

formas sociais religiosas, a persistncia de estruturas e comportamentos: dos mitos aos

processos simblicos, que desafiam o desgaste do tempo e a devastadora relativizao

prpria do devir histrico. 13

fato que alguns aspectos do imaginrio sobrevivem ao tempo, mas interessante

constatar como algumas prticas mistricas vez ou outra se aproximam das crists, para em

outros momentos serem reinterpretadas. Esse ir e vir gerou identidades fluidas, principalmente

se considerarmos hoje os cristianismos:

O judasmo, o cristianismo, o politesmo grego nunca existiram, enquanto

formas culturais autnomas e independentes, fora das simplificaes manualstiscas ou das

identificaes ideolgicas posteriores. A essa viso impe-se a necessidade de substituir

uma teoria mais flexvel, que possa explicar interaes que se dem em nveis culturais

diferentes. Uma ocupao militar econmico-financeiro no esgotam a possibilidade de

uma autonomia relativa de outros espaos culturais. o caso, por exemplo, do mundo

imaginrio religioso, com toda a carga de seus mitos e rituais. 14

A resposta a essas indagaes buscam respaldo novamente em Mar Bloch, pois o

mesmo ensinou que os historiadores devem abster-se do seu dolo15

maior, ou seja, antes do

princpio, devemos atentar para as causas, atravs delas que a cincia dos homens, no

tempo adquire sentido, toma flego e reconhece nossas archs () como solilquios.

No caso dos mistrios, no diferente, determinar a origem de cada um, bem como

sua histria particular, tarefa quase impossvel. Mircea Eliade16

acredita que o sagrado

pertence s estruturas da conscincia, ele remonta aos mais arcaicos pensamentos humanos,

aqueles primeiros saltos que fizeram o homem simbolizar.

Portanto os Cultos de Mistrio que trabalhamos nessa pesquisa esto concatenados a

determinadas civilizaes, nelas as interfaces desse fenmeno religioso se manifestam,

igualmente se amalgamam, reproduzem-se, assistem ao seu apogeu e declnio, permanecem e

sofrem rupturas, apresentam-se como manifestaes civilizacionais.

13

Carlo PRANDI. Giovanni FILORAMO, As cincias das religies, pp. 17-18. 14

Andr L. CHEVITARESE, Gabriele CORNELLI (Orgs.), Judasmo, Cristianismo e Helenismo: Ensaio

Acerca das Interaes Culturais no Mediterrneo Antigo, pp.26-27. 15

Marc BLOCH, Apologia da Histria ou O oficio do historiador, pp.56-68. 16

Mircea ELIADE, Histria das Crenas e das Idias Religiosas * I: Da Idade da Pedra aos Mistrios de

Elusis, pp.13-40.

16

As causas concorrentes da expanso dos mistrios esto to interligadas que seria

uma tarefa ftil tentar desenrolar fio por fio esse intrincado n. 17

As idiossincrasias globais coexistem entre diversidades como guerras, ocupaes,

epidemias e desastres naturais, apesar disso, a essncia de suas peculiaridades sobrevive ao

tempo por meio de hospedagens culturais mtuas:

Em outras palavras, o mundo cultural no s produzido coletivamente como

tambm permanece real em virtude do reconhecimento coletivo. 18

Duas palavras definem resumidamente as especificidades que caracterizam o termo

civilizao a que nos reportamos: cultura e identidade. Cultura refere-se a tudo que

construdo coletivamente, j identidade

um emaranhado de elos culturais, sociais e

econmicos que mantm povos ou etnias unidos, estabelecendo afinidades que vo desde

religio, etnia, idioma, imaginrio, mentalidade e outros afins.

Alexandre Magno ao empreender suas campanhas militares, expandiu pela primeira

vez o que entendia por elemento civilizador, um mix do helenismo aliado a cultura blica

macednica. Atravs de suas conquistas vitoriosas em muitos momentos, mal-sucedidas em

outros ampliou a influncia da Civilizao Helenstica ao longo de boa parte do mundo

mediterrneo conhecido. Esse boom cultural estabeleceu novos intercmbios que

culminaram na disseminao dos valores gregos nas culturas mediterrneas.

Apesar de certa tolerncia com as Idiossincrasias regionais, a expanso helenstica

instituiu novos hbitos, costumes e crenas no imaginrio popular, porm, as dificuldades

esbarravam sempre no Oriente, dada a sua configurao social sui generis.

Essa reconfigurao fomentou novas prticas comerciais que se adaptaram as

constantes variaes do mundo mediterrneo antigo, obviamente as hostes macednicas

sintetizaram e absorveram alguns componentes das outras realidades culturais.

Ocorreram trocas nas mais diversas tessituras civilizacionais!

1 Civilizao, Longa Durao e Mistrios: Aspectos Conceituais.

A Civilizao Helenstica no era to homognea como se imagina, portanto, acreditar

que no ocorreram permutas culturais uma demonstrao de ingenuidade histrica.

17

Franz CUMONT, Os Mistrios de Mitra, p.58. 18

Peter L. BERGER, O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociolgica da Religio, p.24.

17

Apesar de a Macednia estabelecer-se como um Imprio, ela tambm agregou novas

prticas e costumes ao seu panteo sociocultural. A originalidade dessa conjuntura, aliada a

sua sinergia, fundiram elementos, germinaram novas transfiguraes sociais:

A Historia da humanidade a Histria das civilizaes. impossvel pensar-se

no desenvolvimento da humanidade em quaisquer outros termos. A narrativa se estende

atravs de geraes de civilizaes, desde as mais antigas civilizaes sumeriana e egpcia,

passando pela clssica e mesoamericana, at a ocidental e islmica e atravs das sucessivas

manifestaes de civilizaes snicas e hindus. 19

Em 1993, o renomado professor Samuel Huntington publicou um polmico artigo na

Foreign Affairs, causando enorme frenesi acadmico, principalmente nos pases emergentes,

que consideraram suas palavras arrogantes, pois sugeriam um profundo desprezo pela

histria de determinadas naes, desqualificando-as como civilizaes. Segundo ele, os

grandes embates da evoluo humana foram travados com choques civilizatrios, uma

caracterstica inerente da histria. Pode-se at discordar de muita coisa, mas inegvel que:

Ao mesmo tempo em que as civilizaes perduram, elas tambm evoluem. Elas so

dinmicas, ascendem e caem, se fundem e se dividem e, como todo aluno de Histria sabe,

elas tambm desaparecem e so enterradas no tempo.20

A afirmao coerente com tudo o que sabemos acerca dos movimentos histricos,

enganam-se aqueles que acreditam necessariamente na obteno de um comeo para todos

os processos. Muitas vezes a trama estrutural to emaranhada que jamais seriamos capazes

de desenrol-la, restando a ns apenas os ecos conjunturais.

Falar que a histria comea aqui, muda ali e termina acol uma falcia, sobre isso

Paul Ricceur adverte:

Sob a histria, a memria e o esquecimento. Sob a memria e o esquecimento, a

vida. Mas escrever a vida outra histria. Inacabamento. 21

Como nesse primeiro momento analisamos algumas teorias civilizacionais, passemos

ao estudo de uma das noes mais importantes sobre o assunto, sendo ela vital para nossa

pesquisa:

Vivemos no tempo curto, o tempo de nossa prpria vida, o tempo dos jornais,

do rdio, dos acontecimentos, como na companhia dos homens importantes que mandam

19

Samuel P. HUNTINGTON, O Choque das Civilizaes e a Recomposio da Ordem Mundial, p.44. 20

Ibid. p.49. 21

Paul RICCEUR, A memria, a histria, o esquecimento. p.513.

