olavo de carvalho_artigos_2003_comentários da semana

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/arquivo_2003.htm Comentários da semana arquivo 2003 O orgulho do fracasso O Globo, 27 de dezembro Natal proibido O Globo, 20 de dezembro A natureza do marxismo Jornal da Tarde, 18 de dezembro A grandeza de Josef Stálin Folha de S.Paulo, 18 de dezembro Reclamação inútil Zero Hora, 14 de dezembro Censura planetária O Globo, 13 de dezembro A universidade do ministro Buarque O Globo, 6 de dezembro Três notinhas Jornal da Tarde, 4 de dezembro

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Coletânea de artigos de Olavo de Carvalho

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Page 1: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

http://www.olavodecarvalho.org/semana/arquivo_2003.htm

Comentários da semanaarquivo 2003

 

O orgulho do fracassoO Globo, 27 de dezembro

Natal proibidoO Globo, 20 de dezembro

A natureza do marxismoJornal da Tarde, 18 de dezembro

A grandeza de Josef StálinFolha de S.Paulo, 18 de dezembro

Reclamação inútilZero Hora, 14 de dezembro

Censura planetáriaO Globo, 13 de dezembro

A universidade do ministro BuarqueO Globo, 6 de dezembro

Três notinhasJornal da Tarde, 4 de dezembro

Engordando o porcoZero Hora, 30 de novembro

Engenharia da delinqüência

Page 2: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 29 de novembro

Um conselho de HeráclitoO Globo, 22 de novembro

Muito lógicoZero Hora, 16 de novembro

Da barbárie à decadênciaO Globo, 15 de novembro

Linguagem criminosaJornal da Tarde, 13 de novembro

Os EUA vistos da BruzundangaO Globo, 08 de novembro

NonagenáriosZero Hora, 02 de novembro

Velha lendaO Globo, 01 de novembro

Para além do charlatanismoJornal da Tarde, 30 de outubro

Efeitos do messianismoO Globo, 25 de outubro

Cerco totalitárioZero Hora, 19 de outubro

A pergunta ausenteO Globo, 18 de outubro

Orgulhosa ostentação de inépciaFolha de S. Paulo, 14 de outubro

As coisas como estãoO Globo, 11 de outubro

Alienação nacionalZero Hora, 5 de outubro

O poder da burrice

Page 3: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 4 de outubro

Relendo notíciasJornal da Tarde, 2 de outubro

O tempo invertidoO Globo, 27 de setembro

Ele quer maisZero Hora, 21 de setembro

Ciência e ideologiaO Globo, 20 de setembro

Teoria da conspiraçãoJornal da Tarde, 18 de setembro

Obra e vida em filosofiaO Globo, 13 de setembro

Ciência política?Zero Hora, 7 de setembro

Celebrando Theodor AdornoO Globo, 6 de setembro

Dois brasileiros falandoJornal da Tarde, 4 de setembro

Honra temívelO Globo, 30 de agosto

Dialética da invejaFolha de S. Paulo, 26 de agosto

Vítimas e vítimasInconfidência (BH), 25 de agosto

Aforismos para a decifração do BrasilZero Hora, 24 de agosto

Eta povinho bem informado!O Globo, 23 de agosto

Tudo por um queijo

Page 4: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

Jornal da Tarde, 21 de agosto

A História segundo GodotO Globo, 16 de agosto

TruculênciasZero Hora, 10 de agosto

Tudo dominadoO Globo, 2 de agosto

O último dos reacionáriosO Globo, 9 de agosto

A solução finalZero Hora, 27 de julho

A vitória do fascismoO Globo, 26 de julho

Para uma antropologia filosóficaO Globo, 19 de julho

O estilo Pavlov de governarJornal da Tarde, 17 de julho

Os inconseqüentes e a conseqüênciaZero Hora, 13 de julho

Ainda o golpe de estado no mundoO Globo, 12 de julho

A imaginação esquerdistaO Globo, 05 de julho

Literatura do baixo ventreJornal da Tarde, 03 de julho

Simulação geralZero Hora, 29 de junho

Os intelectuais e o tempoO Globo, 28 de junho

Quem pode contra isso?

Page 5: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 21 de junho

O pai dos burrosJornal da Tarde, 19 de junho

O mundo cão da mídia brasileiraFolha de S. Paulo, 19 de junho

A clareza do processoZero Hora, 15 de junho

O Dalai-Lama adereO Globo, 14 de junho

Um clássico e um paraleloO Globo, 07 de junho

IndependênciaJornal da Tarde, 05 de junho

O império da ordemZero Hora, 01 de junho

Explicando de novoO Globo, 31 de maio

Golpe de estado no mundoO Globo, 24 de maio

Equilíbrio simuladoJornal da Tarde, 22 de maio

Os intelectuaisZero Hora, 18 de maio

Entre os Cacás e os GushikensO Globo, 17 de maio

A injustiça revoltadaO Globo, 10 de maio

Velho hábitoZero Hora, 04 de maio

Discurso dos demônios

Page 6: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 03 de maio

Telhados transparentesFolha de S. Paulo, 28 de abril

Jovens paranaensesFolha de Londrina, 26 de abril

Sobre o mapa divino do mundoO Globo, 26 de abril

Dominador invisívelJornal da Tarde, 24 de abril

O sonho de SaramagoO Globo, 19 de abril

Satã Hussein e as pombinhasO Globo, 12 de abril

Salvando a minha peleZero Hora , 06 de abril

Salto qualitativoO Globo, 05 de abril

Denúncia assombrosaO Globo, 29 de março

Ética de ladrõesJornal da Tarde, 27 de março

Fórum sem liberdadeZero Hora, 23 de março

Guerra e impérioO Globo, 22 de março

Aprendizes de JudasO Globo, 15 de março

A mentira totalZero Hora, 09 de março

Os minutos finais de um justo

Page 7: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 08 de março

RequerimentoFolha de S. Paulo, 03 de março

O guru que o Brasil mereceO Globo, 01 de março

Parceiros de SaddamJornal da Tarde, 27 de fevereiro

A cabeça da direitaO Globo, 22 de fevereiro

Relendo NietzscheO Globo, 15 de fevereiro

A felicidade geral da naçãoZero Hora, 09 de fevereiro

Cristofobia e carnavalO Globo, 08 de fevereiro

Cegueira duplaO Globo, 03 de fevereiro

Casos pessoaisJornal da Tarde, 30 de janeiro

Destino seladoZero Hora, 26 de janeiro

O lado elegante do terrorismoO Globo, 25 de janeiro

Direto na fonteO Globo, 18 de janeiro

Uma causa nobreJornal da Tarde, 16 de janeiro

Duas notas de rodapéZero Hora, 12 de janeiro

Não digam que os ajudei

Page 8: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O Globo, 11 de janeiro

Nossa mídia e seu guruFolha de São Paulo, 07 de janeiro

Uma notícia e um lembreteO Globo, 04 de janeiro

Colaborando com a tragédiaJornal da Tarde, 01 de janeiro

 

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01012003jt.htm

Colaborando com a tragédia

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 01 de janeiro de 2003

 

Num artigo escrito meses atrás, anunciei que era loucura avaliar a periculosidade do novo governo federal tão-somente por meio de conjeturações quanto à sua política econômica, especialmente no que diz respeito aos investimentos estrangeiros.

Lula, assegurei, nada faria de mau ao investidor estrangeiro, ao FMI ou ao governo americano. A preocupação nacional com os riscos possíveis para essas respeitáveis pessoas e instituições refletia somente a total alienação das nossas elites empresariais, incapazes de pensar desde a sua própria situação existencial e inclinadas a adotar o ponto de vista do interesse alheio, tomado ingenuamente como molde do seu.

Bem ao contrário, a primeira iniciativa do novo presidente, dizia eu, seria a de acalmar os temores estrangeiros, para assegurar a continuidade de um fluxo de capitais sem a qual a consecução de seus planos de transição para o socialismo seria paralisada por falta de proteínas.

Lula seguiria, nisso, o exemplo do próprio Lenin, que imediatamente após a tomada do poder na Rússia enviou aos países investidores o embaixador Abraham Yoffe com uma conversa calmante que funcionou na época e, traduzida em português quase ipsis litteris, funcionou de novo em 2002.

Page 9: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

A classe dos idiotas empresariais, com seus consultores pomposos pagos para ludibriá-los, não consegue conceber a estratégia comunista senão como ruptura ostensiva com o capitalismo internacional e socialização imediata dos meios de produção. Se não vêem no horizonte uma coisa nem a outra, acreditam-se a salvo do perigo. Ora, se houve algo que nenhum regime comunista estreante jamais fez foi qualquer dessas duas coisas. Na Rússia, a socialização dos meios de produção só veio 12 anos depois da tomada do poder. Na China, 9 anos. Nesse ínterim, os investidores estrangeiros e seus sócios locais se encheram de dinheiro, acreditando que tudo tinha entrado no rumo da mais linda prosperidade capitalista.

Nenhum governante comunista, quer chegue ao poder por via revolucionária ou eleitoral, é louco de começar por mudanças econômicas radicais que podem pôr tudo a perder. A primeira fase da transição consiste justamente em deixar a economia como está, enquanto se consolida a estrutura do partido e se faz dele a espinha dorsal do Estado. O novo governo já tratou disso, ao anunciar que o PT, em vez dos ministros nomeados, preencherá as vagas na burocracia ministerial. O alcance dessa medida é incalculável, pois coloca o PT no coração do aparato estatal, uma posição que nenhum partido ocupa nas nações democráticas, e faz dele o análogo estrutural do Partido Comunista na ex-URSS ou do Partido Nazista na Alemanha de Hitler. O partido terá aí o poder absoluto, por cima da hierarquia funcional, instituindo o sistema de dupla lealdade, no qual uma carteirinha de militante valerá mais que o cargo nominal. A partidarização da burocracia é o capítulo primeiro e essencial das revoluções, sejam fascistas, nazistas ou comunistas.

Ao mesmo tempo, o novo governo precisa de sossego na área econômica para consolidar seus laços com Hugo Chávez e Fidel Castro. O fato de que, logo após sua intervenção na crise venezuelana, o sr. Marco Aurélio Garcia tenha ido diretamente a Cuba tem, decerto, importância mais que simbólica.

Enquanto o Brasil dá respaldo ao presidente venezuelano contra a população de seus próprio país, Chávez aprofunda sua dependência de Cuba, entregando a agentes da DGI (serviço secreto cubano) a direção de importantes áreas da segurança interna. Segundo a revista Insight, até terroristas islâmicos foram chamados para ocupar posições no esquema policial-militar que está sendo criado para esmagar a resistência venezuelana. É esse o regime com que o nosso governo está solidário, indiferente ao fato de que o clamor popular contra Chávez é mil vezes maior do que aquele que aqui bastou para legitimar a derrubada de Collor (sem que nenhum Lula, na época, chamasse a isso "golpe"). A inserção estratégica do Brasil nessa malha é uma operação complexa e delicada demais para que o novo governo possa empreendê-la sem sentir-se livre de conflitos na área econômica. Mas, aí, ele não terá mesmo com que se preocupar. O imediatismo insano do nosso empresariado fará dele um dócil colaborador daquilo que, a médio prazo, será uma tragédia de proporções colossais.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01042003globo.htm

Page 10: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

Uma notícia e um lembrete

Olavo de CarvalhoO Globo, 04 de janeiro de 2003

 

Em nenhum outro ponto do universo os fios da teia revolucionária mundial aparecem hoje com tanta nitidez quanto na América Latina. Mas são visíveis somente para os observadores que tenham a iniciativa de pesquisar por si mesmos, usando os recursos que a internet põe à sua disposição.

A notícia mais reveladora dos últimos tempos, sob esse aspecto, está ausente da mídia brasileira: Hugo Chávez enviou ajuda de um milhão de dólares à Al-Qaeda poucos dias depois do 11 de setembro de 2001.

A informação vem da fonte mais direta que se poderia exigir: o próprio agente encarregado da operação, Juan Diaz Castillo, major da Força Aérea venezuelana e, na época, piloto do avião presidencial de Hugo Chávez.

A confissão detalhada está em http://www.militaresdemocraticos.com/en/. Não posso reproduzi-la por inteiro neste breve espaço, fruto da generosa coragem da diretoria de O Globo, do qual tenho o dever de aproveitar cada centímetro para contrabalançar, na pobre medida de minhas forças, o milionário e quase onipotente sistema nacional de desinformação. Não lhes peço, leitores, que creiam em mim. Confiram. Tirem suas dúvidas escrevendo pessoalmente a Castillo, [email protected].

O site é dos militares venezuelanos de oposição. Lá vocês ficarão sabendo também que Chavez fornece armas às Farc e entregou a terroristas islâmicos e agentes da DGI (polícia secreta cubana) postos decisivos no esquema montado para sufocar a greve que ameaça derrubá-lo.

Castillo, que admite ter sido leal a Chavez durante algum tempo, chegou esta semana aos EUA, exilado, depois de escapar de um atentado contra sua vida em 21 de dezembro.

A prepotência dos jornalistas de esquerda considera lícito sonegar a vocês notícias dessa envergadura, para eternizá-los na rósea ilusão eleitoral de um momento de insensatez coletiva.

Mas não é só por esse lado que a ilusão, já na estréia do novo governo, começa a se desfazer em cacos. A nomeação do sr. Luiz Eduardo Soares para a Secretaria Nacional de Segurança Pública basta para mostrar qual o tipo de "combate à criminalidade" que se pode esperar das autoridades federais nos próximos anos.

