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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARIANA CARVALHO SANTOS DE ALBUQUERQUE BRINCANDO SE APRENDE: a disposição de brinquedos como lente investigativa sobre a socialização para o consumo RIO DE JANEIRO 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MARIANA CARVALHO SANTOS DE ALBUQUERQUE

BRINCANDO SE APRENDE: a disposição de brinquedos como lente investigativa sobre a socialização para o consumo

RIO DE JANEIRO

2013

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARIANA CARVALHO ... · Agradeço a Olavo Resende, mais um colega de mestrado pela companhia e apoio na reta final. Agradeço à Mariana Ferreira

MARIANA CARVALHO SANTOS DE ALBUQUERQUE

BRINCANDO SE APRENDE: a disposição de brinquedos como lente investigativa sobre a socialização para o consumo

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa

de Pós-Gradução em Administração, Instituto

COPPEAD de Administração, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração.

Orientadora: Maribel Carvalho Suarez, D.Sc,

Rio de Janeiro

2013

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Albuquerque, Mariana Carvalho Santos de. Brincando se aprende: a disposição de brinquedos como

lente investigativa sobre a socialização para o consumo / Mariana Carvalho Santos de Albuquerque. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 139 f.: il.; 31 cm.

Orientadora: Maribel Carvalho Suarez. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração, 2013. 1. Comportamento do consumidor. 2. Marketing. 3.

Administração – Teses. I. Suarez, Maribel Carvalho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Coppead de Administração. III. Título.

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MARIANA CARVALHO SANTOS DE ALBUQUERQUE

BRINCANDO SE APRENDE: a disposição de brinquedos como lente investigativa sobre a socialização para o consumo

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa

de Pós-Gradução em Administração, Instituto

COPPEAD de Administração, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração.

__________________________________________________

Cecília Mattoso, D.Sc – Universidade Estácio de Sá

__________________________________________________

Roberta Dias Campos, D.Sc – Coppead/UFRJ

__________________________________________________

Maribel Carvalho Suarez, D.Sc – Coppead/UFRJ

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Dedicatória

Dedico esta dissertação ao meu sobrinho, Alfredo, que me traz inspiração e alegria na vida.

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, aos professores que compõem a Comissão de Ensino do

mestrado pela generosidade em terem me concedido a possibilidade de finalizar esta

dissertação.

Agradeço à minha orientadora, Profa. Maribel Suarez, que, com carinho e dedicação, me

orientou ao longo desse do caminho, por vezes tortuoso, de me tornar uma verdadeira

pesquisadora.

Agradeço ao Prof. Victor Almeida por sempre acreditar que eu seria capaz de chegar até aqui.

Agradeço à secretaria acadêmica do mestrado pelo apoio durante os anos em que circulei

pelos corredores do Coppead.

Agradeço aos amigos de mestrado: Debora Mattioda, Mariana David, Paula Porto e Vinícius

Pereira, pelos quais tenho um carinho imensurável.

Agradeço a Olavo Resende, mais um colega de mestrado pela companhia e apoio na reta final.

Agradeço à Mariana Ferreira e Noêmia Figueiredo, grandes amigas e personagens desta

pesquisa.

Agradeço à amiga Luiza Aquim, minha maior entusiasta.

Agradeço ao meu companheiro, Rodrigo, pelos dias e noites de trabalho ao meu lado.

Agradeço ao meu pai, Fernando, pelo apoio e amor incondicionais.

Agradeço à minha mãe, Ana Amelia, por acreditar em todas as minhas conquistas.

Por fim, agradeço à minha irmã, Luciana, por estar ao meu lado nos momentos mais difíceis

da minha vida.

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Andy: Now Woody, he's been my pal for as long as I can remember. He's brave, like a

cowboy should be. And kind, and smart. But the thing that makes Woody special, is

he'll never give up on you... ever. He'll be there for you, no matter what.

Andy: O Woody, ele tem sido meu amigo desde sempre. É corajoso, como um

cowboy deve ser. É gentil, inteligente. Mas o que faz o Woody especial é que ele

nunca vai desistir de você... nunca. Ele vai estar contigo pro que der e vier.

[Ao doar seus brinquedos para Bonnie, Andy apresenta a ela seu boneco Woody ]

Fala do filme Toy Story 3 Disney-Pixar, 2010

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Resumo

ALBUQUERQUE, Mariana Carvalho Santos de. Brincando se aprende: a disposição de

brinquedos como lente investigativa sobre a socialização para o consumo. Rio de Janeiro,

2013. Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O presente estudo exploratório tem como objetivo entender o processo de consumo de

brinquedos pelas famílias, dando especial ênfase à disposição – que se refere à tarefa de dar destino

aos produtos e inclui diferentes ações como guardar, doar, trocar, vender, emprestar, alugar ou jogar

fora objetos. Esta pesquisa qualitativa utilizou o método dos itinerários, a partir de entrevistas em

profundidade e observação realizadas na casa de 15 mães cujos filhos possuem entre dois e sete anos

de idade. Além dos aspectos lúdicos e de desenvolvimento das crianças, o trabalho permitiu acessar

outros significados envolvidos no processo de consumo dos brinquedos, como o resgate da memória

de infância dos pais, a tentativa de demarcar limites entre adultos e crianças dentro de casa e a

socialização para o consumo no contexto atual de abundância material. Nesse último aspecto, o

incômodo relatado pelas mães em relação à quantidade de brinquedos existentes e a necessidade de

organizar e controlar esse acervo aponta para uma orientação que inclui não apenas o momento da

compra, mas também as práticas de disposição. O envolvimento da criança nessas tarefas de selecionar

aquilo que não usa ou não quer mais termina por ter um caráter pedagógico e moral: na tentativa de

fazê-la compreender que o descarte pode beneficiar tanto ela própria quanto à criança que receberá

seus brinquedos. Elaborou-se, ainda, uma tipologia de comportamento materno que sinaliza quatro

diferentes formas de atuação das mães no processo de consumo de brinquedos, a seguir. A

materialista imobilizada compra muito e descarta pouco. Os produtos são vistos em sua coletividade

e com eles não cria vínculos. Socializa os filhos para viver em um ambiente de afluência de bens

materiais. A materialista desapegada compra e descarta com a mesma frequência. Não cria vínculos

com os objetos. Fluxo de brinquedos rege a orientação que dá ao filho sobre o consumo. A

simplificadora biográfica cria forte ligação com cada brinquedo. O descarte é visto como uma

interrupção da história da família que cada objeto ajuda a contar. Tanto descarte, quanto consumo

ocorrem com pouca frequência. A simplificadora relacional consome pouco mas recebe brinquedos

de amigos e parentes. Descarte também ocorre para pessoas conhecidas. Mantém viva a ideia de uma

rede de compartilhamento.

Palavras-chave: disposição, descarte, socialização para o consumo, mães, família, brinquedos,

Método dos itinerários.

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Abstract

ALBUQUERQUE, Mariana Carvalho Santos de. Learn through play: the disposition of toys

as the investigative lens over consumer socialization. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação

(Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

This exploratory study seeks to understand the toy consumption process by families, giving

particular emphasis to disposition - which refers to the task of giving the product a certain destination

and includes different actions like saving, donating, exchanging, selling, lending, renting or disposing

objects. This qualitative study used the Itinerary Method, proposed by Dominique Desjeux, combined

with in-depth interviews conducted with 15 mothers whose children are between two and seven years

of age. Besides regarding entertainment and child development, this work enabled access to the

meanings involved in the consumption process of toys, such as childhood memory recovery from

parents, attempts to settle boundaries between adults and children in the home and consumption

socialization in the, nowadays, context of material abundance. In this latter aspect, the discomfort

reported by mothers in relation to the amount of existing toys and the need to organize and control this

collection points to an orientation that includes not only the moment of purchase, but also disposition

practices. The involvement of children in the task of selecting what is out of use or unwanted, ends up

having a pedagogical and moral character in their lives: the attempt to make them understand that

disposition may benefit both themselves as the child who will receive their toys. A typology for

maternal behavior that signals four different ways mothers act in the toy consumption process, was

elaborated as follows. The Immobilized Materialistic mom buys a lot and disposes very little. She

sees toys in their collectivity and no attachment is created with the objects. She socializes her children

to live in an environment of material affluence. The Detached Materialistic mother purchases and

discards in the same rythm. She does not create a connection with any specific object. A flow of toys

guides the way she teaches about consumption to her kid. The Biographical Simplifier mother creates

strong bonds with each of her childern’s toys. Disposal is seen as a disruption of family history, as

each object has an important role in keeping the stories alive. As disposal, consumption is modest to

her. The Relational Simplifier mom doesn’t consume much but receives toys from friends and

relatives. Disposition also occurs to people in her personal network: she believes in sharing her

possessions with others.

Keywords: disposition , disposal , consumer socialization, mothers, family, toys, Itinerary Method.

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Lista de Figuras

Figura 1: Esquema gráfico da interação de identidades nas práticas de consumo, (Epp e Price, 2008) 22 Figura 2: Estilos de pais na interação com os filhos (Parental Style), (Carlson, Laczniak e Wertley, 2011) ..................................................................................................................................................... 38 Figura 3: Intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977) .................................................................................................................... 46 Figura 4: Paradigma do Processo de Disposição de Produtos pelo Consumidor, (Hanson, 1980) ....... 48 Figura 5: Avaliação para a disposição de objetos e roupas infantis, (Sego, 2010) ............................... 65 Figura 6: Esquema teórico – Processo de consumo e disposição .......................................................... 68 Figura 7: Não se desfazer - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977) .................................................................................. 88 Figura 8: Limbo - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977) ...................................................................................................... 99 Figura 9: Desfazer-se permanentemente - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977) ................................................................... 100 Figura 10: Matriz de tipologias de comportamento materno em relação aos brinquedos dos filhos .. 118

Lista de Fotografias

Fotografia 1: Pista de corrida de fita crepe (sala) .................................................................................. 78 Fotografia 2: Quarto dos brinquedos ..................................................................................................... 80 Fotografia 3: Gaveta com brinquedos arrumados (quarto do filho) ...................................................... 83 Fotografia 4: Veículos (corredor) .......................................................................................................... 89 Fotografia 5: Arrumação atual do quarto do filho ................................................................................. 89 Fotografia 6: Triciclo (na frente da porta de casa) ................................................................................ 91 Fotografia 7: Baldes com brinquedos azul e verde (quarto de empregada) .......................................... 92 Fotografia 8: Balde de brinquedos vermelho (quarto de empregada) ................................................... 92 Fotografia 9: Baú de brinquedos (quarto da filha) ................................................................................ 98

Lista de Quadros

Quadro 1: Seleção das entrevistadas ..................................................................................................... 75 Quadro 2: Tipologias de comportamento materno x Relações e práticas ........................................... 122

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Sumário

1 Introdução ........................................................................................................................ 12

1.1 Objetivo do trabalho .................................................................................................. 14

1.2 Questões de pesquisa ................................................................................................. 14

1.3 Relevância do estudo ................................................................................................. 15

1.3.1 Relevância acadêmica......................................................................................... 15

1.3.2 Relevância gerencial ........................................................................................... 16

1.4 Delimitação do estudo ............................................................................................... 16

1.5 Estrutura do trabalho .................................................................................................. 17

2 Revisão de Literatura ..................................................................................................... 19

2.1 Consumo e família ..................................................................................................... 19

2.1.1 Família ................................................................................................................ 20

2.1.2 Maternidade ........................................................................................................ 26

2.1.3 Socialização e Consumo Infantil ........................................................................ 30

2.2 Disposição e Descarte ................................................................................................ 43

2.2.1 Traduções e definições ....................................................................................... 44

2.2.2 Motivações ......................................................................................................... 46

2.2.3 Significados ........................................................................................................ 51

2.2.4 Práticas de disposição ......................................................................................... 59

2.2.5 Descarte e maternidade ....................................................................................... 63

2.2.6 Esquema teórico ................................................................................................. 68

3 Metodologia ..................................................................................................................... 69

3.1 Filiação paradigmática ............................................................................................... 69

3.2 Questões de pesquisa ................................................................................................. 70

3.3 Desenho da pesquisa .................................................................................................. 70

3.3.1 Coleta e análise de dados .................................................................................... 70

3.3.2 Seleção das entrevistadas.................................................................................... 74

3.4 Limitações do método ................................................................................................ 77

4 Análise e discussão dos resultados ................................................................................. 78

4.1 A vida com brinquedos .............................................................................................. 78

4.2 Práticas de disposição e descarte ............................................................................... 86

4.2.1 Não se desfazer - Organização espacial ............................................................. 87

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4.2.2 Descarte de brinquedos ....................................................................................... 99

4.3 Socialização para o consumo ................................................................................... 105

4.3.1 Entrada de brinquedos ...................................................................................... 106

4.3.2 Saída de brinquedos .......................................................................................... 109

4.3.3 Fluxo de brinquedos ......................................................................................... 112

4.4 Tipologias de comportamento materno ................................................................... 117

4.4.1 Materialista imobilizada: Marta, 33 ................................................................. 118

4.4.2 Materialista desapegada: Luisa, 34 ................................................................... 119

4.4.3 Simplificadora biográfica: Nádia, 35................................................................ 120

4.4.4 Simplificadora relacional: Marília, 29 .............................................................. 121

5 Considerações Finais ..................................................................................................... 123

5.1 Sugestões para estudos futuros ................................................................................ 130

Referências ............................................................................................................................ 132

APÊNDICE 1 - Roteiro de entrevistas................................................................................ 136

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1 Introdução

Enquanto eu crescia, a tática da minha mãe quando eu e minha irmã nos

recusávamos a arrumar o nosso quarto era: “Eu vou jogar todos os

brinquedos fora!” Às vezes, ela pegava um saco de lixo preto, gigante, e nos

perseguia ao redor da sala com ele. Quando fazia isso, crescia uns dois

metros e seus olhos soltavam faíscas! O que acontecia na realidade era que

ela se sentava ao lado da nossa montanha de brinquedos com seu saco de lixo

e nos ajudava a arrumar nosso quarto, mais uma vez.

Eu não sou como minha mãe. Eu nunca vou ameaçar jogar fora brinquedos

dos meus filhos, mas, às vezes, quando as crianças estão dormindo, eu

realmente jogo seus brinquedos naquele mesmo saco de lixo preto e grande.

Eu deveria me sentir culpada por isso, mas não me sinto. Secretamente, eu

sinto prazer. É libertador jogar um brinquedo no lixo. “Puf!” Eu não sou mais

responsável por esse objeto. Eu não vou gastar nem mais um segundo da

minha vida me abaixando para pegá-lo. Eu nunca mais terei de arbitrar sobre

quem brinca com ele [...]

Outra boa razão para que não me sinta culpada: meus filhos têm coisas

demais. Algumas delas têm que partir [...]. (While my kids, 2010)

Os brinquedos fazem parte do imaginário de toda criança e das práticas cotidianas de

muitos pais que buscam oferecê-los a seus filhos. Ainda na fase exploratória desta pesquisa,

ao buscar delinear o tema deste trabalho, pode-se encontrar na internet, na revista online

Babble, o depoimento apresentado acima, que evidencia o quão difícil pode ser a tarefa de

arrumar, descartar e gerenciar a quantidade de brinquedos na vida das crianças.

Brinquedos em demasia já é tema de matérias de revistas especializadas em crianças e

desenvolvimento infantil. As vozes de alerta para o consumo sem limites surgem, por

exemplo, no título da matéria publicada, em 2004, pela versão online da revista Crescer:

“Overdose de brinquedos”. Lá são discutidos os principais motivos para a crescente

quantidade de brinquedos presentes na vida das crianças. O barateamento do preço desses

produtos é um deles, a propaganda na televisão direcionada a crianças é outro. Até mesmo os

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presentes ganhos de outras pessoas contribuem para abarrotar armários e baús (Overdose de

brinquedos, 2004).

Como consequência desse fenômeno de consumo, programas de televisão já ensinam

pais a arrumarem o quarto de seus filhos: são técnicas de organização que tentam dar conta da

bagunça gerada pela grande quantidade de brinquedos (Como organizar, 2013). Ou ainda, o

surgimento de empresas de aluguel de brinquedos, como o Clube do Brinquedo, em São

Paulo, que “foi pensado por um pai que não tinha mais como acumular tanta coisa em casa”

(Aluguel, 2013). Outros pais buscam saídas como a venda de brinquedos antigos na internet

para viabilizar novas compras, uma maneira de “passar um pouco de educação financeira”

para as crianças (Dia das crianças, 2013). Essa preocupação em ensinar às crianças a

consumirem melhor, ultrapassa a esfera doméstica particular e chega também ao governo

brasileiro que, em 2012, através do Ministério do Meio Ambiente, lançou a ação ‘Ganhou,

doou’ com o objetivo de “estimular o sentido do desapego, do não acúmulo, do não

consumismo nas crianças” (Campanha, 2012).

O processo de consumo tem uma dinâmica circular, que envolve a compra, o uso e o

descarte de produtos, que, por sua vez, abre espaço para novas aquisições (Young e

Wallendorf, 1989). Esse processo, contudo, ocorre de maneira singular quando se trata de

artigos infantis e, em especial, brinquedos, devido ao seu caráter transitório na vida de uma

criança. Ao longo de poucos anos de vida, o ciclo de desenvolvimento de uma criança faz

com que ela perca o interesse pelos brinquedos, na busca por novos desafios e estímulos.

Compra, uso e descarte parecem estar operando de forma acelerada e cabe aos pais – numa

decisão compartilhada, ou não, com seus filhos – coordenar a cadência de entrada e saída de

brinquedos em suas vidas.

Abordar, nesta pesquisa, o processo de consumo significa levar em consideração todas

as suas etapas: entrada de brinquedos na vida das crianças, não penas pela compra, mas como

presentes ganhos de parentes e amigos; uso, o brincar propriamente dito; armazenagem dentro

de casa, em cestos, prateleiras e armários; e descarte, seja uma doação para outra criança, ou

mesmo jogar no lixo um brinquedo quebrado. Além disso, torna-se necessário investigar de

que maneira o acúmulo de brinquedos pode sinalizar tanto um descompasso no fluxo circular

de produtos infantis na vida das famílias, quanto uma oportunidade para o desenvolvimento,

pelos pais, de maneiras de educar seus filhos para o consumo.

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A socialização para o consumo ensina as crianças a agirem no mercado enquanto

consumidores. Aprendem, através de observação, convívio e experiências com os adultos,

como se tornarem aptos a consumir, usar e descartar seus produtos. Assim, esses

consumidores em formação, desenvolvem aptidões tanto para ganhar algum brinquedo e usá-

lo no seu dia a dia, quanto para se desprender de algo que não está mais por perto, com o qual

não podem mais brincar.

Nesta pesquisa, será explorado o processo de consumo de brinquedos pelas famílias,

dando especial ênfase à disposição, que se refere à tarefa de dar destino aos produtos e inclui

diferentes práticas como guardar, doar, trocar, vender, emprestar, alugar ou jogar fora objetos

(Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977). A escolha em abordar o processo de consumo pela da

disposição evidencia a etapa final desse processo como um ponto de partida para novas

aquisições – fazendo-o o girar novamente – e permitindo que seja explorado como um todo.

Assim, é possível afirmar que as práticas de disposição contribuem para a compreensão das

dinâmicas de consumo na sociedade contemporânea. Dentre essas dinâmicas encontra-se

processo de socialização para o consumo, ou seja: o estudo sobre o processo de consumo de

brinquedos permite que se aprenda sobre como novos consumidores são formados.

1.1 Objetivo do trabalho

O objetivo desta pesquisa é investigar o processo de consumo de brinquedos pelas

famílias, dando especial ênfase à disposição, que se refere à tarefa de dar destino aos produtos

e inclui diferentes ações como guardar, doar, trocar, vender, emprestar, alugar ou jogar fora

objetos (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977).

Para endereçar esse objetivo, realizou-se uma pesquisa qualitativa utilizando o método

dos itinerários. No total, foram realizadas 15 entrevistas em profundidade e observação nas

casas de mães com filhos entre dois e sete anos de idade.

1.2 Questões de pesquisa

Questão primária: Como se dá o processo de consumo de brinquedos pelas famílias,

dando especial ênfase à disposição?

Para responder essa pergunta principal, questões secundárias foram desenvolvidas:

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1) Qual o significado do consumo de brinquedos?

2) Qual o significado do processo de disposição dos brinquedos?

3) Como se dá a disposição de brinquedos?

1.3 Relevância do estudo

1.3.1 Relevância acadêmica

Apesar de ainda ser um tema periférico no estudo do comportamento do consumidor, o

processo de disposição – inserido no processo de compra, uso e descarte – já figura como área

de interesse de muitos estudos no campo, como evidencia a edição especial do Journal of

Consumer Research (JCR) dedicada ao tema, publicada em 2009. Os artigos dessa publicação

têm como foco questões relativas ao espaço, à transição de identidades e às relações que

surgem entre esses temas (Parsons e Maclaran, 2009). Muitos deles formam a base teórica

desta pesquisa que busca compreender a disposição, a partir de práticas e espaços visitados

nas casas das entrevistadas.

O estudo sobre o descarte no campo do comportamento do consumidor, de acordo com

Suarez et al. (2011), pode ser dividido em duas abordagens: estudos sobre a reciclagem, nos

quais o consumidor é o agente reciclador, gerencia o próprio lixo e reutiliza produtos; e

estudos sobre aspectos simbólicos do descarte, que lida com os significados de práticas de

descarte e disposição na vida dos consumidores a partir dos quais buscam novas identidades,

passam por transições de vida ou reafirmam seus papéis sócias. Esta pesquisa se situa na

abordagem simbólica do descarte e contribui para a compreensão do movimento dos

brinquedos durante os processos de disposição e descarte e de como esses mesmos processos

operam na socialização para o consumo.

Este estudo, que aborda os processos de disposição de brinquedos pelas mães,

encontra-se em sintonia com outros estudos que envolvem maternidade e descarte, como o de

Sego (2010), que lida com as relações e os destinos que as mães dão para objetos dos seus

filhos; ou o de Phillips e Sego (2011), que trata da construção ou manutenção de identidades,

através de estratégias de descarte adotadas pelas mães. O presente trabalho, entretanto,

procura observar a disposição a partir de sua inserção no processo de consumo (compra-uso-

disposição) e não apenas de maneira isolada, como nos trabalhos existentes. Adicionalmente,

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busca dar especial atenção ao processo de socialização para o consumo das crianças, através

da disposição. Por fim, esta pesquisa investiga o processo de disposição de brinquedos, a

partir do contexto cultural da sociedade brasileira e contribui na evidenciação de práticas de

disposição e descarte não observadas na maioria dos estudos sobre o tema.

1.3.2 Relevância gerencial

A relevância deste estudo, segundo aspectos gerenciais, se dá através da elucidação de

do comportamento de consumidores, no caso mães com filhos pequenos, a respeito do

consumo de brinquedos. Esta pesquisa tem como foco de investigação os processos de

disposição e descarte e pode ser utilizada para o entendimento do que acontece com os

brinquedos depois que eles saem das lojas e entram no universo privado de cada consumidor.

Com ela, será possível compreender os significados e experiências, pela perspectiva do

consumidor, ao usar, guardar e descartar um produto.

Diante de mães que percebem a importância dos brinquedos na vida de seus filhos,

mas que se incomodam com sua quantidade exacerbada, há o espaço para o desenvolvimento

de estratégias de negócio que possibilitem o uso de brinquedos, mas não seu acúmulo nos

quartos das crianças. Essas estratégias podem ocorrer de três maneiras: a primeira, envolve a

indústria de brinquedos e mudanças no processo produtivo; a segunda, diz respeito ao

desenvolvimento de alternativas à compra para o consumidor e a terceira, se refere à criação

de canais de descarte para os brinquedos.

Por fim, as situações e estratégias pelas quais se dá a socialização para o consumo,

trazidas por esta pesquisa, são relevantes tanto para pais e mães, ao educarem seus filhos,

quanto para a compreensão de como novos consumidores são formados. Assim este estudo

contribui na busca do entendimento sobre como as crianças aprendem a consumir hoje e como

consumirão, inseridos na sociedade, ao se tornarem adultos.

1.4 Delimitação do estudo

A principal escolha deste estudo reside na delimitação de investigação do processo de

consumo de brinquedos nas famílias. Assim, não serão abordados outros artigos infantis como

roupas, livros e produtos de alimentação. A escolha por investigar brinquedos como categoria

focal justifica-se pela própria relevância que ela tem na vida das crianças. Brinquedos

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terminam por representar a primeira categoria de interesse na vida dos consumidores.

Adicionalmente, destaca-se seu caráter transitório na vida das crianças, pois a categoria está

“previamente” destinada ao descarte, já que seus donos naturalmente passam por mudanças de

interesses ao longo de seu crescimento. Nesse sentido, a categoria se mostra particularmente

útil para investigar o processo de socialização para o consumo, com especial ênfase na

disposição.

Neste estudo, entende-se o consumo como um processo que envolve as etapas de

compra, uso, estoque/manutenção e descarte de produtos. Em relação à etapa de compra, é

importante ressaltar que aqui também estão incluídas outras maneiras de entrada de

brinquedos na vida das crianças, como os presentes dados por parentes e amigos em festas de

aniversário, por exemplo.

Os aspectos do processo de consumo dos brinquedos são observados no contexto

doméstico das famílias, tendo as mães como informantes, ou seja, a investigação ocorre

dentro de casa e não inclui pais, crianças ou outras pessoas envolvidas no dia a dia da família.

Todas as mães moram nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói e foram entrevistadas no ano

de 2013.

1.5 Estrutura do trabalho

Este trabalho se divide em cinco capítulos: introdução, revisão de literatura,

metodologia, análise e discussão dos dados e considerações finais. A introdução apresentou o

tema de consumo e descarte de brinquedos, o objetivo do trabalho, as questões de pesquisa e

delineou a relevância deste estudo.

Como forma de unir o universo de mães e filhos ao tema do processo de consumo,

com especial ênfase na disposição, a revisão de literatura a seguir foi dividida em duas partes:

a primeira trata de família e consumo e traz artigos sobre família, maternidade e consumo

infantil; a segunda, diz respeito à disposição e busca apresentar o tema a partir de seu aspecto

simbólico.

O capítulo de metodologia explicita a escolha do método dos itinerários, com o uso da

entrevista em profundidade e da observação participante, como forma de investigar compra,

uso e descarte nas vidas de mães com filhos entre dois e sete anos de idade. A seleção das

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entrevistadas é apresentada nessa seção, bem como os procedimentos de análise deste

material.

A análise e discussão dos dados representa o cerne desta pesquisa e aponta para os

caminhos encontrados ao se analisar significados e experiências, a partir dos discursos das

mães entrevistadas. Fotografias de espaços e brinquedos dentro de casa, além de trechos das

falas das entrevistadas são utilizados para a composição do texto de análise.

Por fim, o capítulo dedicado às considerações finais revê os aprendizados deste estudo

e aponta para novas possibilidades tanto da aplicação desta pesquisa, quanto do

direcionamento de trabalhos futuros sobre o tema.

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2 Revisão de Literatura

Com o objetivo de investigar o processo de consumo de brinquedos pelas famílias, a

partir de práticas de disposição e descarte, elaborou-se esta revisão de literatura a partir de

dois grandes temas de análise: Consumo e Família e Disposição e Descarte.

O primeiro conjunto de artigos, sob o tema Consumo e Família, pretende investigar a

família tanto como contexto, na qual se inserem e atuam seus membros, quanto como unidade

na tomada de decisão para o consumo. Alguns estudos investigam as dinâmicas de influência

entre pais, filhos e irmãos como forma de compreender como as famílias consomem (Kerrane,

Hogg e Bettany, 2012). Outros focam sobre o comportamento de mulheres que reafirmam

seus papéis de mães ao consumirem determinados tipos de produto (Carrigan e Szmigin,

2006). Há ainda pesquisas sobre o compartilhamento de brinquedos como forma de ensinar às

crianças aspectos sobre o mercado (Ozanne e Ozanne, 2011).

O segundo tema, Disposição e Descarte, contempla artigos que abordam o descarte a

partir de uma perspectiva simbólica da relação entre consumidores e produtos. Diferencia-se

de uma investigação dos benefícios funcionais dos produtos na qual o descarte decorre de

características tangíveis, como perecibilidade ou prazo de validade (Jacoby, Berning e

Dietvorst, 1977). O interesse está no comportamento do consumidor, em suas atitudes,

sentimentos e crenças quando envolvidos no processo de se desfazerem de algo que possuem.

O processo do descarte permite, por exemplo, que consumidores construam novas identidades

desfazendo-se daquilo que não se encaixa mais em suas vidas (Cherrier, 2009); se perpetuem

através de seus bens no legado que deixam a entes queridos (Price, Arnould e Curasi, 2000);

ou mesmo se afirmem em novos papéis na sociedade (Young, 1991).

Pretende-se, portanto, com a seleção de textos a seguir, colher um conjunto de

conceitos e perspectivas de investigação que contribuam para análise futura das entrevistas

que compõem esta pesquisa. Sugere-se ter em mente, no prosseguimento da leitura, que esta

busca é pela compreensão do consumo de mães e seus filhos enquanto um processo que

envolve mais que o momento de compra, mas também o uso e o descarte de produtos que

compõem o universo lúdico dos brinquedos.

2.1 Consumo e família

Os artigos apresentados nesta seção estão divididos em três vertentes de investigação:

Família, que lida com os desafios de se compreender a família, para além de seus membros

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individuais, como agente de consumo; Maternidade, que envolve as dificuldades de consumo

sentidas pelas mulheres enquanto mães, sejam elas inexperientes ou não; e Socialização e

Consumo infantil, que inclui estudos tanto aspectos teóricos quanto experimentais sobre o

aprendizado e a atuação de crianças enquanto consumidores.

2.1.1 Família

Famílias como unidades de consumo e tomadas de decisão sempre foram importantes

para o marketing e para o estudo do comportamento do consumidor (Commuri e Gentry ,

2000). No entanto, apesar de a família, como instituição social, estar passando por grandes

transformações, apenas recentemente o interesse pelo tema foi retomado por pesquisadores

dentro do campo de marketing e comportamento do consumidor.

Segundo, Commuri e Gentry (2000), as pesquisas sobre famílias sempre abordaram

assuntos muito específicos e não exploraram a família dentro de um contexto social:

abordavam uma família ao invés de estudarem a família, como instituição social, ou

explicarem como elas se relacionam. Para Commuri e Gentry (2000) as famílias deveriam ser

compreendidas como unidades de consumo, produção, distribuição e socialização, ou seja,

expandir a maneira como as famílias são definidas, revelaria questões importantes sobre como

elas consomem. Ainda segundo os autores, as pesquisas até o início do século XXI tinham se

ocupado mais do resultado sobre uma tomada de decisão – quem toma a decisão final – do

que com o processo de construção da decisão – como se chegou até aqui. Também se

caracterizavam por generalizar resultados para toda a família a partir de dados coletados de

apenas um de seus membros.

A partir de uma revisão de publicações sobre o tema, Commuri e Gentry (2000)

apontavam que o domínio de estudos sobre família estava sendo pouco explorado. Alguns

temas recorrentes são: ciclo de vida da família e como ele influencia o consumo; papéis de

tomada de decisão e influência dentro das famílias; resolução de conflitos; consumo

doméstico de famílias onde as mães trabalham fora; e socialização para o consumo.

O chamado de Commuri e Gentry (2000) parece ter ecoado em um grupo de

pesquisadores contemporâneos, que mais recentemente tem procurado entender o consumo e

a construção de identidades numa perspectiva familiar. Segundo Epp e Price (2008), uma

família é um coletivo que lida com questões de consumo e constrói sua identidade tanto

internamente, entre seus membros, quanto externamente, a partir da observação/percepção de

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seus comportamentos pelos outros. Ainda a partir de Epp e Price (2008), uma identidade

familiar pode ser definida como a percepção subjetiva de uma família em relação à sua

continuidade ao longo do tempo, à sua situação presente e ao seu caráter (características e

forma de ver e lidar com o mundo). É uma conjunção de qualidades e atributos que faz uma

família se diferenciar das demais (Epp e Price, 2008).

No entanto, essa identidade não é única. Uma família abriga diferentes grupos de

identidades – entre irmãos, entre o casal e entre pais e filhos – além das identidades

individuais de cada um de seus membros. Assim, uma identidade familiar se constrói a partir

da interação entre esses diferentes grupos que compõem a família e que estão envolvidos em

práticas complementares, e mesmo competitivas, de consumo. As identidades individuais e

coletivas numa mesma família divergem umas das outras quando práticas e discursos que as

compõem podem ser diferentes (Epp e Price, 2008).

Epp e Price (2008) evidenciam três componentes de identidade de família: estrutura,

orientação de geração e caráter. A estrutura se refere ao quem é quem numa família e define

fronteiras, hierarquias e papéis de seus membros. A orientação de geração define a ligação

com o passado. É a percepção de que o que família é hoje advém do legado de gerações

anteriores. O caráter de uma família se refere às características da vida familiar como

atividades compartilhadas, traços físicos, gostos e valores em comum.

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Figura 1: Esquema gráfico da interação de identidades nas práticas de consumo, (Epp e Price, 2008)

Epp e Price (2008) criaram um esquema gráfico (Figura 1) para compreender como a

família cria e define limites para sua identidade coletiva através de formas de comunicação e

recursos simbólicos do mercado – objetos, ações, lugares e eventos que identificam grupos

sociais. As autoras utilizam esse esquema para tentar compreender de que maneira as famílias

usam o consumo para gerenciar a interação entre identidades individuais, relacionais e

coletivas, que as constituem. Essa atuação ocorre através de formas de comunicação, ou seja,

rituais, narrativas, práticas do dia a dia e outras maneiras nas quais uma família cria e gerencia

sua identidade.

Epp e Price (2008) ainda identificaram moderadores para essa atuação da família na

constituição de sua identidade familiar como a adaptabilidade de formas de comunicação,

símbolos e normas na família em resposta a situações ocorridas; discursos de membros da

família que concordam ou discordam sobre a identidade familiar; o maior ou menor

comprometimento dos membros com a identidade coletiva; o grau de sinergia entre

identidades individuais e coletiva.

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Para o campo de estudo do comportamento do consumidor, as famílias e toda

coletividade que abarcam passam a ser um novo agente para a compreensão da tomada de

decisão no processo de consumo. Essa decisão pode acontecer fora ou dentro de casa, não

importando que recurso de mercado é utilizado, mas como se dão as práticas das relações

familiares. A socialização de crianças para o consumo, por sua vez, não pode ser estudada

simplesmente através da intenção de educação dos pais para com os filhos, nem tão pouco

através de padrões gerais de comunicação da família. A socialização do consumidor ocorre de

forma mais sutil, através de interações corriqueiras entre os membros da família. A identidade

familiar influencia a socialização da mesma maneira que a última é vital no processo de

definir e reforçar essa mesma identidade coletiva (Epp e Price, 2008).

A relação com objetos especiais também é importante para compreender como a

identidade de família pode ser levada adiante por gerações. Mesmo que alguns bens sejam

uma espécie de legado familiar, passando de mão em mão ao longo de muitos anos, objetos

mais corriqueiros também têm vez na composição de identidades familiares. É importante

perceber como eles entram e saem de cena, mudam mesmo de lugar de importância numa

família e apontam para a reorganização de sua identidade familiar. A recomposição da

biografia de um objeto revelará seu papel e sua importância ao longo dos anos numa família

(Epp e Price, 2008).

Em outro estudo, Epp e Price (2010) buscam entender as forças que aumentam ou

diminuem a presença de um objeto singularizado em nossas casas e contribuiem para o

entendimento do papel da cultura material nas famílias. Um objeto singularizado é aquele que

perde sua característica de item produzido em série, adquirido no mercado, à medida que seu

dono se apropria dele e constrói um novo significado para o objeto em sua vida. Essa pesquisa

busca compreender como as pessoas escolhem objetos em suas vidas, dando-lhes certo valor e

retirando-os do status de commodity.

Epp e Price (2010) consideram seu estudo como uma extensão do trabalho Igor

Kopytoff (apud Epp e Price, 2010) que evidencia como esse processo de singularização

ocorre usando o conceito de biografia cultural dos objetos: a origem, os usos, as trocas e

transições pelas quais passam um objeto. Essa extensão se dá pelo estudo das transformações

e movimentos ocorridos com o objeto a partir do momento em que ele entra na casa das

famílias, e é singularizado, até o momento que sai, transformado em commodity de novo

(recommodified). Portanto, Epp e Price (2010) pretendem investigar a biografia de um objeto

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singularizado ao interagir e transformar, dentro de casa e ao longo do tempo, a rede de

relações composta por ele, objeto focal, e pelas práticas familiares, espaços e outros objetos.

