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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO UMESP FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A METÁFORA DO CORPO NA I CARTA DE CLEMENTE DE ROMA AOS CORÍNTIOS (37.5-38.1): Uma análise dialógica São Bernardo do Campo, agosto de 2012

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    UMESP

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    AA MMEETTFFOORRAA DDOO CCOORRPPOO NNAA II CCAARRTTAA DDEE CCLLEEMMEENNTTEE

    DDEE RROOMMAA AAOOSS CCOORRNNTTIIOOSS ((3377..55--3388..11))::

    UUmmaa aannlliissee ddiiaallggiiccaa

    So Bernardo do Campo, agosto de 2012

  • 1

    UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO.

    A METFORA DO CORPO NA I CARTA

    DE CLEMENTE DE ROMA AOS

    CORNTIOS (37.5-38.1):

    UUmmaa aannlliissee ddiiaallggiiccaa

    por

    Francisco Benedito Leite

    Orientador: Paulo Augusto de Souza

    Nogueira

    Dissertao apresentada em cumprimento s

    exigncias do Programa de Ps-Graduao em

    Cincias da Religio, para obteno do grau de

    Mestre.

    So Bernardo do Campo: 2012

  • 2

    A dissertao de mestrado sob o ttulo: A metfora do corpo na I Carta de Clemente de Roma

    aos Corntios (37.5-38.1): Uma anlise dialgica, elaborada por Francisco Benedito Leite foi

    apresentada e aprovada em 18 de setembro de 2012, perante banca examinadora composta por

    Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Etienne Alfred

    Higuet (Titular/UMESP) e Prof. Dr. Jonas Machado (Titular/ FTBSP).

    __________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    __________________________________________

    Prof. Dr. Leonildo Silveira de Campos

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Linguagens da Religio

    Linha de Pesquisa: Literatura e Religio no Mundo Bblico

  • 3

    LEITE, Francisco Benedito. A metfora do corpo na I Carta de Clemente de Roma aos

    Corntios (37.5-38.1): Uma anlise dialgica. So Bernardo do Campo, 2012. 162 f.

    Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) Universidade Metodista de So Paulo, So

    Bernardo do Campo, 2012.

    RESUMO

    A I Carta de Clemente de Roma aos Corntios faz parte de uma

    coleo de escritos cristos antigos intitulados Pais Apostlicos. Esse

    texto uma autntica correspondncia enviada da comunidade crist

    de Roma para a comunidade crist de Corinto, escrita pelo seu

    secretrio Clemente. Esta pesquisa, em contraposio s desenvolvidas

    pela disciplina teolgica chamada patrologia, analisa a carta a partir

    das teorias de Mikhail M. Bakhtin e seu crculo e da micro-histria

    assumidamente relacionada com as teorias do mesmo autor

    delimitando o trecho 37.5-38.1, onde se encontra a metfora do corpo.

  • 4

    LEITE, Francisco Benedito. A metfora do corpo na I Carta de Clemente de Roma aos

    Corntios (37.5-38.1): Uma anlise dialgica. So Bernardo do Campo, 2012. 162 f. Thesis

    (Master Degree in Sciences of Religion) So Paulo Methodist University, So Bernardo do

    Campo, 2012.

    ABSTRACT

    The First Letter of the Clement of Rome to the Corinthians is part of a

    collection of ancient Christian writings titled Apostolic Fathers. This

    text is an authentic correspondence from the Christian community of

    Rome to the Christian community of Corinth, written by your

    secretary Clement. This research, as opposed to those developed by the

    theological discipline called "patrology", analyzes the letter from the

    theories of Mikhail M. Bakhtin and your circle and the micro-history

    assumedly connected with the theories of the same author defining

    the stretch 37.5-38.1, where is the metaphor of the body.

  • 5

    Este trabalho dedicado aos homens que so

    modelos de vida para mim, meus irmos de

    sangue: Lucio, Beto, Nei, Cito e Alex.

  • 6

    Pesquisa patrocinada integralmente pelo CNPq

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus que me amou, me vocacionou aos

    estudos e me acompanhou nessa difcil jornada de mais dois anos.

    Agradeo de maneira especial ao professor Dr. Paulo Augusto de Souza

    Nogueira, mais do que um orientador, um amigo; ao pastor Dr. Jonas

    Machado, que me auxiliou muitssimo, acadmica e espiritualmente, sem

    o qual essa labuta teria sido muito mais difcil.

    Tambm, no poderia me esquecer de todos que foram decisivos para

    meu desenvolvimento nesses ltimos anos e contriburam muito, ainda

    que de forma indireta, para a concretizao desse projeto, so eles:

    Os docentes do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

    da UMESP.

    Meus familiares, em especial meus pais Roque e Iolanda, agradeo-lhes

    pelo carinho e apoio;

    Dbora e Jean, agradeo-lhes por terem me apresentado bons motivos

    para viver, os quais no esto diretamente relacionados com a vida

    acadmica;

    Meu sobrinho Lucas e meu irmo Alex, agradeo-lhes por me

    buscarem tantas vezes na estao de trem em Vrzea Paulista.

    Meus amigos, em especial Maurcio Melo Neto e Valdemir Pereira

    Costa, agradeo-lhes pela amizade sincera.

    Meu parceiro de estudos h mais de cinco anos, Rogrio de Lima

    Moura, agradeo-lhe o companheirismo.

    Mizael de Souza Pinto e Ricardo Boone Wotckoski, os primeiros

    leitores dessa pesquisa.

    Todos os colegas da Ps-Graduao em Cincias da Religio da

    UMESP que me incumbiram da responsabilidade e da honra de

    represent-los, dos quais, no cito nomes por que poderia cometer a

    injustia de esquecer algum, j que foram mais de cem.

    E meus amigos dos churrascos de tantos fins de semana.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO___________________________________________________________ 12

    CAPTULO 1: Estado da questo____________________________________________ 15

    I.1. I Clem nas mos da pesquisa catlica-romana e protestante___________________ 15

    I.2. Pesquisas acadmicas recentes____________________________________________ 19

    I.2.1. O uso do Antigo e do Novo Testamento em Clemente de Roma___________19

    I.2.2. Conflito em Roma: ordem social e conflito no cristianismo primitivo_____ 21

    I.2.3. O etos social da correnpondncia corintia: interesses e ideologia de I

    Corintios a I Clemente________________________________________________22

    I.2.4. Uma igreja em crise: Eclesiologia e parnese em Clemente de

    Rom_______________________________________________________________23

    I.2.5. Concrdia e paz: Uma anlise retrica do uso da linguagem da primeira

    carta de Clemente de Roma com nfase na linguagem da unidade e da sedio

    ___________________________________________________________________ 24

    I.3. Consideraes finais_____________________________________________________26

    CAPTULO II: Esclarecimentos metodolgicos_________________________________ 27

    II.1. O problema do estudo acadmico, no Brasil, da antiguidade crist _____________27

    II.2. Mikhail M. Bakhtin____________________________________________________ 28

    II.2.1. Dialogismo____________________________________________________ 31

    II.2.2.Gneros discursivos_____________________________________________ 32

    II.2.3. Vozes do discurso_______________________________________________33

    II.2.4. Exotopia______________________________________________________ 34

    II.2.5. Carnavalizao e realismo grotesco_______________________________ 36

    II.3. Micro-histria________________________________________________________ 37

    II.3.1. Principais caractersticas da micro-histria_________________________38

    II.3.2. A metodologia de Carlo Ginzburg_______________________________40

    II.3.3. Aplicao da micro-histria antiguidade crist__________________42

    II.4. Superando o paradigma de Ferdinand Saussure____________________________ 46

    II.5. Consideraes finais ___________________________________________________ 52

    CAPTULO III: Anlise literria e contexto histrico-cultural____________________ 53

    III.1. Esclarecimentos literrios a respeito da I Carta de Clemente de Roma aos

    Corntios__________________________________________________________________55

    III.1.1. Data e transmisso___________________________________________ 56

    III.1.2. A respeito dos gneros literrio e discursivo________________________57

    III.1.2.1. Gnero literrio________________________________________57

    III.1.2.2. Gneros literrios menores______________________________ 57

  • 9

    III.1.2.3. Gnero discursivo_____________________________________ 58

    III.1.3. Retrica_____________________________________________________ 59

    III.1.4. Algumas observaes a respeito de evoluo semntica______________ 61

    III.1.4.1. Pstis e kalchsis ______________________________________ 63

    III.1.5. Estruturao e disposio retrica_______________________________ 66

    III.1.6. I Clem/Hebreus_______________________________________________ 70

    III.2. Contexto histrico-cultural____________________________________________ 71

    III.2.1. Imprio Romano_____________________________________________72

    III.2.1.1. Princeps______________________________________________73

    III.2.1.2. Os jovens_____________________________________________74

    III.2.1.3. Pax Romana__________________________________________ 76

    III.2.1.4. Patronalismo_________________________________________ 77

    III.2.2. O helenismo e a crise religiosa no Mediterrneo____________________ 78

    III.2.3. Collegia romanos______________________________________________ 80

    III.2.3.1. O cristianismo de Roma como um Collegium_______________ 81

    III.2.4. Corinto, uma colnia romana____________________________________83

    III.3. Consideraes finais _________________________________________________ 84

    CAPTULO IV: O corpo como metfora no mundo greco-romano_________________86

    IV.1. Esclarecimento prvio a respeito do conceito metfora____________________ 86

    IV.2. A metfora do corpo no dilogo do mundo Greco-Romano___________________87

    IV.3. O corpo no mundo antigo_______________________________________________88

    IV.4. O corpo na medicina e na filosofia do perodo clssico______________________ 89

    IV.5. O corpo, conforme o filtro deformador do estoicismo________________________91

    IV.6. Tito Livio___________________________________________________________94

    IV.6.1. Ab urbe condita_______________________________________________ 94

    IV.6.2. Sneca_______________________________________________________ 97

    IV.6.2.1. Da Clemncia de Sneca________________________________ 98

    IV.6.3. Apstolo Paulo_______________________________________________ 100

    IV.7. Consideraes finais __________________________________________________111

    CAPTULO V: O filtro deformador de Clemente de Roma aos Corntios___________113

    V.1. O autor_____________________________________________________________ 113

    V.1.1. Judasmo___________________________________________________ 117

    V.1.2. Paganismo__________________________________________________ 118

    V.1.3. Esmaecimento do entusiasmo e da apocalptica____________________ 123

    V.1.4. Educao e classe social_______________________________________ 125

    V.1.5. Clemente como um religioso tpico do perodo helenista_____________ 126

    V.2. A metfora do corpo conforme o filtro deformador de Clemente_____________ 127

    V.2.1. Texto grego e possibilidade de traduo I Clem 37.5-38. _________ 128

    V.2.1.1. Paralelismo___________________________________________ 129

    V.2.2. Contedo__________________________________________________ 129

    V.2.3. A respeito de nossa delimitao e segmentao___________________ 131

    V.2.4. O dilogo de Clemente no longo tempo_________________________ 133

    V.2.5. O dilogo concreto de Clemente_______________________________ 138

    V.3. Consideraes finais _________________________________________________ 142

  • 10

    CONSIDERAES FINAIS___________________________________________ 143

    BIBLIOGRAFIA_____________________________________________________ 146

    1. Fontes_________________________________________________________________146

    2. Artigos e resenhas em revistas eletrnicas e peridicos________________________ 148

    3. Dicionrios e verbetes em dicionrios______________________________________ 152

    4. Teses e dissertaes_____________________________________________________ 153

    5. Fontes modernas_______________________________________________________ 154

  • 11

    Para Cristo, todos os homens se dissolvem nele

    como o nico e em todos os outros, os salvos; nele,

    que assume o fardo do pecado e da expiao, e em

    todos os outros (Bakhtin)

  • 12

    INTRODUO

    Intitula-se I Carta de Clemente de Roma aos Corntios um antigo escrito cristo,

    do fim do primeiro sculo, que se constitui uma autntica carta, enviada da comunidade crist

    de Roma comunidade crist de Corinto. Esse documento exerceu considervel influncia no

    mundo antigo, de tal forma que seus manuscritos esto em trs idiomas diferentes, presentes

    em mais de trs listas cannicas e em seu rastro criou-se uma tradio de escritos atribudos,

    ilegitimamente ao seu suposto autor, Clemente de Roma.