Se vocês não conhecem o sr. Soares, não sabem o que estão perdendo.

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Intelectualmente, como demonstrei em O Imbecil Coletivo II, é um homem que finge erudição citando autores que não leu e cola rotulações ideológicas em pessoas das quais ignora tudo. É o típico semi-intelectual latino americano, uma cabeça tão vazia de cultura genuína quanto repleta de chavões insultuosos que lhe parecem ser "categorias de pensamento". Ninguém mais representativo, pois, da mentalidade do novo governo.

Moralmente, ele é mais interessante ainda. Se vocês não lembram, ele é aquele mesmo subsecretário da Segurança carioca que, sabendo do paradeiro de Marcinho VP, traficante e assassino procurado pela polícia, e sabendo que o bandido estava foragido com respaldo financeiro do cineasta João Moreira Sales, ocultou às autoridades ambas essas informações.

Ele não explicou por que fez isso. Demitido pelo governador Anthony Garotinho, limitou-se a sair atirando, espalhando recriminações contra a "Banda Podre" -- como se uma podridão justificasse outra -- e a viajar para os EUA, onde, numa daquelas universidades superlotadas de amigos do terrorismo internacional, foi brilhar como herói de uma causa que, na sua imaginação, é de uma nobreza sem par.

Quem, em contraste com o silêncio do sr. Soares, acabou dando o serviço, foi João Moreira Sales. Marcinho VP, disse ele na época, merecia ajuda porque queria ir para o México dedicar-se ao respeitabilíssimo propósito de treinar guerrilha com a Frente Zapatista -- e, segundo a polícia revelou depois, foi mesmo.

A análogo pretexto recorreram os membros da elite esquerdista que protegeram os seqüestradores de Abílio Diniz. Tão logo vazou o segredo de que estes eram agentes armados do Partido Comunista chileno, aquelas pessoas maravilhosas trataram de camuflar a ligação comprometadora, ostentando repentino desprezo a seus protegidos da véspera sob a alegação de que eram bandidos comuns, infiéis ao Partido, que não mataram e seqüestravam por uma causa mas por dinheiro. Camuflagem às avessas, que revelava a intenção de impor ao público, acima do respeito às leis, uma nova escala de valores na qual a gravidade do crime contasse menos que a ideologia de seus beneficiários.

Mas, se essa mesma "moral" foi a justificativa íntima com que João Moreira Sales legitimou a ocultação de um criminoso, que outra alegação haveria para justificar, aos olhos do sr. Soares, a ocultação da ocultação?

Só há três hipóteses. Primeira, descaso e comodismo: o sr. Soares achou que o caso não era da sua conta. Segunda, algum motivo egoísta: dinheiro, troca de favores. Terceira, uma opção ideológica: o sr. Soares julgou que a transformação de um delinqüente comum em terrorista e guerrilheiro era alto empreendimento moral ao qual deveria prestar seu apoio.

O sr. Soares consideraria as duas primeiras hipóteses abomináveis. Homem fino, metido a intelectual, jamais cairia na esparrela de proteger um "bandido comum", desprezível desde o ponto de vista revolucionário. O que ele talvez ache merecedor de proteção é o bandido doutrinado, treinado e armado para matar a serviço de uma causa política que é a dele. Coincidentemente, a mesma do Exército Zapatista, de Hugo Chávez, de Fidel Castro e das Farc.

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A presença do sr. Soares na Secretaria Nacional de Segurança Pública é pois uma promessa de que os bons dias da criminalidade vulgar estão contados: lugar de bandido sem ideologia é na cadeia. O dos outros, não ouso perguntar. O México, talvez? Não acredito. Quem iria tão longe, podendo adestrar-se aqui mesmo, com os especialistas das Farc contratados para aprimorar o nível técnico da violência nos morros cariocas?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/07012003folha.htm

Nossa mídia e seu guru

Olavo de CarvalhoFolha de São Paulo, 07 de janeiro de 2003

 

O mais lindo espetáculo dos últimos tempos não foi a posse de Lula, escoltado por Fidel Castro, Hugo Chávez e uma penca de veteranos do terrorismo, numa praça adornada de milhares de bandeiras vermelhas e nenhuma do Brasil. O mais lindo espetáculo dos últimos tempos é a tranquilidade com que, diante disso, a mídia nacional assegura que não há mais comunistas em ação no mundo e que o país, no novo governo, tem o futuro assegurado de uma genuína democracia.Nunca uma mentira tão óbvia foi sustentada com tão acachapante unanimidade, num insulto coletivo à inteligência popular, que, ao não se sentir ofendida por isso, mostra não ter mesmo muito respeito por si própria.

Não encontro precedentes históricos para tão estranho fenômeno, mas encontro paralelos em outros que, ao mesmo tempo, sucedem na mesma mídia. Querem ver um? A onda de indignação geral contra Chávez é mil vezes maior e as acusações que pesam sobre ele mil vezes mais graves do que tudo quanto, no Brasil, bastou para dar razão de sobra à derrubada de Collor. Não obstante esta é celebrada até hoje como uma apoteose da democracia, enquanto o movimento dos venezuelanos é pejorativamente rotulado de "tentativa de golpe".

A duplicidade de critérios é tão patente, tão descarada que ela basta para mostrar que o jornalismo nacional está morrendo, substituído pela propaganda pura e simples. Muitos jornalistas negarão isso, fazendo-se de escandalizados, mas suas caretas de dignidade afetada não me convencerão. Pois eles próprios não escondem seu orgulho de ter abandonado as antigas regras de objetividade e isenção para adotar uma ética de dirigismo militante. Não querem mais ser meros portadores de notícias. Querem ser "agentes de transformação social". Um agente de transformação não se contenta em dar informações:

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manipula-as para produzir um efeito calculado. Os jornalistas brasileiros estão de tal modo adestrados para isso que já o fazem até sem perceber.

Como chegaram a tanto? Uma pista reside na influência exercida sobre eles, como sobre a totalidade das classes falantes, da leitura de Antonio Gramsci, hoje a obrigação central e quase única de quem passe por estudos ditos "superiores" neste país. Para que haveriam de embeber-se tanto das idéias de Gramsci, se fosse para se absterem de levá-las à prática? Mas essas idéias têm uma propriedade notável: quanto mais um homem se intoxica delas, menos percebe o que têm de imoral e perverso.

Visto sem as lentes da devoção boboca, o gramcismo não passa de uma sistematização de intrujices. A hegemonia, segundo ele, deve ser conquistada pelos partidos de esquerda mediante "ocupação de espaços" na mídia, na educação etc. Ora, o que é "ocupação de espaços" senão mútua proteção mafiosa entre militantes, recusando emprego aos adversários e institucionalizando a discriminação ideológica como princípio de seleção profissional? Trinta anos dessa prática e já não resta nas redações nenhum anticomunista. Dividido o espaço entre esquerdistas, simpatizantes e indiferentes, ninguém reclama e todos sentem viver na mais confortável democracia. A consciência moral dos jornalistas de hoje é pura inocência perversa.

Mas Gramsci não era um intrujão só na estratégia política. Manipulador, não hesitava em contar à filha pequena velhos contos de fadas esvaziados de seu simbolismo espiritual e adulterados em grosseira propaganda comunista. Sua própria imagem histórica é uma farsa. Beatificado como encarnação do intelectual proletário, só trabalhou em fábrica por tempo brevíssimo.

Chamar Gramsci de maquiavélico não é força de expressão. Filho de um corrupto, ele era neto espiritual do megacorruptor florentino. Orgulhava-se de ser discípulo de Maquiavel e descrevia o "Partido" como o "Novo Príncipe", encarnação coletiva do astuto golpista palaciano que conquistava o poder pisando nos cadáveres dos que o tinham ajudado a subir. Quando o Partido está fraco para o assalto direto ao poder, dizia Gramsci, deve formar um amplo "pacto social" baseado no "consenso", mas conservando para si a hegemonia, o primado das idéias e valores que soldam a aliança. Os aliados, acreditando agir no seu próprio interesse, serão levados a amoldar seu pensamento às categorias admitidas pelo Partido, que, parasitando suas energias, livrar-se-á deles no momento devido.

Gramsci não é maquiavélico só no sentido vulgar d" "O Príncipe", mas também naquele, mais sutil e maldoso, dos "Discorsi". Nesta obra pouco lida, Maquiavel revela seu intuito de colocar o Estado em lugar do próprio Deus. Gramsci apenas acrescenta que, para isso, é preciso antes um Partido-deus. É aí que sua malícia chega a requintes quase demoníacos. Ele considerava o cristianismo o principal inimigo do socialismo. Sonhava com um mundo em que toda transcendência fosse abolida em favor de uma "terrestrialização absoluta", na

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qual a simples idéia de Deus e de eternidade se tornasse inacessível.Mas não queria destruir a igreja como instituição, e sim usá-la como fachada. Para isso, propunha que os comunistas se infiltrassem nela, substituindo a antiga fé por idéias marxistas enfeitadas de linguagem teológica. Assim, a pregação comunista chegaria às massas sob outro nome, envolta numa aura de santidade.

A maior fraude religiosa de todos os tempos está hoje coroada de sucesso, o que não torna menos deformada e monstruosa a mentalidade do seu inventor. Nem menos desprezível a daqueles que o admiram por isso.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01112003globo.htm

Não digam que os ajudei

Olavo de CarvalhoO Globo, 11 de janeiro de 2003

 

Cultura é tudo o que o homem não recebe pronto da natureza. É, portanto, tudo aquilo que pode ser feito ou não ser feito e, uma vez decidido que deve ser feito, pode ser feito de uma infinidade de maneiras, das quais dá testemunho a variedade das culturas. No meio de toda essa diversidade, só há uma constante: tudo o que foi feito, em qualquer cultura que seja, foi feito porque pareceu melhor que outra coisa. Ninguém jamais pintou um pote, pronunciou um discurso, ergueu uma cabana, instituiu uma lei, tentou curar uma doença ou concebeu uma hipótese científica pensando que se o fizesse de outra forma estaria melhor. Se assim pensasse, teria feito de outra forma.

A busca do melhor pode ser bem ou mal sucedida. O sujeito que acha que fez o melhor dos melhores pode naquele mesmo momento estar sendo passado para trás por alguém que encontrou uma solução mais engenhosa, uma forma mais bela, uma cura mais eficaz, uma explicação mais inteligente. O que é certo é o seguinte: se soubesse fazer melhor, faria.

Mas, se a capacidade de fazer o melhor é limitada às possibilidades de cada instante, o impulso de desejá-lo é ilimitado. Na escala do tempo histórico, isso resulta na possibilidade do “progresso”. Mas o progresso é restrito, porque as conquistas de uma geração não se transmitem perfeitamente às seguintes e porque há interrupções e quedas pelo caminho. Na escala da vida interior, no entanto, a ânsia do melhor pode subir indefinidamente. O pequeno ser humano começa pensando no melhor jeito de descer do bercinho sem se esborrachar, e culmina na concepção do ilimitadamente bom, do superlativamente melhor, aquele que, quando você pensa dele algo de bom, sempre mostra que é melhor do que você

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pensou. É o Supremo Bem de que falava Platão. Em torno dele gira, em direção a ele se move tudo o que o homem pensa e faz no domínio da “cultura”. Cultura é a caminhada da espécie humana desde o aprendizado dos primeiros passos até o topo do Monte Sinai.

A capacidade de orientar-se pelo Supremo Bem foi denominada, pelo maior dos nossos filósofos, Mário Ferreira dos Santos, “tímese parabólica”. Tímese vem do grego thymos, que quer dizer sopro, alma, vontade, vida, desejo, coração, valor. “Parabólica” porque, como a flecha disparada pelo arqueiro, descreve uma curva no céu rumo ao infinito e tomba, atingindo um alvo mais baixo. É a tímese parabólica, e não simplesmente “a razão”, que torna o homem superior aos animais. A razão não é senão a via de unificação dos conhecimentos, pela qual a mente, movida pela tímese, sobe da confusão do imediato à aspiração do Supremo Bem. Sem este, a razão perde o eixo, fragmenta-se em blocos errantes no mar do absurdo. Medido pela razão, o homem só se distingue do orangotango quantitativamente. É a aspiração do melhor que o torna melhor.

Todas as culturas compreenderam isso e o expressaram de algum modo. Todas amaram, buscaram e serviram ao Supremo Bem, vendo nisso a finalidade da existência. Todas, menos duas: a nazista e a socialista. Estas impuseram severos limites à concepção humana do bem, circunscrito, no primeiro caso, ao estabelecimento de uma certa hierarquia entre as raças, no segundo à instalação de um certo regime de distribuição das riquezas. Concentradas nesses objetivos, condenaram todas as aspirações mais altas como alienação, desvio, perversão, mitologia judaica, propaganda burguesa e crime contra o Estado. Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, sonhava em colocar uma placa de chumbo entre as almas e a ânsia do Supremo Bem, aprisionando a humanidade numa “mundanização e terrestrialização absolutas do pensamento”. Vendo que as pessoas recusariam a proposta se apresentada assim sem mais nem menos, inventou ardis para esvaziar pouco a pouco os representações simbólicas do Supremo Bem, de modo que no fim ninguém fosse capaz de conceber um bem mais alto do que a vitória do Partido, o advento do socialismo, deus terrestre. A um dos instrumentos ideológicos criados para isso foi dado o nome de “teologia da libertação”. É monstruoso, mas é fato.

