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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO LUCAS SAMUEL DIAS LOPES O FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE DA DEMOCRACIA EM CASTORIADIS NATAL/RN 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

LUCAS SAMUEL DIAS LOPES

O FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE DA DEMOCRACIA EM CASTORIADIS

NATAL/RN

2020

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LUCAS SAMUEL DIAS LOPES

O FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE DA DEMOCRACIA EM CASTORIADIS

Monografia apresentada ao curso de graduação

em Direito, da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como requisito parcial à

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Adamo Perrucci.

NATAL/RN

2020

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AGRADECIMENTOS

Ao Senhor Deus, por ter me amado de tal maneira (Jo 3:16).

A meus amados pais, Daniel e Roseane, por nunca terem desistido e por permanecerem

lutando a batalha da vida.

À minha amada irmã Sara, por sua amizade e confiança.

À querida Wânia, por sua doçura e afeto e por definir a palavra amizade.

Aos meus preciosos amigos, de perto e de longe, em especial: Júlia, Iran, Suzana, Jussier

e Marcos, companheiros nessa caminhada, com quem posso sempre contar.

A todos os professores que tive, em especial àqueles que muito me inspiraram ao longo

destes cinco anos de graduação, minhas homenagens. A todos, cumprimento na pessoa

do Prof.º Adamo Perrucci, meu orientador nesta empreitada: muito obrigado pelos

ensinamentos, pela dedicação, pelo exemplo, pela paciência e prontidão.

A todos aqueles que contribuíram na minha jornada até aqui, minha gratidão sincera,

ainda que insuficiente.

À sociedade brasileira, uma singela contribuição pelo financiamento dos meus estudos,

este meio profundamente transformador de vidas e futuros.

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RESUMO

O imaginário radical assume em Castoriadis uma posição central na reflexão da sociedade e da

história, tomados pelo autor como sendo uma só e a mesma coisa: o social-histórico. Fonte tanto

da criação quanto da alienação, o imaginário é a capacidade, do indivíduo e do coletivo anônimo

que o social-histórico é, de tratar o que não é como se fosse. Em elucidar o imaginário – e as

instituições às quais geralmente confere uma aparência extra-social – está a autonomia indivi-

dual e social enquanto posição sempre provisória de uma nova relação com o mundo humano,

pela qual explicita-se sujeito e sociedade como autocriação e autoalteracão, como instituintes

de si mesmos. É nesse sentido que a política e a democracia aparecem como um projeto revo-

lucionário: como práxis de autonomia, como reorganização da sociedade, como uma nova re-

lação com o tempo. Através de pesquisa bibliográfica, o presente trabalho procura entender o

fundamento da criação e da autonomia em Castoriadis, para então compreender os impactos de

suas formulações sobre os arranjos institucionais formais das sociedades contemporâneas, no-

meadamente, a política e a democracia. Ao final, sustenta-se que somente um empreendimento

de democracia radical consubstancia a forma ou a expressão política de uma sociedade explici-

tamente instituinte, autônoma.

Palavras-chave: Autonomia. Liberdade. Democracia. Política. Social-histórico. Castoriadis.

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ABSTRACT

The radical imaginary assumes in Castoriadis a central position in the reflection of society and

history, taken by the author as the same thing: the social-historical. Source of both creation and

alienation, the imaginary is the capacity, of the individual and anonymous collective that the

social-historical is, to treat what is not as if it were. In elucidating the imaginary – and the

institutions to which it usually gives an extra-social appearance – is individual and social auto-

nomy as an always provisional position of a new relationship with the human world, through

which the subject and society are explained as self-creation and self-alteration, as instituting

themselves. It is in this sense that politics and democracy appear as a revolutionary project: as

the praxis of autonomy, as the reorganization of society, as a new relationship with time.

Through bibliographic research, the present work seeks the foundation of creation and auto-

nomy in Castoriadis, to then understand the impacts of its formulations on the formal instituti-

onal arrangements of contemporary societies, namely, politics and democracy. In the end, it is

argued that only an undertaking of radical democracy embodies the form or political expression

of an explicitly instituted, autonomous society.

Keywords: Autonomy. Freedom. Democracy. Politics. Social-historical. Castoriadis.

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SUMÁRIO

Introdução, p. 7

1. Breve contexto histórico sobre o pensamento da autonomia e da liberdade, p. 9

2. Castoriadis rumo à ilha desconhecida, p. 17

3. Democracia radical: a forma política da sociedade instituinte, p. 27

4. Considerações finais, p. 37

Referências, p. 39

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INTRODUÇÃO

Autonomia, liberdade, igualdade, justiça, bem, mal, sociedade, história, democracia, re-

pública. Esses são os temas que essencialmente têm orientado as preocupações da reflexão fi-

losófica ao longo de mais de dois mil anos, desde quando surgiu sob a forma de uma interroga-

ção irrestrita e arrazoada entre os gregos antigos. Tais preocupações são especialmente retoma-

das por Castoriadis, autor basilar do presente trabalho, na profunda investigação que empreende

sobre o que chamou de “social-histórico”, para repensar a atividade humana como sendo emi-

nentemente poiética, criadora. Nesse vasto percurso rumo à Ilha Desconhecida, assim denomi-

nado em face da aproximação aqui feita entre o autor e o homem que foi à porta do rei pedir

um barco, no “Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago, Castoriadis busca romper com

o postulado da determinidade como paradigma de tudo, de tudo o que é ou pode ser pensado.

Assim, aponta para a imaginação radical, presente tanto no sujeito quanto no social-histórico,

como fonte tanto da criação quanto da alienação ou heteronomia.

Nesse contexto, a autonomia é estabelecida como posição de uma nova relação entre o

imaginário (e as funções do inconsciente) e a atividade consciente do sujeito que busca elucida-

los e explicitá-los. Esse complexo processo-constante-provisório de elucidação e explicitação

consiste senão em elucidar e explicitar a conformação social-histórica, que, integrante mesmo

do sujeito, o instaura como sujeito social e histórico, como este sujeito e como este sujeito aqui,

com estes hábitos, comportamentos, rotina, cultura etc.. Num aspecto prático, essa permanente

tensão entre o instituído, aquilo que é recebido por herança social-histórica, e o instituinte, en-

quanto empreendimento criador de uma novidade não trivial, consistirá na formulação por Cas-

toriadis de um projeto que chamará de revolucionário, mas não na acepção marxiana. Revolu-

cionário, em razão de recolocar a criação autônoma, isto é, a práxis de autonomia individual e

social como o potencial inesgotável, insondável da democracia e da filosofia, ao mesmo tempo,

portanto, em que o afasta da insistência bastante comum, porém factual e teoricamente impos-

sível (pelo menos da maneira como Castoriadis concebe a teoria), de pressupor ao agir um saber

total ou absoluto do objeto do fazer.

É a partir dessa elaboração que o presente trabalho busca alcançar seus objetivos: em

geral, entender o fundamento da criação e da autonomia em Castoriadis, para, de maneira mais

específica, compreender os impactos de suas formulações sobre os arranjos institucionais for-

mais das sociedades contemporâneas, nomeadamente, a política e a democracia. Tais impactos

são avaliados não de modo normativo, como que a partir de um modelo do qual se deduz ou se

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poderia deduzir determinadas prescrições, mas de um modo crítico muito particular, certamente

histórico e sociológico, todavia também político, prático.

Diante dos desafios enfrentados pela humanidade hoje, com sociedades multiculturais,

populosas e densamente urbanas e um ritmo cada vez maior e mais destrutivo do consumo e da

consequente produção de toda sorte de resíduos – cujos efeitos podem ser vistos, por exemplo,

na degradação sem precedentes de todos os ecossistemas, sejam aquáticos ou terrestres –, es-

pera-se que a discussão aqui proposta contribua de alguma forma para despertar uma reflexão

urgente, crítica, lúcida – e por que não sincera – sobre os atuais modos de organização das

sociedades, sobre o papel de suas instituições, sobre seu passado, presente e o futuro que se

deseja. Trata-se de esperança, de desejar e buscar um mundo melhor. Um mundo onde não se

morra de doenças evitáveis, em boa parte advindas da falta de saneamento básico. Um lugar

onde não se morra de fome, de sede, de desnutrição, onde as crianças pelo menos aprendam a

ler, a escrever, a fazer contas simples de matemática. Onde, enfim, a dignidade seja o norte,

também o começo e o meio.

Assim, o trabalho é organizado em três capítulos. No primeiro, faz-se uma breve incur-

são sobre a evolução do pensamento da liberdade e da autonomia desde o advento da época

moderna até a contemporaneidade, tentando-se demonstrar como ocorreram a interação e as

discussões entre as diversas vertentes teóricas em torno do tema. No segundo capítulo, dedicado

ao pensamento de Cornelius Castoriadis, busca-se apresentar os principais fundamentos de suas

reflexões, sobretudo, a partir da obra “A instituição imaginária da sociedade”. Com efeito, au-

tonomia, alienação, criação, determinidade, lógica conjuntista-identitária (enquanto substrato

do legein e do teukhein), social-histórico e significação imaginária social aparecem como ele-

mentos centrais. Na terceira parte do trabalho, a democracia, seu surgimento, seu significado,

seus potenciais, seus problemas, seus dilemas, o modo como tem se apresentado hodiernamente

são os assuntos primordiais. Esforça-se para lançar ou reavaliar suas bases teóricas, de tal forma

a permitir um “retorno” realmente substancial a toda a densidade contida na pergunta: como é

possível ser autônomo e, portanto, dar a si mesmo uma lei de cuja formulação e deliberação não

se participou?

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1. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO SOBRE O PENSAMENTO DA AUTONOMIA E

DA LIBERDADE

A autonomia é o principal tema do pensamento moderno. Na verdade, mais que isso: é

seu projeto fundamental, voltado para a emancipação do sujeito, no sentido da liberdade. Em

outras palavras, a autonomia, então concebida enquanto autêntica manifestação de uma subje-

tividade racional autorreferente – a faculdade de dispor do próprio existir, de direcioná-lo con-

forme aos fins estabelecidos por si e para si mesmo –, tornou-se o fundamento do agir livre.

Variados foram os percursos pelos quais os modernos, iniciando em Descartes e culmi-

nando em Kant, empreenderam esse projeto. Não obstante, os une o fato de terem comparti-

lhado uma visão radical acerca da razão, vista, no âmbito da moralidade, como eixo exclusivo

de articulação da ideia de autonomia e de liberdade. Pode-se dizer seguramente que o resultado

dessa conjuntura é o individualismo1, enquanto “ideologia moderna do homem e da sociedade”2

cuja visão do humano plenamente consciente de si, “ser moral independente, autônomo, [...]

que veicula os nossos valores supremos”2, sendo, ele próprio, “o valor supremo”2, não raras

vezes, tende a deslocá-lo de suas dimensões concretas, sociais e históricas.

Preocupado com esse excessivo isolamento da subjetividade em relação à coisa pública

e à vida compartilhada, Hegel – ainda que procedendo, como os modernos, a um modo de

pensar sempre alicerçado sobre irrestrita confiança na razão3 –, retoma o ideal grego do hori-

zonte da Pólis para repensar o exercício da liberdade, mas desta vez vinculado à intersubjetivi-

dade. O pensamento hegeliano inaugura, assim, de maneira disruptiva4 à modernidade, a cha-

mada “filosofia do reconhecimento”, por entender a autonomia e a liberdade a partir do universo

dos significados compartilhados na coletividade. Por esse motivo, é considerado por muitos

como um pensador já contemporâneo.

Os pressupostos de autonomia e de liberdade constituem um importante legado do pen-

samento moderno acerca dos quais, a despeito de suas diferentes formas de elaboração, e sem

embargo das reações de profunda desconfiança engendradas por inúmeros e ferrenhos críticos

1 Termo tomado, aqui, sem a corrente qualificação pejorativa ou depreciativa de “egoísmo”; deve ser lido como

sinônimo de “subjetividade exacerbada”, como que deslocada de uma dimensão valorativa compartilhada no es-

paço público e intersubjetivo. Mais tarde, a interlocução com a modernidade apontará os “mal-estar”, na definição

de Charles Taylor, porventura causados pelo individualismo. Entre eles, o egoísmo e o narcisismo. 2 Dumont, 1992, p. 35. 3 “Contudo, o retrospecto teórico sobre o modelo teórico do jovem Hegel torna evidente também que suas reflexões

devem parte de sua força a pressupostos da razão idealista, os quais não podem ser mantidos sob as condições do

pensamento pós-metafísico” (Honneth, 2003, p. 12). 4 Por todos, cf. ibid., p. 37 ss..

