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Universidade Federal Fluminense

REITORSidney Luiz de Matos Mello

VICE-REITORAntonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense

CONSELHO EDITORIALAníbal Francisco Alves Bragança (presidente)Antônio Amaral SerraCarlos Walter Porto-GonçalvesCharles Freitas PessanhaGuilherme Pereira das NevesJoão Luiz VieiraLaura Cavalcante PadilhaLuiz de Gonzaga GawryszewskiMarlice Nazareth Soares de AzevedoNanci Gonçalves da NóbregaRoberto Kant de LimaTúlio Batista Franco

DIRETORAníbal Francisco Alves Bragança

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Alessandra Siqueira Barreto, Ana Cláudia Cruz da Silva, Ana Paula Mendes de Miranda, Antônio Carlos Rafael Barbosa, Daniel Bitter, Delma Pessanha Neves, Edilson Márcio Almeida da Silva, Eliane Cantarino O’dwyer, Fábio Reis Mota, Gisele Fonseca Chagas, Gláucia Oliveira da Silva, Jair de Souza Ramos, José Sávio Leopoldi, Júlio César de Souza Tavares, Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes, Lenin dos San-tos Pires, Luiz Fernando Rojo Mattos, Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto, Marco Antonio da Silva Mello, Marcos Otávio Bezerra, Nil-ton Silva dos Santos, Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Renata de Sá Gonçalves, Roberto Kant de Lima, Sidnei Clemente Peres, Simoni La-hud Guedes, Tania Stolze Lima

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Copyright 1998, 2003 Jorge da Silva

Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Coleção Antropologia e Ciência Política, 14

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização

expressa da Editora.

Direitos desta edição reservados à

Editora da Universidade Federal Fluminense

Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí

Niterói, RJ - Brasil - CEP 24220-900

Tel.: +55 21 2629-5287

www.eduff.uff.br - [email protected]

Impresso no Brasil, 2016

Foi feito o depósito legal.

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A Joel Rufino dos SantosAos brasileiros e brasileiras de todas as “cores”

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Agradecimentos

Ao professor Luiz de Castro Faria, que me fez com-preender a importância dos estudos antropológicos nas Ciências Sociais.

Ao professor Roberto Kant de Lima, orientador, pela dedicação nessa dupla condição e pelas lições de amizade.

Aos professores Ari de Abreu Silva, Fabiano G. M. Santos, Maria Antonieta P. Leopoldi, Renato Lessa, René Armand Dreifuss, Roberto DaMatta, Si-moni Lahud Guedes, Walzi C. S. Silva e Zairo Borges Cheibub, aos quais agradeço publicamente mais para saciar minha vaidade.

Aos professores Anani Dzidzienyo (Brown Univer-sity) e Daniel dos Santos (University of Ottawa), pelo estímulo e indicações sobre a questão racial.

Ao colega Osvaldo Martins de Oliveira, pela ajuda na realização das entrevistas.

A Abdias do Nascimento, Astério Pereira dos San-tos, João Luiz Duboc Pinaud, Joel Rufino dos Santos, Regina Coeli Benedito dos Santos e a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a conse-cução deste trabalho.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e à Prefeitura do Rio de Janeiro, pelo apoio financeiro, sem o qual não teria sido possível realizar satisfatoriamente a pesquisa.

Aos Silva, Pedro e Isaura; e Vera, Jorge Ricardo, Fátima Cristina, Jomar, Ana Tereza, Marina e Pedro.

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Sumário

Prefácio à 3a edição, 11

Prefácio à 2a edição, 15

Introdução, 19

1 Preliminares: uma questão racial no Brasil?, 25

“Uma dor de cabeça histórica”, ou “Bondosos e malvados”, 28Para uma comparação diferente, 33Garimpando em terreno minado, 36

2 Sobre violência no Rio de Janeiro, 45

Contexto e favelas, 45Violência e violência metropolitana, 55Violência “não convencional”, 61Concepção da ordem: “cada macaco no seu galho”, 67Participação da sociedade, 73Participação do cidadão, 79

3 Para ver “Casa-grande” da “senzala”, 91

Racismo, preconceito, discriminação e segregação, 91A “fábula das três raças”, o “racismo científico” e a realidade, 95“Casa-grande” vista da “senzala”, 113Raça e cultura, 116Casa-grande & senzala, 125Identidade e representação, 138