18

no jogo, ou pensam mandar. o tempo, no dia a dia, de nossa vida que se precipita, se

apressa, como que para se consumir depressa e de uma vez por todas, medida que

envelhecemos. Na verdade apenas a superfcie do tempo presente, as ondas ou as

tempestades do mar. Porm, abaixo das ondas, h as mares. Abaixo dessas, estende-se a

massa fantstica da gua profunda.22

A noo de tempo que desejamos apresentar perde sentido se no for devidamente

concatenada ao que Fernand Braudel entende por civilizao. O historiador comea sua obra

Gramtica das Civilizaes com uma critica polmica; segundo o mesmo, a palavra

civilizao significaria aquilo que se ope ao brbaro, justapondo valores morais e

materiais de forma a delimit-los em esferas opostas.

Esse antagonismo levou Marx23

a entender que tal oposio fora determinante para

que a histria humana evolusse ritmada pela constante tenso entre infra-estrutura e

superestrutura, o que gerou relaes marcadas pela adversidade ou animosidade - das

classes sociais. Apesar de algumas premissas pertinentes de Karl Marx, a histria pode ser

vislumbrada em outros ngulos que no os desenhados pelo materialismo histrico.

Charles Seignobos acrescenta algo importante para nossa viso de civilizao:

A civilizao consiste em estradas, portos e cais. 24

Durante toda a epopia humana tendncias majoritrias estiveram presentes, ditando

regras ou apontando caminhos, no ocorreram rupturas sem contatos.

Na antiguidade os imprios erigiam seus deuses e os faziam cultuados por onde se

estendesse seu domnio, permitindo transfiguraes que adaptavam rituais e prticas, as

ressignificaes eram constantes e necessrias.

Nas identidades civilizacionais ocorre o mesmo, s que em maior escala.

A palavra civilizao no singular, indicando oposio, no cabe em nossa reflexo, a

que nos interessa adquiriu novo sentido partir de 181925

, significando todas as

caractersticas coletivas de um grupo num determinado continuum.

Ora, esse tempo verdadeiro , por natureza, um continuum. tambm perptua

mudana. 26

22

Fernand BRAUDEL, Reflexes sobre a Histria, p.369. 23

Charles SEIGNOBOS in: Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, p. 27. 24

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, p.27. 25

Ibid. p.28. 26

Marc BLOCH, Apologia da Histria ou O oficio do historiador. p. 55.

19

possvel entender que os agrupamentos humanos estabelecem entre si identidade e

cultura prpria, no de forma homognea, mas mantendo certos laos em comum.

Braudel chama isso de civilizaes, num sentido amplo que no exclua as diferentes

alteridades. Pode-se falar, por exemplo, de uma Civilizao Ocidental, de uma Civilizao

Oriental, e, em nosso caso, de uma Civilizao Helenstica baseada na Cultura

Mediterrnea, onde fluxos e trocas mesclam espaos, sociedades, economias e

mentalidades coletivas. 27

Em Braudel, o homem descentrado e sofre, de alguma forma, a temporalidade

muito mais do que a produz. O homem perdeu o controle total de sua historicidade ele j

o teve algum dia? e sabe que sob limites geogrficos, sociais, mentais, culturais,

econmicos, demogrficos, conscientes e inconscientes, que ele no pode vencer, pois no

dependem da sua vontade. Esta uma novidade do pensamento histrico, presente j em

Bloch e Febvre, e que Braudel elabora e radicaliza: o descentramento do homem, tornando-

o serivel e no evento singular.28

O homem tambm produto de seu meio, certamente influenciamos e somos

mudados pelo que est ao nosso redor, mas as propores de tamanho empreendimento

dependem de incontveis fatores. Ser que o cristianismo no teve sua evoluo atrelada a

civilizao em que estava inserido? Sim! Por isso encontramos vrios cristianismos.

O mesmo no ocorreria com os mistrios? Uma civilizao deve se localizar

geograficamente, tendo seus espaos delimitados, contudo, muitas vezes as fronteiras

ultrapassam o fsico. Mesmo no estando nos limites de sua terra natal, um judeu pode

praticar seus rituais e crenas fora da terra natal.

A Civilizao Helenstica ocupou espaos graas mobilidade humana, porm, as

potncias naturais igualmente avanam, tomam locais, inauguram paisagens e findam

extenses. Aonde figura o Mediterrneo, existia uma longa vastido de terra que aps o

rompimento do estreito de Gibraltar, foi aos poucos assenhoreada pelo azul profundo das

guas mediterrneas. Espaos so locais onde encontramos a caa, os alimentos (cultivo,

coleta e processamento), as habitaes e tudo o que corresponde civilizao que ocupa

determinados permetros geopolticos. Por esse motivo aduzimos um homem mediterrneo,

seja do sul ou do norte, a robustez de suas clivagens os une, aproximando-os do oceano, e

fazendo-os interdependentes de uma poderosa fonte de vida.

27

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, pp. 31-44. 28

Jos Carlos REIS, Escola dos Annales: A inovao em Histria, p.105.

20

Por influncia de certas vantagens, cada civilizao seria filha de privilgios

imediatos, de que o homem no tarda a lanar mo. Assim, na origem dos tempos, as

civilizaes fluviais do Velho Mundo florescem ao longo do rio Amarelo (civilizao

chinesa), do Indo (civilizao pr-indiana), do Eufrates e do Tigre (Sumria, Babilnia,

Assria), do Nilo (civilizao egpcia). Do mesmo modo, floresceram civilizaes

talassocrticas, filhas do mar: a Fencia, a Grcia, Roma (se o Egito dom do Nilo, elas so

um dom do Mediterrneo); ou esse conjunto formado pelas vigorosas civilizaes da

Europa nrdica, centradas no Bltico e no mar do Norte, sem esquecer o prprio oceano

Atlntico e suas civilizaes perifricas o essencial do Ocidente atual e de suas

dependncias no est agrupado em torno do oceano, como o mundo romano, outrora, em

torno do mediterrneo? De fato esses casos clssicos revelam sobretudo o primado da

circulao. Civilizao alguma vive sem movimento prprio; cada qual enriquece com

trocas, com os choques acarretados pelas vizinhanas frutuosas.29

Homens se ligam por muitos fatores, no caso do espao mediterrneo, encontramos

muitos componentes culturais que so partilhados, s vezes mudados, mas jamais extintos.

Vrias culturas civilizacionais conviveram entre si no Mediterrneo, contudo, e num

certo momento histrico, uma delas assumiu a proeminncia geopoltica, por isso falamos

de uma Civilizao Helenstica com Cultura Mediterrnea. nesse contexto que os

mistrios se desenvolveram no seu estgio civilizacional, ou seja, em ritos, smbolos e

imagens. Aps as conquistas de Alexandre Magno o territrio diminuiu e a nova geografia

influenciou diretamente o modus vivendi da cultura grega, amalgamando-a com as tradies

orientais por onde o lder macednico passou, o que conhecemos como perodo helenstico:

Alguns nomes usados no estudo da Histria so criados para simplificar, mas

podem confundir. Este o caso do helenismo. Os gregos chamavam-se de helenos e os

estudiosos modernos utilizaram o termo helenstico para referir-se civilizao que se

utilizava do grego como lngua oficial, a partir das conquistas de Alexandre, o Grande (336

a.C.), at o domnio da Grcia, em 145 a.C. Ou seja, um termo que no se confunde com

helnico, que o mesmo que grego. 30

Se na extenso territorial dos espaos geogrficos nascem as civilizaes, nele

tambm se originam as sociedades, pois:

A atividade que o homem desenvolve de construir um mundo sempre um

empreendimento coletivo. 31

29

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, p. 32. 30

Pedro Paulo FUNARI, Grcia e Roma: Vida pblica e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e

sexualidade, pp. 75-76. 31

Peter L. BERGER, O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociolgica da Religio, p. 29.

21

Elas se desenvolvem coletivamente por meio de compartilhamentos, noutros casos

via embates, inevitveis na histria do processo civilizatrio. Embora sejam s vezes

violentos, so igualmente prolferos nos saltos evolutivos da humanidade.