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da modernidade – seja, por exemplo, quanto ao ideal iluminista de progresso na história, ao

status da razão ou ao “universal” ou “absoluto” –, não se pode abrir mão legitimamente. Por

isso, na atualidade, diferentemente daqueles críticos “pós-modernos”5, muitos autores procu-

ram repensar a herança moderna não somente de modo crítico como também propositivo, isto

é, valorizando-a e reconduzindo-a a um novo projeto, ainda de autonomia e ainda de liberdade,

porém adequado às imensas, complexas e profundas transformações dos séculos que se suce-

deram.

Discorrendo sobre “esse enorme efeito de sucção do pensamento da autonomia”6, em

sua obra mais recente, “O direito da liberdade”, Honneth analisa como essa representação pro-

duz uma “associação sistemática entre o si mesmo individual e o ordenamento social”6, de ma-

neira que a consequente “ideia da liberdade individual suscita uma ligação entre as duas gran-

dezas de referência: sua representação do que é bom para o indivíduo contém ao mesmo tempo

indicações para a instituição de um ordenamento social legítimo”6. Eis aqui o cerne da ideia de

justiça, qual seja sua formulação, excetuadas as correntes utilitaristas, e de quase todos os es-

forços empreendidos na filosofia social e política contemporânea – cujos debates foram espe-

cialmente retomados na década de 70, com a publicação da obra “Uma teoria da justiça”, de

John Rawls: a legitimidade dos arranjos sociais depende de sua capacidade ou habilidade de

assegurar e expressar o que Honneth identifica como “o valor do sujeito humano, [...] sua capa-

cidade de autodeterminação”6.

A relação entre o que é bom para o indivíduo e a legitimação do ordenamento social

deve ser tomada aqui, neste primeiro momento, em sentido lato, assim como a palavra “bom”,

uma vez que podem possuir variadas conotações nas diversas correntes do pensamento social e

político. Logicamente, Honneth não atribui esse sentido à sua afirmação sobre a vinculação

liberdade/bem individual e legitimidade social, vez que ele, vinculado à tradição da teoria crí-

tica e a partir de uma releitura da filosofia do direito de Hegel, claramente intenciona elaborar

uma teoria da justiça como análise da sociedade. E o faz mediante um procedimento de recons-

trução normativa7 (crítica) da facticidade moral vista como presente nos dados da vivência co-

letiva – as esferas constitutivas da sociedade, enquanto materializações institucionais de

5 Apesar de usual, é um termo bastante inadequado quanto à acepção que geralmente se lhe aplica de “movimento

filosófico”, sobretudo porque os chamados “pós-modernos” não formam, em geral, um pensamento propositivo,

muito menos uniforme. Nem mesmo se a expressão ficasse restrita à noção de sucessão no tempo, pareceria mais

adequado, por poder abranger qualquer um e mesmo aqueles que, reelaborando criticamente os ideais modernos,

não desistiu deles em determinada medida. 6 Honneth, 2015, p. 35. 7 Ibid., p. 24 ss..

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determinados aspectos da liberdade individual – cujo conteúdo e expressão devem ser também

reconhecidos como racionais. Contudo, se bem observado, significar tal vinculação em sentido

lato, em nada prejudica o pensamento original de Honneth, porque apenas separa o que pode

ser entendido como o aspecto geral e comum de quase todo pensamento social e político de

seus aspectos subsequentes, peculiarmente dados por cada autor ou tradição. É nesse sentido

que se pode comportar a elaboração das principais vertentes teóricas em torno do tema, seja a

liberal, comunitarista, republicana ou, como visto, vinculada à teoria crítica.

Assim, sob a ótica liberal, não haveria contradição a um de seus preceitos fundamentais:

a prioridade do justo sobre o bem, na medida em que a atribuição de um sentido lato à relação

apontada por Honneth adequaria a concepção de vida boa ou de felicidade formulada pelo in-

divíduo (o bem) às clássicas concepções negativa e positiva da liberdade, denotadas consoante

Berlin em seu famoso ensaio "Dois conceitos de liberdade". Isto é, a impor limites e competên-

cias à atuação do poder estatal, circunscrevendo uma área de proteção das liberdades individu-

ais contra interferências externas injustificadas e um ideal de autogoverno sempre balizado pelo

incontornável parâmetro da autoridade do Direito, sobretudo das normas definidoras de direitos

fundamentais. O justo precípua e formalmente estaria, então, refletido na definição mesmo das

competências do Estado e na observância de seus limites de atuação relativamente a seus juris-

dicionados8A, B. Trata-se senão do Império da Lei ou do Estado de Direito8C.

8 A Aos muitos críticos não bastou o reconhecimento, pelo liberalismo, já num momento dogmático jurídico-cons-

titucional dos direitos e garantias individuais fundamentais, das funções de status positivus e activus desses direi-

tos, conforme a famosa e usual categorização proposta por Jellinek. Segundo eles (cf. relato em Dutra, 2014, pp.

311-327), uma vez ancoradas na clássica ideia, por importante que seja, i. da liberdade negativa, permaneceu

incapaz de considerar o problema das limitações internas (da formação subjetiva) da própria liberdade negativa-

mente considerada, com sérias repercussões sobre o valor da autorrealização à medida do isolamento do sujeito; e

ii. da liberdade positiva, alusiva àquela, deixou de dar conta de “[...] reivindicações [que] têm como pano de fundo

a exigência [...] da realização, por parte dos Estados, de um ideal de igualdade mais substancial, necessário para

enfrentar, por exemplo, as questões relacionadas à discriminação em razão de gênero, de etnia, de classe, de credo,

entre outras presentes em sociedades multiculturais e plurais. Nesse sentido, a promoção de uma igualdade em

sentido material pode gerar, em alguma medida, uma redefinição do campo individual deixado livre de interferên-

cia e, isso, na opinião de Berlin, não é uma troca desejada, haja vista considerar que a liberdade individual não

pode ser trocada por igualdade social ou econômica” (Consani e Xavier, 2015, p. 385). O justo receito de Berlin é

a tirania daqueles que, no exercício do encargo público-político, decidindo os rumos da coletividade, venham a

definir impositivamente, a partir dessa esfera comum, “o verdadeiro eu” individual a ser livre, bom, justo ou fide-

digno. Por isso, ele veicula a liberdade positiva sempre nos limites dos direitos individuais. No entanto, a solução

é incompleta e, em si mesma, paradoxal, porque a forma da tirania estaria já nos modos de constituição da própria

liberdade (negativamente considerada), desse espaço deixado livre de interferência e coação, à medida que o “eu

individual” é visto como completamente capaz de separar-se do ambiente comum em seu processo de formação,

abstraindo-se a si mesmo, alcançando em algum grau de sua racionalidade universal princípios dotados de validade

geral. É esse distanciamento em relação à intersubjetividade que o faria passível de tirania, ao incidir sobre o

espaço deixado originalmente livre ao bem individual de outrem, com uma coerção também consubstanciada na

pretensa identificação do “verdadeiro eu” a ser efetivado, mas, desta vez, configurado a partir da própria esfera

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As demais orientações do pensamento político e social desenvolveram boa parte de seus

trabalhos num amplo diálogo crítico com os pressupostos da tradição liberal, revendo e ampli-

ando conceitos ou propondo novos, conquanto o sentido lato daquela relação assinalada por

Honneth mantém-se também válido para elas, mesmo em suas particularidades. Nas vertentes

comunitaristas, a crítica à ausência de consideração de barreiras internas à formação da liber-

dade leva a uma nova compreensão da racionalidade9, assente sobremodo na inscrição do libe-

ralismo nos domínios de uma longa tradição e, consecutivamente, na rejeição de sua contínua

pretensão de neutralidade e universalidade; e da própria liberdade, na formulação de Taylor10,

por exemplo, com o escopo de situar a avaliação de seu exercício – para além da verificação da

existência de obstáculos externos, sobretudo materiais – a partir da ponderação de seus motivos

subjetivos determinantes, através da interlocução intersubjetiva. A ampliação do pensamento

sobre a liberdade para esse segundo momento de mediação social da vontade teria o condão de

retirar o alto grau de abstração de seu tradicional conceito, inserindo na comunidade, de modo

substantivo, um sujeito realmente comprometido com ela. Somente dessa forma, o precioso

valor da autorrealização, estritamente afeto à liberdade como oportunidade (liberdade negativa)

na feição liberal, se concretizaria, haja vista que “a participação política voltada para o autogo-

verno da pólis é, ela própria, a liberdade”11. Entretanto, é preciso reconhecer que, em alguns

casos, essa abordagem não apenas não conseguiu evitar os sérios problemas acerca da tirania

individual. De fato, não se pode abrir mão dos parâmetros da liberdade negativa – dos direitos individuais funda-

mentais, especialmente os de resistência – legitimamente, mormente quando em vista a pluralidade das convicções

a respeito do bem e a densidade dos desacordos daí advindos, características das sociedades contemporâneas.

Porém, subsiste o problema do isolamento e da “substanciação” das liberdades, refletido na incompletude ou in-

suficiência não somente quantitativa como também qualitativa das prestações estatais, da participação política

(status activus) e do acesso ao mercado. Permanece, por fim, o problema da democracia e sua conexão com as

liberdades individuais. B Com isso, não se ignora que teorias liberais mais recentes, a exemplo de Rawls e Dworkin, tentem suprir essas

lacunas – e Dworkin sendo bastante crítico de Rawls! De todo modo, mesmo na tentativa deste de elaboração de

uma noção de justiça como equidade ou daquele em demonstrar que “[...] a igualdade e a liberdade não se contra-

dizem, mas se complementam, [...] na medida em que acredita que a igualdade é o [...] fundamento [da liberdade]”

(Dall’Agnol, 2005, p. 56) – e, por isso, sendo identificados à versão igualitária do liberalismo: mantiveram a pri-

oridade das liberdades formais, o ponto nevrálgico das críticas. C Ou, conforme se considera o grau de amplitude da importantíssima (possibilidade de) participação qualitativa na

política, de respeito aos e promoção dos direitos humanos e a evolução histórica do pensamento da igualdade ou

da justiça num sentido mais substancial, material ou real e sua repercussão na configuração e implementação de

políticas públicas, todos atrelados: Estado Democrático de Direito ou Estado Democrático e Social de Direito (cf.

Dutra, 2004, pp. 57-80; Bodo e Schlink, 2008, p. 24 ss.; e Dimoulis e Martins, 2014, p. 115 ss.). Deve-se rejeitar,

portanto, corresponder tais termos à noção tão difundida quanto equivocada segundo a qual se classifica os direitos

fundamentais em gerações ou dimensões, geralmente três (cf. Dimoulis e Martins, 2014, p. 20 ss.). 9 MacIntyre, 1991, p. 359 ss.. 10 Consoante demonstram Dutra (2014, pp. 311-327) e Ramos (2014, pp. 20-34). 11 Silva, 2008, p. 164.

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indicados por Berlin, como precisamente os acarreta pela aberta possibilidade de sujeição he-

terônoma do indivíduo à caracterização da autenticidade de seus desejos, por outrem, segundo

a qual a liberdade deve ser exercida de um certo modo12 para a consecução dos fins da comu-

nidade.