É fato também que as sociedades fora do campo nazista e socialista não ficaram imunes ao atrativo macabro da proposta. Não há uma só delas em que a militância do absurdo não esteja em luta mortal contra a aspiração do Supremo Bem herdada do legado grego, judaico e cristão, contra o qual não hesita em lançar, após tê-los deformado, prostituído e esvaziado de todo sentido espiritual, os símbolos e tradições de outras culturas. É o que hoje se chama, com notável cinismo, “diversidade cultural”.

Eis por que é inútil, no Brasil de hoje, discutir os rumos da cultura nacional. Cultura nova, frágil, superficial, mais voltada ao lúdico e ao ornamental do que à “única coisa necessária”, não houve outra que cedesse mais docilmente à oferta gramsciana do suicídio espiritual em troca de um “céu na Terra”, modelo Frei Betto.

Ao fim de algumas décadas dessa dieta, o que hoje se chama “debate cultural” neste país reduz-se à disputa de verbas e de poder político. Pergunta-se, por exemplo, se quem deve orientar a cultura é o Estado ou a iniciativa privada. É o mesmo que perguntar: queremos uma cultura de cabos eleitorais ou de agentes de publicidade? Não faz diferença, é claro: os

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sujeitos que mandam na burocracia cultural do Estado são os mesmos que mamam no bico da iniciativa privada. A única dúvida que os atormenta é saber por onde despejarão mais facilmente em nossas almas o veneno que corrói as suas. Quando a conversa desceu a esse ponto, quem tem alguma idéia do que seja cultura deve calar-se. Ninguém conhece melhor os meios de ir ao diabo do que aqueles que vieram dele. Pois então, que vão. Mas não depois digam que os ajudei.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01122003zh.htm

Duas notas de rodapé

Olavo de CarvalhoZero Hora, 12 de janeiro de 2003

 

Se você ainda se surpreende ante a pressa indecente com que neste país os empresários se atiram aos braços de um partido que não esconde seu propósito de exterminá-los como classe, é porque está atrasado em pelo menos dois séculos. Fenômenos semelhantes já foram observados e bem explicados desde o tempo da Revolução Francesa, e terminam sempre do mesmo modo: com a extinção da classe.

Leia o seguinte parágrafo:

“Enquanto a ordem permanece, a propriedade tem influência superior à daqueles que podem querer violar a paz pública; mas, quando a lei e a ordem estão em grande parte destruídas, os ricos são sempre demasiado inclinados a buscar na submissão, ou na mudança de partido, os meios de proteger-se a si mesmos e às suas fortunas. A propriedade, que nos tempos normais faz corajosos os seus detentores, torna-se, nos tempos de perigo iminente, a causa de sua covardia egoísta.”

Sir Walter Scott, que a maioria só conhece como romancista mas que foi também excelente historiador, escreveu isso na sua monumental Life of Napoleon Buonaparte, Emperor of the French, with A Preliminary View of the French Revolution (uso a edição americana, Philadelphia, 1827, vol. I, p. 116). É um livro cheio de defeitos, compreensíveis numa primeira tentativa de sintetizar tamanha massa de documentos -- talvez a maior já examinada até então por qualquer historiador -- sobre um passado ainda recente. Mas continua um clássico e, se falha aqui e ali na reconstituição dos acontecimentos (Sainte-Beuve apontou-lhe erros graúdos nas Causeries du Lundi), sua melhor parte reside justamente nas observações de psicologia.

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Observações similares encontram-se em Origines de la France Contemporaine, de Hippolyte Taine, para o meu gosto o melhor livro de História que já se escreveu neste mundo. As idéias revolucionárias não se espalham pelo povo antes de ter ganho a adesão ou pelo menos a cumplicidade da “classe dominante”. Antonio Gramsci deu receitas precisas de como apressar o suicídio coletivo dos ricos. Em nenhum outro lugar foram aplicadas com tanto sucesso como no Brasil.

Amostra desse sucesso: não há hoje um rico que não tenha pelo menos um vago sentimento de culpa por ser rico, por ter subido na vida através da organização racional dos meios de obter lucro. Em contrapartida, ninguém sente vergonha de ter subido pela organização da militância enragée, pela exploração da inveja e do ressentimento coletivos, pela engenharia do ódio. É claro que, objetivamente, nenhum capitalista pode ser, enquanto capitalista, tão ruim e pérfido quanto um agitador revolucionário. Mas a nova escala de valores, que faz deste um anjo e daquele um demônio, já está tão profundamente impregnada na sensibilidade coletiva que funciona como premissa automática de qualquer julgamento moral. Os capitalistas são os primeiros a subscrevê-la, prosternando-se aos pés do adversário como pecadores em busca de absolvição. É o que já dizia Sir Walter.***Se você imagina que o comunismo é uma “ideologia” e que uma vez desmoralizada esse ideologia ele desapareceu da face da Terra, a sugestão que lhe dou é: -- Acorde. Você está sonhando. Está no mundo da lua. Está tirando conclusões sobre o mundo real sem o mínimo conhecimento de causa e com base em fantasias da sua própria invenção. Ideologia é um discurso legitimador, um sistema de pretextos para justificar alguma ação política. Mas, se o pretexto pode justificar a ação, não pode orientá-la. Toda ação tem de seguir um plano logicamente concatenado, que o pretexto apenas encobre e disfarça mediante mil e um arranjos verbais de ocasião. Conceber o comunismo apenas como ideologia, ou predominantemente como ideologia, é tão maluco quanto julgar um homicídio tão-somente com base nas alegações do assassino em favor de si próprio.

Para saber o que é o comunismo, é preciso olhá-lo sobretudo como conjunto de ações concretas, que vão desde a formação dos primeiros grupos militantes até à tomada do poder e à instauração da nova sociedade.

O comunismo é a lógica interna desse conjunto de ações, do qual a ideologia é apenas uma peça auxiliar indefinidamente substituível. Sim, substituível: o comunismo já trocou de ideologia uma bela meia dúzia de vezes, sem perder nada de sua unidade enquanto força historicamente atuante. A palavra unidade, aí, é a chave: o comunismo nunca teve unidade ideológica. Teve sempre, em contrapartida, uma vigorosa unidade estratégica, mesmo nos momentos em que parecia mais dividido, já que a produção e administração de divisões é mesmo uma das forças que o mantêm em movimento. Ora, o conceito de uma coisa nada mais é do que a apreensão intelectiva daquele fator “x” ao qual ela deve sua unidade interna. O jogo dialético da unidade estratégica na diversidade tática é a chave para a apreensão conceptual do comunismo. A fórmula é aliás devida ao próprio Stálin -- o maior dos estrategistas do comunismo em todos os tempos, maior mesmo que Gramsci.

Portanto, para saber se um sujeito é comunista ou não, é inútil catalogar ideologicamente o que ele diz. O que é preciso perguntar é: com quem ele se associa, por quanto tempo e com

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que fins? Quais são suas alianças de ocasião e suas parcerias duradouras? Dito de outro modo: quais as suas ligações táticas e estratégicas? Ou, de outro modo ainda: que estratégia de longo prazo dá unidade à variedade de suas mutações táticas? Vistas sob esse ângulo, até as variações aparentemente insanas de uma “metamorfose ambulante” podem revelar um método por trás da loucura.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01162003jt.htm

Uma causa nobre

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 16 de janeiro de 2003

 

A mais alta expressão cultural que se admite no Brasil de hoje é aquilo que antigamente se chamava "literatura digestiva". O que quer que ultrapasse a crônica leve, engraçadinha, é considerado um ato de prepotência intelectual premeditado para humilhar as pessoas, um atentado contra a democracia e os direitos humanos.

Decerto essa censura não se aplica aos teóricos da esquerda militante, principalmente quando têm a prudência de despejar seu discurso erudito em publicações universitárias e suplementos culturais que só os devotos lêem.

Culpado de arrogância e elitismo é aquele que, sem ter sequer a identidade ideológica requerida para desfrutar da indulgência dos leitores, ouse falar ao público geral numa linguagem que esteja um pouco acima da de João do Rio, Humberto de Campos ou seus equivalentes contemporâneos. Nada ofende mais a dignidade dos brasileiros do que alguém confiar na sua inteligência, escrevendo para eles como se fossem pessoas capazes de um esforço de compreensão. Afinal, o que entendem por sua "dignidade" consiste justamente em ser respeitados no seu direito à burrice vaidosa, à incultura auto-satisfeita. Tratá-los como seres inteligentes é portanto aviltá-los, sugerindo que há na inteligência alguma virtude que a ignorância não tem.

Não há maior homenagem que se possa prestar a um brasileiro do que sugerir que ele merece ter um cargo mais alto, uma remuneração mais polpuda, sem nenhuma obrigação de melhorar por dentro.

O culto das exterioridades, a firme decisão de avaliar um homem não pelo que é, mas pela posição que ocupa, chega aí às últimas conseqüências. Já não se contenta em sobrepor os direitos da futilidade às exigências do homem essencial, mas pretende que estas sejam

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apenas um pedantismo de intelectuais, um adorno inútil que não confere a seu portador um décimo da dignidade de um bom terno Armani.

José Ortega y Gasset definia o "homem-massa" como aquele que não apenas é espiritualmente inferior e se contenta em sê-lo, mas quer ser reconhecido como superior em razão dessa inferioridade mesma. Ocupa os lugares mais altos da sociedade com plena consciência - e íntima satisfação - de não ter preocupações mais excelsas que as de um torcedor no campo. Até recentemente, esse personagem me parecia apenas um "tipo ideal" weberiano, um retrato imaginário de tendências gerais latentes, que não chegavam a se encarnar em nenhum indivíduo real. Todos nós, acreditava eu, somos um pouco homem-massa, mas ninguém o é por completo. Talvez fosse assim, mas as coisas mudaram. No Brasil de hoje, cada político, cada jornalista, cada empresário ou banqueiro e - para cúmulo de desgraça - muito militar de alta patente com que tenho conversado é ou pelo menos deseja ser uma encarnação perfeita e assumida do homem-massa orteguiano, afastando com horror a tentação de ser coisa melhor.

Em muitos casos, essa recusa da inteligência e do conhecimento se envaidece, ao menos em segredo, de ser uma virtude religiosa, um tipo de humildade evangélica, condenando os desprovidos dela às penalidades infernais que a Bíblia impõe ao nefando pecado do orgulho.

Não é preciso dizer o quanto essa mentalidade ajudou a eleger presidente o sr. Luiz Inácio da Silva. Ele não é o homem pobre que, por esforço próprio, superando a resistência do ambiente, adquiriu alta cultura e, em competição desigual, venceu os filhinhos de papai diplomados por universidades estrangeiras. Não, esse não é o sr. Luiz Inácio. Esse é Machado de Assis, é Lima Barreto, é Capistrano de Abreu. Por isso mesmo não são considerados exemplares dignos das belas qualidades do povo brasileiro. Exemplar delas é o homem pobre que, levado nos braços de filhinhos de papai, subiu ao mais alto posto da República permanecendo tão ignorante e vazio quanto era no começo, exceto pela absorção passiva dos chavões partidários requeridos para o seu novo papel. "Medalhão" significa exatamente o sujeito que é rodeado de aplauso e respeito sem ter mérito pessoal que o justifique. O Brasil sempre esteve repleto de medalhões, a ponto de que Machado de Assis chegasse a criar toda uma teoria a respeito. Mas um medalhão operário, ah! Isto sim era coisa inédita. Podia-se aplaudi-lo, ademais, com o sentimento de estar servindo a altos propósitos morais. Haverá causa mais nobre do que estender aos desfavorecidos os benefícios da aurea mediocritas, as honras supremas do medalhonato nacional?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01182003globo.htm

Direto na fonte

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Olavo de CarvalhoO Globo, 18 de janeiro de 2003

 

Que toda história tem no mínimo dois lados, eis uma verdade primária que nenhum foquinha de redação tem o direito de ignorar. E não há maneira mais torpe de ocultar um dos lados da história do que contá-lo sempre desde o ponto de vista do outro, sem deixar que ele se mostre aos leitores por si mesmo, com sua própria face e suas próprias palavras. Isso é pseudojornalismo da mais grossa espécie.

Pois bem: o conservadorismo norte-americano, que está no poder e vai ficar lá por mais pelo menos uma geração, sendo portanto uma das forças políticas mais decisivas no mundo, só é conhecido do público brasileiro pela versão que dele apresentam seus inimigos do Partido Democrata ou mesmo da extrema esquerda. Isso é assim, inalteravelmente, há pelo menos vinte anos. Na nossa mídia, jamais o ponto de vista dos republicanos, conservatives e libertarians é mostrado em si mesmo, no original, para que os brasileiros façam dele um juízo baseado em conhecimento direto. Com exceção do que se passa na imprensa dos países comunistas, não conheço outro caso de ocultação preconceituosa tão geral, tão sistemática, tão infalível.

No entanto, seria errado atribuí-la exclusivamente ao viés esquerdista imperante nas nossas redações. Uma curiosa conjunção de acasos, aí, ajuda o esquerdismo a mentir com inocência. É que, ao relatar o que se passa num outro país, qualquer jornalista toma instintivamente como padrão de aferição a grande mídia desse país. Se o que escreveu está de acordo com o que ela disse, ele acredita ter dado um relato fidedigno e dorme em paz com sua consciência. Ora, acontece que a grande mídia norte-americana é toda clintoniana ou mesmo abertamente pró-esquerdista. Se dependesse dela, George W. Bush não seria presidente da República, e Osama bin Laden, se não chegasse a receber homenagens públicas, seria ao menos absolvido como vítima da sociedade. Isso quer dizer que, para um jornalista brasileiro tapar o acesso do público a metade da história e nem perceber que está fazendo isso, basta que ele se atenha ao que saiu no New York Times, no Washington Post, na CNN etc.