Braudel32

acredita que as civilizaes no progridem sem uma estrutura que anime

suas permanncias/rupturas, aqui a tessitura estrutural a que ele alude so as sociedades que,

mutatis mutandis, constroem os alicerces culturais das idiossincrasias globais.

Lvi-Strauss33

pensava em redes coletivas interligadas, jamais distintas da

civilizao que as abriga, nesse modus operandi os espaos so preenchidos por sociedades

que encerram disputas, beiram tenses, reverberam fluxos e trocas, aglutinando pessoas em

torno de ideais nem sempre comuns.

Se lembrarmos que a trajetria humana dinmica, perceber-se- que sem uma

ordenao ante a entropia, o homem ficaria a merc dos predadores e das potncias naturais.

Da sua tarefa de ordenar o Caos surgiram as sociedades, toda a produo humana,

igualmente o que Braudel entende como civilizao, est concatenada a formao de

sociedades, que invariavelmente gravitam em torno de uma cidade, mais ainda:

O sinal exterior mais forte dessas diferenas entre culturas e civilizaes

sem dvida a presena ou a ausncia das cidades. A cidade prolifera no estgio das

civilizaes e mal se esboa no nvel das culturas. 34

Peter L. Berger discutiu o papel construtivo das sociedades na pioneira obra O

Dossel Sagrado. Suas concluses so semelhantes s de Braudel:

Uma ordem significativa, ou nomos, imposta as experincias e sentidos discretos

dos indivduos. Dizer que a sociedade um empreendimento de construo do mundo

equivale a dizer que uma atividade ordenadora, ou nomizante. 35

bvio que antes das cidades existia cultura nos entornos mediterrneos, e foi por

meio dessas diversas manifestaes culturais que o homem mediterrneo foi ao longo do

tempo criando as prticas sociais necessrias a sua transio para as sociedades urbanas.

Das cidades surgiram as ressignificaes culturais que propiciaram a potencializao

dos cultos mistricos no mundo helenstico.

32

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, p. 37. 33

Ibid. p. 37. 34

Ibid. p.38. 35

Peter L. BERGER, O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociolgica da Religio, p.32.

22

As sociedades contribuem massivamente na histria humana, porque:

Quando a sociedade subjacente se agita ou se transforma, a civilizao se

transforma. 36

Sendo feita de permanncias/rupturas, o que sobrevive se perpetua, pois:

Mais que a mudana, porm, o essencial do social, sua essncia, diria Martin

Heidegger, o que dura, perdura, mantm-se obstinadamente em seu lugar, herana do

passado que atravessa o tempo atual como a roda-de-proa do navio fende a gua movedia

do mar. 37

Os mistrios - como fenmeno religioso/cultural - so produtos dessas interaes, ou

melhor, desses fluxos e trocas, e:

Para durar, essas realidades se repetem. H, evidentemente, muitas outras

repeties, muitas outras permanncias, no fosse a continuidade das civilizaes (as

religies, as falas), dos equilbrios econmicos, das hierarquizaes sociais e econmicas

inevitveis realidades que se revezam lentamente, diferentes em suas formas, mas

anlogas em suas razes de ser e durar. 38

As sociedades movem-se em diferentes direes, somam fluxos/influxos, sofrem

perdas, produzem continuidades/descontinuidades e geram economias.

Raramente elas se manteriam no curso dos tempos sem customizar seus excedentes.

Certamente o principal motor do processo de sedentarizao humana foi a economia

produtiva remanescente, sobras originam trocas. A Cultura Mediterrnea entendeu bem tal

premissa, as guas, ao invs de segregarem, uniram grupos, aproximando-os da grande

potncia natural em comum: o Mediterrneo.

fato que trs quartas partes da Terra so cobertas por gua, bem como trs quartos

de cada planta ou animal se compem da mesma frao liquida. Homens esto diretamente

ligados ao curso das guas, sua sobrevivncia depende dela, talvez essa seja a razo

fundamental pela qual o fluido vital povoa o imaginrio global e, consequentemente,

permanece vivo na cultura religiosa. Foi por ela que os homens empreenderam mudanas

decisivas na sua escala evolutiva! Dependendo inicialmente de caa e coleta, o ser humano

precisou recorrer a um novo modus operandi, j que as constantes mudanas climticas -

desertificaes e inundaes - rarearam muitos recursos naturais vitais.

36

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, p. 37. 37

Fernand BRAUDEL, Reflexes sobra a Histria, p.340. 38

Ibid. p.370.

23

A hostilidade geogrfica imps severas privaes, mas tambm fixou o homem em

povoamentos sedentrios (aldeias), que serviram de modelo para as primeiras manifestaes

urbanas do Crescente Frtil. Aps a consolidao da nova forma de vida cotidiana, os povos

antigos aprenderam o cultivo agrcola.

Com o bom uso dos primeiros frutos da agricultura, os homens experimentaram um

supervit de mantimentos que potencializou a sobrevivncia humana ante a fora da natureza,

esses excedentes abriram caminho para a economia de trocas. E certamente foi moldando a

mentalidade religiosa de forma a criar tambm uma economia do Sagrado.

O estabelecimento das culturas nmades ao redor das bacias hidrogrficas representou

uma revoluo que alteraria at as prticas religiosas desses contingentes, aspectos que

trataremos no prximo captulo. Como a gua o recurso primordial da vida, seria natural que

as sociedades desenvolvidas ao longo dos rios obtivessem vantagens ao administr-la, a

Civilizao Egpcia ilustra em menor escala alguns pormenores do Mediterrneo:

O Egito ddiva do Nilo (Herdoto 450 a.C.).

A economia egpcia s foi eficaz graas aos desdobramentos proporcionados pelo

Nilo, seu calendrio revela a dimenso de sua importncia, ele foi inteiramente baseado no

estudo das cheias anuais, ciclos determinantes na fartura da produo lavradia.

Trs estaes39

marcavam as atividades, sendo a primeira (Akhet) de julho a

novembro, quando ocorriam as inundaes. De novembro a maro (Peret), iniciava-se a

semeadura, findando o ciclo com o tempo da colheita (Shemu), que ia de maro at julho.

A bacia do Nilo servia tambm de transporte para o escoamento dos excedentes, que

ocorria nos arredores de suas margens, tendo como conseqncia direta o abastecimento

simultneo dos diversos Nomos (vilarejos) espalhados em sua trajetria.

Empreendemos este recorte no intrito de afirmar que o Mediterrneo, como o Nilo,

produziu condies nicas para os fluxos e trocas culturais, e, alm de todos as

especificidades que destacamos at o momento, a regio mediterrnea ofereceu um terreno

frtil para as ressignificaes dos mistrios.

La cuenca mediterrnea h sido siempre y sigue siendo un lugar de contato

privilegiado entre as civilizaciones de tres continentes, pero tambin (y correlativamente)

de conflitos entre tradiciones heterogneas. Las grandes civilizaciones resultan con

frecuencia del reencuentro de muchas tradiciones que se fusionaron para lograr sntesis ms

39

Mauricio Elvis SCHNEIDER, O Egito Antigo, p.13.

24

ricas donde la originalidad de los componentes ni se advierte a simple vista ni carece

necesariamente de valor.40

Braudel entendia que as civilizaes dependem intimamente dos fatores materiais41

, a

seu ver, tal sujeio seria a alternncia das flutuaes econmicas, pois, se num dado

momento o excedente produzia riquezas, em outro instante sua falta sentenciava o destino

poltico, cultural e religioso dos povos, como ocorreu aps a disseminao dos valores

helensticos no Oriente.