    No entanto, essa carta esteve perdida durante sculos e foi encontrada e editada

    pelo humanista francs Jean Baptiste Cotelier apenas no sculo XVII, quando agrupou I Clem

    com outros escritos cristos dos dois primeiros sculos em um corpus literrio inorgnico que

    recebeu o ttulo de Pais Apostlicos. Desde ento, tornou-se bem comum que os manuais de

    Histria do Cristianismo ou do pensamento cristo designem esses livros como: legalistas

    (GONZALES, 2004 p.70), balbuciantes (SESBOU, 2005, p. 42), com pouca

    contribuio (MATOS, 2008, p.31), ensinos pobres (BERKHOF, 1992, p.38), entre outras

    severas crticas no fundamentadas.

    Desde sua edio, os estudos a respeito da I Carta de Clemente de Roma aos

    Corntios tm sido realizados, majoritariamente, a partir da disciplina teolgica intitulada

    como patrstica ou patrologia. Essa disciplina tem um interesse dogmtico pelos escritos

    cristos antigos, ignorando aspectos histricos e culturais para priorizar as doutrinas

    institucionais do cristianismo, com a clara inteno de uma manuteno do passado idealizado

    das igrejas crists.

    Apesar da recente revoluo na compreenso do cristianismo primitivo gerada

    pelos desenvolvimentos nas pesquisas arqueolgicas do sculo XX, manifesta atravs dos

    Manuscritos do Mar Morto descobertos entre 1947 e 1956; e da Biblioteca Gnstica de Nag

    Hammadi descoberta em 1945 os eruditos no atualizaram a pesquisa no que diz respeito

    aos Pais da Igreja. O que fez com que tudo que est relacionado teologia dos Pais

    Apostlicos esteja obsoleto, diante de tantos avanos.

    Devido a esses fatos, o presente trabalho se prope a interpelar I Clem atravs de

    contribuies terico-metodolgicas para o estudo acadmico da religio na sociedade

    brasileira, concebendo a religio como texto1, utilizando-se da micro-histria e das teorias

    1 Aproveito-me da expresso de Paulo Augusto de Souza Nogueira em seu artigo: Religio como texto: contribuio da

    seimitica da cultura. In: NOGUEIRA, Linguagens da Religio: Desafios, mtodos e conceitos centrais. (2012).

  • 13

    inclassificveis do crculo de Bakhtin, como ferramentas de pesquisa para as cincias da

    religio.

    Na metodologia da micro-histria indiciaremos as caractersticas do autor da carta,

    Clemente de Roma. Trs aspectos so destacados: a multidisciplinaridade, a micro-

    delimitao do tema e a prosopografia a partir de baixo, tambm conhecida como from

    below.

    O primeiro aspecto deve contribuir s compreenses do mundo antigo, onde

    filosofia e religio se hibridizavam e as categorias no eram definidas como as de nosso

    mundo contemporneo. Filosofia, histria, anlise do discurso, teologia e sociologia esto

    envolvidas em uma mesma empreita. No segundo aspecto, o recorte realizado em I Clem

    37.5-38.1, onde est a metfora do corpo, pois, como ser demonstrado no decorrer da

    pesquisa, esse trecho central, tanto na estruturao, quanto na ideologia da carta, e tambm

    paradigmtico para a compreenso de aspectos sociais da comunidade crist de Roma,

    tomando esse mesmo trecho para aplicao do conceito de circularidade da cultura do micro-

    historiador Carlo Ginzburg. E, quanto ao terceiro aspecto, cabe destacar que parece atualizar o

    persistente interesse latino-americano de reflexo atravs da prtica, de pensar a partir do

    pobre e das classes baixas, que geralmente foram promovidas por anlises sociolgicas

    marxistas. Porm, desde a Escola dos Annales, a histria deixou de ser concebida

    teleologicamente, o que implica a utilizao de mtodos mais recentes para a anlise

    sociolgica do cristianismo primitivo, o que promove a diminuio do caracterstico rancor

    classista das anlises marxistas.

    Quanto s teorias do crculo de Bakhtin, as utilizaremos, especialmente, para

    realizar a anlise do breve enunciado de I Clem 37.5-38.1, onde se encontra a j mencionada

    metfora do corpo. Doravante, toda a pesquisa seja norteada pelos conceitos bakhtinianos,

    pois no em vo que destacamos epgrafes do pensador russo em cada um dos captulos. Os

    conceitos que reportam a esse mtodo, que aqui utilizaremos, so: Dialogismo; Gneros

    discursivos; Vozes do discurso; Cronotopo; Exotopia; e Realismo grotesco e carnavalizao.

    As consideraes asseveradas acima foram concebidas atravs de cinco captulos:

    I. Estado da questo; II. Esclarecimentos metodolgicos; III. Anlise literria e contexto

    histrico-cultural; IV. O corpo como metfora no mundo greco-romano; e V. O filtro

    deformador de Clemente de Roma.

    Tal empreita no deixou de ser um risco, na medida em que a primeira pesquisa a

    respeito de I Clem no Brasil, responsabilidade que se eleva devido ao difcil acesso a literatura

  • 14

    que trata do assunto, boa parte dela est em ingls e no se encontra disponvel nas bibliotecas

    das universidades brasileiras. Todavia, as dificuldades materiais e metodolgicas foram

    diminudas devido direo e ao constante apoio dos docentes da UMESP que sempre

    estiveram empenhados no auxlio dessa pesquisa.

    As citaes bblicas partem da Traduo Joo Ferreira de Almeida, revista e

    atualizada, salvo excees com a devida referncia. A transliterao das palavras gregas

    segue o sistema apresentado por James Swetnam em sua Gramtica do Grego do Novo

    Testamento (2004). No entanto, s achamos conveniente transliterar palavras isoladas e

    citaes breves, sempre que realizamos citaes mais extensas o texto permaneceu em

    caracteres gregos.

  • 15

    CAPTULO I

    Estado da questo

    A paixo de uns impede sua viso objetiva,

    verdadeiramente realista do mundo das

    conscincias alheias, o realismo de outros no

    grande coisa (Bakhtin)2

    O primeiro captulo da presente dissertao tem por objetivo apresentar as

    principais pesquisas que foram realizadas a respeito da I Carta de Clemente de Roma aos

    Corntios (doravante I Clem), a partir das obsoletas apresentaes dos manuais de patrologia

    (QUASTEN, 1965; DROBNER, 2008; ALTANER & STUIBER, 1998; BUENO, 1965,

    BEATRICE, 2002, pp. 305-306; TREVIJANO 1994) que rivalizavam com as tambm

    obsoletas perspectivas protestantes (BULTMANN, 2008; HARNACK, 1929 e SOHM, 1892,

    BAUER, 1966, LIGHTFOOT, 1980). Porm, daremos mais nfase pesquisa contempornea,

    de maneira que elegemos obras que tem I Clem como objeto de pesquisa, com base em um

    artigo relativamente recente de Andrew Gregory: I Clement: An Introduction (2006), no qual

    o telogo ingls elenca as mais importantes pesquisas do assunto, dentre as quais resenhamos

    cinco (HAGNER, 1973, JEFFERS, 1995, HORRELL, 1996, BOWE, 1988, BAKKE, 2001.).

    Para tanto, segue nosso esforo.

    I.1. I Clem nas mos da pesquisa catlica-romana e protestante

    Apesar da antiga origem de I Clem, este documento esteve perdido por vrios

    sculos, foi o humanista francs Jean Baptiste Coetelier (Nmes, 1629 Pars, 1683) o

    responsvel pela editorao e agrupamento de cinco documentos do mundo antigo sob o ttulo

    Patres aevi apostolici em 1672. Constaram nos dois volumes editados por Cotelier os escritos

    conhecidos como: Epistola de Barnab, I Carta de Clemente de Roma aos Corntios, As

    cartas de Incio de Antioquia, As cartas de Policarpio de Esmirna e O pastor de Hermas.

    Apesar de no existir nenhuma unidade orgnica, esses escritos passaram a ser conhecidos

    como Pais Apostlicos. A essa lista ainda seriam acrescentados mais trs documentos: A

    Didaqu e Papias de Hierpolis e A epstola a Diogneto.

    2 Problemas da potica de Dostoievski (1981, p.8).

  • 16

    A denominao Pais apostlicos era uma forma de classificar esses escritos e seus

    autores da igreja primitiva separadamente dos demais pais da igreja, como os pais

    apologistas, os pais polemistas, etc., pois, acreditava-se que esses eram lderes da igreja

    primitiva que tiveram contato direto com os apstolos e receberam deles a responsabilidade de

    cuidar da Igreja, assim como receberam dos apstolos a tradio, afirmando a antiga

    doutrina catlico-romana da sucesso apostlica.

    At a metade do sculo XX os estudos existentes a respeito de I Clem so de

    telogos, que do lado protestante, diante do sola scriptura e diante de sua exclusividade

    dada ao Cnon em relao s supostas revelaes posteriores, vm nesse tipo de texto apenas

    o declnio do clmax teolgico alcanado pelos autores neo-testamentrios Paulo e Joo. O

    telogo luterano Rudolf Bultmann representa bem essa idia atravs do terceiro captulo de

    sua Teologia do Novo Testamento (2008, pp.530-689). Por outro lado, Daniel Ruiz Bueno

    como representante autorizado do Catolicismo Romano, realiza uma interpretao

    romantizada e idealstica, afirmando que os Pais Apostlicos so o lao que liga a Igreja

    Catlica aos apstolos que, consecutivamente so ligados a Jesus e ao Pai (1965, p.12).