Em suas perguntas de pesquisa, as autoras questionam: Qual o processo que move um

objeto singularizado para dentro e pra fora desta rede de relações? Quais as forças que

impedem ou empoderam o uso de um objeto singularizado dentro de casa? Como o

movimento de um objeto singularizado para dentro e para fora desta rede transforma a própria

rede? Elas acreditam que o movimento de um objeto singularizado é capaz de alterar o fluxo

da vida cotidiana das famílias já que pessoas e os objetos, que constituem essa rede de

relações, se engajam em processos conjuntos de criação de conhecimento, respondendo e

afetando uns aos outros (Epp e Price, 2010).

Especificamente, essa pesquisa investigou de maneira longitudinal (por dois anos)

como um objeto singularizado – uma mesa de jantar da família Erikson, herdada pela mãe –

foi movimentado e transformado na vida de uma família norte-americana. Para isso, adentrou

tanto lugares secundários de armazenamento de objetos, como sótãos e porões, quanto

espaços proeminentes da casa, como a cozinha e a sala de estar. Foram conduzidas várias

entrevistas com cinco membros da família para descobrir mudanças contextuais do objeto, do

espaço e das biografias de vida das pessoas que poderiam alterar os usos da mesa (Epp e

Price, 2010).

Como resultado, as autoras demonstraram que não é apenas a singularização de um

objeto combinada às mudanças contextuais que determinam se ele será retido dentro de casa

ou retornará ao mercado, mas também a capacidade de uso do objeto focal. Essa capacidade

de uso do objeto pode ser descrita como um poder ou força (force of agency), sempre em

jogo, influenciando seu lugar e história na vida de uma família, ou melhor, em suas práticas

domésticas acerca da materialidade (Epp e Price, 2010).

Assim, mesmo um objeto singularizado, que mantém uma importância perpétua em

uma família, pode ser descartado ou realocado por uma convergência de forças atuando nessa

rede de relações entre as práticas de identidades da família, os espaços singularizados, o

objeto focal singularizado além de outros objetos singularizados presentes na casa. Esses

processos, que movem um objeto singularizado para fora ou para dentro dessa rede de

relações, são: a ameaça de realocação, a realocação, as tentativas de reincorporação e

reengajamento.

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A contribuição final desse estudo é explicar como o movimento de objetos

singularizados dentro e fora de uma de rede de relações inevitavelmente transforma essa rede.

Quando famílias fazem simples escolhas corriqueiras sobre o uso de objetos, arranjos de

espaço e práticas de identidade elas preparam o terreno para forças convergentes aumentarem

ou diminuírem a capacidade de uso do objeto focal (force of agency) e mudar a biografia do

mesmo.

O estudo de Curasi (2011) aponta o desejo de consumidores com mais idade em

transmitir, para membros mais jovens da família, seus objetos pessoais. No entanto, esse

desejo não vem sem preocupação, já que esses consumidores, em processo de disposição, não

têm garantias de que os receptores de suas posses darão valor à história e aos significados que

seus objetos carregam.

Esses objetos representam quem são seus donos, no que acreditam e que o viveram,

sobretudo, se estavam presentes em fases de transição em suas vidas. Para Curasi (2011),

alguns desses objetos têm a capacidade de documentar importantes eventos da vida de seus

donos e se transformam em ferramentas de construção e sustentação de memórias. Esses

objetos têm uma qualidade de herança (heirloom quality). Não que tenham valor de mercado,

mas estão preenchidos pela intenção de serem transferidos para membros mais jovens da

família. Objetos passados de geração em geração geralmente trazem uma riqueza de histórias

e informação sobre a família.

Curasi (2011) aponta que esses objetos, transferidos entre gerações, tem o poder de

carregar histórias, valores e lições de vida que são comunicados aos membros mais jovens da

família. Os valores simbolizados por esses objetos são uma referência que podem influenciar

o comportamento, inclusive para o consumo, de gerações posteriores.

Os resultados da pesquisa quantitativa de Curasi (2011) demonstram que realmente há

a intenção, por parte dos membros mais velhos das famílias, em deixar objetos importantes

para os mais jovens. Além disso, a maioria dos respondentes indicou que seus pertences

refletem sua identidade individual e que os pertences de família refletem a identidade

familiar. Muitas vezes, os consumidores de mais idade mostraram ansiedade em relação aos

mais jovens tomarem o cuidado necessário com os objetos deixados e se esses objetos

seguirão na linhagem familiar. Esses objetos e itens especiais geralmente não circulam ou,

pelo menos, são pouco manipulados, justamente para protegê-los e fazer com que durem

mais. O estudo também mostrou que os mais jovens, ou chamados de receptores desses

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objetos, em todos os grupos de idade, se mostraram preocupados e interessados em cuidar

bem desses objetos. Inclusive, com ideias e vontade de passá-los adiante na família. Eles

demonstram entender a importância e o significado da transferência intergeracional de posses.

Foi comum entre os respondentes mostrar que buscam criar uma espécie de imortalidade

simbólica para si e para sua linhagem familiar. Além dos objetos em si, segundo Curasi

(2011), a prática da disposição dos mesmos ajuda a delinear e afirmar ligações dentro das

famílias.

2.1.2 Maternidade

As mães, elo essencial na constituição familiar e principais informantes da presente

pesquisa, foram objeto de estudos de diversos trabalhos dentro do campo de comportamento

do consumidor. Thomsen e Sorensen (2006) apontam que escolhas de consumo de uma

família podem evidenciar e mesmo facilitar a transição entre fases de vida. Nesse caso,

estudam como o consumo de carrinhos pode contribuir para a transição de mulheres para seu

novo papel de mãe. A transição para a maternidade, que gera grandes incertezas, é, muitas

vezes, acompanhada de bruscas mudanças na forma de consumo estabelecida anteriormente.

Através desse novo objeto na família, por causa do valor a ele atribuído ou pela nova

experiência que proporciona, as mães constroem novas identidades para si próprias.

Esse consumo simbólico, onde objetos são entendidos como recipientes de

significados culturais e pessoais (Holt, 1995 apud Thomsen e Sorensen, 2006) pode ser

caracterizado por alguns aspectos. O primeiro deles ocorre quando um objeto tem valor de

signo, já que o consumidor o utiliza para dizer algo sobre si próprio. Outro aspecto é seu valor

de experiência, já que é pelo uso do objeto que fará o consumidor se sentir de uma

determinada maneira. Além disso, há significados simbólicos tanto públicos quanto privados

desses produtos. Um valor simbólico público é parte do conhecimento comum de uma

cultura, enquanto o privado é resultado das experiências e histórias pessoais do consumidor

com o objeto. Esse consumo também serve para manter ou adquirir novas identidades. Ao

invés de utilizarem rituais de passagem, o consumo de objetos pode contribuir na transição

para novos papéis sociais. Na manutenção, por sua vez, objetos ancoram os consumidores

onde pretendem permanecer (Thomsen e Sorensen, 2006).

Assim, os carrinhos de bebê podem fazer com que novas mães se sintam apoiadas em

seus novos papéis e representam um significado de experiência pessoal positiva. Já no que

tange ao simbolismo de experiência pública, uma mulher pode ser sentir uma mãe ruim se ela

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não possuiu o melhor carrinho. Essa sensação é muitas vezes aplacada pela compra de um

carrinho melhor para o seu bebê. O valor público e de signo de um carrinho, que comunica

sinais de personalidade, origem e status da mãe na comunidade onde ela está inserida, podem

estar em conflito com o que ela percebe sobre si própria (Thomsen e Sorensen, 2006).

Thomsen e Sorensen (2006) percebem que o consumo liminar ou, seja, o consumo

durante a passagem de um indivíduo a uma nova categoria ou posição social, pode servir para

amenizar discrepâncias surgidas internamente ou em relação à sociedade. No entanto, o

consumo nessa fase, pode ser, ele mesmo, o gerador de desconforto e inadequação diante do

novo papel.

Este é tema do artigo de Sorensen (2010), que é introduzido com observações sobre

como a literatura em geral vê o consumo e suas funções na vida de pessoas que estão

passando por fases de transição de identidades. A autora identifica que o consumo de bens

nesta fase da vida funciona como um meio de reduzir sentimentos de incerteza em relação ao

novo papel. Quanto mais significativa for a transição, que antecede a passagem de um

indivíduo a uma nova categoria ou posição social, mais o consumo ocorrerá como forma de

ajudar as pessoas a lidar com essa mudança. Mesmo depois da transição, o consumo funciona

como forma de manutenção de uma nova identidade e diminuição dos conflitos internos,

permitido que as pessoas preencham a lacuna entre o self real e o ideal.

No entanto, para Sorensen (2010), o consumo pode ser também um complicador, uma

vez que consumir errado pode prejudicar os consumidores em estabelecerem suas novas

identidades. Isso se deve muito ao fato de que os consumidores muitas vezes não sabem o que

consumir, uma vez que estão numa nova fase de suas vidas, como a maternidade, para a qual

não foram treinados a respeito do que comprar. Além disso, muitos consumidores podem

sentir dificuldade em consumir, pois não estão motivados a fazer essa transição de papéis.

Outro ponto que evidencia aspectos negativos do consumo nesse momento é o

sentimento de ambivalência: um dilema existencial fundamental na condição humana

(Smelser, 1998 apud Sorensen, 2010). Em relação à maternidade, a ambivalência não é

especificamente em relação ao próprio bebê, mas às pressões sociais e culturais sobre o

assunto, que envolvem, por exemplo, a crença de que a maternidade vem de forma natural

para as mulheres, ou a demanda por ser uma boa mãe (Sorensen, 2010).

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Os resultados da pesquisa de Sorensen (2010) com mães de primeira viagem apontam

para a ambivalência presente nas experiências de consumo. Essas experiências remetem aos

seguintes temas aqui elencados e adiante explicitados: incerteza do consumo, resistência ao

consumo, medo do consumo e consumo com poucos recursos.

A incerteza do consumo remete ao desconhecimento das mães sobre seu novo papel e

sobre os produtos necessários para receber um bebê. Inundada pela enorme quantidade de

opções e marcas, a incerteza passa a ser um sentimento constante. Para lidar com essa

situação, as mães adotam estratégias de curto prazo como a fuga, quando abandonam a loja de

produtos de bebês sem comprar absolutamente nada; ou o método de tentativa e erro, quando

comparam algumas marcas diferentes, de lenços umedecidos, por exemplo, para descobrir de

qual gostam mais. Outra estratégia é obter informações com pessoas mais experientes, como

mães que já passaram por essa fase ou mesmo vendedores de lojas que podem ajudar uma

mãe a entender para que serve cada produto (Sorensen, 2010).

A resistência ao consumo ocorre quando mães não querem comprar produtos

associados à sua nova fase, que ainda está distante de suas identidades anteriores, das quais

ainda têm dificuldade em abrir mão. Muitas mães se vestiam da mesma forma de antes de

estarem grávidas e falavam pouco sobre maternidade no trabalho, por exemplo. Outras se

posicionam contra a enormidade de produtos disponíveis e ditos necessários para um bebê.

Partem para um consumo compartilhado, utilizam lojas de produtos de segunda mão ou

pegam objetos e roupas emprestados de amigos e parentes (Sorensen, 2010).

O medo do consumo ocorre devido à superstição de que não é bom comprar produtos

de bebê antes de seu nascimento, como se essa compra trouxesse mau agouro para a mãe e

seu filho no final da gravidez. Muitas vezes, o medo de um consumo antecipado é que ele

traga má sorte e uma possível má formação do bebê ou mesmo que nasça sem vida. Sorensen

(2010) ressalta que, em cada cultura observada, essa superstição é diferente: em algumas não

há chá de bebê antes do nascimento, e sim, depois. Em outras, as mães compram o carrinho de

bebê, mas não o trazem para casa, deixam com parentes ou vizinhos até o nascimento do

filho.

O consumo com poucos recursos, por fim, aponta que nem sempre se tem condições

financeiras de comprar tudo que é necessário para a chegada de um bebê. Assim, o consumo

passa a ser um problema e as mães contam com presentes, doações e empréstimos para

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compor seu enxoval. Às vezes, não têm outra opção além de aceitar o presente, mesmo que

não seja do seu gosto (Sorensen, 2010).

Aqui o consumo se apresentou com gerador de ambivalências e incertezas no processo

de transição de papéis de mulheres que passavam pela experiência inédita de serem mães.

Assim, Sorensen (2010), ressalta que estudos de comportamento do consumidor em fase de

transição de vida devem levar em conta os aspectos positivos e negativos do consumo.

Carrigan e Szmigin (2006) tentam demostrar como mães driblam aspectos negativos

de consumo de uma categoria de produto e se apoderam de suas próprias vidas. Segundo as

autoras, as mães ainda são as principais responsáveis por cuidar dos filhos e da casa dentro

das famílias. A percepção dessa sobrecarga de responsabilidade em cima das mulheres fez

com que o mercado disponibilizasse produtos de conveniência para facilitar a vida das mães.

Esses produtos de conveviência tem um espectro muito amplo e vão desde eletrodomésticos e

computadores a comida pré-pronta, como molhos de tomates e até pratos congelados. Neste

contexto, Carrigan e Szmigin (2006), exploram a relação complexa entre produção e consumo

evolui à medida que as mulheres atuam em seus papéis de mães. Pretendem ainda

compreender como as mulheres negociam seus papéis de cuidadoras na família e como o

consumo de produtos de conveniência podem ajudá-las e tomar poder e controle sobre suas

vidas tão atribuladas.

Em geral, mães apontam que a maternidade chega com uma sensação crescente de

falta de tempo diante de tantas novas atribuições e que os produtos que se destinam a poupar

tempo podem contribuir para minimizar esse sentimento. No entanto, poupar tempo não é a

única característica de produtos de conveniência para os consumidores (Carrigan e Szmigin,

2006). Eles são vistos com cautela por algumas mães que acreditam que utilizar comida

pronta é ruim e as tornam mães piores. Já outras são entusiastas desses produtos, pois podem

manter o cuidado com a família sem passar todo o dia em casa cozinhando, por exemplo.

Essas mães percebem e utilizam os produtos de conveniência como forma de lidar

com os desafios e inúmeras tarefas em seus cotidianos. Elas não se dispõem ao martírio e ao

sacrifício material, tradicionalmente aceitos num papel de mãe, como um requerimento para

manterem suas famílias unidas e serem boas mães. Essa sensação as engrandece e as dá

autonomia. Elas são “mães da invenção”, já que conseguem, com criatividade e utilizando

produtos de conveniência, criar para si próprias maneiras autênticas e independentes de terem

controle sobre suas vidas (Carrigan e Szmigin, 2006).

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2.1.3 Socialização e Consumo Infantil

Um tema que se faz relevante na presente pesquisa por envolver a família, o processo

de consumo e a formação do consumidor é a socialização para o consumo. Para Ward (1974),

a importância da investigação sobre a socialização do consumidor decorre da ideia de que há

uma possível relação entre experiências de consumo durante a infância e padrões de consumo

durante a fase adulta. Toda bagagem adquirida previamente em termos de conhecimento e

atitudes vem à tona nos momentos de decisão de compra, por exemplo. Mais especificamente,

Ward (1974) acredita que alguns comportamentos durante a fase adulta poderiam ser

previstos se comportamentos de consumo e socialização durante a infância fossem

conhecidos. Além disso, é importante estudar sobre a socialização de consumo como busca

pela compreensão do comportamento consumidor das famílias, da consistência ou mudanças

entre gerações e do impacto de tendências sociais de consumo por jovens e crianças em seus

ambientes familiares.

Segundo Ward (1974), a socialização para o consumo é definida como um processo

pelo qual crianças adquirem habilidades, conhecimento e atitudes relevantes para que atuem

como consumidores no mercado. O foco aqui são as crianças, mas nem sempre é na primeira

infância que alguém é inserido num ambiente social de consumo. É possível socializar jovens

e adolescentes ou modificar um comportamento de consumo aprendido anteriormente. Essas

habilidades, conhecimento e atitudes relevantes adquiridos pela criança são aqueles

necessários para que desenvolvam seus papéis de consumidores como, por exemplo, terem

noções de preço, de promoções e descontos e desenvolverem atitudes em relação a marcas,

produtos, lojas e seus vendedores (Ward, 1974).

Apesar de concordar que o papel do consumidor se desenvolve durante o ato de

compra, Ward (1974), ressalta que mais importante para o estudo do comportamento de

consumo são habilidades, conhecimentos e atitudes indiretamente relevantes, ou seja, aquelas

que motivam a compra, mas não são operacionais na hora da compra. Expectativas de

cumprimento de papéis sociais, por exemplo, pode ser um desses motivadores indiretos.

Em termos gerais, é importante saber o que as crianças aprendem sobre o mercado e o

processo pelo qual esse aprendizado ocorre. Além disso, é necessário entender como os papéis

sociais influenciam o comportamento para o consumo. Assim, se faz necessário investigar

como as crianças aprendem sobre o ‘significado social’ de produtos e como as pessoas

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aprendem a perceber que a aquisição de certos produtos ou marcas podem ser instrumentais

para se eleger uma atuação social de sucesso (Ward, 1974).

O consumo infantil é compreendido aqui como parte das relações e do consumo das

famílias. Assim, a família é tida com unidade de análise no estudo de Pettersson, Olsson e

Fjellström (2004) cujo objetivo é estudar a família e a interação entre adultos e crianças em

supermercados.

A escolha de produtos alimentícios por pais e filhos num supermercado faz parte do

processo de socialização de uma criança para o consumo, pois é onde ele aprende novas

habilidades para lidar com a comida em seu ambiente cultural. Uma criança, ao acompanhar

os pais e se envolver no processo de compra, transforma esse processo numa decisão de toda a

família, envolvendo não apenas as preferências de cada um de seus membros, mas também do

coletivo (Pettersson, Olsson e Fjellström , 2004).

As decisões de consumo da família geralmente acontecem em fases e podem começar

em casa e terminar no supermercado. A socialização de uma criança para o consumo ocorre

na prática, dentro da loja, às vezes de maneira inconsciente: aos poucos vai sendo por ela

incorporada e se torna habitual para esse novo consumidor (Pettersson, Olsson e Fjellström ,

2004).

A vida da família num espaço público permitiu o estudo do envolvimento das crianças

na compra de comida, a partir da interação entre elas e os adultos em supermercados de

Estocolmo, Suécia. Os resultados apontam que muito mais está envolvido nessa ida ao

supermercado do que a compra de alimentos: pais criando seus filhos, educação informal e

reações emotivas, como o choro, apareceram nesse espaço público (Pettersson, Olsson e

Fjellström , 2004).

Muitas crianças corriam soltas pelo supermercado em brincadeiras sem que os pais se

envolvam. Outras eram mantidas por perto pelos pais. Algumas podiam escolher alguns

produtos enquanto outras tentavam barganhar algo com os pais para conseguir o que queriam.

Alguns pais se envolviam em explicar algo para os filhos e ouvir suas demandas, já outros

não pareciam querer o envolvimento deles durante as compras. As crianças pequenas

gostavam de pegar frutas e legumes junto com os adultos. As mais velhas se mostraram mais

envolvidas no processo de compra e ajudavam os pais (Pettersson, Olsson e Fjellström, 2004).

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Nessas situações, o que se viam eram os pais educando seus filhos, quando normas e

regras da família vinham à tona possibilitando que as crianças aprendessem comportamentos

aceitos pela sociedade onde estavam inseridas. Assim, aprendiam como se comportar e agir

como consumidores. Esse processo de aprendizado para o consumo podia ser visto no uso do

scanner de código de barras, no retorno de garrafas plásticas e no empacotamento de produtos

nas sacolas, por exemplo. Aprendiam também nomes de produtos e ingredientes ou sobre

marcas e preços dos itens (Pettersson, Olsson e Fjellström , 2004).

Assim, o processo de educação pode ocorrer de maneira informal, entre pais e filhos,

ao longo dos afazeres diários, passando adiante, de uma geração para a outra, conhecimento e

a habilidades para o consumo.

Nadeau e Bradley (2012) também têm como foco de estudo, a interação entre pais e

filhos em ambientes de decisão de compra, ou seja, as lojas. Aqui, seu objetivo era examinar,

através da observação e pais e filhos em supermercados do Canadá, como o estado emocional

da criança, expresso em gestos, falas e movimentos faciais, influenciava as decisões de

compra. Estado emocional pode ser descrito como dimensões de sentimentos, como bom ou

ruim, feliz ou triste, sonolento ou alerta. Nadeau e Bradley (2012) entendem que o estado

emocional (affect) do consumidor molda a maneira como ele vê o mercado e toma decisões de

compra.

Os pesquisadores apontam ainda que a influência dos filhos no consumo das famílias

depende de inúmeros fatores como as características individuais da criança, sua idade, o

contexto social e familiar e a situação de compra. A criança pode também utilizar estratégias

de interação para influenciar os pais nas lojas. Algumas são consideradas positivas como

“pedir direitinho” (ask nicely), “demonstrar afeto” (show affection) ou “apenas pedir” (just

ask). Outras são tidas como negativas: “demonstrar raiva” (show anger), “chorar ou fazer

tromba” (cry or plout), “implorar e argumentar” (beg and plead). Ambos os tipos de

estratégias parecem ser eficazes.

Os resultados de Nadeau e Bradley (2012) apontam que o estado emocional da criança

antes da compra influencia, sim, seu papel na tomada de decisão. No entanto, essa influência

não é direta, mas intermediada pela a escolha de estratégia de interação que a criança faz,

contribuindo, assim, para a decisão final de compra dos pais. Quanto às estratégias de

interação, a pesquisa mostra que estratégias negativas resultam mais em decisões tomadas

pelos pais, enquanto estratégias positivas estão mais associadas à criança decidindo o que será

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comprado. Além disso, um estado emocional mais positivo, está mais relacionado a escolha

de estratégias positivas de interação pela criança.

A influência de crianças para a compra é um tópico de significante importância para o

campo do comportamento do consumidor. No entanto, segundo Kerrane, Hogg e Bettany

(2012), os estudos sobre o tema têm focado numa visão individualista ou diádica (pai e filho)

das estratégias de influência infantil, ao invés de explorar o contexto familiar, a partir do qual

essas as estratégias que emergem. Kerrane, Hogg e Bettany (2012) têm como objetivo, com

seu estudo, mudar o foco da pesquisa em consumo familiar de uma perspectiva individualista

para uma perspectiva familiar e contextual. Além disso, pretendem desenvolver um

entendimento do processo de interação intrafamiliar que leve ao eventual aparecimento de

estratégias de influência no comportamento de consumo da família.

Afirmam que, apesar do entendimento das estratégias que as crianças usam para tentar

influenciar seus pais, e dos fatores que moderam a quantidade de influência que as crianças

têm, um entendimento profundo do contexto, dos processos intrafamiliares que levam uma

criança a influenciar sua família, e de como essas estratégias de influência emergem,

continuam desconhecidos (Kerrane, Hogg e Bettany, 2012).

Suas observações durante a pesquisa apontaram para uma diversidade de práticas que

moldam ou moderam essas influências. Percebeu-se, por exemplo, que as crianças possuem

familiaridade em termos de entender qual dos dois pais é mais propenso a ceder às suas

vontades de consumo, ou seja, identificam qual dos pais é o mais ‘fraco’ e tentam pedir o que

querem para ele. As crianças também utilizam estratégias bilaterais, como a barganha e a

troca de favores, quando percebem que seus pais não vão ceder às suas vontades. Muitas

vezes, os pais estabelecem esses compromissos, ou tratos com as crianças, com o objetivo de

lhes incutir um senso de valor do dinheiro.

Para montar sua estratégia de influência, uma criança também leva em consideração as

estratégias de influência usadas anteriormente pelos irmãos. Aquelas consideradas inúteis são

abandonadas; outras, eficazes, são passadas adiante ou trocadas entre os irmãos. Coalizões

entre irmãos também acontecem.

Observou-se também que alguns pais trabalham com os filhos no intuito de mudar as

decisões de consumo de outro familiar ou cônjuge, formando uma espécie de coalizão com as

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crianças. Não é incomum, portanto, que irmãos se sintam em desvantagem dentro da família,

ou que uma criança se sinta preterida em relação à outra pelos pais.

As crianças mostraram alto grau de sofisticação para fugir e contornar as resistências

de seus pais e customizam suas estratégias de convencimento, incorporando os pensamentos

dos pais dentro de seus pedidos de compra.

Assim, na pesquisa de Kerrane, Hogg e Bettany (2012), ao contrário de imagens de

uma criança trabalhando em direção a uma escolha específica de consumo através do uso de

uma estratégia de influência, o que se vê, mais claramente, é uma teia de familiares

trabalhando em direção a objetivos de consumo. Uma ação coletiva.

Em sua pesquisa, de Cotte e Wood (2004) desenvolveram e testaram empiricamente

um modelo de influência familiar sobre a resposta de consumidores à inovação, com o

objetivo de adicionar ao conhecimento corrente sobre o comportamento do consumidor,

aspectos de influências, tanto intergeracionais, quanto intrageracionais. As influências da

socialização familiar são geralmente conceitualizadas e testadas de forma diádica, como entre

marido e esposa, ou pai e filho. Segundo, Cotte e Wood (2004) sua pesquisa foi a primeira

que estudou, simultaneamente, dois componentes da influencia familiar: a influência entre

pais e filhos e a influência entre irmãos.

O domínio desses dois tipos de influências é, portanto, o da capacidade de inovação –

a tendência de se experimentar mudanças e a tentativa de se tentar novos comportamentos e

produtos. Para os pesquisadores, pais e irmãos podem influenciar a capacidade de inovação de

uma pessoa, o que poderá aumentar sua chance de experimentar novos produtos e serviços.

Cotte e Wood (2004) trabalharam com as seguintes hipóteses: a primeira afirma que, quanto

mais um filho percebe seu pai como inovador, mais inovador ele será; a segunda atesta que,

quanto mais uma pessoa percebe seu irmão como capaz de inovar, mais inovador ela será; a

hipótese adjacente à segunda aponta para o seu contrário, ou seja, quanto mais uma pessoa

percebe seu irmão como capaz de inovar, menos inovador ela será; a terceira afirma que

influência entre pais e filhos (intergeracional) será maior que entre irmãos (intrageracional);

por fim, a quarta hipótese supõe que a capacidade de inovação de uma pessoa está

positivamente associada à experimentação de produtos inovadores. Os dados viabilizam a

primeira, segunda, terceira e quarta hipóteses. O desdobramento da segunda hipótese não teve

respaldo nos dados coletados.

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Assim, o estudo de Cotte e Wood (2004) conclui que há, sim, a influência entre pais e

filhos e entre irmãos para o comportamento inovador, mas aponta que a influência

intergeracional, ou seja, a transmissão de informação, credos, e recursos de uma geração para

a outra, é dominante. Além disso, afirma que, em termos de pesquisa em socialização para o

consumo, mais estudos sobre moderadores de influência entre irmãos, que envolvem

características familiares e individuais, são necessários.

Kerrane e Hogg (2012) examinam as experiências de consumo de crianças dentro das

famílias para investigar o papel de diferentes ambientes familiares na socialização para o

consumo de crianças. Distanciando-se da noção de que os ambientes familiares são

homogêneos e vividos por todos os filhos de maneira igual, ou compartilhada, apontam para a

heterogeneidade dos ambientes familiares e para uma composição familiar, no século XXI,

que se afasta das formas nucleares tradicionais.

A partir de pesquisas anteriores sobre família e socialização para o consumo, Kerrane

e Hogg (2012) congregam informações e ressaltam algumas conclusões para compor sua

pesquisa. Uma delas é o tratamento diferenciado entre os filhos. Esse conceito se baseia na

noção de que os pais tem uma quantidade finita de recursos – como tempo, capital e atenção –

para investir em seus filhos. Em muitos casos, a quantidade desses recursos é

desproporcionalmente investida nesse ou naquele filho. Fatores como a idade da criança, se é

do mesmo sexo que um dos pais ou, ainda, se têm um temperamento difícil podem funcionar

como gatilhos para essa diferenciação de tratamentos.

A partir dos resultados de sua pesquisa, Kerrane e Hogg (2012) elaboram o conceito

de microambientes nas famílias a partir do qual se destacam o microambiente dos pais e

microambiente dos irmãos. O microambiente dos pais é caracterizado, em algumas das

famílias estudadas, como tendo uma criança que aparentemente é favorecida pelos pais se

comparada com o tratamento recebido pelas outras; apontando, assim, para a existência de

múltiplos padrões de comunicação dentro da mesma família.

O microambiente dos irmãos é caracterizado pelo fato de que crianças são tratadas

diferentemente não só pelos pais, mas também pelos irmãos. Os irmãos, muitas vezes, criam

múltiplos e diferentes ambientes dentro de cada família, que podem ser tanto de confronto

quanto de colaboração. Criam-se, portanto, ambientes familiares não compartilhados.

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Segundo Kerrane e Hogg (2012), esse fato é importante já que essas diferenças afetam

diretamente o processo de socialização e as práticas de consumo das crianças. Elas não têm

igual acesso a conselhos de consumo ou aos agentes socializadores dentro de suas famílias.

Kerrane e Hogg (2012) afirmam que essas crianças habitam um microcosmo consumidor

único dentro do ambiente familiar.

Através de uma reconceitualização do ambiente familiar como não-compartilhado

(non-shared), o estudo de Kerrane e Hogg (2012) revela um processo de socialização para o

consumo com mais nuances e heterogeneidades.

Brusdal (2006) analisa outro aspecto do consumo infantil: o olhar dos pais. Sua

pesquisa aponta que os pais não acham o consumo necessariamente negativo e estão dispostos

a gastar muito mais do que seus filhos esperam ou querem. Para eles, o consumo se torna

viável, mesmo que custe mais do que o esperado, se a compra de um produto for considerada,

por eles, importante para seus filhos. Além disso, acreditam que o consumo infantil tem a

capacidade de demonstrar se são pais carinhosos e responsáveis (Brusdal, 2006).

Produtos infantis são apresentados aos pais e às crianças, diariamente, no mercado ou

pela mídia, e fazem parte da vida de crianças e adolescentes, seja para que possam participar

de diferentes atividades como esportes, seja para que possam expressar suas identidades como

no pertencimento a determinado grupo de amigos. O consumo pode gerar nas crianças e

jovens uma sensação de pertencimento a um grupo de amigos, que têm crenças e valores e

produtos em comum. Para os pais, é importante agradar os filhos, mas eles dão maior

importância a grupos envolvidos em práticas esportivas e viabilizam que seus filhos façam

parte desses grupos, através da compra de equipamentos específicos para cada modalidade. O

consumo que permitir uma melhora na aprendizagem e nas notas escolares será apoiado pelos

pais (Brusdal, 2006).

No entanto, os pais também percebem aspectos negativos do consumo que podem

interferir no corpo de seus filhos, como álcool e cigarro ou balas e doces. Outra preocupação

que se relaciona com o corpo é o excesso de produtos e de comerciais, na mídia, com

conteúdo de apelo sexual. Preocupam-se com o fato de que crianças são retiradas

antecipadamente da infância, sobretudo com as meninas que têm sua iniciação sexual

antecipada e já se vestem como adultas desde muito cedo. A tecnologia também é

desaprovada quando apresenta jogos violentos aos filhos (Brusdal, 2006).

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O fato de os comerciais voltados para crianças e a quantidade de coisas que elas têm,

estar aumentando, também foi algo mencionado com preocupação pelos pais. Consideram que

a maioria dos produtos não tem nada a acrescentar na vida de seus filhos, já que não os

incentivam nem a aprender, nem mesmo a brincar. Eles têm medo que as crianças fiquem

mimadas com a quantidade de coisas que ganham (Brusdal, 2006). Os pais querem sempre

agradar seus filhos, mas suas escolhas muitas vezes não estão de acordo com o que as crianças

querem. Mesmo assim, agradar aos filhos é algo que agrada aos pais.

De acordo com os pais, o consumo infantil pode ser visto sob duas perspectivas. Uma

se refere aos filhos já que o consumo é pensado para o bem deles, que inclui tanto o

desenvolvimento, quanto a proteção da criança. A outra se refere aos pais, e como para eles, o

consumo infantil é uma possibilidade de expressarem suas competências como pais. Assim,

podem consumir e exibir seu poderio econômico através da compra para os filhos. Alguns

pais revivem suas infâncias e adolescências, através do consumo para os filhos. De certa

maneira, o consumo infantil não deixa de ser o consumo dos pais. Esse consumo pode ainda

demonstrar os cuidados e valores de educação dos pais: alguns desejam que ele seja o mais

instrumental e pedagógico possível. Por fim, Brusdal (2006) observa que, para os pais o

problema não é que seus filhos consumam ou queiram as coisas, e, sim, que queiram a coisas

erradas.

Como família é o agente natural do desenvolvimento da criança como consumidor, é

importante perceber o tipo de família em que a criança cresce e os padrões de comunicação

nela estabelecidos. Assim, Carlson, Laczniak e Wertley (2011) observam como diferentes

estilos de comunicação dos pais, na sua interação com os filhos, contribuem para o processo

de educação das crianças para o consumo. O objetivo dos pesquisadores é compreender como

os esforços de socialização para o consumo diferem nas famílias e que resultados podem ser

atribuídos à influência dos pais e seus estilos de comunicação.

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Figura 2: Estilos de pais na interação com os filhos (Parental Style), (Carlson, Laczniak e Wertley, 2011)

Segundo Carlson, Laczniak e Wertley (2011), existem três dimensões gerais de

socialização que buscam representar como os pais interagem com seus filhos: restrição vs.

permissividade, hostilidade vs. cordialidade e, por último, calma vs. ansiedade. Como base

para sua análise, utilizam o gráfico acima (Figura 2) que dispõe apenas de duas dessas

dimensões de estilos de pais na interação com seus filhos (Parental style).

Pais restritivos são aqueles que cobram fortemente as regras impostas, esperam do

filho um comportamento educado e, sobretudo, obediência. Nessa mesma dimensão, mas do

outro lado do espectro, estão os pais permissivos, ou seja, aqueles que não cobram regras, não

exigem um comportamento educado e não exigem um alto grau de obediência. Na dimensão

cordialidade vs. hostilidade, os pais cordiais são centrados nos filhos, usam a explicação, a

razão e o elogio, enquanto disciplinam seus filhos, ao invés de usaram castigos físicos. Já os

hostis, que têm baixo nível de aceitação em relação a questões dos filhos, usam pouca

explicação e não usam elogios ao disciplinar (Carlson, Laczniak e Wertley, 2011).

O cruzamento dessas duas dimensões resultou em quatro tipos de pais: dominantes –

mais cordiais que hostis em seus contatos com seus filhos – são mais restritivos que

permissivos; autoritários – mais restritivos que permissivos – porém mais hostis que cordiais;

indulgentes – exibem níveis de calor humano, parecidos com os pais dominantes, mas tendem

a ser mais permissivos que restritivos; negligentes – caracterizados por contatos hostis e

permissivos com seus filhos.

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Apesar do estudo não ser conclusivo, Carlson, Laczniak e Wertley (2011) apontam

alguns resultados encontrados, sobretudo no que tange à exposição das crianças à televisão.

Para eles, pais dominantes são os mais propensos a se envolverem em iniciativas de

socialização para o consumo, uma vez que falam com seus filhos sobre o mercado e os

ensinam sobre como as lojas criam seus preços. Mães dominantes também intermediam o

contato dos filhos com as atividades de consumo e monitoram sua exposição à TV. Os pais

dominantes são aqueles que acreditam que sua intervenção na exposição dos filhos a

comerciais de TV é mais importante do que a mudança de legislação pelo governo ou a

regulação de conteúdo pelos exibidores e agências independentes. Pais dominantes e

indulgentes, similarmente, parecem ter atitudes menos favoráveis em relação ao conteúdo da

programação e dos comerciais de TV. Em relação a desenhos baseados em brinquedos, mães

dominantes e permissivas se posicionam mais contra esses programas de TV do que as

negligentes, já que ficam mais preocupadas em como eles tiram proveito das crianças.

Outra perspectiva sobre consumo infantil é apresentada por Ozanne e Ballantine

(2010) ao estudarem brinquedotecas em bairros residenciais da Nova Zelândia. O objetivo de

sua pesquisa é explorar as motivações para o envolvimento de pais em brinquedotecas, no

sentido de determinar se a diminuição do consumo é um valor importante para eles. Aqui,

brinquedos e disposição se encontram na tentativa de compreender se esse determinado fluxo

de objetos – entrada e saída de brinquedos na vida de uma criança através de brinquedotecas –

pode representar uma forma de anticonsumo.