Um ltimo aspecto deve unir-se aos componentes civilizacionais que apresentamos, as

civilizaes so mentalidades coletivas, elas surgem de determinadas circunstncias

histricas conjunturas - que independem do sujeito histrico, muitas vezes ele acaba sendo

produto das interaes do meio em que vive, como no caso do homem mediterrneo, uma

sntese de ressignificaes:

Em cada poca, certa representao do mundo e das coisas, uma mentalidade

coletiva dominante anima, penetra a massa inteira da sociedade. Essa mentalidade que dita

as atitudes, oriente as opes, arraiga os preconceitos, inclina as opes de uma sociedade,

eminentemente um fato de civilizao.42

Por isso Braudel entende a histria como um jogo contnuo de foras, o tempo

histrico no uma grande estrutura linear, que tanto os historiadores positivistas fizeram uso,

mas um redemoinho de idas e vindas, conjunturas onde encontramos as rupturas.

Igualmente constatamos o poder das permanncias em algumas estruturas onde:

O social, o histrico, o cultural, o econmico, o poltico sempre tm certa

espessura; todos eles admitem clivagens, processos e destinos diferentes, conforme os

estgios. Surgem todas as revolues, todas as rupturas que vocs podem imaginar, todos

os cataclismos, cujo registro a histria mantm; no fim das contas, uma hierarquia se

constitui, emerge de novo. Para abreviar o raciocnio com uma imagem, digamos que a

sociedade, uma vez passadas as provas, um prdio de vrios andares. Mudaram os

ocupantes, permaneceram os andares.43

Braudel entende as estruturas que resistem ao tempo como longa durao e:

Livres, assim, de suas cercas, as palavras civilizao e cultura revelam sua

imensa extenso, e precisamente este o primeiro objetivo que me propunha no h uma s

dcada, brilhante ou primitiva, que no seja tocada em toda a sua espessura por contgios e

40

Robert TURCAN, Los cultos orientales em el mundo romano, p. 15. 41

Fernand BRAUDEL, Gramtica das Civilizaes, pp.39-42. 42

Ibid. p.42. 43

Fernand BRAUDEL, Reflexes sobra a Histria, p.342.

25

intruses culturais, que, na verdade, nada deixam fora de seu alcance, nem os humildes

detalhes da vida cotidiana, nem os pices da vida intelectual. Toda sociedade , portanto,

cultura, quer consideremos o rs-do-cho, quer os andares superiores da vida. Do mesmo

modo, toda sociedade civilizao.44

Se quisssemos um sentido objetivo para a metfora de Braudel, mudam-se os

ocupantes, permaneceram os andares, classificaramos a histria mediterrnea da seguinte

forma: a Civilizao Helenstica e o Cristianismo com seus Cristianismos - so estruturas

de longa durao, se repetem em vrios mbitos, os mistrios pertencem s conjunturas da

curta e mdia durao. Embora as origens sejam variadas, as ressiginificaes dos Antigos

Cultos de Mistrio que estudamos esto atreladas a expanso helenstica, sendo um fenmeno

tpico da Plis (). Robert Turcan afirma que eles abriram caminho para o crescimento

dos diversos cristianismos:

Al hacer esto, cree estar atacando los centros neurlgicos ms vitales de la

idolatria. Y, sin embargo, com La romazacin de los dioses extranjeros se haba producido

uma grave mutacin de la piedad occidental em el mismo seno del paganismo. Al

acostumbrarlo o reaconstrumbrarlo a um ritmo cotidiano, semanal, solar y estacional, al

inculcarle la nocin de um dios sufriente y salvador y el sentido del sacrifcio redentor, de

la remisin personal, de la devocin mstica o mistrica, los dioses orintales prepararon el

terreno em el que crecera el cristianismo. Abriram el camino a una religin que tnia que

suplantarlos, porque, a la inversa de los sincretismos conciliadores, rompia radicalmente

com lo que los cristianos llamaban el culto a los demnios. 45

Ser? Gerd Theissen46

acredita que o cristianismo resulta da superao e

reinterpretao simblica do judasmo e das prticas religiosas helensticas. Mircea Eliade

entende o cristianismo da seguinte forma:

Do ponto de vista da histria das religies, o judeu-cristianismo nos apresenta a

hierofania suprema: a transfigurao do acontecimento histrico em hierofania. 47

Trabalharemos o conceito de hierofanias no prximo captulo, que reserva as

principais consideraes conceituais dos Antigos Cultos de Mistrio.

Com relao histria cultural do perodo helenstico, Helmut Koester48

e Samuel

Angus 49

algo em comum.

44

Fernand BRAUDEL, Reflexes sobra a Histria, p.347. 45

Robert TURCAN in: Henri-Charles PUECH (Org). Historia de Las Religiones En El Mundo Mediterraneo y

En El Oriente Prximo: formacion de las religiones universales e de salvacion, p.93. 46

Gerd THEISSEN, A Religio Dos Primeiros Cristos: Uma teoria do cristianismo primitivo, pp.11-94. 47

Mircea ELIADE, Imagens e Smbolos: Ensaio sobre o simbolismo mgico-religioso, p.169. 48

Helmut KOESTER, Introduo ao novo testamento I histria, cultura e religio do perodo helenstico, pp.

1-278. 49

Samuel ANGUS, The Mystery-Religions and Christianity, pp. 1-38.

26

Ambos entendem que o novo cosmopolitismo da Civilizao Helenstica foi

importantssimo para entendermos as ressignificaes tratadas nesse estudo.

Seus estudos demonstram que a Plis e o Kon estiveram muito presentes no sucesso

dos cultos mistricos, pois esses componentes deram enorme mobilidade para que as prticas

religiosas produzissem o sincretismo mediterrneo.

Alexandre Magno foi um mestre na arte de incentivar o culto religioso sincrtico,

apoiando procisses, patrocinando festas, banquetes etc.

Ao empreender suas conquistas, investia fortemente no culto dinstico50

de sua

imagem e na Plis, elemento padro para a instituio dos valores helensticos:

A fuso das crenas religiosas e filosficas foi posteriormente seguida pelo Imprio

Romano, que cultivava a tolerncia por vrios fatores, que trataremos mais adiante.

Se retomarmos a metfora de Braudel

sobre o edifcio estrutural, conclumos que a

Civilizao Helenstica uma estrutura de longa durao, os mistrios de que falamos so

conjunturas que trafegam nesse contexto. claro que muitas crenas existiam antes, mas o

modelo cosmopolita e a geografia mediterrnea propiciaram enorme fluidez s prticas

mistricas.

A essa histria profunda, chamei estrutural mas, por favor, entenda-se, e de uma

vez por todas, que meu estruturalismo nada tem a ver com o estruturalismo (que, por sinal

saiu de moda) dos lingistas. Para mim, estrutura tudo o que resiste ao tempo da histria,

o que dura e perdura logo algo bem real, e no a abstrao da relao ou da equao

matemtica. 51

No prximo tpico analisaremos alguns aspectos da Plis e sua relao direta com a

Civilizao Helenstica e os mistrios.

Uma civilizao, via de regra, implica uma organizao poltica formal com

regras estabelecidas para governantes (mesmo que autoritrios e injustos) e governados;

implica projetos amplos que demandem trabalho conjunto e administrao

centralizada(como canais de irrigao, grandes templos, pirmides, portos ,etc.);implica a

criao de um corpo de sustentao do poder(como a burocracia de funcionrios pblicos

ligados ao poder central, militares, etc.);implica a incorporao das crenas por uma

religio vinculada ao poder central, direta ou indiretamente(os sacerdotes egpcios, o

templo de Jerusalm, etc.);implica uma produo artstica que tenha sobrevivido ao tempo e

50

Jos Antonio Dabdab TRABULSI, Dionisismo, Poder e Sociedade: na Grcia at o fim da poca clssica,

p.238.

