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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ESCUTA CLÍNICA E ATITUDE FENOMENOLÓGICA NO ATENDIMENTO À PESSOA SURDA: REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO PSICOTERÁPICO Délio Henrique Delfino de Oliveira Natal 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ESCUTA CLÍNICA E ATITUDE FENOMENOLÓGICA NO ATENDIMENTO À

PESSOA SURDA: REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO PSICOTERÁPICO

Délio Henrique Delfino de Oliveira

Natal

2014

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DÉLIO HENRIQUE DELFINO DE OLIVEIRA

ESCUTA CLÍNICA E ATITUDE FENOMENOLÓGICA NO ATENDIMENTO À

PESSOA SURDA: REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO PSICOTERÁPICO

Dissertação elaborada sob a orientação da

Professora Dra. Elza Dutra e apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Psicologia.

Natal

2014

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UFRN. Biblioteca Central Zila Mamede.

Catalogação da Publicação na Fonte.

Oliveira, Délio Henrique Delfino de.

Escuta clínica e atitude fenomenológica no atendimento à pessoa

surda: reflexões sobre um processo psicoterápico / Délio Henrique Delfino

de Oliveira. – Natal, RN, 2014.

111 f. : il.

Orientadora: Profª. Drª. Elza Dutra.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-

Graduação em Psicologia.

1. Surdez – Dissertação. 2. Língua brasileira de sinais (Libras) –

Dissertação. 3. Psicoterapia – Dissertação. 4. Escuta clínica – Dissertação.

5. Atitude fenomenológica – Dissertação. I. Dutra, Elza. II.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BCZM CDU 159.932

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Mãos verticais abertas,

palmas para trás diante da face.

Movê-las, alternadamente,

para frente e para trás,

com movimentos curtos.

Sinal de Psicologia

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v

Agradecimentos

À minha família, a todos do meu lar. Em especial, à minha maravilhosa mãe, que

sempre me inspirou a seguir enfrentando os desafios da vida. À minha segunda mãe,

minha querida tia, Doca, que sempre me apoia e cuida muito bem de mim;

À minha orientadora, professora Drª. Elza Dutra, fonte de inspiração profissional e

pessoal que, com sua abertura existencial e compreensão das questões contemporâneas,

permitiu-me realizar esse projeto de vida. Muito obrigado por tudo que você me

possibilitou;

Aos vários mestres que passaram por minha formação acadêmica/clínica e despertaram

o meu interesse para seguir nesse caminho. Aos professores, Dr. Roberto Novaes de Sá

e Drª. Symone Melo, que fizeram parte desse estudo, tecendo considerações pertinentes,

ajudando-nos em nossas reflexões sobre a clínica fenomenológico-existencial;

Aos meus queridos amigos, ouvintes e surdos, que me dão força e tornam o meu viver

bem mais alegre;

Aos colegas da academia e base de pesquisa, pelo apoio e acolhida nesse novo lugar;

Às pessoas que me fazem intensamente ser-com, os meus clientes, que em liberdade

questionam o existir, deixando marcas no meu ser-clínico;

Ao programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, pelo espaço de crescimento.

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SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................. vii

Abstract............................................................................................................ viii

INTRODUÇÃO................................................................................................ 09

1. SER SURDO E LIBRAS: UMA ESCUTA VISÍVEL................................. 16

2. O DIÁLOGO DA PSICOLOGIA COM O SER SURDO:

POSSIBILIDADES PARA UMA APROXIMAÇÃO

FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL...........................................................

34

2.1 A clínica fenomenológico-existencial........................................................... 44

3. MÉTODO..................................................................................................... 53

3.1 Processos metodológicos............................................................................. 55

3.2 Colaborador/Participante............................................................................ 56

3.3 Registro dos dados...................................................................................... 57

3.4 Procedimentos éticos................................................................................... 57

3.5 Procedimento de interpretação hermenêutica............................................... 58

4. INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS................................................. 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 97

REFERÊNCIAS................................................................................................... 103

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Resumo

A psicologia faz uso da escuta como um dos recursos do seu trabalho. Em se tratando da

psicoterapia, a escuta estabelece a comunicação e facilita o diálogo entre psicólogo-

cliente. A presente pesquisa, de caráter qualitativo, tem por objetivo discutir a escuta

clínica na atitude fenomenológica na psicoterapia fenomenológico-existencial com

pessoas surdas. Essa perspectiva está embasada no pensamento do filósofo alemão

Martin Heidegger, que considera o humano um ser-no-mundo-com-os-outros, sempre

desvelando sentidos. Com relação às pessoas surdas, atualmente, a Libras é a língua

natural das pessoas surdas brasileiras. Nessa nova configuração de língua, a

comunicação ocorre na modalidade espaço-visual. Assim, escuta e fala ganham novas

dimensões que demandam diferentes formas de compreensão no campo da psicoterapia.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, apresentamos recortes das narrativas de sessões

psicoterapêuticas com um cliente surdo, interpretadas à luz da hermenêutica

heideggeriana. Consideramos ser possível para o psicoterapeuta escutar pessoas surdas

em atitude fenomenológica, com postura que não naturaliza e não limita o humano,

auxiliando para que o cliente se responsabilize por seu existir e que possa dialogar

hermeneuticamente em sua língua, cabendo, nesse contexto, ao psicólogo, estar

habilitado em Libras para realizar o atendimento. Esperamos que esta pesquisa possa, de

alguma forma, preencher a lacuna existente no que se refere à produção científica sobre

tal temática, no campo da psicologia, e, principalmente, fomentar a discussão no

contexto dos cursos de psicologia acerca da importância e necessidade de capacitar o

psicólogo para o exercício da prática clínica com pessoas surdas.

Palavras-chave: surdez; libras; psicoterapia; escuta clínica; atitude fenomenológica.

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Abstract

Psychology uses listening as a work resource. When it comes to psychotherapy,

listening establishes communication and makes psychologist-client dialogue easier. This

qualitative research aims to discuss the clinic listening in phenomenological attitude in

existential-phenomenological psychotherapy with deaf people. This perspective is based

on the thinking of German philosopher Martin Heidegger, who considers humane a

being-with and being-in-the-world, always unveiling meanings. Regarding the deaf

people, Libras is currently the natural language of Brazilian deaf people. In this new

language configuration, communication occurs in a visual-spatial modality. Thus,

listening and speech gain new dimensions, demanding different ways of understanding

in the field of psychotherapy. To the development of this research, we present excerpts

from therapeutic sessions narratives with a deaf client, interpreted in the light of

Heidegger’s hermeneutics. We consider that it is possible for the psychotherapist to

listen to deaf people in phenomenological attitude. Such position, which does not

naturalize and limit the humane, helps so that the clients do not feel responsible for their

existence and can hermeneutically converse in their language. In this context, the

psychologist must be qualified to conduct the treatment in Libras. We hope that this

research can, somehow, fill the existing gap of the scientific production about such

theme in the field of Psychology and, mainly, instigate discussion in the context of

Psychology courses on the importance and need to qualify psychologists for the

management of clinical practice with deaf people.

Keywords: deafness; libras; psychotherapy; clinic hearing; phenomenological attitude.

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INTRODUÇÃO

Este estudo começou a ser vislumbrado durante minha graduação em psicologia,

quando, na realização do estágio final em psicoterapia, fomos convocados para dar

resposta à demanda de um cliente surdo que era fluente em Libras, comunicando-se por

sinais e que necessitava de acompanhamento psicológico. Diante dessa solicitação,

percebi a necessidade de investir nessa modalidade de atendimento. Esta experiência

evidenciou algumas questões acerca da atuação do psicólogo, em especial, no que tange

à escuta clínica de pessoas surdas.

Atualmente, diversas discussões sobre a questão da inclusão de pessoas surdas

são frequentes em nossa sociedade. Com a oficialização da Língua Brasileira de Sinais –

Libras, em 2002, o uso dos sinais ganhou reconhecimento como comunicação e língua,

o que faz com que as mais variadas áreas necessitem refletir sobre questões particulares

dessa população. Este é o caso da psicologia, profissão que se desenvolve junto a

diferentes contextos, tendo no psicólogo clínico um profissional que faz uso da escuta

como um dos recursos do seu trabalho. Em se tratando da psicoterapia, uma das

modalidades de atendimento do psicólogo clínico, sabemos que a escuta estabelece a

comunicação, facilitando o diálogo entre psicólogo-cliente para que esse processo

ocorra. Dessa forma, somos convocados a refletir sobre a escuta do silêncio, a escuta

dos sinais.

No atual cenário ético e político, a temática do acompanhamento psicológico de

pessoas surdas mostra-se relevante para responder às questões de inclusão das pessoas

surdas, aspecto que envolve o desenvolvimento de uma atuação comprometida

socialmente, consonante com as demandas contemporâneas que chegam à psicologia.

Nesse sentido, falamos sobre a possibilidade de atender a essa população, caso venha

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necessitar de algum tipo de apoio psicológico, levando-se em consideração seu modo

particular de comunicação, fazendo uso de sinais em uma língua específica, a Libras, o

que nos leva a pensar sobre as implicações dessa atuação na clínica de base

fenomenológico-existencial.

Para o filósofo alemão Martin Heidegger (1927/2012), o humano é um ente que

se difere dos demais presentes no mundo por ser o único capaz de compreender o ser

dos entes, inclusive do próprio ente que ele é, e por reconhecer os outros que também

apresentam essa característica desveladora de sentidos. Trazendo essa reflexão

ontológica para o campo da psicoterapia, Feijoo (2000) nos diz ser por intermédio da

estrutura escuta-fala que o ser dos entes desvela-se. Mas, qual a importância dessa

compreensão dos entes? Segundo a referida autora, a psicoterapia de base

fenomenológico-existencial, referencial teórico adotado nesse estudo, tem por finalidade

compreender o sentido do ser do ente, que se revela na fala. Sendo assim, a fala

apresenta-se como elemento primordial para que ocorra o processo psicoterapêutico,

possibilitando que o cliente expresse sua singular compreensão do mundo para um

psicólogo que escute este processo de dar sentidos à existência. Tal ideia pressupõe a

existência de uma atitude fenomenológica que possa favorecer a escuta dos sentidos que

emergem nessa abertura de possibilidades que caracteriza o ser-no-mundo. Assim,

entendemos que a escuta, tal como concebida na perspectiva teórica e metodológica

adotada neste estudo, parte de uma determinada atitude diante do fenômeno que se

desvela no contexto de uma relação psicoterapêutica.

Diante dessa questão, trazemos que a escuta é um fenômeno presente no

cotidiano da humanidade, seja no contexto familiar, escolar, profissional, afetivo ou em

qualquer outra situação. Ela emerge como ato de existência, como processo de estar em

sociedade, de ser-no-mundo, não se realizando somente no encontro de duas ou mais

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pessoas, mas podendo ser realizada por outra via de escuta, a escuta dos sentidos do ser,

na qual a pessoa pode escutar seus sentidos e se fazer presente no mundo.

Quando falamos em escuta, podemos pensar sobre os diversos significados e

sentidos que este termo tem para nossa sociedade e, em especial, para a psicologia. Para

tanto, faz-se necessário tematizar o que vem a ser “escuta”, principalmente,

apresentando qual a compreensão social que se tem acerca deste termo, assim como

refletindo sobre este relevante conceito no contexto da psicologia fenomenológico-

existencial. Sendo assim, surgem algumas questões acerca da escuta clínica de pessoas

surdas deste modo singular de estar presente no mundo. Como se dá a comunicação

entre cliente e psicoterapeuta por meio da língua de sinais, Libras? Quais seriam as

limitações e alcances da prática em tais condições? Qual a postura do profissional que

se depara com as alteridades existenciais do seu cliente? Essas questões norteadoras nos

conduzem para esse questionamento: Como é para o Psicólogo clínico a prática da

atitude fenomenológica no atendimento de uma pessoa surda que se comunica por meio

de sinais?

Com relação à perspectiva fenomenológico-existencial, por considerar o homem

como um ser de possibilidades e que atribui sentidos ao mundo, pensar no atendimento

clínico de uma pessoa surda é pensar no seu modo particular de comunicação como

sendo uma das muitas possibilidades de ser-no-mundo. De acordo com Heidegger

(1927/2012), o ser, ou Dasein – como esse filósofo nomeia o modo de ser do humano,

termo que foi traduzido para o português como presença, no trabalho de Marcia Sá

Cavalcante Schuback e que também adotamos nesse estudo, apresenta ontologicamente,

em sua constituição, três existenciais fundamentais: disposição, compreensão e

linguagem. São esses existenciais que possibilitam ao Dasein atribuir sentidos ao

mundo – mundo, segundo Critelli (1996) “é uma sutil e poderosa trama de significação

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que nos enlaça e dá consistência a nosso ser, nosso fazer, nosso saber” (p. 18). Como

também destaca Sá (2010), “Dasein e “mundo” são cooriginários ou coemergentes” (p.

186) não existindo separados e muito menos sendo a mera integração sujeito e objeto;

então, falar em Dasein e mundo é falar em ser-no-mundo.

Para desenvolver esta pesquisa, inicialmente, realizamos um levantamento

bibliográfico sobre o tema por nós abordado, o que nos deu como resposta poucos

materiais que lidam com esta temática, sendo que entre estes predominam os estudos

com referencial teórico psicanalítico. Em relação a isso, a perspectiva teórica adotada

neste trabalho difere das principais abordagens psicológicas, o que, diante da escassez

de produção científica sobre a temática pesquisada, favorece a possibilidade de se

ampliar a compreensão da psicoterapia e, em especial, discutir a clínica

fenomenológico-existencial nessa área tão pouco estudada.

Levando tal aspecto em consideração, refletimos que, no atual cenário político e

social, surge a urgência do desenvolvimento de estudos que discutam o atendimento

psicológico de pessoas surdas. Com isso, estaremos respondendo à temática da inclusão

de pessoas surdas nos serviços que prestam atendimento psicológico, na tentativa de

acompanhar as mudanças e os avanços propostos para a educação, saúde e inclusão de

pessoas surdas nos espaços sociais, direitos já regulamentados pelo decreto nacional de

nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Dessa forma, mostra-se uma tentativa de

assegurar, como exige o referido documento, o atendimento à pessoa surda nos serviços

de saúde pública, sendo realizado por profissional capacitado em Libras, ou, no mínimo,

com a presença de um intérprete de Libras.

Nesse processo de inclusão, devemos pensar na psicologia e no seu

compromisso social, respondendo ética e politicamente às exigências do Código de

Ética do Psicólogo, que destaca em seu tópico V que “o psicólogo contribuirá para

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promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento

da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão” (Conselho

Federal de Psicologia, 2005, p. 7). Desse modo, acreditamos que nossas discussões

divulgarão os conhecimentos e ampliarão os serviços psicológicos, contemplando a

população surda e a sociedade em geral, pois, ao mesmo tempo em que produziremos

novos conhecimentos em psicologia, também ampliaremos as possibilidades do

atendimento psicológico.

Apresentadas essas questões, propomos com esse estudo discutir a atitude

fenomenológica e a escuta clínica na psicoterapia fenomenológico-existencial com

clientes surdos, refletindo sobre essa atuação e tendo como canal de comunicação a

Língua Brasileira de Sinais. Neste intuito, temos como objetivo geral da pesquisa:

Discutir a escuta clínica na atitude fenomenológica no atendimento psicoterápico de

uma pessoa surda. E como objetivos específicos: Tematizar o processo da escuta clínica

no atendimento psicoterápico de pessoas surdas; Investigar possibilidades e limitações

do atendimento de pessoas surdas no âmbito da psicoterapia fenomenológico-

existencial; Refletir sobre a comunicação em Libras no contexto da psicoterapia;

Descrever os procedimentos pertinentes à realização do atendimento psicoterápico de

clientes surdos na perspectiva fenomenológico-existencial.

Por atitude fenomenológica, entendemos a postura do psicólogo de assumir uma

compreensão antinatural dos fenômenos, como nos diz Feijoo (2010) “toda e qualquer

teoria acerca da existência humana deve ser suspensa, para ser possível se aproximar do

fenômeno, no caso, a questão trazida pelo paciente, atendo-se a todo o detalhamento de

como se dá o acolhimento em questão” (p. 161). Nesse sentido, com essa

disponibilidade de escutar o outro em sua singularidade, a escuta clínica mostra-se

intimamente ligada à postura fenomenológico-existencial, pois é ela que possibilita ao

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cliente se encontrar com sua história, escutar-se, meditar sobre os sentidos de sua

existência e de todas as implicações relacionadas a ela (Sá, 2008; Sapienza, 2004). É

com essa escuta que o psicoterapeuta desenvolve o seu fazer, uma escuta que abre

sentidos.

Com relação aos capítulos apresentados por esse estudo, em Ser surdo e libras:

uma escuta visível trazemos algumas questões do universo das pessoas surdas, como a

proibição do uso da comunicação em sinais, sua retomada e posterior oficialização das

línguas de sinais, no Brasil a Libras - como língua oficial das pessoas surdas desse país,

assim como também tematizamos a escuta clínica. No segundo capítulo, O diálogo da

psicologia com o ser surdo: possibilidades para uma aproximação fenomenológico-

existencial, mostramos a escassez de estudos sobre a temática, as particularidades do

atendimento às pessoas surdas, algumas considerações sobre o pensamento

heideggeriano, as noções de compreensão, disposição afetiva, linguagem, cuidado, a

clínica fenomenológico-existencial e outros temas discutidos na analítica existencial

heideggeriana, voltados ao fazer clínico. O nosso terceiro capítulo traz o método

utilizado para realizar o estudo. Nele, apresentamos a pesquisa como sendo qualitativa,

de natureza fenomenológico-existencial. Discutimos como foi desenvolvido o trabalho,

o qual contou com uma pessoa surda em atendimento psicoterápico, falamos sobre a

elaboração dos dados por meio da videogravação e dos registros feitos pelo psicólogo

no diário clínico. Trabalhamos com a estratégia Narrativa e os dados analisados, tendo

como referencial a hermenêutica heideggeriana. O capítulo seguinte contempla a análise

e discussão do material produzido com os atendimentos em psicoterapia

fenomenológico-existencial. Nele, trazemos recortes dos atendimentos e os principais

temas que versam sobre as questões da clínica com pessoas surdas no qual refletimos

sobre a experiência desse tipo de atendimento. Nosso último tópico, considerações

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finais, traz reflexões sobre os objetivos desse estudo e sugerimos novas possibilidades à

clínica fenomenológico-existencial no atendimento de pessoas surdas.

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1. SER SURDO E LIBRAS: UMA ESCUTA VISÍVEL

Este capítulo tem como objetivo tematizar algumas questões referentes à

população surda. Inicialmente, para falar sobre o ser surdo, trazemos algumas definições

necessárias, esclarecendo alguns pontos para dar continuidade no conhecimento da

história dessa população, assim como na apresentação da língua natural de quem é surdo

no Brasil, a Língua Brasileira de Sinais – Libras. São essas questões que nos convocam

a buscar compreender o ser surdo e as possibilidades existenciais desse singular modo

de ser-no-mundo.

Com relação ao ser surdo, Capovilla (2009) nos mostra que o surdo “está

privado, no todo ou em sua maior parte, do sentido da audição. Que não ouve”. Assim

como também é uma pessoa “que pertence à Comunidade Surda e à Cultura do Sinal”

(p. 2070). Ao falar sobre surdez, o mesmo autor a apresenta como um tipo de “perda

auditiva profunda.... em que mesmo com o uso de aparelhos auditivos de amplificação,

a pessoa não consegue compreender a fala que ocorre no nível usual de conversação”

(p. 2068), podendo essa ser classificada em fatores de desenvolvimento: adquirida ou

congênita, e nível de surdez: leve, moderada, profunda ou severa. Em consonância com

essas conceituações, percebe-se que ser surdo diz respeito não somente aos fatores

biológicos, mas traz a consideração de uma ampla gama de questões sociais, linguísticas

e toda uma trama complexa de sentidos que constituem o humano.

Aprofundando o estudo sobre o conhecimento da existência de pessoas surdas ao

longo da história da humanidade, Sacks (2010) nos informa que sempre existiram

pessoas surdas desde as mais antigas gerações e que o fenômeno da surdez acompanha o

humano em seu percurso histórico. Em cada época, os grupos sociais nomeavam as

pessoas surdas de modos diferentes, inicialmente, os considerando como “mudos” ou

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“surdos-mudos”, em períodos nos quais as outras pessoas, reconhecidas como ouvintes,

ditavam os principais conceitos relacionados à questão da surdez, ou seja, eram os

ouvintes que respondiam pelos surdos.

Com o passar do tempo e diante das modificações nas questões da surdez, novas

compreensões foram conquistadas pela comunidade surda na construção dos temas e

conceitos que tocam a sua história. Mesmo assim, atualmente, não é difícil encontrar

pessoas com dúvidas em relação às pessoas surdas, questionamentos se elas são pessoas

“mudas” ainda perduram, estigmas que aos poucos vão se desfazendo a partir das

contínuas discussões fomentadas pela comunidade surda. Como nos mostra Gesser

(2009), as pessoas surdas não apresentam comprometimentos orgânicos nos aparelhos

fonadores, o que desqualifica a classificação desses enquanto mudos. Essa questão nos

revela outras implicações, outras questões normativas, as quais utilizam como referência

um padrão de normalidade e funcionamento orgânico que faz comparações entre as

pessoas surdas e as pessoas ouvintes, essas últimas consideradas como normais (Bisol,

Simioni & Sperb 2008).