Ozanne e Ballantine (2010) apontam que uma possível forma de comportamento

anticonsumista, ainda não explicada pela literatura existente, é o compartilhamento de

produtos de propriedade coletiva, ou seja, o ato e o processo de distribuir o que é nosso para

outros usarem, e o ato e o processo de receber ou tomar algo dos outros para nosso uso. (Belk,

2007 apud Ozanne e Ballantine, 2010).

A grande velocidade de lançamento de brinquedos, o rápido desinteresse das crianças

por seus brinquedos antigos e grande pressão pela compra de novidades podem ser fortes

motivos para que pais optem pelo uso de brinquedotecas. Elas possibilitam que crianças

compartilhem brinquedos, de propriedade comum, reduzindo a compra de novos. O

empréstimo de brinquedos pode ser de grande valia, já que crianças pequenas muitas vezes

têm capacidade de atenção limitada e se cansam de brinquedos com facilidade, resultando

num processo de consumo acelerado, com ciclos de uso muito curtos. Assim, as

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brinquedotecas representariam uma forma alternativa de provedor de consumo que

viabilizaria, para seus membros, tanto objetivos funcionais – como a diminuição do consumo

ou o acesso a brinquedos por melhores preços – quanto objetivos estruturais, como melhoria

do bem estar da comunidade através da troca de objetos e de experiência entre seus membros

(Ozanne e Ballantine, 2010).

Ozanne e Ballantine (2010) exploram, em sua pesquisa, a redução de consumo através

do compartilhamento de um tipo de produto: brinquedos. Para tal, tentaram medir os

seguintes constructos para determinar o peso deles na motivação de pais para o uso de

brinquedotecas: construção de comunidade, prevalecimento de amizade, anticonsumo,

materialismo, simplificação voluntária, compartilhamento e mediação do mercado.

Como resultado, identificaram e mapearam quatro grupos de usuários das

brinquedotecas: os sociais (socialites) – parecem gostar tanto dos benefícios sociais de

participar de uma brinquedoteca, quanto dos de construir o compartilhamento como expressão

da comunidade onde vivem e atuam; os evitadores do mercado (market avoiders) – também

apreciam os benefícios sociais das brinquedotecas, gostam de poder mediar as influências do

mercado e são os menos materialistas de todos os grupos; os anticonsumistas quietos (quiet

anti-consumers) – têm um forte senso de anticonsumo e são adeptos da frugalidade e do

compartilhamento de valores; por fim, os membros passivos (passive members) – não têm

envolvimento social nem valores anticonsumistas.

Ozanne e Ballantine (2010) concluíram que é possível supor que muitos

comportamentos dos participantes de brinquedotecas sejam motivados por sentimentos de

anticonsumo, já que desses grupos de usuários, os evitadores do mercado e os anticonsumistas

quietos, totalizando 52% dos pesquisados, mostraram possuir esse tipo de atitude.

Seguindo o mesmo tema de brinquedotecas, agora sob um olhar mais aprofundado, o

estudo de Ozanne e Ozanne (2011) explora como famílias usam brinquedotecas para construir

diferentes significados sociais. Instituições onde se retiram brinquedos por empréstimo, as

brinquedotecas são ambientes que possibilitam aos pais mediar a relação dos filhos com o

mercado, e mais, viabilizam a modulação de diversas concepções de cidadania, a partir do

compartilhamento coletivo de objetos.

Segundo Ozanne e Ozanne (2011), o brincar na idade infantil é uma atividade crucial

onde as crianças criam suas próprias oportunidades de exploração e aprendizado. Assim, para

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as crianças, o principal interesse nas brinquedotecas está, evidentemente, centrado nos

brinquedos. Para os pais, o prazer em frequentá-las está relacionado ao afastamento da

problemática envolvida na compra os brinquedos. Descrevem o processo de aquisição de

brinquedos como trabalhoso e cheio de negociações. Para eles, as lojas de brinquedos são

ambientes cheios de gatilhos para conflitos e, por isso, tentam limitar essa atividade na

família. Já nas idas às brinquedotecas, os pais encorajam os filhos a escolherem um brinquedo

e participarem ativamente do processo de seleção. Os pais até fazem sugestões, mas a maioria

deixa os filhos escolherem um brinquedo por conta própria (Ozanne e Ozanne, 2011).

Ozanne e Ozanne (2011) concluem, a partir dos resultados de sua pesquisa, que as

brinquedotecas são constituídas com base em vários significados como poupar dinheiro, se

divertir, atuar com consciência política e construir um senso de comunidade. As famílias

utilizam as brinquedotecas como uma forma de economizar recursos, sem privar as crianças

do acesso aos brinquedos. Esses espaços também proporcionam a experimentação de

brinquedos antes da compra nas lojas. As brinquedotecas, que geralmente são gerenciadas por

voluntários, proporcionam o desenvolvimento da capacidade humana na comunidade onde

estão inseridas. Funcionam também como espaços socializadores, já que são locais de troca de

experiências entre as famílias e ajudam seus membros a construírem um senso de

comunidade. Para algumas famílias, a ida às brinquedotecas tem motivação ideológica, pois

evitam apoiar o consumismo e proporcionam às crianças um distanciamento do materialismo

e do apego aos objetos. Outros sentidos gerados pelo uso das brinquedotecas incluem a

proteção ao meio ambiente, ao se reduzir o consumo, e o fomento à visão mais igualitária

dando as mesmas oportunidades a crianças de diferentes classes sociais.

Cook (2000) concentrou sua pesquisa em atividades de lazer para crianças e suas

relações de mercado. Analisou, especificamente, três modismos em relação a brinquedos que

ocorreram no contexto da cultura popular norte-americana durante a década de 1990: cartões

colecionáveis de esportes, os bonecos Beanie Babies e os produtos Pokemon. Para o autor,

esses modismos representam um ethos emergente na construção comercial da infância, já que

privilegia o valor de trocas econômicas como a razão para se colecionar os cartões com

personagens ou bonecos de pelúcia, possuir o boneco ou jogar o jogo. Diferentemente dos

modismos de brinquedos em décadas anteriores, esses receberam repúdio na mídia não pelo

seu conteúdo (personagens e suas biografias), mas pelo fato de terem incutido uma atividade

de mercado na vida das crianças.

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Nesta pesquisa, foi examinada a discussão publica sobre alguns destes modismos

através de jornais e revistas norte-americanas. A cobertura da mídia sobre esses modismos

geralmente tomava a forma de verdadeiro pânico moral. O pânico era moral, porque

sugestionava que ameaçava a infância, algo tão sagrado e ou fundamental para a sociedade.

Jovens e crianças eram tidos como vulneráveis e, por isso, mais suscetíveis a essas ameaças.

Em vez de interpretar a troca e aquisição desses itens como uma exceção fora do

espectro do lazer e das brincadeiras infantis, Cook (2000) apresenta uma perspectiva que

relaciona essas atividades dentro de um continuum do processo de comoditização da infância.

Os cartões esportivos, também são chamados de cartões perseguidos (chase cards),

pois alguns deles são muito difíceis de se achar para compor a coleção. O termo perseguidos

também se refere a uma estratégia de vendas na qual, deliberadamente, se diminui a produção

de certos brinquedos infantis, aumentando assim seu valor de marcado. Em 1996, um grupo

de pais, processou alguns dos maiores fabricantes de cartões esportivos na América do Norte.

Eles alegavam que os fabricantes estavam promovendo o equivalente a uma loteria, a partir do

momento em que provocavam as crianças a “apostarem” seus recursos em poucos, mas

valiosos cartões. A indústria de cartões esportivos estava promovendo uma jogatina de azar

entre crianças de 9 e 10 anos de idade. O foco no lucro foi capaz de atrair crianças para fora

do ciclo de brincar, para uma realidade maior e impessoal do valor monetário da troca.

Os Beanie Babies eram pequenos animais de pelúcia, geralmente vendidos em

estabelecimentos comerciais de pequeno porte, como floristas e lojas de conveniência. Os

Beanies começaram a sofrer críticas, em 1997, quando seu fabricante resolveu retirar alguns

dos personagens de circulação e limitar a quantidade de produção de novos personagens. No

começo, eram vendidos a cinco ou seis dólares, mas alguns modelos saltaram de preço e

chegaram atingir cerca de US$1.200.

Ainda dentro dessa escassez planejada pelo fabricante, uma nova mudança foi

introduzida garantindo a autenticidade do brinquedo, aumentando seu status de objeto

colecionável: uma grande etiqueta afixada à uma das orelhas do boneco trazendo informações,

como o nome do personagem e o ano de fabricação, uma espécie de certidão de nascimento

do produto. Essa grande etiqueta não poderia ser retirada ou danificada, pois diminuiria o

valor de venda do boneco: caracterizava-se assim o não-uso do produto pelas crianças. Era um

novo tipo de objeto, uma commodity, e não um algo com o qual uma criança brincaria.

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Os Pokemon foram lançados nos Estados Unidos, em 1998, como desenho animado

para TV e videogame, mas logo inúmeros brinquedos passaram a compor o universo desses

personagens. Os Pokemon são monstros com poderes, que se multiplicaram também em

cartões colecionáveis, como os de esportes. Além do grande número de personagens para

conhecer e memorizar, as regras do jogo com os cartões são complexas, demandam intensa

dedicação para entendê-las – pais e professores não conseguiam acompanhar a brincadeira.

Assim, como os cartões esportivos, os cartões Pokemon incorporam a estratégia da escassez,

trazendo para a vida de garotos de quatro a doze anos, uma perspectiva mercadológica para

sua brincadeira. Roubos, afrontas verbais e ataques físicos caracterizaram a relação das

crianças com esse fenômeno midiático.

Cook (2000) conclui que os cartões esportivos, os Beanie Babies e os Pokemon

representam um novo momento no processo de comoditização das brincadeiras das crianças.

Onde o valor de troca passa ser o objetivo, e não a coleção, por si só. Pais e educadores

preocupam-se com que as lições aprendidas sejam apenas aquelas voltadas para o interesse

próprio, envolvendo astúcia e mesmo golpes entre irmãos e colegas de classe, cada um

querendo garantir um maior ganho na troca de cartões, por exemplo. Caracteriza-se assim, a

elevação do valor monetário sobre valores sociais.

No entanto, Cook (2000) ressalta o caráter ambíguo do desejo de proteger as crianças

da exposição à competição econômica e a tomada de decisões baseadas em cálculos

monetários, uma vez que esta é a ideologia compartilhada por seus pais e pela sociedade na

qual se inserem. Essa ambivalência, para Cook (2000), parece ser sobre o capitalismo por si

só.

Para Cook (2000) não há como retirar as crianças da cultura onde se inserem e

reconhece que essas formas de cultura popular midiáticas, modismos e seus personagens, são

fundamentais no processo socialização já que carregam códigos e princípios sobre as formas

de agir do mundo. Por isso, reconhece que a tensão moral entre as crianças e o mercado talvez

se torne um novo tipo de guerra cultural, agora entre pais e os produtores de cultura popular.

2.2 Disposição e Descarte

Além de uma seção inicial de definições, a discussão teórica sobre o processo de

disposição, apresentada nesta seção, é subdividida em três vertentes: motivações, significados

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e práticas. As motivações dizem respeito às primeiras abordagens sobre o tema que buscavam

mapear o fenômeno do descarte, seus desdobramentos enquanto processo prático e os motivos

que levavam as pessoas a se desfazerem de seus bens. Os significados se referem a aspectos

psicológicos e emocionais presentes no processo de descarte (Roster, 2001) e incluem tanto a

relação que as pessoas têm com seus objetos quanto o papel do descarte na em suas vidas. As

práticas envolvem o aspecto concreto do processo de descarte a partir das ações dos

consumidores enquanto dão destino aos seus pertences.

2.2.1 Traduções e definições

Para apresentar o descarte como uma atividade fundamental do consumidor, Cherrier

(2009) introduz o tema em seu artigo, utilizando expressões verbais em inglês comuns a

qualquer conhecedor da língua: to remove (remover), to pass on (passar adiante), to throw

away (jogar fora), to get rid of (se livrar de algo). Todas elas, a despeito de suas diferenças, se

referem ao ato do descarte e indicam a complexidade de se estudar esse tema sob dois

aspectos. O primeiro sugere a existência de diversas formas de se desfazer de algo, desde o

sujeito envolvido até o destino final daquilo que foi descartado; e, o segundo, pelo qual se

inicia essa revisão de literatura, aponta a dificuldade na utilização de expressões e termos em

português que deem conta do sentido das discussões presentes nos artigos publicados, em

língua inglesa, e que formam o referencial bibliográfico deste estudo.

O termo mais utilizado aqui será o descarte, traduzido diretamente do termo disposal,

no inglês. Apesar de haver outra tradução para descarte, discard, esse termo, em inglês, é

mais utilizado no sentido da retirada de algo do conjunto, como quando num jogo de cartas,

ao se descartar aquelas que não queremos mais compondo nossa mão. Discard não aparece

nos textos aqui consultados, mas quando o assunto são livros, ele é o único termo utilizado na

reorganização e recomposição do acervo de bibliotecas. Parece que discard funciona na

realocação de livros, enquanto disposal é um termo mais abrangente e envolve tanto a doar

algo que não se quer mais quanto jogar coisas fora no lixo. É importante frisar que, no

português, o uso coloquial do termo descarte está quase que unicamente associado ao lixo,

mas, para os estudiosos do tema aqui contemplados, disposal é mais que isso. Assim, ao ler o

termo descarte como a melhor tradução para disposal pede-se que se tenha em mente seu

significado mais abrangente que será discutido adiante.

O segundo termo acerca do tema que também traz dúvidas é disposition. Maycroft

(2009) evidencia que, mesmo na língua inglesa, disposition e disposal podem ser confundidos

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por terem a mesma raiz etimológica, mas ressalta que disposition (a disponibilidade de algo) é

sempre um prelúdio a disposal (o descarte de algo) já que envolve um objeto à disposição de

alguém para então ser jogado no lixo, reciclado ou doado. Disposition poder ser traduzido no

português por disposição, como na arrumação de objetos em uma mesa. Essa maneira de

utilizar o termo, pensando no arranjo de itens ou na sua distribuição, remete ao significado de

disposition como uma prática que envolve ‘formas aceitáveis de realocar as coisas no espaço’

(Maycroft, 2009). Disposition então seria o movimento das coisas, ou o ato de dispô-las de

outra maneira, envolvendo tanto mudar a posição dos móveis da sala quanto desfazer-se de

roupas que não cabem mais. Para Maycroft (2009), o descarte seria então a finalização desse

movimento de ordenação espacial das coisas.

O terceiro termo para o qual também se buscará achar uma tradução a contento é

divestment. A mais simples tradução é o ato de desvestir: despir-se ou despir alguém

(Houaiss, 2009). No uso em inglês, divestment está para além das roupas e significa o ato de

destituir ou privar a si próprio ou alguém de alguma coisa. A partir das nuances do verbete,

segundo o Oxford English Dictionary (1969), é possível traduzir divestment como o ato de

despojar-se de algo, de abandonar algo ou, da forma mais simples, de desfazer-se de alguma

coisa.

Nos artigos aqui elencados surgem com frequência essas três palavras: disposal,

disposition, divestment. Para o campo de estudo do comportamento do consumidor, seus

sentidos justapostos representam o desafio ao buscar compreender como as pessoas lidam

com as coisas, sobretudo quando decidem desfazer-se delas. Além de apontar para a

complexidade dessa etapa do consumo (e as escolhas possíveis) essa breve introdução serve

para indicar como esses termos serão usados na presente pesquisa. Assim, neste relatório

constituem-se como termos fundamentais:

- Descarte (disposal ou divestment): o ato de desfazer-se dos objetos, incluindo

possibilidades como jogar no lixo, doar, vender, trocar. O descarte relaciona-se a abrir mão

dos benefícios funcionais e simbólicos, presentes e futuros, dos objetos (Roster, 2001).

- Disposição (disposition): o processo de dar destino aos objetos (Jacoby, Berning e

Dietvorst, 1977), incluindo uma gama de possibilidades mais ampla do que o descarte como

guardar, usar o produto (para usos antigos ou novos), jogar no lixo, doar, vender, trocar,

alugar, compartilhar etc.

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Para uma visualização dos domínios acima mencionados, cabe utilizar o esquema

gráfico para a disposição proposto por Jacoby, Berning e Dietvorst (1977), delimitando nele

os domínios da disposição e do descarte (Figura 3). Assim é possível compreender que

disposição se refere à decisão de dar um destino a um objeto, enquanto descarte envolve a

decisão de abrir mão do objeto de forma definitiva.

Figura 3: Intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977)

2.2.2 Motivações

Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) inauguram o estudo sobre a disposição e o descarte

ao definir o comportamento do consumidor como “aquisição , consumo e descarte de bens,

serviços, tempo e ideias por unidades de tomada de decisão” (Jacoby, Berning e Dietvorst,

1977). Essa percepção norteou o desenvolvimento da investigação sobre a disposição como

parte de um processo maior, que envolve não apenas aquisição e bens, mas que inclui

indivíduos ao longo do tempo com vontades e quereres – o que se quer e o que não se quer

mais. Jacoby, Berning e Dietvorst (1977), em sua busca pela compreensão das motivações

que levam as pessoas a se desfazerem de seus produtos, ou guardarem outros para sempre,

contribuiram para o campo de estudo do comportamento do consumidor de duas maneiras:

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desenvolveram uma taxonomia para a disposição e apontaram fatores que influenciam essa

decisão.

A taxonomia desenvolvida, já apresentada na Figura 1, sugere que o consumidor,

quando pensa em dar destino a algum objeto, tem três opções: não descartar, ou seja, manter o

produto; desfazer-se do produto de forma definitiva; ou desfazer-se do produto de forma

temporária. Se decidir manter o produto, a pessoa poderá continuar a usá-lo da mesma

maneira, usá-lo de outra forma ou mesmo guardá-lo. Se decidir se desfazer permanemtemente

de algo, poderá jogá-lo fora no lixo, doá-lo, vendê-lo ou trocá-lo por outra coisa. Mas, se a

decisão for se desfazer de forma temporária, poderá emprestá-lo ou alugá-lo a alguém.

Como forma de testar a validade e compreensão da taxonomia que desenvolveram, os

pesquisadores entrevistaram 134 consumidores tendo como base um questionário com

perguntas sobre a disposição de seis bens duráveis (aparelho de som, relógio de pulso, escova

de dentes, disco de vinil, bicicleta e geladeira). Os resultados trouxeram à tona algumas

curiosidades sobre o comportamento dos consumidores em relação aos produtos investigados,

como, por exemplo, o esquecimento sobre o destino dado a bicicletas ou os discos de vinil

guardados em casa mas nunca mais ouvidos. Um dos pontos observados foi a aquisição de

novos produtos mesmo quando os antigos ainda estavam em pleno funcionamento. A

explicação dada pelos entrevistados para tal fato foi a obsolescência tecnológica ou o desejo

de algo novo, pois já não se identificavam com o que possuiam.

A partir deste estudo Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) concluíram que as

motivações para o descarte podem ser agrupadas em três categorias: características

psicológicas do tomador de decisão, que envolve personalidade, emoções, percepção,

inteligência, classe social; fatores intrínsecos ao produto, como condição, tamanho, estilo,

valor, cor, inovação tecnológica, custo de susbtituição; e fatores situacionais extrínsecos ao

produto, como espaço de estoque, urgência, mudanças na moda, finanças, uso funcional,

oferta e demanda (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977). Essas categorias, que muitas vezes

aparecem justapostas, auxiliam a formulação de hipóteses em estudos exploratórios além de

fomentarem discussões e investigaçãoes acerca dos temas de disposição e descarte de

produtos (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977).

Outro artigo que contribuiu para a compreensão das motivações que levam às pessoas

a se desfazerem de seus bens é o de Hanson (1980). Assim como Jacoby, Berning e Dietvorst

(1977), ao considerar a disposição como foco de seu estudo, Hanson (1980) expande o

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conceito de comportamento do consumidor para que envolva três domínios que consideramos

hoje: aquisição, consumo (uso) e disposição. Hanson (1980) propõe a criação de um

paradigma para o processo de disposição de produtos pelos consumidores que, acredita,

oferecerá uma abordagem sistemática na identificação de componentes que afetem esse

processo de disposição (Figura 2). Esse paradigma é composto por três etapas: o estímulo

externo, vindo tanto de aspectos situacionais do ambiente quanto relativos ao objeto; o

indivíduo, influenciado por fatores individuais e familiares e que agirá como decisor; e o

processo de comportamento para a disposição, onde ocorre a tomada de decisão propriamente

dita. Hanson (1980) cria um modelo para esse processo de tomada de decisão e o subdivide

em outras quatro etapas: reconhecimento do problema; pesquisa e avaliação; decisão de

disposição; e resultados após a disposição (Figura 4). Hanson (1980) deixa claro que tanto o

modelo do processo de decisão como o paradigma propostos são desdobramentos do estudo

de Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) e tem como objetivo identificar áreas do processo de

disposição aos quais os fatores de influência proposto por esses autores – situacionais,

pessoais e do produto – se relacionam (Hanson, 1980).

Figura 4: Paradigma do Processo de Disposição de Produtos pelo Consumidor, (Hanson, 1980)

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A relevância do estudo de Hanson (1980), de caráter conceitual, se dá de três

maneiras. Primeiro, ele organiza visualmente os fatores de influência no processo de

disposição apresentados por Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) separando-os em

componentes do decisor e componentes de estímulo externo. Os questionamentos sobre o

decisor, ou seja, a pessoa envolvida no processo, se referem a características de personalidade,

aspectos demográficos do indivíduo ou normas socias estabelecidas e pouco dizem respeito a

sentimentos. No entanto, essa separação analítica entre contexto externo e características

internas abre espaço para que estudos subsequentes possam buscar os significados emocionais

da relação entre pessoas e seus objetos na hora do descarte. Segundo, o autor mapeia o

processo para disposição extendendo a tomada de decisão temporalmente ao envolver os

resultados pós-descarte. O indivíduo pode se deparar com sentimentos positivos, que

influenciarão a decisão tomada numa disposição futura, ou sentimentos negativos, que trarão

angústia e arrpendimento por se desfazer de um produto. Por fim, a pesquisa de Hanson

(1980) desenvolveu um série de perguntas sobre cada um dos fatores de influência que terão

papel de estimular reflexões futuras e até servir de base para o desenvolvimento de roteiros de

entrevistas em outras pesquisas.

Aqui fica claro que as motivações dizem respeito tanto àquele que se vê diante de um

objeto e deve decidir seu destino, quanto aos estudiosos do tema que, com as contribuições

inicias de Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) e Hanson (1980), se deparam com inúmeras

possibilidades de pesquisa sobre o processo de disposição.

Um estudo motivado pela inauguração do tema foi o de Albinsson e Perera (2009) que

explora grupos que promovem trocas de roupas e investigam fatores que influenciam as

pessoas em sua decisão de se desfazer de algo. Utilizam a taxonomia para a decisão de

descarte desenvolvida por Jacoby, Berning e Dietvorst (1997) como guia para sua análise,

mas optam por focar em apenas dois modos de descarte lá elencados: a doação e a troca.

Dessa forma, evidenciam seu interesse pelas motivações e preocupações presentes nos

consumidores quando trocam suas peças de vestuário com outras pessoas. Nessas trocas, onde

não há intermediação financeira, descarta-se algo, ganha-se algo, sem perdas, mas com espaço

para que novas identidades sejam forjadas e antigas saiam vestindo outros corpos. No fim, o

que não foi trocado é encaminhado para doação. Assim, Albinsson e Perera (2009),

pretendem explorar a importância de relações interpessoais, valores e autoconceito dos

consumidores no descarte voluntário de seus pertences.

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Como resultado de sua pesquisa, Albinsson e Perera (2009) apontam fatores de

influência e modos de descarte utilizados pelos consumidores. Os cinco modos de descarte

são: compartilhar, trocar, doar, reciclar ou jogar fora. Os fatores de influência na decisão de

descartar são subdivididos em características individuais, características da comunidade e

características do objeto e representam, os três, o verdadeiro foco da pesquisa.

As características individuais, como fatores que influenciam o descarte, envolvem

valores e formas de consumir, como por exemplo, a necessidade de simplificar a vida abrindo

espaço para novas coisas, fazendo circular a energia através da renovação dos bens. No

entanto, esse novo consumo é norteado por conceitos como sustentabilidade, altruísmo e

responsabilidade social. A família também aparece como influenciadora nos comportamentos

de consumo e descarte. Há ainda decisões de descarte baseadas na ideia de que os bens não se

encaixam mais no autoconceito do consumidor; ou mesmo a dificuldade de se desfazer de

objetos aos quais os consumidores estão ligados sentimentalmente, como extensão de si

mesmos. Por fim, a percepção da comunidade local também é importante para a prática do

descarte: se é tida como pobre, por exemplo, há a tendência a doações de pertences.

Já as características da comunidade que influenciam o descarte referem-se à existência

de relações ou redes sociais envolvidas com a prática, disponibilidade de infraestrutura para o

descarte, mídia incentivadora e a presença de bazares ou organizações que aceitem doações.

As características dos objetos como fator que influencia os consumidores a decidirem

ou não descarta-los, diz respeito ao valor, sentimental, econômico ou simbólico, que as

pessoas depositam neles. O estado do objeto, se está novo, velho ou quebrado, também será

levado em conta na hora do descarte.

Ampliando o grupo inicial de entrevistados e respondentes de questionários, incluindo

também pessoas que não participavam de trocas de roupas, esta pesquisa consegue apresentar

uma infinidade de elementos influenciadores da prática do descarte, que, muitas vezes

justapostos no momento de decisão, revelam a complexidade do tema.

Os estudos que seguiram não possuiam mais a característica de elaboração de

mapeamento completo do fenômeno como fizeram Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) e

(Hanson, 1980). A partir dessa estrutura conceitual, os pesquisadores passam a buscar uma

compreensão de aspectos simbólicos e sentimentais do indivíduo enquanto se relaciona com

seus pertences e no momento que decide se desfazer deles. Esse novo caminho de exploração

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pode ser exemplificado pela pesquisa de Roster (2001) que inclui, no entendimento do

processo de disposição, a separação pscicológica entre a pessoa e seus objetos. Denomina essa

separação psicológica de dispossession (despossessão) e pretende explorar comportamentos e

significados que acompanham o processo de disposição de bens de consumo (Roster, 2001).

2.2.3 Significados

Roster (2001) traz a discussão sobre objetos não mais desejados apontando mudanças,

tanto no ambinete, quanto internas (no indivíduo), como geradoras dessa sensação de

inadequação. Objetos que impeçam o desenvolvimento de metas pessoais ou que deixem de

representar imagens de seus donos no presente ou no futuro, se tornam candidatos à

disposição (Roster, 2001).

Avaliar esses objetos, da maneira como faz Roster (2001), remete diretamente a uma

abordagem da relação das pessoas com seus pertences que transcende a funcionalidade

objetiva das coisas e baseia-se em relações emocionais e na construção de identidades. Aqui,

o dono entende seu objeto como capaz de representá-lo, como parte de si próprio, ou, segundo

Belk (1998), como uma extensão de seu self. O self estendido, no entanto, não apenas é a

resultante do eu + bens, já que pode incluir, além das coisas que adquirimos e aprendemos a

usar, partes do corpo, momentos vividos e amizades conquistadas (Belk, 1980). Para Belk

(1980), uma das implicações do self estendido para o estudo do comportamento do

consumidor é o desuso e o descarte de produtos. Evidências mostram que algumas pessoas

não se desfazem de objetos guardados há anos com medo de precisarem deles no futuro: é

como se não quisessem se desfazer daquilo que os define, com medo de perderem suas

identidades (Belk, 1980). Por outro lado, objetos são descartados pelas pessoas quando a

relação de representação entre eles é estremecida o que, em geral, envolve uma mudança da

autoimagem. Deve-se, portanto, considerar não apenas como as relações entre as pessoas e as

coisas são cultivadas, através de experiências de consumo, mas também como essas relações

são rompidas por meio do descarte (Roster, 2001).

Para que o processo de disposição ocorra, é necessário que haja um afastamento entre

objeto e pessoa, em geral desencadeado por um desses três fatores: comportamento de

distanciamento, avalições contínuas de valor e desempenho e eventos críticos (Roster, 2001).

O comportamento de distanciamento, se refere à existência de um local marginal em que os

objetos são guardados numa tentativa de retirá-los do uso diário e central na vida de seus

donos (Roster, 2001). Assim, as pessoas guardam o que não querem mais por perto em

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gavetas, armários e sótãos com o objetivo de pensar sobre esses objetos mais tarde – e alguns

acabem sendo esquecidos – ou mesmo tirá-los de vista, pois provocam incômodo quando

presentes. Roster (2001) dá como exemplo um presente ganho de parente. Não são jogados

fora por terem sido dados por uma pessoa que lhe é querida, mas não é usado, pois não há

identificação com aquele objeto. Assim, ele é tirado de vista e, quem sabe, voltará à decoração

da sala quando aquele parente lhe fizer uma visita. O distanciamento gerado pela alocação

desses objetos num espaço intermediário, nem de uso, nem de descarte, funciona como um

adiamento da decisão de descartá-los ou reintegrá-los à sua funcionalidade plena. Em geral,

serão descartados no futuro.

Outro fator a provocar tal separação são reavaliações de valor e desempenho, quando

se contrapõe os custos de guardar com os de se desfazer de um objeto. Em geral, essas

avaliações ocorrem após um evento crítico e envolvem uma comparação entre o valor de

manter o objeto onde está e aquele de movê-lo para fora de casa. Roster (2001) aponta para o

fato de as pessoas estarem satisfeitas com a situação em que vivem, ignorando objetos

indesejados, inutilizados ou esquecidos, até o momento de fazerem as contas e perceberem

que o ideal seria descartá-los.

No entanto, aponta Roster (2001), a lógica econômica nem sempre funciona, e muitos

de seus entrevistados disseram ter dificuldades de se desfazerem de objetos que, acreditam,

podem ser necessários no futuro. Para alguns, desfazer-se de algo que não os representava

mais, trouxe uma sensação de liberdade e retomada de controle, porém, outros relataram ter

uma sensação de perda seguida de arrependimento após descartarem algo. Assim, é possível

que a separação física ocorra, mas que a ligação emocional com o objeto permaneça. Essas

constatações são importantes, pois evidenciam a ambivalência de sentimentos presentes

acerca da separação entre pessoas e seus pertences.

O terceiro fator que evidencia a desconexão entre dono e seu objeto são os ‘eventos

críticos’, ou seja, acontecimentos que modificam a relação existente entre pessoa e objeto,

trazendo sensações desagradáveis e apontando para o fato de que não há mais identificação

entre eles: o produto não representa mais o self de seu dono (Roster, 2001). Esses eventos

podem ser tanto uma grande mudança de vida como perder o emprego, descobrir uma doença

ou formar uma família, como também podem simplesmente ser uma mudança de estilo na

vida de uma pessoa ou novo produto que substituirá o antigo.

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Young e Wallendorf (1989) desenvolvem uma pesquisa sobre a natureza e o

significado do processo de disposição para categorias de posses que refletem o self estendido

(Belk, 1988) de seus donos. Para as autoras, os objetos que as pessoas possuem fazem parte

do repertório de suas vidas e perde-los ou descarta-los é uma espécie morte de parte de suas

vidas.

A partir de entrevistas não estruturadas realizadas na casa de cinco pessoas, Young e

Wallendorf (1989) puderam investigar os dois componentes do processo de disposição:

distanciamento físico, ou espacial e distanciamento emocional ou existencial. Esses dois

distanciamentos podem ocorrer de maneira simultânea, mas também é possível se desfazer de

algo fisicamente, sem que haja o rompimento emocional, ou o reverso, não descartar algo com

o qual já não há mais ligação. Para as autoras, a disposição é o um processo em que uma

pessoa se sente emocionalmente e fisicamente desconectada de algo que reflete seu self

estendido.

Young e Wallendorf (1989) utilizam a taxonomia desenvolvida por Jacoby, Berning e

Dietvorst (1977) e vão adiante para incluir em sua pesquisa outras opções para a disposição

como aquela que ocorre de maneira involuntária e remete a perdas, destruição e transferências

(legais ou ilegais) de bens. No que tange à disposição voluntária, evidenciam outras opções

não trabalhadas por Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) como a reciclagem, a destruição e o

abandono de objetos.

Ao não investigarem o armazenamento de coisas – uma das opções de disposição

proposta por Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) – apontam para a dificuldade de abordar esse

tipo de espaço. Ao afirmarem que a disposição é um processo, identificam o armazenamento

de objetos dentro de casa, (sótãos, porões e garagens) como um comportamento de pré-

disposição (Young e Wallendorf, 1989).

Como resultado desta pesquisa as autoras apontam três temas emergentes a respeito do

processo de disposição, a seguir. A “Transição para a disposição” lida com a hesitação dos

informantes antes de praticarem o descarte. Eles precisam de tempo até momento certo de se

jogar algo fora chegar. A “Disposição para alcançar estabilização” remete ao fato de que

muitos descartes serem realizados com o intuito de facilitar um retorno à normalidade ou à

retomada do controle sobre a própria vida. A “Disposição como comunicação” é um tema que

envolve utilização da disposição com meio de comunicar algo aos outros, de deixar clara uma

posição, como o fim de um relacionamento, por exemplo (Young e Wallendorf, 1989).

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Por fim, relembrando que lidam sempre com objetos que compõem um self extendido

afirmam que os processos de “disposições de bens são alegorias que escondem as perdas de

partes de nossa existência” (Young e Wallendorf, 1989, p.37).

Young (1991), num paralelo entre a dramaturgia e o processo de consumo, contribui

para a discussão de como o descarte acompanha a transição entre papéis e a redefinição de

identidades do consumidor. Afirma que a interpretação do comportamento humano funciona

como um teatro que fornece conceitos úteis na compreensão dos roteiros da vida real. Assim,

analisa a vida como uma peça na qual os consumidores exercem papéis identificados pelos

objetos que portam e manipulam em cena. Se esses objetos, chamados de adereços (props),

permitem que o personagem seja identificado em cena, o abandono de um adereço pode

ajudar a espectador a perceber que algo mudou em sua vida. O descarte de bens, portanto, é

capaz de facilitar e validar a transição entre papéis na sociedade (Young,1991): da puberdade

para a vida adulta, da vida de solteira para a maternidade, ou da vida de casado para a viuvez.

Ballantine e Creery (2010) apresentam a redefinição de papéis ao investigarem o

descarte inserido no comportamento de indivíduos que têm como objetivo a redução do

consumo de bens materiais, os chamados simplificadores voluntários (voluntary simplifiers).

A prática da simplificação voluntária envolve o consumo reduzido, ou seja, a limitação da

aquisição de novos produtos através da compra ou troca de usados; o consumo ético, que diz

respeito ao consumidor levar em conta aspectos sociais e ambientais no consumo; e as

atividades sustentáveis que podem envolver reciclagem e compostagem (Ballantine e Creery,

2010). Como o mote simplificar é viver com menos, eles também reduzem o entulho à sua

volta através do descarte de objetos – processo onde há um rompimento com a identificação

anterior que os conectava a cada um de seus pertences. O desfazer-se desses objetos parece

dar mais sentido à suas novas identidades.

A construção de uma nova identidade, onde menos é mais, fica clara na fala de uma

entrevistada que conta quando começou a questionar o estilo de vida que havia construído

para seus filhos: “Tínhamos tantos brinquedos que [meus filhos] nem pareciam interessados

em todos eles” (Ballantine e Creery, 2010, p. 50). Depois de minimizada a quantidade, ela

afirma que seus filhos conseguem dar mais atenção a uma só brincadeira quando têm menos

brinquedos (Ballantine e Creery, 2010). Os simplificadores voluntários também modificaram

seus hábitos de consumo e de descarte após adotarem o novo estilo de vida simples:

consomem pouco e indicam terem uma relação utilitária com o ato de ir ás compras, se

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distanciando do possível prazer em adquirir algo novo. No entanto, estão dispostos a gastar

mais em produtos de boa qualidade. Pela sua lógica, há valor na qualidade no que se refere à

maior durabilidade do bem, resultando em menos substituições futuras e, consequentemente,

menos descarte. Além disso, procuram ser autossuficientes, consertando eles mesmos objetos

quebrados para que possam prolongar ainda mais sua vida útil (Ballantine e Creery, 2010).

Também optam por comprar produtos de segunda mão como forma de minimizar a utilização

de recursos do meio ambiente, além de não sinalizar ao mercado a necessidade de mais

produção. Dentro dessa mesma estratégia, preferem a propriedade compartilhada de bens e

dão exemplo de usos de bibliotecas como forma de possuir menos objetos, mas poder usufruir

temporariamente de seus benefícios (Ballantine e Creery, 2010).