Nota do autor: No descartamos a falibilidade das reflexes do tempo de longa durao, porm, tal discusso

se distanciaria de nossa proposta dissertativa. Fica aqui registrada uma crtica interessante sobre o assunto: Paul

RICCEUR, A memria, a histria, o esquecimento, pp. 162-209. 51

Fernand BRAUDEL, Reflexes sobre a Histria, p.371.

27

ainda nos encante(o passado no existe em si, seno pelo fato de ns o

reconstruirmos);implica a criao ou incorporao de um sistema de escrita(os incas no

preenchem esse quesito, e nem por isso deixam de ser civilizados);implica, finalmente, mas

no por ltimo, a criao de cidades.52

1.1 Plis e Religio Grega: Identidades fludas em ressignificao.

Os bosquejos iniciais do primeiro captulo demonstraram como os mistrios se

conectam a uma estrutura maior. Certamente haveria uma pliade de grupos a serem

estudados como tais, mas escolhemos privilegiar os cultos que se aninham nas cidades de

Cultura Mediterrnea. Os Antigos Cultos de Mistrio que damos prioridade so aqueles que

se aproximam ou distanciam das diversas realidades helensticas, romanas e crists.

Nesse sentido a Plis desempenha papel de extrema relevncia; pois os fluxos e trocas

ocorrem nela, e neste cenrio sui generis que encontramos a possibilidade das

ressignificaes. No mundo cosmopolita helenstico a cultura fervilha, se transforma, adquire

e perde sentido, mas, e acima de tudo, floresce como realidade humana.

Com a religio no poderia ser diferente, alm de humana histrica e:

... uma manifestao antropolgica e histrica que pode e deve, como qualquer

outro fenmeno humano, se sujeitar aos mtodos de pesquisa critica. 53

No pretendemos redigir uma apologtica das cidades, esquecendo os problemas que

rondam seu crescimento, nem tampouco demoniz-las tentando levantar a bandeira da pureza

rural, apenas reconhecemos que nela ocorrem as interseces socioculturais dos mistrios.

O mundo mediterrneo possui um aspecto singular para sua disseminao, pois ele

germinou uma cultura porturia que facilitou as comunicaes, o comrcio e, ao mesmo

tempo, a religio, que encontrou trfego livre.

De fato o sincretismo ocorreu primeiro atravs das conquistas macednicas, depois

continuou a se expandir no mundo romano da Urbe.

Luego, la conquista del Oriente por Alejandro, despus la del mundo

mediterrneo por Roma iban a provocar otros contactos, otros cmbios, otros flujos e

influjos generadores de crisis propicias al renacimiento de las devociones nacionales, bajo

distintas formas, tanto en Oriente como en Ocidente.54

52

Jaime PINSKY, As primeiras civilizaes, p.46. 53

Giovanni FILORAMO, Carlo PRANDI, As cincias das religies, p.9. 54

Robert TURCAN, Los cultos orientales em el mundo romano, p. 18.

28

Robert Turcan apresenta dados interessantes na introduo de Los cultos orientales

em el mundo romano, segundo ele a configurao geogrfica55

das cidades porturias abriu

caminho para que os cultos orientais migrassem pelo Mediterrneo, seus principais

propagadores teriam sido mercadores fencios, cartagineses e outros que utilizavam a rota

mediterrnea como meio de subsistncia.

La proliferacin de las comunidades mistricas, y sobre todo dionisacas para

comenzar, satisfacia a esta preocupacin de emigrantes que quieren reencontar una famlia,

una identidad al Margen de una sociedad en disgregacin. Los marineros, los comerciantes,

los intelectuales errantes, los filsofos aptridas y los que pretendem ser aptridas (El sbio

es en cualquier lugar un extranjero, segn Aristipo de Cirene) necesitan de dioses

universales, em todos os lugares presentes, y si son devotos, de cultos practicables en los

puertos donde desenbarcan y cuando amarran en ellos, en cualquier poca del ao. Las

religiones orientales tenan su geografa sagrada y sus cultos tpicos. Pero los griegos o los

orientales helenizados supieron llevarlos consigo, adaptarlos, moderar la difusin y la

celebracin para responder a las aspiraciones de todos estos desarraigados. 56

O estudo ratifica as teses de Samuel Angus sobre os fatores que favoreceram a

proliferao dos mistrios, j que ambos os autores consideram a helenizao57

e o Koin

fatores determinantes nas questes do trnsito religioso no mundo mediterrneo.

El griego desempeaba entoces un papel hoy atribuido ao ingls de lengua

internacional: era, adems, el lengua litrgica de los primitivos cristianos. Asi, el

intermedirio de todos estos cultos era helenfobo. Paralelamente, la expresin

iconogrfica de las religiones orientales era griega. 58

Outros pontos da anlise de Turcan sobre os mistrios devem ser apresentados com

cautela, principalmente a sua crena de que a Civilizao Grega herdeira direta do

Oriente. Quando afirma isso, ele o faz numa perspectiva de grande escala, levando em

considerao a fora do sincretismo cultural/religioso do modelo helenstico.

Robert Turcan entende que o fruto dos imensos encontros culturais serviu como

prmio para outro grande expoente militar, que ressignificou o legado grego em suas

conquistas, potencializando-o em fronteiras alm das imaginadas por Alexandre Magno.

Dessa forma, alm da penetrao sincrtica na Civilizao Helenstica, temos a

disseminao da mesma sob a tutela do Imprio Romano:

55

A.G. HAMMAN, A vida cotidiana dos primeiros cristos (95-197), pp.11-40. 56

Robert TURCAN, Los cultos orientales em el mundo romano, p.29. 57

Ibid. p.20. 58

Ibid. p. 20.

29

La civilizacin griega es hija de Oriente, como La civilizacin romana es un

producto de la educacin griega.59

Quando avaliamos a sntese empreendida por Turcan, da mesma forma consideramos

a atual viso histrica das estruturas, no mais falamos de um cristianismo homogneo, mas

de vrias conjunturas que estabelecem prticas crists em comum, levando em conta ritos,

crenas e liturgias prprias de sua realidade. As teorias apresentadas na introduo60

do

livro Los cultos orientales em el mundo romano corroboram com a hiptese dos fluxos e

trocas. Nele, Turcan utiliza a expresso Cultos Orientais, cunhada por um dos primeiros

estudiosos dos cultos mistricos.

Franz Cumont, a quem Turcan se reporta, no dispunha das ferramentas

proporcionadas pela arqueologia que, apesar de dependente das interpretaes pessoais,

revelou novas fontes analticas, j que documentos escritos so escassos na seara dos

mistrios. Mesmo assim Cumont foi um pioneiro do assunto, tendo produzido algumas

teorias interessantes sobre a trplice relao entre Mistrios, Imprio Romano e

Cristianismo. Turcan comunga da seguinte opinio de Cumont:

The invasion of the Oriental religions that destroyed the ancient religions and

national ideals of the romans also transformed the society and government of the empire,

and in view of this fact it would deserve the historians attention even if it had not

foreshadowed and prepared the final victory of Christianity. 61

Cabem aqui algumas explicaes gerais sobre a terminologia que usamos ao longo

das explanaes. Embora concordemos com vrios aspectos dos estudos de Turcan, parece-

nos mais coerente utilizar Antigos Cultos de Mistrio, como sugere Walter Burkert.

Segundo ele, existem trs esteretipos62

na anlise dos mistrios:

a) O primeiro diz que as Religies de Mistrio pertencem antiguidade tardia,

sendo um fenmeno tipicamente helenstico, contudo, os dados arqueolgicos63

demonstram que o culto Deusa-Me j era celebrado durante o perodo arcaico.

The mountain-top suggests a weather god; but the greek fire festivals are in honour

of a goddess.64

59

Robert TURCAN, Los cultos orientales em el mundo romano, p. 16. 60

Ibid. pp.15-38. 61

Franz CUMONT, Oriental religions in Roman Paganism, p.19. 62

Walter BURKERT, Antigos Cultos de Mistrio, pp.13-24. 63

Walter BURKERT, Greek Religion, pp. 1-189. 64

Ibid. p. 27.