Para dar continuidade à nossa temática, torna-se pertinente apresentar

brevemente a história das línguas de sinais, conhecendo um pouco como elas foram se

estabelecendo ao longo da história e em diferentes contextos. Como nos mostram

Strobel e Fernandes (1998) e Sacks (2010), as línguas de sinais estão presentes nas mais

variadas regiões do nosso planeta, e os sinais sempre foram utilizados ao longo da

história, nos contextos comunicativos nos quais existiam pessoas surdas ou

impossibilitadas de desenvolver uma comunicação oral-auditiva. Com isso, a utilização

de uma comunicação em sinais, desde os mais remotos momentos históricos,

desenvolvida no desenrolar da humanidade e acompanhando os vários processos de

modificações das civilizações, contribuiu para que esses modos de comunicação

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mostrassem o seu valor e caminhassem para uma estrutura mais elaborada, permitindo

com isso que os sinais fossem se estruturando enquanto uma língua, não mais somente

como comunicação, mas respondendo às exigências linguísticas e ganhando maior

visibilidade.

Mesmo reconhecendo que pessoas surdas estão presentes ao longo de nossa

história, assim como a utilização dos sinais, durante alguns períodos surgiram

questionamentos com relação ao ser surdo e a utilização de sinais. Sobre essas questões,

Bisol (2008) e Skliar (2010) mostram que, desde o século XVIII, ocorreram mudanças

na educação das pessoas surdas. Nesse percurso, um dos momentos mais polêmicos e

influentes na educação das pessoas surdas foi o Congresso de Milão realizado em 1880,

evento no qual ficou decidido que a oralização seria o método adotado para educar as

pessoas surdas. Este momento corresponde ao período de valorização do modelo

científico moderno como construtor de um saber verdadeiro, sobre o humano, com

princípios e normas particulares que regiam a produção desse conhecimento, adotando

modelos de normalidade que foram alcançados com as pesquisas científicas da época.

Ressaltamos que foi nesse período que a psicologia se estruturou enquanto ciência,

inicialmente, na Alemanha, com a criação dos laboratórios e estudos sistemáticos

embasados no modelo cientificista, separando-se assim de sua origem mais filosófica.

Sendo assim, com a valorização da ciência moderna nesse período, temos a legitimação

e difusão dos valores cientificistas regendo o pensamento sobre o humano nos

principais âmbitos sociais.

Voltando a adoção do método oral, elegido nesse congresso, essa foi uma

decisão que ficou a cargo dos principais pesquisadores da época, em sua totalidade,

pessoas ouvintes que definiram o que pensavam ser melhor para a população surda.

Buscaram a adequação da população surda aos modelos normativos da época, ou seja, o

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ser ouvinte. Tomando por referência essa decisão, as línguas de sinais tornaram-se

proibidas no processo educativo em todo o mundo e a pessoa surda não podia ser

educada ou realizar a comunicação em sinais, para não atrapalhar o método científico

oralista. Temos, com isso, os desdobramentos no modo como a comunicação com as

pessoas surdas se desenvolveu nos espaços sociais – escolar, familiar, educacional, entre

outros, nos quais estas pessoas estavam inseridas e precisavam alcançar esse tipo de

normalidade.

Posteriormente, à determinação do Congresso de Milão foi somente no século

XX, mais especificamente na década de 60, que começaram a ocorrer várias

reivindicações de profissionais e pessoas envolvidas com a comunidade surda. A

comunidade surda, insatisfeita com a proibição do uso dos sinais e constatando o

fracasso do método oral na educação das pessoas surdas, lutou e conquistou a aprovação

do uso das línguas de sinais na educação de surdos. Foi nesse período que as línguas de

sinais começam a retomar seu valor tanto na educação quanto no convívio social.

Nesse contexto de legitimação da comunicação em sinais como uma língua,

surgiram campos divergentes no estudo da surdez e nos modos de promover o

desenvolvimento das pessoas surdas. Essas questões despertaram o interesse de alguns

campos de pesquisa, sendo que, atualmente, ainda temos duas vertentes que

predominam com suas atuações nos campos de atendimento e pesquisa. Uma dessas

vertentes trabalha com o enfoque clínico-terapêutico, adotando o oralismo, nas palavras

de Capovilla (2009), como “uma filosofia educacional para as pessoas surdas, que....,

propõe o ensino somente de técnicas oralistas, como leitura labial, vocalização e

aproveitamento dos resíduos auditivos, visando ao desenvolvimento da linguagem oral”

(p. 1633).

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Entendemos que esse enfoque, o da oralização, traz alguns benefícios, visto que

grande parte da população é considerada ouvinte - “que ou quem é capaz de ouvir por

oposição à pessoa com surdez” (Capovilla, 2009, p. 1646), fazendo uso dos canais

orais-auditivos. Essa perspectiva até pode facilitar a comunicação com grande parte da

população, mas, visto por outro prisma, esse modelo termina por colocar o surdo em um

lugar desigual, pois ele tem que sair de sua língua de origem, a Libras, que foi

legitimada como sendo a língua natural das pessoas surdas, para submeter-se à língua

que é adotada por outra população majoritariamente ouvinte. Seguindo nessa

compreensão, a respeito da oralização, Bisol, Simioni e Sperb (2008), desenvolvem

críticas ao afirmar que as ações dessa perspectiva voltam-se para a normalização das

pessoas surdas, seguindo os critérios de convivência das pessoas ouvintes e na busca de

uma adaptação à sociedade que usa os canais orais-auditivos para se comunicar. Esse

modelo passa a ser tomado como norma, o ser normal, e, como elas apontam, “a

diferença é geralmente percebida como negativa e caracterizada como desvio” (p. 393).

Diante do que esses autores expõem torna-se pertinente apresentar também o

outro modelo de atenção, o socioantropológico, que em sua estrutura compreende a

surdez como uma diferença cultural e linguística, não mais como deficiência. Conforme

Capovilla (2009), esta perspectiva adota o bilinguismo, que é uma “filosofia

educacional para surdos que propõe o ensino primeiramente da língua de sinais da

comunidade em que vive o surdo e, em seguida, da leitura e da escrita alfabética da

língua falada do país em que vive o surdo” (pp. 401-402). Essa perspectiva abre espaço

para compreendermos a pessoa surda na fenomenologia heideggeriana, por considerar

os diversos modos de ser, não mais adotando um critério de normalidade a ser

alcançado, assim como também traz a consideração das línguas de sinais.

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Com relação à constituição da língua de sinais no Brasil, somente no ano de

2002 é que a língua brasileira de sinais passa a ser oficializada com a Lei Nº 10.436, de

24 de Abril, tornando-se a língua natural das pessoas surdas. Por língua natural Skliar

(2010) vem esclarecer que “deve ser entendida como uma língua que foi criada e é

utilizada por uma comunidade específica de usuários, que se transmite de geração em

geração, e que muda tanto estrutural como funcionalmente com o passar do tempo” (p.

27). Por ser uma língua, a Libras apresenta em sua estrutura os requisitos necessários

para a sua validação normativa. Ela traz aspectos linguísticos próprios, entre esses,

temos os parâmetros gramaticais: Configuração de mão – CM; Movimento – M;

Locação – L, Orientação da mão – Or e Expressões-não-manuais – ENM, que

apresentaremos para possibilitar compreender a importância desses parâmetros na

estruturação da língua de sinais brasileira (Quadros, 2004).

Com relação a esses parâmetros, temos que a configuração da mão representa “a

forma que a mão assume durante a realização de um sinal” (Strobel & Fernandes, 1998,

p. 10). Adotamos como referência o total de 46 configurações de mãos (conforme

apresentado na figura 01) que representam possíveis formas para uma mão reproduzir

durante a composição de um sinal. Para a elaboração de um sinal, é imprescindível a

adoção de uma dessas 46 configurações, sempre escolhendo adequadamente qual delas

será utilizada e que essa seja condizente com o determinado sinal que será utilizado.

Essa configuração não pode ser modificada, pois ocasionaria um erro gramatical em

Libras, o que pode levar à mudança do sentido de um determinado sinal, caso essa

configuração não corresponda às convenções gramaticais dessa língua.

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Figura 01. “As 46 CMs da Libras” (Ferreira-Brito & Langevin, 1995).

Outro parâmetro é o Movimento, esse representa o deslocamento das mãos, os

movimentos que essa faz ao realizar o sinal, o que possibilita diferenciar um sinal de

outro apenas agregando um movimento à configuração de mão. Com relação à

direcionalidade do movimento, temos que um sinal pode necessitar de movimento

unidirecional, bidirecional ou multidirecional. Esse parâmetro também possibilita

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variados tipos de movimentos como o retilíneo, helicoidal, circular, semicircular,

sinuoso e o angular (Strobel & Fernandes, 1998). Cada sinal tem em sua formação a

característica de necessitar de um movimento, com direcionalidade e tipo específico ou

ser um sinal sem movimento. Na configuração de mão e nos outros três parâmetros

deve-se fazer uma execução precisa do que é esperado, assim como nos demais, não

fugindo às regras já estabelecidas para essa língua.

Figura 02. Movimento (Felipe, 2007, p. 146).

Já o parâmetro Locação ou lócus do movimento do sinal corresponde ao lugar no

espaço no qual o sinal é executado. A locação também diz respeito ao lugar do corpo do

realizador no qual a mão toca para compor uma palavra. Temos como locais

apropriados para sua execução: a cabeça, o tronco, os braços, as mãos e o espaço em

frente ao sujeito que comunica a libras. Informamos que na Libras não é permitido

executar um sinal de modo que ele não fique visível para o receptor. Contextualizando

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esse aspecto, podemos descrever uma situação de comunicação na qual o comunicador,

disposto de frente para o receptor do sinal, realiza a sinalização com suas mãos

posicionadas nas costas. Desse modo, o receptor fica impossibilitado de visualizar a

mensagem e, por não ver o ponto de locação, não compreenderá a comunicação. Na

figura a seguir, trazemos exemplos corretos de sinais que utilizam uma mesma

configuração de mão, mas que, contextualmente ao enunciado, fazem uso de espaços

diferenciados e com isso adquirem outros significados linguísticos.

Figura 03. Locação ou lócus do movimento (Felipe, 2007, p. 171).

Com relação ao parâmetro da Orientação da mão, exprime a marcação de como

a mão vai estar posicionada. Sua disposição pode ser direcionada para esquerda, direita,

cima, baixo, frente ou trás do comunicador. Ela tem como referência a palma da mão e a

possibilidade de sua direção ser modificada durante a exposição do sinal. Vemos nas

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figuras abaixo alguns exemplos de orientação da palma da mão no momento da

comunicação da palavra.

Figura 04. Orientação da mão (Felipe, 2007, p. 71).

O parâmetro da Expressão Não-Manual ou Expressões Faciais é uma

característica peculiar diferenciadora dos sinais, como nos mostra Gesser (2009) “as

mãos não são o único veículo usado nas línguas de sinais para produzir informações

linguísticas” (p. 17), também fazem parte da língua de sinais as expressões faciais,

movimentos da cabeça, boca, olhos, sobrancelhas etc. com os quais temos a expressão

de emoções e a demarcação das estruturas gramaticais dos sinais. Desse modo, um sinal

pode ter idênticas configurações de mão, movimento, locação e orientação de outro

sinal, mas com uma expressão não manual ele pode representar um conceito diferente,

inclusive, oposto ao outro sinal que lhe é similar. Os exemplos que seguem na figura 05

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são significativos no que concerne a demonstração da intensidade do que é comunicado

em sinais, mesmo quando se utiliza a mesma palavra.

Figura 05. Expressões Não-Manuais; expressões faciais (Felipe, 2007, p. 162).

Essas são algumas das características que tornam a Libras uma língua, com

especificidades linguísticas próprias e que necessita ser contextualizada ao espaço no

qual ela é desenvolvida. Outra característica é que os sinais não podem ser considerados

universais, com a mesma representação e significado nos mais diversos países, como

nos mostram Gesser (2009) e Sacks (2010), cada país desenvolve sua língua de sinais,

ou seja, na Inglaterra temos a língua de sinais britânica (BSL), nos Estados Unidos

temos a língua de sinais americana (ASL), na França temos a língua de sinais francesa

(LSF), no Brasil temos a Língua Brasileira de Sinais – Libras, assim como em outros

países existem língua de sinais que são singulares a cada nação. Gesser (2009) também

destaca que a dúvida sobre ser uma língua universal traz implícita a ideia de que a

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comunicação em sinais é simples e não muito elaborada, na crença de que os sinais não

podem apresentar conceitos mais sofisticados e complexos, facilitando a aquisição da

linguagem para que a pessoa surda possa aprender mais fácil e se comunicar com outros

surdos, não importando em qual lugar esteja. Essa noção não condiz com a

complexidade e riqueza presente em cada língua de sinais, já que essas são específicas

para cada país e região, assim como são as línguas orais.

A Libras é uma língua especificamente viso-espacial, portanto, precisamos

apresentar outra questão, existem noções básicas para poder desenvolver uma conversa

na qual o campo da visão é o meio receptor da informação. Veloso e Maia (2009)

discutem que, em uma língua de sinais, as pessoas precisam falar de frente uma para a

outra; deve-se estabelecer o contato visual, buscando não desviar o olhar; movimentar

calmamente os lábios quando pronunciar alguma palavra, para facilitar a leitura labial,

se for o caso; estar em um ambiente com boa iluminação, que permita a completa

visualização das pessoas que estão falando; ser expressivo na hora de sinalizar, pois é

com a percepção das emoções que é possível modificar o sentido das sentenças,

tornando-as afirmativas ou negativas, ou imprimindo um sentido singular ao que for

comunicado; pedir para repetir algo quando não conseguir compreender o sinal que foi

realizado ou a informação que foi apresentada para que a conversa ocorra com clareza;

quando precisar falar com alguma pessoa surda, deve-se tocar na pessoa sem ser

invasivo, ou fazer algum movimento com as mãos que possa chamar sua atenção. Essas

são algumas considerações importantes que ajudam na comunicação mediada por olhos

e mãos, são questões que trazem a relevância da execução precisa dessa língua, com

respeito às particularidade de seus parâmetros linguísticos, que a qualificam enquanto

língua.

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Com base nessas questões, que mostram as particularidades das pessoas surdas e

de sua língua, discutiremos a escuta partindo da cotidianidade, no como ela é percebida

e difundida nas produções informativas da língua brasileira, assim como ela é

compreendida no campo da psicologia. Para isso, considerando o âmbito da

cotidianidade, lugar em que as palavras portuguesas ganham significado e servem como

norma e explicação da vida, trazemos o dicionário como recurso facilitador da

compreensão e comunicação dos signos e significados de cada população. Nele, temos

como base a lexicologia, o estudo dos sentidos etimológicos e das possibilidades de

acepções das palavras. Esta arte, que dá suporte à elaboração dos dicionários, traz a

sistematização dos vocábulos de uma determinada língua, catalogando-os em uma obra

de referência (Ferreira, 2000). Por ter um valor fundamental na estruturação das

palavras, recorremos a este tipo de livro para discutirmos alguns temas necessários ao

nosso trabalho.

Para pensar a escuta e seus sentidos, trazemos a explicação existente no

dicionário Aurélio (Ferreira, 2000) o qual nos mostra o vocábulo “escutar” como

“tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a; ouvir” (p. 284), remetendo-se ao

processo de ouvir. Por também ser citado, o vocábulo “ouvir” é apresentado por esta

obra como “perceber, entender (os sons) pelo sentido da audição” (p. 505); desse modo,

se estabelece uma estreita relação entre o escutar e o ouvir, apontando para a

necessidade da comunicação se desenvolver pelos canais orais-auditivos, o que por sua

vez remete ao emitir sons com a boca e escutar esta verbalização com os ouvidos, ou

seja, fazendo uso da audição. Outro dicionário, o Deit-Libras (Capovilla, 2009) –

Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue da Língua Brasileira de Sinais – corrobora

estes preceitos, ao mostrar que escutar é “prestar atenção para ouvir” (p. 946) e assim

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como no momento anterior, passamos à palavra “ouvir” que se encontra como “perceber

e discriminar pelo sentido da audição” (p. 1646).

Recorremos a esses dicionários no intuito de mostrar como os sentidos da escuta

se constroem na cotidianidade, tornam-se familiares e fazem parte do discurso sobre o

que vem a ser este processo. Dessa forma, não é de se estranhar ter como resposta que

escutar é fazer uso da audição, para poder ouvir o que é falado pelos órgãos fonadores.

Mas será que todas as pessoas escutam assim? Quando nos deparamos com pessoas que

não falam pela voz e não escutam por meio dos canais auditivos, pessoas que escutam e

falam com o olhar e com as mãos, este modo de pensar a escuta não ficaria

comprometido?

Se retomarmos o termo “escuta” e buscarmos explicá-lo, como mostrado

anteriormente, entre as diferentes possibilidades que podem surgir, teremos a de que o

seu significado está em fazer uso dos órgãos auditivos, tendo somente o campo oral-

auditivo como propiciador desse fenômeno. Mas, ao realizarmos uma compreensão

fenomenológica da escuta buscamos ampliar o seu sentido e, para isso, precisamos

colocar entre parêntese o seu significado social, ampliando-o para poder tecer

apontamentos para além do que os agentes normativos compreendem ser o escutar.

Aprofundando a discussão de tais questões, recorremos à outra obra para

apresentarmos com mais propriedade outras possibilidades de compreensão. Para isso,

elegemos um livro que é específico ao nosso campo de atuação, sendo este também um

dicionário, só que elaborado pela Associação Americana de Psicologia – APA. Neste, o

vocábulo listening – “escuta” – surge com a seguinte definição “uma atividade essencial

na terapia e aconselhamento que envolve estar atento às palavras e ações do cliente,

bem como às intenções presentes nas palavras” (VandenBos, 2007, p. 539). Como no

dicionário em português fomos levados ao termo “ouvir”, trazemos também a palavra

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hearing, tal como apresentada pela APA, que nos diz ser “a capacidade de um

organismo detectar um som, processar e interpretar essas sensações, adquirindo

informações sobre sua origem e natureza. Nos seres humanos, refere-se à percepção do

som, também chamada de audição” (VandenBos, 2007, p. 432). A escuta é

compreendida de outro modo como escuta das palavras, dos sentidos, do que é expresso

também pelo silêncio, na expressão facial, nos movimentos corporais e, sendo assim,

não se restringindo somente à escuta da fala dos sons. Nesta obra, fica clara a distinção

que a psicologia faz entre escutar e ouvir, reflexão que não se encontra presente nos

outros dicionários estudados. Sendo assim, entendemos que a psicologia e suas práticas

têm na base do seu fazer clínico o processo da escuta (Amatuzzi, 1989; Bucher, 1989;

Feijoo, 2000; Lima, Yehia & Morato, 2009; Pereira & Caldas, 2009). Nesse campo do

saber, com suas diversas perspectivas teóricas e áreas de atuação, a escuta é realizada de

diferentes modos, sempre em consonância com o referencial teórico adotado e com o

contexto no qual ela ocorre.

Pensando nos processos de comunicação no contexto da surdez, Strobel (2008)

vem nos mostrar alguns aspectos da Libras que se diferenciam dos modos ouvintistas de

comunicação. Entre estes, temos que essa língua “é expressa através da modalidade

espacial-visual” (p. 46), ou seja, a comunicação ocorre fazendo uso da visão e do espaço

de referência que o sujeito adota para apresentar os sinais. Sendo assim, a comunicação

não mais deve ser somente compreendida como realizada pelos canais orais-auditivos,

fazendo uso dos sons acústicos, mas, diferentemente, pela modalidade viso-espacial,

como advoga Skliar (2010) “a surdez é uma experiência visual” (p. 28). Escuta e fala

ganham novas dimensões que precisam de diferentes formas de compreensão.

Nessa concepção da escuta, com esse novo olhar, que convoca o psicólogo a ser-

com-o-outro de um modo diferenciado, podemos pensar na ampliação da psicologia

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clínica e da escuta psicológica. Para isso, recorremos à Dutra (2004) ao dizer que o

diferencial da escuta clínica é a capacidade de estar aberto à alteridade e aos novos

modos de compreensão do humano, sempre acolhendo a pessoa diante de sua realidade

social e demanda singular. O psicólogo encontra-se incumbido dessa tarefa, de

compreender o humano em todas as suas dimensões e com isso passa a exercer o seu

posicionamento ético e político. Nesse sentido, podemos pensar a psicoterapia como um

processo inclusivo, avançando no campo da inclusão e aproximando mais ainda a

psicologia da comunidade surda.

Ao falarmos nesse modo particular de compreensão e de ser psicoterapeuta,

agora como profissional pertencente ao processo inclusivo, adotamos como conceito de

inclusão o que Sassaki (1997) propõe como sendo práticas e condutas que visam a

reconhecer e respeitar as diferenças existentes entre as pessoas e, dessa forma, busca-se

aproximá-las de seus diversos modos de ser. Ele nos mostra que estando com o outro,

disponível, potencializa-se a inclusão que “contribui para a construção de um novo tipo

de sociedade através de transformações, pequenas e grandes, nos ambientes físicos.... e

na mentalidade de todas as pessoas, portanto, do próprio portador de necessidades

especiais” (p.42).

Para este processo de inclusão devemos pensar na psicologia e seu compromisso

social, já que os dados oficiais do Censo Demográfico de 2010 apontam que, em nosso

país, existe uma população com mais de 190 milhões de habitantes (IBGE, 2010), sendo

que no estado do Rio Grande do Norte - RN estão presentes mais de três milhões de

pessoas. Os dados referentes à população surda não constam nas informações oficiais do

Censo de 2010. O Censo generaliza e informa sobre as pessoas consideradas com

deficiência auditiva. Nesse universo temos 9.717.318 brasileiros com algum tipo de

deficiência auditiva, especificados como: não conseguem ouvir de modo algum:

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344.206; com grande dificuldade: 1.798.967 e com alguma dificuldade: 7.574.145

habitantes brasileiros. No estado do RN temos 191.862 brasileiros que se consideram

com algum tipo de deficiência auditiva, dentre esses, 4.879 não conseguem ouvir de

modo algum; 36.929 com grande dificuldade e 150.054 habitantes com alguma

dificuldade. Essas informações não são específicas e não esclarecem bem a questão da

surdez, mas já mostram o elevado índice populacional que não escuta auditivamente e

que pode apresentar a comunicação em sinais. O Censo de 2000 apresentava uma

população surda de 5.750.805 habitantes, informação resgatada com a Federação

Nacional de Educação e Integração dos Surdos - Feneis. No tocante a atuação clínica

com pessoas surdas, podemos pensar sobre quantas dentre essas pessoas podem vir a

necessitar de acompanhamento psicológico, uma questão que aponta a urgência da

reformulação das práticas clínicas atuais.