Indo além do que propõem Ballantine e Creery (2010), o estudo de Cherrier (2009)

evidencia o descarte como um instrumento simbólico. Na perspectiva dos simplificadores

voluntários, que escolheram seguir o caminho do simple living (vida simples), abandonar seus

pertences e passá-los adiante gera um fluxo de bens que representa uma experiência

transcendental e uma nova forma de sacralizar o processo de consumo. Para os que

escolheram esse estilo de vida, Cherrier (2009) aponta três domínios que compõem suas

novas identidades: o desejo de emancipação, o sacrifício do excedente e o encontro do

sagrado.

O desejo de emancipação representa a necessidade de romper vínculos com objetos

que significavam um aprisionamento a um sistema de valores que desejavam abandonar. Os

objetos acumulados violavam seu sentido de self e passaram a representar uma barreira, um

impedimento para a existência de novos valores construídos na adoção da simplicidade

voluntária. Encontrar seu eu autêntico, para um simplificador, significa não se submeter a

práticas consumistas, não se refugiar em bens materiais, não se identificar com objetos

supérfluos, libertar-se de normas e obrigações da sociedade de consumo de massa.

Para alcançar tal estado de liberdade e essência de si próprio, os simplificadores

relatam que o processo de descarte – desfazer-se de todos os seus bens – exige sacrifícios. No

entanto, como esclarece Cherrier (2009), o sentido de sacrifício aqui é diferente daquele

compreendido pela lógica capitalista na qual se aceita o sacrifício como forma de preencher

ou garantir desejos materiais. Para esses consumidores, o sacrifício de seus pertences é uma

forma de conquistar seus desejos de simplificação. Não aceitam dinheiro, já que querem

exatamente romper a cadeia de troca característica do consumo de massa.

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Como os objetos, ao serem descartados, não passam mais pelo processo de troca, eles

são investidos de nova aura através da escolha do local onde serão doados. Ao escolher uma

praia, onde os objetos foram dispostos para quem quisesse levá-los, uma simplificadora

remove os significados pessoais desses objetos e desfaz qualquer possibilidade de

recomoditização dos produtos. Assim, a sacralização, como sentem os simplificadores, diz

respeito ao trânsito desses bens de mão em mãos, numa propriedade compartilhada de escala

temporal infinita (Cherrier, 2009). Quando se desfazem de seus pertences, também abrem

mão de controlá-los, mas a crença da reinvenção de uma nova forma de consumo permanece.

O descarte aqui funciona como um veículo para uma experiência espiritual.

A ideia de perpetuação do fluxo de bens também está presente no discurso de idosos

que, ao doarem seus bens mais queridos para filhos ou netos, desejam deixar um legado que

se perpetue para além do tempo em que viverem. A possibilidade de perpetuação através da

disposição compõe, entre outros, os resultados obtidos na pesquisa de Price, Arnould e Curasi

(2000) sobre idosos e a disposição de bens especiais ou, como descritos pelos entrevistados,

‘queridos’, ‘favoritos’, ‘sem preço’ (Price, Arnould e Curasi, 2000).

Dentre os eventos que impulsionam o processo de disposição desses bens pelos mais

velhos estão a doença, ou mesmo a morte, do cônjuge e a percepção da própria finitude ao

assimilarem que a vida se aproxima do seu fim. Alguns decidem se organizar previamente e

definir quem ficará com o quê numa tentativa, ainda em vida, de determinar as biografias

futuras de seus objetos. Outros seguem normas familiares pré-estabelecidas de descarte que

serão levadas adiante por aqueles que receberem bens preenchidos com a história de família

(Price, Arnould e Curasi, 2000).

Para os idosos, a importância desses bens se dá por sua característica aglutinadora de

significados já que as experiências que viveram dão sentido a esses objetos e os objetos, por

sua vez, revitalizam suas histórias de vida (Price, Arnould e Curasi, 2000). Esses objetos são

percebidos como símbolos de continuidade, como itens que auxiliam à lembrança de eventos,

lugares e pessoas na vida de seus donos: uma possibilidade de reconstrução de suas narrativas

de vida. Por conta disso, a disposição desses bens é percebida como um movimento positivo

de transferência de significados, mas esbarra na perda de controle sobre esses objetos e na

consequente dificuldade de se auto preservarem (Price, Arnould e Curasi, 2000).

Essa ambivalência de sentimentos, que mistura de emoções positivas e negativas, é

característica do processo de disposição pelos idosos: eles têm medo de perderem suas

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identidades e questionam a real capacidade de perpetuação do presente, no futuro, através de

seus objetos; negam a importância de bens materiais como definidores de quem são; e se

sentem aliviados quando conseguem passar adiante algo que lhes é extremamente importante

e que sentem ser importante para o receptor também (Price, Arnould e Curasi, 2000).

Aqui, o descarte funciona como um processo de extensão de experiências, legados

familiares e pessoas no tempo. Para os idosos, representa uma forma de presentearem as

gerações futuras com um pouco de si, de lidarem com o envelhecimento, de encerrarem a

história, enfim, de conquistarem uma imortalidade simbólica.

Lastovicka e Fernandez (2005) também tratam da disposição, mas aqui os receptores

de bens queridos não são mais para parentes, participantes da história familiar, e sim pessoas

desconhecidas. Os autores apontam que, no contexto de vendas de garagem e leilões online, o

processo de disposição pode seguir três caminhos distintos. O primeiro se refere ao

cruzamento de uma barreira que separa o “eu” (me) do “não eu” (not me). Neste movimento,

objetos que representam um “eu” não desejado, ou são facilmente passados adiante e trazem

uma sensação de alívio. Para Lastovicka e Fernandez (2005) os objetos são repositórios de

significados públicos e privados, já que são produtos de mercado e ao, mesmo tempo,

encontram-se no domínio pessoal de seus donos e suas histórias de vida. O descarte de um

objeto carregado de significados negativos é compreendido pelo seu dono como a

possibilidade de, ao se separar de um self passado ruim, alcançar uma nova versão mais

positiva de si mesmo (Lastovicka e Fernandez, 2005).

Em algumas situações observadas por Lastovicka e Fernandez (2005), há uma empatia

entre vendedor e comprador, um pertencimento ao mesmo grupo de interesses, de afazeres,

como a culinária, por exemplo. Utensílios de cozinhas e panelas comunicam o elo entre os

dois lados da negociação. Essa identificação mútua e espontânea entre estranhos aponta mais

um caminho para a disposição: o self compartilhado. As histórias de cada objeto à venda

quando contadas pelo vendedor vão transmitindo significados privados ao comprador. Esse

compartilhar faz com que o vendedor acredite que o legado positivo daquele objeto não será

perdido. Com a garantia de que sua história perdurará ao mesmo tempo em que uma nova, a

do comprador, será criada, o vendedor desfaz-se de seu objeto com mais tranquilidade. A

fronteira aqui, que separa o “eu”, significados individuais, dos “nós”, significados

compartilhados, apresenta-se mais porosa (Lastovicka e Fernandez, 2005).

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O terceiro caminho para a disposição, segundo Lastovicka e Fernandez (2005), ocorre

quando o objeto está carregado de significados positivos e não há um par perfeito como o

receptor dessas boas memórias. Para amenizar a dificuldade de se desfazerem desses objetos,

Lastovicka e Fernandez (2005) observaram durante sua pesquisa que as pessoas se

distanciavam da situação de venda ou distanciavam o objeto, escondendo-o no fundo da

garagem onde possíveis compradores não o encontrariam. Há uma dificuldade emocional em

se desfazer de objetos que ainda representam um passado desejado, uma imagem positiva de

si mesmo. Para lidar com essa tensão e serem capazes de delimitar uma barreira entre os

significados privados e os significados públicos de objetos posto à venda, as pessoas utilizam

rituais de desprendimento (divestment rituals).

Para Lastovicka e Fernandez (2005), um desses rituais é a transferência icônica, na

qual é possível manter os significados positivos dos objetos mesmo se desfazendo deles. Essa

transferência se dá através de fotografias e vídeos dos objetos em seu contexto e uso e

possibilita às pessoas uma separação física menos dolorosa, já que mantêm a ligação

emocional com o objeto através de sua imagem. É como se a separação psicológica entre

indivíduo e objeto não precisasse acontecer, e o processo de disposição ficasse um pouco mais

fácil.

Outro ritual de desprendimento envolve colocar o objeto em um local de transição,

onde possa ficar por algum tempo e com isso ser esvaziado de seus significados emocionais e

possa, mais facilmente, cruzar a fronteira entre público e privado (Lastovicka e Fernandez,

2005). O local de transição funciona tanto como um sinalizador da intenção de descarte

quanto um lugar de triagem. Sótãos, porões, quartos não usados. Os locais escolhidos são

periféricos e fora de vista para que não interfiram no funcionamento da casa. Em geral,

objetos colocados nestes lugares seguem o caminho do descarte (Roster, 2001).

Esses exemplos de rituais de desprendimento seguidos pelos consumidores apontam

para uma abordagem do processo de disposição a partir de suas práticas. Este olhar sobre o

tema não se distancia da busca pela compreensão de significados para o processo de

disposição – apenas direciona sua atenção para as práticas cotidianas dos consumidores

envolvidos em dar destino aos seus objetos.

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2.2.4 Práticas de disposição

Denegri-Knott e Molesworth (2009) estudam as práticas de venda de produtos de

segunda mão através do eBay, que funciona tanto como uma loja virtual quanto como uma

plataforma para a realização de leilões online. Através desse canal, os objetos são reavaliados,

ganham um preço ou lance mínimo, no caso dos leilões, e percorrem o caminho inverso de

produtos novos, vão da esfera privada de volta para a pública, num processo conhecido como

recomoditização.

A reativação da categoria de commodity nos objetos que são postos à venda gera

rituais de descarte específicos como: devem limpar, consertar e reembalar os objetos de modo

a valorizá-los aos olhos de possíveis compradores. Os consumidores limpam seus objetos de

toda a poeira e os esvaziam de histórias vividas. É processo duplo, que agrega valor ao objeto,

enquanto o despe de significados (Denegri-Knott e Molesworth, 2009; Lastovicka e

Fernandez, 2005).

Esses rituais de reapresentação de objetos ao mercado, por sua vez, influenciam no

próprio processo de consumo. Denegri-Knott e Molesworth (2009) se depararam com a

existência de um consumo promíscuo, onde bens são comprados de forma acelerada com

objetivo de serem estocados e, por fim, postos à venda. Para esses consumidores, tais objetos,

mesmo estando dentro de suas casas, não são tidos como singulares, únicos. Segundo

Denegri-Knott e Molesworth (2009), são objetos que possuem uma biografia também

promíscua: passam por diversas mãos que não lhes dão sentido algum.

A relação entre objetos e consumidores, que nunca esquecem o valor de troca de seus

bens, indica uma alternativa na abordagem do comportamento do consumidor.

Diferentemente de autores que enfatizam o significado dos objetos na vida de seus donos

como uma extensão de seus selves (Belk, 1988), Denegri-Knott e Molesworth (2009) apontam

para uma relação mais utilitária, na qual afirmam que um objeto, mesmo incorporado à vida

de seu dono, nunca perde seu valor de mercado. Evidenciam, assim, a permeável fronteira

entre os caráteres doméstico, das coisas que possuímos, e público, de quando são postas à

venda.

Brace-Govan e Binay (2010) evidenciam a importância do canal de descarte como

forma de reorganizar bens e objetos possibilitando uma nova proposta de consumo que

represente uma alternativa ao mercado de massa. Para tal, exploram a experiência de

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consumidores em lojas de charity retail (varejo beneficente) onde há a venda roupas doadas,

de segunda mão, cujos lucros são revertidos em prol de alguma instituição de caridade. Aqui

também o processo de recomoditização, envolve práticas de seleção, limpeza na

reapresentação de roupas a consumidores interessados tanto em encontrar peças baratas

quanto em consumir de maneira sustentável.

Uma loja observada durante a pesquisa se diferencia de outras que também atuam no

varejo de segunda mão, pois tem uma forma de organizar as cores, separar os tipos de roupas

e apresentá-las que não lembram em nada a confusão com pouco critério de brechós

beneficentes. A estética da loja rompe o padrão desse tipo de varejo e consegue reapresentar

as peças de roupa limpas de vestígios de seus donos anteriores. Consumidores relatam que

nessa loja não há o característico e desagradável cheiro de naftalina de locais que vendem

artigos usados. Muitas vezes esses consumidores esquecem que estão numa loja de artigos de

usados (Brace-Govan e Binay, 2010).

A organização da loja e a não padronização das peças, característica de lojas de artigos

de segunda mão, possibilitam aos consumidores se sentirem únicos em suas identidades e

simultaneamente reconhecidos por atos alternativos ao consumismo. Comprar roupas e

sapatos que foram descartados permite, aos consumidores, a construção de identidades

individuais ligadas à rebeldia em relação ao consumo de massa e ao desejo de se comportarem

de forma ambientalmente consciente (Brace-Govan e Binay, 2010).

O processo de disposição envolve o movimento das coisas no espaço (Maycroft,

2009). A destinação de objetos para fora de casa seguindo o caminho do lixo ou mantidos

dentro de casa como estoque para uso futuro, por exemplo, são práticas que contribuem para a

compreensão da dimensão espacial do processo de disposição. Nesse contexto de realocação

das coisas no espaço, é possível que hábitos disfuncionais ou barreiras emocionais dificultem

ou mesmo impeçam a finalização do processo de disposição através do descarte (Maycroft,

2009) e o acúmulo de coisas pelos cômodos aconteça.

Coulter e Ligas (2003) exploram o comportamento de pessoas que se auto intitulam

packrats (acumuladores de objetos) ou purgers (eliminadores de objetos) na busca pela

compreensão de como cada indivíduo se identifica na categoria a qual diz pertencer e como vê

a outra categoria, a princípio oposta à sua. De forma geral, os packrats se veem e são vistos

como desorganizados, bagunçados e sujos, mas alguns dizem se achar no próprio caos.

Ligam-se emocionalmente aos objetos, mesmo depois que o sentido funcional dos mesmos

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possa ter acabado, o que não é coerente para os purgers, uma vez que sua relação com os as

coisas se dá no nível da objetividade do uso. Packrats têm dificuldade em romper o vínculo e

se desfazer de seus bens e preferem doá-los ou presentear outras pessoas a jogá-los fora. Para

os purgers, vale a forma mais fácil, ou econômica, de descarte: a lata de lixo é o destino mais

comum.

Tanto os packrats quanto os purgers se veem como inovadores. Para os primeiros, a

inovação diz respeito à capacidade de gerar algo novo a partir de objetos já desligados de seu

uso original, mas que ainda possuem sentido e despertam o potencial criativo nos integrantes

desse grupo. Já para os purgers, ser inovador é estar em contato com a tecnologia, sempre

consumindo o que há de mais novo e moderno em termo de soluções e invenções que

aprimoram a experiência dos homens com suas coisas e seu mundo (Coulter e Ligas, 2003).

Os dois grupos se diferenciam por seu sistema de valores sobre produtos e suas

atitudes sobre o tempo – packrats valorizam a memória e parecem viver ligados a

experiências passadas, enquanto purgers pensam sobre o futuro se desfazendo daquilo que os

prendem a papéis indesejados hoje.

A associação de packrats e purgers a comportamentos tidos como fora de padrão pela

sociedade – ausência completa ou presença extrema do processo de descarte – induz ao

julgamento e à condenação de algumas práticas que estão inseridas no dia a dia da maioria das

pessoas como, por exemplo, o abandono de objetos dentro de gavetas e o descarte de produtos

na lata do lixo (Coulter e Ligas , 2003).

Seguindo abordagem similar de distanciamento tanto do senso comum quanto dos

alardes midiáticos, Maycroft (2009) introduz seu estudo sobre indivíduos acumuladores

(hoarders) e atesta que este é um comportamento que envolve a desordem espacial da cultura

material. Para Maycroft (2009), há uma ampla gama de motivos racionais para a acumulação

de coisas, como a formação de estoque para períodos de privação e os incentivos econômicos

para o consumo, mas seu foco são as motivações ditas ‘irracionais’, segundo as quais se junta

uma enorme quantidade de objetos do cotidiano, restos de comidas e lixo transformando-os

num conjunto de proporções gigantescas sem mobilidade no espaço.

Maycroft (2009) entende a acumulação desordenada de coisas (hoarding) como uma

disrupção de práticas cotidianas de guardar, arrumar e deslocar objetos. Os acumuladores não

mantêm seus objetos organizados nos lugares tidos como ‘corretos’ e não utilizam canais

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disponíveis para o descarte. Há uma dificuldade em delimitar espaços, distinguir a

funcionalidade dos objetos e o estado das coisas ao redor. Assim, não ocorre uma seleção do

que deve permanecer dentro de casa e que deve ser levado prra fora como o lixo.

As práticas de acúmulo de objetos, que se caracterizem pela desordem e pelo

esquecimento, estão presentes nas vidas das pessoas em geral. Muitas delas possuem cantos

desorganizados, quartos entulhados ou sótãos empoeirados em suas casas. Fica claro, nesses

casos, que há uma delimitação de espaços marginais em suas casas para um acúmulo

desorganizado de coisas. Entretanto, para os acumuladores, não há diferenciação entre os

espaços numa casa e assim objetos são depositados por todo o canto. Pouco a pouco, tomam

áreas de convivência e dificultam o acesso aos cômodos da casa. Maycroft (2009) ressalta,

porém, que os acumuladores normalmente movem as coisas de lugar numa rearrumação que

permite abrir espaço para o deslocamento e, possivelmente, para o depósito de mais coisas.

Cappellini (2009) ressalta a existência de outros estudos – para além da distinção do

que é limpo e apto para o consumo ou do que é considerado sujo e deve ser descartado como

lixo – que demonstram que as práticas de desprendimento envolvem o movimento circular das

coisas, e que elas podem ser tidas como limpas novamente e retornarem ao ciclo, numa

segunda chance de consumo (Cappellini, 2009). Nesse processo circular, os consumidores dão

novos significados aos produtos, movendo-os de um lugar para outro dentro de casa, ao invés

de movê-los para fora de casa, o lugar usual do lixo. O consumidor, em sua prática de

desprendimento, reavalia e retrabalha o objeto, permitindo que ele permaneça em casa e

ganhe nova utilidade (Cappellini, 2009).

O descarte, portanto, não é mais o fim definitivo do processo de consumo, não mais o

fim de uma cadeia de valor, mas uma prática que lida com incertezas e dúvidas quanto à

classificação das coisas, e, sobretudo, com ausências. Essas ausências podem ser tanto

deliberadas, quando há a intenção de se desfazer de algo, quanto passam pela ordem do

esquecimento, como quando algo é guardado e esquecido dentro do armário (Cappellini,

2009). Assim, para Cappellini (2009), o descarte é fluido, é muito mais o processo de

redescobrir e movimentar essas coisas esquecidas, que trocam de lugar e ganham novos

sentidos, do que de, simplesmente, jogá-las fora. Esse descarte, cuja definição aqui se amplia,

não é apenas o resultado de uma sociedade que consome demais e produz refugos, mas de

uma forma de consumo através do sacrifício e do reaproveitamento, gerando um movimento

circular das coisas a partir de atitudes frugais.

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Cappellini (2009) evidencia esse movimento circular do processo de consumo através

do estudo das sobras de comida que são reaproveitadas em outras refeições. A volta à mesa do

que poderia ser considerado uma comida já apresentada em outra refeição aponta para o

sacrifício de se comer algo sem as qualidades daquilo que era novo e fresco. Esse sacrifício se

diferencia da dedicação na escolha, no preparo e na apresentação de comidas para a

celebração de aniversários e outras datas festivas. Comer as sobras, então, seria uma atitude

frugal, que longe do excesso de consumo, pretende economizar recursos, de tempo ou

dinheiro, para serem então utilizados na elaboração de pratos frescos e inéditos para celebrar

momentos especiais em família (Cappellini, 2009).

Segundo os resultados deste estudo, é a família quem poderá comer sobras, nunca

visitas; e dentro da família, a mãe é quem se sacrificará em prol dos filhos, que levarão

sempre um alimento fresco em suas lancheiras. Cappellini (2009) aponta, por fim, para os

dois extremos da relação de pais e filhos com o alimento, nos momentos de exacerbação das

festas e nos momentos de sacrifício do dia a dia, como sendo igualmente importantes no

fortalecimento dos laços familiares.

A definição de descarte ganha mais profundidade na abordagem de Cappellini (2009)

que abandona dicotomias classificatórias, como limpo e sujo, novo e velho, dentro e fora de

casa, e ingressa na compreensão de atitudes transitórias e cheias de dúvidas quanto ao que

fazer com as coisas, ou nesse caso, com as comidas. Tendo como base a ideia de que o

descarte lida com o movimento das coisas no espaço (Maycroft, 2009), Cappellini (2009)

inaugura um espaço interno, dentro de casa, para a circulação dos bens que vão da geladeira

para a mesa novamente. Diferentemente de Maycroft (2009), que sugere uma interrupção do

processo de disposição pelos acumuladores, Cappellini (2009) indica que o descarte se refaz

dentro de casa, apontando para regras, datas e espaços onde ele se concretiza. A

sistematização de um processo circular de descarte contribuirá para a compreensão sobre

locais, momentos e agentes envolvidos na classificação, deslocamento, armazenamento – e

quem sabe, transformação – como ocorre com a comida – de brinquedos dentro de casa.

2.2.5 Descarte e maternidade

Sego (2010) explora, especificamente, as práticas de descarte de mães com filhos em

casa. A autora ressalta o grande volume de produtos e alta rotatividade na qual são

consumidos pelas crianças ao longo dos seus anos de vida – desde fraldas e mamadeiras a

brinquedos e equipamentos esportivos. As necessidades das crianças mudam rapidamente e as

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mães devem dar conta, inclusive emocionalmente, de jogar fora, emprestar, doar ou mesmo

guardar roupas, brinquedos e objetos de uso pessoal que não cabem em seus filhos ou pelos

quais eles perderam o interesse.

No contexto de consumo materno, Sego (2010) identifica a existência de estudos que

enfocam as diferentes fases de vida das mães: da gravidez e chegada do recém-nascido, ao

momento em que os filhos deixam o lar. Existem também outras pesquisas sobre a ansiedade

das novas mães diante de inúmeras opções de serviços e produtos para bebês ou mesmo sobre

a falta de tempo para conciliar trabalho e dedicação aos filhos (Sego, 2010). No entanto,

acredita Sego (2010), há uma lacuna para pesquisas envolvendo consumo cotidiano das mães

que se situaria entre questões mais abrangentes sobre consumo e pesquisas sobre marcas e

produtos específicos. Sua pesquisa encaixa-se nessa lacuna ao desenvolver uma investigação

sobre a disposição de itens infantis pelas mães.

Através de entrevistas semiestruturadas, Sego (2010) busca conhecer as histórias

pessoais dessas mães, saber sobre produtos que seus filhos não usam mais e que ainda

estivessem guardados e sobre o aquilo que tinha sido descartado e a maneira como aconteceu.

Por fim, elas são questionadas se as práticas de descarte refletiam seus papéis de mães.

Suas descobertas são consistentes com os resultados de autores como Price, Arnould e

Curasi (2000) e Lastovicka e Fernandez (2005), pois também apresentam uma distinção entre

significados pessoais e significados compartilhados. Esses valores são resultantes do

cruzamento entre maior ou menor significado pessoal do objeto e maior ou menor significado

desses objetos para outras pessoas. A matriz final apresenta quatro categorias de objetos

passíveis de descarte: rubbish (lixo), wares (artigos/produtos), mementos (objetos de

lembrança) e intended heirlooms (heranças intencionais). Há também exemplos de cada uma

das categorias e o canal de descarte/disposição comumente utilizado para cada um deles. A

análise dos significados associados a roupas e itens infantis passíveis de disposição resultou

em interessante taxonomia, apresentada abaixo (Figura 5).

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Figura 5: Avaliação para a disposição de objetos e roupas infantis, (Sego, 2010)

Rubbish, ou lixo, é tudo aquilo que não possui mais valor para as mães, como

brinquedos que se quebram, perdem seu uso ou o apreço por parte da criança, e que também

não seriam valorizados por outras pessoas. São, portanto, jogados na lixeira. Wares são

produtos que ainda possuem valor de uso, mas não cabem mais nas crianças como roupas e

cadeirinhas para veículos e são comumente doados ou mesmo vendidos. Muitas vezes passam

um tempo numa área de depósito (McCraken, 1986; Roster, 2001; Lastovicka e Fernandez,

2005) até serem realmente descartados. Mementos, com a mesma grafia em português,

significa um objeto que recorda alguém ou algum momento. Assim, um dente, um cacho de

cabelo ou a roupa de saída da maternidade podem ser mementos dos quais as mães não se

desfazem. Intended heirlooms, são heranças intencionais, objetos que são guardados para

alguém na posteridade. Eles são inalienáveis e, em geral, fazem parte da história da família

como, por exemplo, coleções de brinquedos utilizados pelos pais e que serão doados para seus

filhos no futuro. Essas heranças podem também ser dispostas em estantes ou armários

envidraçados que funcionam como verdadeiras vitrines para o importante legado presente

dentro de casa.

Sego também aponta a complexidade inerente à disposição de artigos infantis presente

no discurso das mães na escolha do canal de descarte: elas questionam se devem ou não ficar

com o objeto e preservar uma lembrança do passado, passá-lo adiante para mães conhecidas

ou doá-lo para uma instituição de caridade.

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Sego (2010) sugere quatro estudos futuros a partir de sua pesquisa. O primeiro seria

aprofundar a exploração de transferências horizontal e vertical de propriedade, já que sua

pesquisa apontou que heranças intencionais são transferidas verticalmente, entre gerações

dentro de uma mesma família, enquanto artigos de bebês e crianças são passados para outras

mães, em transferências horizontais sugerindo um espírito de grupo sem que haja relações de

amizade. A segunda sugestão seria a de investigar como outras pessoas, familiares mais

velhos ou parceiros de trabalho, podem servir de modelo para as mães em suas práticas de

descarte. A terceira possibilidade, que foi desenvolvida em conjunto por Phillips e Sego

(2011) seria explorar se há relação entre identidades e características pessoais que as mães

percebem em si próprias e em seus filhos e que influenciam o processo de disposição.

Assim, ainda com foco no processo de disposição de itens infantis – desde calçados

que ficaram pequenos ao material de desenho que as crianças usaram na escola no último ano

letivo – Phillips e Sego (2011) abordam como as identidades, construídas ou desejadas,

compõem a interação das mães com as crianças e outros membros da família na tomada de

decisão para a disposição.

Como forma de classificar as mães em suas práticas de disposição, Phillips e Sego

(2011) utilizam a dicotomia elaborada por Coulter e Ligas (2003) em estudo anterior:

packrats (acumuladores) e purgers (eliminadores). Empregam, contudo, novos termos para

identificar suas entrevistadas, uma vez que os termos packrats e purgers apresentam

conotação pejorativa na língua inglesa. Foram empregados os adjetivos keeper e discarder,

que em português podem ser traduzidos, respectivamente, pelas expressões ‘aquele que

guarda’ e ‘aquele que descarta’. Já que a maioria das mães encontrava-se entre essas duas

categorias as autoras utilizam, portanto, um continuum classificatório para diferenciá-las em

relação ao significado que os objetos possuíam em suas vidas e em suas tendências a guardá-

los ou descartá-los.

A complexidade do tema evidencia-se quando essas decisões não são tomadas

individualmente pelas mães, mas envolvem outros membros da família, como crianças e pais.

Surgem assim conflitos de identidade, que se dão internamente para as mães, gerando

indecisão e angústia na hora de descartar as coisas, ou levam a brigas dentro de casa na hora

de decidir o que fica e o que vai. As identidades envolvidas são a da mulher em seu papel de

mãe, a das crianças e do pai e mesmo a da família como um todo. Idealmente, um objeto

descartado é aquele cujo significado falhou em atender a essas distintas identidades. Mas o

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descarte pode ocorrer mesmo se o objeto não atende a todos, uma vez que a mãe pode decidir

que aquele objeto não representa, em seu significado, a identidade que deseja para seu filho

ou para sua família (Phillips e Sego, 2011).

Segundo Phillips e Sego (2011), as mães utilizam algumas estratégias para lidarem

com esses conflitos: o subterfúgio, quando coisas são descartadas sem o conhecimento dos

filhos, evitando-se assim o confronto; a evitação, quando a decisão do descarte é postergada,

muitas vezes guardando-se o objeto como na prática de esfriamento (McCracken,1988); a

decisão forçada, quando os filhos são forçados a decidir o que fica e o que sai de um conjunto

de objetos; e o treinamento, quando são ensinadas práticas apropriadas e aceitáveis de

disposição às crianças. Por fim, pode ocorrer o debate, geralmente entre os adultos, para

tentarem resolver a situação.

Sensações de ambivalência estão presentes nas mães quando descartam as coisas mais

corriqueiras. Esse estado emocional é gerado pela incompatibilidade entre diferentes

identidades, sejam elas presentes ou desejadas. Essas mulheres se sentem incapazes de

coordenar o que sentem em relação aos bens de seus filhos com o que é culturalmente

esperado para o seu papel de mãe, a manutenção do lar e o descarte de objetos desnecessários.

Para as elas, o sentimento de culpa, por estar se desfazendo de muitas coisas ou por não

descartarem como esperado, é uma consequência comum do processo de descarte (Phillips e

Sego, 2011).

Uma alternativa, que minimizaria a frequência de processos de disposição de produtos

e conflitos inerentes a eles, seria o consumo controlado: uma diminuição na quantidade de

coisas adquiridas ou uma melhor seleção do que é comprado (Phillips e Sego, 2011). É

comum o pensamento de que comprar algo de qualidade posterga o descarte ou reduz o

número de compras de um bem substituto. Portanto, a pesquisa sugere que as barreiras

teóricas entre aquisição, consumo e descarte são ilusórias e enfatiza a importância do

desenvolvimento de teorias sobre a disposição associadas ao processo de consumo (Phillips e

Sego, 2011).

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2.2.6 Esquema teórico

O esquema teórico abaixo (Figura 6) tem como finalidade a consolidação do

desenvolvimento da segunda parte desta revisão de literatura através de uma representação

visual que facilite sua compreensão e evidencie as conexões entre autores e conceitos.

Figura 6: Esquema teórico – Processo de consumo e disposição

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3 Metodologia

3.1 Filiação paradigmática

Este estudo se insere na linha de pesquisa do Consumer Culture Theory (CCT), um

programa teórico interpretativista cuja denominação foi cunhada por Arnould e Thompson

(2005) – a partir de artigos publicados ao longo de vinte anos no Journal of Consumer

Research – na tentativa de consolidar perspectivas teóricas relativas a projetos de construção

de identidades, cultura popular, padrões sócio-históricos de consumo, e ideologias de

mercado.

O CCT aborda de forma holística o fenômeno do consumo, estudando situações

particulares nas quais ele ocorre com o objetivo de dar significado, a partir da cultura, às

experiências dos consumidores inseridos no mercado. A cultura de consumo (consumer

culture) para o CCT é concebida, portanto, como um arranjo social nas quais as relações entre

a cultura vivida pelas pessoas e os recursos simbólicos e materiais dos quais dependem, são

mediados pelo mercado (Arnould, 2006). Assim, a cultura é vista a partir de sua distribuição

heterogênea de significados envolvendo uma multiplicidade de grupos culturais que se

sobrepõem no contexto da globalização e do mercado capitalista (Arnould e Thompson,

2005).

Dentro dessa abordagem, destacam-se quatro linhas de pesquisa A primeira estuda a

cultura popular e explora como os consumidores (considerados agentes culturais), munidos de

recursos do mercado, produzem sentimentos de solidariedade e criam ambiente culturais

distintos ao compartilharem interesses de consumo. Outra linha de pesquisa é a que lida com

padrões sócio-históricos de consumo e pode ser definida pela relação entre as estruturas

sociais e institucionais que influenciam o consumo, com suas normas e regras já

estabelecidas, e as experiências vividas pelo consumidor, seu sistema de crenças e suas

práticas (Arnould, 2006). A terceira linha de pesquisa concebe os consumidores como agentes

interpretativos cujas atividades, geradoras de sentido, podem ser desde aquelas que aceitam

identidades e o estilos de vida veiculados pela grande mídia, quanto as que a criticam de

forma consciente e se desviam dessas imposições ideológicas. Por fim, há a linha de pesquisa

que lida com projetos de identidade e tem como foco a maneira na qual os consumidores,

utilizam-se de materiais e recursos simbólicos disponíveis pelo mercado, forjam sentidos de

self – diversos e fragmentados – para si próprios.

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3.2 Questões de pesquisa

As questões de pesquisa apresentadas no início deste texto são aqui rememoradas.

A revisão de literatura norteou a elaboração da seguinte pergunta de pesquisa: Como

se dá processo de consumo de brinquedos pelas famílias, dando especial ênfase à disposição?

Para responder essa pergunta principal, questões secundárias foram desenvolvidas:

1) Qual o significado do consumo de brinquedos?

2) Qual o significado do processo de disposição dos brinquedos?

3) Como se dá a disposição de brinquedos?

Com o objetivo de encontrar respostas para essas perguntas, através do trabalho de

coleta e análise de dados, foram feitas algumas escolhas de pesquisa que serão apresentadas a

seguir.

3.3 Desenho da pesquisa

3.3.1 Coleta e análise de dados

Tendo em vista o objetivo de compreender o processo de consumo e disposição de

brinquedos, a presente pesquisa se baseou em uma abordagem qualitativa, inspirada no

método dos itinerários (Desjeux, 2006). As justificativas e escolhas relacionadas ao método

serão explicitadas a seguir.

3.3.1.1 Método dos itinerários

O método dos itinerários, cuja origem se deu na sociologia a partir dos trabalhos de

Dominique Desjeux, é uma ferramenta de pesquisa que possibilita, para o estudo do

comportamento do consumidor, a investigação de práticas dos consumidores ao longo de todo

o processo de consumo – interação entre consumidor e produto antes e depois de adquiri-lo

(Campos, Suarez e Casotti, 2006). Assim, o consumo é visto como um processo que se inicia

antes mesmo do momento da compra e termina com o descarte do bem. No meio desses dois

extremos estão os consumidores que escolhem, manipulam e movimentam seus bens.

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O método dos itinerários lida com o aspecto concreto da cultura material, ao investigar

as coisas e seus movimentos no tempo e no espaço. O método dos itinerários pretende

inventariar objetos e seus usos, bem como mapear espaços e suas regras de ocupação

(Campos, Suarez e Casotti, 2006). Essa característica implica que a investigação ocorra onde

estiverem esses objetos, o que, no caso da presente pesquisa significou ir à casa do

consumidor. A presença dos objetos é central na investigação e minimiza desvios que

ocorreriam se a pesquisa fosse baseada apenas no relato verbal do entrevistado (Campos,

Suarez e Casotti, 2006).

A trajetória dos objetos é representada neste método através de sete etapas que

pretendem dar conta de todo o processo de consumo. Elas são: a decisão de compra no

contexto das relações sociais, o transporte até o local de compra, a compra, a estocagem do

bem comprado, o preparo para o consumo, o consumo e o descarte (Desjeux apud Campos,

Suarez e Casotti, 2006).

Na sua operacionalização, além do acompanhamento das etapas do processo do

consumo e da observação da materialidade, o método dos itinerários utiliza-se das entrevistas

em profundidade. Segundo Belk, Fischer e Kozinets (2013) esse é um método de coleta,

amplamente utilizado nas ciências sociais, tendo por objetivo principal a busca por um

conhecimento maior e aprofundado do assunto sobre o qual o entrevistado tem domínio.

Diferentemente de uma abordagem superficial, procura ir cada vez mais fundo ao explorar um

tema ou comportamento, que, em geral, diz respeito à vida do entrevistado. Em geral, esse

tipo de entrevista é conduzido de maneira com que o tema seja abordado na direção do

genérico para o específico. Perguntas de aprofundamento, que buscam maiores explicações ou

o desdobramento de algo dito anteriormente, também são utilizadas ao longo da entrevista.

Uma entrevista em profundidade é como uma conversa na qual os envolvidos falam

alternadamente, num desenvolvimento coerente de assuntos, e não há perguntas fixas.

Evidentemente, há algumas diferenças em relação a uma conversa normal: em geral, ocorre

entre estranhos; o fluxo de informações é unilateral, do entrevistado para o entrevistador; há

um tópico inicial a partir do qual se desenvolverá a fala, além do fato de o entrevistador poder

interromper e redirecionar a fala do entrevistado (Belk, Fischer e Kozinets, 2013).