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4 Justiça e segurança: representação e aplicação da lei, 153

Estado igualitário formal versus sociedade relacional, 153O mito é realidade, 174Cidadania, justiça e preconceito, ou Mantendo a ordem na favela, 191Impunidade e privilégio, 198No Judiciário: casos concretos, 202

Conclusão, 231

Referências, 237

Anexos

Anexo 1 - Entrevistas, 253

Anexo 2 - Questionário, 265

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Prefácio à 3ª edição

Já lá se vão 18 anos desde que a primeira edição deste livro foi lançada, em 1998. O mito da democracia racial, propalado mundo afora, dava os últimos suspiros. Questioná-lo tinha deixado de ser pecado ou tentativa de subversão da ordem, o que poderia levar o questionador a ser enquadrado no crime de “incitar ao ódio ou à discriminação racial”, com duras pe-nas, como previram as Leis de Segurança Nacional do regime militar, em particular a primeira, Decreto-Lei 900/69, com pena de 10 a 20 anos de reclusão. Há 18 anos, a internet ainda não se havia expandido. Era praticamente restrita a alguns círculos, como o empresarial e o acadêmico, diferentemente do que ocorre hoje, quando o número de smartfones já ultrapassa a casa dos 150 milhões, e as redes sociais se multiplicam em torno de interesses de vária ordem. Redes há, no entanto, que, lamentavelmente, desenvolvem novas formas de intolerância contra os “diferentes”. No caso dos negros, isso se acentua como que em resposta às políticas de cotas. Claramente, de um racismo velado passa-se a um racismo explícito.

A segunda edição, de 2003, não sofreu alterações de conteúdo. Apenas correções decorrentes da revisão então procedida e a inclusão de um prefácio, dando conta de fatos novos. Naquele momento, alguns programas de cotas começa-vam a ser anunciados, despertando grande polêmica. No Rio, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) implantava o primeiro programa de cotas do país, o que acirrou as críticas

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dos opositores, sob alegações conhecidas que, 12 anos depois, não se confirmaram.

Se a segunda edição não sofreu alterações de conteúdo, deparei-me, ao preparar a terceira, com um impasse, tendo em vista que o contexto sofreu significativas mudanças em relação ao de 1998, e mesmo ao de 2003, como vimos acima. Em 2012, depois de longo e apaixonado embate público entre defensores e opositores das cotas, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, declarou sua constitucionalidade em ação movida pelo Partido Democratas (DEM). Hoje, mais de 30 universidades, entre estaduais e federais, adotam o sistema de cotas, e várias instituições de ensino privadas desenvolvem algum programa de promoção da igualdade de grupos histori-camente discriminados. Além disso, ações da mesma natureza ocorrem em concursos públicos e para admissão em cargos comissionados, em diferentes níveis federativos, o que também tem provocado reações contrárias, inclusive com ações na justi-ça, como foi o caso da arguição de inconstitucionalidade da Lei estadual nº 6.027/2011, de iniciativa do governo do estado do Rio de Janeiro, que reservou aos negros e indígenas 20% das vagas nos concursos públicos, e que foi contestada na Justiça por um deputado estadual do Rio de Janeiro.

Outro ponto. Desde janeiro de 2003 está em vigor a Lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, “para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’”. Curiosamente, a lei tem encontrado forte resistência justamente por parte daqueles de quem se esperava empenho em efetivá-la: os educadores.

Daí o impasse a que me referi acima. Se atualizasse os dados no texto, o leitor perderia a perspectiva de como se desenvolve a questão. Se mantivesse o conteúdo intacto, sem modificações ou acréscimos, deixaria de fora dados importan-tes, que poderiam servir a comparações com o contexto de 18 anos atrás, sobretudo com dados estatísticos e censitários

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de então. Decidi tentar um caminho que, ao menos em parte, conciliasse as duas posições. As alterações foram introduzidas com o cuidado de não descaracterizar o texto original e afetar o conteúdo, que continua essencialmente o mesmo. E as atuali-zações se deram apenas nos pontos em que a configuração do quadro atual o recomendasse, mas principalmente em notas de rodapé. Por exemplo, foram mantidos os dados de 1998 sobre a representação proporcional de brancos, pretos e pardos na população total, dados esses que foram a base para a elabo-ração de quadros que aparecem no Capítulo 4, e acrescentadas informações sobre o chamado “racismo científico”. A situação mudou um pouco, com a elevação proporcional do número de pardos, mas a atualização não alteraria o sentido.