É diante deste panorama que trazemos a temática da “sociedade inclusiva”,

refletindo inclusão e sociedade, como propôs Machado (2008). Segundo este autor, a

sociedade deve se constituir considerando as diferenças apresentadas pelas diversas

pessoas que compõem o social. Acerca dessas diferenças, de contextos e pessoas, ele

propõe para elas “formas de trabalho diferenciadas” que, no caso da psicoterapia,

podemos pensar em como realizada por meio da Libras, respondendo às necessidades de

pessoas surdas que sofrem e não são escutadas.

Levando-se em consideração o percurso até aqui apresentado, percebe-se que

não foram mencionadas informações sobre o atendimento psicológico para pessoas

surdas. É desse lugar que destacamos o discurso de Figueiredo (1993) acerca do

psicólogo, por compreender ser este um profissional do encontro - encontro com as

alteridades. É com o intuito de facilitar este encontro, compreendendo melhor a relação

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da psicologia com a surdez, que apresentaremos algumas considerações sobre a atuação

e inserção psi nesse campo.

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2. O DIÁLOGO DA PSICOLOGIA COM O SER SURDO:

POSSIBILIDADES PARA UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICO-

EXISTENCIAL

As pesquisas brasileiras desenvolvidas sobre as pessoas surdas ainda são

incipientes se considerarmos a relevância de tal temática. O desenvolvimento de novos

estudos corresponde aos principais acontecimentos sociais, que deram maior

visibilidade as questões das pessoas surdas brasileiras, como a luta dessa população por

mais qualidade de vida e as recentes leis desenvolvidas em nosso país voltadas à

população surda. Com relação à psicologia e sua aproximação com essa temática, os

estudos realizados acerca da atuação do Psicólogo junto às pessoas surdas, em sua

maioria, abordam a questão da inclusão escolar. Esta é uma questão que também se

sobressai em pesquisas realizadas por outras áreas do conhecimento. Na tentativa de nos

aproximarmos mais do campo da psicologia, na sua prática psicoterápica, deparamo-nos

com a escassez de publicações que abordam o atendimento da pessoa surda, uma

situação que necessita ser repensada pela psicologia.

Entre as poucas e relevantes pesquisas, predominam relatos de psicólogos

narrando sua experiência de atendimento, os quais, em sua maioria, adotam como

referencial teórico a Psicanálise (Geovanini, 1999; Marzolla, 2012; Marzolla &

Balieiro, 2012; Solé, 2005). Essas pesquisas nos mostram questões acerca do

atendimento psicológico e tecem algumas considerações que se mostraram consensuais,

como as reflexões em torno do despreparo do profissional de psicologia para atender

pessoas surdas, como também a vivência da angústia ao se deparar com esse tipo de

atendimento, em especial, quando o cliente comunica-se em Libras. Pensando em como

atuar nesse contexto, Cattalini e Fornazari (2007) trazem algumas estratégias

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desenvolvidas para criar algum tipo de comunicação, nas quais utilizam colagens,

desenhos e outros recursos, mas que, segundo essas autoras, não se mostram suficientes

para dar conta do estabelecimento efetivo de um vínculo, no qual a compreensão das

vivências do cliente é fundamental para iniciar o processo psicoterápico.

As questões que surgem diante da solicitação de atender uma pessoa surda, em

compreender o seu sofrimento sinalizado, podem acarretar falhas na comunicação entre

psicólogo e cliente surdo, quando alguns aspectos não são considerados. Geovanini

(1999) discute a questão da falha na comunicação, mostrando-nos que, na própria

família, a pessoa surda pode não ser compreendida, não ser escutada. Ela relata um caso

no qual a família demonstra ter dificuldade em aceitar a surdez de um membro, em

acolher esta singularidade. Traz a queixa de uma mãe, falando que seu filho apresenta

comportamentos não condizentes com sua idade, comportamentos “imaturos”, ao

mesmo tempo em que essa mãe relata antecipar a resolução de questões cotidianas antes

que seu filho as resolva, por julgá-lo despreparado para estar no mundo. Se fizermos

uma leitura heideggeriana desse modo de cuidado podemos pensá-lo como sendo uma

preocupação substitutiva, em “retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o lugar nas

ocupações” (Heidegger, 1927/2012, p. 178), assumindo o seu lugar no exercício de

viver, impossibilitando esse filho de começar a assumir sua vida.

Sobre esse ponto, trazemos à reflexão o modo heideggeriano de conceber o

“cuidado” (Sorge), mas para falar em cuidado é preciso antes falar no modo de existir

do humano tal como pensado por este filósofo. Heidegger (1927/2012) desvela o ser

como um ser-com-os-outros e esses outros não podem existir em separado de quem se é,

ou seja, “não significa todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os

outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se

diferencia propriamente, entre os quais também se está” (p. 174). É neste modo

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cooriginário de ser que o cuidado emerge como condição do existente, condição de ser-

com. Para Heidegger, existem outras condições existenciais do ser, entre essas temos

que o existente é também ser-no-mundo, como aponta Casanova (2009):

O ser-aí é um ente jogado em um mundo fático que constrói a sua dinâmica

existencial a partir de uma familiaridade com esse mundo. Ele é um ser-no-

mundo não porque se encontra dentro de um espaço dado específico chamado

mundo e porque precisa necessariamente se adequar a esse espaço circundante.

Ao contrário, ele é essencialmente um ser-no-mundo, porque encontra no mundo

a sua própria morada. (p.101)

Como ser-no-mundo, o ser é “cuidado” (Sorge) e, sendo assim cuida de sua

existência e do que vem ao seu encontro nos modos da “ocupação” (Besorgen) ou

“preocupação” (Fürsorge), que são modos diferentes de estar e de ser-no-mundo. A

respeito dessa condição, Sá (2010) vem nos mostrar que o cuidado é uma característica

ontológica do ser, é seu modo originário de estar no mundo, no ser-com os demais

entes, inclusive com os entes que também possuem essa condição de considerar o outro

por constituir-se também como um ser. Coadunando com este pensamento, Critelli

(1996) aponta que a existência humana ocorre no cuidar de si e do mundo e que o ser

escolhe o como vai cuidar e do que vai cuidar, assim como cuidará do seu modo de

cuidar. Diante dessas questões, como se configuram esses modos do cuidado e quais são

suas particularidades?

No cuidado enquanto “ocupação” o ser faz uso dos outros entes em sua

manualidade, os explora, nesta condição que só ocorre entre um ente que possui o modo

de ser e estar-no-mundo ocupando os entes dados, não dotados da mesma condição de

ser daquele que ocupa. Já na preocupação, “constituição de ser da presença que,

segundo suas diferentes possibilidades, está imbricada tanto com o seu ser para o

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mundo da ocupação quanto com o ser para consigo mesmo” (Heidegger, 1927/2012, p.

179), esse é o único modo de ser-com os outros entes dotados dessa condição de ser.

Existem variações nesse modo de cuidar, sendo o modo não deficitário, o da

preocupação antepositiva libertadora, o cuidado que permite que o outro seja

responsável por si e livre no estar lançado em possibilidades. O oposto a este modo é o

cuidado como preocupação substitutiva, que ocorre quando o ser “pode ocultar o

sentido próprio do outro, substituindo-o na sua liberdade e responsabilidade ao impor-

lhe um sentido impessoal, ainda que de modo dissimulado e parecendo fazer justamente

o contrário” (Sá, 2010, pp. 194-195). Como desdobramento dessa condição de cuidar,

Heidegger (1927/2012) nos adverte que “o outro pode tornar-se dependente e dominado

mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado” (p.

178).

Relacionando esses modos de cuidado e como se dá o olhar que o psicólogo

lança à pessoa surda, trazemos as considerações de Mrech (2001), ao enfatizar que,

quando se aborda somente a surdez – o não ouvir, isso se torna um complicador, pois

faltará uma maior compreensão dessa pessoa. E, ao se ter uma compreensão mais

ampla, a particularidade da surdez passa a ser vista como sendo mais um modo de ser

constituinte da pessoa surda, não o único ou o principal. Na perspectiva

fenomenológica, podemos compreender a surdez como um dos aspectos do humano,

dentre as diversas possibilidades dos modos de ser.

Nesse sentido, o profissional deve ofertar a escuta e a partir dela realizar seu

trabalho, escutar a palavra, não somente a voz, pois é na palavra – linguagem, que a

pessoa se comunica. Mas, quando não se conhece a Libras “a escuta vai se dando diante

de certa impossibilidade” (Geovanini, 1999, p. 259). Desse modo, a comunicação torna-

se incompleta, pois ocorre entre línguas nacionalmente iguais, o português e a Libras,

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mas que possuem diferentes estruturas gramaticais e aspectos linguísticos próprios.

Podemos pensar que a pessoa surda busca falar sobre sua vivência ao seu modo e para

algumas abordagens psicoterápicas isso pode ser uma questão conflituosa,

principalmente para quem não está capacitado para se comunicar em Libras. Com isso,

a referida autora aponta para a necessidade de o profissional buscar se capacitar em

Libras, para melhor se comunicar e estabelecer um diálogo compreensivo entre ambos,

cliente e psicólogo, possibilitando o desenvolvimento do vínculo terapêutico.

Diante dessas questões, buscamos ampliar a compreensão da pessoa surda e sua

particular condição de existente refletindo a partir do referencial teórico

fenomenológico-existencial heideggeriano. Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger

(1927/2012) diz que o Dasein, ou pre-sença, por ser-no-mundo, encontra-se sempre em

abertura de sentidos1, tendo no existencial disposição um modo de ser, um humor, que

dá uma tonalidade afetiva particular ao existente. É por meio dessa disposição que o

Dasein compreende e comunica seus sentidos – mundo, ressaltando que em seu

processo de estar-no-mundo “a pre-sença já se colocou sempre diante de si mesma e já

sempre se encontrou, não como percepção, mas como um dispor-se numa afinação de

humor.” (p. 194).

Para este filósofo, o Dasein é constituído por vários existenciais fundamentais,

entre os quais: disposição, compreensão e linguagem. Sobre o existencial disposição

(Befindlichkeit), ele nos diz: “o que indicamos ontologicamente com o termo disposição

é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estar afinado

num humor” (1927/2012, p. 193). Ele defende que o ser se encontra sempre em

disposição e compreensão (Verstehen), já que “toda disposição sempre possui a sua

1 Heidegger (1927/2012) nomeia sentido como “aquilo que pode articular-se na abertura

compreensiva... um existencial da presença” (pp. 212-213).

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compreensão, mesmo quando a reprime. O compreender está sempre afinado pelo

humor” (p. 202). Esse modo de conhecimento possibilita que o mundo seja interpretado

e aquilo que foi compreendido passa a ter um sentido, mas, segundo Heidegger, não

basta simplesmente ter acesso ao que se compreendeu, mas sim “elaborar as

possibilidades projetadas no compreender” (p. 209), apropriando-se do conhecido,

permitindo-se afetar pelas vivências e compor sua interpretação.

Esta interpretação, quando elaborada, passa a ser comunicada, sendo por

intermédio da linguagem que o Dasein torna-se presente no mundo. Com relação ao

terceiro existencial, a linguagem (Sprache), considera-se que também faz parte do

processo de existir do Dasein, ela necessita dos outros dois existenciais, assim como é

necessária a eles para possibilitar ao ser atribuir sentidos a si e ao mundo. Quando

pensamos na linguagem, em seu sentido ontológico, remetemo-nos aos aspectos ônticos

como: palavra, discurso, fala, comunicação, entre outros modos de tematizar a

linguagem. Esses termos dizem muito sobre o ser, ao mesmo tempo em que ameaçam

aprisionar a linguagem em um conceito cotidiano, apenas gramatical, o que limitaria

esse existencial, mas é oportuno considerar que a sua compreensão ultrapassa as

possíveis definições ônticas que pode ter. A linguagem apresenta mundo traz a fala, que

é a “articulação “significativa” da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence

o ser-com e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência

ocupacional” (Heidegger, 1927/2012, p. 224).

Pensar o fenômeno da fala, inserida na compreensão ontológica do existencial

linguagem, nos remete a sua complexidade e ao jogo de sentidos do qual ela faz parte.

Sobre essa possibilidade do ser, Heidegger (1959/2011a) ressalta:

O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente.

Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando

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ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao

invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou

de outro. Falamos porque falar nos é natural. (p. 7)

Para esse pensador, a fala faz parte da existência, ela sempre nos diz sobre algo,

aponta para algo do que se fala. Sendo assim, ela é um processo de comunicação que se

desenvolve no ser-com. Como bem mostra Heidegger (1927/2012), a comunicação da

fala traz em sua constituição, o seu referencial, o tematizado em fala, a comunicação e o

que é apresentado. Podemos compreender que essa fala da linguagem não tem relação

com o fenômeno auditivo, mas sim diz respeito ao campo existencial, independente de

como se fala, oralizando, escrevendo, por intermédio de sinais, com o corpo ou até

mesmo nos momentos de silêncio. Existimos na fala.

Outro aspecto pertencente à fala é o processo de escuta. Para Heidegger “a

escuta é constitutiva da fala. E, assim como a articulação verbal está fundada na fala,

assim também a percepção acústica funda-se na escuta. Escutar é o estar aberto

existencial da presença enquanto ser-com os outros” (1927/2012, p. 226). Assim, como

a escuta, o ouvir faz parte da linguagem e da fala da linguagem. De acordo com esse

filósofo, o ouvir é mais originário que a escuta, ele é uma escuta compreensiva, um

aprofundamento na escuta verbal, é ouvir o sentido do ser, estar sensível às sutilezas do

que é proferido na fala. Nas palavras de Heidegger (1927/2012), “somente onde se dá a

possibilidade existencial de fala e escuta é que se pode ouvir. Quem “não pode escutar”

e “deve sentir” talvez possa muito bem e, justamente por isso, ouvir” (p. 227).

É com esse existencial que o discurso surge como elemento fundamental,

ontológico, de expressão do vivido. Desse modo, “linguagem é o pronunciamento do

discurso” (Heidegger 1927/2005, p. 219), sendo esta produção tecida na trama dos

elementos disposição, compreensão e linguagem. A esse respeito, ele diz que “a

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compreensibilidade do ser-no-mundo, trabalhada por uma disposição, se pronuncia

como discurso” (p. 219). Mas, em relação à estrutura fundamental linguagem, esta não

deve ser apenas compreendida como a comunicação de algo racional, ela vai além da

transmissão de informações. Em seu sentido ontológico, linguagem é “o modo no qual

se manifesta o próprio existir humano” (Duarte, 2005, p. 2) já que é o homem que

pertence à linguagem e não o contrário.

Esse processo permite ao ser se encontrar em seu discurso, meditar sobre sua

vida e ter a possibilidade de se deparar com suas questões existenciais e movimentar-se

para outras possibilidades de ser. É a abertura para o seu ser mais próprio, retirando o

Dasein do aspecto impessoal de sua cotidianidade. Como nos diz Heidegger

(1959/2011a):

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de

qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do

dizer, próprio ao dito, é por sua vez inaugural. (p. 12)

Dessa forma, a linguagem nos mostra o complexo processo que é o ouvir, que

muito se aproxima do realizado pelo fazer clínico do psicoterapeuta fenomenológico-

existencial, pois é no ser-com que pode ocorrer o compreender e o ouvir os sentidos,

não somente o ouvir dos ruídos e emissões sonoras dotadas de conceitualidade, mas

caminhar no desvelar da linguagem do poder ser.

Esses são alguns aspectos do Dasein, do seu modo de existir, mas seguindo na

tematização do ser e nos aproximando de reflexões para o campo da clínica psicológica,

temos que o ser encontra-se em liberdade, respondendo com verdades aos clamores do

mundo fático. Em sua abertura, ele se mostra em liberdade, é livre e entregue a outras

possibilidades de poder ser, que por esse motivo o convidam a se apropriar dessa sua

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liberdade e, com isso, realizar escolhas, levando-se em consideração que ele não poderá

concretizar todas as possibilidades que se apresentam para o seu existir, segundo Sá

(2010) “O que o Dasein está sendo nunca é sua totalidade, mas a realização de certas

possibilidades sempre em jogo, em sua temporalização existencial finita” (p. 185).

Nesse sentido, estar em liberdade é estar lançado em um mundo que exige a

tomada de decisões, indo além da simples ação de escolher alguma coisa para sua vida,

pois é preciso que o Dasein se comprometa com o que escolhe. Compromisso de se

responsabilizar em assumir sua existência, levando adiante suas decisões e respondendo

as implicações advindas do existir em liberdade. É um processo de tomar para si algo

que vai lhe acompanhar em seu ser-no-mundo, com aspectos positivos e negativos,

sendo que o Dasein nunca poderá se fechar em apenas um único modo de ser, já que sua

essência é a sua indeterminação enquanto existente. Mesmo após se apropriar de alguma

escolha, ele também é convocado, em alguns momentos, pelo clamor das outras

possibilidades que foram deixadas de lado e que lhe deixam em débito existencial.

Como nos diz Pompeia e Sapienza (2011) “sua abertura diz respeito ao que ainda não é

mas pode ser, ao que já foi e não é mais e ao que seria possível apenas virtualmente (p.

24)”.

Pensar no ser em liberdade, que se lança no existir, nos remete aos clamores

mundanos e a escuta das verdades desse ser, compreendidos como condição

fundamental para a realização de sua existência. Heidegger (1927/2012) afirma que

“enquanto constituída pela abertura, a presença é e está essencialmente na verdade” (p.

298). Para ele, é a liberdade que possibilita ao Dasein desvelar suas verdades. Pensar

sobre isso nos leva a reflexão da atuação clínica psicológica, que se depara com as

noções de verdade e pode utilizá-las como referências ao seu fazer. Temos com esse

termo o convite para buscar desenvolver outra compreensão, ontológica, para escapar

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do aprisionamento cotidiano, no que já é familiar ao campo da psicologia. Esse é um

constructo complexo e que, pensado filosoficamente, nos mostra novos sentidos para o

atendimento clínico e para a compreensão do humano nesse jogo de ser livre e

responsável por sua liberdade.

Como ser-aí, o humano está em decadência, ou seja, vive na impessoalidade,

junto aos outros entes imersos na cotidianidade na condição de ser-com, indo de

encontro aos entes que apresentam sentidos e verdades cristalizados pelo saber

metafísico ocidental. Segundo Heidegger (2012) “numa primeira aproximação e na

maior parte das vezes, a presença se perdeu em seu “mundo”.... Empenhar-se no

impessoal significa o predomínio da interpretação pública. O que se descobre e se abre

instala-se nos modos de distorção e fechamento (292)”. Nesse sentido, ao pensar o

conceito de verdade enquanto um conhecimento dado, produto de um saber naturalizado

e estabelecido socialmente, tem-se a busca da congruência entre o que existe

objetivamente e a representação que o humano faz desse ente, mas não é esse o caminho

feito por Heidegger em sua analítica existencial. Ao desenvolver uma leitura

compreensiva, na discussão ontologicamente da noção de verdade para o Dasein, esse

conceito carece de um novo sentido, ou seja, pensar a verdade em seu aspecto mais

ontológico, enquanto desvelamento dos sentidos do ser (Sá, 2009).

Para pensar a verdade em seu modo original é preciso retornar ao seu sentido

construído na Grécia antiga, na verdade enquanto alétheia (ἀλήθεια), ou seja, como

desvelamento e não somente como representação e confirmação das coisas do mundo.

Mas a verdade enquanto desvelamento não desqualifica a verdade metafísica da

adequação das coisas, ela é anterior a essa e está em sua base. Sobre esse aspecto Sá

(2009) afirma “ser verdadeiro é, primeiramente, ser desvelador e este é um caráter

existencial do ser-no-mundo, somente por isso a verdade e a não verdade pertencem

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igualmente à facticidade da existência” (p. 67). Aquele que desvela sentidos, o ser

desvelador, busca verdade por ser um ser de abertura e que exerce seu ser-no-mundo em

disposição, compreensão e linguagem. Nas palavras de Heidegger (1927/2012) “a

“definição” de verdade como descoberta e ser-descobridor tampouco é mera explicação

de palavras. Ela nasce da análise das atitudes da presença, que costumamos chamar de

“verdadeiras”” (p. 291). O Dasein, para chegar a sua verdade, deparasse com os apelos

de si, do mundo e dos outros. Em meio a essa trama de convocações, que podem ofuscar

ou iluminar o ser, é preciso que ele corresponda a esses chamados e siga com sua

decisão, pois somente ele poderá cuidar de seu modo de ser (Pompeia & Sapienza,

2011).

Percebe-se que essas reflexões, levantadas pelo pensamento filosófico de

Heidegger, em muito contribuem para pensar o fazer clínico do psicólogo, assim como

de outros profissionais que lidam com o humano e seu sofrimento. Discutir o Dasein,

sua constituição e seus modos de ser, inicialmente, despertou o interesse de

profissionais da medicina, inquietos com as práticas clínicas que aprisionavam o

homem em determinismo e diagnósticos, o que permitiu o surgimento de uma nova

atuação clínica, que trouxe para o campo da medicina o pensamento heideggeriano e,

posteriormente, levantou novas possibilidades para o atendimento clínico em psicologia.