    Passando o perodo inicial de editorao desses escritos, as principais pesquisas

    sobre I Clem esto contidas nos tradicionais manuais de vida e obra dos Pais da Igreja, que

    geralmente tm o ttulo: Patrologia, predominantemente catlicos. O principal desses manuais

    foi escrito pelo telogo catlico alemo Johannes Quasten em 1950, e desde ento passou a

    ser destacado como modelo em seu gnero, tendo sua importncia apontada tanto nas

    bibliografias catlicas (HAMMAN, 2002, p.1106), como nas protestantes (MCGRATH, 2005,

    p.41), assim a obra de Quasten superou as demais e alcanou ampla aceitao.

    Quasten afirma o seguinte a respeito de I Clem: este um documento precioso do

    ponto de vista dogmtico e poderia chamar-se manifesto da jurisdio eclesistica (1965,

    p.54). Aps esta descrio segue a tradicional forma de interpretao catlica dos Pais,

    destacando na carta, os seguintes dogmas eclesiticos: sucesso apostlica, primado da igreja

    de Roma, ressurreio dos mortos e influncia do estoicismo; e os seguintes aspectos

    litrgicos: distino entre clrigos e leigos, designao de epscopos, diconos e presbteros e

    a orao litrgica da igreja romana (1965, p. 54-57). Argumentos muitssimo parecidos

    estariam nas obras homnimas de Altaner e Stuiber (1998), Hubertus Drobner (2008), Ramon

    Trevijano (1994) dentre outros estudiosos catlicos interessados na manuteno de um

    passado idealizado da histria da Igreja, como Daniel Ruiz Bueno em sua edio bilingue dos

    Padres Apostlicos (1965) e F. P. Beatrice no verbete Clemente Romano do Dicionrio

    Patristico e de Antiguidade Crist (2002, pp. 305-306).

  • 17

    Pelo lado protestante Bultmann, em sua Teologia do Novo Testamento (2008),

    realiza uma forte crtica I Clem apontando suas diferenas em relao teologia paulina,

    afirmando, logo a princpio, que difcil saber em que consiste a cristandade de I Clem,

    (2006, p. 635). A partir da anlise de termos teolgicos chaves, mtodo da antiga Escola de

    Histria das Religies, Bultmann aponta o declnio teolgico ocorrido na terceira gerao

    crist, em vista do pice alcanado por Paulo e Joo. O intuito principal de Bultmann quanto

    I Clem fora afirmar o retorno do cristianismo kauchsis [vanglria] judaica devido sua

    exortao s erga [obras]. Por isso, sua viso de I Clem to pessimista.

    Regredindo historicamente, para uma retomada da histria da pesquisa pelo lado

    protestante, na virada do sculo XIX para o XX, I Clem foi retomada repetidas vezes como

    objeto da discusso a respeito da institucionalizao do cristianismo primitivo por telogos

    influenciados pela teoria histrica da Escola de Tubingen, com suas derivaes do

    hegelianismo. Nesse perodo o maior representante da teologia liberal, Adolf Von Harnack

    (Dorpat, 1851 Heidelberg, 1930), alm de organizar, juntamente com Oscar von Gebhardt

    e Theodor Zahn, a obra Patrum apostolicorum opera: textum ad fidem codicum et graecorum

    et latinorum adhibitis praestantissimis editionibus [A obra dos Pais Apostlicos: Texto dos

    livros de f e edio dos manuscritos gregos e latinos mais iminentes] (1906), tambm

    escrevera: Einfhrung in die alte Kirchengeschichte [Introduo histria da Igreja](1929),

    com essa obra o historiador alemo perpetuaria o status do referido documento como melhor

    introduo para histria da Igreja Antiga como seria recitado por Roque Frangiotti no seu

    comentrio edio brasileira dos Padres Apostlicos (2008, p.20), dentre tantos outros

    comentaristas e estudiosos que insistem em repetir a mesma frase a respeito de I Clem.

    Outro clebre luterano, Adolph Sohm (Rostok, 1841 Leipizig, 1917), manteria

    discusso com Harnack a respeito desse documento. Em Kirchenrecht [Direito Cannico]

    (1892) ele afirmou que I Clem foi um documento que marcou uma virada na histria da Igreja,

    de maneira que foi nele, onde primeiro se notou, na histria da literatura crist, que a Igreja

    deixou de ser governada pelo charisma [dom no caso dom do Esprito Santo] e passou a

    estar sob o Kirchenrecht3, apresentando uma teoria esquemtica e idealista. Em contrapartida,

    Harnack (1929) apesar de concordar com Sohm (1923) em alguns aspectos afirmou que no

    cristianismo primitivo, Charisma e Kirchenrecht existiram paralelamente.

    3 Em alemo: direito cannico, mas prefervel que esta palavra no seja traduzida para que com ela possamos remeter

    diretamente querela luterana em torno da institucionalizao do cristianismo primitivo, discutida principalmente em lngua

    alem, e no ao direito cannico de uma forma geral, que aqui no nos interessa. Todavia, quando nos referirmos a autores de

    fala inglesa, utilizaremos a palavra oficio (ing. office) com o mesmo sentido

  • 18

    Toda essa discusso a respeito de oficio e carisma no cristianismo primitivo no

    tem mais relevncia para a academia, pois, hoje sabemos que o cristianismo se desenvolveu

    atravs de mltiplos processos diferentes, visto que o prprio cristianismo era mltiplo, bem

    diferente do esquema proposto pelo maior representante da Escola de Tubingen, Ferdinand

    Christian Baur (Schmiden, 1792 Tubingens, 1860) e retomado por muitos telogos dos

    sculos XIX e XX. Conforme a argumentao de Baur em Vorlesunger uber

    Neutestamentliche Theologie [Leituras de teologia neotestamentria] (1864), as comunidades

    crists primitivas com suas teses opostas eram como dois blocos monolticos, um judaico

    representado por Pedro e outro helenstico representado por Paulo, que viviam brigando entre

    si at chegarem a uma sntese, um acordo mtuo que inauguraria o perodo da igreja

    denominado pelos alemes como Frhkatholizismus [catolicismo primitivo], que

    representado por alguns textos cannicos como as Cartas Pastorais e as Cartas Catlicas,

    mas tambm por I Clem, Cartas de Incio de Antioquia e As cartas de Policarpio de Esmirna,

    dentre outros, conforme alguns critrios de classificao.

    A teoria do Frhkatholizismus foi muito influente, ainda hoje telogos a retomam

    para analisar um perodo da histria da Igreja. Porm, por trs dela, est a fantasia positivista

    que apresenta uma histria linear e um movimento uniforme de todos os cristos em direo

    ao desenvolvimento da Grande Igreja, um modelo que se esquece das micro-estruturas e das

    caractersticas particulares que o cristianismo possui em cada comunidade e em cada perodo.

    Contudo, I Clem seria marcadamente considerada o texto mais exemplar do

    Frhkatholizismus.

    Ainda na primeira metade do sculo XX Walter Bauer, em sua obra

    Rechtglubigkeit und Ketzerei im ltesten Christentum4 [Ortodoxia e heresia no cristianismo

    primitivo] (1966), tornada referencial para o estudo do cristianismo primitivo, toma I Clem

    para realizar uma discusso a respeito do desenvolvimento da ortodoxia crist durante o

    especuladssimo perodo de institucionalizao da Igreja. Porm, sua perspectiva teleolgica,

    semelhante a dos telogos luteranos que o precederam no assunto, no contribuiu para

    desenvolvimentos substanciais na pesquisa de I Clem em vista do que havia afirmado Harnack

    (1929) e Sohm (1923).

    Rivalizando com a chamada Escola de Tubingen, o bispo anglicano Joseph Barber

    Lightfoot (Liverpool, 1828 Bournemouth, 1889) tambm merece ser citado na histria da

    pesquisa dos Pais Apostlicos, devido a sua edio crtica comentada em quatro volumes, que

    4 Embora nos refiramos obra em lngua alem, nossa leitura foi a partir da edio traduzida para o ingls: Orthodoxy and

    heresy in earliest Christianity (1971).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Bournemouth

  • 19

    teve sua primeira edio em 1869. Recentemente o estudioso estadunidense James Jeffers a

    aclamou como monumental (1995, p. 53), ao apresentar suas proprias hipteses histricas a

    respeito de Clemente de Roma. Porm, Lightfoot parte de pressupostos trinitrios e cannicos

    e sua anlise no se diferencia substancialmente das patrologias.

    Outra anlise importante de I Clem foi Lhelenisme de saint Clment de Rome et le

    paulinisme [O Helenismo de So Clemente de Roma e o paulinismo] de Louis Sanders (1843),

    a qual, tambm, no possui mais relevncia na medida em que o estudo do estoicismo ganhou

    uma nova perspectiva nas ltimas dcadas do atual sculo, como Rachel Gazola mostra em

    seu livro O oficio do filsofo estico o duplo registro do discurso da Stoa; e o estudo do

    apstolo Paulo tambm ganhou nova perspectiva atravs de Ed Parish Sanders (1987) e James

    Dunn (2007) que apesar de continuar com o ttulo de Nova Perspectiva j est gravemente

    questionada por inmeras outras perspectivas mais recentes que se sobrepuseram a ela nas

    ltimas duas dcadas, conforme apresentaremos no captulo IV.

    Todas essas pesquisas pareceram, em maior ou menor grau, interesseiras do ponto

    de vista eclesistico, na verdade as patrologias consistem em encomendas de manuteno da

    histria eclesistica catlico-romana, enquanto que as pesquisas protestantes se limitaram a

    negar a autoafirmao catlico-romana, mas nenhuma das duas tradies dirigiu um olhar que

    abnegasse os interesses de sua denominao religiosa. No que acreditemos na possibilidade e

    na necessidade da ilusria neutralidade cientifica, aclamada pelos positivistas de outrora,

    porm, acreditamos que o descaramento dos interesses dogmticos que cercaram as pesquisas

    a respeito de I Clem fizeram com que este documento estivesse em obscuridade e rodeado de

    anlises rasas e ilusrias.

    I.2. Pesquisas acadmicas recentes

    I.2.1. O uso do Antigo e do Novo Testamento em Clemente de Roma

    Publicado em 1973, esse texto se tornou referencial para o estudo de I Clem

    devido melindrosa tarefa realizada por Donald Hagner, de apresentar de maneira organizada

    as citaes e aluses que Clemente de Roma realizou do Antigo e do Novo Testamento ao

    longo de sua carta aos corntios, visto que tais citaes e aluses so imensamente abundantes

    do comeo ao fim no referido texto, apesar de estar cronologicamente prxima dos textos

    neotestamentrios.