O que estou dizendo parece contraditado pelo fato de que Bush tem um dos mais altos índices de aprovação já alcançado por um presidente norte-americano. Aparentemente, ninguém pode conseguir isso sem o apoio dos gigantes midiáticos. Mas aí é que está a diferença. Nos EUA, pode. É que a grande mídia das capitais, lá, não é tão grande quanto a daqui, proporcionalmente. Seu poder inegável é contrabalançado pelo da imensa rede de jornais do interior, cuja força não tem equivalente em nada do que existe no Brasil. Cada pequena cidade americana tem dois ou três jornais de alta qualidade, além de meia dúzia de estações de rádio e TV. Se os conservadores enfrentaram e venceram o poder dos gigantes, foi entrincheirando-se na mídia local, manejando com habilidade os recursos da internet e criando organizações de media watch que, provando com métodos científicos o viés esquerdista das notícias, acabaram por desacreditar a mídia milionária perante grande parte do público e dos anunciantes. Outra coisa que os ajudou foi a rede de agências que distribuem artigos pelos pequenos jornais de todo o país. Aí um colunista vetado na grande

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mídia pode acabar tendo mais leitores do que as estrelas maiores do NYT ou do Post. É o que acontece com Thomas Sowell e David Horowitz -- para o meu gosto, os melhores.

Os jornalistas brasileiros -- uns por safazeza, a maioria por ignorância genuína -- desprezam esses fatos e, quando contam a história por um só lado, acreditam não estar fazendo nada de desonesto. Contra essa ilusão de uma consciência demasiado fácil de apaziguar, deve-se lembrar que a verdadeira idoneidade jornalística não se contenta com aparências verossímeis. Ela duvida de si, vai ao fundo, busca testemunhas ignoradas e deixa que elas falem. Se entre os jornalistas brasileiros ninguém faz isso no que diz respeito aos conservadores americanos, é porque cada um, no íntimo, teme conhecê-los: pode acabar gostando deles. É fugindo de conhecimentos indesejáveis que o preconceito adquire o poder de um dogma.

Se você não tem medo de conhecer, salte a barreira. Vá direto às fontes. Eis aqui as principais, que estão na internet:

Jornais, revistas e agências: Townhall (http://www.townhall.com), National Review (http://www.nationalreview.com), WorldNetDaily (http://www.worldnetdaily.com), Newsmax (http://www.newsmax.com), Drudge Report (http://www.drudgereport.com), The Washington Times (http://www.washtimes.com), Human Events (http://www.humaneventsonline.com).

Doutrina e polêmica: The New American (http://www.thenewamerican.com), The Federalist (http://www.federalist.com), Common Conservative (http://www.commonconservative.com).

Cultura e idéias: Reason (http://www.reason.com), The Weekly Standard (http://www.weeklystandard.com), Front Page Magazine (http://www.frontpagemag.com), Jewish World Review (http://www.jewishworldreview.com), Enter Stage Right (http://www.enterstagerigth.com), The Weekly Standard (http://www.weeklystandard.com), Insight Magazine (http://www.insightmag.com), The Dartmouth Review (http://www.dartreview.com),Excellent Thought (http://www.excellentthought.net),Intellectual Conservative (http://intellectualconservative.com),Accuracy in Academia (http://www.academia.org).

Think Tanks: The Claremont Institute (http://www.claremont.org), The Heritage Foundation (http://www.heritage.org), Cato Institute (http://www.cato.org).

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Media Watch: Media Research Center (http://www.mediaresearch.org),Accuracy in Media (http://www.aim.org), Honest Reporting (http://www.honestreporting.com), Conservative Truth (http://www.conservativetruth.org/index.php).

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01252003globo.htm

O lado elegante do terrorismo

Olavo de CarvalhoO Globo, 25 de janeiro de 2003

 

Que o terrorismo mantém o mundo num estado permanente de guerra não declarada, todo mundo sabe. Mas essa guerra tem ainda uma segunda peculiaridade: ela é calculada para subtrair antecipadamente das nações atacadas -- EUA e Israel em primeiro lugar -- toda possibilidade de defesa.

Para compreender esse fenômeno é preciso estar ciente de que um atentado terrorista nada vale sem o aproveitamento político e midiático de suas conseqüências. Estas são tão meticulosamente planejadas como o atentado mesmo, o que seria impossível se as organizações terroristas não contassem com uma ampla rede de apoio nos canais formadores da opinião pública de dentro e de fora da nação atacada.

Atendida essa condição -- e nunca ela foi tão bem atendida quanto hoje --, paralisar a vítima torna-se uma operação bem simples.

Se uma nação é alvo de ataques terroristas, que é que ela pode fazer para resolver o problema?

Pode, em primeiro lugar, defender-se no seu próprio território, perseguindo os agentes locais do terrorismo.

Segundo: pode descobrir os Estados que dirigem ou apóiam a ação terrorista, e atacá-los em guerra declarada.

Terceiro: pode tentar combater seus inimigos por meio de ações tão camufladas e informais quanto as deles próprios, subsidiando grupos paramilitares de antiterrorismo, seja no seu próprio território, seja no Exterior.

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Em qualquer dessas três vias, a reação pode ser obstada pela pressão da mídia e da opinião pública. A repressão local é condenada como ditadura policial e atentado aos "direitos humanos" dos possíveis suspeitos, a simples ameaça de declaração de guerra suscita uma epidemia de protestos "pela paz", a luta clandestina é denunciada como crime por meio de inquéritos parlamentares e reportagens de escândalo, provocando crises diplomáticas e eventualmente a queda do governo.

Na guerra entre as nações e o terrorismo, todas as vantagens vão para este último. A situação é estruturalmente análoga à do confronto entre o cidadão comum e o criminoso armado. Este, já estando a priori fora da lei, tem à sua disposição os instrumentos de ação que bem deseje. Aquele é tolhido própria lei, que, habilmente manipulada, pode chegar a privá-lo de seus meios de legítima defesa e tornar-se o mais sólido baluarte em defesa do crime.

Assim também se passa na esfera do terrorismo. Burocratas, jornalistas, intelectuais, estrelas da TV e do cinema, o beautiful people na sua totalidade, são tão vitais para o bom êxito do empreendimento criminoso quanto os próprios agentes da violência física. A rede que eles formam tem hoje as dimensões de um megapoder internacional, incalculavelmente maior que o de qualquer nação. Nenhum Estado tem meios de angariar tanto apoio, na opinião pública mundial e nos organismos internacionais, quanto as organizações terroristas. Nenhum Estado pode manter, no Exterior, partidos com milhões de militantes e ONGs com milhões de colaboradores atuando em caráter permanente. Nenhum Estado pode comprar consciências a granel entre jornalistas e intelectuais de um país estrangeiro. "Nenhum" Estado? Não é bem assim. Os Estados totalitários podem, porque não têm satisfações a dar à opinião pública interna. A China pode. Cuba pode. O Iraque pode. Mas, precisamente, esses Estados estão do lado do terrorismo, em favor do qual usam de meios de ação com que um Estado democrático e constitucional não ousaria sequer sonhar.

É assim que, na mídia internacional, e em especial na de certos países mais abertos à propaganda esquerdista, como é o caso do Brasil, a dualidade de pesos e medidas no julgamento do confronto entre os terroristas e suas vítimas se torna um fator permanente e quase institucional, atuando sempre em prol dos terroristas. Estes só são condenados, quando chegam a sê-lo, durante o breve momento de impacto de suas ações espetaculares. Passado o susto, preenchida a quota de lamentações pro forma necessária para salvar as aparências, os formadores de opinião passam à segunda e decisiva fase das operações, que consiste em bloquear o revide. Se na primeira fase tudo não passou de um florescimento passageiro de verbalizações emocionais sem conseqüência prática, na segunda a ação é contínua, persistente, ordenada e racional, não se dando por concluída enquanto a nação atacada não seja induzida a abdicar de seu direito de reagir. É por isso que, há décadas, a força do terrorismo cresce ininterruptamente, ao passo que toda veleidade de resposta das vítimas esbarra cada vez mais em obstáculos psicológicos, políticos, jurídicos e culturais, seja no exterior, seja em seus próprios territórios.

O terrorismo não será vencido enquanto a rede de seus colaboradores na mídia, na intelectualidade, no show business e nos organismos internacionais não for investigada, conhecida, denunciada e desmantelada. Mas os obstáculos que se opõem a isso são ainda mais temíveis do que aqueles que vetam uma resposta direta ao terrorismo. O direito dos

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terroristas ao apoio unilateral é hoje quase uma cláusula pétrea da "ética" midiática mundial. No Brasil, então, nem se fala. Ninguém vê nada de anormal ou escandaloso em que agentes de influência diretamente ligados à coordenação política do movimento comunista no continente exerçam na mídia o cargo de editores ou comentaristas políticos. Ninguém percebe sequer a diferença entre o que eles fazem e o serviço normal de um jornalista. Mas que um cidadão isolado, sem conexões organizacionais de espécie alguma, se aventure a protestar contra alguma mentira que eles digam, e será imediatamente rotulado de vendido, de agente estrangeiro, de "ponta de um iceberg" etc. etc. Isso é aliás perfeitamente lógico. Se a rede existe para criar uma dualidade de critérios em defesa do terrorismo, por que não haverá de usar dessa mesma dualidade em favor de si própria?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01262003zh.htm

Destino selado

Olavo de CarvalhoZero Hora, 26 de janeiro de 2003

 

Em 22 de dezembro do ano passado, O Globo já informava que, segundo os dirigentes do Fórum Social Mundial, ali só não seriam aceitos na mesa de debates “os partidos políticos de centro e de direita”.

Maria Luíza Mendonça, da “Rede Social de Justiça”, uma das organizações que promovem o encontro, foi bastante explícita nas declarações que fez ao jornal. O Fórum, disse ela, não teria por finalidade o confronto de idéias. Consolidada a unanimidade antiliberal de seus participantes, “nosso momento já é de discutir estratégias de ação”. Ação contra quem? Contra o “neoliberalismo”, portanto contra aqueles mesmos partidos de centro e de direita excluídos do debate.

O Fórum, em suma, deixou de ser apenas um dispendioso circo publicitário para tentar ser uma coordenação estratégica da esquerda internacional, o equivalente global daquilo que o Foro de São Paulo representa na escala da América Latina.

Ora, que significa tudo isso senão que se trata de um empreendimento unilateralmente, sectariamente partidário? E desde quando um governo instituído pode subsidiar empreendimentos dessa ordem sem cometer crime eleitoral?

Que as verbas do governo gaúcho ajudassem a financiar uma coisa dessas, no tempo de Olívio Dutra, já era imoral e ilegal, mas politicamente compreensível. Que o Banco do Brasil e a Petrobrás ponham nisso 800 mil dólares no instante mesmo em que o governo

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federal alega apertar os cintos para dar tudo aos pobres, é de uma indecência magnífica, mas estrategicamente faz sentido. Que, porém, o governo do sr. Germano Rigotto coloque as propriedades do Estado à disposição de um conluio concebido para marginalizar o próprio partido que o elegeu, eis a prova de que o centro-direita perdeu os últimos escrúpulos e até o restinho de instinto de sobrevivência que o inibia de colaborar descaradamente com aqueles que juraram destruí-lo. Quando se chega a esse ponto, já não é possível nenhuma resistência organizada à ascensão do comunismo.

O destino do Brasil está selado. Nada, exceto um milagre, pode reverter a transformação deste país na nova Meca do comunismo internacional, a terra de promissão onde se consumará, segundo a profecia de Fidel Castro, o resgate de tudo o que o movimento político mais destrutivo e mais criminoso de todos os tempos perdeu no Leste Europeu.

Mas esse milagre não acontecerá. Nunca, nos anais do maravilhoso e do divino, se registrou um milagre salvador operado em benefício daqueles que rezavam para que não acontecesse.

Aqueles mesmos que, em palavras, impugnam esse diagnóstico como exagerado se incumbem de confirmar-lhe a exatidão por meio de sua conduta. Pois, se estivessem tão tranqüilos quanto fingem estar, se não vissem dia a dia a esquerda totalitária ocupar todos os espaços e marginalizar todos os concorrentes, por que haveriam de apressar-se tanto em lhe mostrar serviço, abdicando voluntariamente do direito de lhe fazer oposição a sério e retribuindo cada nova agressão com novos afagos, cada nova expressão de desprezo com redobradas ostentações de servilismo?

Muitos contam com a esperança de que o governo petista, por inépcia, se destrua a si mesmo. Isso provavelmente vai acontecer. Mas, desmantelados o centro e a direita, quem, senão a esquerda mais radical e intolerante pode lucrar com o descrédito do presidente? Quem, senão os revolucionários explícitos e descarados, ocupará o vazio deixado pelos implícitos e camuflados?