É sobre a Daseinsanálise e a psicoterapia fenomenológico-existencial que seguiremos

tematizando nesse estudo, pensando em sua atuação junto à pessoa surda.

2.1 A clínica fenomenológico-existencial

Após tematizar sobre os existenciais do Dasein, trazemos para discussão a

prática clínica fenomenológico-existencial, que tem por base o pensamento filosófico de

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Martin Heidegger. Discutiremos seu surgimento, momento no qual se desenvolveu a

Daseinsanálise, e quais as principais noções que hoje fazem parte do fazer clínico do

psicoterapeuta fenomenológico-existencial. Nossa discussão será voltada à clínica de

base heideggeriana, sendo assim, não faz parte do nosso estudo discutir o surgimento da

clínica, esse importante tema, mas que já foi bastante abordado em outros estudos da

psicologia.

A Daseinsanálise, enquanto clínica, teve seu início com Ludwig Binswanger,

médico suíço que, em seu percurso profissional, manteve contato com os filósofos

Husserl e Heidegger. Inspirado nas discussões formuladas por Martin Heidegger em sua

obra Ser e Tempo, Binswanger partiu das noções existenciais de projeto e cuidado e

com isso buscou levar para o campo do atendimento psiquiátrico a fenomenologia

existencial heideggeriana. Nesse intento também considerou alguns aspectos da

fenomenologia de Husserl, com quem teve contato anteriormente (Feijoo, 2011).

Insatisfeito com o modelo de ciência que predominava em sua época, bem como

com os desdobramentos desse modelo naturalista no campo da psiquiatria, Binswanger

buscou modificar o atendimento psiquiátrico, levando o pensamento heideggeriano para

sua atuação clínica (Boss & Condrau, 1997). Seu trabalho foi uma tentativa de levar a

ontologia filosófica para o campo ôntico. Essa foi uma difícil e ousada tarefa, já que o

pensamento heideggeriano e a analítica do Dasein foram pensados principalmente no

campo ontológico. Essa aproximação acabou repercutindo na incompreensão do

conceito de “Cuidado”, tornando-se diferente do formulado por Heidegger, que o

apresentava no campo ontológico como um modo de ser-no-mundo do Dasein. A noção

de cuidado, como apresentada em Ser e Tempo, traz que:

o ser-aí é constitutivamente cuidado, porque ele é os seus modos de ser, e, assim,

sendo, sempre cuida de si. Esse modo de ser envolve, por sua vez, uma ocupação

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com os entes intramundanos (Bersorgen) e o desentranhamento de um contexto

relacional.... Ser-aí é um ente sempre referido a outro ente, seja sob o modo da

ocupação, seja sob o modo da preocupação. (Feijoo, 2011, p. 38)

Buscando entender o seu atendimento psiquiátrico à luz da filosofia

heideggeriana, Binswanger acrescentou ao conceito de “cuidado” a noção de “amor”,

considerando esta como necessária ao Dasein para poder exercer o ser-com. Ele

introduziu o afeto ôntico “amor” e passou a compreender o cuidado como também uma

condição ôntica. Essa questão fez com que Heidegger se posicionasse contra essa nova

compreensão que, segundo ele, foi errônea, do existencial cuidado. Para Heidegger, o

cuidado inclui também a noção de amor, como nos mostra Boss e Condrau (2007)

“Heidegger não somente não exclui as diversas formas de relações afetivas, como as

inclui de imediato” (p. 25), o que faz com que não determine apenas uma como devendo

ser a base fundante do existencial cuidado, mas sim como uma das diversas

possibilidades de ser enquanto cuidado. Em sua obra Seminários de Zollikon, Heidegger

(1987/2001) reforça sua posição em relação à Binswanger e argumenta que:

o mal entendido de Binswanger não consiste tanto em que ele quer

complementar o “cuidado” pelo amor, mas sim, no fato de que ele não vê que o

cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, que a analítica do dasein

pergunta pela sua constituição fundamental ontológica (existencial) e não quer

simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein. (p. 142)

Ante o conflito gerado, Binswanger reconhece seu equívoco e passa a reformular seu

pensamento, o qual seguiu mais proximamente os preceitos da fenomenologia de

Husserl, desenvolvendo-se por outro caminho teórico, posicionando-se enquanto criador

de uma prática clínica, com isso, modificou a nomenclatura de sua atuação. Sua

abordagem passou então a ser nomeada de Fenomenologia Antropológica e a

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daseinsanálise, tendo por base o pensamento heideggeriano, passou a ser discutida por

outro psiquiatra que melhor trabalhou o que Binswanger havia começado e abandonado

(Feijoo, 2011).

No contexto dessa modificação da clínica de inspiração heideggeriana, outro

profissional da medicina foi quem continuou a desenvolver o projeto da daseinsanálise.

Medard Boss, médico psiquiatra, trabalhou inicialmente como psicanalista e teve a

oportunidade de ter contato com Freud e Jung, para, posteriormente, ser tomado pelo

pensamento do filósofo alemão. Assim como Binswanger, incomodado com o fazer

psiquiátrico de seu tempo, passou a questionar as bases teóricas e científicas da

psiquiatria, não vendo mais sentido no modo como se realizava o fazer clínico

psiquiátrico daquela época. Os pacientes e sua experiência apontavam para a

necessidade de aprimorar o seu trabalho, de avançar para uma nova compreensão do

humano, da existência enquanto sofrimento e possibilidades. Suas inquietações o

levaram ao encontro com a obra Ser e Tempo de Heidegger, a qual, inicialmente,

mostrou-se incompreensível, levando-se em consideração os seus anteriores referenciais

de homem e mundo. A nova postura proposta nessa obra e o novo olhar para os

fenômenos, por mais que de difícil entendimento, já despertavam Boss para as questões

do pensamento heideggeriano que ele sentia trazer “algo inaudito, novo e muito

profundo” (Boss, 1997, p. 7). O contato com o novo pensamento, através das leituras da

obra, fez com que ele se aproximasse do pensador, suscitando o interesse em conhecer

pessoalmente Heidegger e, posteriormente, já no primeiro encontro, estabeleceram um

bom vínculo afetivo (Boss, 1997).

Boss assume a daseinsanálise e traz novas compreensões para pensar essa

abordagem. Para esse desenvolvimento, também recorreu à obra Ser e Tempo, mais

especificamente às considerações acerca das tonalidades afetivas. Em sua trajetória de

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consolidação da daseinsanálise enquanto clínica, Boss destacou alguns principais pontos

que considerou pertinentes para pensar a atuação profissional: “a inseparabilidade do

orgânico e do psíquico, a angústia e a culpa como tonalidades afetivas de suma

importância no âmbito dos psiquicamente doentes e, por fim, o caminho para a

libertação” (Feijoo, 2011, p.72). Também realizou interpretações dos sonhos feitas pelo

paciente e leituras psicossomáticas que partem de outra compreensão das vivências.

Essas questões, que se constituíram enquanto abordagem clínica, surgiram a partir das

reflexões existentes nos pressupostos heideggerianos sobre o Dasein.

Com o passar do tempo, a daseinsanálise ganhou mais espaço e se consolidou

enquanto prática clínica. O processo de institucionalização da daseinsanálise ocorreu

inicialmente na Suíça, no ano de 1971, quando do surgimento da Sociedade Suíça de

Daseinsanalyse, e, posteriormente, em 1973, com a Associação Internacional de

Daseinsanalyse, momentos que possibilitaram abertura para que outras unidades da

associação fossem criadas em outros países, inclusive no Brasil, na cidade de São Paulo.

Esses espaços surgiram para formar novos profissionais - psicólogos e médicos - nessa

perspectiva e, também, para possibilitar que discussões em relação a essa nova

abordagem, enquanto atuação no espaço da clínica, ganhassem maior visibilidade (Boss

& Condrau, 1997). Sobre os caminhos atuais da daseinsanálise, Feijoo (2011) destaca

que, atualmente, essa perspectiva não está presente nas formações em psicologia e

prossegue argumentando que é uma formação ainda muito restrita, o que torna relevante

o reconhecimento da necessidade de realizar maior divulgação, ganhar mais visibilidade

acadêmica e mostrar o seu fazer, apresentando claramente o que vem a ser a

daseinsanálise.

Foi nesse contexto que a daseinsanálise constituiu-se, surgindo diante das

insatisfações com o modelo cientificista que media, calculava, previa e cindia homem e

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mundo, ela estando à frente dos saberes psiquiátricos e psicanalíticos, dos modelos que

pensavam o homem enquanto um sujeito detentor de um subjetivismo que o separava

dos objetivismos do mundo. Sobre essas perspectivas mais cientificistas, a

daseinsanálise se posicionou contrariamente, lançando um renovador e revelador olhar

fenomenológico enquanto abertura de novos modos de ser (Boss, 1997; Boss &

Condrau, 1997). Inicialmente pensada para o campo da psiquiatria, a daseinsanálise

ampliou o seu campo de atuação chegando ao atendimento psicoterápico das diversas

demandas existenciais, não somente aquelas relacionadas ao âmbito do que ainda hoje

chamamos de saúde mental, mas acolhendo os diversos modos de sofrimento humano.

Com relação à atual prática clínica, de inspiração fenomenológico-existencial,

torna-se oportuno discutir alguns aspectos que configuram essa atuação. Nesse sentido,

para discutir sobre as partes que constituem esse fazer, precisamos refletir sobre as

questões que são desveladas junto à noção de Dasein e que, nessa abordagem,

redefinem a prática clínica psicológica. Uma nova compreensão, de homem e mundo,

exige novos modos de ser-com no campo da psicoterapia.

Dutra (2013); Feijoo (2010, 2011); Prado e Caldas (2013) e Sá (2002b, 2010)

nos falam sobre a atitude fenomenológica presente na atuação clínica do psicoterapeuta

fenomenológico-existencial. Com essa postura, o psicólogo não deve se limitar a

compreender os fenômenos como simplesmente dados a priori. Deve ter abertura para

acolher o outro como novidade, em sua singularidade, reconhecendo que existem

discursos elaborados e que buscam explicar o humano, mas que também é preciso

suspender o que já se sabe para deixar que o novo se desvele, conhecendo assim os

sentidos que emergem no espaço clínico. Para isso, o Psicólogo precisa desenvolver

uma atitude antinatural, como mostra Feijoo (2011) buscando “suspender qualquer

interpretação acerca do que está acontecendo com aquele que procura o analista, para

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assim acompanhar o fenômeno no seu modo de revelar-se” (p. 86). Uma atitude

contrária a essa seria a atitude natural, que diagnostica, aprisiona e pode obscurecer a

condição de poder ser do Dasein.

O Dasein é um ente que tem como condição existencial ser indeterminado, ele

está em liberdade para exercer seu ato de existir, sendo assim, é um ser de

possibilidades que se encontra lançado no mundo, na maior parte do tempo, imerso no

modo de ser impessoal “que encobre e distorce o desvelamento das possibilidades de

sentido de si mesmo, tomando-se por um ente cujo modo de ser já está previamente

dado” (Sá, 2009, 65-66). É esse ser que chega aos serviços de psicologia, mas cabe ao

psicoterapeuta fenomenológico-existencial insistir em um movimento contrário às

solicitações e apelos da existência no modo de ser impessoal, devendo favorecer o

despertar, em alguns momentos, dos sentidos do ser.

Entre os modos de cuidado, condição existencial do Dasein, cabe ao

psicoterapeuta ser-com na condição cuidadora da “preocupação antepositiva

libertadora”, “modo do “ser-com” em que o terapeuta deixa-se apropriar enquanto

abertura dialogante para a manifestação das possibilidades próprias do outro” (Sá, 2002,

p. 7). O profissional recua para que o cliente assuma o seu lugar de cuidador de si, a se

perceber em sua responsabilidade de existir, no seu desvelar de outras possibilidades de

ser, assim como na escolha de quais projetos traçar e quais abandonar, referentes às

decisões que precisa tomar e refletir sobre o débito que pode acompanhá-lo diante de

algumas escolhas anteriormente já realizadas (Feijoo, 2000, 2011; Pompeia & Sapienza

2011; Sá, 2002b; Sá & Rodrigues, 2008; Sapienza 2004).

No desenvolver da atuação clínica fenomenológico-existencial, fica consolidado

um modo particular de conceber a psicoterapia na ótica da analítica existencial, na qual

o pensamento heideggeriano vai além de posturas técnicas e nos convida para um novo

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olhar, que ultrapassa a esfera do atendimento clínico e se integra ao nosso modo de ser-

com. Refletindo sobre esse fazer, trazemos as considerações de Sapienza (2004):

Esse trabalho é de pensamento, faz essencialmente uso da linguagem, mas bem

poderia ser chamado de artesanal. Nesse contexto, artesanal indica a diferença

do “industrializado”, do padronizado, do que se torna generalizado – como as

teorias são generalizações –, feito para alguém que não sabemos quem será.

Nosso trabalho é destinado a cada um. E não é aquele artesanal que poderia já

estar na vitrine à espera de quem o levasse: ele só vai ser realizado no momento

em que o destinatário estiver presente. E mais: só será feito com ele. Terapeuta e

paciente pensam e sentem juntos. (pp. 19-20)

Esse é um fazer que não está aprisionado a técnicas psicológicas, não podendo

ser transposto, de um cliente para outro, de modo universal e padronizando. É uma obra

de arte, única, que necessita ser contextualizada junto à indeterminação do ser. Com

isso, podemos pensar que, mesmo que o cliente se queixe de uma depressão, ou de outra

condição existencial classificada e coisificada em verdades psicológicas, essa vivência é

hermeneuticamente cuidada pelo psicoterapeuta fenomenológico-existencial (Sá,1998),

para ser compreendida como se dá essa depressão na existência desse Dasein e diante

do arte-fato que emerge, esse saber/fazer não será reproduzido para outros clientes, mas

pode até servir de inspiração para outras obras.

Como vemos, a atuação fenomenológico-existencial escapa do fazer clínico

tradicional da psicologia, quando essa faz uso de técnicas e diagnósticos que norteiam a

atenção psicológica. É um trabalho de afetação e afinação, que predispõe o modo de ser-

com, aqui considerado como atitude fenomenológica, ou seja, no qual tanto o

psicoterapeuta quanto o cliente estão ontologicamente envolvidos, já que existem

enquanto ser-com e ser-aí, não havendo a possibilidade de separação e distanciamento

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daquele em seu encontro com esse outro ente. O que existe é a possibilidade de

ampliação da liberdade existencial, desenvolvida hermeneuticamente. Como afirma

Morato (2013):

Como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e para outros, circulando o mundo da

alteridade com o qual se implica e refere na teia de significatividade....

compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro em seu mundo.

(pp. 52-53)

Essa condição nos permite pensar a clínica enquanto um trabalho cartográfico,

que a cada encontro reformula o território existencial e viabiliza a reflexão contínua

dessa práxis (Morato, 2009). Recria-se constantemente, por também ser clareira que

vislumbra novas possibilidades e aponta para novos horizontes, com a atuação do

psicólogo clínico fenomenológico-existencial que adota os fundamentos do filosofar

heideggeriano, iluminando o Dasein em seu ser livre para poder ser, inclusive no que

concerne ao metamorfosear o existir clínico a cada momento.

Com a tematização destes aspectos existenciais, podemos pensar o atendimento

da pessoa surda, que em seu modo singular pode comunicar-se em Libras. Nesta

comunicação, a interpretação do sentido é realizada e, para ser compartilhada, exige que

o apreciador do que é pronunciado também compreenda essa singular forma de

comunicação, a Libras. É deste lugar que pensamos a clínica psicológica como

possibilitadora de escuta do existente, escuta implicada, que demanda sensibilidade para

acolher quem busca compartilhar sua disposição, compreensão e linguagem. É tornar a

psicoterapia um espaço no qual se cuida do Dasein na condição de preocupação

antepositiva libertadora, convidando-o a assumir suas possibilidades de ser-no-mundo.

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3. MÉTODO

Esta pesquisa é caracterizada como de cunho qualitativo, na qual buscamos

fomentar a discussão do atendimento psicoterápico de pessoas surdas. Nesse sentido,

adotamos o referencial teórico/metodológico fenomenológico-existencial, refletindo a

analítica existencial heideggeriana no contexto da clínica stricto sensu, no caso a

psicoterapia, buscando refletir sobre a escuta clínica na atitude fenomenológica presente

no atendimento de pessoas surdas.

Pensar este tipo de pesquisa exige uma reflexão acerca dos modos de realizar

ciência, que no nosso campo específico traz pontos que se diferenciam de outros

modelos adotados em pesquisa, como apontados por Amatuzzi (2006, 2009), Dutra

(2002), Feijoo (2000, 2011), Holanda (2006), Roehe (2006), Szymanski e Cury (2004) e

Vieira (2008). Em conformidade com estes autores, o modelo de pesquisa que se

ampara nos moldes cientificistas, que visam à neutralidade, objetividade, controle e

generalização, não cabe no fazer das pesquisas qualitativas. Estas, principalmente as

compreendidas como fenomenológicas, trazem como característica marcante no ato de

pesquisar a presença do pesquisador em todo o desenrolar do estudo, pois o homem é

sempre um ser de compreensão, um ser-no-mundo, que vivencia suas experiências com

uma tonalidade afetiva, o que sempre implica a existência plena de afetos no decorrer

deste processo de fazer ciência. Este modelo de pesquisa é distinto dos modelos que

possuem em sua base o referencial clássico cientificista, já que essa perspectiva “ignora

a complexidade ontológica do homem. Não reconhece o papel do ser humano na

constituição da realidade e, portanto, não considera adequadamente a presença do

cientista numa investigação” (Roehe, 2006, p. 157). Pensando em outras possibilidades

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de construir ciência, condizentes com as propostas dessa pesquisa, Dutra (2002) nos

mostra a relevância de realizar uma pesquisa com base fenomenológica:

A escolha de um método de inspiração fenomenológica parece o mais adequado

quando se pretende investigar e conhecer a experiência do outro, uma vez que o

ato do sujeito de contar a sua experiência não se restringe somente a dar a

conhecer os fatos e acontecimentos da sua vida. Mas significa, além de tudo,

uma forma de existir com-o-outro; significa com-partilhar o seu ser-com-o-

outro. (377)

Considerando estas questões como suporte do nosso trabalho, passamos a pensar

no estudo tal como ele ocorre na perspectiva fenomenológico-existencial. Nesse sentido,

por constituir uma pesquisa no campo da clínica, traz em seu bojo algumas

particularidades inerentes a esse modo peculiar de pesquisar. Avellar (2009) reconhece

que o âmbito clínico é um espaço profícuo e disponível para a realização de pesquisas,

ela nos mostra que “trata-se de tomar a prática como problema de pesquisa, com o

intuito de melhorá-la em função de seus próprios resultados. A situação clínica possui

uma dupla fundamentação, a de construção do conhecimento e a do campo da prática”

(p. 16), ideia que coaduna com o pensamento de Dutra (2004), com relação à produção

de um saber que vai se desenvolvendo junto à atuação clínica. Sendo assim, falamos em

um fazer ciência que adota como lugar de estudo a clínica psicológica. Alves, Morato e

Caldas (2009) e Vieira (2008), mostram que o pesquisador, ao realizar um estudo em

clínica, também se encontra implicado como psicoterapeuta, o que mostra o seu

envolvimento e presença, evidenciando ser um trabalho de afetação por parte de todos

os participantes, característica também destacada por Amatuzzi (2009) quando

desenvolve sua compreensão de uma pesquisa fenomenológica.

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Outro ponto peculiar às pesquisas em clínica diz respeito ao fato de a

psicoterapia não poder ser compreendida como uma ciência que segue os moldes

cientificistas da racionalidade moderna. Sobre esta questão, Drawin (2009) argumenta

que “sua não cientificidade não é um defeito a ser corrigido no futuro, mas é o traço

essencial de um saber cuja fecundidade reside justamente em resistir à pretensão de uma

objetividade e de uma operacionalidade universais” (p. 29). Com relação à pesquisa

fenomenológica em psicoterapia, podemos refletir sobre o que Sapienza (2004) nos diz

sobre o fazer fenomenológico e o que emerge no contexto clínico:

É um modo de se aproximar de um fenômeno, que se caracteriza,

principalmente, por deixar que ele se mostre tal como se apresenta, o mais

possível sem interferência das teorias já existentes sobre ele. Mas o fenômeno só

se mostra tal quando alguém olha para ele, aproxima-se dele na procura de

compreendê-lo e explicitá-lo na linguagem. Na terapia, o fenômeno em questão

é a existência do paciente. É isso o que se revela no decorrer das sessões. (p. 54)

Estas questões mostram a pertinência da fenomenologia no respaldo teórico das

pesquisas realizadas em clínica, pois não buscam uma resposta objetiva, única, ou

trabalhar com generalizações, têm como fundamento trabalhar com a abertura a outras

possibilidades, inclusive no tocante aos modos de produzir ciência.

3.1 Processos metodológicos

No percurso de criação das pesquisas em psicologia clínica, o registro das

informações sob a forma de texto foi adotado, com o intuito de melhor compreender a

experiência do atendimento estudado. Nesse sentido, os dados são construídos a partir

da vivência do processo psicoterápico, ou seja, o pesquisador/terapeuta e o

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colaborador/cliente constroem narrativas nesse espaço de tematização da vida em

narrativas (Vieira, 2008). Como nos diz Cabral e Morato (2013) “pode-se compreender

a configuração do método como a construção de um caminho possível para a realização

de um estudo, que vai ganhando contornos mais precisos ao longo do próprio trânsito do

pesquisador pelo campo” (p. 178). É nesse sentido que a pesquisa em clínica vai se

estruturando, em seu fazer cotidiano, com traços singulares e que evidenciam as

afetações e novos sentidos que se desvelam, no decorrer do processo, e se integram ao

método clínico adotado nesse modo de pesquisar.