    Assim, sua obra dividida em duas partes, trata primeiramente do Antigo

    Testamento na epstola de Clemente; e a segunda parte trata do Novo Testamento na epstola

  • 20

    de Clemente. No interior de cada uma dessas duas partes Hagner apresenta os textos e as

    fontes citadas pelo autor da carta, assim como a forma de citao ou aluso realizada por ele.

    Embora no ttulo do livro esteja O uso do Antigo e do Novo Testamento em Clemente de

    Roma, o autor extrapola o cnon e se refere, ainda que brevemente, a muitos outros textos do

    mundo antigo, os quais, cr terem sido citados ou aludidos por Clemente. lamentvel que tal

    estudo no apresente nada a respeito da Biblioteca Gnstica de Nag Hammadi e dos Textos de

    Qumran. Talvez devido ao fato de serem publicaes muitssimo recentes, mas de qualquer

    forma, tal falta prejudica o estado de atualizao desse livro.

    Apesar da grande importncia dessa obra, h uma iluso altamente prejudicial na

    maneira como Hagner compreende o cristianismo primitivo. O autor tem uma viso idealista

    dos cristos dos primeiros sculos, ele parece projetar em Clemente de Roma, um telogo de

    um pas de primeiro mundo do sculo XX, como os seus colegas de academia, os quais tm

    uma vasta biblioteca em sua prpria casa ou tm acesso s gigantescas bibliotecas

    universitrias europias e americanas. Difcil acreditar na hiptese implcita de que Clemente

    possua acesso a todos os textos que ele cita. Mas como o prprio Hagner apresenta Clemente

    como o primeiro doutor da Igreja citando J. B. Lightfoot fica implcito que, embora em

    nossa opinio seja um pobre sectrio de uma religio marginalizada, para Hagner Clemente

    era um erudito abastado, que possui acesso a muitos manuscritos.

    Outro problema, relacionado com o primeiro, detectado na obra de Hagner, sua

    abordagem puramente filolgica dos textos religiosos do mundo antigo. Todos os textos, seja

    Antigo Testamento na sua traduo grega da Septuaginta, seja o Novo Testamento, sejam os

    textos apcrifos, ou qualquer outro texto relacionado por Hagner com I Clem; todos so

    concebidos apenas filologicamente Ou seria melhor dizer paleograficamente? Pois o

    autor no apresenta em nenhum momento os textos pensados em sua comunicabilidade, no

    so pensados como textos de maneira mais ampla, mas apenas como um texto grfico, como

    manuscrito. Nessa perspectiva, toda atividade de Clemente no passa de transposio de

    textos, como diz nossa expresso contempornea: copiar e colar.

    I Clem, tratando-se de uma carta, deve ser analisada em seu aspecto comunicativo,

    assim como os textos relacionados. O texto tem que ser pensado de uma maneira ampla, em

    suas dimenses culturais, em seus aspetos que sobrepem palavra escrita, pois todo

    enunciado est em uma relao responsiva a outro enunciado, ainda que no saibamos qual. O

    estudo do enunciado isolado, como caso de The use of the Old and New Testaments in

    Clement of Rome til apenas como uma espcie de dicionrio, um gnero literrio que lista,

  • 21

    que especifca e organiza, mas que no apresenta a relao comunicativa ou dialgica dos

    termos.

    I.2.2. Conflito em Roma: ordem social e conflito no cristianismo primitivo

    O referido texto a polmica tese doutoral de James Jeffers, defendida em 1988,

    na Universidade da Califrnia. A tese est totalmente revisada e adaptada para ser acessvel a

    leitores iniciantes que no pressupem o bsico a respeito do cristianismo primitivo em Roma.

    Essa a nica obra em lngua portuguesa que tem I Clem como objeto central de sua anlise

    embora divida espao com O Pastor de Hermas. Contudo, o editor annimo da verso em

    lngua portuguesa, lanada por uma editora catlica, teve o cuidado de asseverar que esse

    um trabalho acadmico que no reflete necessariamente a postura catlica em vista do tema

    (1995, p.7).

    James Jeffers combina a sociologia e a arqueologia para demonstrar a existncia

    de dois cristianismos contemporneos em Roma, um representado por I Clem e outro pelo

    Pastor de Hermas. Dessa maneira, ainda que indiretamente, o autor retoma a querela antiga a

    respeito do oficio e carisma no cristianismo primitivo, porm, ele guia sua pesquisa pelos

    mtodos sociolgicos de Max Weber e Bryan Wilson, para chegar presumvel 5 concluso de

    que I Clem representa o cristianismo de uma minoria influenciada pela ideologia imperial

    romana, portanto, a autoridade dessa comunidade reflete os valores da elite romana; enquanto

    O Pastor representa o cristianismo da maioria, que vem dos estratos mais baixos da sociedade,

    dessa maneira, a autoridade desses cristos se baseia no Charisma.

    Como o autor aponta a existncia de dois tipos de cristianismos romanos, nas

    entrelinhas ele ignora e suprime a possibilidade de existncia das outras formas de

    cristianismo que tambm poderiam estar presentes em Roma, pois seus modelos sociolgicos

    no do espao para existncia de outros modelos de autoridade que no seja as postuladas por

    Weber e Wilson. O que agrava a situao de sua anlise que para analisar a postura

    autoritria de cada documento, ele compara uma carta escrita conforme as exigncias da

    retrica com uma narrativa visionria que poderamos enquadrar nas formas pr-

    romanescas. Literariamente isso absurdo, tendo em vista que dos dois documentos diferentes

    (I Clem e O Pastor), ele presumir duas comunidades distintas.

    A academia recebeu a obra de Jeffers com reservas. As resenhas de Conflito em

    Roma so severas quanto sua ignorncia em vista dos gneros literrios (BOWE, 1993, p.

    5 Presumvel do ponto de vista da metodologia sociolgica.

  • 22

    53), superficialidade da aplicao dos mtodos sociolgicos (OSIEK, p.732, s/d), sua

    hiptese assume um denominacionalismo americano do sculo XX (STEINHAUSER, p. 84,

    s/d), apresenta um conflito infundado [entre Hermas e Clemente] (MCDONALD, p. 181,

    s/d). Contudo, vemos alguns elementos proveitosos, apesar de asseverarmos a crtica, no que

    diz respeito aplicao de mtodos sociolgicos aos referidos documentos, os quais

    presumem conflitos que provavelmente no existiram na prtica.

    Parece-nos que o primeiro e o segundo captulo desvelem contribuies

    importantes, pois o autor apresenta a vida cotidiana na Roma do sculo I a partir dos baixos

    estratos da sociedade. Alm disso, no segundo captulo, sua hiptese de que os cristos

    romanos primitivos se reuniram sob a forma de collegium, e tambm, sua implementao da

    hiptese de Lightfoot de que existe uma ligao entre o autor da carta e Tito Flavio Clemente.

    Ele reafirma tal teoria, com base na pesquisa arqueolgica que relaciona a comunidade do

    autor da carta com a propriedade dos Flavianos. Contudo estamos conscientes que essa

    hiptese muito questionvel e que no pode ser tomada como central, embora seja plausvel.

    I.2.3. O etos social da correnpondncia corintia: interesses e ideologia de I Corintios a I

    Clemente

    Outro texto que tambm apresenta I Clem pelo mtodo sociolgico a adaptao

    da tese de doutorado em teologia de David Horrell, defendida na Universidade de Cambridge

    em 1993. Seu foco no apenas I Clem, mas sim, as trs correspondncias que esto

    relacionadas com a comunidade de Corinto ou seja, alm de I Clem, as cartas cannicas de I

    Co e II Co. A tecnicidade de sua linguagem e seu rigor acadmico so notveis, por um lado

    demonstram a densa pesquisa realizada pelo autor, mas por outro, complicam questes

    simples.

    Na primeira parte do livro dois primeiros captulos Horrel apresenta seu

    mtodo: teoria da estruturao, do socilogo Anthony Giddens, e realiza uma proposta de

    anlise scio-histrica da comunidade crist de Corinto. Na segunda parte do livro, o autor

    gasta trs captulos em torno de questes relacionadas com as duas cartas neotestamentrias, e

    no sexto captulo se volta para I Clem. No stimo captulo: Concluso; o autor revela seu

    engajamento, aplicando reflexes contemporneas sob o objeto de sua anlise, destacando a

    figura do apstolo Paulo em detrimento do autor de I Clem. Pois, segundo sua argumentao,

    enquanto o apstolo esteve do lado dos pobres da comunidade de Corinto, que sempre

    estavam em contenda com os ricos; Clemente, no entanto, aplica a ordem social do mundo

    externo no interior da comunidade crist, ou seja, mantm-se do lado da elite.

  • 23

    Em uma resenha dessa obra, John Hurd crtica a maneira como Horrel apresenta o

    apstolo Paulo, o qual no manifesta nenhuma das crenas embaraosas do cristianismo

    primitivo, a escatologia de I Co pouco mencionada, no h meno de demnios, batismo

    pelos mortos ou possveis efeitos letais da eucaristia (...). Ou seja, o Paulo que Horrel

    apresenta substancialmente reduzido devido s lentes sociolgicas que o autor

    assumidamente utiliza. Nesse caso achamos vlida a crtica de Jonas Machado:

    (...) como veremos, um dos problemas, com relao a isso que a perspectiva scio-

    histrica tende a negar qualquer carter prprio da religio. Mesmo que se enfatize

    que a religio e poltica so inseparveis, o resultado que a religio per se fica

    ofuscada, vista como efeito de causas no religiosas (2009, p.33s.).

    I.2.4. Uma igreja em crise: Eclesiologia e parnese em Clemente de Roma

    A tese de doutorado em Teologia de Brbara Bowe, defendida na Universidade de

    Harvard, foi transformada em livro e intitulada como A church in crisis: Ecclesiology and

    Paraenesis in Clement of Rome (1988). Esta uma discusso teolgica, mais especificamente

    eclesiolgica. A autora afirma, com base em uma anlise retrica da carta, que o objetivo

    central do escrito a restaurao da paz e da concrdia em Corinto, em vez do direito

    eclesistico (ou, em outras palavras: estabelecer a autoridade romana), como os telogos

    luteranos dos sculos XIX e XX afirmaram. Assim, a autora traz para o centro das atenes a

    prpria comunidade de Corinto, ao invs de Roma, fato que apesar de ser bem bvio na

    leitura da carta no havia sido categoricamente afirmado at ento nas principais anlises do

    tema.

    Interessante que Bowe tenha destacado como centrais, na carta de Clemente, as

    citaes e as imagens bblicas ao invs do ofcio e da autoridade. Assim, Bowe supera a viso

    dogmtica das anlises anteriores que colocavam Roma como supervisora de Corinto. Para a

    autora, a relao das duas comunidades no autoritria, mas sim, uma relao de irmandade,

    pois a mesma dificuldade interna, no que diz respeito briga entre faces, enfrentada pelas

    duas igrejas (1988, p.121).