Aqueles que apostam na autodesmoralização do petismo federal esquecem que, na estratégia clássica das revoluções comunistas, a única utilidade de um governo de transição é precisamente desmoralizar-se, ser passado para trás, abrir caminho, por meio do auto-sacrifício voluntário, aos “autênticos revolucionários”. Que, na complexidade das circunstâncias, haja necessidade de sucessivos governos de transição, cada qual desviando o fiel da balança um pouquinho mais para a esquerda, passo a passo, até o desenlace fatal, também não é novidade nenhuma. A estratégia gramsciana exige explicitamente isso, com a lentidão proposital que a caracteriza. Todos os governos desde o fim do regime militar foram, nesse sentido, regimes de transição, cada um adotando medidas pró-capitalistas que passavam como o vento, ao mesmo tempo que consolidavam mudanças duradouras cada vez mais favoráveis à esquerda na esfera política, cultural, moral, educacional etc. A política econômica de Fernando Collor de Mello passou. Mas a extinção do SNI foi definitiva. O pretenso “neoliberalismo” de FHC passou. Mas a educação marxista nas escolas continua, as indenizações para terroristas continuam, o desmantelamento das Forças Armadas continua, a tolerância para com o crime continua. E os partidos de centro e direita jamais se levantarão da sua condição de escravos da hegemonia esquerdista, a que foram reduzidos pela hábil manipulação gramsciana de um presidente que, de caso pensado, mais

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fiel às suas origens que às alianças de ocasião, trabalhou para a vitória do seu adversário nominal. Se Lula puxar a situação mais um pouquinho para a esquerda, pouco importa que saia desmoralizado pelo fracasso na política econômica, no combate à pobreza etc. Sua missão estará cumprida e ele terá uma consciência tão tranqüila quanto a do próprio FHC. A lógica dos governos de transição é essa mesma: quem perde ganha.

***

A esta altura, não sei se o físico cubano Juan José Lopez Linares terá encontrado o êxito ou o fracasso na sua tentativa quixotesca de fazer-se ouvir no Fórum Social Mundial quanto ao caso de seu filho menor de idade, retido em Cuba pelo piedoso governo de Fidel Castro.

O que sei é que, quando as coisas chegam a esse ponto, quando o pai da vítima tem de ir diretamente ao entourage do algoz para pedir clemência, como Rigoletto entre os raptores de Gilda, é porque todos em volta que deveriam ajudá-lo o abandonaram.

Nem todos, é verdade. O Instituto Liberal do Rio Grande, que patrocina essa peregrinação de um desesperado, é seu último e único verdadeiro amigo.

Os demais, a mídia brasileira, a intelectualidade e os políticos, todos têm feito o possível para evitar que o caso Lopez Linares se transforme num novo episódio Elián Gonzales, maculando a imagem do regime fidelista, cuja preservação está acima da moral e dos direitos humanos. São sacerdotes do mal, unidos num ritual de salvação das aparências por meio do sacrifício de um inocente.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/01302003jt.htm

Casos pessoais  

Olavo de Carvalho Jornal da Tarde, 30 de janeiro de 2003 

Um sintoma da baixeza moral da sociedade moderna é a autoridade quase sacerdotal que nela desfrutam certos tipos aos quais todas as demais culturas, sem exceção, reservavam o último lugar na escala da respeitabilidade pública.

Refiro-me, em especial, à turma do show business: atores, atrizes, roqueiros, locutores, sambistas, modelos.

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Para um partido político, o apoio dessas criaturas é uma garantia de aprovação popular, uma fiança dada em nome da inteligência e da cultura aos chavões da retórica partidária.

Desde o advento da democracia, cada partido tem abusado desse recurso fácil, movido pela obsessão da vitória imediata e sem ter na mais mínima conta as conseqüências devastadoras que a coisa pode ter para a cultura, a moralidade e o próprio regime democrático.

Mas nenhum outro se esmerou nisso como o Partido Comunista e os filhotes que espalhou pelo mundo sob denominações variadas.

Desde os tempos de Stalin, um investimento monstruoso em dinheiro e recursos humanos fez do comunismo o senhor quase absoluto dos meios de manipular a opinião pública através da indústria de espetáculos (V. Kenneth Lloyd Billingsley, “Hollywood Party”, Prima Publishing, 1998).

Os astros e estrelas, mais que depressa, acorreram em massa a colaborar no embuste, que dava um verniz de nobreza moral às suas paixões mais vaidosas e aos seus caprichos mais fúteis. A facilidade com que se enganaram a si mesmos para poder enganar os outros evidencia a sua profunda inconsistência humana.

Os atores, por exemplo.

Embora um ator possa ser algo mais que ator, possa ser um artista em sentido pleno e até um pensador como o foram Stanislavski, Jouvet ou o nosso Eugênio Kusnet, em geral o estofo intelectual do ator fica muito abaixo disso e as únicas habilidades requeridas para o bem sucedido exercício da sua profissão residem no talento mimético e na expressividade física, dons pueris que raiam a animalidade.

Dificilmente a opinião de um indivíduo desses terá algum valor especial. Por que ouvi-lo, então, sobre as questões mais altas e difíceis, sobre o destino da humanidade, a guerra e a paz, a religião e a moral?

Não faz o menor sentido, mas tornou-se um hábito tão geral e disseminado que já ninguém contesta a autoridade insigne dos pop stars.

Os efeitos disso na cabeça deles próprios são portentosos: cada um acaba se achando mesmo um sábio, um guia iluminado das multidões, e, arrastado nessa vaidade louca, perde até o mínimo de consciência que deveria servir para o guiamento de sua conduta pessoal.

Um exemplo acaba de nos ser dado por Danny Glover, que, no Fórum Social Mundial, reagiu com a brutalidade de um autêntico zelote do comunismo ao pedido de ajuda para uma causa humanitária que lhe pareceu não convir ao seu credo político.

Há tempos o físico cubano Juan Lopez Linares, residente no Brasil, tenta um reencontro com seu filho Juan Paolo, de quatro anos, retido na ilha pelo cristianíssimo governo de Fidel Castro. Desesperado, foi ao Fórum Social Mundial, onde se encontravam tantos

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amigos do ditador cubano, no intuito de tentar sensibilizá-los para o seu drama. Quando três membros do Instituto Liberal de Porto Alegre, entidade que dava apoio à viagem de Lopez Linares, viram o astro de “Máquina Mortífera”, imaginaram que não se furtaria a colaborar num esforço cujo êxito só poderia concorrer para a boa imagem dele e do próprio regime fidelista. Glover, um brutamontes de 1m95, partiu para cima dos postulantes, com ganas de agredi-los, sendo impedido pelos seguranças e passando a exibir, aos berros, toda a ruindade dos seus sentimentos. O pai que desejava rever o filho era, no seu entender, “um egoísta”, por querer “tratar de um caso pessoal em vez de enaltecer as qualidades positivas do regime”. Claro: numa ditadura em que as crianças são ensinadas a abjurar dos pais para amar o governante, por que não deveria também um pai abandonar o filho por devoção ao regime? Essa é a moral de Danny Glover. São muitos os que em Hollywood pensam como ele. Por isso não é de estranhar que, enquanto ele faz sermões fidelistas em Porto Alegre, seu companheiro de sucesso, Mel Gibson, sofra toda sorte de discriminações e vexames, segundo denunciou na Fox News, por seu projeto de filmar os Evangelhos de maneira fiel à mensagem cristã. Glover, é claro, não está nem aí. Afinal, o problema de Gibson, como o de Lopez Linares, é apenas um “caso pessoal”.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02012003globo.htm

Cegueira dupla

Olavo de CarvalhoO Globo, 01 de fevereiro de 2003

 

O narcotráfico e a indústria dos seqüestros, na América Latina, não são "crimes comuns", no sentido de apolíticos. Muito menos são o efeito espontâneo de "problemas sociais". São atividades de guerra, coordenadas pelo mesmo movimento comunista internacional a que o sr. Luís Inácio da Silva agradeceu, sem muitos disfarces, a colaboração recebida para a sua eleição à presidência da República.

As FARC dominam quase por completo o mercado de drogas no continente, e cada seqüestro maior, rastreado, leva diretamente ao MIR chileno ou a outras organizações filiadas ao Foro de São Paulo.

Esses fatos são tão evidentes, tão abundantemente comprovados, que sua ausência no temário dos debates públicos só pode ser explicada pela cumplicidade consciente ou inconsciente da mídia e dos poderes constituídos.

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Mas isso não explica tudo. Uma longa e complexa conjunção de causas tornou os brasileiros cegos para as forças imediatas que decidem o curso do seu destino, ao mesmo tempo que hipersensíveis às miudezas diversionistas que dão assunto à tagarelice nacional. Entre o Brasil que existe e o Brasil de que se fala, nunca a distância foi tão grande.

Das causas a que aludi, duas devem ser destacadas.

De um lado, a duradoura articulação de relativismo cético e dogmatismo devoto na educação das classes letradas, orientada para neutralizar certas idéias por meio do questionamento insultuoso e manter outras a salvo de todo exame, envoltas numa aura de sacralidade intocável.

O leitor compreenderá facilmente o que quero dizer se notar que, nos círculos letrados deste país, as hipóteses mais escabrosamente pejorativas e até pornográficas a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo são aceitas com a maior naturalidade, ao passo que a mínima sugestão de alguma nódoa na pessoa moral de Antonio Gramsci ou de Che Guevara é recebida com escândalo e horror como se fosse blasfêmia. Não há exagero no que digo. As coisas são exatamente assim, e se o modo como as descrevo parece caricatura é porque a situação é caricatural em si.

Em abstrato, fé sectária e dúvida relativista são incompatíveis. Na mente fragmentária e centrífuga do brasileiro alfabetizado, coexistem sem maiores problemas, dividida a sua jurisdição em territórios estanques e incomunicáveis. O critério da divisão segue os cânones do marxismo cultural. Tudo o que pareça associado a valores tradicionais da civilização judaico-cristã deve ser dissolvido num banho ácido de suspicácia maliciosa, mesmo ao preço de ultrapassar o limite da crítica racional e entrar no terreno da difamação pura e simples. Inversamente, símbolos, chavões e imagens que apontem para o lindo futuro da utopia socialista devem ser conservados num relicário, sob a guarda de um esquadrão de zelotes que oponham à primeira investida do olhar crítico uma barreira de exclamações indignadas e lágrimas de humilhação, fazendo saber ao intruso a magnitude do sofrimento que lhes infunde com suas perguntas ímpias e observações blasfemas. Raros críticos resistem a tão contundente chantagem moral. Daí a diferença de linguagem: os sacerdotes do culto supremo podem lançar sobre seus adversários a gama inteira das invectivações ultrajantes, chamá-los de cães, de ladrões, de lacaios do imperialismo, ao passo que estes devem entrar em cena como quem penetra num santuário, limitando-se a polidas objeções teoréticas precedidas de cerimoniosas demonstrações de bom-mocismo.

A instrumentalização da cultura para fins de socialismo reduziu a atividade intelectual brasileira a um jogo simiesco de encenações e trejeitos destinados a tornar invisíveis a maldade e o crime quando a serviço da facção política hegemônica.

Daí a desconversa geral quanto ao comando político do narcotráfico e dos seqüestros. Crimes são coisas ruins, portanto a mente formada nesse tipo de cultura recusa associá-los à imagem do bem, que é idêntico ao socialismo.

A segunda causa vem de outra fonte.

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Durante os oito anos da sua gestão como presidente dos EUA, Bill Clinton fez tudo para "despolitizar" a imagem da criminalidade na América Latina, isto é, para limitar a ação repressiva à periferia das organizações criminosas, sem nunca tocar no seu centro vital.

Escorando-se na retórica triunfalista do "fim da Guerra Fria", ele ajudou o movimento comunista a fazer-se de morto para melhor assaltar o coveiro. Entre outras providências que seria longo enumerar aqui, ele amarrou as mãos do governo colombiano, condicionando toda ajuda americana a uma cláusula que só permite usá-la contra o narcotráfico enquanto tal, não contra a organização política e militar que o dirige. Resultado: as Farc, ao mesmo tempo que seu índice de popularidade na Colômbia baixava de 8 para 2 por cento, foram aceitas como representação política, cresceram até tornar-se a mais rica e poderosa força armada da América Latina e hoje dominam metade do território colombiano, onde impõem um sangrento regime comunista similar ao de Pol-Pot no Camboja.

Dizer que Clinton agiu assim por inépcia é fazer pouco da inteligência de um brilhante ex-aluno de Harvard. Mas seus motivos pouco importam. O que importa é que sua política fixou um padrão para o enfoque do problema da criminalidade na AL. Endossado pela mídia elegante dos EUA, imitado pela brasileira, impregnado assim no "senso comum" da nossa população, esse padrão pode ser resumido numa fórmula simples: é proibido investigar os mandantes do crime.

Há outros fatores, mas a associação de um hábito cultural com a legitimação vinda de uma política oficial norte-americana basta para tornar inacessível aos brasileiros, desde dois lados, a visão de uma realidade que em si é óbvia e patente. A convergência das causas na produção da cegueira dupla também não é mero acaso. Mas expor a conexão dos altos círculos clintonianos com a intelligentzia revolucionária da América Latina é tarefa demorada, que terá de ficar para outro dia.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02082003globo.htm

Cristofobia e carnaval 

Olavo de Carvalho O Globo , 8 de fevereiro de 2003 

O que foi dito na semana passada sobre a cristofobia nacional não poderia ser melhor ilustrado: na mesma edição, uma foto de capa resumia o enredo da Escola de Samba Beija-

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Flor, no qual Cristo e Satanás, trocando tiros nas ruas, eram nivelados como igualmente responsáveis pela violência carioca.