3.2 Colaborador/Participante

Com relação a outros aspectos do método clínico, destacamos que, nas pesquisas

em clínica ou em pesquisas consideradas interventivas, o colaborador do estudo deve

ser reconhecido em sua dupla condição, como cliente e participante do trabalho

científico. Szymanski e Cury (2004) ressaltam a importância da “consideração dos

usuários/participantes como pessoas que são focos de cuidado, co-construtores dos

significados e não “objetos” ou “sujeitos” de uma pesquisa” (360-361).

O colaborador de nossa pesquisa é uma pessoa surda, atualmente com 27 anos

de idade, participante de um processo psicoterápico de inspiração fenomenológico-

existencial. O processo teve início no mês de agosto de 2011 e continua até o presente

momento da elaboração dessa dissertação. Esse cliente chegou ao atendimento devido

ter passado por tentativas de suicídio e por estar se sentindo “angustiado”, em

sofrimento. Quem o encaminhou para atendimento psicoterápico foi uma médica

psiquiatra que o acompanhou e, sentindo-se despreparada para lidar com o atendimento

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de pessoas surdas, informou não estar habilitada para se comunicar com o cliente,

recomendando que a família procurasse acompanhamento em caráter de urgência.

3.3 Registro dos dados

Ao olharmos para o desenvolvimento das pesquisas na clínica, vemos que um

aspecto em comum é a adoção de um documento de registro, contendo as informações e

reflexões que emergem na sessão, assim como o registro das impressões e sentimentos

do pesquisador diante do experienciado. Com relação ao material que adotamos para

construção dos dados, nomeamos de diário clínico, no qual, após a realização de cada

sessão de psicoterapia, foi feito o registro da sessão e as reflexões sobre as questões já

apresentadas nesse trabalho.

Outra forma de registro também utilizada foi a gravação em vídeo das sessões.

Este recurso teve como objetivo facilitar o estudo dos conteúdos tematizados em sessão,

já que uma característica específica de nossa pesquisa é o colaborador ser uma pessoa

surda em processo de psicoterapia e que se comunica pela língua de sinais. Dessa forma,

a expressão comunicativa utilizava o campo espaço-visual, o que exigiu cuidado na

adequação do registro dos dados às necessidades da pesquisa. Os vídeos foram

assistidos em outro momento, após a anotação do diário clínico, o que fez com que a

sessão fosse relembrada, revivida, possibilitando o acréscimo de informações e

impressões que não foram registradas no primeiro momento.

3.4 Procedimentos éticos

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O estudo adotou como procedimentos éticos: as recomendações da Associação

Americana de Psicologia – APA (2010), que em seus princípios éticos exige a

preservação da beneficência e não maleficência, fidelidade e responsabilidade,

integralidade, justiça, respeito pelos direitos e dignidade das pessoas; as orientações do

Código de Ética do Psicólogo e a autorização de participação do cliente. Destacamos,

também, que com essa pesquisa realizamos o cumprimento do registro documental das

práticas psicológicas, conforme regulamentado e exigido pelo Conselho Federal de

Psicologia (2009).

3.5 Procedimentos de interpretação hermenêutica

Para o processo de discussão e interpretação dos dados, apresentamos recortes

do estudo clínico da psicoterapia realizada em Libras com o cliente surdo, sobre o qual

discutimos as nuances da escuta clínica na atitude fenomenológica em psicoterapia de

base fenomenológico-existencial. Escolhemos as sessões analisadas adotando como

limite de sessões as que se encontravam realizadas até o vigésimo mês do

desenvolvimento da pesquisa, perfazendo um total de dois anos e quatro meses de

psicoterapia fenomenológico-existencial, para poder realizar a defesa nos prazos

exigidos pelo programa de pós-graduação ao qual estamos vinculados. Informamos que,

mesmo com o término da coleta de dados da pesquisa, o processo de psicoterapia

continuará ocorrendo enquanto o cliente necessitar de acompanhamento.

Como estratégia de pesquisa, para melhor contemplar o nosso objetivo,

adotamos a narrativa, já utilizada em outras pesquisas (Duarte, 2013; Dutra, 2002;

Dutra, 2011; Fernandes, 2013; Maux, 2008; Morato & Schmidt, 1998; Moura, 2012;

Rebouças, 2010; Souza, 2007), por possibilitar compreender o vivido, aproximando-se

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da experiência do narrador que está plena de sentidos que surgem e mobilizam os

envolvidos no momento da narração. Como afirmam, Alves et al. (2009) “a matéria-

prima do narrador é a experiência e seu produto, a narrativa” (p. 244), legitimando com

isso a importância dos dados elaborados neste processo para a pesquisa

fenomenológico-existencial. Com essa abordagem, a história do cliente é apresentada ao

psicólogo/pesquisador que também acompanha este colaborador no desvelar dos

sentidos. Sendo assim, trabalhamos com as narrativas em Libras, construídas pelo

cliente e pesquisador, as videogravações e o diário clínico.

Os dados obtidos foram interpretados à luz da hermenêutica heideggeriana, que

embasou as discussões apresentadas sobre as questões relacionadas ao campo da

psicoterapia fenomenológico-existencial com pessoas surdas. Trabalhamos com os

materiais registrados sem a exigência de esgotarmos as possibilidades de tematização

dos sentidos narrados durante todo o processo psicoterápico. Nesse momento de análise,

recorremos à hermenêutica, que vem sendo utilizada em pesquisas qualitativas nas mais

diversas áreas de atuação. Conforme Jesus, Peixoto e Cunha (1998), a hermenêutica foi

inicialmente utilizada pelo campo teológico no processo de interpretação dos textos

bíblicos, sendo posteriormente adotada em outros estudos, o que possibilitou o

surgimento de novas reflexões para esta arte e favoreceu a atual condição de

compreensão dos sentidos da existência, questão essa que destaca sua importância para

compor a pesquisa em clínica.

Com relação à hermenêutica heideggeriana, essa tem por base a analítica

existencial, questão presente ao longo da obra Ser e Tempo, que nos mostra as

estruturas existenciais do Dasein. Com isso, pensando no processo da análise desta

pesquisa, destacamos a dimensão originária do ser, de sempre compreender e interpretar

o mundo (Heidegger, 1927/2012). Sendo assim, o processo hermenêutico é algo que

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ocorre no ser-com, é uma interpretação dos Daseins envolvidos tanto na psicoterapia

quanto na pesquisa. É algo que ocorre em conjunto, não somente por parte do

psicoterapeuta/pesquisador, mas junto ao cliente/colaborador. O interpretar faz parte do

existir, é uma condição do Dasein e, por isso, não poderia estar ausente do nosso modo

de realizar psicoterapia fenomenológico-existencial e de realizar estudos científicos que

buscam compreender os sentidos do ser.

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4. INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS

Nesse momento do trabalho, apresentamos fragmentos de uma situação clínica e

as interpretações das narrativas do atendimento clínico estudado. Para tanto,

informamos inicialmente o contexto dos atendimentos, seu início, especificidades da

psicoterapia, alguns temas que se destacaram no desenrolar das sessões e que

representam a nossa construção de sentidos sobre a escuta clínica na atitude

fenomenológica em processo psicoterápico de base fenomenológico-existencial no

atendimento de pessoas surdas. Esses dados são interpretados à luz da hermenêutica

heideggeriana, em um processo de diálogo com outros autores que estudam algumas das

temáticas que emergiram ao longo das sessões como conteúdos significativos para nossa

pesquisa.

Com relação aos atendimentos, esses ocorreram em consultório particular, com

sessões com duração de 50 minutos cada, realizadas semanalmente. Durante semanas

específicas tivemos momentos de urgência e foi necessário realizar entre um ou dois

atendimentos a mais que o convencional, diante das necessidades e demandas que foram

se desvelando ao longo do acompanhamento psicoterápico. Esses momentos foram

aqueles nos quais o cliente estava em uma situação delicada e sua vida encontrava-se

em risco. No momento da realização do segundo seminário de qualificação do mestrado,

o cliente encontrava-se em sua setuagésima sessão e delimitamos esse período como

sendo os atendimentos realizados que comporiam esse estudo, mas, para a construção da

dissertação, novas informações foram acrescentadas, visto que a psicoterapia continuou

sendo realizada juntamente ao prosseguimento do mestrado. Com relação ao período da

construção dos dados, foi ao longo de vinte e oito meses de psicoterapia que as

informações foram elaboradas. O cliente compareceu regularmente aos atendimentos

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nos horários previamente combinados. Com relação ao pagamento financeiro pela

realização desse processo, os honorários do psicoterapeuta não foram cobrados, tendo o

psicoterapeuta considerado a situação financeira do cliente e a possibilidade da

realização de um estudo científico.

Para realizar o atendimento em Libras é importante considerar a modalidade de

comunicação dessa língua, seus aspectos viso-espaciais, que implicam exigências não

só ao psicoterapeuta, mas também à configuração e organização da sala. Inicialmente a

sala na qual realizávamos o atendimento possibilitava a disposição das cadeiras em

paralelo, ficávamos de frente um para o outro, como sugerido por Veloso e Maia (2009)

para poder realizar nossa comunicação, mas essa disposição não favorecia muito a

videogravação por completo de todo o setting. Sendo assim, optei por tomar como foco

da filmagem o cliente, por esse motivo a minha imagem não está bem enquadrada

nessas filmagens iniciais. No enquadre de cena, nós estamos em perfil, com a câmera

mais voltada para gravar a sinalização do cliente. Essa escolha não prejudicou a

pesquisa, pois os registros sobre as minhas impressões e reflexões do atendimento

foram realizadas no diário clínico após cada atendimento. Outro aspecto é dispor de boa

iluminação na sala, questão de extrema relevância não só para a captura das imagens,

mas, principalmente, para a completa visualização e apreensão dos sinais. Com relação

à instalação da câmera, posicionava esse equipamento em um suporte de tripé sobre

uma mesa próxima às poltronas em que sentávamos.

Após um ano e quatro meses de atendimento, mudei de consultório e, em uma

nova sala, tive melhores resultados com a boa utilização do espaço para a videogravação

das sessões. Nesse novo ambiente, as poltronas ficam dispostas perpendicularmente,

com um espaço entre elas, nos dando mais mobilidade na escolha da posição em que

sentamos sem prejudicar as imagens. A câmera fica posicionada em frente a nós dois e

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captura por completo a imagem do cliente, assim como a minha. Outra questão que

busquei modificar diz respeito à acessibilidade do cliente e consideração à sua condição.

Tenho na porta de minha sala uma placa que informa se estou em atendimento ou não.

Com a mudança, também mudei a placa e na nova constam as inscrições “Aguarde” e

“Livre”, aquela na cor vermelha, sinalizando o momento de esperar, assim como usado

no trânsito, sendo que, na clínica, indica ao cliente que, no atual momento, ele precisa

aguardar, pois nessa ocasião já está ocorrendo um atendimento. No lado oposto está

pintada a palavra “Livre”, na cor verde, representando que, no momento, o cliente pode,

sim, informar a sua chegada. Como a Libras é a língua oficial da população surda, e não

o português, a escolha das cores respeita essa questão e possibilita aos clientes surdos

não bilíngues ter um rápido entendimento do que está acontecendo no momento de sua

chegada à recepção do consultório. Essa estratégia surtiu um bom resultado, tanto com

adultos, como com as crianças e adolescentes surdos que são atendidos.

Disponibilizar-se para atender pessoas surdas requer pensar em condições dignas

de acessibilidade, além dessas questões estruturais, também precisamos considerar as

condizentes com as relações sociais. O local onde o profissional exerce seu trabalho

deve ter um preparo também junto aos outros profissionais que lá estejam presentes. O

psicólogo deve informar que atua com pessoas surdas, esclarecer questões básicas e, se

possível, realizar um trabalho de capacitação da equipe profissional. Informações

básicas, como apresentar alguns sinais mais usuais que permitam uma breve

conversação informativa, facilita a inserção dos clientes surdos no serviço no qual se

trabalha, assim como diminui as barreiras relacionais que podem dificultar o livre

acesso e bom uso desses espaços. Para Schneider (2012), as questões da acessibilidade

são questões políticas e legalmente garantidas às populações consideradas “deficientes”,

não se configurando somente como sinalizações e modificações físicas dos

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estabelecimentos. Pensar em acessibilidade é ir além e garantir direitos, não interferir no

bom uso dos espaços para que as pessoas possam utilizar esses lugares com mais

autonomia e liberdade. Todas essas informações contribuem para pensar sobre um

formato de atendimento que favoreça esse tipo específico de clientela.

Com relação ao início do processo, o cliente chegou para atendimento por

indicação de uma professora da universidade, com a qual realizo o mestrado, que passou

o meu contato à família que necessitava de ajuda. O contato inicial foi feito por telefone

pelo cunhado do cliente, informando brevemente como estava a situação familiar diante

das tentativas de suicídio por parte do cliente. Também foi relatado que uma médica

havia recomendado atendimento psicológico com alguém que soubesse Libras,

argumentando que o seu trabalho já não era suficiente e que o paciente precisava

conversar sobre o que estava acontecendo. Sua família sabia que ele falava em estar

sentindo muita “angústia” e inicialmente foi informado que ele se sente diferente na

família, “ele quer casar, ter filhos”, dizia o membro familiar durante a ligação.

Marcamos uma sessão inicial com sua mãe e com o cliente para darmos início aos

atendimentos.

Na primeira sessão veio o cliente, sua mãe, sua irmã e seu cunhado. Iniciei

conversando somente com a mãe, para entender melhor sobre a necessidade do

atendimento. Essa escolha foi feita para que eu pudesse ter uma visão mais ampla da

situação, saber como o cliente se encontrava, emocionalmente, se tinha condições de

estar ali e sobre sua disponibilidade para conversar comigo, já que havia tentado se

suicidar e veio por intermédio de sua família. Bastante emocionada e sensibilizada com

a situação, relatou que o filho tentou se suicidar e que essa não foi a única vez, já que

existiram outras tentativas anteriores ao longo de sua juventude. Segundo ela, ele tentou

pular de uma ponte localizada na cidade, mas foi resgatado por policiais e levado para

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um hospital psiquiátrico. Nesse local, foi medicado, passou um dia em observação,

recebeu alta e pôde ir para casa no dia seguinte. A mãe prosseguiu, falou sobre os

motivos que, nesse momento, poderiam levar o cliente a pensar em se matar, em suas

palavras:

Os irmãos dele já são casados, com filhos, e ele é louco para ser pai, mas até

agora não é. Eu sinto que ele se sente diferente, pensa que nós não gostamos

dele, até por não ser pai. Eu não sei o que fazer, já entreguei a Deus, porque

você ver seu filho querer morrer e você não conseguir fazer nada... não é fácil”.

Para ela, não ser igual aos outros, “ser diferente” assim como relatou em sessão,

o faz sofrer e contribui para que não se aceite nessa condição. Contou que ele trabalha

em um grande supermercado da cidade, mora com uma companheira, não terminou os

estudos, aprendeu Libras já com uma idade mais avançada e sempre preferiu ficar em

casa. Percebi a mãe expressando como compreende esse momento do seu filho, os

sentidos atribuídos ao que acontece com ele. Na perspectiva fenomenológico-

existencial, é importante acolher o discurso do outro, assim como estarmos abertos para,

em outro momento, suspender o que foi apresentado e permitir que outros sentidos

emerjam durante a situação clínica. Enquanto sua mãe fala, eu pensava no cliente, no

como seria para ele estar passando por isso. Também pensava que ele ainda se

encontrava aguardando uma escuta, ser acolhido diante de seu sofrimento, o que me

fazia refletir sobre as possibilidades do meu atendimento, questionando se daria conta

de escutar e falar com essa existência tão fragilizada.

Algo que chama atenção nesse atendimento é que se trata de um

acompanhamento de adulto, mas que o cliente chega ao psicólogo por iniciativa da

família. Quem me telefonou foi um familiar que, inicialmente, falou representando sua

família; na primeira sessão, escutei a mãe falar sobre o cliente, inclusive, relatando que

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sempre o acompanha quando tem que ir a médicos, chegando até a resolver algumas

questões dele sem que ele precise ir junto até os serviços de saúde. Essa questão nos

mostra que um familiar de uma pessoa surda, no caso a que se encontra em

atendimento, faz a mediação entre o campo de comunicação das pessoas ouvintes e do

familiar que é surdo, auxiliando no acesso à serviços, como os de saúde, inclusive

respondendo por ele, assumindo seu lugar em um modo de cuidado que Heidegger

(1927/2012) poderia chamar de substitutivo, no qual se assume o lugar do outro,

respondendo às solicitações do mundo por ele.

Com relação a esse momento inicial, de chegar até o psicólogo, e pensando

sobre todo o trajeto que essa família precisou fazer para encontrar um atendimento

adequado, em Libras, atendimento esse não encontrado nos serviços públicos de saúde,

nos deparamos com as limitações e exclusões vivenciadas por pessoas surdas quando

buscam atendimento para suas demandas, em especial, aquelas relacionadas ao

sofrimento existencial. Mesmo com tantos avanços nas políticas de inclusão, com

decretos e leis que resguardam os direitos da população surda, ainda assim existe um

despreparo dos serviços e profissionais, culminando no desamparo da população surda

que fica desassistida, à margem dos serviços públicos e privados.

O discurso da mãe do cliente estava carregado de afetos, ela trazia o cansaço de

vivenciar o sofrimento existencial de seu filho, como o vivenciado por não encontrar

apoio adequado nesse momento de urgência, momento em que a vida de alguém muito

querido está em risco. Quando pensamos no humano, enquanto Dasein, um ser-com que

se constitui e é constituído junto aos demais entes, vemos que essa mãe também

vivencia o sofrimento do filho, ela também é afetada, não enquanto alguém que sente

tudo como seu filho sente, não como se substituísse ele, mas sofre junto, com ele, não

por ele. Enquanto ser-com, o que afeta a um toca a todos os demais, aqui estou

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referenciando apenas a mãe, pois foi com esta que conversei, mas toda sua família

estava tocada pelo sofrimento e angústia de não saber se conseguiriam ajudá-lo nesse

momento no qual a vida do cliente estava desamparada de cuidado, por parte do cliente

e também dos serviços de saúde, nos quais buscaram ajuda e não conseguiram uma

resposta satisfatória.

Foram essas questões iniciais que chegaram até mim, foi assim que iniciamos

nosso atendimento, com a escuta de outras pessoas falando sobre o cliente e que

facilitaram o acesso para que ele pudesse chegar até um psicólogo, profissão sobre a

qual não sabia se antes o cliente já tinha tomado conhecimento. Iniciei com a escuta da

mãe, mas como nos diz Feijoo (2011) “o analista deverá assumir uma atitude

fenomenológica, e, assim, suspender todo e qualquer pressuposto que anteriormente se

fez presente, inclusive no relato dos pais” (p 118). Feijoo tece esses comentários ao falar

do atendimento clínico de crianças, pessoas que podem não ter conhecimento de que

existe uma profissão chamada psicologia e de que um psicoterapeuta pode tentar

contribuir para desenvolver algum tipo de mudança em momentos de intenso

sofrimento. Por essa questão, faço analogia ao atendimento desse adulto surdo, que

pode necessitar que outra pessoa tenha algum conhecimento das possibilidades da

psicologia para dar suporte emocional a sua atual situação.

Com relação ao atendimento de pessoas surdas com a participação de sua

família, Solé (2005) fala que, em sua experiência, devido a se deparar com clientes que

não sabiam maiores detalhes de sua história, passou a incluir entrevistas com os pais,

independente da idade do cliente, para poder auxiliá-la no desenrolar da terapia. Eu

também trabalho com a participação da família do cliente. Acredito que esse é o

momento no qual se inicia o atendimento ou pode fazer parte, em outras ocasiões,

durante o desenvolvimento da psicoterapia. Essa escolha se faz também por perceber

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que o cliente pode não saber maiores detalhes de sua vida, por vivenciar situações nas

quais ele não participa dos processos de comunicação familiar ou em outros momentos

de sua história, como ida a médicos, resolução de questões escolares, entre outros

acontecimentos em espaços sociais que o deixam à margem no que tange a sua

necessidade de se comunicar em sinais. Falar com algum membro de sua família é ir

construindo sua história, é uma parte a mais, não deve ser o único meio de informação,

também temos, principalmente, que escutar o cliente, bastando para isso estar

disponível para que ele fale sobre sua experiência, que narre sua história e que continue

o processo de atribuir sentidos ao seu ser-no-mundo.

O passo seguinte foi escutar o cliente e, após o atendimento de sua mãe, foi isso

que fiz ao convidá-lo para sua primeira sessão. Confesso que, antes de encontrá-lo, eu

vivenciava diferentes emoções, dúvidas e interesses com relação ao como seria atendê-

lo. Qual seu nível de conhecimento em Libras? Como seria nossa comunicação? O

cliente, por estar em um momento intenso de crise, repercutiria negativamente em nosso

diálogo? Eu teria dificuldades para compreender como estava sendo para ele exercer a

responsabilidade de assumir o cuidado de sua vida? Como seria sair de meu lugar de

ouvinte e escutar e falar em sinais? Preocupava-me em poder auxiliá-lo e colaborar para

que ele pudesse sentir-se melhor. Em atitude fenomenológica, permiti-me ser tocado por

essas questões, mas precisei deixá-las em segundo plano, pois o encontro com o cliente

pedia que eu estivesse ali, totalmente presente. Nesse momento, as preocupações

abriram espaço para o meu envolvimento e implicação com esse atendimento, uma

atuação que não podia ser desenvolvida por outra pessoa, já que necessitava, no

mínimo, de alguém que soubesse Libras e, nesse aspecto, os serviços de psicologia da

cidade do cliente, na ocasião desse atendimento, não dispunham de outro profissional

que realizasse psicoterapia em Libras.