Por sua vez, o pensamento republicano estabeleceu um conceito mais abrangente e subs-

tancial de liberdade como ausência de dominação13A, B. Recentemente retomado na contempo-

raneidade, rejeita a predominante ideia consagrada por Benjamin Constant em seu célebre dis-

curso “De la liberté des anciens comparée à celle des modernes”, realizado em 1819, segundo

12 “Uma compreensão mais abrangente do fenômeno humano, na análise de Taylor, procura contemplar não apenas

o privilégio, até então concedido ao sujeito e à sua racionalidade autofundante, mas também a dimensão expressiva

do sentimento. E um aspecto importante desse expressivismo repousa na ideia de que a diversidade dos desejos

consiste em discriminá-los segundo o critério da autenticidade e da relevância do seu significado para a realização

do sujeito. Portanto, outra linha interpretativa na análise do self e do sentido histórico na constituição da sua iden-

tidade com os modernos, e que permite uma interpretação comunitarista do valor da liberdade individual, pode ser

restaurada” (Ramos, 2014, p. 22). 13 A De origem na tradição romana e neorromana e ecoadas por Maquiavel no início da modernidade de modo

expressivo, as ideias republicanas foram notadamente retomadas na década de 90. Inicialmente, através das pes-

quisas de reconstituição histórica do ideal republicano de liberdade feitas pelo historiador Quentin Skinner segundo

os parâmetros do contextualismo linguístico enquanto novo método de incursão na história do pensamento político,

desenvolvido no âmbito da chamada “Escola de Cambridge”, que fundou juntamente com John Pocock e John

Dunn. Os trabalhos e a visão de Skinner sobre o republicanismo chamaram a atenção da filosofia política, nome-

adamente de Philip Pettit, o qual passou a interagir com a reconstrução daqueles conceitos, de modo a desenvolver,

a partir deles, uma teoria política normativa da liberdade republicana, bastante crítica da visão liberal, esta sobre-

maneira predominante desde a modernidade. Observando essa convergência entre o historiador e o teórico, cada

qual devendo permanecer ainda ligado ao modo particular de proceder de sua disciplina, Silva (2008, p. 157 e 159)

comenta: “enquanto Skinner toma como ponto de partida os debates teóricos contemporâneos sobre o conceito de

liberdade para sua reconstrução da história deste conceito, Pettit parte dos achados historiográficos de Skinner para

elaborar, nos termos próprios da teoria política normativa, uma concepção de liberdade apresentada como a mais

adequada ao mundo atual. [...] Porém, por não serem disciplinas idênticas, a história intelectual e a teoria política

normativa condicionam diferenciadamente os estilos e as metodologias empregados por seus respectivos pratican-

tes. É notável como a predisposição de Pettit para defender a atualidade e a superioridade (moral e cognitiva) da

liberdade republicana contrasta com a expressão mais cautelosa e desapaixonada de Skinner. Este chega mesmo a

afirmar que jamais esteve ‘realmente interessado em tomar partido’, e que seu trabalho de reconstituição da teoria

republicana da liberdade teria resultado de uma motivação para estudar na história o que lhe parece ‘interessante’,

não o que julga ‘verdadeiro’ (Skinner, 1997, p. 76 [apud ibidem])”. B Conceito que foi sendo pacificado após profícuos debates entre Skinner e Pettit. A esse respeito, conferir a obra

“Republicanism: a theory of the freedom and government” (1997), de Pettit, e sua interlocução com Skinner no

artigo “Keeping republican freedom simple: on a difference with Quentin Skinner” (2002), em que lhe sugere a

revisão de seu conceito conjugado de liberdade como não dominação e não interferência, apresentado no livro

“Liberty before liberalism” (1998), para simplificá-lo apenas como não dominação. A argumentação básica de

Pettit na tentativa de convencer Skinner, a qual mais tarde veio a ser bem sucedida (cf. “Freedom as the absence

of arbitrary power”, 2007), é a de que não se pode atribuir igual importância aos efeitos advindos da dominação e

da interferência sobre a liberdade, sendo aquela sempre mais gravosa que esta: “o que há de mau na dominação e

a converte no antônimo natural da liberdade se revela em três traços: imposição de uma restrição da escolha,

produção de uma incerteza distinta e introdução de uma assimetria de status. O que há de mau na interferência-

menos-dominação é meramente a restrição da escolha” (Pettit, 2002, p. 18).

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a qual a liberdade dos antigos equivaleria ao exercício das liberdades políticas, no sentido da

atuação dos cidadãos no espaço público. O republicanismo neorromano ou em versão mo-

desta14, em conformidade com Skinner e Pettit, procura uma terceira via conceitual de liber-

dade, recusando-lhe atribuir, como sucede ao comunitarismo – republicanismo neoateniense ou

em versão forte14 –, a essência de participação política com a qual manteria uma relação de

coinerência (liberdade positiva ou como exercício). E considera insuficiente a hegemônica con-

cepção liberal de liberdade, para a qual, inspirada na ideia da liberdade tal como os modernos

a viram – autonomia privada e titularidade de direitos individuais –, correspondente ao conceito

de liberdade negativa denotada por Berlin, à caracterização dos indivíduos como sujeitos livres

bastaria a ausência de coerção externa concreta de terceiros ao corpo e à vontade. Assim, “en-

quanto os liberais depois de Bentham passaram a se preocupar apenas com a coerção do corpo

ou da vontade, os republicanos15 haviam se preocupado com a dependência da boa vontade de

outro, até mesmo com a dependência, nos casos em que não existe coerção real”16.

Eis o centro gravitacional da liberdade republicana, liberdade não como mera oportuni-

dade nem como exclusivo exercício, mas como status do indivíduo, como condição ou posição

marcada pela ausência de dominação ou dependência, a saber, pela não possibilidade enquanto

poder ou capacidade de outrem de interferir arbitrariamente nas escolhas de alguém, sujeitando-

o. Incorpora, portanto, aspectos da liberdade negativa17, como seu estatuto jurídico consubstan-

ciado no papel dos direitos individuais. Mas sem enfatizá-los de modo quase exclusivo, à ma-

neira do liberalismo, a amplia, destacando ao mesmo tempo as virtudes cívicas na medida em

que são vistas como instrumentalmente imprescindíveis à própria liberdade em geral, “sendo a

participação [política] antes um meio para assegurar tal status do que a própria essência da

liberdade”18. Nesses moldes, busca tornar-se “compatível com a pluralidade de valores e inte-

resses das sociedades humanas em geral [...], valores e interesses que, para além de diversos,

são frequentemente inconciliáveis”18.

A pluralidade caracterizadora das vidas e sociedades humanas, fortemente acentuada

enquanto constructo histórico do individualismo moderno, decorre precisamente da remissão19

14 Segundo notação de Michael Sandel. 15 Doravante, o termo “republicano” e sinônimos dizem respeito apenas à tradição neorromana. 16 Pettit, 2002, p. 4. 17 Ibid., p. 2, reconhece que “a concepção republicana de liberdade é certamente negativa”, porém não redutível à

sua forma liberal. 18 Silva, 2008, p. 168. 19 Em todos os seus sentidos, parece realmente a palavra mais adequada aqui, especialmente quando se traz à

memória os movimentos que marcaram a Europa dos séculos XIV e XV: o Humanismo, o Renascimento, a Re-

forma.

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do valor do humano àquilo que o faz propriamente humano, que lhe permite ser de tal modo

distinto dos demais seres viventes: seu potencial de autodeterminação, de autonomia. Nas pa-

lavras de Castoriadis, sua capacidade de criação na história. É o que inspira a ideia de direitos

humanos e fundamenta sua passagem à forma positiva dos direitos fundamentais e, de maneira

mais elevada, da dignidade da pessoa humana. É preciso reconhecer que a discussão em torno

da dignidade e dos direitos humanos e das possíveis relações eventualmente existentes entre

ambos é bastante acirrada, tanto na filosofia moral quanto na filosofia jurídica. Como se pode

notar, adota-se aqui a fundamentação moral dos direitos humanos, amparada na definição da

dignidade como valor peculiar do qual o humano é portador, como bem argumenta Honneth

(supracitado).

No Brasil, o constituinte de 1988 fixou logo no artigo 1º (caput e inciso III) da Consti-

tuição Federal (CF) a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos intangíveis do

próprio Estado Democrático de Direito que constitui a República Federativa do Brasil, con-

substanciando-a nos objetivos fundamentais da República: a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da margi-

nalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.

3º, I a IV, CF). Elencou, assim, no rol do artigo 5º, direitos e garantias fundamentais individuais,

apregoando a igualdade de todos perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza, garantindo-

se [...] a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade

[...]” (art. 5º, caput, CF). Para não ficar apenas no exemplo brasileiro, a Lei Fundamental alemã

é igualmente clara e assertiva. Em seu artigo 1º, n.os 1 e 2, estabeleceu: “a dignidade da pessoa

humana é intangível. Observá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. O povo

alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fun-

damento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”. E prossegue assentando

os parâmetros gerais dos direitos de liberdade e igualdade: “todos têm o direito ao livre desen-

volvimento de sua personalidade [...]” (art. 2, n.º 1); “a liberdade da pessoa é inviolável”, só

pode ser restringida em virtude de lei (art. 2, n.º 2, frases 2 e 3); “todas as pessoas são iguais

perante a lei” (art. 3, n.º 1).

Nas últimas décadas, particularmente no pós-guerra, a análise dos conceitos de liberdade

pela teoria política tem estado cada vez mais sujeita a uma avaliação “externa”, no que tange a

determinado grau de legitimidade de seus postulados, pela teoria geral dos direitos fundamen-

tais, que lhes dá uma dimensão avaliativa de eficácia empiricamente verificável quando da

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concretização jurídico-dogmática das normas jusfundamentais. Não obstante todos os poderes

constituídos estarem diretamente vinculados às normas definidoras de direitos fundamentais, e

sem embargo da alçada do legislativo para dar cumprimento proporcional (adequação e neces-

sidade) e qualificado (meios e fins ou propósitos)20 às reservas legais contidas nessas normas,

a competência para exercer a tarefa de lhes dar densidade normativa em última instância – e,

nesse momento, os direitos fundamentais sem reserva legal aparecem com especial importân-

cia21 –, cabe ao poder judiciário, especialmente às cortes constitucionais cuja função precípua,

usando a linguagem do constituinte brasileiro, é a guarda da constituição (art. 102, caput, CF).

Diante desse quadro, duas perguntas se impõem: qual formulação da liberdade melhor promove

e protege os direitos fundamentais? Qual papel a política poderia ou deveria substancialmente

desempenhar para efetivá-los?

A resposta à primeira pergunta passa, então, por uma profunda análise das teorias dos

direitos fundamentais existentes – a saber22, dentre as subjetivistas, a social-democrática e a

liberal; e dentre as objetivistas, a principiológica, a funcional-democrática, a institucionalista e

a axiológica –, em comparação com as formulações filosófico-políticas da liberdade, as quais

seriam eminentemente julgadas em seu esforço de “juridificação”, de concreção jurídica. Rele-

vantíssimo que seja, não consiste no escopo do presente trabalho, não sendo possível, neste

momento, desenvolvê-la aqui. Já a segunda pergunta tem sido alvo de intenso debate no campo

filosófico, mais incisivamente no âmbito das teorias da democracia, na busca por reavaliar cri-

ticamente a hegemônica apreensão jurídica da liberdade, ínsita aos direitos fundamentais, e sua

remissão praticamente exclusiva à jurisdição constitucional, retirando-os da disponibilidade

real do debate público. Trata-se da tensão entre democracia e soberania popular, de um lado, e

sua constitucionalização, de outro; ou em outras palavras, de um certo conflito entre debate

público e técnica jurídica.

20 Schlink, 2017, passim. 21 “O entendimento que mais condiz com os imperativos da interpretação sistemática é que a não inserção de

reserva legal significa que o constituinte autorizou o pleno exercício do direito e não vislumbrou riscos de conflito

com outros direitos constitucionalmente tutelados. Eventual limitação legislativa do direito sem reserva seria in-

constitucional: uma restrição só pode ser admitida in concreto quando se constata um efetivo conflito entre bens

jurídico-constitucionais (entre um direito fundamental e um interesse estatal ou difuso ou coletivo com lastro

constitucional ou entre dois direitos fundamentais). [...] Em não havendo reservas legais que autorizem a limitação

pelo legislador de um direito fundamental, este poderá ainda ser limitado [...] pelo chamado direito constitucional

de colisão ou colidente (kollidierendes Verfassungsrecht), não se podendo falar em direito fundamental ‘ilimi-

tado’” (Dimoulis e Martins, 2014, pp. 157 e 163-164). 22 De acordo com a classificação de Martins (2012, p. 8 ss.).

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2. CASTORIADIS RUMO À ILHA DESCONHECIDA

“Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. [...] E tu para

que queres um barco, pode-se saber [...], Para ir à procura da ilha desconhecida,

respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso,

como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navega-

ções, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, re-

petiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse,

rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão

as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa que queres ir à procura, Se eu

to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste falar dela, per-

guntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer

que ela existe, Simplesmente por que é impossível que não exista uma ilha des-

conhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-lhe

um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês,

Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes perten-

cerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu,

sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens,

com os meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem pilotos,

só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A

ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhe-

cidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te

dou o barco, Darás.”23

O pensamento de Cornelius Castoriadis24 e o relato sobre o homem que foi à porta do

rei pedir-lhe um barco no “Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago25 têm muito em

comum. Ambos demonstram bem, entre outros, o papel do inconsciente, do desconhecido –

ainda assim presente –, na constituição permanente da própria subjetividade e na interação com

as instituições em volta. Em outras palavras, o conto de Saramago, ao mesmo tempo tão simples

e tão rico de significações e possibilidades, ajudará a ver com mais clareza as pertinentes ques-

tões propostas por Castoriadis no processo de elucidação, que este empreende como projeto e

práxis de autonomia, do que chamou de “os domínios do homem”: expressão de uma complexa

23 Saramago, 1998. 24 Cornelius Castoriadis (1922-1997), nascido na Grécia, radicado na França, tornou-se um dos maiores expoentes

da filosofia francesa do século XX. Até o fim de sua vida, empreendeu estudos e atividades também na psicanálise

– ele era psicanalista –, área do conhecimento que foi de fundamental importância na formulação de seu pensa-

mento. 25 Nascido em Portugal, José de Sousa Saramago (1922-2010) foi um dos maiores nomes da literatura, e não só

em língua portuguesa, de seu tempo: vencedor do Prêmio Camões, em 1995, e do Prêmio Nobel de Literatura de

1998, é conhecido por seu estilo original de escrita e pela perspicácia de suas críticas sociais. Entre seus muitos

livros, alguns dos mais famosos são “Ensaio Sobre a Cegueira” e “Memorial do Convento”.