    No primeiro captulo Bowe apresenta seu argumento mais destacado, o que diz

    respeito retrica da stasis, conforme o qual, como demonstram os artifcios retricos, o

    problema abordado pela carta intraeclesistico: so oportunistas que emergiram do meio da

    comunidade e depuseram os lderes ancios pensando em seu prprio beneficio.

    A tese de Bowe paradigmtica para a histria da pesquisa de I Clem, tendo em

    vista que ela desafiou antigas teorias amplamente aceitas a respeito da autoridade de Roma

  • 24

    sobre Corinto, de clebres telogos do sculo XIX. Porm, no que diz respeito ao contexto da

    carta, Bowe se detem a elementos sociais debatidos de maneira muito breve no primeiro

    captulo e no leva a fundo questes fundamentais de elementos culturais do mundo greco-

    romano. Outrossim, sua anlise da carta como um todo elemento justificado devido ao seu

    ponto de vista retrico impede que a autora note a importncia das micro-estruturas

    argumentativas individualmente.

    I.2.5. Concrdia e paz: Uma anlise retrica do uso da linguagem da primeira carta de

    Clemente de Roma com nfase na linguagem da unidade e da sedio

    A obra que agora apresentamos a tese de doutorado em teologia de Odd Magne

    Bakke defendida na Universidade de Oslo em 1998, readaptada para o formato de livro.

    Assim como Bowe, o autor transfere o eixo de I Clem para questes internas da comunidade,

    em vez de analisar a briga entre carisma e ofcio; tambm rejeita a possibilidade de que as

    disputas se desenvolvam em torno de questes doutrinais, embora no entre em detalhes

    quanto s causas concretas da disputa dentro da comunidade de Corinto, o autor afirma a

    existncia de problemas dentro da comunidade, que tem a ver com a luta pela honra entre

    pessoas de diferentes nveis econmicos. Contudo seu interesse no est voltado para essa

    questo, sua nfase est totalmente voltada para a retrica, elemento tambm analisado por

    Bowe, mas no com tanta argcia e to elevado nvel de aprofundamento.

    No primeiro captulo, de extenso curta (apenas 32 pginas), Bakke apresenta sua

    metodologia: a anlise retrica, com base na tradio greco-romana. Ainda mais valiosa e

    interessante nesse captulo a aproximao que o autor faz entre epistolografia e retrica,

    apresentando a utilizao da retrica em textos epistolares, como era bastante comum na

    antiguidade.

    Nos prximos captulos, o telogo argumenta extensivamente, que I Clem uma

    carta sob o gnero retrico deliberativo, embora outros estudiosos j houvessem afirmado o

    mesmo e isso seja assunto passivo nenhum estudioso argumentou tanto a esse respeito.

    Pois, no Captulo 2 apresenta as cinco caractersticas da espcie: 1.nfase no carter

    exortativo e dissuasivo; 2. Referncia temporal para as aes que devem ser tomadas no

    futuro; 3. Argumentao com base no que vantajoso ou prejudicial para o bem comum; 4.

    Uso repetitivo dos exempla; 5. Apresentao de todos os temas apropriados para retrica

    deliberativa na antiguidade.

  • 25

    O terceiro captulo, que o mais extenso e mais importante de todo o livro,

    apresenta a linguagem de unidade e sedio em I Clem, assim como Bowe apresentara sua

    teoria a respeito da retrica da stasis. Porm, a perspectiva de Bowe estava dentro de

    parmetros eclesiolgicos, enquanto Bakke se debrua na questo retrica analisando os

    termos e topoi atravs de uma aprofundada anlise do campo semntico, destacando,

    principalmente, o aspecto poltico envolvido no processo discursivo. O autor aplicou, ao longo

    de sua anlise, o mtodo que Margareth Mitchel aplicara em I Corintios, em seu texto: Paul

    and the Rhetoric of Reconciliation: An Exegetical Investigation of the Language and

    Composition of Corinthians (1991), pois atravs dessas argumentaes, fica claro que I Clem

    no uma inovao em nenhum aspecto, apenas mais uma carta comum do mundo antigo

    que insiste na necessidade na paz e da concrdia na comunidade de Corinto.

    No quarto captulo est a anlise composicional de I Clem, onde o autor apresenta

    a diviso da carta em subtextos para depois demonstrar a unidade temtica, seguindo o mtodo

    de seu mestre David Hellholm: Das Visionenbuch ds Hermas als Apokalypse [O livro da

    viso de Hermas como apocalpse] (1980). O autor d sua opinio sobre a j matizada questo

    da disposio da carta, propondo sua diviso da carta entre duas grandes partes (1-39.9 e 40-

    61.3).

    O ltimo captulo, Situao histrico-social, pouco desenvolvido, diria que

    decepcionante, se levarmos em conta a tremenda pesquisa retrica que o autor realizou. O

    autor s argumenta coisas bvias e j debatidas por precedentes na pesquisa de I Clem.

    Talvez, isso se deva ao fato de que o autor no tenha encontrado claramente o elo que une o

    ideal manifesto no discurso retrico e a realidade concreta, situao histrica isso ,

    conforme ele pretende que exista.

    No que diz respeito obra como um todo, ela representa a continuidade do avano

    marcado pela pesquisa de Brbara Bowe (1988), deixando a questo debatida no sculo XIX,

    a respeito da disputa entre oficio e carisma no cristianismo primitivo, para um estgio

    ultrapassado. A anlise retrica realizada sobre I Clem representativa e marca

    definitivamente a pesquisa no assunto.

    Porm, a retrica um aspecto que no exaure um texto de seu significado, na

    verdade, a retrica um gnero discursivo secundrio (complexo), na medida em que no

    um meio de comunicao discursiva imediata, pois contraria a alternncia natural do dilogo,

    impondo-se como nica voz ativa, em busca de uma audincia passiva e subserviente

    (BAKHTIN, 2010, p. 263 e 276). Por isso, achamos necessrio o levantamento de pesquisas

  • 26

    elaboradas tambm sobre outros aspectos da linguagem de I Clem, embora reconheamos a

    representatividade da pesquisa de Bakke.

    I.3. Consideraes finais

    Todas as pesquisas em I Clem se mostraram claramente monolgicas. Nenhuma

    se preocupou com a comunicao direta ou indireta que a carta veicula. Foram dadas

    diferentes nfases, podemos dizer que houve uma fase teolgica, em que cada denominao

    crist projetou no cristianismo dos Pais Apostlicos seu prprio modelo de religio.

    Os catlicos projetaram dogmas e instituies tardias numa epstola do primeiro

    sculo, sem se dar conta da anlise anacrnica que realizavam. Os luteranos buscaram na carta

    a institucionalizao do cristianismo primitivo, com base nos modelos teolgicos ideais de

    governo: ofcio e carisma, que na prtica no existiu unilateralmente em nenhuma igreja

    primitiva, a no ser na viso idealizada dos historiadores do cristianismo primitivo. Pois na

    prtica comunitria, a autoridade carismtica se entrelaa com a tradio eclesistica, sem que

    exista a possibilidade concreta de dividir os dois modelos de governo eclesistico, como duas

    ideologias rivalizantes.

    Depois surgiram anlises mais delimitadas de I Clem que, no caso das cinco obras

    que analisamos, se delimitavam em analisar: as citaes, a retrica, a eclesiologia, o conflito e

    o ethos social. Cada qual com sua metodologia especfica, com reflexos de seu lugar social no

    interior da pesquisa, com seus desenvolvimentos e limitaes. Fatos que nos permitiram

    chegar ao estgio presente e tomar conscincia de que as disputas a respeito do tema sinalizam

    para inconcluses e infinitas possibilidades de abordagens metodolgicas.

    Assim, inserimos-nos nessa corrente de debates. Abordaremos a metfora do

    corpo (37.5-38.1), nossa metodologia ser a dialgica, atravs dos mtodos bakhtinianos.

    Assumimos nosso lugar social, longe dos grandes centros de pesquisa em patrstica, sem

    acesso a uma bibliografia mais ampla sobre o tema e sem precedentes compatriotas que

    tenham trilhado o mesmo assunto no tema.

    O prximo captulo ser um hiato com relao I Clem, pois nos deteremos a

    explicar nosso mtodo, para que nos faamos compreensveis em nossa empreita nos captulos

    seguintes, quando retomaremos I Clem aps um longo percurso atravs de questes

    metodolgicas.

  • 27

    CAPTULO II

    Esclarecimentos metodolgicos

    S nos falta ousadia cientfica, investigatria, sem a

    qual no conseguiremos nos colocar nas alturas nem

    descer as profundezas (Bakhtin)6

    II.1. O problema do estudo acadmico, no Brasil, da antiguidade crist

    Conforme foi demonstrado no captulo precedente, durante vrios sculos I Clem

    foi pesquisado unicamente atravs de mtodos estritamente teolgicos. Os resultados dessas

    pesquisas, alm de pouco confiveis na medida em que eram encomendas institucionais

    tambm s interessavam para o pblico teolgico.

    Essas pesquisas, especialmente as apresentadas nos manuais de patrologia; nada

    apresentaram de novo da sociedade romana do primeiro sculo, nada esclareceram, no que diz

    respeito s fontes literrias que o autor tinha acesso; nada contribuiram no que diz respeito,

    tambm, s outras disciplinas humanas que poderiam estar relacionadas com o assunto, como

    histria, filosofia, lingustica, dentre possveis outras.

    Dessa forma, o estudo da antiguidade crist foi enclausurado pela teologia, que no

    aceitava o acesso de referenciais tericos de outras disciplinas aos seus elementos e temas

    tradicionais, gerando uma intensa obscuridade em temas que poderiam estar muito mais

    claros, caso fossem aceitas as contribuies multidisciplinares.

    O efeito dessa situao problemtica tambm pode ser sentido pelo lado da

    academia brasileira, pois os setores de estudos clssicos rejeitam os assuntos relacionados

    antiguidade crist, a despeito do pressuposto de que seu tema no se enquadra na histria-

    poltica stricto seunsu. O que fez com que os estudos clssicos se aleijassem de valiosssimas

    fontes de pesquisa que poderiam ser encontradas na vasta documentao que constitui a

    antiguidade crist. As universidades pblicas brasileiras so exemplares nesse aspecto

    embora haja algum pequeno desenvolvimento em alguns centros de pesquisas especficos.

    Devido a esses motivos, pareceu necessrio para a realizao dessa pesquisa, uma

    metodologia que combinasse os referenciais tericos de vrias disciplinas humanas, para

    6Os estudos literrios hoje (2010, p.366).