Esta terceira edição, portanto, vem a lume em outro con-texto, cumprindo, desde logo, notar que a queda do mito (e do tabu a ele associado) pode ser comparada ao rompimento de uma represa; represa de preconceitos. Os que lutam contra o racismo e por políticas de igualdade etnorracial, brancos e negros, são taxados de “racialistas”, vale dizer, racistas; os de-fensores dos direitos humanos são chamados, raivosamente, de defensores de bandidos. As hordas de “menores” pobres e negros da “periferia” – fora da escola e nas ruas, muitos dos quais envolvidos com drogas e/ou praticando crimes – dei-xam de ser questão social e sim problema de falta de polícia e prisão, para o que seria necessário reduzir-lhes a maioridade penal a fim de mandá-los para as prisões de adultos; a luta do movimento social por mais democracia e igualdade passa a ser tratada como desordem.

Violência e racismo no Rio de Janeiro. O título do livro dava bem a ideia da preocupação com esses dois problemas, pensados um em relação ao outro. Era óbvio que a violência criminal do Rio, sobretudo a forma concebida para enfrentá-la, era afetada por um racismo latente, porém forte, jamais admitido. A vio-lência criminal continua a atemorizar os cidadãos de todas as camadas e todas as cores, porém não há como esconder que

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vitimiza em escala os moradores de favelas e periferia, seja em razão das disputas entre facções criminosas pelo domínio do mercado de drogas ilícitas no varejo, ou em confrontos entre traficantes e a polícia. Além de bandidos e policiais mortos, pessoas inocentes também morrem, atingidas por balas perdi-das durante os embates. Crianças dessas comunidades ficam sem aulas durante semanas por causa dos tiroteios, ou tendo de adotar estratégias para não serem atingidas, como deitar no chão. O mais lamentável é que esses fatos se repetem com tamanha frequência que acabam sendo naturalizados. E isso acontece há anos.

Em um momento em que dados oficiais dão conta de que jovens negros são vítimas de homicídios numa proporção de 2,5 para cada jovem branco, não será desarrazoado concluir que a premissa levantada há 18 anos continua válida, e é preciso que a sociedade encontre caminhos mais humanos para lutar contra esses dois males: a violência e o racismo.

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Prefácio à 2ª edição

Há cinco anos, enquanto o establishment brasileiro, sobre-tudo a academia e a mídia, persistia em sustentar o discurso “politicamente correto” de que o Brasil era uma sociedade homogênea e sem maiores conflitos, era possível perceber que a discriminação se constituía num ingrediente importante na produção da violência do Rio de Janeiro, na verdade uma cidade fragmentada socialmente. De lá para cá, muita coisa mudou. O Estado brasileiro reconheceu o problema, e iniciativas im-portantes têm sido adotadas, embora, aparentemente, poucas pessoas consigam ver nexo entre a discriminação racial e a vio-lência, sobretudo a violência nas favelas e periferia. À guisa de prefácio, reproduzo aqui artigo publicado na edição dominical do Jornal do Brasil, de 23 de dezembro de 2001, com chamada de primeira página. De certa forma, estas ideias atualizam o texto de 1998.

Cotas contra a mentira histórica23/12/2001A propósito das cotas para negros anunciadas pelo presi-

dente da República, as opiniões se dividem. Contra ou a favor, é inescapável a conclusão de que estamos diante de um processo de grande significado histórico, e que certamente afetará as nossas relações sociais. Por que histórico?

Abolida a escravidão pouco antes de iniciar-se o século XX, a hierarquia social com base na raça/cor continuou a ser confortavelmente praticada pela elite brasileira, que seguiu

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acreditando na teoria europeia da superioridade mental, bioló-gica, da raça branca. Restava-lhe, porém, um problema: como o Brasil poderia apresentar-se como nação civilizada com um povo de negros? Chegaram a um consenso: bastava esconder o negro na periferia da sociedade, longe dos salões, e investir na política do branqueamento, com a imigração massiva de europeus. Essa política, entretanto, não produziu os resultados imaginados: primeiro, porque os “negros que não sabem o seu lugar” multiplicaram-se geometricamente; e segundo, porque o Brasil não branqueou, a não ser ideologicamente, acarre-tando uma profunda crise de identidade coletiva e individual. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais louro do que eu?”, brasileiros de todos os matizes continuam a perguntar aos seus espelhos secretos, depois de pintar o cabelo e operar o nariz.