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e perene articulação entre o domínio do real psíquico, a psique singular de cada indivíduo, a

saber, seu inconsciente e suas pulsões; e o domínio do social-histórico, isto é, “as representações

ou significações sociais subjetivas”26.

Ao longo de sua vida e obra, pode-se seguramente dizer, Castoriadis, assim como fez o

súdito no conto de Saramago, partiu à procura da ilha desconhecida – daquilo que para ele foi

sendo insistentemente ocultado na e pela instituição do pensamento ocidental como Razão ao

longo de vinte e cinco séculos: o imaginário –, culminando naquela que condensa o principal

legado de suas reflexões: sua magnum opus, “A instituição imaginária da sociedade”. Talvez,

a ilha desconhecida, as ilhas desconhecidas tenham sido encontradas ali, mas sem torná-las

integralmente conhecidas, determinadas de uma vez por todas em todos os seus termos, relações

e extensão – nem era mesmo essa a pretensão do autor ou, melhor dizendo, o que lhe parece

possível ou concebível. Rumo à ilha desconhecida, justamente porque, a propósito do imaginá-

rio, Castoriadis empreende um enorme esforço para romper em parte – com a parte desneces-

sariamente totalizante – do que chama de lógica-ontologia herdada ou tradicional, a qual subjaz

soberana e explicitamente a toda a tradição ocidental de pensamento, inaugurada a partir da

consubstancial instauração da democracia e da filosofia na antiguidade grega por volta do sé-

culo V a.C.. É que “sempre procedendo, em sua vertente principal, por meio da hipercategoria

fundamental da determinidade”27, tal lógica-ontologia postula que ser é ser determinado, dizer

é dizer algo determinado e dizer verdadeiramente é determinar tanto o dizer quanto o que se diz

segundo as determinações do ser ou, o que vem a ser o mesmo, determinar o ser mediante as

determinações do dizer28.

E, fazendo assim, remetendo a um sempre (aei) atemporal o ser do ser, de todo ser e,

especificamente aqui, o ser-social do social, o social-histórico: anula sociedade e história,

tempo e criação, a significação, o próprio ser enfim. Pois reduz as multiformes, imprevisíveis

– e tanto mais adjetivos se poderiam colocar aqui? – manifestações da experiência humana à

simples condição da diferença, da viabilidade de determinações diferentes não ab-rogando a

identidade fixa daquilo que, sendo sempre (aei on), “é sempre segundo as mesmas determina-

ções”29 e, por isso, é verdadeiro ou verdadeiramente – o ente sendo (ontos on). Essa redução se

dá, só é requerida ou mesmo possível em razão de a compreensão herdada promover uma se-

paração absoluta entre espaço, tempo e o que aí se encontra (o real ou a realidade). Porque à

26 Passos, 2006, pp. 5-6. 27 Castoriadis, 2002, p. 234. 28 Id., 1982, p. 259. 29 Ibid., p. 223.

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condição sine qua non da possibilidade de pensar ou captar o plural como idêntico e apenas

como tal ou, dizendo de outra maneira, o diferente enquanto eterno retorno do mesmo (sua

repetição ou iteração), basta que exista chora originária, espaço “puro” mediante o qual torna-

se possível, por exemplo, que este x seja diferente deste x tão somente por seu lugar ou posição

na página ou pelo instante no qual vieram a existir ou, ainda, se assumem valorações distintas,

sem que nada além disso os diferencie (intrinsecamente). Nesse sentido, “o espaço preexiste à

figura, é seu a priori”30. Isso significa: é espaço vazio, incorruptível, receptáculo, aquilo que

“recebe ‘o que’ é-devém, o ‘em que’ é tudo o que é”31.

Importante prestar especial atenção à maneira como Castoriadis faz referência ao real

ou à realidade “como o que aí se encontra”, expressão cujo emprego não é de modo algum

gratuito. Aqui, “encontra” quer dizer algo mais do que simplesmente estar ou ser achado em

algum lugar (topos), porquanto, para o pensamento tradicional, um eidos existe e só pode existir

em relação com outro eidos. As implicações disso são profundas. Primeiro e mais evidente,

tudo o que existe, existe em algum lugar, ocupando um espaço: “o topos está necessariamente

implicado desde que existe mais do que Um”32. Não se dirá aqui “certo” lugar ou “determinado”

espaço, haja vista a “natureza” do social-histórico – em boa parte, escopo do presente trabalho

–, desafiar o postulado de determinidade, tal como já tem feito a física contemporânea desde o

começo do século passado por meio da relatividade geral de um lado e da mecânica quântica e

seu princípio da incerteza consoante Heisenberg de outro; ambas permanecendo até hoje, curi-

osamente, inconciliáveis.

Segundo, esse espaço sem nada conter somente “adquire sua aparência de sentido pela

colocação em relação”33 dos termos nele advindos. Não apenas que o espaço permite o encontro

de eidé. Muito além disso, o espaço mesmo – conquanto sua formulação kantiana34 –, é também

30 Ibid., p. 229. 31 Ibid., p. 225. 32 Ibid., p. 226. 33 Ibid., p. 228. 34 “[...] A verdade profunda, embora incompleta (porque egológica e ignorando o social e a linguagem), da Estética

transcendental e da doutrina do Esquematismo em Kant, de modo algum [é] posta em dúvida [...]. Porque o que

era na verdade visado por Kant sob o título de intuição pura e de esquemas da imaginação transcendental (e cuja

ligação com uma etapa particular do conhecimento se mostra aqui acidental) era a raiz não dedutível, inconstrutí-

vel, pressuposta por toda indução e inferência empírica da mathesis imaginária: o que só pode ser descrito como

indissociavelmente estético-lógico, mas de fato precede toda estética e toda lógica, toda aisthesis e todo logos.

Esta raiz é a possibilidade implicada na e pela representação de fazer emergir os esquemas mais elementares e

figurá-los, a saber, presentificá-los, tornando possíveis através disso mesmo, as primeiras operações ‘lógicas’ e a

separação no fluxo representativo de um conjunto de objetos determináveis quanto a sua consistência e quanto a

suas relações recíprocas, e, para começar, quanto a seu respectivo lugar, num ‘espaço’ e num ‘tempo’. [...] Este

‘espaço’ e este ‘tempo’ só são, na verdade, aqui, especificações de um receptáculo em geral; e que Kant os pensa

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eidos, eidos profundamente particular, porém eidos. E, como tal, é precisamente o “co- na or-

dem das coexistências [...] e esta própria ordem”35. Isso exprime, contrariamente às pretensões

iniciais acerca de um espaço absolutamente isolado de toda e qualquer representação, não obs-

tante permaneça “pressuposto ‘logicamente’ (e não ‘psicologicamente’) pela lógica e a mate-

mática, porque já é pressuposto pelo legein mais elementar”36A, B, sua separabilidade-insepara-

bilidade do que aí ocorre. Portanto, o espaço é “com referência a isto, e só é isso mesmo, ser-

numa-relação-com”37, significando: aquilo que enseja o estar junto, concomitantemente.

Terceiro, note-se como o tempo exsurge aqui senão como uma ordem de coexistências,

sendo requerido, quanto à sua efetividade, apenas para permitir, reflexivamente, que o mesmo

possa iterar-se como diferente tão logo esteja em um outro tempo. Mas esse tempo só é outro,

haja vista sua “propriedade local” 38, o fato de somente existir num instante determinado, me-

diante a suposição da perspectiva do “olhar (theoria)”39 de um observador externo que o con-

templa numa ordem de sucessão de termos necessariamente compossíveis e componíveis: com-

poníveis ao “um-tudo”40, compossíveis “enquanto ‘partes’ de um-mesmo”40. Esse instante de-

terminado corresponde ao presente (nun) tomado em absoluto, isto é, artificialmente isolado

como “origem das coordenadas”41, e no qual esses termos, entidades ou elementos, por e para

copertencerem, fatalmente, devem ser discretos, distintos e definidos. Porque os esquemas tra-

dicionais da causação, da finalidade e da implicação ou consequência lógica pelos quais a com-

preensão herdada pensa a sucessão – e o tempo e a história apresentam-se de imediato como

sucessão; e os esquemas tradicionais do sistema real, lógico e partes extra partes pelos quais

arranjam a sociedade como coexistência, como um “estar-junto de uma diversidade”42 – e a

sociedade apresenta-se de imediato como coexistência; “pressupõem que o que deve ser cap-

tado ou pensado por seu meio deixa-se reduzir, no essencial, ao conjunto”43.

como independentes, não somente de todo conteúdo particular do fluxo representativo, mas de um conteúdo qual-

quer deste fluxo – o que ele denomina a priori – enquanto só podem ser, e ser o que são, na e pela alteridade que

aí emerge, a contínua criação de figuras diferentes, o desdobramento de produções da imaginação radical; que

portanto espaço e tempo só aparecem como ‘puros’ por uma separação reflexiva secundária” (ibid., p. 381). 35 Ibid., p. 226. 36 A Ibid., p. 230. B Assim, por exemplo, o sistema numérico decimal: “os dois números ‘1’ do número ‘11’ adqui-

rem sua diferença em sua ‘mesmidade’ por seu lugar” (ibid., p. 230), as ordens numéricas unidade e dezena, casas

decimais a cada qual pertence um algarismo. 37 Ibid., loc. cit.. 38 Ibid., p. 224. 39 Ibid., p. 237. 40 Ibid., p. 220. 41 Ibid., p. 257. 42 Ibid., p. 211. 43 Ibid., p. 219.

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Ora, o espaço puro e o tempo puro, a alegada separação absoluta entre eles só pode vir

indiretamente, a saber, da relação de absoluta separabilidade que são constritos a manter com o

que aí se desenvolve, razão pela qual o tempo e a história são vistos como algo que simples-

mente sobrevêm, isto é, perpassam a sociedade de maneira exterior, às vezes, na qualidade de

progresso, outras vezes, de decaimento e degradação. “Curiosa propriedade do tempo, permi-

tindo-lhe sem nada ser, sem nada estabelecer, sem fazer ser nada, erodir o que é”44. Se bem

observada, essa situação só evidencia a “fonte inumerável de paradoxos tão imediatos quanto

insolúveis no pensamento identitário”45: por um lado, a impossibilidade que tem de viabilizar

uma verdadeira distinção entre espaço e tempo, qual seja, respectivamente, entre a diferença e

a alteridade; por outro, as graves distorções geradas pela insistência na separação – “reflexiva,

analítica, secundária”46, entretanto, impossível de fato –, entre o tempo e o que é, principal-

mente, entre o histórico e o social. Com efeito, o tempo acaba senão reduzido à reles condição

de subcategoria do espaço, operando como “simples referencial de reconhecimento”47, ou seja,

“para afirmar o princípio da identidade”48. O tempo é, então, representado pelo “puro não-

tempo, isto é, a linha”49 cujo ponto ou momento presente espelha, assonante, a “imagem móvel

da eternidade... da eternidade imóvel que permanece no um, imagem eterna evoluindo segundo

o número”50. Portanto, “a pura sucessão nunca foi pensada, e não poderia nunca sê-lo, de outra

maneira que não como modalidade de co-existência de dois termos de uma série”51.

Isso acontece, porque, no referencial herdado, o tempo não tem verdadeiramente lugar

(ontológico, autêntico), pois o tempo não é, não pode ser e, mais ainda, não faz ser. E o é dessa

forma, fundamentalmente, para manter tanto quanto pode o paradigma da determinidade como

paradigma de tudo, ao menos de tudo o que para o pensamento tradicional vem a ser verdadeiro

e, por conseguinte, inteligível, a fim de preservar o que concede como o sentido mesmo da

filosofia, ou melhor, desta filosofia, deste modo acidental de concebê-la e fazê-la como busca,

de um lado, pelas origens, pelos princípios e seu remontar, cuja culminância – ananké sténai –

são as categorias fundamentais do ser: sujeito, coisa, ideia, conceito; e de outro, por suas cama-

das mais profundas ainda não alcançadas nos momentos de seus desdobramentos e repercussões

44 Ibid., p. 253. 45 Ibid., p. 227. 46 Ibid., p. 226. 47 Ibid., p. 225. 48 Ibid., p. 238. 49 Ibid., loc. cit.. 50 Ibid., p. 224. 51 Ibid., p. 227.

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sucessivos, porém desde sempre já compreendidas na qualidade das relações referenciais, logo,

conjuntistas cada vez mais intricadas e complexas e que, dessarte, de maneira paradoxal, ten-

dem à ocultação de seu ser-assim-identitário.