Seguindo as recomendações de Desjeux (apud Campos, Suarez e Casotti, 2006), na

presente pesquisa, as entrevistas foram realizadas na casa das informantes. Assim, durante

esses encontros, fala e observação dos espaços foram conjugados para contar a realidade das

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mães. A escolha da entrevista em profundidade como forma de coleta de dados para esta

pesquisa se deu pelo fato de que, devido a limitações de tempo e conveniência, não seria

possível observar in loco todas as etapas de consumo. Assim, essa conversa tinha por objetivo

rememorar os principais aspectos de cada etapa, bem como entrar no universo de mães, filhos

e brinquedos, de maneira mais densa, através da qual opiniões, sentimentos e desejos

pudessem ser elaborados ou surgissem nas falas das entrevistadas. A realização das

entrevistas nas casas das entrevistadas também permitiu investigar a disposição dos produtos

nesse ambiente, a partir da observação.

Para guiar as entrevistas, elaborou-se um roteiro semi-estruturado de perguntas (ver

apêndice 1). As conversas tinham um tom informal e, em geral, eram iniciadas com

lembranças de brinquedos da infância das mães, para depois ir transitando por temas sobre o

cotidiano de seus filhos. Por fim, as perguntas iam se especificando para o processo de

consumo, onde o descarte de brinquedos dos filhos surgia como assunto. Quando as mães

identificavam um tipo de brinquedo – especial, preferido ou mesmo indesejado – perguntas

eram feitas sobre quem havia dado o brinquedo, como ele foi apresentado à criança, como era

a brincadeira, onde ele ficava guardado e como seria seu descarte futuro.

Ao longo das entrevistas, um aspecto que chamou a atenção se relaciona as falas sobre

a compra ou as brincadeiras, que se sobressaíam àquelas sobre o descarte. Parecia haver, por

parte das entrevistadas, um desejo de passar rapidamente para outro assunto, deixando de lado

o tema da disposição de brinquedos, sempre retomado pela entrevistadora. Esse

comportamento suscitou uma reflexão inicial em torno dos incômodos e tensões presentes no

consumo da categoria, análise que será desenvolvida no capítulo a seguir. Em geral, as

entrevistas começavam na sala e aos poucos, passavam a percorrer outros espaços da casa,

seguindo o caminho dos brinquedos. Eventualmente, uma criança aparecia e participava

rapidamente da conversa.

Parte da preparação da entrevistadora para o momento da entrevista se deu através da

tentativa de ganhar consciência de seus julgamentos prévios sobre o tema, entendendo que a

pesquisa interpretativa reconhece que o resultado da pesquisa é justamente resultado da

interação entre visões, crenças e conhecimentos do pesquisador e seu objeto de pesquisa

(Thompson, 1997). Assim, o fato de a entrevistadora não ser mãe e não viver o dia a dia de

crianças e seus pertences gerou nela um olhar novo, não familiar, sobre esse universo e exigiu

que as mães desenvolvessem seus pensamentos com mais detalhamento. Por outro lado, o fato

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de ter um sobrinho de três anos com quem convive, fez com que a disposição de brinquedos

pela casa não fosse um assunto tão desconhecido para ela. Essa composição de fatores pode

ter contribuído de forma positiva para a pesquisa, pois, segundo Belk, Fischer e Kozinets

(2013), um pesquisador não deve entrar numa entrevista totalmente despreparado, mas

também não pode obrigar seu entrevistado a seguir a sua linha de raciocínio e conhecimento

sobre o assunto.

Como já se comentou, uma tarefa de preparação que antecedeu à entrevista foi a

elaboração de um roteiro de perguntas, a partir da leitura de artigos sobre descarte,

socialização para o consumo e maternidade. Esse roteiro utilizou- da estrutura do método dos

itinerários para coleta de dados sobre o processo de consumo de brinquedos. Como esse

método tem por premissa ir aonde as coisas estão, todas as entrevistas ocorreram nas casas

das mães, para que pudéssemos falar sobre os brinquedos e ver como eles estavam dispostos

pelos cômodos. Nenhuma delas demostrou incômodo em mostrar sua casa e abrir seus

armários. Algumas abriram mais portas e gavetas, outras menos.

A entrevistadora utilizou, mediante autorização das entrevistadas, um gravador digital

para gravar as entrevistas que duraram, em média, 60 minutos, totalizando 11 horas de

material coletado, integralmente transcritos para o processo de análise. Todas as entrevistadas

permitiram a gravação e se mostraram bem à vontade ao longo da conversa; parece que mães

gostam de falar sobre seus filhos. Foram tiradas fotografias dos brinquedos nos cômodos onde

estavam e na arrumação em que se encontravam (armários, cestos ou pelo chão). Algumas

mães se desculpavam pela bagunça, mas logo prosseguiam na conversa. Outras mencionaram

que organizaram os brinquedos antes da entrevista. Uma delas apontou que aquele era um

momento de reflexão sobre a vida da família com relação aos brinquedos do filho. Esses

comentários enriqueceram a pesquisa e apontaram para a complexidade do tema que envolve,

conjuntamente, a importância dos brinquedos na vida das crianças e a angústia das mães

quando pensam na quantidade e disposição desses produtos em suas casas.

As fotos auxiliaram a pesquisadora a captar informações sobre espaços, objetos e

práticas, e a lembrar de detalhes conversados nas entrevistas. Assim que cada entrevista

terminava, a pesquisadora passava as fotos feitas com seu telefone celular para o computador

e identificava cada uma delas com data, nome da entrevistada e local onde o brinquedo se

encontrava na casa. Foram tiradas um total de 300 fotografias.

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3.3.2 Seleção das entrevistadas

Foram realizadas 15 entrevistas com mães cujos filhos tivessem entre dois e sete anos

de idade. O intervalo de idade dos filhos foi definido a partir dos estágios cognitivos da

criança, propostos por Jean Piaget (Ward, 1974). No caso de mais de um filho, ao menos um

deveria ter entre dois e sete anos de idade.

A seleção das entrevistadas se deu através do que se denomina amostragem por

conveniência (Malhotra, 2004), ou seja, as mães foram escolhidas pela proximidade e

disponibilidade para participar do processo. São, em sua maioria, amigas, amigas de amigas,

ou amigas da irmã da pesquisadora.

Inicialmente, o contato com as mães se deu, na maioria dos casos, por e-mail. Os

agendamentos das entrevistas, no entanto, foram todos feitos por telefone. Não foi dada muita

explicação às mães sobre do tema da entrevista, foi dito apenas que era sobre brinquedos de

criança e que a entrevista deveria ser realizada na casa da pessoa.

Mais de quinze pessoas se dispuseram a participar. A agenda de marcação é que

determinou quem seria entrevistado primeiro. Por volta da décima segunda entrevista,

percebeu-se que falas sobre os assuntos investigados estavam se tornando repetitivas, não

adicionando novas perspectivas sobre o tema. Com o objetivo de confirmar a saturação

teórica realizaram-se um total de quinze entrevistas, sendo os demais agendamentos

cancelados. Não houve determinação de classe social na escolha das entrevistadas, embora a

amostragem por conveniência tenha concentrado as entrevistas nos estratos da classe média-

alta, do Rio de Janeiro. As entrevistas ocorreram entre 13 e 27 de setembro de 2013. A

seleção final das entrevistadas, cujo nomes foram substituídos para preservar suas identidades,

é apresentada no quadro a seguir (Quadro 1):

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Quadro 1: Seleção das entrevistadas

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3.3.2.1 Análise de dados

Segundo Belk, Fischer e Kozinets (2013), o processo de análise dos dados em uma

pesquisa qualitativa anda lado a lado com o processo de coleta de informação – o trabalho de

campo, propriamente dito. Assim que uma entrevista termina, o trabalho de análise pode, e

deve, ser iniciado. Analisar dados significa, basicamente, encontrar padrões no material

coletado. Padrões podem surgir devido às perguntas que foram feitas, devido ao arcabouço

teórico sobre o tema ou mesmo, de maneira inesperada, devido à reflexão do pesquisador

sobre os dados coletados (Belk, Fischer e Kozinets, 2013).

Segundo Belk, Fischer e Kozinets (2013) há uma vantagem em se começar análise de

dados logo após o início da coleta de dados: descobrir se a condução das entrevistas está

correta em relação aos objetivos da pesquisa. Nesta pesquisa, contudo, a análise de dados não

ocorreu de forma simultânea à coleta, mas depois. Isso se deu pelo fato de as quinze

entrevistas terem acontecido todas num intervalo a curto tempo – duas semanas.

A análise neste estudo teve início com a codificação de cada uma das quinze

entrevistas. Codificar, segundo Belk, Fischer e Kozinets (2013), é identificar elementos que

mantenham seus significados mesmo quando retirados do contexto em que foram coletados.

A codificação é um sistema de dar códigos, ou seja, nomear elementos de significados

(palavras, frases, parágrafos ou blocos de texto), a partir de uma listagem de conceitos

pertinentes ao tema investigado (Belk, Fischer e Kozinets, 2013). Os códigos utilizados nesta

pesquisa – relação com brinquedos, rotina da criança/brincadeiras, tipos de brinquedos,

atividades e cômodos, educação do filho, práticas de disposição, ideal de maternidade e

autopercepção, por exemplo – foram construídos a partir da literatura sobre disposição,

maternidade e consumo infantil e das perguntas de pesquisa elaboradas para traçar este

estudo.

Essa lista, contudo, não era fixa e sofreu alterações ao longo do processo de análise,

quando novos códigos foram inseridos como forma de identificar, com mais detalhe,

informações contidas nas entrevistas. Assim, surgiram das falas das entrevistadas códigos

emergentes, como: “fazer a limpa”, “dar uma geral” e “caos”.

Após a codificação, foram desenvolvidos sumários analíticos de seis entrevistas

consideradas âncoras no processo de desenvolvimento desta análise, já que traziam relatos de

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mães, com posturas bem distintas umas das outras, no que se refere à disposição de

brinquedos e, além disso, pareciam percorrer, como conjunto, as questões mais relevantes

para esta pesquisa. Ao final, os sumários analíticos foram combinados com as outras

entrevistas num único texto, que estrutura a análise a seguir. Buscou-se, ao longo da análise,

uma interpretação dos dados em que fossem construídos significados para padrões de

comportamento encontrados.

3.4 Limitações do método

A escolha pelo desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa já apresenta em seu cerne

uma limitação quanto à possibilidade de representatividade de seus resultados no sentido de

que possam ser generalizados do ponto de vista de sua distribuição populacional.

Outra limitação deste estudo diz respeito às lacunas existentes entre o que se diz e o

que se faz. Apesar da tentativa em minimizar essas diferenças através do uso do método dos

itinerários – uma vez que é possível comparar fala e aspectos tangíveis sobre os objetos em

debate – sempre haverá diferenças entre o discurso das entrevistadas sobre seu

comportamento e a forma como realmente agem.

Para a entrevistadora há ainda uma dificuldade – que surge com o método dos

itinerários aliado à entrevista em profundidade – em realizar tarefas simultâneas sem que

nenhuma delas seja prejudicada. No processo de ouvir e questionar a entrevistada, gravar sua

fala, percorrer cômodos da casa e fotografar objetos e espaços, é possível que muitas

informações sejam perdidas fazendo com que o trabalho em campo realizado se caracterize

pelas suas condições possíveis e não pelas ideais.

Por fim, de acordo com a filiação paradigmática deste trabalho, entende-se que a

percepção e interpretação da pesquisadora são condições inerentes à pesquisa e relacionadas à

sua capacidade de análise. Embora tenha como pressuposto que toda atividade de pesquisa

surge justamente dessa interação entre pesquisador e seu objeto de pesquisa, essa

característica poderia ser considerada como uma limitação a ser destacada para eventuais

leitores de uma orientação positivista.

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4 Análise e discussão dos resultados

4.1 A vida com brinquedos

Esta análise se inicia pela apresentação de vidas nas quais os brinquedos se fazem

presentes. São vidas de crianças que, diante de um brinquedo, elaboram fantasias, invenções e

personagens impensáveis! São vidas de adultos, que relembram brincadeiras e histórias do

passado. São vidas de mães que reaprendem com seus filhos o que é ser criança. São vidas de

avós, que enchem os netos de presentes para se encantarem com suas descobertas. Diante

desse universo, na tentativa de compreendê-lo, surgem algumas questões: Como as crianças,

com ajuda dos pais, escolhem seus brinquedos? Como eles surgem em suas vidas? Com a

descoberta de novos brinquedos, o que é feitos dos antigos, pelos quais perdem interesse?

Para onde vão? Quem decide qual será seu destino? Na tentativa de responder essas

perguntas, desenvolve-se aqui – a partir de entrevistas e fotografias colhidas para o

desenvolvimento desta pesquisa – um panorama de percepções e mesmo incertezas sobre

brincadeiras de infância, arrumações de quartos, e consumo de brinquedos. Acredita-se que,

com isso, será possível conhecer algumas mães e suas relações com os brinquedos de seus

filhos. A primeira delas é Laura.

Laura, que tem 37 anos de

idade, é casada e mãe de Natália (sete

anos de idade) e Rodrigo (três anos de

idade). Trabalha como advogada e se

especializou em direito do consumidor.

Vivem os quatro, mãe, pai e os dois

filhos num apartamento de três quartos

em Laranjeiras. Cada criança tem seu

próprio quarto decorado de acordo com

o gosto de cada um. O de Rodrigo tem

tema de carros, que ele adora; o da

Natália é lilás. Mas foi a sala da casa que mais contribuiu para o entendimento da dinâmica da

família em relação aos brinquedos: uma pista de corrida de carros feita de fita crepe, colada

no chão (Fotografia 1). O destaque da construção da brincadeira nesse espaço central da casa

indica a importância de se aproveitar a infância para Laura:

Fotografia 1: Pista de corrida de fita crepe (sala)

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Fora as obrigações todas, hoje em dia o tempo é mais corrido, muitas atividades.

Antes [quando ela era criança] você tinha mais tempo pra brincar. Então eu me

preocupo muito com isso, com eles, de não encher de atividades pra eles terem tempo

de serem crianças. Infância depois passa e aí?! (Laura, 37)

Sua fala indica também uma preocupação com o volume de atividades – festas de

aniversários, cursos de línguas e esportes – que assoberbam tanto mães quanto crianças, não

as permitindo viver a infância de maneira plena. Para Laura, essa infância plena a faz lembrar

da sua própria, com brincadeiras ao ar livre e menos violência na cidade:

[...] as brincadeiras eram muito ao ar livre, pique-esconde, cabra-cega, pega-pega,

queimada, amava jogar queimada, pula-corda e praia, eu vivi muito em praia, e até

bola, bicicleta. Hoje em dia eu vejo muita diferença até por questão da violência, eu

acho muito diferente a criança brincar na rua. (Laura, 37)

Epp e Price (2008) lembram que a orientação de geração define a ligação com o

passado. É a percepção de que o que família é hoje advém do legado de gerações anteriores. A

fala de Laura chama a atenção para as suas memórias de brincadeiras na sua infância e do

desejo de perpetuar o que ela considera uma infância plena. Entretanto, as mudanças no

contexto da própria cidade onde vive dificultam uma reprodução das brincadeiras nos mesmos

moldes que ela vivenciou. Mesmo assim, a família se esforça para que os filhos tenham uma

infância rica em brincadeiras. O fato de terem vivido em duas casas – uma em Itaipava e outra

no Recreio – antes de se mudarem para o atual apartamento, ajudou a construir essa infância

que desejam para as crianças. Laura percebe suas conquistas através da observação da filha,

uma menina “moleca”.:

A gente aqui se preocupa muito com isso e acho que a gente consegue cuidar: eles

brincam bastante, têm lá as atividades, as horas de escola, a hora de dever e tudo, mas

eles são bem de rua assim. Tanto que a Natália ela é bem moleca. Ela não é aquela

menininha toda emperiquitada, supervaidosa, tem lá todos os esmaltes, maquiagem,

vestidos, mas ela não é aquela menininha que senta e fica lá quietinha. Ela vai se

enrolando e rola na grama, rola na areia, sobe em árvore. Então assim, acho que isso a

gente conseguiu passar para eles. (Laura, 37)

Adicionalmente, o espaço interno do apartamento termina por se transformar em uma

espécie de playground para as crianças, como sugere a pista de carros que “invade” o espaço

privilegiado da sala de estar. Ali, colado com fita crepe, está demarcado um espaço que

mesmo ausente de brinquedos no momento da entrevista, sugere uma função que se alarga

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para incluir as atividades que, segundo Laura, são fundamentais para o desenvolvimento dos

seus filhos.

Marta é outra entrevistada a vivenciar a invasão dos brinquedos em espaços

privilegiados como o da sala de estar. Casada, 33 anos, é mãe de três: Bruno, que tem três

anos de idade e as gêmeas Camila e Susana, de um ano. O apartamento de Marta, que fica no

Jardim Botânico, tem quatro quartos divididos assim: um do casal, um do filho mais velho,

um das gêmeas e um de brinquedos. Apesar do tamanho, amplitude não é uma característica

do apartamento. Brinquedos tomam conta de todo o espaço da sala e do corredor, além do

quarto de brinquedos. Marta conta que sua mãe mora fora do país e traz muita coisa para os

netos. São brinquedos de grandes proporções que, quando montados, ocupam muito espaço. O

quarto destinado a eles já não comporta mais nada (Fotografia 2). Para Marta, os brinquedos de

seus filhos representam, além do aspecto lúdito, também dificuldades em seu dia a dia já que

não consegue parar e arrumá-los. Além disso, ela percebe a importância de uma rotatividade

de brinquedos, para que seus filhos

brinquem com coisas diferentes. No

entanto, por falta de espaço, isso acaba

não acontecendo:

Isso aqui não é para ficar na sala, é para cada dia

de manhã pegar um brinquedo diferente. O que

acontece? Todo dia de manhã elas estão

brincando com as mesmas coisas, mesmo com

essa quantidade de brinquedos à disposição deles.

Marta se incomoda com a quantidade de brinquedos e sugere que essa diversidade não

se concretiza em brincadeiras alternadas. Esse incômodo faz com que ela hoje evite presentear

os filhos, ainda que, no fundo, mantenha um desejo por novos brinquedos, especialmente

aqueles que associa à sua infância:

Eu só acho que, assim, não tem necessidade disso tudo, por que é legal também você

criar uma novidade. Me dá um certo nervoso eu entrar em uma loja de brinquedo e

eles têm quase tudo, eles não têm variedade da mesma coisa, mas eles têm quase tudo,

o que estimula, você vai olhando assim os tipos... Aí acaba que, assim, o fato de ter

essa quantidade de coisa e priva também de comprar. Falando assim: “Ah, tem certas

Fotografia 2: Quarto dos brinquedos

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coisas que eram da minha infância”, mas não vou comprar porque já tem muita coisa!

É uma coisa meio maluca!

Certa vez, querendo trazer algo de uma viagem que fez, mas incapaz de adicionar mais

um brinquedo à coleção que tem em casa, Marta presenteou o filho com uma conchinha do

mar:

[...] dei pouquíssimas coisas, às vezes eu viajava e nem trazia. Uma vez eu trouxe

conchinha do mar que peguei na praia, nunca comprei coisas caríssimas por que tem

já tem muita coisa. Eu pegava uma coisa mais significativa para ele.

As falas de Marta sugerem que ela está em busca de reproduzir com seus filhos não

apenas dos brinquedos da infância, mas principalmente a emoção que eles eram capazes de

suscitar na sua chegada. Em um contexto em que proliferam os brinquedos, o encantamento

pode vir daquilo que não é mercadoria, uma simples conchinha do mar.

Laura e Marta, assim como outras entrevistadas dessa pesquisa, resgatam suas próprias

infâncias ao verem os filhos brincando, mas também percebem as diferenças – transcorridos

trinta anos – de ser criança hoje. Quase em uníssono, acreditam que seus filhos possuem

muitos brinquedos. Como sugerido por Sorensen (2010), apresentam um sentimento de

ambivalência. A autora lembra que o consumo suscita tensões geradas pelo fato de que as

mães nem sempre sabem o que consumir, já que a maternidade constitui uma nova fase de

suas vidas, para a qual não foram treinadas a respeito do que comprar. Aqui, o que se percebe,

entretanto, é que embora tentem reproduzir a sua relação com os brinquedos na sua infância,

como meio de modular essa ambivalência, as entrevistadas se sentem inseguras em relação à

medida desse consumo – cuja abundância e variedade não se manifestavam na época em que

eram crianças. Esse desconforto parece se amplificar ainda em relação ao consumo de alguns

tipos de brinquedos: um estado de insegurança diante do desconhecido, do resultado que

podem gerar na vida de seus filhos – como os eletrônicos, ou mesmo as bonecas Barbie.

Thalita é uma das mães que têm dificuldade de coordenar os joguinhos eletrônicos na

vida do filho. Divorciada, 34 anos, mora com o filho, Paulo (quatro anos) na casa do pai dela,

em Copacabana. Ela não gosta de nada que seja eletrônico, pois diz ter um filosofia

“natureba” do jeito de brincar: preza brincadeiras de rua, distantes da TV. Diferentemente de

seu irmão, que acredita que se tivesse tido mais contato com jogos eletrônicos ele seria mais

“sagaz”, Thalita diz nunca ter sentido falta dessa tecnologia ao longo de sua infância. No

entanto, reconhece que não tem como fugir dessa realidade e utiliza os joguinhos eletrônicos –

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que Paulo ganhou da tia – como um “trunfo”, uma carta na manga, que ela saca quando não

tem alternativa para entreter ou ocupar o filho:

Minha irmã veio agora [dos E.U.A.] em junho que são as férias grandes lá. Ele ganhou

joguinhos lá, joguinho, que é o que ele está querendo, que é meu inimigo: eu tenho

pânico disso, mas não tem como fugir hoje em dia. [...] Eu tento não deixar, o

joguinho é um trunfo para mim, tipo eu saio nos lugares, aí eu levo, porque ele vai

comigo para tudo que é lugar. Hoje ele foi trabalhar comigo, eu levei o joguinho, aí

ele fica lá no joguinho e não faz mais nada porque fica alienado, mas eu evito.

(Thalita, 34)

Para Marília a dificuldade é sobre a influência do universo das bonecas Barbie na vida

da filha:

A própria boneca Barbie que é um brinquedo. Todas as que minha filha tem não fui eu

que dei, eu não proíbo, mas eu não presenteio. Eu tenho uma relação um pouco

ambígua com a idealização fisiológica e a personificação que se faz da Barbie na

televisão. Ela é uma mulher adulta e muita das vezes fútil. Excessivamente fútil nas

simbologias que aparecem na televisão. É porque tem a coisa da beleza exacerbada,

essa valorização... E o fútil que eu te digo é bem dentro desse contexto global, assim,

essa coisa do corpo irreal que ela tem, da figura física sexual que ela tem, porque tem

seios enormes, uma cintura fininha, um bumbum enorme, é alta, tem cabelos lindos.

Então assim, principalmente eu digo muito isso para uma amiga minha que é loira,

cuja filha tem cabelo loiro e liso, eu digo muito para ela que para a Luzia não serve

porque a Luzia tem o cabelo lindo cacheado e, mais ou menos quando ela tinha uns

três anos de idade, ela me questionou muito porque o cabelo dela não era liso. E foi

bem próximo de uma época onde ela ganhou umas três Barbies. (Marília, 29)

As falas acima sugerem que, além dos aspectos de novidade, diversidade e quantidade,

as famílias elaboram distinções entre categorias de brinquedos que seriam mais adequadas ou

não para seus filhos. Marília, mãe de Luzia (cinco anos de idade), é casada e mora num

apartamento de três quartos em Santa Rosa, Niterói. Ela tem 29 anos e é dona de casa: se

dedica à manutenção da casa e aos cuidados da filha. Pelo fato de não ter se identificado com

nenhum curso superior – ela tentou e abandonou alguns – acredita que esse é seu melhor

papel hoje. Marília tem uma ideia muito consolidada do que deve ser a infância de uma

criança: um momento de formação de um indivíduo, na qual valores de afeição e socialização

são consolidados. Quanto ao consumo, afirma que ela e o marido são pontuais na compra de

brinquedos para Luzia, pois acredita que “criança não pode ter brinquedo demais. Na verdade

[...] criança não pode ter nada demais.”

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Carla é outra mãe que evidencia certa tensão na convivência com o excesso de

brinquedos, ainda que a partir de um comportamento diferente: o estrito controle sobre os

espaços onde eles se fazem presentes. A informante tem 45 anos de idade, é casada e mãe de

Bruno, de sete. Apesar da formação em psicologia, hoje ela trabalha em casa como confeiteira

fazendo bolos de aniversário. Mora com a família em Laranjeiras, num apartamento de três

quartos. Sua sala, com sofás brancos, é bem arrumada e não tem vestígios de brinquedos do

filho. Isso é algo que ela faz questão de manter. Ela permite que ele brinque na sala, mas regra

é arrumar tudo depois que a brincadeira acabar. Para Carla, o controle dos brinquedos nos

espaços da casa sugere a concretização material de um limite que ela idealmente deseja

estabelecer em outro plano, mais importante da sua vida:

O quarto dele tem um espaço maravilhoso, meu sonho é que ele só brincasse ali, só

que não tem jeito é uma coisa muito louca. Eu não criei nenhum espaço, você vê que

na sala eu não criei nada. Eu tenho amigas que botam, assim como se fosse decoração,

um brinquedo na sala. Eu acho isso meio absurdo, então assim tudo fica guardado no

quarto dele.[...] Aí quando veem amigos eles gostam muito de vir para a sala não tem

jeito, aí eu também já deixo para lá senão é muita neurose. Eu deixo, mas aí tem que

arrumar depois, entendeu? [...] Eu acho que tem que ter um espaço, entendeu? Eu

acho que a criança tem que ter um espaço dela, ela não pode tomar conta da casa

inteira, entendeu? Eu acho que a criança já toma conta, assim, da sua vida... (Carla,

45)

Essa arrumação da sala aparece também no quarto do filho. Um quarto grande, com

janelões e muito espaço para brincar. Nas paredes, posters do Timtim, um personagem de

histórias em quadrinhos que é adorado

por toda a família e que Bruno

aprendeu a gostar também. Uma

estante baixa abriga bonequinhos, dos

mais variados personagens, carros e

alguns monstros. Dispostos sobre outro

móvel baixo estão os brinquedos

grandes, como a mesa de totó dada

pelo avô falecido, um circo do

Playmobil e a caverna do Batman. No

mesmo móvel, grandes gavetas verdes,

revelam o ideal de arrumação de Carla:

Fotografia 3: Gaveta com brinquedos arrumados (quarto do filho)

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tudo separado em caixinhas e saquinhos. (Fotografia 3) Mas, segundo a própria Carla, a

manutenção dessa arrumação é difícil e só ela mesma, mãe, para deixar as coisas desse jeito:

E aí é uma coisa que eu fico histérica porque eu tentei arrumar tudo selecionado sabe

por temas os brinquedos, as pecinhas, não sei o quê, e aí, na hora de guardar, todo

mundo enfia em qualquer caixa e quando eu vejo, tem peça pequenininha numa caixa

onde só tem brinquedo grande, quer dizer... [...] Aí de vez em quando eu dou uma

arrumação. Por que, o que acontece? A empregada também não quer saber, ela não

vai ficar aqui sentada fazendo uma de louca de mãe, ficar catando por tema e

separando. Ela vai arrumar do jeito dela, ela vai tacar onde ela acha... Entendeu?

(Carla, 45, grifo meu)

Para Carla, arrumar os brinquedos de Bruno talvez seja uma maneira de organizar a

quantidade de informação e a oferta de produtos que, segundo ela, assoberbam não apenas ela

(que fica “histérica”), mas também o próprio filho. Ela se questiona se a condição financeira

da família, que pode comprar brinquedos para a criança, não acentua a situação:

Aquelas caixas ali ele nunca nem abriu. Eu acho que hoje em dia é tanta informação,

tanta coisa... Não sei se a gente tem uma situação melhor nesse sentido de comprar,

que eu acho que as crianças, às vezes, ficam meio perdidas. É tanta coisa, tanta coisa,

que [a criança] não sabe nem com o que brincar, entendeu? (Carla, 45)

Outra mãe que também se questiona sobre a quantidade de brinquedos dos seus filhos

é Ana Paula. Casada e mãe de Isabel (sete anos de idade) e Roberto (quatro anos de idade),

mora com o marido e os filhos num apartamento de três quartos em Laranjeiras. Empresária, é

dona de lojas de lingerie. Ana Paula sente que algo mudou em relação à época em que ela era

criança. Supõe que os brinquedos tenham ficado mais accessíveis e isso pode ser o motivo

para o aumento da quantidade deles na vida das crianças. Sua filha tem brinquedo demais e

não dá conta de brincar com todos eles:

[...] é muito brinquedo nessas festinhas de aniversário, e ela já tem muito e acho que

não precisa de tanto. Não lembro como era na minha época, mas acho que realmente,

não sei se brinquedo barateou, não sei o que é, as crianças têm muito brinquedo hoje

em dia, de maneira geral. Aquele quarto lotado, ela nem tem tempo de brincar com

aquilo tudo. Nem cabe no quarto. (Ana Paula, 39)

Se as falas acima sugerem certo incômodo, gerado pelo excesso de brinquedos e por

sua invasão em outros espaços da casa, o que justifica essa presença na vida das famílias? Ana

Paula conjuga o incômodo pela quantidade exacerbada de brinquedos – e o desafio de

organizá-los dentro de casa – com a importância deles na vida dos filhos:

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novo então, tudo na vida dele é brinquedo. Qualquer coisinha... ele gosta de

bonequinhos, personagens de super-heróis – até aquela coisa que tem no Kinder Ovo

ele gosta – qualquer brinquedo... ele é muito lúdico, brinquedo para ele tem que ter

aquela coisa da história. [...] por enquanto não tem nem muito lugar, fica meio no

chão, no cantinho, os brinquedos dele, acumulados. Ele adora, são importantíssimos

para ele aqueles brinquedos todos. (Ana Paula, 39)

A importância dos brinquedos também é percebida nas partidas de jogos de tabuleiro,

onde toda a família se reúne. Ana Paula classifica alguns desses jogos como atemporais,

capazes de entreter crianças e adultos, sendo um dos principais elementos de conexão entre

pais e filhos:

Adoram memória, dominó, jogo do mico - eles amam, ludo. Adoram joguinhos da

nossa época mesmo, são atemporais, digamos assim. [Gostam] muito de ter a família

inteira jogando uma partida. Eles adoram. Por eles, seria todos os dias, teria uma coisa

dessas disputas aí. O mais novo ainda tem uma dificuldade de perder, ainda fica meio

irritado, mas já está se acostumando com isso. Eles gostam muito dessa coisa da

disputa, muito. (Ana Paula, 39)

Esse universo lúdico chega até as crianças por diversas vias. Os brinquedos podem ser

comprados pelos pais em datas especiais ou trazidos de viagens. Algumas mães compram

mesmo porque não resistem a algo tão especial e presenteiam os filhos pelo prazer de vê-los

contentes. Parentes que moram fora do país se impressionam com a diferença de preço dos

brinquedos – quando comparados ao mercado brasileiro – e inundam sobrinhos netos com

toda a espécie de novidades. As falas a seguir, mostram a multiplicidade de meios pelos quais

os brinquedos entram na vida das crianças e contribuem para o crescente número de bonecas,

carrinhos e jogos dentro de casa:

Minha tia viajou pros Estados Unidos e a gente mandou entregar na casa dela uma

roupa de bombeiro com capacete do bombeiro, uma fantasia, ele curte se fantasiar de

bombeiro. (Nádia, 35)

[...] Quando a gente viaja a gente sempre traz um presente. (Sônia, 42)

Ele gastou todo o cofre dele nisso. [...] E ele passa na banca para comprar. Então ele

vai lá na banca pega as moedas. Eu falo: Já sei você vai parar na banca para comprar

os negócios. Tudo agora é esse negócio de Pokemon. (Carla, 45)

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O que a gente compra muito para ele é barato, eu compro carrinho do Hot Wheels que

ele gosta. Então sempre quando ele se comporta bem a gente faz uns acordos. Se ele

se comportar bem por tanto tempo ele ganha, ele escolhe o carrinho que ele quer, não

é filho? (Thalita, 34)

E presente tem que ser em datas especiais, mas eu não resisto, de vez em quando eu

apareço com uma coisa porque não aguentei, porque vi, porque eu achei muito

maneiro. (Sônia, 42)

A maioria deles fui eu que dei e o Sandro, eu e minha mãe, a Bia também dá muito

brinquedo para ela, muita coisa. Toda vez que a gente se encontra, a Bia dá um

presente para ela a ponto dela chegar, olhar para a Bia e falar "cadê o meu presente?"

(Marina, 36)

Aqui em casa tem muito brinquedo e é uma coisa que eu até não curto muito, mas a

minha mãe mora fora e sempre que tem oportunidade ela traz. Então é uma loja de

brinquedo. (Marta, 33)

Ao longo da leitura das falas acima, é possível notar que há uma afluência de agentes e

experiências de consumo. Todos os brinquedos que chegam nas vidas das crianças,

eventualmente, vão parar em gavetas, cestos, prateleiras ou ficam mesmo pelo chão. As

brincadeiras se compõem assim: um vai e vem de objetos, do chão para o sofá, do sofá para o

chão, voam pelos cômodos numa liberdade infinita, até que acabam sendo guardados em

algum lugar da casa. Um dos objetivos dessa pesquisa é a busca pela compreensão dessas

práticas diárias dentro de casa de guardar, usar e novamente guardar os objetos. A partir dos

caminhos percorridos pelos objetos, é possível investigar práticas de dar destino ou de

arrumar as coisas. Elas, essas práticas de disposição, estabelecem o sentido do movimento dos

brinquedos na vida das crianças, como será analisado a seguir.

4.2 Práticas de disposição e descarte

As práticas de disposição são entendidas aqui como tudo aquilo que envolve a

movimentação das coisas no espaço segundo a análise de Maycroft (2009). Desta forma, a

dimensão espacial do processo de disposição inclui destinar objetos tanto para fora de casa –

seguindo o caminho do lixo ou da doação – quanto mantê-los, como estoque para uso futuro

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ou como lembrança de uma experiência passada, por exemplo. Compondo esse movimento

com a taxonomia para a disposição de Jacoby, Berning e Dietvorst (1977), que representa

possibilidades de destinação dos objetos, abordaremos destinos temporários e movimentos de

brinquedos dentro e fora de casa. Assim, a nova disposição de móveis no quarto da criança, a

arrumação de brinquedos em armários e prateleiras e mesmo a separação de itens para doação

representam práticas de disposição.

Como forma de nortear e sistematizar a análise a seguir, resgata-se o esquema gráfico

para a disposição de Jacoby, Berning e Dietvorst (1977) (Figura 3) que indica que o

consumidor tem três opções de decisão sobre o destino de um produto: não se defazer produto

– podendo usá-lo da mesma maneira, de maneira nova ou guardá-lo; desfazer-se

permanentemente do produto de forma definitiva – podendo jogá-lo fora no lixo, doá-lo,

vendê-lo ou trocá-lo por outra coisa; ou desfazer-se do produto de forma temporária –

emprestando-o ou alugando-o a alguém.

A prática de disposição que envolve não se desfazer do objetos será abordada

primeiro, e depois, o descarte propriamente dito. A opção por desfazer-se temporariamente de

algo será vista mais adiante, numa seção posterior deste texto, quando for abordado o fluxo de

brinquedos envolvendo espaços dentro e fora de casa. O empréstimo surgirá como maneira de

viabilizar essa circulação. Não há comentário sequer sobre o aluguel de brinquedos nas

entrevistas realizadas.

4.2.1 Não se desfazer - Organização espacial

A organização espacial, que acontece dentro de casa, envolve práticas de disposição

como guardar, usar ou criar novos usos para as coisas. Como sugere o esquema a seguir

(Figura 7) – no qual foi evidenciado o movimento entre as alternativas quando se opta por não

se desfazer de alguma coisa – inicialmente será analisado o deslocamento dos brinquedos

dentro de casa e os espaços que ocupam. Não se trata, portanto de pensar num destino final

para brinquedos, mas em sua circulação: do armário para a brincadeira e de volta para o

armário.

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4.2.1.1 Delimitação de “fronteiras”

Logo no início de sua entrevista, antes de qualquer pergunta, Sônia saiu contando

como a organização espacial da sala de estar havia mudado. Antes o espaço era do filho,

impossibilitando o casal de usufruir do ambiente:

Primeiro momento: para começar, desde que ele nasceu até um ano atrás eu diria, a

minha sala, aquela parede ali era só brinquedo do Carlos, porque o quarto era o berço

e todos os brinquedos dele moravam na sala: então a gente não tinha sala. Tinha um

sofá, essa cadeira, mas não tinha mesa de jantar, não dava para fazer porque tinha que

ter os brinquedos dele. Segundo momento: conseguimos transformar [a organização

da sala] só que as brincadeiras que ele mais ama é, tipo assim, [continua sendo aqui]:

cabana de almofada, pegar esse tripé de câmera e é um foguete. (Sônia, 42)

Sônia, de 42 anos de idade, é programadora visual e mãe de Carlos, de três anos e

meio. Mora com o filho e o marido num apartamento de dois quartos no Jardim Botânico.