Os negros logo perceberam que os benefícios possíveis numa tal sociedade passavam pelo alinhamento à estética europeia e pela adoção do único discurso autorizado, o da democracia racial. E mais: que era menos traumático fingir concordar com os “donos a verdade” do que explicitar a sua discordância. E ficou combinado: brancos fingiriam que não discriminavam, e negros fingiriam que não eram discriminados. Assim, enquanto o assunto virava tabu, mantinham-se inaltera-das as cotas tradicionais. Um exemplo: ainda hoje, na educação universitária nacional, a presença de negros (45,3% de pretos e pardos, conforme indicadores do IBGE) não chega a 5%. Há também a discriminação no emprego e na profissão, de que o Brasil é campeão, fato que vem motivando, há décadas, o ques-tionamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Negros que não sabiam o seu lugar”, como Zumbi dos Palmares, Manoel Congo, João Cândido, Guerreiro Ramos e outros; e “negros que não sabem o seu lugar”, como Abdias do Nascimento e milhares de anônimos, abriram o caminho para que hoje o Estado brasileiro tenha coragem de enfrentar as forças conservadoras (como esperneiam!) a fim de, primei-ro, estancar a continuidade da discriminação institucional; e

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segundo, responsabilizar-se pelos danos materiais e morais infligidos durante séculos, até hoje, a um dos seus principais grupos humanos.

Quando o poder público se dispõe a adotar políticas para diminuir o fosso social entre negros e brancos, é espantoso, e triste, ver a irritação dos plantonistas do aparelho da reação, repetindo carcomido receituário discursivo: “O problema é social, e não racial!”; “As cotas são racismo às avessas”; “Como saber quem é negro e quem é branco!?” (nesta hora, até os louros alegam ter um remoto ancestral negro ou índio...); “O problema é a educação!” (como se não fosse exatamente o modelo educacional a principal matriz da discriminação), e por aí afora. No momento, essas forças insurgem-se contra a política de cotas adotada pelos Ministérios do Desenvolvi-mento Agrário e da Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e leis recentes do Rio de Janeiro: uma que reservou 40% das vagas nas duas universidades do Estado para candi-datos negros; e outra que destinou 50% para jovens oriundos da escola pública. Insurgem-se contra a decisão do presidente da República de exigir que as empresas que contratam com o governo empreguem pelo menos 20% de negros em seus qua-dros. Devem achar que 80% para brancos é pouco. Ignorância ou má-fé, discorrem resolutamente sobre o que desconhecem. Falam de cotas e ação afirmativa como se fossem sinônimos. Fa- lam sem levar em conta o fato de que tão ou mais importante do que o discurso, como ensinam Derrida, Foucault, Eco e outros estudiosos, é saber quem o produz, de que posição fala, para quem fala e, principalmente, quem ouve e de que posição ouve. Coincidentemente, muitos dos que se opõem às políticas de ação afirmativa, de que as cotas são um aspecto menor, falam como se fossem mensageiros neutros da razão, sem identidade particular, sem interesses; simplesmente “brasileiros”.

O percentual de 45,3% de negros refere-se apenas aos que se apresentam ao Censo como pretos e pardos (excluídos os pardos “claros” que optam por inflar as cifras de brancos).

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Trata-se da segunda maior população negra do mundo, depois da Nigéria. Nos Estados Unidos, os negros (todos os não brancos com ascendência africana) não chegam a 12%. Como explicar a importante presença dessa minoria (minoria mesmo, e não minoria sociológica!) nos diferentes setores da vida da-quele país – na universidade, na diplomacia, no empresariado, na televisão, na Suprema Corte de Justiça, no primeiro escalão da República –, em comparação com a quase ausência de nossa “metade” até mesmo em posições modestas, como garçons de bons restaurantes, comissários(as) de bordo, vendedores de shoppings etc. Será que os negros de lá são melhores do que os negros de cá? Irritam-se os conservadores com essas compara-ções, alegando que não devemos ficar copiando coisas alheias. Como se aqui não existisse uma compulsão irrefreável para a cópia do “centro”. Não nos esqueçamos de que até recente-mente nos chamávamos Estados Unidos do Brasil; de que, se ontem achávamos de bom-tom coquetear falando francês, hoje não temos dúvida alguma de que rótulos e anúncios em inglês são garantia de sucesso.