Estivesse Castoriadis no conto de Saramago, agiria do mesmo modo como agiu o ho-

mem almejante do barco para ir à procura da ilha desconhecida. Pediria e tão logo ouviria, do

lado de dentro da porta, postulante da tradicional lógica-ontologia bradar: “disparate, já não há

ilhas desconhecidas”!52 Retrucaria, então, perguntando: “quem foi que te disse, rei, que já não

há ilhas desconhecidas”? Com muita convicção, seria imediatamente redarguido: “estão todas

nos mapas”! Mas “nos mapas só estão as ilhas conhecidas”, insistiria Castoriadis. E mesmo

quando empreendesse longa argumentação no intuito de demonstrar que a própria compreensão

herdada há muito vislumbrara uma nova região ou modo de ser – de alguma maneira, em algum

grau ou momento – estranhos à determinidade53, ainda ouviria como resposta: “e essa ilha des-

conhecida, se a encontrares, será para mim”. Essa afirmação expressa bem a forma de proceder

do pensamento identitário, aponta para seus limites, sintetiza o que estabelece como um impe-

rativo ao pensável: que o novo seja inteiramente absorvido, subjugado aos parâmetros lógico-

ontológicos conhecidos, ainda que sob o custo de “sua desnaturação num sistema no qual per-

manece estrangeiro, sua permanência sob a forma de aporia irredutível”54. Não porque os meios

disponíveis ao pensar, ao representar, ao dizer, ao fazer são inevitavelmente legados pela “cons-

tituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações”55, o que

Castoriadis chama de imaginário efetivo ou, simplesmente, imaginado. Mas, sim, devido à per-

manente pré-disposição refletida de não aceitar o novo como verdadeiramente novo, mesmo

52 Saramago, 1998. São dele todas as citações entre aspas não referenciadas a seguir (neste parágrafo), exceto,

claro, aquelas com referência própria. 53 “Assim, Aristóteles descobre filosoficamente a imaginação – phantasia – mas o que ele diz a respeito, temati-

camente, quando trata disso ex professo (quando fixa a imaginação em seu pretenso lugar, entre a sensação da qual

seria uma reprodução, e a intelecção, e assim domina há vinte e cinco séculos o que todo mundo pensa a respeito)

pesa pouco ao lado do que ele tem verdadeiramente a dizer, que ele diz fora de lugar, e que não há meio de

reconciliar com o que pensa da physis, da alma, do pensamento e do ser. Assim também Kant, pelo mesmo movi-

mento em três ocasiões (nas duas edições da Crítica da razão pura, e na Crítica da faculdade de julgar) descobre

e encobre o papel do que denomina de imaginação transcendental. Assim também Hegel, e incomparavelmente

mais Marx, que não podem dizer o que tem a dizer de fundamental sobre a sociedade e a história, a não ser trans-

gredindo o que julgam saber sobre o que ser e pensar significam, e o reduzem finalmente introduzindo-o à força

num sistema que não pode contê-lo. Assim, enfim, Freud, que desvenda o inconsciente, afirma seu modo de ser

incompatível com a lógica-ontologia diurna, e no entanto só consegue pensá-lo, até o fim, invocando toda a ma-

quinaria dos aparelhos psíquicos, das instâncias, dos lugares, das forças, das causas e dos fins, acabando por ocultar

sua indeterminação enquanto imaginação radical” (Castoriadis, 1982, pp. 209-210). Ainda a esse respeito, conferir,

também, em ibid., p. 176, a importante nota de rodapé 45. 54 Ibid., p. 209. 55 Ibid., p. 176.

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nas ocasiões em que, contornando brevemente a impossibilidade de criação no referencial her-

dado, salta aos olhos segundo as exigências próprias de seu ser, colocando questões outras.

Essa é a raiz da qual se extrai o real sentido da predominante tese, em toda filosofia,

acerca da finitude do homem: “o homem é um ser ‘finito’ não em função dessas ‘banalidades’

que são sua mortalidade, sua fixação ‘espaço-temporal’ [...]. O homem é um ‘ser finito’, porque

ele não pode criar nada”56. A criação é impossível, impensável no âmbito do pensamento tradi-

cional (e a criação ontológica, criação de eidos não passa de uma contradição de termos) não

só para evitar a indeterminidade e a imprevisibilidade, mas por estar senão adstrita à capacidade

de criar matéria, donde se nota curiosa confusão entre materialismo e idealismo. Pois “quando

o homem cria instituições, poemas, música, instrumentos, línguas – ou então monstruosidades,

campos de concentração etc. –, ele não cria nada”57, apenas produz com base em e a partir de.

Mas não são essas atividades essencialmente poiéticas? Não instauraram novas eidé, formas

plenamente originais e peculiares, posto serem “independentes de toda figura particular, mas

não de uma figura qualquer”?58

No caso narrado por Saramago, tal impossibilidade revela-se, de maneira tão interes-

sante, nas entrelinhas do desfecho da inusitada interação entre o monarca e o homem que queria

o barco – este que, não obstante a sua condição de súdito, instituiu-se efetivamente enquanto

cidadão. Irresignado diante da reivindicação do rei acerca do domínio sobre as ilhas outras,

ainda não conhecidas, o homem prosseguiu argumentando59: “a ti, rei, só te interessam as ilhas

conhecidas. Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser”60. Mas de que

jeito deixariam de o ser? Sob quais condições? Assim, tais ilhas poderiam ser verdadeiramente

vistas? Ele verdadeiramente aceitaria vê-las em sua maneira peculiar de ser? A esta altura, já

56 Ibid., p. 235. 57 Ibid., p. 236. 58 Ibid., p. 229. 59 “[...] Isto era um enorme problema, se tivermos em consideração que, de acordo com a pragmática das portas,

ali só se podia atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém à espera de

resposta, nenhuma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as suas ambições. À

primeira vista, quem ficava a ganhar com esse artigo do regulamento era o rei, dado que, sendo menos numerosa

a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, con-

templar e guardar os obséquios. À segunda vista, porém, o rei perdia, e muito, porque os protestos públicos, ao

notar-se que a resposta estava a tardar mais do que o justo, faziam aumentar gravemente o descontentamento

social, o que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequências no afluxo de obséquios. No caso que esta-

mos narrando, o resultado da ponderação entre os benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e

em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o

requerimento pelas competentes vias burocráticas” (Saramago, 1998). 60 Saramago, 1998. São dele todas as citações entre aspas não referenciadas a seguir (neste parágrafo), exceto,

claro, aquelas com referência própria.

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sabendo a resposta, tal qual delineada nos parágrafos anteriores, a única saída encontrada pelo

cidadão foi enunciar: “talvez esta não se deixe conhecer”, o que foi compreendido pelo rei de

forma literal, como não poderia mesmo ser diferente. Contrariado e impaciente, tendo já esva-

ído a curiosidade inicial que o tomara mais que o “desagrado de ver tanta gente junta” na porta

das petições de seu palácio, a única saída encontrada pelo monarca – e, pode-se dizer, possível

a ele naquele momento enquanto o assunto limitava-se a ambos61 –, na tentativa de encerrar o

imbróglio, foi asseverar: “então não te dou o barco”! Afinal, não poderia conceber qualquer

atividade humana genuinamente criadora cuja matéria – qual seja sua textura, real ou ideal,

sensível ou inteligível –, não estivesse já aí e não pudesse ser capturada de modo consubstante

às categorias conhecidas.

Como se pode ver, há um permanente conflito entre o que apropriadamente concerne à

determinidade, o primeiro estrato natural ou um dado momento da instituição, e sua constante

disposição ou tendência “de cobrir [e encobrir] todo estrato possível”62. Todavia, esse encobri-

mento, que se dá sob essa tal forma de antinomia62, não subsiste apenas na e pela compreensão

tradicional, inaugurada pelos gregos, e mediante a qual reinou preponderante ao longo desses

mais de dois milênios e até hoje, amplificado à exaustão, aparecendo, nesse contexto, na quali-

dade de “contradições verdadeiras”63, assim, por dizerem mais do que o planejado pelo autor64.

Muito antes, ele subsiste e se realiza na própria instituição social-histórica como vem ocorrendo

61 “Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os aspirantes à

porta das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo,

e mais para se verem livres dele do que por simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o

barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. O rei abriu a boca para dizer à mulher da limpeza que

chamasse a guarda do palácio a vir restabelecer imediatamente a ordem pública e impor a disciplina, mas, nesse

momento, as vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando como os outros,

Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o

que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e

disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as

ilhas conhecidas” (Saramago, 1998). 62 Castoriadis, 1982, p. 210. 63 Ibid., p. 209. 64 “O que importa verdadeiramente aqui, não são as concepções como tais, nem sua crítica, e menos ainda a crítica

dos autores. Nos autores importantes, as concepções nunca são puras, seu exercício em contato com o material que

tentam pensar desvenda algo diferente daquilo que eles pensam explicitamente, os resultados são infinitamente

mais ricos do que as teses programáticas. Um grande autor, por definição, pensa mais além de seus meios. Ele é

grande, na medida em que pensa o que ainda não tinha sido pensado, e seus meios são o resultado do que já tinha

sido pensado, que nunca cessou de interferir no que ele pensa, quando mais não fosse, porque não pode anular

tudo o que recebeu e colocar-se diante de uma tábula rasa, mesmo quando tem a ilusão de fazê-lo. Prova disso são

as contradições sempre presentes num grande autor; falo das contradições verdadeiras, grosseiras, irredutíveis, que

é tão estúpido pensar que por si sós anulam a contribuição do autor, quanto inútil tentar dissolvê-las ou recuperá-

las em níveis sucessivos de interpretação mais profunda” (ibid., pp. 208-209).

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até agora, isto é, na maneira como as sociedades vêm instituindo-se “como comportando a re-

cusa de ver que ela se institui”65. Contudo, tanto para o pensamento quanto para a sociedade e

a história, esse encobrimento não é incontornável ou obrigatório. Ele somente expressa um

processo de reabsorção imaginária, dada pela autonomização do imaginário, por seu afasta-

mento ou descolamento da incidência da atividade autônoma, seja do sujeito ou da sociedade,

sobre as formas criadas, instituídas. Na origem tanto da alienação ou heteronomia quanto da

criação ou do instituinte está o imaginário radical66, pois é, por excelência, a “capacidade de

dar-se aquilo que não é”67 como se fosse. Essa tensão entre o instituinte e o instituído, origina-

ção incessante, é perene e existe mesmo quando só há aparência de conservação, consoante se

manifesta sobretudo em boa parte das sociedades tradicionais ou arcaicas.

Se toda separação, a exemplo da percebida e promovida entre tempo e espaço, é também

e desde o início operação fundamental “de duas instituições sem as quais não há vida social”68,

o legein, dimensão identitária do dizer e do representar social, e o teukhein, dimensão identitária

do fazer social; e se sobretudo o legein (“distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-dizer”69)

está sempre pressuposto, enquanto condição de possibilidade do próprio mundo humano; como

de fato o são, isso ocorre, em parte, porque aquilo que é, é ou apresenta-se conjuntizado e con-

juntizando-se a si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, o legein não escapa à atividade criadora da

sociedade e da história, sendo ele próprio instituído, razão pela qual, ao contrário do que pode

parecer à primeira vista, sua pressuposição não se constitui em anterioridade temporal ou lógica.

Em outras palavras, o legein e sua subjacente lógica conjuntista-identitária consistem em uma

“decisão ontológica bem fundamentada”70. Num aspecto, isso quer dizer não apenas que de fato

existem conjuntos, mas que o modo pelo qual são é também fruto de uma criação social-histó-

rica: “estes conjuntos e eidos de conjunto”71. Noutro, aponta para um fato comum a essa criação,

o de estar sempre, parcial e indefinidamente, ancorada, fundamentada sobre o que Castoriadis

denomina o “primeiro estrato natural”71.

65 Ibid., p. 251. 66 “O imaginário radical é como social-histórico e como psiquê/soma. Como social-histórico ele é corrente do

coletivo anônimo; como psiquê-soma é fluxo representativo/afetivo/intencional. Denominamos imaginário social

no sentido primário do termo, ou sociedade instituinte, o que no social-histórico é posição, criação, fazer ser.

Denominamos imaginação radical o que, na psiquê/soma é posição, criação, fazer ser para a psiquê/soma” (ibid.,

p. 414). 67 Ibid., p. 161. 68 Ibid., p. 210. 69 Ibid., p. 262. 70 Ibid., p. 267. 71 Ibid., p. 265.

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Em toda essa discussão, fica evidente o importante papel exercido pela reflexão acerca

da sociedade e da história não só âmbito mesmo da compreensão especulativa, mas para a pró-

pria prática social-histórica, isto é, seu impacto nos modos do fazer social-histórico, um fazer

ser (sendo). Impacto que ocorre quando, entre outras coisas, busca justificar o porquê de ser ou

de dever ser desta maneira e não de outra, legitimando ou não, sancionando ou não estas e não

outras instituições. Ao mesmo tempo, portanto, em que fica patente a importância ou mesmo a

urgência de se conceber o pensamento enquanto constructo social-histórico, e mais importante:

de não ver nisso um infortúnio ou flagelo. Castoriadis se insere neste ponto, reconhecendo e

valorizando o legado herdado por suas próprias reflexões, embora busque reposicioná-lo, supe-

rando os excessos da confiança na razão e, o que dá no mesmo, da desconfiança no imaginário.