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Para realizar a sessão inicial, eu adotei o mesmo tempo e procedimentos que

utilizo com pessoas ouvintes, com relação ao estabelecimento do contrato e demais

questões. Nesse momento, por não ter respaldo na literatura sobre o como deve se

desenvolver o atendimento às pessoas surdas, fiz o que fazia com os outros

atendimentos, utilizei o referencial que tinha aprendido na minha graduação,

conhecimento ampliado em minha especialização na atuação clínica fenomenológico-

existencial e, nessas circunstâncias, fomos construindo esse atendimento. Iniciamos

nossa conversa nos apresentando. Eu mostrei o meu sinal em Libras, a identificação

pessoal. Assim como o nome é o elemento representativo nas comunicações entre

ouvintes, também fiz meu nome em datilologia. O cliente também se apresentou,

fazendo seu sinal e mostrando seu nome. Disse a ele que sou psicólogo, perguntei se ele

conhecia essa profissão e ele disse que conhece a profissão de médico e que acredita

que eu também sou um médico. Eu respondi que meu trabalho é diferente, mas que

sobre essa questão depois nós conversaríamos. Nesse atendimento, fiz como faço com

todos os clientes, perguntei como eu poderia ajudar, ele respondeu que não sabia, que

não estava bem e que sentia muita “angústia”.

Para desenvolver essa questão, pedi que me falasse como estava sua vida e ele

iniciou dizendo que queria morrer, “acabar com tudo”. Aos poucos, ele foi relatando sua

vida, falando sobre o seu atual trabalho, sobre o contexto familiar, contou que estava

casado com uma mulher que também é surda e relatou como foi sua tentativa de se

matar. Ele descreveu o acontecimento, falou ter ido para cima de uma ponte que fica

sobre o mar, pensou por um tempo sobre sua vida e decidiu que ia pular. Nesse

momento, em que estava disposto a concretizar o abandono de sua vida, chegaram

policiais e, segundo ele, “atrapalharam tudo”, no momento em que tentaram conversar

com ele, mas logo o cliente mostrou que era surdo, colocando a mão no ouvido e, com

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esse gesto ele disse que a polícia o entendeu. Contou que ao ser abordado pelos

policiais, nessa tentativa de suicídio, foi imobilizado e eles conseguiram ligar para seus

pais e o encaminharam para ser medicado em um hospital psiquiátrico da cidade. Após

escutar seu relato, falei que sua família estava bastante preocupada e que por esse

motivo eles me procuraram. Com o término da sessão, combinamos dar continuidade

aos atendimentos, mostrei-me solícito a escutar a sua narrativa em sinais e o cliente

concordou, afirmou querer voltar outras vezes para conversar sobre o que estava

acontecendo em sua vida.

Nesse primeiro momento, seu discurso também estava carregado de afetos,

insatisfações, intenso sofrimento e o desejo de encerrar com tudo o que lhe fazia mal. O

cliente mostrava-se emocionalmente abalado, seu olhar não apresentava vivacidade e o

movimento de suas mãos, na comunicação dos sinais, não tinha tanto vigor, a existência

estava cansada, querendo não mais prosseguir a ser-no-mundo enquanto existente. O

tédio (Langeweile) evidenciava-se enquanto tonalidade afetiva fundamental, na qual o

Dasein fica limitado em suas possibilidades de ser-no-mundo, ao passo que busca

recusar sua liberdade e se lançar na tentativa de existir como se fosse um ente dado, sem

sentido (Heidegger, 2011b). Nessa sessão, o cliente traz o seu sofrimento, sua tentativa

de abandonar tudo que vivencia por não ver outra possibilidade para sua existência. Sua

liberdade, enquanto condição existencial, está velada, o que o leva a não vislumbrar

outras possibilidades de ser e de cuidar do seu existir. Ele mostra sentir-se desapontado

por ser interrompido em sua tentativa de matar o seu viver e, por isso, ter que retornar à

cotidianidade que o incomoda e, nesse singular momento, não mais o interessa ou faz

sentido:

Eu estou com vontade de morrer, eu quero! Não quero saber de nada... Eu ia

fazer, mas chegaram os homens da polícia e atrapalharam tudo, fui para o

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hospital e voltei. Eu estava lá (na ponte) e olhava para baixo, não pensava em

mais nada.

Ao terminar essa sessão, as questões que me inquietavam antes do início de

nosso processo me fizeram refletir que seria uma boa estratégia gravar em vídeo os

atendimentos desse cliente; pensei nesse recurso em razão de em alguns momentos

sentir dificuldade para conversar com ele, compreender o que me contava, não sei se

devido ao conteúdo da sessão e seu estado emocional ou se por incompreensão de

alguns sinais que ele apresentava e que foram difíceis para que eu os entendesse. Essa

estratégia serviria para que eu pudesse estudar o atendimento após ter sido realizado,

compreender com calma o que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, refletir e estudar

sobre o desenvolvimento do meu atendimento em Libras com pessoas surdas.

Posteriormente ao atendimento, fui compor o relato da sessão, relembrando os

momentos vividos com essa temática tão densa, o que me fez sentir sensações

desconfortáveis. Estava revivendo afetações que o encontro terapêutico possibilita,

nesse caso estava olhando de outro lugar o que vivenciamos juntos em sessão, o

encontro com o esvaziamento de sentidos, a paralisação das possibilidades do poder-ser

(Nogueira, 2008), resultando, nesse caso, na escolha do morrer. Com relação a essa

temática inicial, a ideação suicida, Dutra (2011) traz uma reflexão heideggeriana desse

fenômeno e nos mostra que “o motivo ou motivos que levam alguém ao suicídio

formam-se ao longo de sua história e se revelam nos sentidos e modos de ser que

constituem a sua existência” (p. 153). Como vemos, é na historicidade do Dasein que a

possibilidade do suicídio pode surgir, desmistificando assim as crenças deterministas

que explicam essa condição em suas causas orgânicas ou hereditárias. Enquanto ser-aí,

o Dasein é lançado no mundo e encontra-se nesse jogo do existir, cabendo ao homem

escolher entre as possibilidades que vislumbra diante de sua existência (Heidegger,

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1927/2012). Sendo assim, o suicídio ou a ideação suicida podem ser pensados nessa

perspectiva, também, como uma escolha feita diante de intenso sofrimento existencial.

Na sessão seguinte, levei minha câmera filmadora e, logo ao início da sessão,

conversei com o cliente e expus o que havia pensado sobre filmá-lo. O cliente consentiu

a gravação e demos continuidade à psicoterapia, realizando o registro em vídeo dos

atendimentos. Ao final dessa segunda sessão, fiquei bastante angustiado por me deparar

com momentos nos quais não compreendia o que o cliente estava expondo. Ao terminar,

saí desse encontro com a certeza de que não é fácil atender em Libras, pois esse cliente

utiliza como língua apenas a Libras, não faz uso do português, ou seja, sua sessão tem

que ser toda em Libras, sua narrativa acontece como ele prefere se expressar, em sinais.

Informei ao cliente que estou aprendendo Libras, que ainda preciso conhecer algumas

palavras, por isso, gostaria que, se possível, relatando sua história ao longo da sessão,

ele pudesse me ajudar em algum momento no qual eu não compreendesse algo que me

falava. Percebi que, ao longo do atendimento, eu estava pedindo várias vezes para que

ele repetisse novamente o que me contava e o cliente atendia minha solicitação com

tranquilidade, falando novamente com pausas para que eu pudesse melhor compreender

seu discurso, o que comprova que meu pedido foi acatado pelo cliente, mostrando-se

compreensivo com relação às dificuldades advindas de nossas diferenças linguísticas.

Nas primeiras sessões, algumas questões não ficavam claras durante o

atendimento, eu sentia dificuldades para conhecer algumas partes de sua história e, ao

rever as gravações, fui percebendo que ele não informava com clareza sobre quem ele

estava relatando algo. Isso é algo que é particular a esse atendimento, assim como pode

acontecer em um atendimento de uma pessoa ouvinte, o importante para mim foi dizer

que não estava entendendo e que gostaria que ele me explicasse com mais detalhes,

assim como eu também perguntava ao longo de nossa conversa sobre quem ele estava

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falando, se era uma pessoa amiga, um familiar ou se era sobre ele próprio. Avançamos,

quando ele começou a dar mais informações referentes à pessoa sobre a qual falava,

dizendo se era surda ou não, amiga ou familiar, isso antes de fazer o sinal dessa pessoa

– aqui, o sinal representa o nome da pessoa – isso foi ocorrendo nas sessões seguintes e

avançamos em nossa comunicação.

Outro aspecto importante, que contribuiu na ampliação de minha compreensão

do atendimento, foi buscar estudar os sinais que não conhecia, principalmente, tirando

dúvidas em livros, vídeos e com auxílio de uma professora do curso de Libras que eu

havia realizado. Quando recorria à ela, sempre tomava cuidado para preservar o sigilo

do atendimento, mas perguntando sobre alguns sinais que surgiam em sessão ou outros

que eu relacionava às temáticas que estavam sendo difíceis de compreender. Essa

dificuldade também parte de nossas diferenças linguísticas, como relatado

anteriormente, por se tratar de duas línguas que exigem habilidades diferenciadas para

sua compreensão e execução, sendo assim, posso me considerar um estrangeiro que se

lança na comunicação em língua de sinais brasileira, na escuta clínica disposta em

atitude fenomenológica.

Nesse novo modo de escuta, estou disponível ao complexo jogo de pensar em

Libras e Português, de fazer o processo simultâneo de tradução da Libras para o

Português e vice-versa, aspecto que uma comunicação em outra língua exige. Com isso,

é imprescindível estar atento para não tornar o meu discurso em uma comunicação que

apenas sinaliza a língua portuguesa, seguindo as regras gramaticais dessa língua, o que

dificultaria a compreensão da pessoa surda que utiliza a Libras. Comunicar-se nessa

língua, por ter uma estrutura gramatical própria, diferente em vários aspectos da

estrutura do português, exige, de quem faça uso da língua de sinal, a correta execução

dos sinais estruturados em todos os seus aspectos linguísticos.

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Além da comunicação em sinais, é preciso desenvolver a escuta e fala clínica,

que exigem do psicólogo ir além, levando para o atendimento as discussões e o

pensamento elaborados pela psicologia e pela filosofia heideggeriana. Enquanto

psicoterapeuta fenomenológico-existencial, no atendimento de pessoas surdas, o diálogo

hermenêutico tematiza o ser e sustenta a angústia existencial na comunicação que ocorre

em uma língua viso-espacial. Esse é um processo complexo que exige prática, que vai

se aprimorando com o passar do tempo e com a familiarização desse novo modo clínico

de ser. É um convite para que a escuta e a fala sejam ampliadas para novas

possibilidades clínicas, condição que só o Dasein pode realizar em sua abertura e, diante

de suas possibilidades, aprender a se comunicar por outra via.

No que diz respeito ao atendimento de pessoas surdas, considerando outras

situações nas quais fui solicitado a atender clientes surdos, suas famílias são quem

buscam o atendimento, isso aconteceu em atendimentos de crianças, adolescente e,

agora, com um adulto. Nesse contexto, com o primeiro contato ocorrendo por

intermédio de familiares das pessoas surdas atendidas, isso nos faz questionar se essas

pessoas surdas conheciam o trabalho do psicólogo ou se sabiam sobre a existência dessa

profissão. Essa é uma questão bastante preocupante para nós da psicologia, se

considerarmos a quantidade de pessoas surdas que existem em nosso país – mais de

nove milhões, como informado pelo IBGE – deparamo-nos com uma possível limitação

do campo de atuação psicológica diante das urgências existenciais de algumas pessoas

que fazem parte da comunidade surda brasileira, que, por algum tipo de sofrimento,

podem precisar de apoio psicológico.

Outra questão que levantamos, nesse sentido, é a da falta de discussão da

psicologia junto às pessoas surdas. Com o desconhecimento dessa profissão e de suas

possibilidades, cabe à psicologia buscar estratégias de levar o seu saber para que

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pessoas surdas possam conhecer o que é a psicologia, qual o seu fazer, qual a sua

relevância, apresentar suas perspectivas teóricas, áreas de atuação, serviços

desenvolvidos pelo psicólogo, levar próximo a essa população suas discussões e

posicionamentos em relação às principais temáticas contemporâneas. É preciso que a

psicologia também crie sinais próprios, pois muitos conceitos não possuem sinal e, para

que esse saber seja transmitido, é preciso que um projeto nesse sentido seja

desenvolvido. Com isso, poderemos ter a transformação de um discurso, atualmente

oralizado, em um saber viável a outras condições existenciais, para que essa ciência não

se comunique somente por intermédio do canal oral-auditivo.

Com essas considerações, pertinentes para que se mantenha o compromisso

social da psicologia, será possível criar espaços para escutar essa população e saber o

que ela pensa sobre o nosso fazer. Outra questão que segue nesse sentido, nos faz pensar

que a psicologia atuando de modo inclusivo, abre espaço para que pessoas surdas, assim

como qualquer outra, possam seguir nessa profissão caso se interessem. Mas,

atualmente, temos uma aproximação tímida da psicologia e esse distanciamento foi

sentido por mim, revelando-se como dificuldade para o meu fazer clínico que não

encontrava suporte para a atuação em psicoterapia com pessoas surdas, como pensado

nesse tipo de atendimento em Libras que valoriza a pessoa surda em seu singular modo

de ser.

Sobre o acesso de pessoas surdas aos serviços de saúde, Marin e Góes (2006),

pesquisando sobre a experiência de atividades cotidianas de pessoas surdas, falam sobre

o momento no qual elas procuram um profissional de saúde, com isso são citadas as

dificuldades que surgem quando esses profissionais recebem pessoas com esse outro

modo de comunicar suas dores. Entre as principais dificuldades, são citadas as geradas

pelos profissionais, por não conhecerem a língua de quem os procura buscando

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atendimento. Com relação a essa questão, são apontados dois aspectos que podem afetar

o paciente surdo. O primeiro, contempla a limitação da autonomia da pessoa surda, de

poder ir sozinha procurar auxilio médico; a outra aborda as sutilezas e particularidades

que podem gerar situações constrangedoras para o paciente que recorre à presença de

um acompanhante, o auxiliando para se comunicar com o profissional que realiza o

atendimento. Sobre essa questão, a pessoa surda, além de vivenciar um momento

mobilizador, o estar doente ou necessitando de cuidados médicos, precisa expor a sua

intimidade a outra pessoa, além do profissional de saúde, situação essa que pode

constranger ou levar o paciente a não informar particularidades e acontecimentos que

ele não quer expor a pessoas desconhecidas. Com relação a essa consideração, deve-se

reconhecer a existência de assuntos que são difíceis para o paciente relatar, relacionados

com sua intimidade ou sofrimento, questões mobilizadoras de afetos e que diante da

situação de maior exposição, ao estar acompanhado de um familiar, amigo, conhecido

ou profissional intérprete de libras, podem não ser discutidas diante do desconforto e

constrangimento gerado por essa situação.

Essa limitação da comunicação entre profissional e cliente com surdez surgiu ao

longo da realização da vigésima segunda sessão. O cliente trouxe uma situação que

vivenciou e que lhe fez passar por um momento de dúvida com relação a buscar ou não

os serviços de saúde, os quais se mostraram sem o preparo adequado para o acolhimento

de pessoas surdas. Ele falou que acreditava estar com alguma doença no órgão sexual,

narrou um pouco sobre a tensão que vivenciou e sobre a necessidade de ir ao médico

acompanhado, mesmo nesse caso que ele estava bastante constrangido por ter que expor

sua intimidade para outras pessoas. Ele trouxe, em seu discurso, algo que nos remete ao

complicado acesso de pessoas surdas aos serviços de saúde:

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Fiquei pensando... eu tenho que ir ao médico, criei coragem, me arrumei e sai

de casa... quando cheguei à parada de ônibus eu pensei bem e voltei para casa...

Eu estava com dúvida, com medo e meu coração batia rápido. Eu sei que

precisava criar coragem e ir ao médico, mas não fui. Quando cheguei em casa

minha mãe perguntou para onde eu tinha ido. Não respondi nada e entrei no

quarto. Ela perguntou o que eu tinha ido fazer, falou sério comigo, ai eu disse

que estava doente. Ela me mandou falar a verdade, ela disse “Fale”. Eu já

estava bastante nervoso e com vergonha, e ela insistiu dizendo “Fale”, ai eu

contei a ela que era no pênis, peguei um papel e escrevi “Sexo”. Ela disse que

eu tinha que ir mostrar ao médico, mas eu disse que não ia... Minha mãe vai

junto, no posto de saúde, ela conversa com o médico e explica, mas eu não

tenho coragem de ir mostrar a ele, tenho vergonha. No passado eu fui com um

amigo, também surdo, que estava doente. Ele estava com uma doença no pênis,

a mãe dele também foi junto e foi conversar com o médico, explicar tudo. Eles lá

conversando e nós ficamos sentados esperando. Um tempo depois, quando eles

acabaram a conversa, o médico chamou meu amigo e fez o gesto para que

descesse a bermuda e mostrasse o pênis... O médico olhou e viu que meu amigo

estava doente e teve que colocar, no ânus dele, uma mangueira com um líquido

amarelo, que saía de um saco que ficava mais alto, isso durante duas horas. Eu

estava lá e fiquei com medo. O médico veio falar comigo e eu fui embora... Para

outras doenças eu até vou ao médico, mas não para doenças no pênis.

Percebemos que a falta de comunicação direta entre o cliente e o profissional de

saúde, por não dialogarem em uma língua comum, acaba gerando no cliente dúvidas e

receios com relação a recorrer aos serviços de saúde. O que vemos nesse exemplo é que

ele não conversa sobre o que está sentindo, assim como sua consulta sempre ocorre

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mediada por outra pessoa, no caso, a sua mãe, que conta ao médico o que está

acontecendo com o filho que é surdo. Na primeira conversa que tive com sua mãe, ela

me disse reconhecer que não tem domínio em Libras e muitas vezes, se comunicam em

uma linguagem caseira e com os poucos sinais que aprendeu com o filho. O cliente

também percebe isso por parte de sua família, não só de sua mãe. Sobre os atendimentos

nos serviços de saúde, que são realizados pela mãe do cliente falando por ele, refletimos

que ela pode não compreender tão bem o que o filho lhe comunica. Com relação ao

médico, não consultar diretamente o seu paciente, não tira sua dúvidas ou esclarece os

procedimentos dos tratamentos que possa querer realizar, também percebemos como

preocupante para a saúde dessa pessoa que adoece e não comunica o seu adoecer.

Vemos que, nesses momentos, existe certa dependência por parte do cliente para que

outras pessoas possam falar por ele.

Nessas situações de dependência e cuidado substitutivo, a pessoa surda fica

excluída, suas questões podem permanecer em silêncio e invisíveis aos olhos do

profissional de saúde que a atende. Percebemos que algumas incompreensões que o

cliente possa ter com relação aos tratamentos médicos restringem e dificultam sua ida

aos serviços de saúde quando está doente, pois não é devidamente informado sobre o

que acontece por lá, a quais procedimentos será submetido e porque esses são

necessários. Em alguns casos, como no relatado anteriormente, ele fantasia sobre o que

pode acontecer e teme buscar ajuda. Sobre esse aspecto, não podemos conceber uma

psicologia que retira o cuidado de si do próprio cliente. Em atitude fenomenológica,

essa postura não é possível, devido a agir de modo a naturalizar o Dasein como um ser

incapaz, limitando sua liberdade e responsabilidade de assumir suas escolhas. Uma

escuta que apenas prioriza o que os outros dizem e não o próprio cliente não cabe no

fazer fenomenológico-existencial. Essa questão eu abordei com o cliente, entendendo as

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dificuldades de ter que depender de alguém que faça essa mediação linguística.

Pensando nisso, refletimos, em nossas discussões, sobre o que fazer quando ele

necessitar de auxílio nessas situações. O cliente escolheu recorrer ao auxílio de um

amigo ouvinte, que sabe Libras e é seu vizinho, uma pessoa que ele conhece desde sua

infância e se sente confortável para abordar questões mais íntimas, caso seja necessário.

Ainda com relação ao contexto da comunicação, com pouco mais de um ano de

psicoterapia, o cliente passou por outro momento difícil e tentou novamente se suicidar.

Ele ingeriu produtos químicos para limpeza doméstica e foi levado por sua família ao

hospital. Quando retornou e veio ao atendimento, contou-me que acreditava estar sendo

traído por sua namorada. Nesse momento, ele já havia rompido o relacionamento com a

companheira com quem morava quando veio para psicoterapia; o casal morava na casa

dos pais do cliente. Em ambas as relações, ele levantou a suspeita de traição e

questionou suas companheiras que, com o tempo, escolhiam terminar a relação.

Passamos por outro momento delicado no processo e, novamente, o psicoterapeuta foi

solicitado a dar suporte nesse momento de crise.

Após ter vivenciado essa tentativa de suicídio, o cliente relata que sua família

insistia para que ele ficasse bem, mas o modo como ela fez isso o incomodou. Informa

que os familiares, principalmente, a mãe, conversavam oralmente com ele, emitindo

acusticamente palavras em português, junto a alguns gestos, mas ele diz não

compreender o que eles falam, como relatado em sessão:

Eles ficam só falando comigo, mexendo a boca e dizendo coisas que eu não

entendo. Isso é muito chato, ficar ali vendo eles insistirem assim, mas eu não

entendo nada do que dizem. Minha mãe sabe pouco Libras e faz alguns sinais,

mas ela estava oralizando muito e eu fico ali apenas olhando. Eu vejo que eles

querem que eu fique bem, mas a comunicação é difícil.