30

b) O segundo esteretipo diz respeito sua origem oriental, visto que este termo

contemporneo e trai a si mesmo. Anatlia, Egito, Ir e outros mundos possuam

identidades prprias em separado.

c) O ltimo ponto a se considerar a questo espiritual, j que encontramos enormes

semelhanas entre o culto cristo e os mistrios. No entanto, isso no significa que

todas as variantes tratem da salvao, talvez seja mais correto afirmar que elas

convergem para questes metafsicas sem esboar ou aludir a questes

escatolgicas.

Os autores cristos definem os cultos mistricos como Religies de Mistrio,

entendendo-os como sistemas dogmticos a serem superados pelo cristianismo, como o caso

de Gerd Theissen65

. Nosso trabalho assume uma abordagem metodolgica pag para esses

cultos, reconhecendo que eles esto concatenados a sua realidade histrico/cultural.

Nessa pesquisa separamos o grupo das grandes estruturas religiosas, que produziram

escritos, liturgia e outros componentes que as perpetuaram na histria de longa durao.

Noutro caso esto as conjunturas que possuem iniciaes ritos e mitos que os

caracterizam com um fenmeno religioso, no necessariamente uma religio66

de longa

durao par excellence. O termo amplo demais para ser discutido aqui, portanto a linha de

raciocnio que nos norteia a de Walter Burkert: Antigos Cultos de Mistrio.

Em todo caso, os mistrios devem ser vistos como uma forma especial de culto

prestado no contexto mais amplo da prtica religiosa. Portanto, no apropriado o uso da

designao religies de mistrio, como nome geral e exclusivo para um sistema fechado.

As iniciaes aos mistrios constituam uma atividade opcional dentro de uma religio

politesta, comparvel, digamos, a uma peregrinao a Santiago de Compostela dentro do

sistema cristo. 67

Quando falamos dos mistrios, os associamos primeiro as conjunturas do sincretismo

helenstico, depois ao romano, levando em conta os pontos originais de cada especificidade

local, j que difcil determinar onde e quando tal mistrio se origina.

apropriado insistirmos na volatilidade prpria de cada um, eles s so reconhecidos

como tal devido s ressignificaes ocorridas principalmente na Plis.

65

Gerd THEISSEN, A Religio Dos Primeiros Cristos: Uma teoria do cristianismo primitivo, pp.11-94. 66

Jos Severino CROATTO, As Linguagens da Experincia Religiosa: Uma introduo fenomenologia da

religio, pp.17-79. 67

Walter BURKERT, Antigos Cultos de Mistrio, pp.22-23.

31

Decerto ocorreram fluxos e trocas fora dela, mas os componentes essenciais para que

os Mistrios de Isis, Elusis, Mitra e Dionsio adquirissem os contornos que lhes atribumos

esto no modus operandi cosmopolita helenstico, seja dentro ou fora da Grcia.

Os quatro mistrios sero motivo de nossas explanaes no segundo captulo, para

que, no terceiro e ltimo capitulo, observemos o caso especifico das aproximaes e

distanciamentos simblicas entre o culto dionisaco e o texto de Joo 2, 1-11.

Sendo assim, voltemos ao universo onde os mistrios tomam corpo e vigor,

progredindo contiguamente ao panteo grego.

A religio grega era um importante fator de unidade com relao a cidades com

instituies e costumes to diversos. No corpo dessa religio, entretanto, havia muitas

crenas, que variavam com o tempo e de local a local, j que no havia livros sagrados

definitivos, como a Bblia, nem um clero organizado. Contribuies de populares, poetas,

artistas, para o livre desenvolvimento das crenas, imagens e cultos foram significativas e

caracterizaram a religiosidade grega. 68

Ela era uma grande estrutura de longa durao, mas no aos moldes do cristianismo,

suas especificidades variavam de acordo com as peculiaridades da Plis que a abriga.

Apesar dos elementos em comum, seu todo no possua dimenses universalistas, uma

caracterstica prpria da ideologia salvifca crist.

Entre o religioso e o social, o domstico e o cvico, portanto, no h oposio

nem corte ntido, assim como entre sobrenatural e natural, divino e mundano. A religio

grega no constitui um setor parte, fechado em seus limites e superpondo-se vida

familiar, profissional, poltica ou de lazer, sem confundir-se com ela. 69

Quando Burkert apresenta seu terceiro esteretipo, que diz respeito espiritualidade,

suas conjecturas remetem aos componentes conceituais de outro grande expoente dos estudos

da antiguidade, j que:

Enganamo-nos tremendamente quando apreciamos esses povos antigos sob o

ponto-de-vista e fatos de nosso tempo. Os erros nesta matria no esto isentos de perigos.

A idia que formamos sobre a Grcia e Roma amide transtornou nossas geraes. Por se

ter observado mal as instituies da cidade antiga, imaginou-se poder reviv-las em nosso

68

Pedro Paulo FUNARI, Grcia e Roma: Vida pblica e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e

sexualidade, p. 57. 69

Jean-Pierre VERNANT, Mito e Religio na Grcia Antiga, p.7.

32

seio> Foi gerada uma iluso com respeito ao que era a liberdade para os antigos e graas a

isto to-s a liberdade para os modernos foi posta em risco. 70

claro que Fustel de Coulanges era um homem de seu tempo, ele viveu de 1830 a

1889, poca do auge do iluminismo. Como um ilustre filho de sua era, achava-se um

moderno, ou melhor, um homem no pice do conhecimento humano, ou melhor, da evoluo.

Seus tratados refletem o contexto, dando a sua interpretao um teor quase

evolucionista, tpico de um perodo em que o fenmeno religioso era visto com desconfiana.

Mas indiscutivelmente ele abriu caminho para uma nova abordagem dos estudos de

antiguidades, interpretando imparcialmente a sociedade antiga a partir dela mesma,

classificando-a sob a tica de seus prprios documentos.

O carter e a virtude da religio dos antigos no era elevar a inteligncia humana

concepo do absoluto, abrir ao esprito vido uma senda fulgurante em cuja extremidade

acreditasse entrever Deus. Essa religio era um conjunto mal encadeado de pequenas

crenas, pequenas prticas e ritos minuciosos. No era sondar-lhe o sentido; nada havia na

religio para ser refletido, para ser considerado. A palavra religio no significava o que

significa para ns; esta mesma palavra, entre os antigos significava ritos, cerimnias e atos

de culto exterior. A doutrina era pouca coisa, as prticas que eram o importante; eram elas

que eram obrigatrias e impiedosas. A religio constitua um liame material, uma cadeia

que mantinha o homem na escravido. O homem a tinha criado e era governado por ela. Ele

a temia e no ousava raciocinar, discutir, nem fit-la de frente. Deuses, heris, mortos, dele

reclamavam um culto material, e ele lhes pagava sua divida para fazer dele amigos, e mais

ainda, para no fazer deles inimigos.71

Falar que a religiosidade antiga se assemelha as nossas concluses sobre a mesma soa

um tanto artificial, ainda mais quando constatamos a amplitude da palavra sincretismo.

Franz Cumont72

chega ao ponto de dizer que o paganismo greco-romano era uma

mistura de prticas e crenas sem lgica.

Originalmente, as religies dos gregos e dos povos do Oriente Mdio eram cultos

locais, solidamente estabelecidos por um Estado, cidade ou nao. Suas divindades estavam

ligadas a lugares especficos, como um santurio, um bosque sagrado ou uma montanha.