  • 28

    superar o problema da idiossincrasia metodolgica das pesquisas teolgicas realizadas at

    ento. Ainda mais, tendo em vista que no nosso caso uma pesquisa em cincias da religio

    deve assumir seus referencias tericos de diferentes reas. Portanto, esse captulo se destina

    exclusivamente apresentao de nossos referenciais tericos.

    Muito embora estejamos conscientes de que esse captulo pudesse ser suprimido,

    para que seus efeitos fossem frudos de maneira mais legitima e sem pressuposies, pareceu-

    nos permanente a necessidade de sua apresentao de forma mais detida devido enorme

    diferena dessa pesquisa em relao s demais do mesmo tema, e tambm, devido a essa ser

    uma das propostas implcistas da presente pesquisa, ou seja, apresentar a possibilidade de

    diferentes acessos antiguidade crist.

    Para tanto, os referenciais tericos eleitos so dois daqueles tipos que tm a

    interdisciplinaridade em seu cerne, a saber: as teorias inclassificveis do pensador russo

    Mikhail M. Bakhtin e seu crculo e a micro histria italiana de Carlo Ginzburg. Nos prximos

    pargrafos nos deteremos na apresentao de ambos.

    II.2. Mikhail M. Bakhtin

    Mikhail Mikhailovich Bakhtin (Orel, 1895 Moscou, 1975) foi um pensador russo

    que teve sua trajetria longe dos centros intelectuais da Rssia de sua poca devido ao fato de

    ter sido condenado ao exlio e s suas multiplas enfermidades. Por isso, durante sua vida

    miservel, passou quase que anonimamente diante do cenrio intelectual e seu nome s se

    destacaria aps a dcada de 1970, quando j estava prximo da morte.

    Nesse texto pretendemos apresentar seus conceitos e teorias que sero aplicados ao

    longo de todos os captulos dessa pesquisa. Estamos conscientes da dificuldade da

    apresentao de suas teorias, pois h uma densa discusso entre os especialistas quanto

    aplicabilidade de seus conceitos e, alm disso, a contradio, a incompletude e a pluralidade

    so as principais caractersticas destacadas pelo pensador russo, as quais, tambm esto

    presentes em sua prpria vida, o que dificulta ainda mais, a j rdua tarefa.

    Esses fatos fizeram com que a maioria dos estudiosos de Bakhtin, o apresentassem

    polarizando apenas uma de suas fases ou caractersticas, de modo a suprimir o restante de seu

    pensamento, realizando a criao de muitos Bakhtins distintos, fazendo com que exista uma

    tremenda confuso quanto sua vida e seus conceitos, mesmo entre os especialistas. Contudo,

    apesar das dificuldades, aqui iremos apresentar suas teorias e conceitos, ainda que

    precariamente, em sua incompletude e ambivalncia.

  • 29

    Primeiramente, para nos situarmos na compreenso que Bakhtin tem das cincias

    humanas tomemos seu brevssimo texto inconcluso: Metodologia das cincias humanas,

    presente na edio brasileira de Esttica da criao verbal, onde o autor apresenta duas

    formas de limite do conhecimento, que so: o conhecimento da coisa e o conhecimento

    do indivduo (2010, p.393). Parece-nos importante primeiramente assumir esse ponto de

    partida, para tanto, devemos esclarec-lo.

    O conhecimento da coisa est ligado ao interesse prtico, pura coisa morta dotada

    apenas de aparncia. Em contrapartida, o conhecimento do indivduo dotado de extrema

    vivacidade e dinamismo, sua caracterstica principal, pode-se dizer que sua configurao

    dialgica, nessa perspectiva tanto se conhece, como se d a conhecer, seja qual for o objeto

    do pesquisador (idem, p.394).

    Tendo explicado os dois limites do conhecimento com suas premissas que tem

    como base a relao do pesquisador e seu objeto, o autor relacionar uma serie de conceitos a

    cada uma dessas duas formas de limite. Ao conhecimento da coisa esto relacionados: a

    exatido, o interesse, a seriedade, o dogma, a coisificao, o monologismo, e

    tambm me parece o estruturalismo, em suas abstraes tautolgicas, mecanicistas ou

    matematizadas. Ao conhecimento do indivduo, em contraposio ao conhecimento da coisa,

    o autor relaciona: a liberdade, o riso, o dialogismo e o personalismo. Contudo, afirma

    enfaticamente que coisa e indivduo so apenas dois tipos de relao, limites e no

    substncias (idem, pp.401-404).

    No que diz respeito metodologia da cincia da religio como me parece que

    seria possvel nas demais reas das disciplinas humanas esses dois limites apresentados por

    Bakhtin so duas formas que os pesquisadores podem eleger ao se posicionarem diante de seu

    objeto de pesquisa. Tomando o seu limite como coisa, ou como indivduo.

    Nenhum dos dois parece ser inferior ao outro, no h escala de valores entre os

    dois, pois, ambos poderiam render bons resultados (pragmaticamente). Porm, enquanto um

    parece ser uma repetio, ainda que incrementada com novas contribuies, o outro parece ser

    um elemento que tem algo de autntico, algo que o pesquisador doa de si para seu objeto e que

    o seu objeto lhe retribui. E no fim das contas o segundo limite parece ser mais arriscado que o

    primeiro.

    Ao se deixar envolver na pesquisa, parece que s vezes as delimitaes entre

    pesquisa e pesquisador desaparecem, como no processo de dialogismo, onde no se sabe o que

    se herdou do discurso alheio, e o que de seu prprio discurso questiona a outrem, mas, sabe-

  • 30

    se, com toda certeza, que o seu prprio discurso s existe para outros e devido a outros, tal

    processo resulta em riso e liberdade.

    Enquanto isso, o limite da coisa d muito mais conforto ao pesquisador que se

    relaciona com ela, pois o dogma livra de preocupaes individuais e de possveis dilemas com

    interlocutores hostis. Todavia, no h proximidade entre pesquisador e objeto, ambos no se

    compartilham, a seriedade e o mecanicismo de seu relacionamento impedem o

    desenvolvimento de tal processo.

    Dessa forma, fica a possibilidade de escolha nas mos do pesquisador, no que diz

    respeito a abordar e interagir com seu objeto. Uma forma de limite do conhecimento mais

    garantida, mas menos empolgante e menos envolvente. A outra forma de limite do

    conhecimento mais arriscada, porm mais prazerosa e empolgante, pois no ato de pesquisa

    j se encontra a satisfao ainda que no se chegue s concluses pretendidas.

    O texto Metodologia das cincias humanas, apesar da curta dimenso, bastante

    denso, pois sua forma fragmentar instiga nossa investigao e leva-nos a complet-lo com

    contribuies que fazem parte de nossas experincias particulares. Dizer se tal efeito faz parte

    do intento original do autor ou no, seria especulao ingnua, o que importa a experincia

    reflexiva que o texto gera no leitor atento, a qual s pode ser fruda atravs da prpria leitura

    sem intermedirios.

    Portanto, apenas resenhamos o referido texto para fazer saber que assumimos em

    nossa pesquisa o limite do indviduo, ao invs do limite do objeto, pois, apesar de enquadrar a

    dissertao nos critrios cientficos, sabemos que a linha que se impe entre o pesquisador e a

    sua pesquisa muito tnue, e que assumir esse fato pode ser positivo, desde que no

    represente um compromisso ideolgico que mascare o verdadeiro intento cientfico em uma

    apologia institucional, como foi o caso da patrstica e da histria do dogma.

    Doravante, sero apresentados os conceitos de Bakhtin, sempre os situando em

    suas obras, para que, por um lado, a interpretao dos conceitos bakhtinianos no parea uma

    nova inveno nossa, mas por outro, no assumamos jarges das tradies bakhtinianas

    brasileiras. Apresentaremos aqui os seguintes conceitos e teorias: Dialogismo; Gneros

    discursivos; Vozes do discurso; Cronotopo; Exotopia; e Realismo grotesco e

    carnavalizao.

  • 31

    II.2.1. Dialogismo

    Para esclarecimento desse conceito recorremos critica feita pelo crculo de

    Bakhtin ao estudo do enunciado realizado pelos seus contemporneos, a qual se encontra em

    Marxismo e filosofia da linguagem:

    A linguistica, como vimos, est voltada para o estudo da enunciao monolgica isolada. Estudam-

    se documentos histricos, em relao aos quais os fillogos adotam uma atividade de compreenso

    passiva. Assim, todo trabalho desenvolve-se nos limites de uma dada enunciao. Os prprios limites

    da enunciao como uma entidade total, so pouco percebidos. O trabalho de pesquisa, reduz-se ao

    estudo das relaes imanentes no interior do terreno da enunciao. Todos os problemas daquilo que

    poderia se chamar de poltica externa da enunciao ficam excludos do campo da observao.

    Consequentemente, todas as relaes que ultrapassam aos limites da enunciao monologica

    constituem um todo que ignorado pela reflexo linguistica (2010, p.108).

    Em contrapartida ao estudo dos documentos e dos enunciados de maneira isolada,

    o crculo apresentou seu conceito de dialogismo, segundo o qual, todo enunciado/texto, todo

    documento histrico, existe necessariamente em relao, ou para relao de outros

    enunciados, ou seja, todo discurso traz algo do discurso de outrem e ao mesmo tempo

    realizado e absorvido para outros e por outros.

    Dessa maneira, o enunciado, seja ele verbal, ou esteja presente em uma inscrio

    em uma parede, ou em uma obra de arte, ou em uma obra literria, ou possivelmente seja

    manifesto de outras maneiras; ele sempre e necessariamente possui fontes em outros

    enunciados, pois est se comunicando com eles. O texto no esttico e portanto no deve ser

    compreendido pelos estudiosos isoladamente da cadeia dialgica que o cerca. Se por um lado,

    o estudo da palavra isolada a atividade prpria do fillogo, por outro lado, muitos linguistas

    tm o seguido nesse mesmo modelo de abordagem, conforme um dos principais argumentos

    do crculo de Bakhtin.

    A partir do conceito bakhtiniano de dialogismo, Carlo Ginzburg cunhou seu

    conceito de circularidade da cultura, que se descreve assim, conforme suas prprias

    palavras: (...) o influxo recproco entre cultura subalterna e cultura hegemnica (1997,

    p.13). Isso quer dizer que as ideias, filosofias e demais manifestaes da cultura no so

    estticas, mas circulam, pois as escolas filosficas e os crculos sociais no do conta de

    enclausurar sua produo cultural, que, na verdade, no s sua, mas tem fontes, ainda que

    longnquas e desconhecidas. Portanto, todo pensamento que sai da cabea de algum tem sua

    dimenso scio-ideolgica, isto , circula na cultura, e cada um que o absorve, o transforma, o

    deforma antes de novamente pass-lo a diante.