Assim, não se trata de rejeitar a possibilidade da diferença do idêntico, pois sem isso nada

existe72, ou de ignorar que a dimensão conjuntista-identitária seja ineliminável, dessarte, que o

tempo, como toda instituição social-histórica, é também identitário. Trata-se de voltar a ver o

tempo verdadeiro, o tempo como expressão do imaginário radical73, como mais do que isto aqui

e agora e isto ali e depois.

O ser só é na medida em que está por-ser, na medida em que é tempo, instância de

aparição da alteridade radical, emergência de eidos, de formas outras74. Outras, não apenas di-

ferentes, a saber, “sem análogo ou precedente numa outra região do ser”75, o “que de nenhuma

maneira é [ou está já] dado com o que é, não forma unidade com este”76, não sendo-lhe mero

desdobramento ou manifestação sucessiva de suas determinações vindas de um alhures invari-

ável, indubitável e fora, independente do tempo e “sob a forma então necessariamente exterior

da diferença”77. Na verdade, “são outras não mediante o que elas não são [...], mas mediante o

que elas são”78: gênese ou criação ontológica absoluta, genuína: poiésis, passagem do não-ser

ao ser. Não “simplesmente e somente indeterminação, mas aparecimento de determinações, ou

melhor, de formas-figuras-imagens-eidé outras”79.

72 Ibid., p. 230. 73 Ibid., p. 229. 74 “Dizer que a figura B é outra que não a figura A, no sentido aqui dado a este termo, é dizer que de A a B, há

indeterminação essencial. Isso não significa evidentemente que a indeterminação seja total, que tudo que é deter-

minável em B deva ser outro que não tudo que é determinável em A. Pode haver e, de fato há sempre, persistência

ou subsistência de certas determinações” (ibid., p. 236). 75 Ibid., p. 216. 76 Ibid., p. 228. 77 Ibid., p. 227. 78 Ibid., p. 229. 79 Ibid., p. 226.

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Assim, essa nova perspectiva ontológica visa a um tipo de ser caracterizado por uma

indeterminação de essência, ou seja, que escapa essencialmente à determinidade (péras), como

é o caso do social-histórico, do imaginário e do inconsciente80: “obriga, portanto, a reconsiderar

o sentido de ser ou então clarifica uma outra face, até aqui não vista, desse sentido”81. Essa

posição (fazer cognoscente) é posição relativa, porquanto sujeita uma elucidação permanente,

porque provisória, limitada, fragmentada, apoiada sobre um saber efetivo82. Ao mesmo tempo,

é consciente, lúcida, embora não estritamente racional, jamais absoluta, ainda que, por vezes,

exaustiva. Encontra-se nas raízes do projeto castoriadiano, um projeto revolucionário orientado

para transformação radical da sociedade no sentido da autonomia individual e social, acerca da

qual esperança – de esperança e de esperançar: de práxis. Pois reposiciona e evidencia no cen-

tro, no âmago (criador) do mundo humano aquilo que o diz, o faz e o representa como, inclusive

a e para si mesmo, propriamente humano: a função ou capacidade imaginária radical (insti-

tuinte, criadora) tanto do sujeito como sujeito – sua imaginação radical –, quanto do coletivo

anônimo que é a sociedade – seu imaginário radical.

3. DEMOCRACIA RADICAL: A FORMA POLÍTICA DA SOCIEDADE INSTITUINTE

Autonomia individual é virtualidade de uma nova relação sempre possível e altamente

desejável entre o consciente e o inconsciente. Torna-se fatalidade, isto é, condição ou capaci-

dade autônoma de fato, quando sujeita os elementos do inconsciente (o Id, o imaginário e o

discurso do outro) a um processo de elucidação pela atividade consciente do sujeito cujo dis-

curso próprio vai sendo constituído ao mesmo tempo. De maneira ainda mais específica, a au-

tonomia resulta em reposicionar a função imaginária como instituinte fonte de criação explícita

ao sujeito, desvinculando momentaneamente o imaginário – donde a constante necessidade de

elucidação –, de operar mediante os ditames da função Id do inconsciente, a saber, pelo “prin-

cípio de des-realidade”83. Esse “princípio” é corolário de uma atuação concomitante tanto da

imaginação do sujeito sobre o discurso do outro, reelaborando-o com algum comedimento84,

80 Ibid., p. 203. 81 Ibid., p. 217. 82 Cf. ibid., p. 89 ss. 83 Ibid., p. 124. 84 “Não se trata da ‘realidade’ ou das ‘exigências da vida em sociedade’ como tais, e sim do que se tornam essas

exigências no discurso do Outro (que por sua vez aliás não é absolutamente o veículo neutro) e na elaboração

imaginária deste pelo sujeito. Isso evidentemente não nega a importância capital, para o conteúdo do discurso do

Outro, e para o modo de proceder específico que tomará a elaboração imaginária, do que concretamente é a soci-

edade considerada” (ibid., p. 125, nota de rodapé 31).

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quanto do Id sobre o imaginário, que a este autonomizando, permite-lhe o potencial de agir

como se independente fosse. Tal processo de elucidação não tem o escopo e não é mesmo capaz

de eliminar todo e qualquer resquício do discurso do outro, cuja presença não só não consiste

em impureza, mas fundamentalmente instaura o sujeito enquanto indivíduo social. Também

não visa ou pode reconsiderar tudo, mesmo que para ratificar o discurso do outro, neste mo-

mento, já sendo do próprio sujeito que o confirma, porque assim como o imaginário, o discurso

do outro é infindável. Nem atua o tempo todo: cuida-se de um processo em que a subjetividade

humana se abre para depois voltar-se a fechar, provisoriamente. É um processo de relativa su-

peração da exterioridade recíproca, um pseudofechamento. Ser autônomo não é ser qualquer

coisa ou qualquer um, ainda é ser alguém, alguém definido: “um sujeito autônomo é aquele que

sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdadeiro e isso é bem meu desejo”85.

Portanto, a autonomia implica-se imediata e mutuamente à dimensão social, o que sig-

nifica dizer que, como práxis ou projeto revolucionário86, ela só pode ser perseguida para o

indivíduo se o for para todos, coletivamente. Noção que ultrapassa o postulado daquela liber-

dade bastante abstrata e formal, como possibilidade de exercício ou expressão puros de um si

mesmo excessivamente isolado. Nessa empreitada coletiva, duas dimensões do fazer humano,

dois modos específicos da práxis podem e devem exercer um papel central no projeto de auto-

nomia, a política e a educação. A organização ou reorganização da sociedade deve conseguir

estabelecer instituições cuja interiorização pelos indivíduos não decorra meramente do sancio-

namento (em maior ou menor grau) que as tipifica; mas principalmente de uma postura ativa,

engajada e informada de julgá-las de tal maneira a se poder legitimar cada vez de novo as ins-

tituições existentes e até mesmo a própria capacidade de julgamento. Esse é o verdadeiro

85 Ibid., p. 126. 86 “Chamamos de práxis este fazer no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e considerados

como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia. A verdadeira política, a verdadeira peda-

gogia, a verdadeira medicina, na medida em que algum dia existiram, pertencem à práxis. [...] Poderíamos dizer

que para a práxis a autonomia do outro ou dos outros é, ao mesmo tempo, o fim e o meio; a práxis é aquilo que

visa o desenvolvimento da autonomia como fim e utiliza para este fim a autonomia como meio. Essa maneira de

falar é cômoda, porque facilmente compreensível. Mas ela é, rigorosamente falando, um abuso de linguagem, e os

termos fim e meio são absolutamente inadequados neste contexto. [...] Na práxis a autonomia dos outros não é um

fim, ela é, sem jogo de palavras, um começo. [...] O projeto é o elemento da práxis (e de toda atividade). É uma

práxis determinada, considerada em suas ligações com o real, na definição concretizada de seus objetivos, na

especificação de suas mediações. É a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do

sentido desta transformação, levando em consideração as condições reais e animando uma atividade. É preciso

não confundir projeto e plano [...], projeto e atividade do ‘sujeito ético’ da filosofia tradicional. [...] Quando se trata

de política, a representação da transformação visada, a definição dos objetivos, pode assumir – e deve necessaria-

mente assumir, sob certas condições – a forma de programa” (ibid., pp. 94, 95 e 97).

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“componente democrático da atividade política e das instituições que dela decorrem”87 e o sen-

tido social do agir autônomo.

Infelizmente, não é essa a situação que se tem visto acontecer nos países ditos democrá-

ticos. A democracia liberal moderna, alcunhada por muitos de “democracia convencional”88,

têm pouquíssimo conteúdo democrático para além da formalidade de eleições livres e regulares,

assim estruturadas em face do parâmetro de um sistema representativo, no qual o exercício do

poder político se dá por intermédio de outrem eleito para um mandato de tempo determinado –

mandato cujas hipóteses de perda ou, o que em muitos casos dá no mesmo, de controle político

efetivo por parte dos cidadãos constituintes restringem-se em sua quase integralidade a assuntos

não eminentemente políticos, ainda que interessem89. Nos vértices dessa organização ou regime

estão a titularidade e o livre exercício iguais de direitos civis e políticos – em praticamente toda

parte, de natureza constitucional –, a atuação de uma imprensa livre e independente e um con-

junto de instituições públicas separadas do corpo político e, primordialmente em razão disso,

caracterizadas por uma burocracia cada vez mais complexa: o Estado.

Nesse contexto, densamente jurídico, diga-se de passagem, partidos políticos adversá-

rios disputam as instâncias governamentais, entre as quais a soberania popular, o poder político

que dela emana é repartido. Durante esse processo eleitoral, com duração limitada a certo perí-

odo de tempo, de poucos meses no geral, mas cujas consequências decisórias estendem-se por

anos, propaganda e financiamento das campanhas atuam lado a lado, com fins – pelo menos os

que são confessos – de convencer os eleitores a aderirem a tal ou qual plataforma político-

partidária. Plataforma, no mais das vezes, unilateralmente formulada no recesso de algum ga-

binete e simplesmente apresentada em uma página oficial do candidato na internet ou, no caso

brasileiro, também depositada junto ao Tribunal Regional Eleitoral respectivo, por consistir em

um requisito formal para o registro das candidaturas. Adesão: essa é a maneira por meio da qual

os cidadãos expressam talvez a sua vontade.

A experiência de descrever esse cenário é no mínimo curiosa: tão comum, tão diuturno

e ainda assim causou tamanho estranhamento ao autor deste texto. É sintomático, pode-se dizer.

Esse estado de coisas chamado “democrático” foi de tal forma interiorizado, autonomizado que,

mesmo estando tão próximo, aparece ou figura-se tão distante e descolado da vida comum dos

cidadãos. De um lado, porque se sente seus muitos impactos, mas não a possibilidade de mover

uma “estrutura” tão pesada. Mas principalmente porque se apercebe do caráter social-histórico

87 Castoriadis, 2004, p. 178. 88 Por todos, cf. Fung e Cohen, 2007, p. 221. 89 Basta conferir, por exemplo, as disposições constitucionais brasileiras sobre o assunto, constantes de seu art. 55.

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do arranjo institucional, de que não possui origens nem justificativas extra-sociais, e de que o

fato de ter sido recebido por herança exige não passividade, mas, muito pelo contrário, a urgên-

cia de uma nova relação com o passado, a elucidá-lo.

Nada obstante, pode-se argumentar e é um argumento válido que a democracia liberal

ainda oferece muito com um custo muito baixo. Afinal, é uma democracia de massas, que arre-

gimenta populações enormes, em meio a um estilo de vida dia após dia mais acelerado. Várias

coisas surpreendem nessa argumentação, mas talvez o mais surpreendente é o reconhecimento,

embora quase totalmente implícito, de que o sistema representativo, pelo menos como tem sido,

é estranho à própria ideia de democracia. E isso não advém de uma mera oposição entre demo-

cracia direta e indireta, como se estivessem em pé de igualdade ou fossem igualmente legítimas.