Não é preciso perguntar se mudou o carnaval ou mudamos nós.

Tempos atrás, a apoteose anual do caos ainda se apresentava como tolice inócua, palhaçada assumida. Encampada pela propaganda ideológica, tornou-se pretensiosa, arrogante, autoritária: quer ser levada a sério como alta mensagem moral, portadora da “boa nova” trazida por Lênin, Mao e Fidel. O enredo da Beija-Flor é exteriorização popularesca da “teologia da libertação”.

A verdadeira índole dessa teologia é difícil de esconder. Não pode haver mais óbvia perversão da mensagem de Cristo do que fazer o impulso mesmo da bondade cristã trabalhar em favor da ideologia que professou varrer o cristianismo da face da terra junto com os cadáveres de milhões de cristãos.

Ser um teólogo da libertação não é brincadeira. A dose de mentira interior requerida para um cristão batizado consentir em participar de uma operação dessa ordem é tão grande, que a simples ruindade humana não pode explicá-la. Quem matou a charada foi um estudioso judeu, David Horowitz: “A teologia da libertação é uma seita satânica.”

A palavra mesma “libertação” sofre nela uma deformação semântica que ninguém poderia operar sem pelo menos um pouco de satanismo consciente. Cristo oferece libertar-nos do mal e do pecado. “Não faço o bem que quero, faço o mal que não quero”, geme o Apóstolo. Cristo veio dar-nos a graça iluminante que nos permite discernir o mal do bem e a graça santificante que nos faz apegar-nos ao bem até mesmo quando queremos o mal. Esse é o sentido da libertação cristã, claríssimo e insofismável nos Evangelhos. Os Boffs e Bettos mudam o sentido do anseio cristão, transformando-o num desejo de “libertar-se” dos obstáculos morais e religiosos à ascensão do comunismo. Se esses obstáculos tomam a forma de sacerdotes e fiéis refratários à doutrina comunista, a libertação pode ser alcançada por meio de prisão, fuzilamento ou tortura em massa.

O simples enunciado dessa doutrina é um crime, sua risonha aceitação mundana um sinal de perda completa do discernimento moral por parte dos homens cultos.

Quem deseje provar que a teologia da libertação é uma caricatura grotesca, um produto marcado com a griffe inconfundível do “macaco de Deus”, não poderá fazê-lo melhor do que Leonardo Boff quando escreve: “As raízes históricas da teologia da libertação encontram-se na tradição profética de evangelistas e missionários dos primeiros tempos coloniais na América Latina, que questionaram o tipo de presença adotada pela Igreja.” Boff aponta, como fundador dessa linhagem, Frei Bartolomé de las Casas, inventor da “leyenda negra” que descreve a ocupação do México como um crime de genocídio praticado pela Igreja contra os índios. Repetida infindavelmente pela propaganda anticristã, acabou por se tornar verdade oficial.

Mas a história contada pelo frade é quase a inversão exata da realidade. Já não é possível sustentá-la depois que a historiadora Inga Clendinnen, em “Aztecs: an interpretation”

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(Cambridge University Press), cotejou todos os depoimentos que restaram de testemunhas oculares. Em primeiro lugar, o morticínio mal chegou a ombrear-se, em quantidade de vítimas, ao número das que antes disso foram sacrificadas e tiveram o seu coração arrancado em matanças rituais que, literalmente, lambuzavam de sangue a população de Tenochtitlan. A extinção da cultura asteca só pode ser considerada um crime caso o mesmo rótulo se aplique à destruição do nazismo. Em segundo lugar, a matança dos vencidos não foi obra dos espanhóis, e sim dos índios das tribos vizinhas, ansiosos para vingar-se de um cruel dominador que ciclicamente devastava suas cidades em busca de vítimas sacrificiais para seu culto macabro. Eles acharam que só estariam livres do pesadelo se matassem até o último asteca — e o fizeram, contra a vontade expressa de Hernán Cortez. Em terceiro lugar, mesmo que o supuséssemos culpado de tudo, Cortez, um aventureiro que ali chegou por decisão pessoal, contra as ordens de seus superiores, não era sequer representante do governo espanhol. Fazer dele, então, um representante da Igreja é o cúmulo do associativismo forçado.

Mas Frei Bartolomé não se contenta em transformar a tardia reação das vítimas num ato de opressão colonialista. Inventando um tipo de raciocínio que no século XX será repassado às crianças de escola sob a rósea denominação de “diversidade cultural”, ele justifica moralmente a prática dos sacrifícios humanos nos cultos astecas, equiparando-a ao rito cristão da Eucaristia. Bem, se meus pais soubessem que eu corria o risco de ter meu coração arrancado, jamais teriam me enviado à primeira comunhão. Mas, do ponto de vista bartolomaico, a diferença entre morrer pelos amigos e matá-los a sangue frio é um detalhe irrelevante.

Tal é a “tradição profética” da qual Boff, orgulhosamente, se diz herdeiro e representante. Quem sou eu para discordar? Deixando pois de lado as teologias macabras, retorno ao carnaval e, em busca de ar puro, voto antecipadamente na Mangueira, que vai sair de “Moisés e os Dez Mandamentos”.

***

Dicas de leitura: Violência sem retoque, de Ib Teixeira, é a mais sólida exposição de conjunto que alguém já fez sobre a criminalidade no Brasil. E o melhor romance brasileiro que li nos últimos anos é Braz, Quincas & Cia., de Antônio Fernando Borges.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02092003zh.htm

 A felicidade geral da nação 

Olavo de Carvalho Zero Hora, 9 de fevereiro de 2003 

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Dias antes da eleição do senhor Luiz Inácio para a presidência, escrevi que, no cargo, ele não poderia combater o narcotráfico sem desagradar a seus amigos das Farc, nem deixar de combatê-lo sem desagradar ao Brasil inteiro.

Santa ingenuidade! Naqueles dias já circulava entre os intelectuais de esquerda a solução do dilema, só invisível aos tacanhos reacionários como eu.

Tratava-se, simplesmente, de liberar o uso de drogas. O tráfico passaria a ser um comércio legal, decente, benéfico aos cofres públicos, seja por efetuar-se sob o comando do próprio Estado, seja pelos impostos, naturalmente altíssimos, que o empresariado viesse a pagar pelo requintado privilégio de drogar a nação.

Pó e baseados entrariam com guia de importação, em embalagens douradas com mensagem social em letras azuis e uma grave advertência do Ministério da Saúde: "Isto endoida."

Sob as penas da lei, o distribuidor estaria obrigado a pagar em dia seus fornecedores, e o miserável dinheirinho que hoje rola por baixo do pano para as Farc seria multiplicado por dez ou cem, saindo em plena luz do dia em malotes do Banco do Brasil, sob a vigilância severa da Receita Federal. O doutor Palocci, que na sua cidade natal viu frustradas suas tentativas de ser o Papai Noel das Farc em escala municipal, teria uma revanche de proporções federais.

Uma parte substantiva dos lucros seria destinada ao Fome Zero, podendo os beneficiados gastá-la de volta, se o desejassem, em maconha e coca, que eliminando alguns esfomeados ajudariam a eliminar a fome.

Legalizado, o comércio da insanidade em pó ou em folhas conquistaria novas fatias do mercado, atualmente inibidas pelos riscos de subir o Morro Dona Marta de táxi, às três da madrugada, cruzando a cada esquina com um segurança de 12 anos armado de metralhadora Uzi.

A rede de distribuidores ilegais teria se tornado inútil e, da noite para o dia, suas organizações criminosas desabariam como castelos de cartas. Os Fernandinhos que hoje aterrorizam o país seriam trancafiados e obrigados a tricotar roupinhas para as crianças pobres, enquanto suas vagas na hierarquia do narcotráfico seriam ocupadas por burocratas inofensivos, selecionados em concurso público. As autoridades, triunfantes, proclamariam na TV: "Conosco é na dureza. Lugar de bandido é na cadeia." Findo o programa, iriam comemorar a vitória contra o crime dando uma cafungadinha no posto de distribuição mais próximo.

As únicas drogas proibidas que restariam para o comércio ilícito seriam Viagra falsificado, xarope para tosse e cola de sapateiro. Sem o dinheiro da Colômbia para repartir, os poucos

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remanescentes das gangues extintas não trocariam mais tiros em disputas territoriais e voltariam a ocupações razoáveis, como assaltos à mão armada, seqüestros de banqueiros e prostituição de menores.

À noite, o silêncio nas ruas anunciaria que a paz da província voltara a reinar sobre as capitais. E o senhor Luiz Inácio seria celebrado como o mais sábio estadista brasileiro de todos os tempos. Bastaria, para isso, que consentisse em tornar-se o maior narcotraficante do universo. Não é lindo?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02152003globo.htm

Relendo Nietzsche

Olavo de CarvalhoO Globo, 15 de fevereiro de 2003

 

Do fenômeno que denomino paralaxe conceitual -- o deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da perspectiva existencial concreta do pensador --, os exemplos são tantos, nos últimos séculos, que não me parece exagerado ver nele o traço mais geral e permanente do pensamento moderno. As idéias tornam-se aí a racionalização ficcional com que um intelectual se esforça para camuflar, legitimar ou mesmo impor como lei universal sua inaptidão de se conhecer, de arcar com suas responsabilidades morais, de se posicionar como homem perante a vida.

Nas culturas européias ou mesmo nos EUA, esse impacto alienante é amortecido pela barreira residual da tradição cristã e clássica. Mas, num país como o Brasil, psicologicamente indefeso entre os muros de geléia de uma cultura verbosa e superficial, qualquer autor que faça algum barulho no mundo adquire as dimensões de uma potência demiúrgica, cultuada com temor reverencial. Suas mais gritantes fragilidades passam despercebidas, e qualquer tentativa de apontá-las é condenada como pretensão megalômana ou insolência blasfema.

Um caso particularmente desesperador é Friedrich Nietzsche, a quem tantos neste país veneram, talvez porque nele encontrem algo como um monumento à sua própria alienação.

Outro dia, conversando com uma amiga antropóloga, ela me lembrou que em certa época recente, na USP, ninguém no seu departamento era aceito como gente grande se não soubesse classificar na ponta da língua os fenômenos culturais em apolíneos e dionisíacos -- uma distinção nietzscheana a que o livro de Ruth Benedict, “Padrões de Cultura”, dera foros de critério científico.

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Vamos ver quanto vale essa distinção?

Em “A Origem da Tragédia”, Apolo, deus da luz e da ordem cósmica, é o senhor das aparências, do universo visível. Dionísio, caos e turvação, é causa e origem, é a realidade tenebrosa e fecunda por baixo do véu apolíneo. Assim diz Nietzsche, mas no mundo real as coisas às vezes são assim, às vezes não. Às vezes, é a aparência caótica dos fenômenos que oculta uma ordem profunda, a qual escapa ao comum dos mortais mas se revela aos olhos claros daqueles que Schiller denominava “filhos de Júpiter”. De fato, o contraste Apolo-Dionísio expressa, no mito grego, a tensão dinâmica entre os polos do caos e da ordem, da aparência e da realidade, em contínua rotação e intercâmbio no quadro do mundo. A compreensão de todo simbolismo mitológico ou religioso depende de um certo senso das inversões. Um símbolo, por definição, não tem sentido unívoco, podendo sempre transfigurar-se em seu contrário, conforme a esfera de ser a que se aplique num contexto dado. Por isto e só por isto tem força evocativa e geradora, não cabendo aprisionar na moldura de um conceito fixo aquilo que é antes, na feliz expressão de Susanne K. Langer, uma “matriz de intelecções possíveis”. Ao identificar de maneira estática a ordem com superfície, o caos com profundidade, Nietzsche eliminou artificialmente a tensão, congelando os opostos em papéis imutáveis. Degradou o símbolo em estereótipo. Transmutou o ouro em chumbo.

O pior é que ele cai nessa justamente no momento em que está protestando contra o racionalismo e clamando pela volta dos mitos como força renovadora da civilização. Neutralizar as inversões tensionais, prendendo os pares de opostos na grade fixa de uma correspondência biunívoca, é o suprassumo do racionalismo esterilizante. No caso, totalmente involuntário. Nietzsche simplesmente não entendia o que estava fazendo.

Abominando a dialética, preferindo à busca das sínteses a ostentação espalhafatosa das oposições estáticas, mas ao mesmo tempo querendo cavar efeitos de linguagem no vocabulário da simbólica tradicional, no qual nada pode opor-se definitivamente a nada porque tudo aí são aparências em incessante metamorfose, o que ele fez foi uma metafísica grosseiramente linear camuflada sob um manto de símbolos falsificados. E nestes o leitor então projeta as mais lindas sutilezas dialéticas que, é claro, não estão lá. Confunde o Apolo e o Dionísio do mito grego com os de Nietzsche, o símbolo com o estereótipo, e vê neste as profundidades daquele. Melhor para Nietzsche, pior para o leitor.

Mas a substancialização fetichista dos opostos é somente um dos vários cacoetes mentais que, no autor de “Zaratustra”, buscam suprir a falta de autêntica intuição filosófica. Pior é este: ele confunde a reiteração enfática de um acidente com a definição de uma essência, e então sai disparando deduções daí obtidas pela via de um conseqüencialismo furiosamente mecânico. Assim ele transforma os problemas mais banais em dilemas insolúveis que lhe parecem tragédias, sem perceber que uma tragédia fabricada na base do hiperbolismo verbal não é tragédia, é farsa.