    Segundo essa proposio, um enunciado, ou um discurso, no pode ser

    compreendido se no for estudado em seu aspecto dilgico, em seu contexto comunicativo,

  • 32

    ainda que essa comunicao seja indireta. nessa perspectiva que Ginzburg exalta Bakhtin

    por ter superado as antigas divises entre cultura de elite e cultura popular, como que a

    segunda fosse submissa primeira. A cultura rompe as barreiras sociais, visto que a

    comunicao permite que ela se movimente circularmente.

    Teoria que pode nos esclarecer a curiosa relao entre o cristianismo primitivo e as

    escolas filosficas helensticas contemporneas suas, uma discusso j bem desgastada que se

    viu na obrigao de apresentar quem derivado de quem, quando as respostas podem ser bem

    mais complexas do que uma simples derivao direta, pois a cultura helenstica era uma

    cultura em dilogo.

    Todo texto que se manifesta e alcana outro dialgico, portanto seu estudo e sua

    compreenso no pode ser monologizado, isto , tornado independente da corrente de

    interaes que o constitui. Para o crculo, dilogo no apenas o ato de pergunta e resposta,

    entre pessoas, esse apenas um aspecto do dilogo, o chamado dilogo real ou dilogo

    concreto. Na concepo do crculo de Bakhtin, a realidade dialgica e esse dilogo

    atravessa o mundo e as eras.

    II.2.2.Gneros discursivos

    Quanto aos Gneros do discurso, Mikhail Bakhtin elaborou sua prpria teoria a

    esse respeito (2010, pp. 261-306), e nessa teoria, assim como em suas demais, no h

    sistematizao, tampouco h pretenso de uma listagem dos gneros, tendo em vista que

    quando ele descreve os gneros do discurso, pretende salientar sua dimenso dialgica, ou

    seja, o fenmeno que ocorre na esfera dos interlocutores, no efeito do dilogo, que uma

    corrente ininterrupta e constante de pergunta e resposta ad infinitum. Assim, para Bakhtin, as

    formas de gnero so infinitas, assim como so infinitas as formas de atividade humana, com

    as quais os gneros sempre esto necessariamente relacionados.

    Dessa forma, Bakhtin compreende que o gnero do discurso se manifesta na

    comunicao atravs do tom de voz e atravs de uma srie de cdigos implcitos que so

    percebidos pelos interlocutores, mas que ficaria sem sentido para aquele que est fora do

    mbito desse dilogo. Como aquelas piadas regionalistas, ou aqueles insultos que um amigo

    faz ao outro atravs de um xingamento que no compreendido como ofensa, mas como

    expresso de laos ntimos de amizade ou familiaridade.

    Pois, em um dilogo no h passividade nem no sujeito do discurso, tampouco no

    ouvinte, visto que, conforme Bakhtin:

  • 33

    (...) toda compreenso plena e real responsiva e no seno uma fase inicial preparatria da

    resposta (seja qual for a forma que ela se d). O prprio falante est determinando

    precisamente a essa compreenso ativamente responsiva: ele no espera uma compreenso

    passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma

    resposta, uma concordncia, uma participao, uma objeo, uma execuo, etc. (os diferentes

    gneros do discurso pressupem diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos

    falantes ou escreventes) (2010, p. 272).

    Essas palavras de Bakhtin representam aquele mesmo processo que Carlo

    Ginzburg intitulou como filtro deformador em seu livro O queijo e os vermes: o cotidiano e

    as idias de um moleiro perseguido pela inquisio (1997). Nesse livro, Ginzburg explica o

    processo hermenutico, ou epistemolgico, que ocorria atravs da leitura que um moleiro

    friuliano realizava de alguns escritos religiosos, adaptando suas leituras a elementos de sua

    prpria imaginao e de seu cotidiano, assim como as relacionava com outras leituras, mas

    que nada tinham a ver com aquilo que estava escrito propriamente nos livros consultados.

    Portanto, as palavras que compem um dilogo seja ele manifesto atravs de

    leituras, comunicao verbal, inscries em paredes, ou por qualquer outro meio que realize

    uma ligao comunicativa entre dois indivduos so sempre neutras, pois possuem uma

    ambivalncia intrnseca que s pode ser discernida pelo gnero discursivo, que muito

    negligenciado pelos estudiosos de literatura em geral e especialmente pelos exegetas bblicos,

    que normalmente s levam em conta o gnero literrio.

    Mais uma vez, conforme Bakhtin em Os gneros do discurso: falamos apenas

    atravs de gneros sem suspeitar que eles existam, pois eles nos so dados da mesma forma da

    lngua materna (2010, p. 282), porque atravs do gnero se torna possvel adivinharmos o

    discurso alheio (idem, p.283). E, uma vez que possvel que se domine uma lngua, sem que

    se domine os seus gneros, estes se tornam indispensveis para a compreenso mtua em um

    dilogo (idem, p.284), pois so eles que do coeso compreensibilidade de um enunciado

    (idem, p.286). Esses fatos fazem com que seja impossvel listar esses gneros, principalmente

    por que surgem novos com o passar do tempo, como os que vm sendo desenvolvidos nos

    meios de comunicao eletrnico, como torpedo sms, e-mail, chat, blog, etc.

    II.2.3. Vozes do discurso

    O conceito vozes do discurso est prximo de outros conceitos bakhtinianos

    conhecidos como: plurivocidade, heteroglossia e bivocalidade. Todos esses remetem

    ideia de que um enunciado, ou discurso, permeado por discursos ou enunciados que o

    antecedem, e como conseqncia, em alguma instncia o reproduzem, e que esses discursos

    ou enunciados antecedentes no pertenciam exatamente a uma pessoa, mas sim, ao meio

  • 34

    social que esse indivduo pertencia, pois quem se pronuncia, pronuncia a voz de uma

    sociedade, que s vezes longnqua est no tempo e no espao.

    Esse conceito constantemente confundido com outro conceito bakhtiniano mais

    famoso, a polifonia, mas uma coisa no tem a ver com a outra, visto que a polifonia que no

    nos interessa nesse texto um conceito que Bakhtin criou especificamente para designar o

    projeto esttico de Dostoievski, onde a voz dos personagens e a voz do autor falavam em uma

    mesma altura. No vem ao caso aprofundar essa descrio, cabe-nos apenas distingui-la do

    que chamamos de vozes do discurso. Nessas vozes, alm da voz do sujeito da orao (falante)

    e do ouvinte que a interprete a sua prpria maneira como apresentamos no conceito anterior

    ainda existe as vozes daqueles que j disseram algo a respeito daquilo que est sendo dito.

    Em Cultura popular na idade mdia e no renascimento O contexto de Franois

    Rabelais (2010), Bakhtin apresenta a obra literria do referido autor renascentista, como

    manifestao do carnaval popular que tem suas razes nas antiqssimas festas pags

    conhecidas como satunais. Ao longo desse livro, demonstra a quantidade enorme de vozes

    que constituem os romances rabelaisianos, que no remontam apenas a autores como Luciano

    de Samosata, squilo, Sneca, Macrbio, Scrates, dentre outros, mas tambm a eventos

    festivos populares que se manifestaram desde a antiguidade at o perodo medieval, como

    cultura popular no escrita e no teorizada.

    Bakhtin assim descreve tal fenmeno em seu breve artigo inconcluso O problema

    do texto na lingstica, na filologia e nas outras cincias humanas:

    O autor (falante) tem seus direitos inalienveis sobre a palavra, mas o ouvinte tambm tem os

    seus direitos; tm tambm os seus direitos aqueles cujas vozes esto na palavra encontrada de

    antemo pelo autor (por que no h palavra sem dono). A palavra um drama do qual participam trs personagens (no um dueto, mas um trio). Ele no representado pelo autor

    e inadmissvel que seja introjetado (introjeo) no autor (2010, p.328).

    .

    E mais adiante:

    Cada conjunto verbalizado grande e criativo um sistema de relaes muito complexo e

    multiplanar. Na relao criadora com a lngua no existem palavras sem voz, palavras de

    ningum. Em cada palavra h vozes infinitamente distantes, annimas, quase impessoais (as

    vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptveis, e vozes prximas, que

    soam concomitantemente (idem. p.330).

    II.2.4. Exotopia

    O conceito de exotopia est relacionado com a atividade esttica e a possibilidade

    de que esta seja vista de fora, j que isso que sugere sua traduo literal, lugar exterior,

    pois, a partir do momento em que nos distanciamos do objeto no como na iluso positivista

    de neutralidade, mas distanciamento em relao a tempo e espao torna-se possvel uma

  • 35

    viso mais apurada desse texto (texto no sentido bakhtiniano), pois no estamos mais cercados

    pelas incertezas e aflies que estavam em torno de seus contemporneos e as vrias reflexes

    que se fizeram durante esse espao que nos separa do texto fazem com que se crie uma gama

    de interpretaes que nos apresentam melhor aquele texto, visto que na imediatez de sua

    elocuo pode ter sido mal compreendido, ou totalmente distorcido.

    Esta idia se encontra nos textos mais antigos de Bakhtin, durante sua fase

    filosfica entre os anos 1918 e 1924, no livro Hacia una filosofia del acto tico (1997), onde

    sua preocupao era o problema da existncia do dualismo entre mundo da matria e mundo

    da vida e tambm em Autor e personagem na atividade esttica (2010), quando escreve sobre

    o ponto de vista do autor em relao ao heri e ao personagem de uma forma geral.

    Mas essa idia, apesar de certa evoluo em sua teoria, tambm retomada nos

    seus ltimos textos. Em Os estudos literrios hoje que sua resposta a uma pergunta da

    revista Novi Mir onde afirma que o grande tempo gera um efeito positivo na obra literria,

    em suas palavras:

    A vida das grandes obras nas pocas futuras e distantes, como j afirmei, parece um

    paradoxo. No processo de sua vida post mortem elas se enriquecem com novos

    significados, novos sentidos; como se essas obras superassem o que foram na

    poca de sua criao (2010, p.363).

    Com essas palavras Bakhtin parece afirmar que com o tempo o texto adquire uma

    autonomia em relao a sua origem e que tal autonomia no deve ser vista como perca do

    significado original, mas como enriquecimento de significado e sentido, pois as geraes

    futuras, atravs de suas repetidas leituras do mesmo texto e das reflexes que vo para vrios

    sentidos diferentes tm uma compreenso mais apurada do que os contemporneos ao perdo

    da redao, e at mesmo, mais apurada do que o proprio autor do texto, que no podia

    imaginar que seu texto iria to longe.

    Contudo, Bakhtin tem uma espcie de misticismo escatolgico da linguagem, ele

    acredita que um dia os textos cobraro, ou retomaro seus significados, em um grande

    simpsio, em suas palavras:

    No existe a primeira nem a ultima palavra, e no h limites para o contexto

    dialgico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os

    sentidos do passado, isto , nascidos do dilogo dos sculos passados, podem jamais

    ser estveis (concludos, acabados de uma vez por todas); eles sempre iro mudar

    (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqente, futuro do dilogo.