O que está ocorrendo no Brasil não é algo isolado, produto de esquisitice ou benesse do “sinhô”, como alguns afirmam. Trata-se de um processo em que, de longa data, se empenham brasileiros brancos e negros, governos e organizações nacionais e internacionais, processo este favorecido pelos ventos da glo-balização, que alguns preferem que se circunscreva à economia.

A sociedade brasileira deve regozijar-se ante a oportuni-dade que o Estado lhe oferece de enfrentar a sua maior mentira histórica. Por isso, os discriminados do Brasil em geral, e não só os negros, esperam que o presidente não hesite diante da ferrenha pressão conservadora. Mais: que leve em conta o dado nada trivial de o seu ministério não possuir nenhum negro ou mulher, e, num gesto “afirmativo” – e para dar o exemplo a governadores, prefeitos, parlamentares e tribunais –, escureça e feminilize um pouco o primeiro escalão da República. Afinal, somos todos brasileiros.

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Introdução

Este livro focaliza a questão da violência criminal no Rio de Janeiro, incorporando na análise o componente racial,1 no sentido em que os termos raça e racial são empregados no texto.

Isolado esse componente da consensualmente admitida “discriminação social”, de classe, vai-se constatar que o fator raça/cor tem acentuado peso na produção da violência experi-mentada na cidade, e que a abstração desse dado, em vez de contribuir para a atenuação dos conflitos inerentes a qualquer sociedade, funcionará como potencializador desses conflitos. Políticas que, por qualquer razão, insistirem em descartá-lo descambarão inevitavelmente para o polo repressor, fazendo do Estado o garantidor da discriminação e da intolerância.

Temática extremamente subjetiva, grande foi a dificul-dade de objetivar a análise e as conclusões, o que deixa em aberto amplas veredas para o aprofundamento da discussão na perspectiva aqui vislumbrada. Na verdade, para a maioria dos estudiosos da violência, esta teria outras raízes, nada tendo a ver com raça/cor. Se houver discriminação contra os

1 O termo raça é empregado no texto como categoria sociológica, e não no sen-tido de determinismo biológico, como, arbitrariamente, foi construído como conceito ao longo do tempo, a partir da observação dos traços fenotípicos de populações de diferentes partes do planeta. Raça, racial e racismo, portanto, são empregados com conotação sociopolítica, pois continuaram a ser empregados mesmo depois que o conceito de raça biológica perdeu o sentido em face de descobertas da genética, sobretudo do mapeamento do genoma humano.

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negros,2 não será por serem negros e sim por serem pobres. E pronto.

O ponto de vista de onde se procede à investigação, por-tanto, é diferente daquele de onde tem partido a maioria das análises explicativas das relações raciais no país. Aqui se busca a discussão dialógica.

Neste estudo, tem-se como pressuposto que o Brasil está longe de ser uma democracia racial, para o que seria condição necessária que fosse, antes, uma democracia, sem adjetivos. Seria realmente espantoso que tivéssemos conseguido erguer uma democracia “racial” numa sociedade de tradição autori-tária e hierárquica, palco de três séculos e meio de escravidão negra, que findou a pouco mais de quatro gerações. Este dado é relevante, porque qualquer análise sobre essas questões será afetada por subjetividades inerentes ao perfil identitário do ana-lista. Mais que tudo, por seu perfil racial. Ora, parece razoável que, se o analista tem identidade social referida à ascendência africana, tenderá a ver a questão por um ângulo, e, por outro, se à ascendência europeia, independentemente de qualquer es-forço de neutralidade. Aliás, é sintomático que nestas questões as avaliações dos que se consideram negros divirjam bastante das avaliações dos que são vistos como brancos (vistos como brancos, porque nem todo brasileiro com notória ascendência europeia se diz branco...), como se evidenciou na pesquisa. Que outra explicação se poderia dar para a divergência?

A premissa fundadora do raciocínio, portanto, é que a “democracia racial” brasileira é essencialmente um mito, o que me dispensarei de demonstrar, de vez que já o fizeram

2 A expressão afro-brasileiro(a) – institucionalizada pela Constituição da República no § 1º do Art. 215 – será evitada no texto, preferindo-se as categorias negro (preto + pardo) para representar os brasileiros com marcas fortes da ascendência africana. A categoria branco(a) será empregada em referência aos fortemente marcados pela ascendência europeia. A expressão não branco(a) englobará os negros, os indígenas, outros grupos mestiços em geral, e os classificados como amarelos pelo IBGE.