Em “A Gaia Ciência”, após mostrar que em muito do que o homem faz está presente o instinto de sobrevivência, ele conclui que esse instinto é “a essência” (sic) do bicho homem, e então reduz todas as demais qualidades humanas a disfarces do instinto de sobrevivência. Mas esse instinto, sendo comum a todas as espécies animais, não pode ser essência de

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nenhuma delas em particular. Se o fosse, nas demais teria de ser mera propriedade ou acidente, o que resultaria em afirmar que só uma espécie sobrevive por instinto, as outras apenas por hábito, por acaso ou talvez por frescura. Não é preciso dizer que elas não concordam com essa tese de maneira alguma.

O melhor em Nietzche são as notas de psicologia pejorativa, que ele extrai da observação de si mesmo mas em seguida projeta, com autoconfiança adolescente, em Sócrates, em Jesus Cristo, na humanidade inteira. O ressentimento do doente contra as pessoas saudáveis é uma delas. Mas por que esse diagnóstico deveria aplicar-se antes a Sócrates, velho soldado robusto, do que ao próprio Nietzsche, paciente crônico que mal se levantava da cama?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02222003globo.htm

A cabeça da direita

Olavo de CarvalhoO Globo, 22 de fevereiro de 2003

 

Dois colegas que muito aprecio, Merval Pereira e Luís Nassif, publicaram recentemente artigos de importância vital que não parecem ter algo a ver um com o outro, mas têm.

Merval, em O Globo do dia 16, faz votos de que a “direita” brasileira desista de viver de esmolas da esquerda e assuma posição própria. Só com uma direita e uma esquerda assumidas e conscientes, diz ele, pode haver democracia de verdade.

Nassif, na Folha do dia 15, denuncia que o dr. Roberto Amaral demite cientistas do seu ministério por pura discriminação ideológica: “Estão sendo demitidos profissionais de alto nível, suspeitos de ser ‘neoliberais’.”

A análise de Merval é perfeita. No regime militar, havia eleições, o parlamento funcionava. Por que, então, não havia democracia? Não havia democracia porque a oposição não tinha vida própria, era um apêndice do governo. E aí tudo ficava demasiado confortável para os de cima.

Mas a esquerda petista logrou criar para si uma situação igualmente confortável antes mesmo de chegar ao governo. Neutralizando uma a uma as lideranças direitistas por meio de denúncias chocantes, que nunca precisam ser comprovadas para produzir seu efeito politicamente letal, chegou às eleições sem ter adversários senão de fachada, dois dos quais seus associados no Foro de São Paulo e um terceiro que só lhe fazia concorrência na

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ostentação de fervor esquerdista. A farsa grotesca deixou constrangido até o líder comunista italiano, Massimo d’Alema, que, em visita ao Brasil, perplexo indagava: “Aqui não existe direita?” A resposta que um esquerdista sincero lhe daria é: “Existe de fato, mas não de direito. Tem a existência provisória de um crime impune, que sobrevive dos cochilos da lei, tentando desesperadamente cavar um lugarzinho na sociedade decente por meio do adesismo e da lisonja.”

Se a direita não levantar a cabeça até ombreá-la com a da esquerda, nossa democracia será somente um disfarce da onipotência esquerdista como o bipartidarismo de 1964 foi um disfarce do poder militar. Merval enxerga sinais de revigoramento da direita e, sem ser um direitista ele próprio, pressente nisso um bom augúrio. A democracia, com efeito, depende essencialmente de homens que sobreponham a integridade do sistema às ambições de seus partidos.

O problema é: quantos desses homens existem na elite esquerdista que nos governa? Respondo sem hesitação: nenhum. O espírito do partido triunfante foi resumido na lamentação do guru presidencial, Frei Betto: “Só conquistamos o governo; não o poder.”

O PT não é nem foi jamais um partido normal, disposto a alternar-se no governo com os concorrentes direitistas. É um partido totalitário, para o qual o governo é só uma etapa em direção ao socialismo, do qual, por definição, qualquer direita capitalista estará excluída para sempre. Ele não concebe a “democracia” senão como absolutismo esquerdista sustentado na massa de militantes enfurecidos e legitimado pela completa hegemonia sobre a cultura, a educação e a mídia.

E é aí que entra Luís Nassif. Um governo que posa de democrático enquanto destrói a elite científica por meio da perseguição ideológica é, com toda a evidência, um governo de duas caras -- e não é preciso ser muito esperto para perceber qual delas é a verdadeira. Se as demissões atingissem gente da esquerda, a mídia, a intelectualidade e a universidade em peso se levantariam para protestar, com justa razão, e ninguém poria em dúvida a gravidade do ocorrido. Sendo as vítimas “neoliberais”, nem elas mesmas terão a ousadia de reclamar. Farão como os familiares de vítimas do terrorismo, que preferem calar-se, intimidados, fazendo de conta que não doeu. E o resto do país se omitirá também, para não perturbar a “festa da democracia”.

A lógica da situação não poderia ser mais clara. Conforme o próprio presidente da República admitiu em off ao Le Monde e o sr. Marco Aurélio Garcia proclamou a La Nación, cada concessão aparente, cada acomodação de superfície, cada sorriso “light” que o presente governo atire como migalhas aos tolos esperançosos ou como anestésico aos investidores estrangeiros é somente recuo tático numa estratégia destinada a seguir implacavelmente o rumo traçado pelo Foro de São Paulo. Esse rumo é idêntico, em essência, ao de Hugo Chávez: política econômica bem comportadinha para evitar conflitos na área externa, enquanto se sufoca a oposição interna e se articula a “tomada do poder”. Hipnotizado pela controvérsia econômica, o público nem repara no detalhe, muito mais significativo, da discriminação ideológica que sorrateiramente vai entrando na rotina normal de governo como já tinha entrado na da mídia e das universidades. Muito menos repara na coincidência entre o destino dos cientistas demitidos e a simultânea tempestade

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de acusações contra o sr. Antonio Carlos Magalhães, jogado aos leões por ter cometido meia dúzia de vezes o crime de espionagem política que a esquerda pratica impunemente, todos os dias, desde há vinte anos.

A direita fisiológica imaginou que, bajulando o dominador, ganharia tempo para recompor-se e derrotá-lo um dia. Ledo engano. Se fora do governo a esquerda já logrou reduzir os Magalhães e os Malufs ao mais humilhante servilismo, no governo não descansará enquanto não os atirar à completa impotência e marginalidade. Não dou dois anos para que cada um deles, culpado ou inocente, esteja na cadeia, no exílio ou no mais profundo esquecimento. Para haver democracia, é preciso que a direita levante a cabeça. Mas o governo, com a ajuda da mídia, vai decepá-la antes disso.

***

Dizem que Lula é um símbolo das virtudes do povo brasileiro. Não é não. Símbolo é Evando dos Santos, o pedreiro que aprendeu a ler na Bíblia, adquiriu sólida cultura autodidática, juntou livros e hoje espalha bibliotecas populares pelo Brasil, continuando tão pobre quanto sempre. Escreverei mais sobre ele um dia desses.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/02272003jt.htm

Parceiros de Saddam

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 27 de fevereiro de 2003

 

Os países que mais oferecem resistência aos EUA têm uma boa razão para fazê-lo, já que são também os maiores fornecedores de armas a Saddam Hussein. Um resumo da lista de compras feita em Moscou, Paris e Berlim pode ser lido em http://www.newsmax.com/archives/articles/2003/2/13/134858.shtml. A Alemanha é a fonte essencial de tecnologia atômica para o Iraque, onde a França, por seu lado, tem alguns de seus principais investimentos. A Rússia tem 4 bilhões de dólares a receber por armas fornecidas ao Iraque e já sente a dor no bolso ante a eventual queda de Saddam.

Nada disso sai na nossa mídia. Também não se lê uma palavra sobre o financiamento das organizações de fachada que promovem passeatas “pacifistas” em 500 cidades do mundo. Se quiser informar-se a respeito, leia http://www.oexpressionista.com.br/reportagem_especial/ e dê graças aos céus de que exista a internet.

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Em compensação, pululam nos jornais brasileiros denúncias de que foram os próprios americanos que “deram armas químicas ao Iraque”, na guerra com o Irã, sem que um só dos indignados denunciantes se lembre de informar que, na época, as substâncias usadas para o fabrico dessas armas não eram sequer fiscalizadas: a compra foi feita tranqüilamente em nome da Universidade de Bagdá por um pedido direto aos fornecedores. O caso é similar ao dos componentes de armas atômicas adquiridos livremente no mercado americano por estatais chinesas. Todas as forças anti-americanas no mundo se utilizam desse duplo engodo: por meio do abuso de confiança obtêm dos EUA os meios de fazer o mal e em seguida culpam o governo americano pelo mal que fazem. A primeira parte da operação é realizada por espiões travestidos de comerciantes; a segunda, por agentes de influência espalhados na mídia e no show business. Para qualquer serviço secreto de governo totalitário, a articulação entre estratégia militar e desinformação maciça é um princípio elementar de trabalho, mas a população em geral opõe a qualquer notícia sobre o assunto a obstinada resistência da incredulidade caipira, preferindo dar crédito integral a invencionices patéticas do gênero Oliver Stone.

Na mesma linha de desinformação geral, a ONU é tratada como se fosse o templo dos bons sentimentos, planando divinamente acima das vis ambições humanas, e não um poder político dotado de fins e interesses próprios, os mais avassaladoramente imperialistas que a humanidade já conheceu. Quem quiser saber algo a respeito terá de buscá-lo em livros, como La Face Cachée de l’ONU (Paris, Sarment, 2002), de Michel A. Schooyans, L’Empire écologique ou la Subversion de l’Écologie par le Mondialisme, de Pascal Bernardin (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), e The Fearful Master, de E. Edward Griffin, que pode ser descarregado do site http://www.getusout.org/resources/fearful_master/.

A ONU é hoje o centro irradiante da estratégia anti-americana global, especialmente por meio das “redes” de ONGs que subsidia. Uma explicação breve mas precisa sobre o funcionamento delas foi dada por um tarimbado agente comunista, José Luiz Del Royo -- que conheci nos meus tempos de militância --, e pode ser lida em http://www.cubdest.org/0306/gfsm03redp.html. Por essas redes circula o poder comunista no mundo, acionando movimentos de massa e campanhas de imprensa em questão de horas, em todos os continentes, ludibriando o público com uma impressão de unanimidade espontânea.

Praticamente não há discussão na ONU que não tenha sido longamente preparada através das redes. Um caso bem visível foi a célebre conferência de Durban, a que EUA e Israel compareceram sem saber que o palco já estava montado para uma condenação geral ao sionismo. Até a véspera, o consenso mundial estava persuadido daquilo que dizia Martin Luther King: que anti-sionismo era apenas uma denominação elegante do anti-semitismo. De repente, do nada, a opinião abominável aparecia subscrita e aprovada, oficialmente, por representantes de todos os países exceto dois. Era o milagre das “redes”.

Especialmente assombroso é o que se passa na nossa Amazônia, onde praticamente todas as ONGs indigenistas e ecológicas empenhadas em violar a soberania nacional são tentáculos da ONU e, não obstante, qualquer denúncia contra elas aparece na mídia com tons escandalosamente anti-americanos, imputando à vítima as culpas de seus algozes.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/03012003globo.htm

O guru que o Brasil merece

Olavo de CarvalhoO Globo, 01 de março de 2003

 

O sr. István Mészáros aparece com tanta freqüência nas nossas televisões, que se diria ser um roqueiro ou pornostar, não fosse pela atmosfera de reverência sacral que o cerca nessas ocasiões, a qual sugere tratar-se de um sábio, de um luminar da ciência. Lendo dois de seus livros, no entanto, verificamos que ele não é nem aquilo, nem isto: é apenas mais um comunista empenhado em apostar, como todos os comunistas desde 1848, que o capitalismo vai morrer antes dele.

Já observei que o sr. Mészáros, tão inclinado a analisar a condição econômico-social dos outros, ignora a sua própria, de vez que, pertencendo à mais vasta classe ociosa de todos os tempos -- a intelectualidade acadêmica do Ocidente capitalista --, nega a existência dela ao proclamar que o capitalismo obriga todo mundo, sem exceção, a “produzir ou perecer”.

Isso faz dele um caso extremo de paralaxe conceitual: desenhando o quadro do mundo desde um ponto de vista que não coincide em nada com o do seu próprio posto de observação no planeta Terra, ele se desvencilha da incômoda obrigação de dar à sua teoria o reforço do testemunho pessoal. Quem quiser, pois, que acredite nela: ele não.

Sua obra magna, Para Além do Capital (Boitempo, 2002) é extensa demais para ser comentada aqui, mas mesmo o breve O Século XXI. Socialismo ou Barbárie? (idem, 2003) é tão recheado de intrujices que desmontá-las uma a uma requereria um volume das proporções daquela. O autor prossegue, nisso, a tradição da propaganda soviética, que espalhava no ar uma quantidade tal de mentiras que só uma organização concorrente do tamanho da KGB, com 500 mil funcionários e milhões de colaboradores, poderia dar conta do trabalho de desmascará-las. Como nenhum Estado democrático pensaria em criar semelhante monstruosidade, o exame crítico da propaganda comunista acabou sempre se limitando à amostragem estatística, deixando no ar a suspeita crônica de que entre as mentiras não examinadas talvez pudesse restar alguma verdade. Daí à conclusão de que eram mesmo verdades, o passo era bem curto. Os pensadores comunistas tornaram-se assim essa extravagância viva: sua fama literária vem principalmente daquelas partes da sua obra que mal chegaram a ser lidas. Como o sr. Mészáros está rigorosamente nesse caso, sua reputação pode-se considerar bem garantida no país onde menos se lê no mundo.