    Em qualquer momento do desenvolvimento do dilogo existem massas imensas e

    ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo

    desenvolvimento do dilogo, em seu curso, tais sentidos sero relembrados e

    revivero em forma renovada (em novo contexto). No existe nada absolutamente

  • 36

    morto: cada sentido ter sua festa de renovao. Questo do grande tempo (2010,

    p.410).

    II.2.5. Carnavalizao e realismo grotesco

    Os conceitos que agora apresentaremos esto presentes nos livros Problemas da

    potica de Dostoievski (1981) e Cultura popular na idade mdia e no renascimento no

    contexto de Franois Rabelais (2010). No primeiro livro referido Bakhtin realiza uma histria

    do romance e relaciona sua gnese com o perodo helenstico, quando do nascimento de um

    gnero literrio chamado stira menipia.

    Nesta poca, em que est a gnese do romance, autores como Luciano de

    Samosata, squilo, Sneca, Macrbio, Scrates, dentre outros autores, deram vida a uma

    forma de texto risvel, cmico, engraado. Esses textos no produziam um riso destrutivo e

    interesseiro como a stira de Horcio e Juvenal, que zombava dos homens que no se

    enquadravam nos valores romanos contemporneos.

    Essa cultura do riso no se manifestava somente atravs da literatura, mas tambm

    atravs das festas populares, a princpio, no mundo antigo greco-romano atravs das saturnais;

    e depois, na idade mdia, atravs do carnaval e de outras manifestaes populares, como a

    festas dos loucos e a linguagem da feira e das ruas, onde se manifestava oralmente a cultura

    popular que, at ento no havia chegado aos textos escritos.

    Em Cultura popular na idade mdia e no renascimento no contexto de Franois

    Rabelais Bakhtin toma algumas de suas proposies particulares a respeito da cultura popular,

    focalizando dessa vez o renascimento, onde novamente, e com toda fora, floresceu essa

    cultura do riso, apresentando especialmente a obra de Franois Rabelais.

    Conforme sua tese, Rabelais foi o catalisador de uma cultura antiqssima que

    estava presente nas ruas, nas feiras e no carnaval popular, que foi transposta ao papel em sua

    obra Gargantua e Pantagruel. Essa cultura transposta literatura e arte recebeu o nome de

    carnavalizao (FIORIN, 2010, p.89). A linguagem da carnavalizao que tambm

    representa uma cosmoviso particular a dos insultos; do baixo ventre; das palavras de

    baixo calo; dos xingamentos entre familiares que manifestam laos de proximidade; da

    inverso de valores e do realismo grotesco. Conforme essa cosmoviso de inverso, assim o

    ps morte:

    Todos os cavaleiros da mesa redonda so pobres remadores, que fazem a travessia

    do rio Ccito, Flegeton [e outros] (...) quando os senhores diabos querem passear na

    gua (...). Mas para cada passagem s ganham um piparote no nariz e noite um

    pedao de po duro. (...) Dessa maneira os que foram grandes senhores neste mundo

    tero uma vida pobre e trabalhosa l em baixo. Ao contrrio os filsofos e os que

    foram indigentes neste mundo l sero grandes senhores por sua vez. Vi Digenes

  • 37

    que andava magnificamente, com uma grande tnica de prpura e com um cetro na

    destra, e ralhava com Alexandre o Grande quando este no remendava direito os

    cales, e lhe pagava com bastonadas. (...) Pathelin, tesoureiro de Ramento,

    querendo comprar os pasteis que o Papa Julio vendia, pergunta-lhe quanto custava

    uma dzia. Trs blancs, disse o papa. Mas Pathelin disse: - Trs bordoadas o

    que mereces: sai daqui, vilo, sai daqui, vai procurar outros. O pobre papa foi-se

    embora chorando; quando se viu diante de seu patro pasteleiro, disse-lhe que

    tinham lhe tirado os pastis. Ento o seu senhor lhe deu uma chicotada to forte que

    a sua pele serviria para fazer cornamusas (RABELAIS, 2009, pp. 363-369).

    O realismo grotesco est essencialmente associado com a carnavalizao, so

    manifestaes da contraditoriedade, do movimento e do inacabamento, Bakhtin o designa

    como tipo especfico de imagens da cultura cmica popular em todas as suas manifestaes

    (2010, p.27). As imagens grotescas procedem da antiguidade, com o passar do tempo foram

    cada vez mais postas s margens, at serem, no sculo XVIII, consideradas como mera

    anedota burguesa.

    As imagens do realismo grotesco esto relacionadas com a proximidade entre

    morte e vida, como nas imagens das Bruxas de Kerch que so velhas cadavricas grvidas ou

    as imagens de fezes e urina que na antiguidade eram ambivalentes por serem representantes da

    ligao do ser humano com a terra e tambm dos rgos genitais que esto envolvidos no

    processo de execrarem a matria imunda do interior do corpo e ao mesmo tempo esto

    envolvidos na produo da vida. No carnaval e no realismo grotesco todas as coisas so

    valoradas diferentemente da forma imposta pelas culturas oficiais.

    ...

    Tendo apresentado os conceitos da metodologia de Bakhtin que nos sero teis,

    agora apresentaremos o conceitos referentes Micro-histria, a outra metodologia utilizada na

    presente pesquisa.

    II.3. Micro-histria

    Conforme a descrio de Henrique Espada Lima, em A micro-histria italiana:

    escalas, indcios e singularidades (2006, pp. 21-55), essa metodologia surge na Itlia e seus

    precedentes esto relacionados com uma tentativa de fuga da bipolaridade, do ambiente

    acadmico e intelectual italiano do ps-guerra, representado, de um lado, pelos partidos

    comunistas e socialistas; e do outro, pelo conservadorismo-liberal e pelos democrata-cristos.

    Fora dos eixos dos centros intelectuais de grande prestgio como Turim, Roma e

    Bologna, estava a Facolt di Economia e Commercio da Universit di Urbino, na cidade

    porturia de Ancona, localizao que lhe permitiu um debate entre os diferentes

    posicionamentos da histria e das cincias sociais. Al surgiriam os Quaderni Storici, a partir

  • 38

    de 1966, uma revista acadmica fundada por Alberto Caracciolo, onde estiveram as primeiras

    discusses de micro-histria. Cabe ressaltar que a micro-histria no se afirma como uma

    escola, mas como uma proposta, uma forma de abordagem, que a princpio discutia os

    mtodos e procedimentos da histria social e logo aps passou a ser aplicado no contexto

    italiano.

    Os dilogos com marxistas ingleses, como Edward Palmer Thompson e Eric

    Hobsbawm, foram importantes para os primeiros micro-historiadores, que apesar de

    assumirem a influncia destes, estavam mais relacionados com a Escola dos Annales

    Francesa, devido sua pretenso de no idealizar a histria; assumindo principalmente a

    herana de Marc Bloch, que atravs de seu texto Reis taumaturgos, escrito em 1924, foi o

    primeiro a afirmar a importncia de idias populares, geralmente dependentes de fontes orais e

    folclricas, para o ambiente poltico mais amplo. Tema que seria caracterstico da micro-

    histria.

    A fama e o prestgio da revista acadmica levariam edio da coleo

    Microstorie, publicada pelo editor Einaudi, entre 1981 e 1988, sob a direo de Carlo

    Ginzburg e Giovanni Levi. A partir de ento, com a traduo dos livros para diversos idiomas,

    a micro-histria italiana se tornou famosa em toda Europa e Estados Unidos, e de forma mais

    lenta, mas crescente, tambm no Brasil.

    A micro-histria no se resume ao que est presente nessa coleo de livros, pelo

    contrrio, ela adquiriu certa autonomia e passou a contar com caractersticas singulares em

    cada estudioso que a utilizou, devido a sua proposta interdisciplinar e tambm, como j

    mencionado, por no se constituir uma escola, mas sim, um mtodo.

    II.3.1. Principais caractersticas da micro-histria

    Devido fertilidade e pluralidade metodolgica dos micro-historiadores existe

    uma permanente confuso quanto a sua definio, que no se resume apenas em pesquisas

    com delimitaes temticas extremamente especficas, muito embora essa seja uma das

    caractersticas principais, pois partem da seguinte idia:

    (...) de que se pode revelar muito olhando com ateno para um mesmo lugar onde

    aparentemente nada acontece sugere, se no um procedimento, ao menos a

    qualidade de uma observao ou de uma perspectiva frente aos objetos de anlise.

    Uma atitude intelectual que se alimenta da convico de que o olhar atravs do

    microscpio, o interesse pelo minsculo ou ao menos, no limite, pela miudeza, ou

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    por aquilo que mais facilmente se negligencia , pode revelar dimenses

    inesperadas dos objetos e, com sorte, perturbar convices arraigadas no domnio da

    histria (LIMA, 2006, pp. 13-14).

    Micro-delimitar o tema no significa um recorte breve, tampouco significa a

    anlise de uma pequena regio, nem como comumente se pressupe, um estudo de caso. Ao

    invs de tudo isso, o que a micro-Histria pretende uma reduo na escala de observao

    do historiador com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam

    despercebidos (BARROS, 2007, p.169). Ou seja, uma pesquisa estritamente delimitada, no

    no sentido geogrfico ou temporal, mas sim no que diz respeito a seu tema, ainda que este

    tema possua razes profundas e ramos que se alcem para longe.

    Apesar da pluralidade de mtodos, possvel descrever mais duas caractersticas

    presentes em todos os micro-historiadores, alm da delimitao especfica. A primeira delas

    a multidisciplinaridade que se manifesta desde seu surgimento nos Quaderni Storici que, a

    princpio, era mais uma discusso metodolgica do que propriamente uma abordagem de

    contedos. Seu objetivo era discutir a relao da histria social com as demais cincias

    sociais, como a economia, a demografia e a antropologia.

    Quando a micro-histria deixou de ser uma discusso metodolgica e passou a ser

    aplicada, foram geradas crticas devido ao seu ecletismo, um crtico a intitulou como histria

    com aditivos, e outros afirmaram que ela rompeu com o estatuto cientfico e invadiu o

    territrio da literatura. Diante de tais crticas, os micro-historiadores responderam que

    estavam conscientes de seu ecletismo metodolgico, mas destacam seu lado positivo, pois,

    segundo eles, h uma necessidade intrnseca de relacionar a histria com outras disciplinas,

    principalmente com a antropologia. Afirmam tambm que a interdisciplinaridade permite que

    a histria deixe de ser vista como um processo de sucesso no tempo, que objetiva uma meta e

    que pode ser analisado em sua amplido, j que diferentes disciplinas so capazes de mostrar

    um mesmo elemento por pequeno que seja a partir de vrios pontos de vista diferentes, e

    consequentemente, visar infinitos pormenores no interior de um sistema, que o fazem

    inco