Decorre do fato consolidado de que o sistema de representação promove uma verdadeira priva-

tização do espaço público, tomado aqui em sentido estrito, a saber, o que os gregos conheciam

por ekklèsia, em razão de operar segundo a perspectiva da manutenção e ampliação do poder

conquistado e de interesses admitidos como podendo ser dos próprios representantes em si ou

de seu grupo político e quase sempre dos doadores de campanha90. Essa situação é amplamente

reforçada pelo estatuto jurídico sedimentar dos mandatos91. Muito pouco passíveis de controle

político substantivo por parte dos cidadãos, as eleições acabam por gerar e confirmar uma classe

dominante detentora de fato do poder. Assim, o espaço público, que fora original e especifica-

mente constituído pelo povo e por ele investido de poder para a deliberação e a tomada de

decisões efetivas, torna-se um simulacro: lugar de formalização de decisões as quais são

90 No Brasil, a doação empresarial de recursos foi proibida desde 2015, por meio do julgamento da Ação Direta

de Inconstitucionalidade (ADI) 4.650/DF pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ademais dos problemas da deci-

são, as dificuldades agora giram em torno da disputa pelo Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC),

regulado pela Lei n.º 13.487/2017, num país com mais de 30 partidos. 91 “Particularmente engraçado é o que se passa a este respeito quanto à questão da ‘representação’. Aqueles que

escrevem sobre a política hoje não fornecem nenhuma ‘filosofia da representação’. Não vi em parte nenhuma uma

fundamentação ou uma elucidação daquilo que pode ser uma ‘representação’ política, e não consigo ver em que

ela poderia consistir. Seria possível conceber, na conceitualização jurídica ocidental, e em geral, uma regra que

me impedisse de modificar meu testamento ou de revogar uma delegação de poderes que deveria existir unica-

mente em meu interesse (e não contratual)? A ‘representação’ significa que concedemos, unicamente em nosso

interesse (e não dos ‘representantes’ também), por um período de quatro, cinco ou sete anos, pouco importa, uma

delegação irrevogável de poder a alguém. Mas um mandato irrevogável unicamente no interesse do mandante,

mesmo por um prazo limitado, evidentemente desconhecido em direito privado, é absurdo, impossível de construir

juridicamente. O mandatário, delegado, representante não ‘existe’ como tal senão para exprimir a vontade do re-

presentado e só pode engajá-lo na medida em que o expressa. Porém, com o sistema ‘representativo’, a coletividade

dá um mandato irrevogável, por um longo período, a ‘representantes’ que podem agir produzindo situações irre-

versíveis – de tal modo que determinam eles mesmos os parâmetros e a temática de sua ‘reeleição’” (Castoriadis,

2004, pp. 213-214).

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realmente tomadas nos bastidores, nos escritórios a portas fechadas ou em cafés, almoços, jan-

tares, nos pequenos encontros onde e quando as verdadeiras motivações aparecem.

Acrescente-se a essa conjuntura algum grau de comprometimento da capacidade regu-

latória dos governos nacionais92, sobretudo periféricos, frente ao fluxo de interesses econômi-

cos e geopolíticos intensificado pela globalização com a integração e a interdependência cada

vez maiores das economias, transportes e comunicações, e as pessoas mais cedo ou mais tarde

sentirão, de forma conclusiva, que ocupam o reles papel de figurantes. Não demorará muito e

surgirão aqueles proclamando que é preciso fazer o seu país grande de novo. Há uma dimensão

fortemente afetiva aqui. E é dela que o populismo se alimenta, somado à desinformação cujo

sentido, nesse momento, é senão inabilidade, inexperiência, inépcia dos cidadãos referente aos

assuntos da res publica. Desinformação que foi sendo semeada e estimulada, muito antes de

surgir o atual fenômeno das notícias fraudulentas (fake news), justamente em razão do distan-

ciamento entre as ambições do representante e o proveito do representado, em parte possibili-

tado pelo aumento expressivo da burocracia estatal. A desinformações tonou-se, desse modo,

consubstante do sistema representativo. Obviamente, não se ignora os muitos dilemas gerados

pela globalização, a exemplo da concorrência desleal no campo do trabalho, a qual ao fim e ao

cabo significou a transferência de postos de emprego para países cuja escassez de legislação

trabalhista faz oferecer mão de obra incomparavelmente barata. Porém, tais problemas são re-

forçados quando o fluxo desses interesses adentra pelas fissuras de um regime democrático

frágil, porque superficial.

Ora, essa conjuntura seria mais precisamente identificada não a uma democracia, mas a

uma oligarquia constitucional liberal93, haja vista que um ínfimo estrato da sociedade, dos cam-

pos político, econômico e midiático, exerce domínio sobre toda ela, não obstante permaneçam

constitucionalmente assegurados direitos e garantias individuais fundamentais de igual modo a

todas as pessoas. O fato é que essa salvaguarda jurídica, sem embargo da importância do pos-

tulado acerca da força normativa da constituição, já plenamente aceito sobretudo na esfera ju-

dicial, permanece muito restrita, no que tange à ideia de democracia, ao princípio da isonomia,

a igualdade formal perante a lei, e, quando muito avançou numa direção mais substancial, de-

limitou-se a demandas por igualdade de condições e oportunidades, de acesso a bens e serviços.

Consectário disso é a social-democracia, o estado de bem-estar social, notadamente, na Europa

ocidental. Na experiência brasileira, dois avanços em especial, embora ainda enfrentem

92 Fung e Cohen, 2007, p. 221. 93 Castoriadis, op. cit., p. 210.

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limitações e desafios, são talvez as mais importantes conquistas das últimas décadas nessa di-

reção: a criação e implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal

de 198894 – esta que, naquela altura, foi o ápice de um longo e tortuoso processo de redemocra-

tização –, e a criação e ampliação do que logo viria a se tornar o maior programa de transferên-

cia condicionada de renda a pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza do mundo: o

Bolsa Família95.

Por importantíssimas que sejam tais conquistas quanto à melhoria da qualidade de vida,

quando aderem à noção de democracia com a intenção de confirmá-la enquanto tal, o fazem de

acordo com um sentido que Castoriadis, comentando Tocqueville, corretamente denominou so-

ciológico e não político96. Isso significa à caracterização de uma democracia não ser suficiente

que as desigualdades sociais sejam superadas e atenuadas e os cidadãos desfrutem de uma de-

sejável boa qualidade de vida, dessarte, que tenham igualdade de oportunidades. É preciso ha-

ver igualdade de poder, o crucial sentido político apontado por Castoriadis, donde decorre a

quase ausência de conteúdo realmente democrático nas sociedades ditas democráticas a partir

do paradigma da modernidade. Seja pela situação de extrema desigualdade – não só material,

como também de gênero e racial –, na maior parte dos países do globo, sobretudo naqueles que

sofreram brutais processos de colonização e, não ao acaso, aparecem localizados ao sul do he-

misfério. Seja porque a igualdade de condições, ambiente da liberdade e pressuposto para a

possibilidade de um maior e melhor engajamento nos assuntos e na gestão da coletividade,

mesmo quando alcançada por alguns países desenvolvidos, não se fez corresponder à igualdade

de poder político efetivo.

É a igual possibilidade de participação efetiva no poder e na tomada de decisões políti-

cas que substancialmente conduz a um governo do povo pelo povo. E isso está muito além de

uma simples remissão à etimologia97A, B, C da palavra “democracia”: dèmos, povo e kratos, força

94 Arts. 198 a 200 da CF, regulados principalmente pelas leis 8.080 e 8.142, ambas de 1990. 95 Instituído pela Lei n.º 10.836/2004. 96 Cf. Castoriadis, 2004, p. 201 ss.. 97 A “Saussure estava, conjunturalmente, justificado quando, reagindo contra um pseudo-historismo no domínio

linguístico, insistia na impossibilidade de compreender o que quer que fosse da linguagem pela simples descrição

da evolução fonológica ou semântica, da etimologia das palavras ou das mudanças das formas gramaticais, na

necessidade de concebê-la como um sistema que, a cada momento, deve funcionar e funciona efetivamente, inde-

pendentemente de seu passado. Mas posteriormente se erigiu a distinção dos pontos de vista sincrônico e diacrô-

nico em oposição absoluta e pretendeu-se trabalhar como se o ponto de vista sincrônico fosse o único legítimo,

sendo as considerações diacrônicas olhadas com condescendência, relegadas ao descritivo, excluídas da ‘cientifi-

cidade’” (Id., 1982, p. 253) (grifo meu). B “Sistema” deve ser tomado aqui no sentido da linguagem como “código”, uma de suas “duas dimensões ou

componentes indissociáveis” (ibid., p. 277). Como código, a linguagem “organiza e se organiza identitariamente,

ou seja, enquanto [...] sistema de conjuntos (ou de relações conjuntizáveis); ou, ainda, enquanto legein” (ibid., p.

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ou poder. De modo mais profundo, remete, por um lado, às origens e às significações social-

históricas da própria fundação do regime democrático na antiga Atenas, a qual só pôde ocorrer,

porque ao mesmo tempo, inseparavelmente, era também criada a filosofia, ambas enquanto

condição de – e elas próprias sendo – rompimento da clausura segundo a qual existiam as soci-

edades em redor. Por outro, reporta-se ao projeto revolucionário, a “um futuro indeterminado

como campo de suas atividades”98, exatamente por intentar a autonomia e a política em um

sentido forte, a saber, o da autoinstituicão e reorganização da sociedade consoante um agir con-

junto e esclarecido.

Como se pode notar, “a existência efetiva do social é sempre deslocada interiormente”99,

pois nele convivem ao mesmo tempo passado, presente e futuro – este, enquanto “eficácia pre-

sente do ‘porvir’ na antecipação”99 –, em razão de sua substância ser sempre o imaginário social

(radical), ao qual refere-se indefinidamente, ou seja, muito mais do que tem consciência ou se

dá conta quando lida com a tradição assimilada ou com as esperanças e previsões que faz acerca

do amanhã. Por isso, o projeto revolucionário, não obstante expresse forte intenção instituinte,

não consiste numa disrupção total e absoluta, justamente porque está ancorado com muita fir-

meza numa tradição e numa herança – greco-ocidental – que são em si mesmas revolucionárias,

277-278). Nesse aspecto, faz corresponder, mas não em definitivo, sua parte material-abstrata (os conjuntos de

significantes, que aparecem como imagens e figuras: fonemas, letras, palavras, classes gramaticais, cotejando-se

mutuamente) à outra dimensão essencial da linguagem, chamada por Castoriadis de “língua”: “a linguagem é

língua enquanto significa, ou seja, enquanto se refere a um magma de significações” (ibid., p. 277): a saber, “um

feixe indefinido de remissões intermináveis a outra coisa que (o que apareceria como imediatamente dito). Estas

outras coisas são sempre tanto significações como não-significações” (ibid., p. 283). C “É uma propriedade essencial da linguagem enquanto sistema a de não esgotar-se no seu estado sincrônico, de

não ser jamais redutível a uma totalidade fechada de significações fixas, determinadas, disponíveis, mas de conter

sempre um a mais eminente e constantemente iminente, de ser sempre sincronicamente aberta a uma transforma-

ção das significações. Uma palavra só é palavra, só ‘tem’ uma significação ou refere-se a uma significação se e

somente se ela pode adquirir outras” (ibid., p. 254). “Se alguma vez houve, uma só vez em toda história da huma-

nidade, uma única ideia nova, um único discurso original, isso é bastante para provar o que é dito aqui: a própria

língua, considerada ‘sincronicamente’, era essencialmente aberta à ‘diacronia’, ela continha a possibilidade de sua

própria transformação e fornecia-lhe ‘ativamente’ os meios parciais. [...] Inversamente, é evidentemente também

uma propriedade essencial da língua como história engendrar como modificações de seu ‘estado’ o que é sempre

integrável num ‘estado’, o poder alterar-se, continuando a funcionar eficazmente, o transformar constantemente o

não habitual em habitual, o original em adquirido, ser aquisição ou eliminação incessante, e perpetuar, através

disso mesmo, sua capacidade de ser ela própria. [...] É essencial que a língua permaneça a mesma, não permane-

cendo a mesma e reciprocamente. Não haveria nem língua, nem sociedade, nem história, nem nada se um francês

médio de hoje não fosse capaz de compreender tanto Le Rouge et le Noir [‘O Vermelho e o Negro’, romance

publicado em 1830] ou mesmo as Mémoires de Saint-Simon [escritas na primeira metade do século XVIII, mas só

publicadas na primeira metade do século seguinte], como um texto inovador de um escritor original. Esquecer isso,

seria esquecer esta outra função fundamental da língua, que é a de assegurar a toda sociedade um acesso a seu

próprio passado” (ibid., pp. 255-256). 98 Id., 2002, p. 312. 99 Id., 1982, p. 256.