Sônia e Marco ainda são oficialmente solteiros, mas ela considera seu relacionamento um

casamento já que não precisa “ir a um cartório para ser casada”. Durante a semana, Sônia

Figura 7: Não se desfazer - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977)

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conta com o apoio de uma babá durante a semana que chega de manhã e vai embora de noite

quando os pais chegam do trabalho.

Hoje os brinquedos do Carlos “moram” no

seu quarto. Quando resolveu que ia trocar o berço de

seu filho por uma cama, Sônia reorganizou a

disposição dos brinquedos na casa, concentrando a

maioria no quarto do filho. Mas ainda há algumas

coisas no corredor (Fotografia 4):

Isso está aqui porque o quarto dele está apertado porque tem

uma cadeira de balanço que eu não consigo tirar, de

amamentar... o patinete mora ali, enfim, os veículos, o

estacionamento é no corredor. (Sônia, 42)

Mesmo desejando manter vivas memórias da relação

mãe e bebê, Sônia seguiu o crescimento do filho e

resolveu mudar a arrumação do quarto de Carlos

quando ele saiu do berço para a cama:

[No quarto] era só trocador, berço, caverna, cadeira de amamentar e essa cama ficava

aqui do lado para se alguém precisasse dormir com ele. E quando eu fiz essa história

na sala, quando ele ficou um pouquinho maior que foi tipo já pode dormir na cama

grande, eu primeiro transformei o berço em cama com isso aqui e vi que super deu

certo porque ele se adaptou rapidinho. Eu falei: “Vou tirar o berço e vou fazer dessa

cama que ficava aqui a cama dele, eu tenho colchão novo” e nesse momento que eu

fiz isso, foi o momento em que eu trouxe os brinquedos. Eu comprei essa estante para

organizar os brinquedos dele, os baldes

(Fotografia 5). (SC, 42)

A forma como Sônia atravessa

esse processo de disposição, nova

arrumação da casa e do quarto do

filho, ainda está permeada de dúvidas

e sobre o seu papel novo, papel de

mãe. É possível traçar um paralelo

entre esta situação, da compra da

nova estante, e aquela proposta pela

Fotografia 4: Veículos (corredor)

Fotografia 5: Arrumação atual do quarto do filho

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pesquisa de Thomsen e Sorensen (2006), na qual escolhas de consumo de uma família podem

evidenciar e mesmo facilitar a transição entre fases de vida. No entanto, para as autoras, essas

mudanças vêm acompanhadas de bruscas mudanças na forma de consumo estabelecida

anteriormente, o que pode gerar momentos de tensão e dúvidas quanto aos seus novos papéis.

Assim, combinando esse novo objeto na família – estante – e sua arrumação dos

brinquedos, Sônia busca dissolver essas tensões internas e refazer sua identidade como mãe.

Confirma sua posição e capacidade de abraçar tudo que envolve o filho, ao afirmar que

apenas ela sabe como organizar seus brinquedos:

Na verdade, só quem sabe arrumar sou eu. Eu tenho uma organização que a babá e a

faxineira não têm. Aqui são todos os instrumentos, aqui são os super-heróis e os seus

adereços que ele ama, aqui são os bonequinhos pequenos, aqui são os brinquedos

grandes e os brinquedos de madeira, eu deixo todos montados, tipo trenzinho. Deixo

tudo encaixado só que elas não, elas enfiam tudo ali. O último andar [próximo ao

chão] são os de madeira. (Sônia, 42)

Mais uma vez, é possível entender que não apenas o consumo, mas práticas de

disposição, incluindo o descarte, são capazes de dotar as mães com poderes de controle de

suas vidas e dos seus filhos, algo concretizado através da organização do espaço de suas

casas.

Outra mãe que mudou a organização das coisas em casa foi Nádia. Formada em

arquitetura e hoje professora adjunta numa universidade federal, Nádia tem 35 anos e é mãe

de Guilherme, de quatro anos. Tem um relacionamento com o pai de seu filho há 11 anos e,

no início de 2008, assinaram um acordo de união estável. Os três moram num apartamento de

dois quartos em Laranjeiras. No dia a dia da família, contam com o apoio da mãe de Nádia,

que cuida do neto enquanto os pais trabalham, além dos serviços, três vezes na semana, de

uma empregada doméstica que arruma a casa e cozinha. Guilherme está na escola desde os

dois anos de idade.

No corredor do prédio, estacionado em frente à porta de casa, está o carrinho de

passeio de Guilherme. É um híbrido de triciclo com carrinho de criança. Azul, vermelho e

amarelo, é o primeiro brinquedo em evidência. Para entrar no apartamento é necessário pular

o carrinho (Fotografia 6). A explicação é a de que ele não cabe dentro de casa. Depois é

possível entender que essa porta de entrada, para a sala, não é utilizada pela família: eles

entram e saem sempre pela porta da cozinha. Assim, eliminando uma porta ganham dois

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novos espaços: um fora de casa, onde fica

estacionado o triciclo, e outro dentro, atrás da porta

de entrada, onde ficam alguns carrinhos de

brinquedo do Guilherme. Aqui, chama a atenção

essa escolha de armazenamento do brinquedo, que

extrapola o espaço interno da casa e termina por

invadir o ambiente público do corredor. Mais do que

aspecto prático, de aproveitar o espaço interno do

apartamento, essa localização parece ser legítima e

identificar que ali vive uma família “nova”, formada

por crianças.

A presença de brinquedos na sala tem uma

explicação: há pouco tempo, a descoberta de uma

alergia no filho gerou a necessidade de dar nova

destinação aos brinquedos dentro de casa. A maioria ficava em seu quarto, mas acumulavam

poeira e pioravam as crises alérgicas de Guilherme: o médico pediu que fossem

reorganizados. Refazer a arrumação da casa em função da saúde do filho, gerou uma sensação

de descontrole, de “confusão”, como conta Nádia:

Superconfuso, o que aconteceu! [...] Os brinquedos ficavam mais reunidos aqui, mas

o Guilherme está com problema de alergia. Então, a gente teve que tirar a cortina,

agora só tem a persiana. Assim, o brinquedo junta muita poeira, porque encrua poeira

ali e fica difícil de limpar, a pessoa que limpa não vai ficar limpando brinquedo por

brinquedo. Então a gente resolveu colocar alguma coisa lá na sala, [...] e aqui [ no

quarto do filho] ficam alguns. (Nádia, 35)

Além da sala, o quarto de empregada, que já era utilizado como depósito de objetos,

serviu para abrigar brinquedos saídos do quarto do filho. Baldes de plástico com brinquedos

que foram deslocados para um ambiente ainda mais cheio de coisas, cujo acesso do filho só se

dá através da ajuda dos pais. Nádia se refere ao cômodo com sendo um “caos”:

Fotografia 6: Triciclo (na frente da porta de casa)

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Bem, aqui é esse caos. Eu fico desesperada com isso porque

os baldes que eu te falei que ficavam lá [no quarto do filho],

esses 3 baldes: o verde, o azul (Fotografia 7) e esse

vermelho (Fotografia 8). [Vieram] do quarto por causa da

poeira. Aqui tem os instrumentos musicais. A gente uniu

eles aqui. Então quando quer brincar de música, a gente leva

tudo pra lá. Até hoje eles estavam lá na sala. Eu é que trouxe

pra cá para a moça limpar e tudo mais, já botei aqui na

prateleira. Brinquedos de praia ficam aqui. Tem esse

postinho, que ele ganhou da avó que ele adora. “Mamãe

quero brincar de postinho!” então ele sabe que o postinho

está aqui. (Nádia, 35)

No mesmo ambiente caótico, estavam

guardados alguns mementos – objetos carregados

de lembranças e guardados de maneira

permanente, sem intenção de descarte (Sego, 2010). A motivação para que Nádia guarde

brinquedos do filho dos quais não pretende se

desfazer pode estar relacionada à ternura com que

relata, ao encontrar um antigo pianinho de

plástico, a ocasião da compra:

Esse aqui, uma vez eu fui nas Lojas Americanas com ele...

Ele ia fazer um 1[ano]. Aí ele viu, foi ele que achou, estava

na prateleira bem debaixo. Comprei esse pianinho para ele:

também uma coisa de que eu não vou me desfazer. Me faz

lembrar do momento. É a lembrança... Não que eu vá

esquecer, é um objeto que vai marcar esse momento.

(Nádia, 35)

Porém, a forma como o piano estava

armazenado, demonstrando uma falta de cuidado,

sugere que a relação com esses objetos pode ter

outras características. É possível que represente

uma racionalização, diante da entrevistadora, que questiona as lógicas de manutenção dos

produtos nesse quarto. Por outro lado, dada a naturalidade que ela mantém ao longo da

conversa, parece representar o processo de distanciamento entre pessoa e objeto necessário

para que haja o efetivo descarte. A alocação de objetos em espaços marginais na casa é,

Fotografia 8: Balde de brinquedos vermelho (quarto de empregada)

Fotografia 7: Baldes com brinquedos azul e verde (quarto de empregada)

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segundo diversos autores (Roster, 2001; Lastovicka e Fernandez, 2005), uma estratégia nesse

sentido e pode estar ocorrendo nessa situação: o quarto de empregada representaria esse local

marginal. Talvez em algum momento, Nádia se desfaça do piano. Hoje ela utiliza, segundo

Phillips e Sego (2011), a estratégia da evitação, na qual a decisão de descarte é postergada.

Alguns brinquedos de pelúcia também foram realocados e hoje estão no quarto dos

pais, em cima da escrivaninha. Nádia não sabe bem onde colocá-los, mas desfazer-se deles

também não é uma opção, já que remetem a experiências vividas pela família nas ocasiões em

que foram adquiridos ou recebidos de presente:

Esses dois aqui eu não vou dar não. Porque foi quando nós fomos para Penedo, ele

tinha um aninho e aí a gente “Quer um brinquedo?” tinham vários ursinhos e ele

escolheu esse; esse aqui ele ganhou de uma amiga, da mãe de uma amiga minha e ele

adorou a coelhinha. Esse daqui ele nem era nascido, eu comprei no Canadá e passou a

ser dele. Esse aqui a minha mãe deu que é um livro travesseiro. Acho que esses eu vou

guardar. (Nádia, 35)

Essa dificuldade de dar destinação a alguns objetos presentes no discurso de Nádia

demonstra que as práticas de disposição nem sempre funcionam da maneira ideal, com a

definição clara do lugar de cada coisa dentro de casa. Elas podem vir cheias de dúvidas

quanto ao que fazer com as coisas e contribuem para uma espécie de desordem espacial.

Segundo Maycroft (2009), é possível que hábitos disfuncionais ou barreiras emocionais

dificultem a finalização do processo de disposição, através do descarte, e o acúmulo de coisas

pelos cômodos aconteça. A partir de conceitos imbuídos na sociedade do que é aceito, ou tido

como correto, em relação aos espaços da casa, esse acúmulo de brinquedos pode ser visto

como algo inadequado; no entanto, segundo Cappellini (2011), ele remete à uma lógica

interna, privada, da família, e deve ser observado sob essa perspectiva. Phillips e Sego (2011)

também discutem sobre o papel culturalmente esperado de uma mãe: manutenção do lar,

disposição de objetos e descarte de itens desnecessários. O não cumprimento desse ideal pode

prejudicar a maneira como se veem e enxergam suas imagens, enquanto mães. Ao longo das

entrevistas, muitas se questionaram sobre seus papéis de mães diante das dificuldades de

organizar as coisas de seus filhos.

As práticas de disposição acima descritas, que atuam na organização das coisas e dos

espaços dentro de casa, evidenciam tanto a retomada da sala de estar pelos pais, delimitando

os espaços de maneira um pouco mais clara entre adultos e crianças – como no caso de Sônia

– quanto a dificuldade de dispor as coisas dentro de casa e a junção dos espaços num só,

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inclusive aquele fora de casa, no corredor do prédio, e da atuação da família como um todo,

como acontece com Nádia.

4.2.1.2 Movimento e transformação dos brinquedos

Tendo ainda como base a ideia de que o descarte lida com o movimento das coisas no

espaço (Maycroft, 2009), Cappellini (2009) inaugura um espaço interno, dentro de casa, para

a circulação dos bens que, no caso de seu estudo sobre comidas, vão da geladeira para a mesa

novamente. A autora demonstra que as práticas de disposição envolvem um movimento

circular das coisas, já que retornam ao ciclo de compra, uso, descarte numa segunda chance

de consumo. Nesse processo circular, os consumidores dão novos significados aos produtos,

movendo-os de um lugar para outro dentro de casa. No caso desta pesquisa, essa

movimentação de objetos dentro de casa representa mais que a mera organização das coisas e

transforma os brinquedos em novos presentes e novas brincadeiras.

Ana Paula é uma mãe que reaproveita os brinquedos repetidos ganhos pela filha para

presentear outras crianças em suas festas de aniversário. Após uma separação espacial, no alto

do armário, o processo de transformação do objeto em produto novamente se dá através de

um novo embrulho:

Chegava aniversário, davam brinquedos repetidos ou repetitivos, várias bonecas

parecidas. Eu guardava e presenteava nas outras festinhas. Ao invés de eu comprar

aquilo, já pegava o que estava guardadinho ali. Deixava separado no meu armário lá

em cima [no maleiro], a Isabela nem via (se ela visse, ia reclamar). Ao invés de eu

trocar na loja, eu separava ali, chegava a festinha, eu já embrulhava. (Ana Paula)

A prática de Ana Paula sugere uma escolha de disposição no momento da chegada do

produto à sua casa, quando guarda, sem o conhecimento de sua filha Isabel, brinquedos que

pode passar adiante como presentes de aniversário. Assim, ao invés de ir à loja trocar por algo

que as crianças ainda não tenham, ela não se desfaz do presente ganho, mantendo-o em casa

para uso futuro. Ana Paula resolve dois problemas: sem descartar, evita que a quantidade de

coisas na vida dos filhos aumente – uma vez que esses objetos não são incorporados aos seus

brinquedos – e garante presentes para os coleguinhas. Além disso, essa prática de embrulhar

algo novamente para presente vai ao encontro da reativação de objetos para categoria de

commodity (valor de mercado) como evidenciam Denegri-Knott e Molesworth (2009) em sua

pesquisa. Os autores deflagaram rituais de descarte específicos como limpar, consertar e

reembalar os objetos de modo a valorizá-los aos olhos de possíveis compradores, quando são

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postos novamente à venda pelos seus donos. Dessa forma, Ana Paula agrega valor de presente

ao objeto enquanto despe-o de significados que possam associá-lo à sua origem, como

presente oferecido à sua filha.

É possivel destacar outro tipo de movimentação dos brinquedos dentro do espaço de

casa: a reapresentação. Algumas mães, como Luisa, promovem uma verdadeira redescoberta

de um brinquedo antigo, ou pouco usado, quando sacam-no do alto dos armários, locais de

armazenamento de objetos fora de uso, reintegrando-o às brincadeiras das crianças.

Luisa tem 34 anos de idade, é advogada e trabalha numa empresa do setor de energia.

Vive com seu marido e seu filho, Alberto, de 3 anos e meio, num apartamento de três quartos

no Jardim Botânico. Ela tem sempre uma empregada doméstica em casa, mesmo nos fins de

semana. São duas pessoas que se alternam nos cuidados com seu filho e com a casa. Fátima, a

babá de Alberto durante a semana, foi babá de Luisa e de sua irmã e trabalha com a família há

35 anos. Neide, que hoje atua com empregada doméstica, foi babá folguista de Alberto

quando ele era menor. Alberto tem atividades durante a semana como curso de inglês e

natação além da escola, que frequenta há pouco mais de um ano.

Luisa faz esse tipo de revezamento com os brinquedos do filho na intenção de encantá-

lo com algo supostamente novo, mas que, na realidade, estava apenas guardado. Ela se

preocupa pelo fato de Alberto não ter um irmão e ficar muito sozinho, assim, essa troca de

brinquedos parece ser uma forma de entretê-lo ao apresentar sempre algo novo com o que

brincar:

[...] Eu fico sempre um pouco preocupada dele ter pouco entretenimento, digamos

assim, de ficar um pouco solitário. Então sempre tento ter uma novidade. Eu tenho o

hábito de ter no armário guardado – eu guardo umas novidades assim. Então, quando

o dia está chuvoso e a gente não quer sair de casa, enfim, eu pego um saco cheio de

bolas de gude que é uma coisa que ele não tem o hábito de brincar, por exemplo.

Aquilo se torna uma brincadeira da manhã, ou então, eu pego um jogo de memória

todo diferente. Aí depois eu guardo de volta, não deixo aquilo no dia a dia dele. Tenho

umas coisas que eu tiro e ponho, apresento e devolvo pro meu armário. Então, eu acho

importante por isso, porque ele não tem muita companhia. Então eu acho que se ele

tiver alguma coisa pra entreter, eu acho legal. (Luisa, 34)

Essa prática de disposição de Luisa remete a um reaproveitamento de um brinquedo já

conhecido como se fosse uma novidade: ela recria, dentro de casa, um tipo de emoção pelo

“reencontro”, o que estimula as brincadeiras para entreter o filho. Sempre que coloca busca

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algo ‘novo’, guarda algo em uso no armário, uma verdadeira circulação de coisas dentro de

casa.

Outro tipo de movimentação cujo caráter é, em realidade, de transformação, se refere à

capacidade das crianças em dar novos sentidos aos brinquedos que já possuem. Essa

capacidade do filho de reaproveitar um brinquedo, ao reconstruir, pelas brincadeiras, um novo

sentido para o objeto, foi percebido por Luisa na ocasião de uma festa para a qual seu filho

havia levado apenas um brinquedo: sua caixa de ferramentas.

Eu fui a uma festa de adulto e levei meu filho, tive que levar. Ele levou a caixa de

ferramentas que depois se transformou em uma brincadeira de panelinha: a chave de

fenda era a colher com que ele estava mexendo. Ele conseguiu mudar a proposta da

brincadeira ainda que estivesse com uma coisa bem diferente. (Luisa, 34)

Nádia também percebe essa capacidade de transformação do brinquedo pela

observação das brincadeiras do filho e por associações que ela própria constrói. Um

brinquedo, quando é usado de maneira diferente daquela para a qual foi concebido, gera um

movimento interno, de algo que não muda necessariamente de lugar dentro de casa, mas que

ganha um novo significado. Cada novo uso do brinquedo contribui para esse processo circular

de transformação.

Uma coisa que eu reparo com brinquedo: é difícil dar brinquedo, porque o brinquedo

se transforma, então ele deixa de ser uma coisa e passa a ser outra, usado de outra

forma. Por exemplo, ele tinha um brinquedo que eram vários baldinhos de tamanhos

diferentes, ele empilhava e fazia uma torre, esse era o objetivo do brinquedo. Mas isso

pode ser também para ir pra praia, de brincar no chuveiro, colocar água de um e tirar

do outro, pode ser um lugarzinho para colocar uma plantinha... Ele cria muito em cima

dessa coisa de diversidade do brinquedo. Às vezes, eu dou um brinquedo e ele não

brinca com o brinquedo do jeito que o brinquedo é. (Nádia, 35)

Esse reaproveitamento simbólico do brinquedo também induz a seu reaproveitamento

concreto: como ele está sujeito a transformações, não é descartado. Assim, Nádia justifica por

que não se desfaz dos brinquedos do filho e remete à ideia de um ciclo que se refaz dentro de

casa como sugere Cappellini (2009). A autora aponta que esse processo circular de

reaproveitamento se dá a partir de uma lógica privada, ou seja, regras, datas e espaços onde

ele se concretiza dentro de casa.

Seja através do reuso de um brinquedo para presentar um amigo aniversariante; seja

pelo revezamento de brinquedos e a geração de novidades ou mesmo pelo não descarte – com

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base na garantia de que a criança encontrará, ela mesma, um novo sentido para aquele

brinquedo – a sistematização de um processo circular de descarte, aqui ensaiada, contribui

para a compreensão sobre locais, momentos e agentes envolvidos na classificação,

deslocamento, armazenamento e transformação de brinquedos dentro de casa.

No, entanto, esse processo circular pode ser interrompido quando cessa o movimento

dos brinquedos e eles são guardados em armários altos e baús, onde permanecem durante

anos. A partir das entrevistas, foi possível distinguir três tipos de espaços de armazenamento.

O primeiro deles é a prateleira, cesto ou cantinho no chão onde estão dispostos brinquedos no

quarto das crianças. Esses são espaços que guardam objetos em uso, de fácil acesso, tanto

para mães quanto para crianças.

O segundo tipo de espaço é aquele que a mãe controla e onde mantém brinquedos

novos que esperam a hora certa para serem dados aos filhos ou brinquedos de revezamento,

que saem do armário e entram na brincadeira novamente, como se fossem novidades. Esse

espaço seria, portanto um armazenamento fora de uso. Ainda neste tipo de espaço estão

armários de difícil acesso ou o alto das estantes, que guardam brinquedos que só podem ser

acessados sob a supervisão dos pais. Para pegá-los e usá-los, as crianças precisam de ajuda e

supervisão.

O terceiro espaço é aquele em que objetos são guardados, escondidos, tirados de vista

e muitas vezes lá esquecidos. Marina tem um espaço desses em casa: um baú de brinquedos.

Ao falar do baú de brinquedos, que fica no quarto de sua filha, Susana, Marina

evidencia características pessoais em relação à organização das coisas em sua casa. Sempre

postergando o momento de arrumar os brinquedos da filha, Marina deixa claro que não tem

um processo sistematizado para organizar as coisas dentro de casa:

E aquele baú na verdade eu guardei com brinquedos e isso foi um problema porque é

isso que eu estou te falando, eu não sou regrada com essas coisas e não sou assim.

"Então todo aniversário ou vamos fazer isso de 06 em 06 meses", eu não sou assim,

não adianta e vou fazer isso só agora e se quero fazer isso agora eu vou fazer agora e

enrolo muito também, tipo hoje eu estou cansada e amanhã, semana que vem e assim

chega uma hora que eu vou lá e faço e a mesma coisa com a arrumação da casa.

(Marina, 36)

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O baú funciona como uma mesinha de cabeceira: em cima dele estão abajur, porta

retrato e um pequeno som estéreo (Fotografia 9).

Esses objetos impedem que ele seja aberto com

facilidade e, mesmo tendo uma frente de vidro

através do qual é possível ver os brinquedos,

Marina conta que as coisas ali estão esquecidas.

Pois é, tinha muita coisa nesse baú e tinha muito brinquedo

dela que eu maloquei porque eu odeio as coisas assim e

também gosto de guardar apesar da casa já estar enfim... Eu

gosto de guardar, eu prefiro que fique guardado enfim. Então

eu maloco as coisas e aí depois eu me esqueci e tinha muito

brinquedo que ela ganhou e eu comprei e era para criança um

pouco mais velha, e eu guardei para esperar ela ficar mais

velha para usar e acabou que ela não usou. (Marina, 36, grifo

meu)

Marina, ao usar o verbo “malocar”, indica

sua intenção em esconder alguns brinquedos. Sua ideia era a de guardar alguns brinquedos na

expectativa de esperar a filha crescer para poder usá-los, mas Susana, sua filha, cresceu e hoje

eles já estão aquém de sua idade. Para autores como Roster (2001), Lastovicka e Fernandez

(2005) e McCraken (1986), esse lugares são considerados espaços de esfriamento, um local

marginal em que os objetos são guardados numa tentativa de retirá-los do uso diário e central

na vida de seus donos (Roster, 2001). Assim, guarda-se o que não se quer mais por perto, com

o objetivo de pensar sobre esses objetos mais tarde ou apenas tirá-los de vista e maneira

rápida, pois provocam incômodo quando presentes. Embora não esteja em local periférico e

fora de vista, sua disposição é arranjada para que não interfira no funcionamento da casa.

Assim, muitos objetos acabam sendo esquecidos por seus donos.

O distanciamento gerado pela alocação desses objetos num espaço intermediário, nem

de uso, nem de descarte, também parece funcionar como um adiamento da decisão de

descartá-los ou reintegrá-los à sua funcionalidade plena. De acordo com as reflexões de

Lastovicka e Fernandez (2005), o baú de Marina poderia ser entendido nessa pesquisa como

um local de transição, onde os brinquedos de Susana ficam guardados por algum tempo para,

com isso, serem esvaziados de seus significados emocionais e poderem, mais facilmente,

cruzar a fronteira entre público e privado. Serão, por fim, descartados (Roster, 2001).

Fotografia 9: Baú de brinquedos (quarto da filha)

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Inaugura-se, portanto, um novo tipo de espaço no qual o movimento para. Como se

fosse o final de um processo, um “descarte” dentro de casa, os brinquedos estacionam

enquanto esperam a decisão de reintegração ao uso ou de descarte como evidenciam Epp e

Price (2010) em seu estudo sobre como a importância de alguns objetos no contexto familiar

está sempre em jogo no porcesso de serem, ou não, reincorporados ao dia a dia da casa. Esse

espaço de adiamento de decisões e, sobretudo, de incertezas, funciona como um “limbo” e se

localiza entre os atos de guardar e jogar fora presentes na taxonomia de Jacoby, Berning e

Dietvorst (1977); ou melhor, entre as decisões de não se desfazer ou se desfazer

permanentemente de algo, como sugere a (Figura 8)

Figura 8: Limbo - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977)

4.2.2 Descarte de brinquedos

Nesta pesquisa, o descarte – no qual se abre mão definitivamente do controle sobre

algum objeto (Roster, 2001) – aparece inicialmente no discurso de todas as entrevistadas

como atos de doação de brinquedos para crianças com menor poder aquisitivo, sejam elas

desconhecidas, da família ou do círculo de relações das mães. Apenas uma mãe, menciona

que já comprou e vendeu artigos infantis em brechós. A troca não foi comentada por nenhuma

delas. Jogar no lixo, ato em direta associação com o termo descarte, ocorre sim no universo de

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brinquedos, mas ele se limita, de acordo com as fala analisadas, a brinquedos quebrados, sem

peças e, sobretudo, a coisas “vagabundas”, como os brindes que os filhos ganham nos

aniversários de amigos. A figura abaixo (Figura 9) rememora e ressalta em cores as opções

para o descarte que surgiram nesta pesquisa. A seguir serão analisadas as doações e depois

aquilo que é destinado ao lixo.

4.2.2.1 Doação

Dentre as mães entrevistadas, Luisa e Marília são as duas que melhor exemplificam,

de maneiras diferentes, os destinos que dão, para fora de seus lares, aos brinquedos dos filhos.

Entenda-se por destinos, aqui, os receptores dos seus objetos: Luisa doa para as empregadas

domésticas, Marília, para parentes e para a igreja.

Dar suas coisas para os pobres é algo muito específico para Luisa: “Eu dou para as

minhas empregadas, os únicos pobres que eu ajudo são as minhas empregadas.” Mais uma

vez se confirma que a doação para pessoas mais pobres é uma prática comum entre as

entrevistadas. Para Luisa, a escolha tão determinada de suas receptoras se confirmou a partir

de uma experiência ruim num orfanato quando uma criança desvalorizou um presente ganho.

Ela ficou “arrasada”:

Figura 9: Desfazer-se permanentemente - intervenção em esquema gráfico Taxonomia de Decisão sobre a Disposição, (Jacoby, Berning e Dietvorst, 1977)

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Então, eu tenho uma seguinte filosofia: eu só ajudo os pobres que estão ao meu redor.

Se eu puder tirar uma família de uma pobreza, e transformar a vida dela um pouco

melhor e da família dessa pessoa, acho que já atingi o meu papel. Eu sou bem straight

[rígida] com isso, eu não adoto criança no trabalho. “Adote uma criança do orfanato!”

eu não adoto criança, normalmente eu adoto quando é filho do pessoal da limpeza,

quando é de um orfanato assim eu não adoto, até porque eu tive uma experiência

muito ruim uma vez. Fui em um orfanato e fui fazer um dia de Natal. Lembro que

comprei, lembro disso, faz uns 3 anos atrás, comprei um brinquedo de R$ 60,00. Era

um brinquedo caro, as pessoas levam lembrancinhas e eu comprei um negócio legal.

Quando a criança abriu ela falou que já tinha e aí eu fiquei arrasada. Eu falei: "Eu

tenho que doar mesmo é para as minhas empregadas”. Tenho que fazer aquilo que eu

me propus a fazer. Aí é ótimo, porque acaba que eu fui agora visitar a casa da Neide

[empregada doméstica], uma casa superpobre. O que eu puder ajudar ali naquela

família – ela tem 5 irmãs, 8 sobrinhos... Então porque que eu vou ajudar um orfanato,

se eu tenho uma pessoa muito pobre dentro da minha casa [...] a ter uma vida um

pouco melhor? E conseguir tirar uma pessoa da pobreza... Como a gente tirou a

Fátima [babá de Alberto] de uma vida totalmente diferente. Hoje ela tem uma

qualidade de vida totalmente diferente do que tinha há 30 anos atrás, então se eu puder

ajudar a Neide [empregada doméstica] para ela conseguir terminar a casa dela e ter

uma roupinha de cama cheirosa para as filhas, isso para mim já não tem preço, para

ela e para as filhas. Então, essa minha proposta de doação é sempre para as

empregadas, sempre. (Luisa, 34)

A recepção das suas doações pelas empregadas domésticas é total, já que, ao menos

uma delas, leva tudo que Luisa disponibiliza, sem fazer qualquer tipo de seleção do material.

Passam, assim, a compor um canal de descarte, viabilizando essas doações de forma rápida e

completa. Luisa não gosta que as coisas fiquem acumulando por muito tempo em sua casa e,

por isso, agiliza ao máximo a saída das doações para a casa da babá ou da empregada

doméstica: paga um táxi para que elas levem as coisas mais volumosas embora; leva ela

mesma, de carro; quando a distância é maior, até providencia um frete para móveis doados:

Eu doo muita coisa e também não gosto de ficar deixando as coisas aqui por muito

tempo acumulando, normalmente eu pago um taxi às vezes para a Fátima [babá do

Alberto] em especial porque custa R$ 50,00 o taxi e ela consegue chegar em casa. A

Neide [empregada doméstica] eu levo lá às vezes de carro ou quando eu estou falando

de uma coisa muito maior assim, berço, que não foi o caso, um móvel, alguma coisa,

eu pago um frete para levar na casa dela. (Luisa, 34)

Essa prática vai ao encontro do que consideram Albinsson e Perera (2009)

características da comunidade que permitem a viabilização do da doação como a

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disponibilidade de infraestrutura para o descarte. As autoras referem-se à existência de

relações ou redes sociais envolvidas com a prática, disponibilidade de infraestrutura para o

descarte, mídia incentivadora e a presença de bazares ou organizações que aceitem doações.

Assim, para além da relação das pessoas com seus objetos pessoais, o descarte só é possível

se houver alguém que transporte e alguém que receba os objetos. Luisa já prevê, e muitas

vezes assume, a logística da doação quando toma suas decisões de descarte. Essa atitude

permite que ela se sinta rapidamente livre de objetos já sem sentido para ela, porém sempre

com o respaldo de que faz o bem a uma pessoa próxima.

Marília não tem tanta pressa em se desfazer dos brinquedos da filha e, inclusive,

permite que a menina teste se ainda há o desejo de brincar com algumas coisas:

Eu faço sempre assim nas vésperas dos aniversários e do natal eu limpo os brinquedos

que ela tem, todos os que ela não brinca mais eu dou. E eu faço isso com ela. E muitas

das vezes ela insiste que ela vai brincar. Aí eu falo: Vou te dar um tempo, se no tempo

tal eu não te vir brincando com esse brinquedo eu vou dar. (Marília, 29)

Marília dá os brinquedos para a prima mais nova da filha – que é de uma família com

menos poder aquisitivo – e se preocupa com a recepção das doações, já que não deseja que a

sobrinha se sinta mal por receber brinquedos usados. Ela conta que aprendeu isso com a

própria mãe:

Eu sempre presenteei os meus primos mais novos que eu com os brinquedos que eu

não brincava, mas eu nunca fiz coisas do gênero: “Eu que te dei tá esse brinquedo.”

Porque minha mãe sempre dizia que isso repetidas vezes podia trazer um mal para a

criança, de a criança se sentir menor ou inferior porque era a outra que estava dando

as coisas para ela. (Marília, 29)

De acordo com Phillips e Sego (2011), Marília utiliza a estratégia de treinamento para

lidar com conflitos inerentes ao descarte, já que ensina práticas de disposição à filha que

considera apropriadas, aceitáveis, e fazem parte de como a família lida com o descarte. Ela

percebe que a filha já entende o que quer dizer:

Mas eu disse para a Luzia: “Eu não quero que você diga que está dando porque você

não gostou. Eu quero que você diga que você está dando porque você sabe que ela vai

gostar, que para ela vai ser legal, que tem mais a ver com ela do que com você.” Para

evitar aquela coisa de que a pessoa está me dando uma coisa porque ela não quer. [...]

Eu acho que hoje ela já entende um pouco melhor. Hoje ela já diz assim: “Mamãe eu

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não vou dizer que eu estou dando porque eu não brinco mais, mas eu vou dizer que eu

já brinquei muito e que eu acho que ela vai gostar de brincar.” (Marília, 29)

Ao explicar por que acha importante ensinar para a filha o que vai dizer na hora de

entregar um brinquedo para prima, Marília evidencia sua percepção do que representa o

descarte na vida da família:

Eu tenho muito cuidado com isso e o meu marido também porque assim eu parto do

pressuposto de que o que não serve para a Maria Luzia tem que ser dado para

alguém e tem que ser compartilhado para outra pessoa. Mas não é um não serve

porque não é bom ou porque está ruim. Não serve porque ela não brinca mais, mas

está em bom estado. Porque não cabe nela, mas está em bom estado. E vai ser dado

para uma outra criança para dar continuidade para que aquilo seja usado, porque,

efetivamente, a outra criança precisa daquilo. (Marília, 29, grifo meu)

Apesar de utilizar o verbo compartilhar para uma prática de descarte – o que não faria

sentido, segundo Jacoby, Berning e Dietvorst (1977), já que no descarte abre-se mão da

propriedade de algo de forma permanente e o que se compartilha é de propriedade mútua ou

coletiva, como apontam Ozanne e Ozanne (2011) quando analisam brinquedotecas –, Marília

demonstra sua intenção de perpetuação do uso do brinquedo, seja pela sobrinha ou por

qualquer outra criança que o receba. Num pensamento que é similar aos dos simplificadores

voluntários (Cherrier, 2009), sua vontade é de perpetuar o fluxo dos objetos, dando-lhes uma

biografia futura, nas mãos de outra pessoa. Marília já deu brinquedos também para uma igreja

em Niterói que faz um bazar, a preços módicos, das coisas que recebem como donativos:

E eu só dou para a igreja aquilo que por vezes quebrou ou de alguma maneira não está

tão completo porque eu sinto que jogar fora é muito erro. Eu acho que o descarte não é

o melhor dos caminhos. Eu procuro pensar assim que ainda que não esteja no estado

que eu gostaria de presentear uma pessoa ainda que eu não a conhecesse, o estado

assim mais ideal, é melhor ela ter acesso àquilo daquele jeito do que ela não ter acesso

a nada. (Marília, 29)

As análises do comportamento de Luisa e Marília, sugerem que o descarte funciona

tanto como um instrumento de ação social ao beneficiar uma pessoa pobre com algo que ela

não poderia ter se não fosse aquela doação, quanto um instrumento simbólico no qual fazer o

bem é capaz de apaziguar qualquer conflito inerente ao processo de descarte e mesmo

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viabilizar, para o doador, a crença de que ele faz parte de um sistema maior – espiritual

mesmo – de trocas e compartilhamento.