Mas essa viso estava mudando, tanto devido a influncia da filosofia e do ensino quanto

mobilidade da populao. Deuses gregos foram levados para o leste, s vezes literalmente

carregados na forma de uma esttua ou de outro objeto sagrado, para se tornarem deuses

das novas cidades gregas. Como os reis helensticos procuravam fortalecer o elemento

grego em seus pases, esse processo recebeu incentivo oficial. Por outro lado, divindades

70

Fustel de COULANGES, A Cidade Antiga: Estudos sobre o Culto, o Direito e as instituies da Grcia

Antiga e de Roma, p.13. 71

Ibid. p.138. 72

Franz CUMONT, Os Mistrios de Mitra, p.75.

33

orientais e seus cultos foram trazidos para o oeste por escravos, mercadores, marinheiros e

soldados. Imigrantes fixaram seus deuses primeiro por intermdio da criao de associaes

religiosas que a eles ofereciam reconhecimento e um novo domicilio. 73

Franz Cumont, Robert Turcan e Helmut Koester concordam com a citao, mas a

sntese de elementos religioso-culturais s se tornou exequvel com a rpida expanso da

Plis no Mediterrneo.

Todos os autores consultados para a composio desta pesquisa concordam que os

ritos e mitos nascem em diferentes momentos, porm, em determinadas oportunidades eles

inexoravelmente se mesclam, ressignificam-se.

Burkert, ao estudar minuciosamente os rastros arqueolgicos da religio grega,

entendeu que os cultos primitivos de fertilidade precederiam a ritualstica dos helenos, a

respeito disso, Francis Vian diz o seguinte:

Durante ese largo perodo, las invasions, las migraciones interiores, las

conquistas, los intercambios comerciales y culturales modificaron constantemente la

fisonomia de Grecia. Resulta difcil, en estas condiciones, desenmarnar los elementos

constitutivos de la religin helnica y saber cmo se amalgamaron en una sntesis

original.74

A dimenso dos processos de ressignificao alinhar-se-ia conforme a ocupao

geogrfica da Hlade, uma topografia rodeada de montanhas e cercada por fronteiras

martimas com o Mar Egeu, o mar Mediterrneo e o Mar Jnico.

Os antigos gregos75

nunca constituram em qualquer perodo uma nao no sentido

moderno. Entre 2000-1400 a.C. desenvolveu-se em Creta a cultura minica, no final do

perodo 1100-750 a.C. as cidades-Estado se estabeleceram atravs da colonizao do mar

Egeu e da Pennsula Italiana. A poca mais notvel foi de 750-480 a.C., quando os gregos

bloquearam a expanso persa e conquistaram sua hegemonia poltica, econmica e cultural.

Os gregos tomavam como ano base 776 a.C., data da instituio dos jogos olmpicos,

sua historiografia axial comeou na segunda metade do sculo VI a.C., com os loggrafos76

,

dos quais o mais ilustre foi Hecabeus de Mileto (550-475 a.C.).

73

Helmut KOESTER, Introduo ao novo testamento I histria, cultura e religio do perodo helenstico,

p.168. 74

Francis VIAN in: Henri-Charles PUECH (Org.), Historia de Las Religiones: Las Religiones Antiguas Vol.

II, p.238. 75

Pedro Paulo FUNARI, Grcia e Roma: Vida pblica e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e

sexualidade, pp. 9-76. 76

Philippe TTART, Pequena Histria dos Historiadores, p11.

34

O termo logographoi designa, para os sculos VI e V a.C. os primeiros

escritores em prosa que se interrogavam sobre suas razes (as suas, as das cidades, do

mundo Jnico, grego), tentando ir alm da explicao do passado unicamente pelo mito. 77

Embora todos se considerassem helenos, a grande diferena era sua cidade natal,

Atenienses e Espartanos no se viam como membros de uma nao.

Sua cidade os diferenciava, ligando-os primeiro com identidade tnica, helenos,

depois como cidado.

A cidade plis, em grego um pequeno estado soberano que compreende uma

cidade e o campo ao redor e, eventualmente, alguns povoados urbanos secundrios. A

cidade se define, de fato, pelo povo demos que a compe: uma coletividade de

indivduos submetidos aos mesmos costumes fundamentais e unidos por um culto comum

as mesmas divindades protetoras.78

No que tange aos contornos da religio grega, algumas especificidades ligadas aos

cultos devem ser lembradas:

El campesino est por naturaleza apegado a sus ancestrales costumbres. As son

los cultos agrrios y naturalistas los que correspondem al estrato ms antiguo de la religin,

los que conservan las ms claras supervivncias de fondo prehelnico. Es lgico, pues,

considerarlos con prioridade, y ms cuanto que las otras formas de culto se vieron, con

frecuencia, infludas por ellos. El destino de las pequenas comunidades helnicas,

establecidas en una tierra ingrata, depende en efecto, ante todo, de la prosperidad de su

agricultura. 79

Essa a razo pela qual os deuses gregos estavam mais vinculados as questes da

fertilidade agrria do que aos cultos solares, como no caso das sociedades orientais do

Crescente Frtil, extremamente desenvolvidas no campo astrolgico.

Baseando-se nessa dade, Francis Vian reconhece dois80

tipos de cultos religiosos na

antiguidade, os agrrios e os atmosfricos, o primeiro teria maior difuso no territrio

grego, o segundo vincular-se-ia mais as sociedades da Babilnia, Egito, Prsia e outras.

Ele concluiu que os gregos recorriam mais as divindades agrcolas porque a Grcia

no estava to sujeita as intempries climticas; como estariam, por exemplo, o Egito, a

Babilnia, a Prsia etc.

77

Philippe TTART, Pequena Histria dos Historiadores, pp. 11-32. 78

Pedro Paulo FUNARI, Grcia e Roma: Vida pblica e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e

sexualidade, p. 25. 79 Francis VIAN in: Henri-Charles PUECH (Org.), Historia de Las Religiones: Las Religiones Antiguas Vol. II, pp.255-256. 80 Ibid. pp.255-262.

35

O clima mediterrneo foi o diferencial da agricultura grega, pois, com 80% do

territrio montanhoso e um solo pobre, a relativa homogeneidade do tempo auxiliou o

sucesso da lavoura. Mesmo assim o trabalho era redobrado, e isso criou um estilo de vida

ligado necessidade de recorrer aos cultos de fertilidade. No a toa que um dos primeiros

cultos seus primeiros cultos a adorao da Deusa-Me.

La diosa de los leonnes llega a Grecia e incluso a La Magna Grecia em el s. VI

antes de nuestra era. 81

Ao utilizar fragmentos da tbua Linear B, e analis-los concomitantemente com as

questes arqueolgicas, e:

Most important among the material relics are a number of types of what are clearly

Cult installations: caves, peak sanctuaries, house sanctuaries, and even temples. 82

Burkert83

entendeu que os primeiros cultos helnicos eram praticados nas

montanhas, cavernas, no cenrio mais caracterstico na Grcia, ou seja, na exuberncia da

natureza, antes do apogeu das cidades, j que:.

A antiga religio grega concebeu as coisas deste mundo com o mais poderoso

senso de realidade que jamais ouve, e todavia qui por isso mesmo! ai se reconhece o

maravilhoso traado do divino. Ela no gira em torno das nsias, carncias e secretas

delcias da alma humana; seu templo o mundo, cujo transbordar de vida e agitao lhe

nutre o conhecimento do divino. 84

Na Linear B encontramos o nome de diversos deuses gregos, inclusive o de

Dionsio:

De hecho el Dioniso griego es producto de un sincretismo.85

Isso abre precedentes para especularmos que os ritos realizados na Plis so

ressignificaes feitas a partir dos antigos cultos devocionais de fertilidade, pois:

The name Dionysos admittedly lacks any certain context; one Word associated

with the name might point to a relationship with wine. Historians of religion have sought at

times to see wine as a secondary element in the Dionysos cult, but the oldest festival of the

god, common to both Ionians and Attica, is the festival of the Anthesteria. Also to be

considered is the cult continuity in the temple on Keos where in the fifteenth century

81

Robert TURCAN, Los cultos orientales em el mundo romano, p. 41. 82

Ibid. p.22. 83

Walter BURKERT, Greek Religion, pp. 22-53. 84

Walter Friedrich OTTO, Os Deuses da Grcia, p.8. 85 Francis VIAN in: Henri-Charles PUECH (Org.), Historia de Las Religiones: Las Religiones Antiguas Vol. II, p. 249.