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isto é, desde suas origens. Porquanto no berço dessa tradição e herança instaurou-se uma pos-

sibilidade e uma atitude até então inédita: a de fazer uma interrogação irrestrita e arrazoada100

sobre o mundo, o qual, em virtude disso, vendo ser desfeita a exterioridade que até então carac-

terizava e justificava seus fundamentos, passou a ser um mundo eminentemente humano: por-

tanto, que a criação dessa nova maneira de ser e de fazer (de fazer ser), sem embargo da cons-

tante denegação e ocultação que sofreu à medida do desenvolvimento das formas tradicionais

do pensamento, tornou-se pela primeira vez explícita. Essa nova relação crítica consigo mesmos

e com a realidade à volta, com seu próprio passado e instituições, permitiu aos gregos interes-

sarem-se pela vivência dos outros povos, num sentido jamais visto antes, o de verdadeiramente

refletir por que existiam (pensavam, vestiam, dançavam, falavam, comiam etc.) assim e não de

outro modo e o de considerá-los como igual fonte de originalidade. Enfim, permitiu a habilidade

de julgar e escolher101 num sentido não trivial: esta e não outra forma de vida, de comunidade,

de instituições. Nesse longo processo de mais de quatrocentos anos de rompimento da própria

clausura, conforme a qual a única visão de mundo legítima é a de quem fala, os gregos culmi-

naram-se na qualidade de democracia e de filosofia, de autonomia, conteúdo mesmo daquelas.

Em outras palavras, isso significou nesses sujeitos uma profunda modificação de sua “estrutura

antropológica, sociopsíquica”102, de seus hábitos, rotinas, convenções, fazendo-se mutuamente

acompanhar de uma mudança nas instituições formais às quais em algum grau passaram tam-

bém a corresponder.

De fato, parece muito mais fácil – e isso não é dito com qualquer desdém –, pensar ou,

mais precisamente, pretender a democracia como universal, quando seus postulados ancoram-

se em normas ou princípios que, de algum modo, são concebidos como capazes de desprende-

rem-se da contingência. Mas se a democracia é criação, se é significação social-histórica, então

de qual maneira julgar e escolher? Para começar, é preciso reconhecer que, desde esse ponto de

vista e seu surgimento, desde que passou a existir essa possibilidade de julgamento e de escolha,

um valor positivo, ainda que bastante pontual e limitado103A, B, foi e permanece imediata e inex-

tricavelmente atribuído a esta tradição, diferindo-a de modo qualitativo e substancial das demais

expressões culturais, precisamente por engendrar a capacidade de livre pensar104. Portanto, o

100 Id., 2002, p. 277. 101 Ibid., p. 277. 102 Id., 2004, p. 186 e ss.. Ainda a esse respeito, interessante conferir também: Vernant, 2002. 103 A Id., 2002, p. 279. B “Não há nem poderia haver a menor diferença de ‘valor humano’, de ‘mérito’ ou de

‘dignidade’ entre diferentes povos e culturas” (Ibid., p. 278). 104 Cf. Vernant, 2002, p. 11.

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próprio vínculo com a herança greco-ocidental já constitui em si mesmo, já enreda uma escolha

e um julgamento.

Desse reconhecimento, porém, não se pode deduzir qualquer consequência prática in-

continenti. Pois foi também no âmbito da cultura e sociedades ocidentais, em especial naquelas

presunçosamente autodenominadas civilizadas, nas quais se presenciou algumas das mais ter-

ríveis e abomináveis práticas humanas: toda a violência e brutalidade da escravidão, do impe-

rialismo ou neocolonialismo, do apartheid, do darwinismo social subjacente, da primeira guerra

mundial. As cruéis atrocidades dos regimes totalitários e da segunda guerra, as bombas atômi-

cas em Hiroshima e Nagasaki. Ainda a Guerra Fria e sua corrida armamentista, os golpes mili-

tares nas nações latinas, muitos dos quais incentivados e apoiados pelo Estado norte-americano,

a guerra entre Estados Unidos e Vietnã. No pós-segunda guerra, a Europa era reconstruída, um

certo sistema de direito ou de cooperação internacional era elaborado, declinava o comunismo

soviético, iniciavam-se os tardios e tortuosos processos de redemocratização do leste europeu,

enquanto, pouco a pouco, as tensões iam sendo deslocadas para o oriente médio.

E quanto mais se poderia relatar? Hodiernamente, o controle exercido pelas mídias di-

gitais, a espionagem em larga escala, como as revelou Edward Snowden, os crimes de guerra

reportados por Julian Assange, a ascensão de novas formas de populismo, a já irreversível de-

gradação ambiental, as desigualdades extremas e mais plenamente evitáveis, a exemplo da falta

de acesso a bens e serviços dos mais básicos para uma vida digna: água potável, saneamento

básico, alimentação nutritiva, cuidados médicos essenciais, educação que permita ler, interpre-

tar e fazer contas simples de matemática, estabilidade do mercado de trabalho. Tudo isso ainda

grassando, e o projeto de povoar Marte. Com todo respeito e deferência pelo altíssimo nível de

ciência envolvido, porém quantos cabem mesmo numa nave? Permanece, entretanto, pratica-

mente intocada a lógica econômica baseada no crescimento exponencial do consumo, que tanto

dano causou e tem causado. E após o século XX, quão estranho pensar que muitos países tem

alcançado recorde após recorde na ampliação de seus orçamentos de defesa105, não raras vezes

maiores que os investimentos em outras áreas.

105 Conforme relatório do Instituto Internacional de Pesquisas da Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês) de

2020: “World military expenditure is estimated to have been US$1917 billion [2 trilhões de dólares] in 2019. It

accounted for 2.2 per cent of world gross domestic product (GDP) or $249 per person. Spending in 2019 was 3.6

per cent higher than in 2018 and 7.2 per cent higher than in 2010. The growth in total global military spending in

2019 was the fifth consecutive annual increase and the largest of the decade 2010–19, surpassing the 2.6 per cent

rise in 2018. Military expenditure also increased in at least four of the world’s five regions: by 5.0 per cent in

Europe, 4.8 per cent in Asia and Oceania, 4.7 per cent in the Americas and 1.5 per cent in Africa. For the fifth

successive year, SIPRI cannot provide an estimate of total spending in the Middle East” (SIPRI, 2020, p. 10).

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A vida em sociedade é um dado incontornável. Declarar que toda essa situação é alta-

mente destrutiva e, sem o menor exagero, já ameaça o futuro da vida sobre a terra, é fazer um

julgamento prudente (doxa) e reconhecer que se está diante de uma escolha: que é urgentemente

necessário encontrar novos caminhos em comum, e, como se pode perceber, não só localmente,

mas em nível global. No horizonte da história, “da história feita e da história se fazendo”106,

salta aos olhos a instituição da democracia107, porque seu conteúdo essencial e seu sentido es-

pecífico revestem-se de uma potencialidade universal, própria das coisas humanas: não a raci-

onalidade, como se pensou durante muito tempo, mas a criação autônoma como obra do ima-

ginário radical. Esse reconhecimento é o que deveras permite – não garante, mas permite – a

viabilidade de se acolher em domínios democráticos uma convivência não hierarquizada e pa-

cífica – mais ou menos conflituosa, deslocados os conflitos da força bruta para o uso da pala-

vra108 –, de diversificadas perspectivas epistemológicas, de diferentes jeitos de compreensão do

mundo. Em outros termos, a democracia é o único regime político realmente capaz de alinhar,

valorando com a mesma força, a liberdade e a igualdade.

Num sentido prático, esse é o exato motivo pelo qual Castoriadis adota uma noção ra-

dical de democracia, pode-se dizer, como expressão ou forma política da sociedade instituinte,

como autoinstituicão e autoalteracão, como o devir verdadeiramente público do que chama de

domínio público/público109, a ekklèsia, por sua abertura ampla e irrestrita, pela disponibilidade

de todos os assuntos da vida social à deliberação e à participação popular efetivas. Democracia

radical é, portanto, a forma como a práxis de autonomia pode se dar como política. E mesmo

que reconhecendo o locus greco-ocidental desse paradigma e as intermináveis limitações das

sociedades marcadas por sua influência, essa é a situação de toda instituição social-histórica,

da sociedade instituinte, ainda que não explicitada. Isso não significa às sociedades “fechadas”

que mais cedo ou mais tarde tenderão a isso. Muito menos autoriza atitudes imperialistas. Sig-

nifica simplesmente: há uma possibilidade, porque sempre há virtualidade de autonomia. É

nessa virtualidade em que se apoia o desejo de mudança, identificado por Castoriadis às raízes

subjetivas do projeto revolucionário. Todas essas transformações não serão feitas por heróis,

mas por pessoas como o homem do barco no “Conto da Ilha Desconhecida”, “pela ação autô-

noma dos homens tais como são produzidos pela presente sociedade”110. E embora vez ou outra

106 Castoriadis, 1982, p. 131. 107 “Na medida em que o sentido e as potencialidades dessa criação não estejam esgotados [...], a Grécia é para nós

um gérmen: nem um ‘modelo’, nem um espécime entre outros, mas um gérmen” (Castoriadis, 2002, p. 280). 108 Cf. Vernant, 2002, p. 53 ss. 109 Castoriadis, 2004, p. 208. 110 Id., 1982, p. 98.

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apareçam figuras mais destacadas, não se deve esperar por elas; a empreitada é eminentemente

coletiva e só pode ser assim.

Portanto, é preciso reconduzir a democracia a suas bases potenciais, criativas, recon-

duzi-la a um projeto como práxis de autonomia individual e social que é seu conteúdo mesmo.

Talvez, uma boa maneira de começar seja colocando a questão nos seguintes termos: como é

possível ser autônomo e, portanto, dar a si mesmo uma lei de cuja formulação e deliberação não

se participou? E repensar o sistema representativo de modo a torná-lo compatível com a atuação

deliberativa e participativa dos cidadãos nos processos decisórios sobre os rumos da coletivi-

dade. Um grande desafio em incontáveis sentidos, mormente perante a altíssima complexidade

da vida contemporânea, donde decorre a premência de soluções a partir de um saber cada vez

mais especializado (epistèmè) cujo consectário é o postulado de que a formulação de políticas

públicas seja baseada em evidências ou dados. Esses temas ficarão para uma investigação pos-

terior, bem como a discussão sobre os eventuais limites da autoinstituicão e autoalteracão ex-

plícita pela comunidade política e a relação com o constitucionalismo e com o reconhecimento

de direitos difusos ou coletivos, entre tantas outras importantes questões afetas.

“Em uma democracia, o povo pode fazer toda e qualquer coisa – e precisa saber

que não deve fazer toda e qualquer coisa. A democracia é o regime da autolimita-

ção; portanto é também o regime do risco histórico – outro modo de dizer que é o

regime da liberdade, e um regime trágico”111.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse percurso, fica de essencial que o fundamento de legitimidade da democracia em

Castoriadis está em reposicionar a autonomia enquanto práxis e projeto, enquanto instituinte,

enquanto atuação criativa explícita dos cidadãos na esfera pública, na definição dos rumos da

coletividade. Entender esse reposicionamento, a forma como Castoriadis o pensa, foi o objetivo

geral da pesquisa. A maneira como pode se realizar, a saber, mediante um empreendimento de

democracia (radical) que realmente possibilite aos cidadãos uma participação e uma deliberação

efetivas na formulação das leis, sendo este o primeiro e basilar impacto da forma peculiar com

que Castoriadis concebe autonomia como criação – o fundamento de legitimidade –, foi o ob-

jetivo específico e o resultado do presente trabalho.

111 Id., 2002, p. 313.

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Para chegar a essas conclusões, a presente investigação partiu de uma breve incursão na

história do pensamento político sobre autonomia e liberdade, desde a modernidade até aos dias

atuais, no intuito de permitir ao leitor situar os modos pelos quais as valiosíssimas contribuições

de Cornelius Castoriadis se inserem: a saber, superando a excessiva e estrita confiança na razão

e no postulado de determinidade que lhe subjaz.

No capítulo segundo, inteiramente dedicado a compreender as bases das riquíssimas,

vastas e densas reflexões de Castoriadis, sobretudo a partir de sua obra principal, “A instituição

imaginária da sociedade”, em cotejo com o “Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago,

viu-se como uma nova concepção do tempo, de um tempo verdadeiramente autêntico – do his-

tórico enquanto social e do social enquanto histórico –, permite uma abertura à indeterminidade,

vista não mais como um defeito ou como decaimento dado pela condensação do aei na matéria.

Mas como uma qualidade de que tem posse o humano, enquanto ser dotado de incomensurável

capacidade poiética.

Por isso, no terceiro capítulo, buscou-se demonstrar como esse entendimento reflete-se

sobre a autonomia individual e social, ao fazer dessa capacidade radicada no imaginário, tanto

social quanto individual, um projeto como práxis de autonomia. Sua passagem à prática política

se dá imediatamente, porque o sujeito humano é um sujeito social-histórico, é significação ima-

ginária social, e a autonomia só pode ser alcançada para ele se o for para todos, coletivamente.

Sem embargo, também se dá criticamente, quando a democracia, empreendida em um sentido

radical, coloca a autonomia como seu cerne, expressando-a como seu conteúdo mesmo: fazer

ser, fazer ser sendo.

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