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Ao relembrar essa ocasião, ele me conta falando em libras e fazendo gestos com

a boca, imitando como sua mãe conversava oralmente com ele. Se pensarmos nessa

situação, vemos que uma pessoa surda que tem como língua natural a Libras certamente

não vai compreender as palavras pronunciadas oralmente em português, pois sua língua

é visual, não auditiva, e possui uma gramática própria. Essa questão envolve outras, de

ordens mais complexas, pois não é apenas ouvir os sons, mas saber os significados das

palavras, para poder atribuir algum sentido ao que é dito. O sentido que o cliente

atribuiu ao que aconteceu foi de que essas pessoas gostam dele e, preocupadas com seu

sofrimento, querem vê-lo superar esse momento delicado. Para pensar essa questão,

Heidegger vem nos falar sobre o ser sempre estar em uma disposição que possibilita

compreender sua existência, e afirma:

Mesmo na escuta expressa da fala do outro, compreendemos de imediato o que

se diz, ou melhor, já nos encontramos previamente com o outro junto ao ente

sobre o que se fala. O que se dá em primeiro lugar não é, pois, o que se

pronunciou na articulação verbal. Mesmo quando o dizer não é claro ou quando

a linguagem é estranha, o que escutamos, em primeiro lugar, são palavras

incompreensíveis e nunca uma variedade de dados sonoros. (1927/2012, p. 227)

Embora sinta esse cuidado por parte de sua família, o relato do cliente nos

mostra que ele ainda não se sente totalmente acolhido em casa, pois falta uma língua

comum, falta ter com quem estabelecer um diálogo compreensivo sobre seus

sentimentos. Isso mostra o quanto ele e a família não se compreendem em alguns

momentos e, principalmente, nesse momento sensibilizador, após as tentativas de

suicídio. Sendo assim, pensar no atendimento realizado somente com o discurso dos

familiares, falando pelo cliente como ocorre nas idas aos serviços de saúde, deixa de

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lado a escuta de quem necessita ser escutado, ou seja, o cliente e os sentidos de sua

existência e é por esse caminho que meu atendimento busca corresponder, ao clamor

desse ser-aí. O cliente vivencia intensa solidão, mesmo estando próximo a outras

pessoas que o consideram importante e se preocupam com ele, mas não se relacionam,

comunicativamente, de modo adequado como ele necessita.

Nesse momento da psicoterapia, em que o cliente retorna com a ideação suicida,

lembra-nos sobre a consideração de o Dasein ser abertura e, desse modo, podendo se

desvelar e voltar a se velar ao longo da sua existência. O ser, por viver imerso na

cotidianidade impessoal, está junto aos outros e corresponde aos clamores do “a gente -

nós”, vive em meio a massificação e padronização. Ele se mistura com os demais e com

isso escapa da responsabilidade de assumir as implicações de seu poder ser. Ele existe

enquanto ser que transita, em alguns momentos, se aproxima de sua propriedade, assim

como em outros passa a corresponder ao impessoal (Heidegger, 1927/2012). Queremos

concluir, com isso, que por mais que o cliente faça uma escolha em sua vida, essa nunca

será permanente. Ele mesmo chegou com a questão do suicídio e essa vivência foi se

modificando ao longo das sessões, agora, novamente, há o retorno ao abandono de si.

Essas repetições não podem ser descartadas pelo psicoterapeuta, são possibilidades do

Dasein, do mesmo modo que as possibilidades de mudança e retomada de sua liberdade.

Se pensarmos na clínica como uma aplicação técnica, em seu sentido moderno,

essa situação vai frustrar o psicólogo, por não ter conseguido alcançar com sua atuação

técnica, eficientemente, o total controle sobre a vida do cliente. Mas, como nos

relacionamos com a técnica e verdade em seus aspectos desveladores de sentidos

(Heidegger, 1927/2012; Sá, 2002; 2004), nos afetamos, sim, por essa vivência, mas

lidamos com o que se apresenta como possibilidade, no nosso lugar de psicoterapeuta

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fenomenológico-existencial que também realiza seu poder ser no ser-com da clínica.

Nesse momento, é preciso dar continuidade ao nosso trabalho. Para isso, escuto o

cliente narrar que não quer mais viver algo que já foi experienciado por nós em outro

momento de sua psicoterapia. Essa questão que agora retorna foi modificada ao longo

da continuidade do acompanhamento e o cliente abandonou sua escolha por morrer. Isso

foi o que ocorreu naquele contexto, sendo assim, prender-se ao já vivido em terapia

limita a atuação clínica, já que, em atitude fenomenológica, não podemos conceber o

Dasein como já conhecido e com desdobramentos existenciais previsíveis. É preciso

que o Dasein seja sempre acolhido como novidade, sendo assim, quando ele falar

novamente em se matar isso terá um sentido singular, correspondente ao que está

vivendo naquele momento específico de sua existência.

Passar novamente por essa situação fez com que eu me afetasse com o que

escutava, convocando-me a pensar, junto ao cliente, sobre o que podia ser melhor para

ele. Em sessão, acolhi sua narrativa, escutado seu sofrimento e verdades, relembramos

as sessões, retomamos seus projetos já tematizados e trouxemos para a cena clínica as

outras pessoas que lhe são significativas, para que ele meditasse sobre o que está

vivendo. Recomendei-lhe ser atendido por um psiquiatra, já que ele parou, por conta

própria, de tomar os remédios prescritos em um tratamento. Com isso, esperava que o

cliente também pudesse se ver em outras possibilidades de ser e conseguisse sair desse

momento tão desalojador. Isso foi preciso, para poder seguir em terapia na tematização

dessa angústia que anunciava sentidos. Ele acatou minha recomendação de ir ao

especialista e se comprometeu a voltar para outras sessões naquela mesma semana. A

confirmação de que viria, assim como o seu comparecimento e disponibilidade para

falar de si, revelaram a pertinência da atenção clinica ofertada ao cliente nesse delicado

momento de sua vida.

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Uma questão que precisa ser ressaltada é que, mesmo durante as tentativas de

suicídio, o cliente se comprometeu e compareceu às sessões marcadas, o que nos faz

pensar na escuta clínica em atitude fenomenológica que ele encontra na terapia, e que

possibilita a retomada de sua responsabilidade para exercer o seu existir. Essa discussão

nos remete as implicações que a escuta e fala, na clínica, trazem para o psicoterapeuta,

pois esse profissional deve, sim, respeitar o modo como o cliente escolhe falar sobre si,

principalmente na abordagem que sustenta a minha atuação. Fica evidente que a Libras

não é somente uma escolha desse cliente, ela é a única língua que ele conhece. Seu

percurso escolar foi mais limitante do que enriquecedor, sem a possibilidade de uma

aprendizagem significativa na proposta da educação bilíngue, ensino das duas línguas

oficiais brasileiras, com a Libras sendo a primeira língua e o Português como segunda

língua. Slomski (2012) e Witkoski (2012) falam sobre o bilinguismo e enfatizam que,

nessa perspectiva, a pessoa surda é reconhecida em sua diferença e necessidade, o que

lhe permite melhores oportunidades de inserção no âmbito escolar com melhores

resultados no processo de aprendizagem, o que abre espaço para possíveis

desdobramentos futuros, como inserção no mercado de trabalho, isso como derivado

dessa escolarização bilíngue.

Em um dado momento de sua vida, a escolha por trabalhar, ao invés de estudar,

está amparada em suas vivências enquanto aluno que passou por limitações impostas

pela educação regular, com profissionais despreparados e, muitas vezes, sem intérpretes

de Libras nas salas de aula, que o forçavam a ser inserido no universo ouvinte e

impossibilitavam o melhor desenvolvimento intelectual, assim como ocorreria caso a

escolha fosse por um ensino na língua de sinais, pois é dessa forma que o aluno surdo

aprende, fazendo uso da visão e não com a audição, como nos mostram Faria, Alves,

Batista e Monteiro (2011):

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A Libras, assim como nas línguas orais, exerce papel central no

desenvolvimento interacional e cognitivo dos sujeitos surdos, cujo processo de

interação é prejudicado em ambientes em que predominam a língua oralauditiva,

porque não é a língua de sinais que media a interação entre o surdo e o ouvinte.

Muitas dificuldades de aprendizagem sentidas por essas pessoas podem ser

explicadas por meio do contexto em que elas estão inseridas. (pp. 197-198)

Voltando à comunicação do cliente com sua família, nesse tipo de atendimento

me é demandado estabelecer comunicação em sinais com o cliente e, por vezes, também

mediar a comunicação com sua família, pois é nesse horizonte que o cliente assume a

responsabilidade sobre sua história. Essa foi uma questão que surgiu ao longo das

sessões, perceber que existia uma falha na comunicação realizada entre o cliente e

demais membros da família. Sua mãe também buscou ajuda nos momentos críticos,

para saber como lidar com essa situação. Nós formamos uma parceria, pois é assim que

esses atendimentos devem ocorrer, junto a outras pessoas que são importantes para o

cliente, e sempre com o consentimento deste.

Atender esse ser-aí, com suas particularidades, mostra-me a relevância de, em

minha profissão, ter o conhecimento da língua de sinais brasileira, pois, nesse momento,

essa é a única possibilidade para realizar a escuta desse processo e, também, é por

intermédio dela que o cliente busca narrar sua história. Quando iniciava a pesquisa,

diante das leituras realizadas e que enfatizavam o uso da Libras com pessoas surdas, eu

acreditava que o atendimento partia do saber essa língua, mas no decorrer do processo

fui verificando que não basta apenas saber libras, essa é uma parte do atendimento de

pessoas surdas. Uma alternativa que pode ser pensada para resolver a comunicação em

psicoterapia pode ser a utilização dos serviços de um intérprete de Libras. Acredito que

recorrer a um intérprete não é a melhor solução para aqueles que buscam atender

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pessoas surdas, por diversas questões, incluindo aspectos éticos, como o sigilo

profissional, entre outros tópicos que são bem discutidos no código de ética do

psicólogo. Sabemos que o intérprete é um profissional habilitado para se comunicar em

Libras, com respeito ético, e que pode assistir a pessoa surda quando ela precisar. Isso é

garantido por lei, o acompanhamento desse profissional já está regulamentado e tem seu

valor em vários âmbitos sociais, como o escolar, mas, em se tratando de psicoterapia,

devemos ser mais cautelosos com relação à inserção de um mediador nesse processo.

Dando continuidade ao entendimento de que não basta saber Libras para atender

pessoas surdas, podemos nos deparar com pessoas que fazem uso de implante coclear

ou que passaram por processo de oralização, aprendizagem de leitura labial, emissão

vocal de palavras e que podem dominar a língua portuguesa. Nessas condições, a

utilização dos sinais vai ser determinada pelo cliente, caso queira fazer uso ou não.

Também podemos pensar que existem pessoas surdas sem o conhecimento da língua de

sinais e estabelecem outros modos de comunicação, como a expressão em gestos

(Sacks, 2010). Mas pensar em efetivar um acompanhamento psicológico envolve uma

maior compreensão histórica, educacional, cultural e jurídica sobre essa temática.

Realizar esse atendimento pede que se tenha uma visão mais ampla do ser surdo,

entender os aspectos linguísticos tão fundamentais para essa comunicação; saber sobre o

percurso histórico da população surda e, com isso, buscar refletir sobre o atual cenário

social no qual nos encontramos, entendendo os preconceitos que vivenciam e o estigma

que muitas vezes segue perpetuando informações errôneas da língua e de seus usuários;

entender as modificações educacionais ao longo do tempo e suas repercussões, as

fragilidades das tentativas de educar surdos como se fossem ouvintes, as atuais lutas

pelas escolas bilíngues, saber que o cliente pode ter tido seu desenvolvimento afetado

por não ter acesso à educação e que essa dificuldade vêm se somar às outras situações

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críticas que agravam a falta de qualificação profissional, com conseguinte desemprego

de parte desses cidadãos; conhecer o que eles falam ser a cultura surda, comportamentos

éticos, de valorização do ser surdo e de sua singularidade; juridicamente, tomar

conhecimento das principais leis e decretos, sobre questões trabalhistas, educacionais,

dos serviços de saúde que regem o nosso país e resguardam direitos e deveres da pessoa

surda. Saber sobre esses tópicos é avançar na atuação clínica, é desenvolver uma escuta

crítica e afinada com as diversas realidades e questões que envolvem a comunidade

surda.

É dessa escuta que falamos quando pensamos a escuta clínica na atitude

fenomenológica em psicoterapia fenomenológico-existencial. Uma escuta atenta aos

sentidos do ser e não só à sonoridade das palavras, mas a sua fluidez enquanto

linguagem. Como ressaltam Lima, Yehia e Morato (2009) escutar é “uma postura de

colocar-se disponível, aberto para acolher os sons e para algo mais (sentido) que se faça

presente na relação com o outro” (p. 180). Nesse sentido, falamos sobre a clínica de

inspiração heideggeriana no acompanhamento psicológico de pessoas surdas como uma

atuação baseada na noção de Dasein e, com isso, pensada nas condições existenciais

desse ser que está em experiência como um ser-com e ser-no-mundo. Por essas

questões, temos que ter essa compreensão mais ampla da vivência de ser surdo, trazer

sua historicidade para a reflexão clínica, para assim nos comunicarmos em uma língua

viso-espacial, em língua de sinais que pode ser adotada por pessoas surdas e ouvintes.

Ao longo desse estudo, vemos que as relações entre pessoas surdas e ouvintes

estão entrelaçadas e, em alguns momentos, se pensarmos historicamente o processo

educativo, os ouvintes assumiram o lugar de escolher como seria a vida de quem fala e

escuta de modo singular e por outra via. É sabido que o modelo normativo de quem

ouve guiou as estratégias reabilitadoras para que a fala de pessoas surdas fosse

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desenvolvida oralmente, nos serviços de saúde e escolares, ficando esta pessoa

desvalorizada em sua real condição (Sacks, 2010; Skliar, 2010; Bisol, Simini, & Sperb,

2008). O que temos, atualmente, é uma considerável separação entre aquele que é surdo

e o ouvinte, na qual vemos em alguns momentos, por parte das pessoas surdas, que o

ouvinte não pode aprender certos sinais e que tenta assumir o lugar de quem é surdo,

entre outras afirmações, que são compreensíveis em comparação ao processo histórico,

mas que precisam ser discutidas e esclarecidas, visando um melhor relacionamento

entre essas pessoas. Essa dualidade, ouvinte x surdo, evidenciou-se em alguns

momentos da psicoterapia, quando o cliente falava sobre suas relações amorosas e sobre

se sentir “perseguido” pelas pessoas ouvintes.

Em sua história, o cliente envolveu-se afetivamente com pessoas ouvintes e

surdas, por ora gostando mais de relações com pessoas ouvintes, mas, em outros

momentos, quando questionado, disse que a comunicação com pessoas ouvintes, para

ele, é mais difícil e que se sente mais compreendido e consegue conversar melhor com

quem também é surdo ou se comunica em Libras. A comunicação com algumas

namoradas ouvintes era insuficiente e básica, com trocas de mensagens por celular e a

realização de alguns gestos manuais. Quando era preciso um diálogo mais aprofundado,

inclusive, em momentos críticos vivenciados pelo cliente, como exemplo, após o

termino de uma relação com uma mulher ouvinte, o cliente não entendia bem o que ela

lhe dizia e passou a acreditar em algo que ele desconfiava acontecer, estar sendo traído.

Situação já tematizada nesse trabalho, mas que traz à discussão a complexa relação

surdo-ouvinte.

Em outro momento, quando trouxe mais intensamente os conflitos entre ser

surdo e ser-com pessoas ouvintes, já estava com um ano e seis meses de

acompanhamento psicoterápico. Nesse momento, ele abordou a temática do trabalho e

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de continuar desempregado, narrou que suspeitava não estar conseguindo emprego por

causa de um desentendimento ocorrido com o gerente de um trabalho anterior:

Eu trabalhava em uma fábrica, aí um dia eu não consegui entrar no trabalho.

Na recepção da empresa o meu cartão não passava e eu fiquei lá fora,

aguardando. Chegou o gerente, chamou-me para conversar e disse que eu ia ser

demitido... Eu não sei o motivo, acredito que ele pensou que eu roubei algo lá,

mas eu estava só trabalhando, eu não fiz isso... Em uma reunião ele contou para

todos, que estavam lá, que eu roubei e por isso estava demitido... eu não estava

na reunião, mas acho que ele disse, porque as pessoas passaram a me olhar

diferente. Ele não sabe Libras, mas tinha uma pessoa que sabia e nós

conversávamos. Em seguida eu fui trabalhar em um supermercado, isso no meu

último emprego, passei uns dois anos lá e fui demitido. Agora, estou todo esse

tempo sem conseguir trabalhar, acredito que as pessoas ouvintes pensam que eu

sou ladrão, por isso não me dão emprego. Eu percebo o olhar delas, como ficam

estranhas quando estou perto. Inclusive, há um tempo, eu fui à justiça e pedi

para eles verificarem se eu tinha algum processo ou registro de que sou

criminoso. Cheguei lá com o intérprete e eles olharam no computador, me

entregaram um papel, como resposta, no qual constava que eu não havia

cometido nada de errado.

Diante do seu relato, procurei compreender com ele o que havia acontecido em

seu trabalho, questionando as verdades que ele apresentava, como as relacionadas ao ter

certeza que o gerente havia falado dele em uma reunião. Percebi que essa busca de

ampliação da situação não possibilitou ao cliente lançar um novo olhar para essa

situação, sendo assim, deixei de lado a verificação dos fatos e, refletindo sobre as

implicações dessas vivências, permiti-me compreender em atitude fenomenológica os

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sentidos que se desvelavam em sua narrativa, como era para ele se sentir como alguém

que não conseguia um emprego e que se via como possível ladrão. Em atitude

fenomenológica, minha intenção, nesse momento e em outros de sua psicoterapia, foi

buscar escutar hermeneuticamente, no ser-com, ampliando a nossa compreensão na

trama dos sentidos narrados nessa e em outras histórias que se desvelaram nas sessões.

Nas palavras de Sapienza (2007):

A maneira como trabalhamos em terapia se dá como um compartilhar a

interpretação da facticidade daquela existência que temos junto a nós no

consultório. Interpretação aqui não quer dizer encaixar aquilo que o paciente traz

no referencial de uma teoria de psicologia. Quer dizer, diante do que ele traz,

tendo como horizontes, ao mesmo tempo, os existenciais e aquela história

particular, empenhar-se não só na explicitação do sentido do que aparece como

na ampliação desse sentido, na procura do que pode estar encoberto – pois o que

é se dá e se oculta – propiciando assim que o paciente possa alargar e aprofundar

a compreensão de como está sendo seu modo de existir. (p. 47)

Logo em seguida à exposição dessa situação, o cliente começa a trazer mais

informações que intensificam o desconforto e sentimentos que ele tem por algumas

pessoas ouvintes:

Tem outra coisa que eu ainda não falei a você. Sempre têm pessoas que ficam

me seguindo, onde quer que eu vá, sou seguido, inclusive quando venho aqui. Eu

não sei quem é, pois sempre são pessoas diferentes. Elas são ouvintes, e ficam

me olhando estranho, na parada do ônibus, na rua quando passo... em qualquer

lugar. Eu percebo que estão olhando para mim, desconfiadas. Algumas tentam

disfarçar, outras, quando percebem, mudam o caminho delas... Eu já perguntei

a algumas pessoas o que elas queriam, eu acho que elas acreditam que eu sou

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ladrão, por isso ficam me seguindo. Eu não sei se vão me prender. Nesse tempo

todo a polícia nunca foi lá em casa. Faz muito tempo que percebo isso, desde

que eu estou sem trabalhar e acredito que não me dão emprego porque pensam

que eu roubei.

Se essa experiência fosse analisada por outra perspectiva da psicologia, poderia

ser tomada como um delírio, uma ideação persecutória, como Solé (2005) aborda, ao

fazer uma leitura psicanalítica de vivências parecidas com essa, nas quais o cliente

surdo relata seus conflitos com pessoas ouvintes. Realmente, essa é uma questão que

precisa ser investigada, e foi o que fiz ao longo dos atendimentos, já que o cliente fazia

uso de psicotrópicos quando chegou para o acompanhamento e ainda, durante algum

tempo, parando posteriormente por escolha pessoal. A reflexão que faço sobre o que foi

narrado é pensando nas restrições impostas à sua liberdade enquanto Dasein, que

encontra inúmeras dificuldades para se fazer presença no ser-aí, na situação

desalojadora de estar com sua fala – linguagem ontológica, limitada diante da escuta

ofertada pelos outros entes, com os quais exerce o ser-com, e que não são surdos ou não

sabem sua língua. Também penso no como o seu pouco nível de escolarização, ou seja,

as poucas oportunidades de conhecer e compreender em maior profundidade o mundo

do qual faz parte contribuíram para que sua condição existencial de compreender não se

realizasse satisfatoriamente em sua experiência fática. Ao ser privado de informações

como as das descobertas científicas, a falta de algumas explicações do mundo natural

podem favorecer fantasias explicativas desse mundo, junto à construção de uma

realidade que pode não condizer com o que realmente vivenciamos, o que pode

ocasionar sofrimento, em algum momento, em que sua verdade seja questionada e

colocada à prova perante os saberes disseminados pelo mundo científico.