36

dancing women await the appearance of the god, an where in Archaic times votive

offerings are made to Dionysos; at the Anthesteria, women of Athens dance and drink wine

before the mask of the god.86

Consideramos os mistrios como desdobramentos de um sistema aberto as

possibilidades, pois, ao exemplo de Dionsio, a religio grega fruto de um processo

cultural inflacionrio, que agregou e perdeu elementos. E aos moldes do mundo helnico,

mantinha perspectivas em comum em determinados momentos, para em outros ressignific-

las, pois:

O gnio grego deve ter encontrado as formas de sua f e de seu culto na poca

anterior a Homero; em Homero elas j se acham consolidadas, e este livro h de mostrar

que foram preservados seus traos fundamentais, tais como se acham na obra homrica.87

Parece um tanto evolucionista considerar a religio grega como resultado de um

desenvolvimento gradual; primeiro a partir dos cultos, depois da tradio oral e, finalmente,

por meio das contribuies dos poetas, escritores e filsofos.

Mas Jean-Pierre Vernant88

est de acordo, e:

Sob esse aspecto, Homero e Hesodo exerceram um papel privilegiado. Suas

narrativas adquiriram um valor quase cannico; funcionaram como modelos de referncia

para os autores que vieram depois, assim como para o pblico que as ouviu ou leu. 89

Vernant acredita que para entender a complexidade da religio grega, preciso

abster-se do desejo de cristianiz-la 90

, ela no possui contornos salvifcos, seus deuses

no so criadores da espcie humana, nem do mundo.

No que se trate de uma religio da natureza e que os deuses gregos sejam

personificaes de foras ou de fenmenos naturais. Eles no so nada disso. O raio, a

tempestade, os altos cumes no so Zeus, mas de Zeus. Um Zeus muito alm deles, visto

que os engloba no seio de uma Potncia que se estende a realidade, no mais fsicas mas

psicolgicas, ticas ou institucionais. O que faz de uma Potncia uma divindade o fato de

que, sob sua autoridade, ela rene uma pluralidade de efeitos, para ns completamente

dspares, mas que o grego relaciona entre si porque v neles a expresso de um mesmo

poder exercendo-se nos mais diversos domnios. Se o raio ou as alturas so de Zeus, que o

deus se manifesta no conjunto do universo por tudo o que traz a marca de uma eminente

86

Walter BURKERT, Greek Religion, p. 45. 87

Walter Friedrich OTTO, Os Deuses da Grcia, p.7. 88

Jean-Pierre VERNANT, Mito e Religio na Grcia Antiga, pp.1-52. 89

Ibid. p.16. 90

Ibid. pp.1-11.

37

superioridade, de uma supremacia. Zeus no a fora natural; ele rei, detentor e senhor da

soberania em todos os aspectos que ela pode revestir.91

Sob sua tica existe na religio grega uma clara interao dos deuses com o ser

humano, pois ambos no vivem em separado92

, partilham de um cosmos repleto de vida,

homens e deuses, juntos, nunca em separado.

H portanto algo de divino no mundo e algo de mundano nas divindades.93

diante dos cultos, ritos e festas que ambos, homens e deuses, estreitam relaes,

colocam-se uns face aos outros, pois a hierofania definitivamente celebra a reunio.

Francis Vian94

lembra que Fustel de Coulanges falava da Plis como uma

confederao familiar que mantinha uma ordem na qual seu maior intuito era preservar as

tradies religiosas, responsveis pela manuteno do establishment social.

preciso que no percamos de vista que nos tempos antigos o que constitua o

vinculo de toda sociedade era um culto. 95

Da a importncia das ressignificaes culturais da Plis, sem elas os mistrios

seriam apenas cultos locais, jamais alcanariam as propores e nem a extenso territorial

que abrangeram no Mediterrneo.

A instituio dos mistrios deriva das estruturas sociais antigas (cl ou famlia) e

antecede a plis grega. 96

Sobre este aspecto importante, Mircea Eliade comenta algo de suma importncia na

compreenso do desenvolvimento dos cultos mistricos:

Teremos de ter presente este pormenor quando estudarmos os Mistrios antigos,

que no conservaram s vestgios de cerimnias agrrias, mas que no teria sido possvel

organizar em religies iniciticas se no tivessem por trs um longo perodo pr-histricode

mstica agrria: quer dizer, se o espetculo da regenerao peridica da vegetao no

tivesse revelado, muitos milnios antes, a solidariedade do homem e da semente, e a

esperana de uma regenerao obtida aps a morte e pela morte. 97

91

Jean-Pierre VERNANT, Mito e Religio na Grcia Antiga, p.6. 92

Ibid. pp.4-5. 93

Ibid. p.5. 94 Francis VIAN in: Henri-Charles PUECH (Org.), Historia de Las Religiones: Las Religiones Antiguas Vol. II, pp.270-271. 95

Fustel de COULANGES, A Cidade Antiga: Estudos sobre o Culto, o Direito e as instituies da Grcia

Antiga e de Roma, p.119. 96

Helmut KOESTER, Introduo ao novo testamento I histria, cultura e religio do perodo helenstico,

p.181. 97

Mircea ELIADE, Tratado de Histria das religies, p.293

38

1.2 - Sobre deuses e heris.

Jean-Pierre Vernant98

pondera que as principais mudanas que ressignificaram os

antigos cultos da religio grega ocorreram entre XI e VIII a.C., quando as prticas clticas

rurais gradualmente migraram para os espaos urbanos da Plis, dessa revoluo originou-

se a estrutura me das futuras cidades-Estado.

As identidades fludas do culto praticado na natureza tomaram novos contornos,

tornando a religio grega familiar e depois cvica.

Francis Vian aposta nessa ideia, principalmente porque suas teorias baseiam-se de

novo em Fustel de Coulanges:

Assim, a cidade no um conjunto de indivduos. Ela uma confederao de

vrios grupos constitudos antes dela e que ela permite que subsistam. Constata-se nos

oradores ticos que cada ateniense faz parte ao mesmo tempo de quatro sociedades

distintas; ele membro de uma famlia, de uma fratria, de uma tribo e de uma cidade. No

entra simultaneamente e no mesmo dia em todas as quatro, como o francs que, a partir de

seu nascimento, pertence concomitantemente a uma famlia, a uma comuna, a um

departamento e uma ptria. A fratria e a tribo no so divises administrativas. O homem

entra em pocas diversas nessas quatro sociedades e sobe, de alguma maneira, de uma para

outra. A criana, primeiramente, admitida na famlia pela cerimnia religiosas que ocorre

dez dias aps seu nascimento. Alguns anos depois, ela entra na fratria mediante uma nova

cerimnia que descrevemos pginas atrs. Enfim, com a idade de dezesseis ou dezoito anos

se apresenta para admisso na cidade. Neste dia, na presena de um altar e diante da carne

fumegante de uma vitima, pronuncia um juramento pelo qual se compromete, entre outras

coisas, a respeitar sempre a religio da cidade. A partir deste dia, o jovem est iniciado ao

culto pblico e se torna cidado.99

Nesse perodo tambm se desenvolveu a edificao de santurios comuns, foi neles

que os contornos iniciticos da liturgia grega se manifestaram visveis a olho nu.

A partir da instituram-se festas que exaltavam um panteo reconhecido em todo o

territrio grego. Por fim ocorreram as prolficas