4.2.2.2 Jogar no lixo

Muitas mães fazem da lata de lixo o destino final de brinquedos quebrados ou faltando

peças. No entanto, as falas remetem sempre a uma categoria de objetos miúdos, de pior

qualidade, como brindes de aniversário, e, praticamente, nunca a brinquedos grandes (esses,

como já se disse, podem ser doados a outras crianças). Quando falam sobre descarte, as mães

são rápidas, como se não quisessem entrar no tema. Desviam o assunto e voltam a falar, de

maneira mais extensa e envolvente, sobre as atividades dos filhos e seus brinquedos

preferidos, por exemplo. Esse comportamento evidencia certo incômodo, ou dificuldade

mesmo, em lidar com objetos que se acumulam e para os quais devem dar um destino. Por

outro lado, podem sinalizar para o caráter extremamente simbólico da categoria, que se

confunde com a própria infância ou com as crianças que com ela brincam. Assim, os

brinquedos, contaminados pela identidade dos filhos, não podem ter como destino a lata de

lixo. As falas de algumas mães ilustram algumas situações de descarte evidenciando uma

categoria de brinquedos que, em geral, tem esse destino, os brindes:

Se estiver quebrado [eu jogo fora], eu não vou dar massinha velha, esse colar [de

carnaval] todo ferrado, feio, sujo. (Sônia, 42, grifo meu)

Quando o negócio está incompleto algumas pecinhas, sabe, meio que soltas, eu jogo

fora. [...] Brinde de festa às vezes fica numa caixinha separada para isso e depois vai

para o lixo. (Carla, 45, grifo meu)

Toda festinha que você vai você ganha um cacareco e quando você vê a sua casa está

lotada de cacarecos. [...] Então, de vez em quando, é necessário, é vital para a ordem

da sua casa e a organização dos brinquedos, você fazer a limpa. [...] Jogo fora por

que é muito cacareco mesmo. (Isadora, 35, grifo meu)

Meu filho ama brinde, é impressionante. Ele prefere, ao invés de comprar na loja o

brinquedo, ele fica mais feliz com o brinde da banca de jornal. Tem que montar e vira

um personagenzinho que toda hora desmonta – é uma coisa meio vagabunda. Ele

chora porque desmonta, cai a perna, mas ele adora. A gente tem uma dessas caixas aí

só desses brinquedos que ficam acumulados. Eventualmente, jogo alguns fora. (Ana

Paula, 40, grifo meu)

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Porque tem uns brinquedos que você olha e fala: “O que eu vou fazer com isso?”

Isso daqui é tudo negócio de brinde de Mc Donald’s, de Kinder Ovo. Na hora que ele

quer comprar o Kinder Ovo é ótimo, ele abre, mas depois... (Carla, 45, grifo meu)

A última fala de Carla sugere uma relação distinta entre a situação de compra e a de

descarte no que diz respeito à maneira como os brinquedos são vistos pelas mães. A compra é

um momento único, no qual se escolhe, de maneira específica, um produto para agradar ao

filho. No momento do descarte, os brinquedos – além dos brindes – são vistos em conjunto, já

que é, dessa maneira, em seu aspecto coletivo, que criam volume e tomam os quartos das

crianças. Surge, então, a necessidade, como disseram algumas mães nesta pesquisa, de dar

uma “geral” ou de “fazer a limpa”.

4.3 Socialização para o consumo

A socialização para o consumo, segundo Ward (1974), é o processo pelo qual crianças

adquirem conhecimento, habilidades e atitudes relevantes para que atuem como consumidores

no mercado. Apesar de concordar que o papel do consumidor se desenvolve durante o ato de

compra, o autor ressalta que mais importante para o estudo do comportamento de consumo

são as capacidades, aprendidas pelas crianças, consideradas indiretamente relevantes para o

consumo, ou seja, aquelas que não estão objetivamente ligadas ao ato da compra, mas que

motivam a compra.

Usualmente, as abordagens de pesquisa sobre esse tema, tanto no ambiente acadêmico

quanto de mercado, terminam por enfocar fatores como a influência na escolha (Kerrane,

Hogg e Bettany, 2012; Kerrane e Hogg, 2012), a dinâmica familiar e entre gerações (Epp e

Price, 2008; Cotte e Wood, 2004, Brusdal, 2006; Carlson, Laczniak e Wertley, 2011), a

interação nos espaços de venda (Pettersson, Olsson e Fjellström, 2004; Nadeau e Bradley,

2012) e motivações ideológicas do consumo infantil (Ozanne e Ballantine (2010; Ozanne e

Ozanne, 2011, Cook, 2000). Nesta pesquisa, que deu especial ênfase ao uso e à disposição dos

produtos, foi possível vislumbrar aspectos menos evidentes da socialização: de que maneira a

família socializa as crianças na primeira infância, não apenas através da sua entrada (compra,

presentes, trocas), mas também na convivência com os produtos e sua disposição (jogar fora,

doar, emprestar, guardar sem uso, etc).

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Um aspecto que ganha relevo a partir dessa perspectiva sugere, de um lado, uma

preocupação no discurso das mães em transmitir habilidades e atitudes indiretas associadas ao

controle da compra ou moderação no consumo e, de outro, uma realidade material

caracterizada pelo excesso. Assim, tentando gerenciar a entrada, a saída e o fluxo de

brinquedos, as mães tentam gerir a quantidade desses itens na vida das crianças, ponderando

conceitos como excesso de coisas, convivência com o não comprar, participação na decisão

de descarte, doação aos mais pobres e desapego aos brinquedos. Cada uma à sua maneira

ensina às crianças o que significa estar inserido no mercado, absorvido por produtos, rodeado

de brinquedos. Os itens a seguir procuram descrever o comportamento das entrevistadas no

processo de consumo de brinquedos.

4.3.1 Entrada de brinquedos

Para controlar o excesso de brinquedos na vida de seus filhos – que chegam pelos

parentes como presentes, depois de viagens ao exterior onde custam menos, ou simplesmente

como um presente para agradar o filho – as mães utilizam algumas estratégias de controle.

Uma delas é o controle da entrada de brinquedos como a postergação do consumo para uma

data específica – aniversários e Natal – ou mesmo o não consumo, como faz Eva.

Eva, 33 anos, é advogada, casada e mãe de Luciano e Maria Inês. Luciano tem três

anos de idade e Maria Inês tem um. Moram os três mais o pai num apartamento de dois

quartos e terraço em Botafogo. Duas empregadas trabalham na casa de Eva. Sua filha passa o

dia todo com a babá, já o filho pratica natação e vai à escola em meio período. Quando volta

da escola, Luciano brinca no play do prédio ou no terraço de casa.

Eva controla a de entrada de brinquedos em sua casa através de uma decisão de que

festas de aniversários são restritas a poucos membros da família. Assim, evita uma quantidade

excessiva de brinquedos que deixam a casa uma “zona total”:

É curioso isso, eu não sou uma pessoa de fazer festa de aniversário justamente por

isso. Primeiro, o gasto que se tem com um festa de aniversário é muito grande e

segundo, você ganha um série de brinquedos que a sua casa fica uma coisa de louco

com quantidade de brinquedo. Então, as festas de aniversário aqui em casa sou eu,

minha mãe, os avôs, os tios, o Luciano e os primos que já é muita gente se você for

pensar. Eu também tenho muito medo desse acúmulo de brinquedo porque a

gente tem uma vida corrida, a gente não tem muito tempo e eu não gosto de casa

como está hoje, está uma zona total e eu não gosto de casa assim. E Natal também:

ele ganha, mas não ganha muita quantidade, ele ganha o razoável. A gente sempre

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tenta dar nas épocas certas, o aniversário, Natal, mas não tem jeito, a gente acaba

comprando eventualmente um. Mas eu não sou uma pessoa que dá muito brinquedo

para ele, porque ele tem muito brinquedo, então, eu acho bom ele brincar com o que

ele tem. A gente tem muito apelo consumista na televisão. (Eva, 33, grifo meu)

O apelo consumista da televisão, e do avô, que compra tudo o que Luciano “aponta”, já

alcançaram seu filho. No entanto, Eva parece estar conseguindo, pela rotina de entrar e sair de

uma loja sem comprar nada, educar o filho para o consumo:

[...] se você for com ele na loja para comprar um presente para o amigo dele [...] ele

vai pedir alguma coisa “mamãe eu quero isso” e eu falo “Luciano hoje o presente é do

amigo”. A gente compra o presente do amigo, a gente sai da loja e eu não tenho

problema com ele, não tem manha, não tem choro, não tem birra, nunca tive problema

com ele. Eu almoço muito no [Shopping] Rio Design e em frente ao almoço tem uma

Rosenlândia [loja de brinquedos]. Se todo fim de semana eu almoço no Rio Design

todo fim de semana a gente entra naquela loja e ele fica brincando em um espaço que

tem ali e a gente sai da loja e não compra nada. Mas quando o avô está geralmente ele

compra alguma coisa e eu já sinalizei que a gente não gosta disso, a gente não quer

que seja assim, porque é legal o fato do Luciano entrar em um lugar que tem muito

apelo e ele ficar de bem por não ter. (ES, 33)

As experiências em lojas de brinquedos, como um local onde a compra não tem que

necessariamente ocorrer, constituem uma meio através do qual Eva educa seus filhos para o

consumo. A socialização para o consumo ocorre aqui através do não consumo e da eventual

frustação que dele decorre. Eva acredita que é melhor compartilhar um momento com a

família do que ter algo:

Eu acho que é importante a pessoa se frustrar, saber que ela não vai ter tudo que ela

quer. Eu acho que a frustação é importante, você saber que não vai ter tudo que você

quer, toda hora, todo momento. Ele vai ter alguma coisa até porque a gente dá bastante

coisa, mas se ele puder entrar em um ambiente e ver que ele não pode aquilo e

também não se sentir infeliz por isso, porque é muito ruim a pessoa que se sente

infeliz porque não consegue comprar. [...] Acho que a sociedade está hoje em dia

como está, porque as pessoas dão muito valor às coisas que não têm valor, ou seja, ao

invés da pessoa valorizar o passeio, o abraço, o carinho dos pais, você ir conhecer um

lugar novo, você viajar, não precisa nem ser para um lugar ultra mega power, tipo,

vamos para um lugar próximo ou então vamos para um parquinho, vamos brincar. [...]

Eu acho que é mais importante do que ter alguma coisa. (Eva, 33)

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Assim, passando de mãe pra filho, Luciano adquire conhecimento e a habilidades para

o consumo de maneira informal, ao longo das atividades cotidianas da família (Epp e Price,

2008; Pettersson, Olsson e Fjellström, 2004), como almoçar no shopping nos fins de semana.

Vivencia não apenas os aspectos práticos do ato de consumir, como preços, lojas e

vendedores (Ward, 1974), mas, sobretudo, uma inserção na sociedade em que vive de uma

forma que sua família considera saudável. Da mesma forma que a identidade familiar

influencia a socialização da criança, esta última é vital no processo de definir e reforçar essa

mesma identidade coletiva (Epp e Price, 2008).

Ticiana é outra mãe que educa seus filhos para o consumo a partir de experiências de

controle de excesso em ambientes de compra, como relata:

Por exemplo, eu estou na rua com ele. “Mamãe, eu quero esse livrinho.” Esses

livrinhos de atividades de pintar que tem no jornaleiro. “Filho, você tem vários lá em

casa já. Vamos brincar primeiro com aqueles, vamos colorir todos aqueles, fazer todas

aquelas brincadeiras e depois que acabar a mamãe compra pra você.” E compro

mesmo. Só que tem ainda lá. Eu não vou ficar com excesso de livrinho aqui e ele

querendo mais. Não. Aí ele aceita. (Ticiana, 37)

Ticiana é uma mãe de 37 anos de idade. Vive com o marido e os filhos Matheus, de

quatro anos, e Camila, de um, num apartamento de dois quartos em Laranjeiras. Ticiana,

mestre em psicologia, trabalha como professora em uma escola em Botafogo. Ela dá aula para

adolescentes sobre questões da atualidade que incluem sexualidade, aborto e drogas. Segundo

Ticiana é uma disciplina que incentiva o pensamento critico e a reflexão desses jovens em

formação.

Ticiana não quer nada em excesso em sua vida e vive de maneira frugal, sem contudo

privar os filhos de brinquedos. Por ocasião do aniversário de quatro anos de Matheus, quando

o menino ganhou vários brinquedos iguais, ou muito parecidos com os que já tinha, explicou

ao filho que coisas repetidas não faziam sentido e que a troca de brinquedos podia ser algo

interessante. Além de evitar produtos em duplicata pela casa, para Ticiana, essa é uma forma

de economizar dinheiro ao se trocar um brinquedo por dois – um para ser recebido no

momento e outro para ser dado numa data futura:

“Matheus esse você já tem.” Aí ele diz, “mas vamos ficar...?” “Não. Você já tem,

vamos trocar por outros.” Ele adorou as trocas. “Hoje eu vou àquela loja trocar o que

você quer” Às vezes eu via mais ou menos o que eu achava que ele gostava. Por

exemplo, fui nas lojas Americanas e troquei lá um boneco de super-herói que ele

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ganhou. Eu falei: “Filho, aqui tem um outro boneco... Porque, por exemplo, você não

vai ficar com dois bonecos iguais. Por que você não pega outro super-herói? Tem o

Wolverine, tem o homem de ferro, qual você quer?” “Quero o homem de ferro.”

Troco pelo homem de ferro. [...] Agora teve uns que eu fiz uma coisa de economia. Eu

troquei por dois. Eu troquei um brinquedo por dois porque eu achei que ele ia gostar

desses dois mesmo. Mas o que eu fiz? A economia foi porque eu guardei. Eu dei um e

guardei o outro para dar agora no dia das crianças. Eu acho que a gente é até

econômico nisso. (Ticiana, 37)

Essa estratégia de socialização para o consumo de Ticiana, que envolve a troca de

brinquedos nas lojas, ainda se insere no universo de consumo de produtos, porém, mais uma

vez a compra é evitada. Ticiana não se importa que o filho tenha muitos brinquedos já que

não doou nenhum brinquedo, novo ou antigo, após a entrada de novos itens pela ocasião do

aniversário de Matheus. Buscou com as trocas de presentes garantir uma diversidade.

Diferentemente de Eva, que controla a entrada através da opção por não fazer festa de

aniversario, Ticiana não controla e entrada de brinquedos, mas o portfólio de itens para que

não “haja dois super-heróis iguais”. Talvez dois bonecos iguais remeta a ideia de excesso e de

mercadoria, como numa loja de brinquedos. Mesmo que Matheus tenha muito brinquedos,

Ticiana busca singularizar cada um deles, fazendo-os itens únicos nessa coleção, pois entende

que a diversidade seria capaz de proporcionar experiências ricas e diversas para seu filho.

4.3.2 Saída de brinquedos

Há estratégias de socialização que envolvem a disposição – como empréstimos – e

mesmo o descarte – doação ou eliminação pelo lixo – de brinquedos (Jacoby, Berning e

Dietvorst (1977). Ao invés do controle do excesso de coisas se dar pela restrição da entrada de

brinquedos, como foi até aqui explicitado, a saída passa a ser o foco principal nesse processo

de ensinar à criança como se comportar em relação à quantidade de objetos que possui. Um

exemplo claro desta estratégia aparece na entrevista de Sônia, que relata a importância da

participação do filho nas práticas de descarte.

A saída de brinquedos na vida de Carlos ocorre depois que a criança ganha muitos

presentes, como nos aniversários. Sônia gerencia o excesso de produtos quando faz “limpas”

em casa e decide com o filho os brinquedos que vão doar:

Quando vou fazer as limpas, sempre falo isso tipo: “No aniversário se ganha um

monte de brinquedo, aí vamos dar brinquedos.” Eu sempre explico que tem várias

crianças que não tem brinquedo nenhum e ele entende e às vezes ele escolhe tipo,

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quando a Val ficou grávida, ele falava “dá esse aqui para o neném da Val”, tem uma

generosidade também, mas tem umas coisas que ele é super apegado. (Sônia , 42)

A escolha da babá de Carlos, Val, como canal de descarte evidencia uma relação de

afeto com o receptor dos brinquedos. Mesmo não sabendo o que ocorrerá com o brinquedo,

há uma esperança – não de perpetuação de si próprio como propõem Price, Arnould e Curasi,

(2000) ao avaliar o desejo de idosos em se desfazer de seus bens mais queridos –, mas de

ajudar o próximo, que está dentro de casa, numa relação diária com a criança. Sônia também

doa brinquedos para os auxiliares de vitrine que trabalham com ela.

Carlos tem forte ligação como um colar de havaiana de carnaval. Rubbish, ou lixo, é

tudo aquilo que não possui mais valor para as mães, como brinquedos que se quebram,

perdem seu uso ou o apreço por parte da criança, e que também não seriam valorizados por

outras pessoas. São, portanto, jogados na lixeira. Mesmo que este apego seja questionado

pelos pais, como se não fizesse parte de maneira como eles lidam com as coisas, sempre

respeitam a vontade da criança. Fazendo concessões, de alguma forma, conciliam as

diferentes identidades numa só: aquela que os define enquanto família, como aponta:

Tanto que tem um colar de carnaval daqueles de flor que está velho, sujo, nojento e

toda vez que ia fazer limpa nos brinquedos eu pegava nesse colar e falava: “posso?” e

ele respondia “esse não” e daí ele coloca usa 5 minutos e joga. Outro dia o Marco

pegou e falou “pô, isso daqui a gente tem que jogar fora”, mas ele nunca quer jogar

fora “filho pode jogar isso fora?” E ele diz que não pode. (Sônia, 42)

Assim, aqui não se vê em operação estratégias de influência, seja da criança em

relação aos pais, ou o sentido inverso, dos pais em relação à criança – como a decisão forçada,

na qual os filhos são forçados a decidir o que fica e o que sai de um conjunto de objetos

(Phillips e Sego, 2011) – mas uma rede familiar operando em relação a objetivos tanto de

consumo, quanto de descarte. Pai, mãe e filho se respeitam e se unem para as tomadas de

decisão. Agem de maneira conjunta, numa ação coletiva, de família mesmo. (Kerrane, Hogg e

Bettany, 2012).

Respeitar essa vontade do filho reforça, para Sônia, suas escolhas como mãe e sua

tentativa de educar o filho de acordo com seus princípios e ideais:

Eu ficaria muito chateada se eu chegasse em casa e uma coisa que eu amo, alguém

tivesse jogado fora, e, não necessariamente, o que eu acho que é o brinquedo bacana,

ele acha. Ele pode achar aquele colar de flor velho e sujo do carnaval o máximo. Eu

não sei qual a referência que ele tem daquilo. Então, eu acho um exemplo de respeito

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que ele tem que ter, porque acho que tudo que a gente faz é exemplo, é aquilo que eu

estava falando de reflexo e espelho. Estou respeitando, perguntando “posso dar?” [...]

porque as outras pessoas precisam de consciência de reutilizar. Eu não vou pegar esse

brinquedo que você não quer mais e jogar no lixo, eu vou dar para outra criança que

vai brincar. Uma vez, eu fiz uma limpa e falei “vamos dar todas as coisas de bebê para

outros bebês brincarem” e ele falou “vamos” e, às vezes, ele quer participar e fazer

junto comigo, às vezes não quer, mas tudo eu fico levando e perguntando. Acho

importante por vários motivos: por consciência, para ele ver que eu estou respeitando

ele, por confiança porque ele vai sempre confiar que eu vou estar junto dele, que eu

não vou sair pegando as coisas dele e vai dar segurança. É difícil educar. Então, eu

acho que o máximo de consciência que você tentar ter de cada coisinha, você está

fazendo uma pessoa. (Sônia, 42)

Assim, o descarte passa a ter um papel na educação de uma criança, já que possibilita

o desenvolvimento das relações de confiança e respeito. Diferentemente das sensações

dissonantes de mães que, ao descartarem os objetos mais corriqueiros de seus filhos,

pretendem equalizar as diferentes identidades presentes em sua família (Phillips e Sego, 2011)

– mãe, pai, filhos, além da identidade ideal que elas compõem para suas famílias –, Sônia se

apresenta mais confiante ao lidar com as vontades do filho. Suas práticas de disposição

confirmam que a multiplicidade de identidades presentes em sua família devem ser

respeitadas exatamente por suas diferenças.

No processo de socialização da criança para o consumo, a explicação de que existem

crianças mais pobres e sem brinquedos é utilizado pela maioria das mães em suas entrevistas.

Aos poucos, pretendem demonstrar aos filhos que a possibilidade de consumo é limitada para

muitas pessoas à sua volta e que excesso de brinquedos significa a possibilidade de passar

adiante coisas que farão outras crianças felizes. A ideia da sacralização no compartilhamento

de bens, apresentada por Cherrier (2009), através do descarte de objetos por pessoas que

optaram por uma vida simples, com poucos bens materiais, encontra alguma ressonância neste

caso. Em Cherrier (2009), a sacralização se dá através da concretização, pelo descarte, da

circulação de bens, proporcionando um fluxo de energia, para além de usos individuais e

envolvendo um processo coletivo de compartilhamento de bens, e o bem da sociedade. No

caso deste estudo, o descarte de algo para um receptor que tenha menos acesso a brinquedos,

tem a intenção de amenizar diferenças socioeconômicas na sociedade brasileira. Conclui-se,

portanto, que não só o excesso de brinquedos é o motivador para o descarte.

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Laura, apresentada anteriormente, pode por em prática essa ideia quando ela e a filha,

com uma boneca em mãos, se depararam com uma menina mais pobre que demonstrava estar

encantada pelo brinquedo:

Tinha uma menina de rua com a mãe e a menina assim alucinada pela boneca dela,

vidrada, nem piscava ela olhava pra boneca. "Filha..." e expliquei para ela que a

menina morava na rua, que ela estava gostando da boneca eu falei: "Vamos dar a sua

boneca pra ela? Você tem outras várias em casa e ela não tem nada." [...] ela [a filha

Natália] deu e depois ficou lembrando desse fato, dessa história por um tempo, sabe?

[...] E falava: "Mãe, mas e aquela boneca que eu precisei dar? Ela está usando ainda

ela"... sabe?! Então uma coisa que marcou assim. (Laura, 37)

Assim, o processo de socialização para o consumo nas famílias percorre questões

relativas ao excesso de brinquedos nas vidas das crianças, à compra, ao não consumo e ao

descarte com destinação filantrópica para os produtos, cujo intuito é o de ajudar a melhorar a

vida daqueles com condições financeiras menos favorecidas. Essas doações para parentes

mais pobres ou empregadas domésticas não é o motivador para o descarte. O excesso ainda é

o principal motivo para que o descarte ocorra, mas tem, nesse processo de fazer o bem à

sociedade, uma consequência reconfortante.

4.3.3 Fluxo de brinquedos

Algumas mães utilizam estratégias combinadas de entrada e saída de brinquedos como

ferramenta socializadora dos filhos, evidenciando o fluxo pelo qual percorrem os objetos ao

longo do processo de consumo – compra, uso e descarte. Antônia é uma dessas mães que não

compra brinquedos para a filha e quando a menina é presenteada resolve: “ganhou um, tirou

um!”

Antônia tem 37 anos e é mãe de Isabela de dois anos. Ela se considera “mãe solteira”

já que o pai da menina é norte-americano, mora nos Estados Unidos e só vem ao Brasil a cada

três ou quatro meses. Depois explica melhor: é ela quem decide tudo sobre a vida da filha, já

que é sua a rotina diária com Isabela – o pai “não opina, não ajuda e não participa” de

nenhuma forma. As duas moram num flat de dois quartos no Flamengo. Antônia é advogada e

tem dois empregos: é gerente jurista pra América Latina de uma empresa multinacional e

administra um escritório de contabilidade de 30 funcionários. Sem babá para ajudar, Isabela

fica na creche em período integral. As duas passam o tempo juntas em casa de manhã e à

noite.

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Antônia e Isabela brincam de coisas simples: no banho, com peças de Lego, um

brinquedo de encaixe. Elas levam no máximo cinco peças para o banho. A brincadeira de

boneca também envolve uma boneca só. A mãe não sabe se essa é uma característica dela ou

da filha, mas diz que é assim que as coisas acontecem: faz parte “da nossa energia assim, da

nossa rotina”. Parece que esse comportamento de mãe e filha, de brincarem com poucas

coisas, se relaciona com as práticas de consumo e descarte presentes na família:

Brinquedos, por exemplo, boneca: quando a Isabela fica com mais de quatro bonecas

aqui, eu tenho que dar sumiço nelas. [...] Porque eu não aguento ter sete bonecas, não

cabem sete bonecas na nossa vida. Eu acho legal ter três, quatro bonecas no máximo.

Ganhou uma nova? Dá outra. Só que antes de dar, primeiro eu mando pra minha mãe

para que ela tenha lá também duas ou três. E quando minha mãe está nesse limite eu

dou para as vizinhas, pro menino do Jatobá [funcionário de um bar perto da sua casa],

que tem uma filha da idade da Isabela. Eu sei aqui na minha área, os pais carentes que

têm filhos na idade da Isabela ou um pouquinho menores. [...] É gente que precisa e

não tem tanta condição. [...] Então, eu já preparo os pacotinhos de brinquedos.

(Antônia, 37)

Há também um violão emprestado de uma amiga que, hoje, é o brinquedo preferido de

Isabela:

Ela adora um violão e quem deu foi uma amiga [Luisa]. Não deu não, emprestou. Fui

lá, a Isabela gostou, ela falou: “Leva.” [...] Pego muito emprestado com a Luisa.

Porque ela tem um monte de coisa, eu falo: "Amiga, você tem muita coisa, vamos

circular essa energia. Vamos dar umas coisinhas pra mim, depois eu te devolvo, passo

pra Thalita [amiga em comum] quando o neném dela nascer.” Aí, outro dia, ela

[Luisa] chegou aqui e falou: "Nossa, meu filho perguntou do violão." Eu falei: "Nem

pensar de levar. Ela [Isabela] brinca todo dia com o violão, tá maluco! Seu filho tem

uma porrada de brinquedo, pede pra ele pegar outro lá". (Antônia, 37)

Antônia acredita que a “energia tem que circular”, não apenas pelo consumo de novos

brinquedos e o descarte dos mais antigos, mas pela troca entre amigas. A circulação de

energia, que remete ao movimento das coisas no espaço, proposto por Maycroft (2009), é

característico daqueles que adotam uma vida simples ao se desfazerem de seus bens (Cherrier,

2009; Ballantine e Creery, 2010), mas pode também remeter a um comportamento de

anticonsumo através do uso compartilhado de objetos (Ozanne e Ballantine, 2010). Antônia

que combina, em suas práticas de disposição empréstimo de brinquedos, menos consumo e

mais descarte, acredita que a circulação de energia também é uma forma de acompanhar o

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processo de crescimento da filha: “Eu acho que a criança vai mudando e tem que ir se

desfazendo das coisas antigas e se apegando à coisas novas.”

Sua amiga, Luisa, da qual pegou emprestado o violão, gerencia a entrada e saída de

brinquedos em sua casa de uma forma diferente, ela compra e descarta de maneira intensa.

Em seu discurso, Luisa evidencia suas atitudes em relação aos pertences do filho,

Alberto, quando fala sobre os seus próprios brinquedos: “dei tudo”. Essa relação de desapego,

onde não há o prolongamento da ligação entre pessoa e objeto num caráter de representação

ou mesmo extensão de si próprio (Belk, 1988), pauta as práticas de disposição de Luisa em

relação, não só aos brinquedos do filho, mas a todos os outros itens da casa. No entanto, é

possível que depois de ter se desfeito de algo, Luisa se lembre e sinta falta do objeto que já

não está mais lá. De acordo com Roster (2001), o descarte ocorre quando se abre mão do

controle sobre algo de forma definitiva. Porém, a autora mostra que o rompimento físico entre

dono e seu pertence, pode não vir acompanhado do rompimento emocional – a ligação entre

pessoa e objeto:

Eu faço normalmente duas vezes por ano uma grande arrumação dentro de casa, eu

tiro férias as vezes do trabalho para isso e arrumo minuciosamente todas as gavetas e

aí eu consigo tirar bastante. Óbvio que às vezes eu tenho aquela sensação, puxa, dei

aquela roupa, dei aquele sapato, dei aquela bolsa, eu tenho sempre isso porque eu dou

muito. (Luisa, 34)

Luisa identifica que o filho não tem a mesma relação de “desprendimento” em relação

às coisas que ela, e tenta educá-lo para o descarte, utilizando sempre o argumento de que ele

estará beneficiando uma criança pobre. Porém sabe que ele experimenta uma sensação de que

as coisas “somem”:

Às vezes, no inicio, com uns dois anos e pouco, normalmente perto do aniversário

dele que é no início do ano, eu dou uma boa limpa nos brinquedos e, às vezes ele, fica

meio triste. Eu falei para ele que ele estava dando para os pobres e tem criança que

não tinha e ponto final e enfim, hoje em dia eu acho que ele já... Às vezes ele fala:

“Não vai dar não, hein!”, ele fala alguma coisa assim. Ele já tem um pouco essa

sensação de que volta e meia alguma coisa sumiu, mas eu procuro não ficar guardando

coisas muito obsoletas também. (Luisa, 34)

Ela não inclui o filho na tomada de decisão para o descarte, mas ensaia uma tentativa

de convencê-lo a se desafazer de um boneco já que ganhou outro igual. O novo boneco, dado

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de presente por uma amiga, é um pouco maior e fala frases em inglês quando puxada um

cordinha em suas costas. O antigo fala português e é menor. Se o filho não tivesse aberto o

presente sozinho, quando Luisa não estava em casa, ela tentaria trocar um boneco pelo outro

na esperança de que o filho não percebesse a mudança:

Ele participa menos desse processo, acho que ele ainda não tem idade para participar,

ele não tem esse desprendimento. Por exemplo, ontem ele ganhou de presente [de uma

amiga que voltou da Disney] um Woody [boneco personagem do filme Toy Story].

Ele já tem um Woody, então eu vou convencer a dar o outro. Nessa ocasião eu vou

fazer ele participar, porque é uma coisa que ele já identificou que tem outro, está um

do lado do outro, ele já pegou. Mas se ele não tivesse percebido, talvez eu tivesse

pegado o pequeno e botasse o grande e fizesse uma coisa assim: "olha só, agora ele

está falando em inglês" e a vida segue. (Luisa, 34)

Phillips e Sego (2011) apresentam algumas estratégias utilizadas pelas mães para se

desfazerem de artigos dos seus filhos que acreditam não fazer mais parte da identidade que

buscam para suas famílias. Uma dessas estratégias – que Luisa gostaria de utilizar – é o

subterfúgio, na qual se descarta algo sem o conhecimento do filho, evitando-se, assim, o

confronto direto (Phillips e Sego, 2011). No entanto, não será possível nesse caso e ela

combina com filho a doação do boneco no meio da entrevista:

Luisa – “Alberto! Vem aqui por favor! Sabe, que eu tive uma ideia.

Alberto – O quê?

L – Você ganhou outro Woody não ganhou?

A – Sim.

L – Vamos dar o outro Woody para uma criança pobre que não tem?

A – Mas eu queria...

L – Mas olha só, você não precisa ter dois iguais, você pode ter um só e a gente dá o

outro para a Neide [empregada doméstica] levar para o Junior [sobrinho da

empregada], aquele amigo que você conheceu.

A – Mas o pequeno é para bebês.

L – Então aí a gente dá para uma criança pequena, vamos fazer isso então?

A – Mas o grande é para uma criança maior.

L – Então, como você... Combinado?

A – Porque aquele Woody que já estava no meu quarto era pequeno, mas agora ganhei

um grande.

L – Então, aí o pequeno a gente dá para uma criança pequena, combinado?

[Alberto se distrai com o gravador e sai]

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Luisa conclui – Tá vendo? Então, ele tem a consciência de que ele tem dois, ele está

com a consciência de que ele está com dois negócios iguais, aí eu vou tentar na

conversa. (Luisa, 34)

Luisa tem muito claro o que quer para seu filho e utiliza o descarte como forma de

afirmação de identidades desejadas na família. O descarte parece ocorrer mesmo se o objeto

ainda atende a alguém ou a algum propósito dentro de casa. Cabe a ela, à mãe, decidir se um

determinado objeto representa, ou não, em seu significado, a identidade desejada para seu

filho e para sua família (Phillips e Sego, 2011). Luisa tem muito claro que deseja que o filho

tenha uma relação “leve” com os brinquedos – como ela tem com os demais objetos. Para

isso, usa o fluxo de objetos – cadência de compra e descarte – para educá-lo. Da mesma forma

que os brinquedos entram (através da compra) na vida de Alberto, sem data determinada ou

motivo especial para presentear o filho, eles saem (através do descarte):

Então eu não gosto de alimentar dentro da cabeça dele, assim: ele não tem problema

com nada, ele empresta os brinquedos dele, ele não é agarrado numa coisa que

ninguém pode tocar, porque eu acho que quando você ganha aquele boneco e você

fica um ano para ganhar aquele boneco, você acaba criando uma adoração por

algumas coisas que eu acho um pouco exagerada. Então eu procuro ter uma coisa

leve, tipo você tem as coisas, mas elas também saem da mesma forma que elas

chegam. "Vamos reciclar, vamos dar esse patinete, não está mais legal, vamos dar ele,

daqui a pouco a gente compra um quando você for mais velho". Eu dou as coisas e

compro como se fosse o mesmo fluxo, sem ficar obrigando ele: “Ah não, vou ter que

esperar o Natal porque eu só vou ganhar uma bicicleta no Natal". Acordei um dia e

achei que tinha que comprar uma bicicleta para ele, porque eu achava que ele já tinha

que começar a pedalar. Não ia esperar chegar até dezembro para comprar a bicicleta e

ele já ganhou a bicicleta. Então, ele não teve um momento especial de ganhar. Eu dei

esse barco, por exemplo, foi a única coisa que eu dei pra ele no Natal do ano passado,

mas a gente não tem essa coisa de data especial: "Vou guardar e só dou o brinquedo

no dia das crianças", não. Eu chego do trabalho com a novidade, eu chego de viagem

com alguma novidade, esse fluxo de brinquedos não tem uma coisa estabelecida,

aniversário, dia das crianças e Natal. Não é assim. O que eu procuro fazer no Natal, o

que eu faço? Eu ganho coisa de várias pessoas e não dou para ele e aí depois eu

seleciono, vejo se realmente quero, se ele precisa, se eu dou para alguém. Se não, eu

troco. (Luisa, 34, grifo meu)

Esse fluxo de brinquedos, através de consumo e descarte intensos, com a intenção de

que criança não se apegue nenhum deles talvez corrobore a ideia de que para ela, esses

objetos nunca serão singularizados – quando são constituídos de significados e representam

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uma extensão de seus donos (Belk, 1988) – mantendo, o tempo que estiverem em sua vida,

sua identidade de produto (Epp e Price, 2010; Denegri-Knott e Molesworth, 2009, Lastovicka

e Fernandez, 2005). Essa relação entre pessoa e objeto fica mais clara a partir das colocações

de Denegri-Knott e Molesworth (2009), quando apontam para seu caráter utilitário ao

afirmarem que um objeto, mesmo incorporado ao domínio pessoal de seu dono e à sua

história de vida, nunca perde seu valor de mercado. Evidenciam, assim, a permeável fronteira

entre os caráteres doméstico, das coisas que possuímos, e público, de quando são postas à

venda.

4.4 Tipologias de comportamento materno

As mães entrevistadas vivem um dilema entre discurso e práticas. Se por um lado

dizem que têm atitudes de controle, e que ensinam aos filhos que não é preciso muito para se

viver, doando o excedente para os pobres, por outro lado vêm suas casas repletas de

brinquedos. Seus discursos apresentam um consumo comedido e zelo pelo não excesso de

coisas demonstrando uma racionalidade no controle sobre os brinquedos. No entanto, relatam

certo desconforto gerado por uma realidade material de excesso, que se origina através das

diversas formas de entrada de brinquedos na vida dos filhos – aniversários, presentes e datas

espaciais – e sobre a qual nem sempre tem completa ingerência.

Diante dessa dualidade entre discurso e essa realidade material, que pode ser

representada pela dicotomia do que sai pelo descarte e do que chega pelo consumo, optou-se

por compor tipologias de comportamento materno em relação aos brinquedos dos filhos, a

partir de duas dimensões: a compra e o descarte. Foi gerado um cruzamento entre essas duas

dimensões, compondo-se uma matriz com quatro quadrantes. Para cada quadrante, um

comportamento distinto representado por uma das entrevistadas (Figura 10). A seguir essas

tipologias serão descritas a partir do comportamento de mães entrevistadas que melhor

representem as características de cada quadrante.

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Figura 10: Matriz de tipologias de comportamento materno em relação aos brinquedos dos filhos

4.4.1 Materialista imobilizada: Marta, 33

Marta, já apresentada anteriormente, vive uma situação particular quanto à compra de

brinquedos: é sua mãe quem compra. A avó das três crianças mora nos Estados Unidos e toda

vez que vem ao Brasil traz brinquedos de presentes para os netos. Na ocasião da entrevista,

havia brinquedos em sacolas e caixas no corredor do apartamento de Marta: foram trazidos

por sua mãe e ela ainda não tinha tido tempo de abrir. Explica a prática contínua de consumo

da mãe:

A diferença de valor é muito grande e ela passa tempos aqui e vai para lá. Ela chega

aqui e vai em uma loja de brinquedo ela fala: “Meu Deus, isso aqui custa R$500 reais

e lá custa US$ 20 dólares!” e ela vai e traz, ainda me esperam algumas coisas mais

trambolhas que eu já estou imaginando quando ela voltar de vez, ela volta no ano que

vem. (Marta, 33)

Para contornar a dificuldade em arrumar os brinquedos dentro de casa conta que já

contratou ajuda profissional para dar conta da tarefa. Não adiantou muito. Diante de coisas

que não param de chegar, parece ficar inerte, imobilizada, sem saber o que fazer. Marta diz

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que vai descartar alguns brinquedos para abrir espaço na casa, mas parece postergar a decisão.