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Para Heidegger (1927/2012) “toda verdade é relativa ao ser da presença na

medida em que seu modo de ser possui essencialmente o caráter de presença (p. 298)”,

desse modo, na clínica fenomenológico-existencial, entendemos a verdade como uma

possibilidade do Dasein desvelar sentidos, elaborando essa sua verdade e ampliando a

compreensão de sua existência, do que lhe é possível na abertura do ser enquanto

presença, considerando, também, que essa compreensão diz muito da trama de sentidos

de sua história. É essa verdade que precisa ser escutada na clínica, o desvelar

hermenêutico dos sentidos, como nos mostra Sá (2009):

Quanto mais livres somos para a escuta, mais temos a impressão de que

perspectivas aparentemente antagônica, no fundo, têm quase sempre suas razões

e revelam aspectos possíveis da situação. O problema se encontra mais na

limitação e na unilateralidade das verdades do que em sua inadequação a uma

suposta realidade objetiva. (p. 73)

Por estar próximo ao cliente, como psicoterapeuta, e por escutar e falar em

Libras, percebo que, mesmo eu sendo ouvinte, diferencio-me dos demais e sou

considerado como uma pessoa de referência para sua vida, alguém que ele pode confiar

para falar sobre seu sofrimento e que pode auxiliá-lo em momentos difíceis. Acredito

que a escuta desenvolvida com base na atitude fenomenológica, viabilizada por

intermédio da comunicação em sinais, nos aproximou e contribuiu para que esse Dasein

se sentisse acolhido e confortável, livre em seu modo de ser, para poder abordar as

temáticas mais delicadas de sua história.

No que diz respeito às narrativas desenvolvidas em psicoterapia

fenomenológico-existencial, sabemos que psicólogo e cliente estão em comunicação,

sendo ela uma das condições originárias do ser-com do Dasein. Enquanto ser que existe

no aí, junto aos demais, a fala do cliente não é somente a anunciação de algo que espera

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por entendimento, mas diz respeito ao desenrolar de uma compreensão que é sentida em

sua intensidade por todos os envolvidos. Nessa situação, o psicólogo também é um ser-

com que faz parte dessa disposição e compreensão sobre a qual o cliente relata. Como

nos lembra Heidegger (1927/2012), “comunicação nunca é a transposição de vivências,

por exemplo, de opiniões e desejos, do interior de um sujeito para o interior de outro

sujeito. A copresença já se revelou essencialmente na disposição e compreender

comuns” (p. 225).

Por se sentir escutado e compreendido, o cliente solicitou ajuda, em alguns

momentos, para estabelecer comunicação com outras pessoas ouvintes. Pediu-me que o

ajudasse a elaborar uma carta em português para uma namorada, em outro momento, fui

solicitado a ler uma mensagem escrita em português por uma pessoa ouvinte. Quando

ele quis fazer um cartão para uma namorada ouvinte e pediu minha ajuda, contribuí

escrevendo em português o que ele me falava em sinais. Procurei trabalhar com ele

levando-lhe a compreender o que realmente estava escrito em suas correspondências,

saber o que diziam essas mensagens que recebia e como era para ele recebê-las, seja

uma declaração de amor ou até mesmo uma carta na qual a namorada rompia o

relacionamento que estavam construindo.

Além dessas mensagens de caráter afetivo, também surgiram alguns

documentos, como exemplo os da igreja a qual frequenta e o documento judicial que ele

havia solicitado, registros significativos ao seu processo psicoterápico. Todos esses

escritos se encontravam em português e precisavam de tradução para a língua de sinais,

e foi isso que o cliente buscou ter em sua língua o que estava recebendo originalmente

em outra e que surgiam como questão para o seu ser. Essa é uma demanda que também

cabe ao psicoterapeuta de pessoas surdas, auxiliar em situações mais delicadas, como

essas que envolvem relações amorosas e íntimas. São situações que um intérprete de

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Libras poderia fazer, mas penso que o psicólogo também pode realizar quando

solicitado, quando essas ações não puderem ser realizadas por outra pessoa, um familiar

ou amigo que saiba Libras e, principalmente, no momento em que fizer sentido para o

processo clínico.

Nosso percurso, na psicoterapia fenomenológico-existencial, no atendimento de

uma pessoa surda, se deu diante dessas questões apresentadas ao longo desse capítulo.

Caminhamos na atuação clínica durante esse tempo, no qual o cliente pôde tematizar

suas questões, falar sobre seu sofrimento, ser escutado em sua língua, no desvelar de

seus sentidos, mas, assim como nos outros atendimentos em psicoterapia, chega um

momento no qual é preciso pensar na possibilidade do encerramento do processo

realizado. Encerramento que é pensado como maior compreensão de algumas questões e

que não se encerra por completo, já que o Dasein é um ser de abertura que vive sua

indeterminação no existir cotidiano, nunca podendo concluir, fechar por completo sua

existência em psicoterapia. Não se trata de alcançar objetivos que visem à adequação do

humano ou o alcance de sua máxima eficiência, crítica já feita por Heidegger

(1954/2010) ao pensar o uso da técnica modera como exploração de algo, nesse caso,

nós podemos pensar na exploração do Dasein em seu modo de ser-no-mundo.

No tocante a clínica fenomenológico-existencial, diferentemente da atuação

técnica moderna, não cabe conceber o humano como um produto a ser trabalhado por

técnicas de aperfeiçoamento para que se chegue a um fim desejado que corresponda a

eficiente adequação do ser ao mundo. Agindo assim, tomaríamos o Dasein como um

ente dado e responderíamos apenas as adequações técnicas exploratórias dos clamores

sociais, encobrindo os sentidos do ser e sua constituição enquanto abertura, realização

que não caberia ao nosso fazer clínico. Por outro lado, a técnica para o pensamento

heideggeriano, refletida na psicoterapia fenomenológico-existencial, diz respeito a sua

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origem grega, enquanto téchne (τέχνη), ou seja, a arte do homem de permitir emergir

aquilo que vem de encontro a sua presença e que produz verdades (alétheia) (Pompeia

& Sapienza, 2011; Sá, 2002a). É a busca da modificação de um pensamento meramente

calculante, que analisa decompondo as partes para se chegar a um fim, para um novo

modo de pensar fenomenológico-existencial, o meditante, que se lança na compreensão

do ser. Como exposto por Sá (2004) “ao contrário do pensamento calculante.... que tudo

reduz à dimensão de objeto de representação, o pensamento que medita nos solicita uma

atenção livre de qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identificação a um

aspecto exclusivo das coisas” (p. 44).

Na meditação sobre o encerramento, lidamos com o que já foi tematizado ao

longo das sessões e levamos o cliente a refletir sobre dar continuidade ou encerrar a

psicoterapia. Nessa escolha, nos posicionamos em hermenêutica existencial, pensando

juntos o como estamos e o que pode ser possível nesse momento de sua vida. Sendo

assim, algumas questões são retomadas e trazemos alguns pontos norteadores de um fim

que se anuncia, mas que até o momento da conclusão desse estudo não foi realizado.

Pensamos sobre o como ele está se apropriando de sua história, de suas escolhas e o

como lida com a impossibilidade de realizar tudo que se mostra em seu horizonte do

poder ser. Percebemos que, entre suas escolhas, temos a de seguir em um

relacionamento com uma nova namorada ouvinte, que não sabe Libras e não mostra

disponibilidade para aprender essa língua, essa escolha se fez mesmo considerando as

possíveis inquietações que essa dificuldade na comunicação possa trazer para o

relacionamento. Também nos deparamos com a escolha de não se aposentar por

invalidez, contrariando a opinião de sua família e seguindo com seu projeto de encontrar

um novo trabalho, já que essa é uma questão que o realiza enquanto pessoa.

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Quando tocamos na queixa que o trouxe ao acompanhamento, falamos sobre os

momentos nos quais tentou suicídio, com isso, permitimos nos deparar com o

reencontro e compreensão dessa experiência constituinte de sua história, mas que nesse

momento pareceu distante do atual lugar no qual o cliente se encontra. Esse seu outro

modo de cuidar da vida nos mostra que, nesse momento, o cliente elaborou suas

vivências de sofrimento que de algum modo se integravam à sua busca de abandono do

existir. No espaço clínico, também foi discutido com o cliente sobre os lugares de

ampliação de sua socialização, já que trazia tantas vivências de solidão e isolamento,

conversamos sobre sua inserção em uma equipe de futebol e sua participação em uma

associação de surdos, escolhas feitas pelo próprio cliente, exercendo mais

satisfatoriamente o seu ser-com. Foi nessa rede de apoio que as relações, que antes

estavam afastadas, foram resgatadas e o cliente se permitiu ser-com esses outros que

também compartilham de sua condição existencial, ser surdo, escutando visualmente e

falando manualmente.

Como fomos percebendo nas sessões, o cliente passa a ter outros planos para sua

vida, busca realizar outras possibilidades para o seu ser. Ele quer seguir jogando

profissionalmente em seu time de futebol, que representa a associação de surdos de sua

cidadee também quer voltar a estudar, para dar continuidade ao seu crescimento pessoal

e estar mais preparado, inclusive, para retornar ao mercado de trabalho. Já eu, enquanto

psicoterapeuta fenomenológico-existencial, respeito suas escolhas, mesmo quando

posso considerar que outra opção seria mais apropriada, como, por exemplo, a que diz

respeito à escolha do cliente de se relacionar amorosamente com pessoas que não lhe

compreendem linguisticamente, mas, considerando que só quem pode realizar suas

escolhas e dar continuidade na concretização de seus projetos é o próprio cliente,

reconheço que cada Dasein é responsável por sua existência. Nesse sentido, não cabe ao

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psicoterapeuta escolher por seu cliente, mas em escuta compreensiva, disposta em

atitude fenomenológica, cuidar desse ser enquanto preocupação antepositiva libertadora.

Como nos mostram Feijoo (2000; 2011); Sá (2002a; 2002b; 2009; 2010);

Pompeia e Sapienza (2011) e Sapienza (2004; 2007), em psicoterapia fenomenológico-

existencial, cliente e terapeuta percebem uma ampliação da liberdade e maior

compreensão das relações de cuidado que essa existência passa a desenvolver enquanto

Dasein, momento que nos leva a pensar no encerramento, no sentido de reconhecer que

o ser se encontrou, durante alguns momentos, com suas questões e nesse desvelar de

sentidos pôde resgatar sua liberdade e realizar alguns projetos existenciais. Configura-se

como um final que possibilita um retorno, em algum outro momento de sua vida, caso o

cliente sinta a necessidade novamente de questionar o seu ser-aí, pois, como já falamos,

o Dasein como abertura nunca se completa e vive lançado em angústia. Encerramos

com as palavras de Pompeia e Sapienza (2011) ao nos lembrar que nossa atuação clínica

para com o Dasein, que nos solicita escuta em atitude fenomenológica, caminha para:

Ampliar sua liberdade, para que ele possa se aproximar da sua história e fazer

dela, propriamente, a “sua” história, na qual são acolhidos os fatos que já se

deram, o que está acontecendo agora, e que se abre para o que pode vir a ser; em

que cabem sua realidade, suas perdas, seus sonhos. Assim, não o passado, não o

presente, não o futuro, não a conduta, não o sintoma, mas a totalidade da sua

história: é essa a nossa referência na clínica. (p.159)

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva fenomenológico-existencial, por trabalhar com o reconhecimento

da abertura do humano e de sua característica essencial, a indeterminação do ser, deve

considerar a possibilidade de que uma pessoa surda, que fala e escuta de modo diferente

do que é conhecido como falar e escutar, que se comunica em uma língua que utiliza

sinais expressos principalmente por suas mãos, pode, sim, necessitar de

acompanhamento psicológico. Nesse sentido, esse estudo se desenvolveu buscando

compreender a escuta clínica na atitude fenomenológica no atendimento psicoterápico

de uma pessoa surda. Atendimento que serviu de base para desvelar algumas

possibilidades de atuação clínica nesse contexto, auxiliando-nos nas reflexões de como

essa prática se dá na experiência do psicoterapeuta.

Escolhemos, ao longo dessa pesquisa, nomear como “pessoa surda” o ser que,

assim como os demais, traz em sua alteridade uma condição singular, com aspectos

linguísticos específicos. A população surda brasileira prefere ser reconhecida pelo termo

“surdo”, no campo da biomedicina, temos a escolha do termo “deficiente auditivo”. Já

nós, por ressaltarmos que o Dasein é um ser singular e não poder ser enquadrado em um

único conceito, elegemos nomear como “pessoa surda”, não enfatizando assim somente

a característica da surdez, mas mostrando que falamos de um humano, Dasein, ser,

independente de sua condição, reconhecido como igual em seu modo de ser singular, e

que, nesse caso, comunica-se em uma língua específica, a língua de sinais, que é

realizada viso-espacialmente.

A clínica com pessoa surda depende das particularidades de cada caso

específico. Temos que buscar conhecer como essa pessoa exerce o seu ser-com em

disposição, compreensão e linguagem, para pensar a atuação clínica. Esse conhecimento

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faz-se necessário devido às diversas condições de ser pessoa surda, já que temos pessoas

oralizadas, pessoas que nasceram surdas e não sabem Libras, outras que nasceram

surdas e sabem essa língua, temos as que se tornaram surdas em outro momento de sua

vida, também temos as que fazem uso de aparelhos auditivos ou implantes cocleares,

entre outros modos das pessoas surdas exercerem sua existência. Sendo assim, não

podemos dizer ser somente por intermédio da Libras que uma pessoa será escutada na

clínica fenomenológico-existencial. Antes disso, a atitude fenomenológica contribui

para a compreensão do ser surdo como Dasein e traz necessidades específicas, também,

para o psicólogo ouvinte poder realizar esse atendimento. Essa questão pode demandar

desse profissional o seu preparo para se comunicar em língua de sinais, assim como

demanda que compreenda a complexidade dos outros aspectos que estão relacionados às

pessoas surdas, questões linguísticas, educacionais, sociológicas, da área da saúde e de

outros campos do saber.

No tocante as particularidades desse atendimento, vimos que uma pessoa surda

estabelece uma relação linguisticamente diferenciada da realizada pela pessoa ouvinte.

Ela está no mundo em uma experiência visual e é pertinente que a clínica seja pensada

também como um espaço inclusivo e acessível. No ambiente de trabalho, é preciso

realizar mudanças estruturais e relacionais, pensar sobre os recursos que podem auxiliar

o psicólogo, por exemplo, o uso da videogravação. Ele deve buscar facilitar a

experiência visual de seu cliente, com a utilização de placas, fotos, revistas na sala de

recepção, para que ele se sinta acolhido e valorizado. O psicoterapeuta também deve

conversar sobre a realização desse atendimento com os outros profissionais e

funcionários do local onde atua, levando informações e esclarecendo dúvidas. Essas

questões, assim com outras que visem receber igualmente um cliente surdo e um

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ouvinte, são necessárias ao atendimento psicoterápico fenomenológico-existencial de

pessoas surdas.

Desenvolvendo essa atuação, possibilitamos que a população surda tenha acesso

aos serviços psicológicos e passe a conhecer as possibilidades dessa profissão.

Rompemos com o distanciamento existente na psicologia entre práticas clínicas e a

escuta de pessoas surdas, iniciando com a discussão sobre a relevância dessa

modalidade de atenção. Atuamos em respeito ao Código de Ética do Psicólogo, que nos

pede compromisso social, sendo assim, com envolvimento político que responde as

demandas sociais contemporâneas. Essa é uma postura clínica que se faz política, pois

vemos que o fazer tradicional dessa profissão, a psicoterapia, passa a se implicar com

questões que ficaram à margem das discussões dessa ciência, ao longo do

desenvolvimento da história da psicologia brasileira.

Na realização desse atendimento, deparamo-nos com algumas limitações

impostas pela psicologia e no que diz respeito às questões do psicoterapeuta. Como

discutimos, a psicologia esteve distante dessa temática durante muito tempo, sendo

assim, não encontramos materiais que embasem a realização desse fazer, que respalde

teórica e praticamente essa atuação. É preciso construir esse conhecimento com leituras

de diversas áreas, da filosofia, educação, linguística, fonoaudiologia, medicina, para

refletir nossa atuação clínica. Faltam referenciais teóricos que pensem em profundidade

a psicoterapia de pessoas surdas, questão que também toca o campo da abordagem

fenomenológico-existencial, na qual não se encontram estudos dessa natureza. Essas

limitações repercutem na atuação do psicoterapeuta que não está sendo preparado para

lidar com tais demandas. Percebemos que é preciso fomentar a discussão desse tema no

contexto dos cursos de psicologia, estruturando grupos de extensão, pesquisa e estudo

que possam dar amparo à nossa atuação, formando os futuros psicólogos com uma visão

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ampla no tocante à essa questão. E, principalmente, habilitar o psicólogo para o manejo

da prática clínica com pessoas surdas.

Não é porque a clínica com pessoas surdas é realizada em outra língua que esse

atendimento deve ser concebido como diferente dos demais processos psicoterápicos. A

duração das sessões, cobrança de honorários, estabelecimento do contrato terapêutico,

acordos – como o relacionado ao momento de entrar em sala para ser atendido e o

contato que precisa ser estabelecido para realizar desmarcações ou remarcações, seja

auxiliado por outra pessoa ou com o envio de mensagens de texto de um aparelho

celular – assim como outras questões, precisam ser abordadas como tratamos em um

atendimento regular de clientes não surdos. Dentre o que diz respeito, especificamente,

ao atendimento de pessoas surdas, aponto para a necessidade de estar em contato com a

família, mesmo em atendimentos de adultos, devido às questões já mencionadas. Sobre

a utilização de videogravação, esse pode ser um recurso interessante e que dará suporte

ao psicólogo, para que possa recorrer quando tiver alguma dúvida, principalmente nos

momentos iniciais do atendimento.

No que diz respeito à duração de todo o processo, diferentemente de Solé (2005)

que diz ser preciso um tempo maior de psicoterapia do que com cliente ouvintes, na

perspectiva fenomenológico-existencial não podemos determinar períodos para

acompanhar determinados casos e pessoas. Trabalhamos com as inúmeras

possibilidades de vir a ser, que o Dasein apresenta em sua existência, sendo assim, não

cabe traçar metas relacionadas ao período em acompanhamento, essa é uma questão que

vai se desenrolando ao longo do processo, atenta aos conteúdos que vão sendo

trabalhados, as mudanças que ocorrem na vida do cliente e, quando for o momento, em

acordo entre as partes envolvidas, pode-se pensar no encerramento da psicoterapia,

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nunca em um fechamento, pois as questões não estão concluídas, já que o Dasein é um

ser de abertura e está sempre em liberdade para vir a ser.

Para o psicólogo, é fácil não ter que falar em libras, é cômodo permanecer no

que já está dado, inclusive querer que a pessoa surda aprenda a se comunicar como a

psicologia está acostumada a ouvir. Nesse modo de não escutar as solicitações do

mundo, essas questões ficam distanciadas das práticas psicológicas contemporâneas.

Podemos afirmar que o difícil é se disponibilizar a transpor o já dado e investir,

linguística e afetivamente, em aprender uma nova língua que escapa ao modo

convencional de comunicação, em um novo modo de escuta, de ser-com esse outro

estrangeiro, assim como também se é.

Pensamos no Dasein como igual e múltiplo, igualando-se no seu modo

constitutivo de ser enquanto abertura, indeterminação, livre, ser-com/ -aí/ -no-mundo/ -

para-a-morte, compreensão, disposição e linguagem. Diferindo-se nas infinitas

possibilidades de exercer sua existência, com suas escolhas impróprias e próprias, seus

modos de cuidado de si, do outro e do mundo, do vivenciar a angústia, entre outras

questões, inclusive as que dizem respeito aos modos de ser em linguagem. Nesse

sentido, pensamos em uma clínica em disposição, compreensão e linguagem, em

abertura, livre, lançada em possibilidades, uma clínica que é realizada com a

consideração do ser enquanto Dasein e, desse modo, sua arte representa sua essência

que é vir a ser.

Com esse relato, percebemos que, atualmente, é difícil para uma pessoa surda

chegar até um atendimento psicológico, assim como para ter acesso aos outros espaços

considerados constitucionalmente como de direito de todo e qualquer cidadão. O

psicólogo, ao se deparar com esse tipo específico de atendimento, é questionado, em seu

fazer, a repensar o que está presente em sua atuação clínica, que é o processo de escuta

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dos sentidos. Junto ao cliente, precisa ouvir com os olhos e falar com as mãos. No

tocante à atuação fenomenológico-existencial, acreditamos ser preciso aprofundar a

compreensão da escuta na comunicação em sinais, na premissa de devolver ao cliente o

cuidado de si, já que muitas vezes esse cuidado está delegado à outra pessoa, lugar esse

que o psicoterapeuta não pode assumir. Esse profissional deve facilitar a tematização de

sentidos para permitir ao cliente falar de sua experiência, trazendo suas questões,

demandas, dúvidas e projetos, para que assim o encontro terapêutico seja abertura para

outras possibilidades no horizonte histórico de sua existência.

Penso que na psicoterapia fenomenológico-existencial não podemos prejudicar a

compreensão de sentidos do Dasein, temos que auxiliar o cliente surdo em seu processo

de desvelamento dos sentidos, tematizando suas questões e dialogando de forma

compreensiva, ou seja, falando em sua língua. Trago essas questões para poder pensar

no meu papel enquanto ser-com, lançado nesse mundo indeterminado e que trouxe ao

meu encontro uma nova demanda, escutar em uma língua diferente da minha, sobre a

qual eu antes não tinha conhecimento como possibilidade de comunicação em

psicoterapia. A psicologia não me apresentou essa modalidade de atuação ao longo da

graduação, como realizar essa escuta singular de palavras que são sinalizadas. Embora

seja esse o cenário no qual comecei, fui buscando melhor entender essa prática clínica,

discutindo o que venho vivenciando desde meu último ano de graduação e, mais

recentemente, nos estudos realizados durante a pós-graduação lato sensu e na pesquisa

atual do mestrado. Sendo assim, tenho a oportunidade de também construir esse novo

fazer, o que requer muita reflexão e discussão da prática clínica. Não escutar esses

clientes é tornar-se surdo diante das alteridades do ser-com.

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