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estudiosos como Costa Pinto (1953), Fernandes (1972, 1978 e 1989), Oliveira (1983), Moura (1988), Kant de Lima (1991), Santos (1991), Skidmore (1993), Guerreiro Ramos (1995), Santos (1996) e outros. Um mito construído na referência obsessiva à explicitude da questão racial norte-americana, e favorecido pelo modelo de ordem vigente em nosso país. Um mito cons-truído unilateralmente pelas elites do poder, porém com força suficiente para confundir-se com a realidade. E talvez seja por essa razão que se observam duas importantes lacunas no estu-do das relações sociais no Brasil: primeiro, o fato de o analista não partir do princípio de que faz sua análise de determinado ângulo, inescapavelmente vulnerável à parcialidade; segundo, a tendência a não tomar a sociedade brasileira em si mesma, objetivamente, realçando apenas os seus aspectos positivos para compará-los com os negativos de outros lugares. Não fosse assim, não se compreenderia como estudiosos importantes pos-sam sustentar a ideia de que vivemos numa democracia racial, se insondáveis razões não houvesse. Ou que outros, brandindo argumentos alegadamente científicos, se angustiassem com a grande quantidade de negros no Brasil, e condenassem a mis-cigenação, como, entre outros, Nina Rodrigues (1957 e 1988), Oliveira Viana (1932 e 1942), que importaram e difundiram entre nós, sem retoques, as racionalizações do chamado “ra-cismo científico” europeu.3

3 Por racismo científico se entende a extensa produção intelectual europeia de meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. Coincide com a expansão do colonialismo imperial, o qual encontrou nas teorias sobre hierarquia das raças a principal justificativa para a dominação dos povos não europeus. Ícones da sistematização dessas teorias foram, entre outros, os franceses Joseph Arthur de Gobineau (o “conde” de Gobineau), Gustave Le Bon e Georges Vacher Lapouge. Gobineau com o seu Essai sur l’inégalité des races humaines (Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas), de 1853; Le Bon com La psychologie des foules (Psicologia das massas), de 1895; e Lapouge, com L’aryen – son rôle social (O ariano – seu papel social), lançado em 1899. (Cf. Silveira, 1999).

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No presente estudo, pois, o tema não é abordado com o propósito de esconder conflitos de interesses ou minimizá-los, e sim de expô-los, pois é essencial para a sua resolução que sejam explicitados, por mais incômodos que sejam.

O texto está dividido em quatro capítulos. Os três primeiros visam a relativizar visões de senso comum sobre a formação da sociedade do Rio de Janeiro, sobre a natureza dos problemas que ela enfrenta e fatores que explicam ou potencializam a violência criminal, como a discriminação social e racial. A propósito dessas visões fantasiosas, cumpre sublinhar que estas foram construídas com uma atitude autocomplacente das elites intelectuais e políti-cas, dando conta de uma sociedade harmoniosa, cordial, pacífica e sem conflitos. Sem a relativização dessas visões, ficaria difícil entender os argumentos contidos no Capítulo 4, o principal. Se o leitor não se orienta por tais visões, nada impede que, sem prejuízo do conjunto, vá direto a esse capítulo.

O Capítulo 1, “Preliminares”, destina-se à apresentação de considerações genéricas sobre a questão social, na qual se insiste em diluir a questão racial para negá-la; sobre posições conflitantes a respeito do tema e sobre como o trabalho foi rea-lizado, dando conta ainda de subjetividades relativas ao próprio autor, importantes para uma melhor compreensão do seu ponto.

O Capítulo 2, “Sobre violência no Rio de Janeiro”, além de apresentar breves considerações teóricas sobre a violência, é reservado a contextualizar a violência criminal que a população do Rio de Janeiro vivencia, realçando seus aspectos peculiares, sobretudo a tensão entre moradores de favela e do “asfalto”.