As duas falas a seguir, demonstram essa oscilação:

Eu até já separei um saco, eu ainda não consegui me livrar porque a minha mãe quer

guardar alguns para futuros netos, mas o resto eu vou doar para quem precisa porque

eu não vou fazer nada com esses brinquedos. (Marta, 33)

Estou com uma dificuldade imensa de parar, para poder organizar minha vida e dá um

pouco de nervoso, mas, enfim, faz parte. Isso é outro ponto negativo da quantidade de

brinquedo. (Marta, 33)

Marta segue em seu incômodo, vivendo rodeada de brinquedos que não param de

chegar e sem saber como agir diante da possibilidade de descarte. Aliás, descarte de

brinquedos é algo que ainda não faz parte de sua vida, já que nunca se desfez de nenhum

brinquedo de Fabrício, filho mais velho. Marta se orienta por uma filosofia materialista na

qual se acredita que as coisas são capazes de garantir felicidade a seus donos (Watson, 2003

apud Richins, 2013). Nessa afluência de bens materiais, numa valorização do conjunto de

brinquedos que possui dentro de casa, mas sem construir um ligação especial com qualquer

deles, Marta cria seus filhos. Oscilando entre um ideal de controle e uma realidade de

excessos – já que diz que deseja descartar, mas se vê, na prática, impedida pela grande

quantidade de brinquedos presentes em sua vida – Marta representa a tipologia materialista

imobilizada.

4.4.2 Materialista desapegada: Luisa, 34

Luisa também pode ser considerada uma materialista, garantindo a felicidade, ou, ao

menos, entretenimento e desenvolvimento para seu filho. Ela compra muito, mas combinado

com esta entrada intensa de brinquedos está o descarte, numa cadência do processo de

consumo que faz com que as coisas entrem e saiam da vida de seu filho numa espécie de

fluxo material. Assim, Luisa representa uma materialista desapegada.

Esse desapego vem da relação objetiva com os brinquedos do filho: não há, para ela,

uma relação especial com cada objeto. De certa forma, os brinquedos nunca deixam de ser

mercadorias, disponíveis em lojas, prontas para serem adquiridas na hora que ela achar

necessário para a vida de seu filho. Trata as coisas em seu aspecto coletivo, sem identificar

brinquedo preferido, mas fases preferidas de brincadeiras. Seu filho Alberto está na fase de

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brincadeiras de construtor, para isso tem cinto, ferramentas, capacete e bonequinhos de

personagens de um programa infantil de televisão – uma multiplicidade de itens.

A partir da classificação original e dicotômica de Coulter e Ligas (2003) do

comportamento para a disposição – purgers (eliminadores) e packrats (acumuladores) –

Phillips e Sego (2011) propõem uma nova forma de avaliar esses comportamentos num

continuum entre dois extremos: keepers (aquele que guarda) e discarders (aquele que

descarta). Esses extremos se diferenciam por seu sistema de valores sobre produtos e suas

atitudes sobre o tempo: enquanto quem guarda valoriza a memória e vive ligado a

experiências passadas, quem descarta pensa sobre o futuro e se desfaz daquilo que o prende a

papéis indesejados hoje. Luisa seria uma discarder, já que diz não ter uma relação de

“adoração” a nenhum de seus objetos e, sobretudo, porque busca, de forma intensiva, em suas

práticas diárias de disposição, ensinar ao filho seu sistema de valores. Para ela, objetos que

impeçam o desenvolvimento de metas pessoais ou que deixem de representar imagens que

deseja para si ou para sua família, seja no presente ou no futuro, são descartados (Roster,

2001).

4.4.3 Simplificadora biográfica: Nádia, 35

Para Nádia, há uma grande dificuldade em se desprender das coisas que fazem parte

do universo do filho. Assim, brinquedos das mais diversas categorias, desde presentes

especiais a brindes de aniversário, são mantidos dentro de casa. O não descarte em evidência

possibilita a identificação dessa mãe como uma keeper segundo a terminologia de Phillips e

Sego (2011) – num continuum concebido para as práticas de disposição. A prática de guardar

coisas vem de família: a mãe de Nádia guardou carrinhos da filha. Aos longo do anos, Nádia

pegava os carrinhos e, ao lembrar das brincadeiras de infância, fortalecia o vínculo com esses

brinquedos. Hoje, Guilherme, filho de Nádia, brinca com os carrinhos que eram da mãe:

Na idade do Guilherme, eu tinha carrinhos de ferro, tenho até hoje. Então, minha mãe

guardou todos esses carrinhos, são sei lá, uma coleção, 60 carrinhos, entendeu? E aí

esses carrinhos permaneceram, de vez em quando, adolescente, depois adulta, eu

pegava aquele saco de carrinhos e ficava olhando os carrinhos e aí toda vez que eu via

eu lembrava do carrinho: ‘É, esse aqui eu lembro, esse daqui...’ Às vezes tem muitos

que você esquece, mas depois você vê, você lembra... Agora é [a coleção] do

Guilherme. Passou pra ele. (Nádia, 35)

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Também durante a infância, Nádia doou alguns de seus brinquedos, mas já sentia

alguma dificuldade em romper a ligação que tinha com eles:

Quando eu era criança, eu dava direto, era pra onde eu dava. Tem um orfanato aqui

perto, chama “Dom Romão”, na Paulo VI, eu ia lá. Eu ia com a minha mãe, a gente

reunia os brinquedos, isso aconteceu poucas vezes, umas 3 ou 4 vezes, também não

era uma coisa periódica, era uma coisa de acúmulo, vamos fazer a limpa e vamos dar,

é difícil pra eu me desgarrar das coisas, mas com ele eu tento ser diferente, mas acaba

sendo difícil também.(Nádia, 35)

Diferentemente de Marta, o acúmulo de coisas dentro de casa, para Nádia, está

intimamente relacionado à ligação que ela tem com cada objeto: uma relação individualizada

com cada um deles. Nádia cria vínculos intensos e não lida com os brinquedos de maneira

coletiva, eles são um conjunto de coisas únicas, com suas biografias de objeto, que

acompanham a família ao longo dos anos (Epp e Price, 2010). Assim, escrevendo sua história

através dos brinquedos, ensina seu filho a viver com poucos objetos, todos eles especiais,

partes de sua narrativa familiar. Ela pode ser considerada, portanto, uma simplificadora

biográfica.

4.4.4 Simplificadora relacional: Marília, 29

Marília é uma simplificadora relacional. Ela vive uma vida com poucos bens num

apartamento simples. Suas compras de brinquedos são comedidas e o descarte acontece com

frequência, principalmente nas datas especiais quando sua filha, Luzia, ganha presentes. O

descarte de brinquedos de Luzia é direcionado, sobretudo, a parentes mais pobres. É feito de

maneira muito delicada, para que as primas de Luzia não se sintam inferiorizadas por

receberem uma coisa em perfeito estado, mas já usada antes.

Eu faço sempre assim: nas vésperas dos aniversários e do Natal eu limpo os

brinquedos que ela tem, todos os que ela não brinca mais e dou. E eu faço isso com

ela. E muitas das vezes ela insiste que ela vai brincar. Aí eu falo: “Vou te dar um

tempo, se no tempo tal, eu não te vir brincando com esse brinquedo, eu vou dar.” [...]

Normalmente, eu dou para a prima da Luzia [filha] que mora em Itaboraí e que tem

poucos recursos financeiros, faz parte da família do Luiz [marido] que é tudo do

interior, de uma área ainda rural e tanto as roupas quanto os sapatos, quanto os

brinquedos, eu procuro levar para ela. Assim como para as outras primas, que estão

juntas ali e que trocam entre si os brinquedos e as roupas também. Mas assim eu faço

um trabalho com a Luzia, muito sério, assim para ela entender que ela não está

fazendo um favor em dar alguma coisa. (Marília, 29)

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Essa preocupação com o outro, explicitada acima, é que torna Marília uma mãe

relacional. Para mães com esse tipo de comportamento, o que importa são mais as relações

entre as pessoas e a rede que desenvolvem, sobretudo de pessoas conhecidas, para a

realização de empréstimos e doações de roupas sapatos e brinquedos dos filhos. Mesmo

assim, ao mostrar os objetos no quarto da filha, Marília conta a história de cada um deles, com

carinho especial pelas pessoas que doaram ou presentearam sua filha. Ela acredita que muitas

pessoas e muitas experiências serão combinadas, compartilhadas, para construir a história de

um único brinquedo. Em seu processo de socialização, Marília tenta educar filha para que sua

relação com os objetos não seja de apego, e, sim, de vínculo, forte, mas que segue com o

brinquedo, quando for passado adiante.

A seguir, é apresentado um quadro que consolida as características de cada tipologia a

partir de suas práticas de entrada e saída de brinquedos, filosofia orientadora e vínculo com o

produto.

Quadro 2: Tipologias de comportamento materno x Relações e práticas

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5 Considerações Finais

A busca pela compreensão do processo de consumo de brinquedos pelas famílias,

através de entrevistas com quinze mães, apontou para a riqueza e complexidade da relação

entre pessoas e os objetos. Além de representar um investimento nos aspectos lúdicos e de

desenvolvimento das crianças, os brinquedos terminam servindo como meio de reviver

brincadeiras e emoções da infância dos próprios pais. Entretanto, ainda que revivam bons

momentos do passado, os brinquedos também parecem suscitar nas entrevistadas uma

sensação de incômodo. Sem o espaço da rua para brincar, como faziam suas mães, as crianças

hoje têm, predominantemente, o espaço interno, dentro de casa para espalharem seus

brinquedos. Nesse novo contexto urbano, no qual o espaço externo se contrai por motivos

relacionados à violência, trânsito, sentido de comunidade entre os moradores de um mesmo

bairro ou edifício, as brincadeiras “invadem” a casa, dificultando os limites e fronteiras entre

universos de adulto e de crianças dentro dos apartamentos. Como se viu na presente pesquisa,

salas, quartos e até os banheiros dos pais são espaços que podem ser invadidos pelos

brinquedos das crianças.

Essa grande quantidade de brinquedos surge na vida das crianças por diversos meios:

alguns são dados pelos pais, trazidos de viagens, ganhos de parentes ou de colegas em festas

de aniversário. Ao abrir um embrulho de presente, as crianças apresentam no olhar, uma

mistura de surpresa e felicidade. Essa sensação encanta os pais que projetam, a partir da

reação de seus filhos, as infinitas brincadeiras que aquele objeto poderá suscitar. Porém,

algumas mães se queixam que, diante de tanta oferta, essas emoções que viveram em suas

infâncias se tornam menos intensas e frequentes na vida de seus filhos. A alegria de quem dá

um presente a uma criança, que lhe traz a novidade de um universo antes desconhecido, em

certo sentido, parece esmaecer. Mesmo o brincar pode ser prejudicado, já que as crianças não

conseguem dar atenção a todos os brinquedos. Muitos ficam preteridos no fundo do cesto,

num baú, no alto do armário.

O excesso de brinquedos fica evidente ao se entrar nos quartos das crianças. Mesmo

que, comparativamente, algumas crianças tenham mais brinquedos que outras, todas as

entrevistadas relatam desconforto com o excesso de coisas na vida dos filhos. Muitas delas se

envolvem em periódicas arrumações dos quartos na tentativa de diminuir a “bagunça” e

retomarem o controle da vida da família. Além da dimensão concreta de organização do

espaço familiar, essas mães também parecem buscar recuperar o controle sobre o domínio que

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os filhos exercem em suas vidas. Assim, separam os brinquedos por temáticas, por tamanho,

por preferência da criança e organizam tudo em caixas, cestas, gavetas e armários. Muitas

inclusive acreditam que são as únicas que sabem arrumar os brinquedos de seus filhos. As

crianças, em geral, não participam da arrumação, mas acabam aprendendo nessa relação com

os brinquedos uma convivência com os produtos.

Outro desafio, pelo qual passam essas mães, é encontrar a dosagem correta de tempo

que seus filhos devem passar brincando com jogos eletrônicos. Acessados pelos tablets, que

pertencem aos pais, ou mesmo à criança em alguns poucos casos, os jogos eletrônicos

representam um misto de artefato de desenvolvimento e de brinquedo, que entretêm os filhos

em restaurantes, enquanto os pais tentam terminar o jantar. Muitas relatam, também, não

saber o efeito que esta tecnologia terá no desenvolvimento de seus filhos, já que elas próprias

- da geração de se encantou com as primeiras versões do hoje rudimentar “Atari” - tiveram

quase nenhuma experiência com essa categoria. Porém, uma vez que as crianças vivem num

ambiente em que a tecnologia está largamente presente, privá-los do contato com esse

universo seria prejudicial.

As práticas de disposição utilizadas pelas entrevistadas atuam tanto internamente, na

elaboração de espaços e cômodos da casa, quanto em relação aos brinquedos que entram e

saem da vida de seus filhos, através do descarte. As práticas de disposição evidenciam uma

tentativa de retomada de espaços da família ocupados pelos filhos. São arrumações e regras

que buscam delimitar fronteiras entre o espaço do adulto e espaço da criança. Algumas mães

têm êxito, outras, nem tanto. Essas práticas revelam três tipos de espaços de armazenamento

de brinquedos dentro de casa.

O primeiro deles são espaços que guardam objetos em uso, de fácil acesso, tanto para

mães quanto para os filhos. Esses brinquedos estão em cestos, gavetas ou mesmo pelo chão,

num cantinho do quarto, e aos quais as crianças têm livre acesso.

O segundo tipo de espaço é aquele que a mãe controla e onde mantém brinquedos

novos à espera da hora certa de presentear os filhos. Podem ser brinquedos cuja faixa etária

os filhos ainda não alcançaram, ou aqueles ganhos no último Natal que são distribuídos ao

longo do ano para as crianças. Nesse espaço há também brinquedos de revezamento – aqueles

que trocam periodicamente de lugar com os que estão em uso, gerando novidades entre

artigos já conhecidos pelos filhos. Por fim, nesse tipo de armazenamento fora de uso, podem

estar os brinquedos acessados sob a supervisão dos pais. Podem ser produtos caros, delicados

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ou perigosos, ou ainda os eletrônicos, que só podem ser utilizados em situações e sob o

controle dos responsáveis pela criança.

O terceiro espaço é aquele em que objetos são guardados, escondidos, tirados de vista

e, muitas vezes, lá esquecidos. Alguns brinquedos ocupam o alto de armários e nunca descem

para a brincadeira, ou estão soterrados sob tantos outros que nunca são encontrados pelas

crianças. Esses objetos negligenciados, abandonados, (Young e Wallendorf, 1989) sugerem

um tipo de “descarte” do objeto, mesmo que continuem sendo mantidos dentro de casa.

Quando objetos preenchem um espaço desse tipo, em geral, tendem a ser efetivamente

descartados com o passar dos anos (Roster, 2001). Mas no caso dos brinquedos, cujo uso

pelas crianças pode se transformar a partir do desenvolvimento destas, foi possível vislumbrar

situações onde eventualmente o brinquedo pode sair desse “limbo” para voltar à “vida” dos

seus donos.

O descarte de brinquedos, no qual se abre mão da propriedade e do controle sobre um

objeto, pode envolver, ou não, a participação dos filhos. Esse envolvimento é determinado

pelas mães: umas acreditam que ele é didático, no sentido de ensinar o filho a viver com

poucos bens, num movimento de simplificação da vida (Cherrier, 2009); já outras acham que

os filhos ainda estão muito pequenos para compreender que o descarte pode beneficiar tanto

eles próprios quanto a criança pobre que receberá seus brinquedos. Possíveis culpas pelo

descarte de brinquedos dos filhos podem surgir e, para aliviá-las, as mães pensam que este ato

é instrumento de ação social, já que possibilita diminuir diferenças socioeconômicas ao se

doar algo a uma pessoa mais pobre. O descarte funciona também como um instrumento

simbólico, no qual as mães também fazem o bem ao doarem para outras pessoas, mesmo

desconhecidas, os brinquedos que os filhos não usam mais. Algumas se sentem fazendo parte

de um sistema maior, de cunho quase espiritual, de compartilhamento e trocas de objetos num

estreito paralelo com o que descreve Cherrier (2009) a respeito dos simplificadores

voluntários.

Um ponto chave na discussão sobre doação nesta pesquisa é que todas as mães

disseram doar os brinquedos dos filhos para pessoas mais pobres. Na maioria dos casos, essas

pessoas são as empregadas domésticas. Elas funcionam como um canal de descarte visto de

maneira positiva pelas entrevistadas, já que são receptoras menos favorecidas

economicamente e fazem um trabalho de retirada e transporte desses bens para fora da casa de

suas patroas. Em geral, elas não fazem qualquer tipo de seleção dos objetos que as patroas

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colocam nas sacolas: “levam tudo”. Uma mãe, num espécie de confissão, afirmou que dar

para a empregada doméstica é uma maneira prática e rápida de se livrar daquilo que não

querem mais em suas casas, inclusive brinquedos.

A socialização para o consumo das crianças ocorre através da observação e interação

com dos pais e outros adultos, em suas ações cotidianas de consumo. Além de ensinar as

crianças a se tornarem aptos a agir diante de preços, promoções e métodos de pagamento nos

locais de compra (Ward, 1974), a socialização inclui as práticas de disposição que acontecem

dentro de casa, como meio de educá-las a viver suas vidas domésticas, inseridas no mercado

como foi visto nesta pesquisa. Mesmo que muitas crianças ainda não participem do processo

de descarte em suas casas, elas aprendem a lidar com o sentimento da ausência, quando

percebem que um brinquedo não está mais lá. Nesse momento, as mães explicam o motivo do

sumiço, sobretudo, se ele está relacionado com a doação para outras crianças mais pobres.

Assim, esses consumidores em formação desenvolvem aptidões tanto para ganhar algum

brinquedo e usá-lo no seu dia a dia, quanto para se desprender de algo que não está mais por

perto, com o qual não pode mais brincar.

As entrevistas apontaram que a maior preocupação das mães é lidar com o excesso de

brinquedos. Assim, o controle da entrada de brinquedos, pela postergação, ou evitação, da

compra é um das maneiras que as mães encontram de minimizar essa quantidade de cosias na

vida dos filhos, ensinando-os a viver com o que já possuem, sem a necessidade de novas

aquisições. Outra estratégia contra o excesso é controle da saída de brinquedos, que lida

diretamente com a prática do descarte e pode levar dias para que as mães selecionem aquilo

que será passado adiante através doações. Algumas crianças participam deste processo

selecionando elas mesmas os brinquedos que não querem mais, outras são incluías pelos pais

que lhes perguntam a cada brinquedo, se ele vai ou fica. Neste momento, algumas crianças

não conseguem se desfazer de nada e os pais utilizam um estratégia de escolha entre duas

opções, apenas um brinquedos fica. A terceira estratégia de controle do volume de brinquedos

utilizada pelas mães é a coordenação, tanto da entrada quanto da saída de objetos, gerando um

fluxo cadenciado de brinquedos na vida das crianças. Isso não significa apenas que consomem

menos e descartam. Algumas delas consomem muito e descartam muito também.

Diante dos diversos tipos de comportamento materno em relação ao consumo e ao

descarte de objetos, elaborou-se uma tipologia de comportamentos que tenta mapear as

diversas formas de atuação no processo de consumo de brinquedos. As quatro tipologias de

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comportamento para as mães as classificam como: materialista imobilizada, materialista

desapegada, simplificadora estendida e simplificadora relacional.

A materialista imobilizada encontra-se numa situação de muita compra e pouco

descarte. Para ela, possuir brinquedos é importante, mas não cria vínculos com os produtos.

Os brinquedos são vistos em sua coletividade como “atacado”/volume. Nesse volume

crescente de itens, ela se vê imobilizada tanto para realizar novas compras, já que ofertas em

lojas de brinquedos não fazem vista diante da diversidade de coisas que seus filhos já

possuem, quanto para lidar com um processo trabalhoso de seleção de itens para o descarte.

Socializa os filhos para viver em um ambiente de afluência de bens materiais.

A materialista desapegada compra com a mesma frequência com que descarta os

brinquedos do filho. Para ela, também não há a criação de vínculos emocionais com os

objetos, mas sabe que eles são importantes para o desenvolvimento e a diversão dos filhos. O

descarte é um processo já estabelecido em sua rotina e se torna fácil. Havendo necessidade de

algo que eventualmente foi descartado, efetua-se uma nova compra. Para ela, o fluxo de

brinquedos é o mais importante e rege a orientação que dá ao filho a respeito do processo de

consumo.

A simplificadora biográfica tem uma ligação muito próxima com cada brinquedo de

seu filho. Nesse tipo de comportamento, ocorre muito pouco descarte, já que ele é visto como

uma interrupção da história da família que cada objeto ajuda a contar. No entanto, o acúmulo

de coisas não possui um volume impeditivo, pois nesse caso o consumo também é muito

restrito. Em sua filosofia orientadora: essa mãe deseja que seus filhos utilizem todos os

brinquedos que possuem e saibam que são especiais já que carregam sempre uma história pra

contar sobre sua família.

A última tipologia, simplificadora relacional, representa uma mãe que consome

pouco, muitas vezes por restrições financeiras, mas que recebe brinquedos de amigos e

parentes e os passa adiante, também para pessoas conhecidas, que darão valor ao que

ganharem. No processo de socialização dos filhos, o descarte funciona como propulsor de

uma rede de circulação de brinquedos, passados de mão em mão, tendo suas biografias de

objetos construídas por diversas famílias.

Assim, a partir da percepção da relação das mães com os brinquedos dos filhos, busca-

se construir um entendimento para esses objetos enquanto produtos: podem ser tratados tanto

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de maneira individualizada, quanto em sua pluralidade, na categoria brinquedos. A relação

entre compra e descarte ganha mais profundidade quando se percebe que a compra de um

brinquedo é um momento único, em que se escolhe um produto específico para presentear o

filho, enquanto o descarte atua na seleção brinquedos em seu aspecto coletivo, nos momentos

em que as mães fazem grandes “limpas” nos quartos dos filhos. A compra elege um objeto

por suas características singulares, já o descarte vê os brinquedos como uma categoria de

produto, no atacado mesmo, pois é no conjunto que se tornam excessivos e induzem as mães a

arrumarem o quarto dos filhos. Dessas arrumações sempre resulta algum tipo de descarte, seja

o lixo, no caso de brinquedos quebrados, ou, mais simples, como os brindes ganhos em festas

de aniversário, seja a doação, quando ainda estão em bom estado mas já foram deixados de

lado pelas crianças.

É possível afirmar que as mães entrevistadas vivem um dilema perante os brinquedos

dos filhos. Por um lado, seus discursos afirmam que fazem muitas restrições de entrada de

brinquedos, e mesmo que se dedicam a processos de descarte como forma de minimizar a

quantidade exacerbada de itens na vida dos filhos; por outro, apesar desse esforço, o que se vê

são casas cheias de brinquedos. Essa percepção só foi possível pela utilização do método dos

itinerários que ajudou a compor o desenho desta pesquisa e direcionou, na visita à casa das

entrevistadas, a observação dos quartos das crianças e espaços que os brinquedos lá

ocupavam.

Por mais que as mães se esforcem para direcionar o consumo e coordenar a disposição

de brinquedos, percebe-se que esta categoria de artigo infantil talvez seja aquela sobre a qual

as mães tenham menos controle: livros, roupas e material escolar, por exemplo, não se

encontram na mesma profusão nos quartos visitados. É possível que a explicação para tantos

presentes na vida das crianças, seja a natureza do brinquedo: traz alegria e surpresa, leva as

crianças para um universo de imaginação e fantasia distante da realidade vivida pelos adultos.

Assim, as mães oscilam em deixá-los viver esse mundo mágico e trazê-los de volta – com

restrições para o consumo e regras para o descarte –, ensinando-lhes tudo que o acreditam ser

essencial para que sejam capazes de viver, após alguns breves anos de infância, suas vidas

como adultos.

Por fim, é possível afirmar que este estudo que envolveu mães e filhos no seu processo

de consumo de brinquedos, com especial atenção às práticas de disposição, traz à tona

questões sobre como os consumidores lidam com o acúmulo de objetos em suas vidas. Dessa

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forma é possível que este estudo contribua para o desenvolvimento de negócios que auxiliem

as mães a gerenciar a quantidade de coisas presentes na vida de seus filhos, através de três

opções: o reaproveitamento das partes de um brinquedo em processos de reciclagem; a

criação de brinquedotecas; e o recolhimento de brinquedos antigos direcionando-os para

instituições envolvidas no desenvolvimento e no bem estar infantil. Assim, o mercado se

alinharia aos consumidores, num processo que envolve não apenas compra, uso e descarte,

mas a socialização de futuros consumidores. As três estratégias de negócio são explicitadas a

seguir.

Na primeira estratégia, é possível pensar em empresas que desenvolvam brinquedos

com peças capazes de serem recicladas e se transformarem tanto em novos brinquedos,

quanto em qualquer outro produto. No entanto, é de extrema importância que esta estratégia

venha combinada com a instalação de um canal de descarte específico para esse propósito:

recolher peças e brinquedos usados para a reciclagem, o que poderia ser estabelecido em lojas

de brinquedos. A motivação para o descarte, neste caso, seria a reutilização dos produtos e a

diminuição de lixo.

Na segunda alternativa, o desenvolvimento seria de negócios de locação de

brinquedos. As chamadas brinquedotecas podem ser uma maneira de proporcionar às crianças

uma experiência com brinquedos, sem que a compra ocorra. Seja localizada em espaços pela

cidade ou através de sites online, as essas organizações comprariam brinquedos para compor

seus acervos ou até serviriam de destino final de descarte para mães que desejam doar os

brinquedos com os quais seus filhos não brincam mais. A maioria das brinquedotecas

existentes funciona em instituições de saúde e educacionais e atuam junto à parcela de baixa

renda da população. Não há o desenvolvimento dessas organizações junto a um público com

maior poder aquisitivo e que deseja reduzir seu consumo para construir uma vida mais

simples, como menos pertences.

A terceira opção envolve a percepção de que há, entre as mães, um comportamento de

doação de brinquedos e outros artigos infantis para suas empregadas domésticas. Assim,

aproveitando essa motivação de doar algo para pessoas com menor poder aquisitivo, as lojas

de brinquedos poderiam servir de canal de descarte, fazendo a ponte entre os consumidores e

os receptores finais, como instituições de caridade, creches e orfanatos. Descartar brinquedos

antigos nos locais onde novos são vendidos seria um a prática que viria ao encontro de como

as mães educam seus filhos para o consumo. A junção de compra e descarte possibilitaria às

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crianças compreenderem o consumo de maneira mais ampla, como um processo, um ciclo de

entrada e saída de objetos em suas vidas.

5.1 Sugestões para estudos futuros

Tendo como base as indicações para estudos futuros propostos por Phillips e Sego

(2011), que incluem a investigação do papel dos parceiros masculinos, dos pais divorciados e

das mães solteiras no processo de descarte, sugere-se aqui a participação de outros membros

da família envolvidos com a disposição de brinquedos. Esses membros incluem as crianças,

os pais, os parceiros das mães e mesmo as empregadas domésticas e as babás, já que todos

eles estão envolvidos com o que acontece na família, na casa e na socialização das crianças

para o consumo.

Ainda em linha com o que propõem Phillips e Sego (2011), o processo de consumo

com crianças de diferentes faixas etárias, e mesmo com adolescentes, poderia ser investigado

como forma de apontar, comparativamente, semelhanças e diferenças no seu envolvimento e

no significado que o processo de consumo tem para elas.

Em sua pesquisa, realizada na América do Norte, Phillips e Sego (2011) identificaram,

a partir do comportamento das mães, identidades referentes à maior ou menor tendência para

descartar bens de seus filhos e concluíram que as diferenças demográficas entre as

entrevistadas como trabalho, idade ou tamanho da família, não influenciaram nesta

classificação. Essa afirmativa poderia ser verificada dentro do contexto brasileiro, onde é

possível que haja diferenças no comportamento de descarte das mães, se levados em conta

classe social e número de filhos na família. Assim, é possível investigar se famílias, mais ou

menos numerosas, e como um menor com poder aquisitivo no que se refere à compra de

brinquedos, estabelecem novas relações com os objetos e novas formas de disposição

diferentes daquelas observadas nesta pesquisa.

Seguindo nesse contexto, um estudo interessante seria aquele que envolvesse a

percepção dos receptores dos brinquedos doados pelas mães: as empregadas domésticas. O

que ocorre depois que levam embora para suas casas as sacolas de brinquedos dos filhos de

suas patroas? Sob essa perspectiva talvez seja possível observar, a partir da chegada desses

brinquedos aos lares das empregadas domésticas, o início de um novo processo circular de

consumo.

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Uma pesquisa longitudinal, nos moldes da realizada por Epp e Price (2010) ao

acompanharem a família ao longo dos anos no seu processo de disposição de objetos

singularizados, também poderia ser utilizada como forma de aprofundar questões encontradas

nesta pesquisa. A investigação poderia ter como foco os brinquedos guardados, e até

esquecidos, em armários e a destinação dada a eles ao longo do tempo: se permanecem nesse

lugar de abandono, se são descartados ou incorporados novamente à vida familiar.

Outra sugestão para estudos futuros, como também aponta Sego (2010), seria

investigar o movimento de simplificação voluntária, evidenciado nas pesquisas de Cherrier

(2009) e Ballantine e Creery (2010), em relação a artigos infantis. Assim, a proposta é

compreender a intenção de mães em estabelecer comportamentos simplificadores na vida dos

filhos, em todas as etapas do processo de consumo, ou seja, investigar o esforço delas em

consumir menos, descartar e, sobretudo, educar os filhos para que vivam uma vida mais

simples, com poucos brinquedos.

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APÊNDICE 1 - Roteiro de entrevistas

Tendo como objetivo investigar o processo de consumo de brinquedos pelas famílias,

dando especial ênfase à disposição, um roteiro de entrevista foi formulado para o

desenvolvimento desta pesquisa. A construção deste roteiro tem como base o método dos

itinerários, uma abordagem qualitativa de levantamento de informação na ida a campo que

possibilita a investigação de todo o processo de consumo, desde o momento da compra até o

descarte do produto, através das práticas dos consumidores (Campos, Suarez e Casotti, 2006).

Este roteiro de entrevista pretende percorrer uma espécie de trajeto do brinquedo no tempo:

sua chegada às mãos da criança, o ato de brincar e os cômodos da casa onde isso acontece,

cestos e armários onde o brinquedo fica guardado e, quem sabe, o canal de descarte que é

utilizado.

Roteiro de entrevista

Introdução Bom dia / tarde / noite, o meu nome é Mariana Albuquerque. Eu estou finalizando o curso de mestrado no COPPEAD (Instituto de Pesquisa em Administração de Empresas da UFRJ) com ênfase na área de marketing. Minha área de estudo é o comportamento do consumidor. Estou realizando uma pesquisa sobre brinquedos de criança. Autorização para gravação Para facilitar nosso trabalho, nós gravamos as entrevistas. Assim não perdemos detalhes importantes da nossa conversa. Essa gravação é para uso interno da pesquisa. Você não será identificado em nenhum momento. Ok? Introdução / Aquecimento

Perfil do entrevistado (Mãe) Antes de começarmos a falar do tema da nossa pesquisa, gostaria de lhe pedir que falasse um pouco de você. Você poderia se apresentar? • Nome, idade • Estado civil • Formação • Profissão (Trabalha fora?) • Filhos (quantos e idades) • Com que pessoas vive em casa (nome e idade) • Breve rotina da casa (horário das pessoas na casa) Me fale um pouco de você e da sua memória em relação aos

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brinquedos na sua infância? Qual o brinquedo mais marcante da sua infância? Você ainda tem esse brinquedo? Você guarda algum brinquedo da sua infância? Você acha que os brinquedos são importantes para uma criança? Você acha que a sua experiência de uso dos brinquedos é diferente ou similar a que seu filho vivencia hoje em dia? Que tipos de brinquedos existem? Como você descreveria a importância dos brinquedos para o seu filho?

Dia a dia na vida dos filhos

Agora vamos falar um pouco sobre seu filho. Como é a rotina dele? Quais são as atividades dele? Quem são as pessoas envolvidas nessas atividades? E no final de semana? Como é o dia? Pensando nas atividades do seu filho tanto em dias de semana quanto em fins de semana, quais delas envolvem brincadeiras e brinquedos?

Atividades e cômodos

Que tipos de brinquedos seu filho possui? Agora, tendo as brincadeiras do seu filho em mente, pense onde elas acontecem na sua casa.

- Quais os cômodos em que ele brinca? - Quais os locais em que ele não pode brincar? - Tem alguma brincadeira proibida dentro de casa? - Alguma brincadeira envolve a presença de brinquedos? - Tem brinquedo que é só pra brincar fora de casa? Onde?

(na rua, na pracinha, no clube, na escola?)

Você pode me mostrar esses cômodos?

Organização Espacial

Agora, falando especificamente dos brinquedos encontrados neste cômodo. Quais são os brinquedos com os quais o seu filho mais brinca? Você poderia me mostrar onde eles estão? E os brinquedos que ele menos brinca. Onde eles ficam? Tem algum brinquedo que você guarda em algum lugar especial, onde a criança não tem acesso? Que outros espaços desse cômodo/casa tem brinquedos

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guardados? Mais algum? Mais algum? Como você procura organizar os brinquedos? Poderia me explicar um pouco os critérios que você usa na sua arrumação?

Itinerários dos Brinquedos

Agora, eu gostaria que você pensasse em um brinquedo especial. Por que ele é especial? [SE PRECISAR ESTIMULO] Pense no brinquedo que comprou numa data muito especial, por exemplo, natal ou aniversário? PRESENTE ESPECIAL Em que ocasião? Quem teve a ideia de comprar? O que motivou? Quem deu? Como foi o momento em que a criança ganhou o presente? Onde comprou? Onde fica guardado? Onde e quando é usado pela criança? Quando você pretende se desfazer desse brinquedo? Como você vai se desfazer? BRINQUEDO PREFERIDO DA CRIANÇA / QUE MAIS BRINCA Em que ocasião? Quem teve a ideia de comprar? O que motivou? Quem deu? Como foi o momento em que a criança ganhou o presente? Onde comprou? Onde fica guardado? Onde e quando é usado pela criança? Quando você pretende se desfazer desse brinquedo? Como você vai se desfazer? BRINDE Em que ocasião? Quem deu? Como foi o momento em que a criança ganhou o brinde? Onde comprou? Onde fica guardado? Onde e quando é usado pela criança? Quando você pretende se desfazer desse brinquedo? Como você vai se desfazer? ELETRôNICOS Em que ocasião? Quem teve a ideia de comprar? O que motivou? Quem deu? Como foi o momento em que a criança ganhou o presente? Onde comprou? Onde fica guardado? Onde e quando é usado pela criança? Quando você pretende se desfazer desse brinquedo? Como você vai se desfazer? BRINQUEDO INDESEJADO Já houve alguma situação em que seu filho ganhou um brinquedo que você considerou inadequado? Como era? Em que

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ocasião? Quem teve a ideia de comprar? O que motivou? Quem deu? Como foi o momento em que a criança ganhou o presente? Onde comprou? Onde fica guardado? Onde e quando é usado pela criança? Quando você pretende se desfazer desse brinquedo? Como você vai se desfazer?

Fora de casa

Há mais algum lugar fora de casa onde tenham brinquedos do seu filho? Onde? (carro, casa de veraneio, casa dos avós, escola) Quem é o responsável por eles?

Disposição Você se lembra de jogado fora algum brinquedo do seu filho? Como foi? O que motivou o descarte? Quem participou dessa decisão? Seu filho participou ? Como você se sentiu ao tomar essa decisão? Seu filho notou a falta do brinquedo? Você conversou com ele sobre isso? Você acha que isso é importante para o seu filho? Você se lembra ter dado algum brinquedo do seu filho? Como foi? O que motivou o descarte? Quem participou dessa decisão? Seu filho participou? Como você se sentiu ao tomar essa decisão? Seu filho notou a falta do brinquedo? Você conversou com ele sobre isso? Você acha que isso é importante para o seu filho? Qual foi a última vez que você se lembra de ter jogado fora ou dado brinquedos? Você tem alguma rotina em relação a se desfazer dos brinquedos?