No Capítulo 3, “Para ver ‘Casa-grande’ da ‘Senzala’”, faz-se igualmente uma apreciação teórica sobre o racismo, procurando isolá-lo de termos como preconceito, discriminação e segregação, e se alude à tensão provocada pelo descompasso entre a representação da “democracia racial” e a realidade objetiva da discriminação racial, com a miríade de sutilezas daí advindas, o que implicou a necessidade de garimpar explicações para o descompasso justamente na que se afigura a principal fonte da

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representação: Casa-grande & senzala, de Freyre (1995). Mais que tudo, o problema da extrapolação que se costuma fazer do real conteúdo da explicação do autor pernambucano nesse livro.

O Capítulo 4, “Justiça e segurança: representação e apli-cação da lei”, é o mais denso. Embora nos Capítulos 2 e 3 já se tenham adiantado comentários sobre os dados coletados, é neste que se concentra a análise propriamente dita (das en-trevistas, da bibliografia compulsada, dos dados censitários e estatísticos, de casos levados à justiça), exibindo o abismo entre os ideais igualitários declarados formalmente e uma prática discriminatória de “imposição” da ordem. Aí se verificará como a representação de um país imune ao racismo afeta negativamente o comportamento dos operadores do sistema de justiça e se-gurança. São analisados seus discursos em seis casos. E ficará exposta a inconsistência das racionalizações ufanistas em torno da “fábula das três raças”, como diz DaMatta (1993b).

Mesmo correndo o risco de a abordagem do tema ser confundida com sectarismo, decidi adotar atitude radical, no sentido de ir à raiz – e não “sectária”, na forma como distingue o sociólogo Guerreiro Ramos (1995) –,4 usando tom franco e sem rodeios na exposição. A meu juízo, o “politicamente correto” é meio irmão da mentira. Era preciso mostrar que a insistência em manter a ordem no marco da força e das velhas hierarquias traz consequências desastrosas; que não a violência em si mas o tipo de violência do Rio de Janeiro é exemplo deste fato.

Mantida abafada, a questão racial brasileira – parto do princípio, repito, de que há uma questão racial a ser enfrentada no Brasil, em benefício de toda a nação – vai apresentar compo-nentes preocupantes. Se, no plano teórico, o ufanismo das elites

4 Para Guerreiro Ramos, na teorização da realidade, há que se distinguir a “teori-zação ideológica” (necessariamente sectária) da “teorização sociológica” (crítica e autocrítica, e metodologicamente radical). “Radical” no sentido de possibilitar uma discussão dialética, quando o cientista tem “consciência da influência de fatores irracionais no pensamento”. Consciência da contingência histórica e social da posição de onde fala. Radicalidade como atitude operacional. (1995, p. 61)

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brasileiras em torno da “escravidão consentida”, do “senhor bondoso”, do “escravo feliz”, do “negro bom e submisso”, do “milagre da miscigenação” e outras racionalizações românticas tem servido para sustentar o mito e, num certo sentido, dar uma aparência de harmonia, o dia a dia de uma cidade como o Rio de Janeiro expõe as vísceras de um racismo empedernido. Expõe, por exemplo, a discriminação praticada por agentes do próprio Estado, alimentando o círculo vicioso do inconformis-mo, da descrença, da revolta, do ódio, da rebeldia, da violência.

São fatos demasiado evidentes para não serem levados em conta quando da formulação das políticas governamentais voltadas para a promoção da cidadania. Especificamente, no caso do Rio de Janeiro, das políticas voltadas para o controle da violência criminal, tendo em vista que o modelo de ordem autoritário e discriminatório tradicional exauriu-se, como dão prova os longos tiroteios à luz do dia até em bairros considera-dos nobres; as balas perdidas e os cerca de 3.744 assassinatos por ano na cidade (dados de 1995).5 Mais que tudo, o império paralelo dos traficantes de drogas em centenas de comunida-des, a despeito das políticas de “guerra” adotadas, até com o emprego das Forças Armadas.

Evidencia-se no presente estudo, à exaustão, que não será com a repressão violenta nem com a segregação espacial que se conseguirá “manter a ordem”. Aliás, nem seria necessário um estudo para mostrar o que todo mundo vê. Na verdade, as po-líticas adotadas têm conduzido a mais violência e a uma maior desagregação social. Caminhos menos traumáticos, informados por outra racionalidade, hão de ser buscados, como se tenta indicar com este livro. Não obstante a abordagem cruzada dos temas da violência e do racismo, o estudo poderá ser útil, se-paradamente, aos interessados tanto na questão racial quanto na da segurança pública.

5 Fonte: MAPA de risco da violência: cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: CEDEC/Ministério da Justiça, 1997.