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Esse homem mente tanto, e com tal velocidade, que não é possível um cérebro normal acompanhar-lhe o passo. Desisto pois do exame extensivo que ele mereceria, e dou como amostra singela -- e, admito, inútil -- a primeira página e meia do seu livreto, onde com dois golpes rápidos o senso crítico do leitor já é posto a nocaute, nada mais lhe cabendo fazer nas páginas subseqüentes senão receber o restante das pancadas em estado de perfeita inconsciência.

Tomando por pressuposto auto-evidente o chavão de praxe que rotula de “agressiva” a política externa americana (um qualificativo que não deixa de ser engraçado quando se sabe que as maiores agressões imperialistas das últimas décadas foram a da URSS no Afeganistão e a da China no arquipacífico Tibete, totalizando dois milhões de mortos, mais do que os EUA fizeram ao longo de todo um século), o sr. Mészáros informa que a coisa não começou no 11 de setembro, pois “Clinton adotava as mesmas políticas que seu sucessor republicano”. A maravilha das maravilhas, no estilo comunista de agir, é a desenvoltura com que se serve dos políticos da esquerda soft e depois distribui as cusparadas de ódio equitativamente entre eles e os mais inflamados anticomunistas. Clinton, eleito com verbas de propaganda chinesas, facilitou o acesso da China a armas e segredos atômicos, bloqueou investigações antiterroristas e amarrou as mãos do governo colombiano para que, reprimindo o narcotráfico, não tocasse nas Farc -- com o resultado de que estas abocanharam a herança dos cartéis desmantelados e se tornaram o mais temível poder militar da América Latina, com um orçamento superior ao de todas as forças armadas do continente somadas. Feito o serviço, o homem se tornou desnecessário e está pronto para ser jogado na lata de lixo -- e não se pode dizer que isso seja de todo injusto, pois o destino dos traidores é ser desprezados em doses iguais por suas vítimas e seus mandantes. Quando Mészáros o acusa, pois, do contrário do que fez, há nisso aquela espécie de justiça poética que só um mentiroso pode fazer a outro.

Mal virada a página, o sr. Mészáros proclama que “a adoção da aterrorizante ameaça nuclear final tornou-se a política oficial americana amplamente professada”. É interessante ler isso poucos dias depois do anúncio do governo da Coréia do Norte, de que qualquer ataque à sua nova usina atômica, mesmo feito com armas convencionais, será respondido imediatamente com “um ataque nuclear de larga escala” (UPI, 6 de fevereiro). Mais elucidativo ainda é confrontar as palavras de Mészáros com o fato de que os EUA reduziram drasticamente seus estoques de armas nucleares enquanto a China decuplicava os seus. A lógica da argumentação comunista é mesmo essa: se os EUA professam abster-se de empregar bombas atômicas e tentam provar sua boa-fé livrando-se delas, isso prova sua intenção de usá-las o quanto antes; se um país comunista as acumula e berra que vai usá-las na primeira oportunidade, isto prova que é inofensivo e amante da paz. Disto eu já sabia aos quinze anos de idade, mas as novas gerações sempre podem necessitar de um Mészáros para as ensinar a pensar segundo a “linha justa” do velho Partidão.

É só uma pagininha e meia, mas o resto do livro é igual. O sr. Mészáros não tem o menor respeito pela realidade e só sabe raciocinar na clave da mentira hiperbólica que se tornou o estilo oficial do pensamento brasileiro. É o guru que este país merece. Por isto tem sua presença garantida no horário nobre, entre roqueiros e pornostars.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/03032003fsp.htm

Requerimento

Olavo de CarvalhoFolha de S. Paulo, 03 de março de 2003

 

Exmo. sr . Luiz Inácio da Silva, dias atrás recebi de um admirador seu a proposta de uma solução final para o problema Olavo de Carvalho. "Quem sabe uma sessão de tortura", insinuava gentilmente o destinatário, passando em seguida à descrição técnica do procedimento, com detalhes de ordem fisiológica que não devo reproduzir diante das senhoras aqui presentes.

Se a curiosidade de V. Exª. for muita, posso enviar um "forward" ao Palácio do Planalto, ou então V. Exª. talvez queira pedir informações suplementares diretamente ao signatário, [email protected], endereço que deploravelmente suponho ser falso. Qualquer que seja o caso, o fato é que recebo dúzias e dúzias dessas coisas, assinadas por militantes ou simpatizantes petistas.

Outros não se contentam com enviá-las a mim: publicam-nas na internet. No site CMI encontrei esta: "Mate o Olavo de Carvalho. Você estará contribuindo para fazer uma humanidade mais feliz". V. Exª. há de admitir que essa solução é muito mais definitiva que a anterior.

Mas, em geral, os remetentes, zelosos, não se limitam aos insultos, ameaças de morte e promessas de torturas indescritíveis. Espalham invencionices escabrosas a meu respeito, especialmente a de que sou agente a soldo de tais ou quais grupos financeiros, serviços secretos ou movimentos políticos internacionais. Para dar-lhes um ar de credibilidade, falsificam mensagens em meu nome com repugnante conteúdo racista e fascista e enviam-nas a sites de discussão, onde funcionam como provas cabais da minha maldade e incitam as massas a dar cabo de tão abominável criatura.

Não faz três meses que V. Exª. botou o sr. André Singer para rastrear e punir quem espalhasse coisas ruins a seu respeito, o que mostra que se preocupa com elas. Voltada contra o cidadão comum, sem partido ou organização que o proteja, sem recursos financeiros para defender-se de tantos ataques simultâneos, similar onda de maledicências é incomparavelmente mais devastadora. E as mensagens contra mim são bem mais ferozes que as piadinhas que despertaram os instintos justiceiros do sr. Singer.

O mais lindo, porém, é o lado moral. Nada evidencia melhor a índole de uma facção política do que a conduta coletiva de seus adeptos. O fato de que tantos deles se prestem a

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tomar parte nesse bombardeio de infâmias é a melhor ilustração da mentalidade socialista ou esquerdista, que quanto mais se afunda na iniquidade mais se enaltece e se beatifica, proclamando servir à humanidade e até a Deus. As coisas são assim desde que Lênin decretou que os fins justificam os meios, omitindo-se de esclarecer que os meios são causa eficiente dos fins e portanto os determinam.

V. Exª. buscará talvez minimizar o caso, alegando que a hostilidade insana provém do excesso de zelo de uns tipinhos obscuros, cuja conduta em nada reflete o espírito dos altos círculos de esquerda neste país.

Mas, Exª., não é nada disso. O estímulo, a incitação e mesmo o conteúdo essencial da massa de difamações atiradas contra mim não partiram de nenhum anarquista de porão, mas de notáveis representantes da política e do pensamento petistas, inclusive dois colaboradores ministeriais de V. Exª. Milhares de joões-ninguém não ousariam sair cuspindo num escritor que mal conhecem, se não tivessem a respaldá-los o precedente aberto pelas celebridades.

As premissas das quais essas mensagens truculentas são a conclusão inevitável foram lançadas na mídia pelos srs. José Dirceu, Luiz Eduardo Soares, Emir Sader, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, entre outros. Foram eles que, inaptos a contestar racionalmente minhas opiniões, inauguraram o apelo geral à difamação grossa, pondo em circulação a lenda de que "represento" tais ou quais organizações ou grupos que, na verdade, ignoro ou desprezo. Dirá V. Exª. que Soares e Dirceu, Sader, Coutinho e Konder são joões-ninguém?

Pois foram eles que, com suas palavras levianas, legitimaram a troca do meu rosto autêntico por um estereótipo asqueroso, deslanchando a enxurrada de ódio irracional que desde então não cessa de entupir meu computador e infernizar minha existência. Tudo o que disseram a meu respeito está documentado, ao alcance do público, no meu livro "O Imbecil Coletivo" e no meu site, www.olavodecarvalho.org.

Partindo das premissas que eles lançaram, a arraia-miúda partidária é inevitavelmente levada a enxergar, em mim, não um homem de carne e osso com quem se deve discutir, mas uma força política impessoal, temível e maquiavélica, que deve ser destruída a qualquer preço e contra a qual vale tudo. E as mensagens de cima não deram aos de baixo só o conteúdo das mentiras, mas o exemplo legitimador de um estilo de luta que, se aceito pelos mais célebres, deve ser bom também para os pequenos e anônimos.

Não tendo eu cargo público do qual possa ser expelido nem mandato do qual possa sofrer impeachment, o que é que essa campanha visa destruir, senão as garantias para o desempenho de minhas tarefas de jornalista e escritor e a possibilidade mesma de minha existência na sociedade brasileira? E quem lucra com isso, sr. presidente, senão o seu partido e a sua pessoa? Quem, sobre essa base de infâmia e calúnia, ergue bem alto sua imagem de probidade, pureza e quase santidade?

Solicito, pois, a V. Exª. que faça saber a seus adeptos e admiradores que a preservação da boa imagem, tal como a liberdade de constrangimentos e ameaças, é direito constitucional

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de todos os brasileiros -inclusive eu, por incrível que isso pareça a alguns-, e não somente de V. Exª. e deles próprios.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030308globo.htm

Os minutos finais de um justo

Olavo de CarvalhoO Globo, 08 de março de 2003

 

Que as Farc são uma organização terrorista; que vivem do narcotráfico; que são o principal fornecedor de cocaína para o mercado nacional e muito provavelmente também de know how bélico para as gangues que dominam o Rio de Janeiro -- são coisas que nenhum cidadão brasileiro pode razoavelmente ignorar.

Se, não obstante, o sr. presidente da República professa ignorá-las, ele o faz com a elevada intenção de não tomar partido numa disputa em que se oferece gentilmente para servir de árbitro. É por isso que, contrariando a solicitação de seu colega colombiano Álvaro Uribe, ele se recusa a chamar de terrorista uma organização terrorista. Arbitragens supõem neutralidade, e o nosso presidente não quer manchar a sua. Quer planar, como Deus no Juízo Final, au dessus de la mêlée.

Pelo menos é o que ele alega, imaginando assim salvar as aparências. Mas não salva nada, só pinta de dourado as grades da arapuca em que se meteu. Pois, se para manter-se neutro ele não pode sequer dizer uma palavrinha contra as Farc, muito menos pode agir contra elas, por mais que saiba do mal que estão fazendo a este país. Para merecer o estatuto de juiz idôneo, deve abster-se de optar não somente entre a Colômbia e as Farc, mas entre estas e o Brasil. E um presidente que alardeasse neutralidade entre seu povo e os narcotraficantes que o destroem seria nada mais, nada menos que um traidor. Não digo que Lula o seja efetivamente. No momento em que escrevo, ainda pode haver dúvida quanto ao que ele vai dizer ao presidente Uribe. Mas, se aí ele insistir que é neutro, terá declarado que não está do lado do Brasil.

No entanto, por baixo dessa dúvida há uma certeza: sua afetação de neutralidade não é sincera e ele sabe que não é. Em dezembro de 2001, como presidente do Foro de São Paulo, reencarnação latino-americana do Comintern, ele assinou um manifesto em que tomava partido das Farc, prometia a elas sua solidariedade incondicional e chamava de terrorista, em vez da organização guerrilheira, o governo da Colômbia.

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Ele nunca abjurou de sua assinatura nesse documento obsceno, nem mesmo quando, nestes artigos, assinalei que ela comprometia irreparavelmente a idoneidade da sua candidatura e a confiabilidade de suas promessas de combater o narcotráfico. Amortecida pela mídia a revelação da existência do manifesto fatídico, a candidatura de S. Excia. saiu ilesa e vencedora. Mas as promessas morreram no berço. Tão falecidas se encontram, que aquele que as fez não pode, contra os beneficiários maiores do narcotráfico no Brasil, dizer sequer uma palavrinha mais dura. Tal como anunciei repetidamente e em vão, nosso governante máximo, cuja disposição pessoal de lutar contra o crime não ponho em dúvida, está com as mãos amarradas e a boca amordaçada pela lealdade a um pacto macabro, que a covardia cínica de jornalistas e políticos o ajudou a manter praticamente secreto até agora.

Ora, se ele assinou esse documento e sabe que o assinou, sabe também que ninguém, na Colômbia, acredita na sua pretensa neutralidade. Se sabe disso, sabe também que nunca será aceito como árbitro. E, se até disto sabe, por que a farsa? Por que esquivar-se do pedido colombiano de apoio sob a alegação de ambicionar um posto que não pode ser seu? Será que espera que a mídia internacional, inclusive a de Bogotá, venha a abafar a divulgação do manifesto pró-Farc com a mesma solicitude com que a nossa se prestou ao aviltante papel de censora de si mesma? Tamanho delírio de grandeza já seria loucura demais, e o homem não é louco de maneira alguma. Não, não é possível esconder: a alegação de neutralidade, a pretensa candidatura a mediador, são apenas desculpas. Para recusar o pedido de Álvaro Uribe, ele tem motivos mais sólidos, que não escapariam sequer à percepção dos mais descuidados, se por um instante a mídia consentisse em juntar as premissas de um silogismo simples, em vez de separá-las de propósito para que o público não atine com a conclusão:

Premissa maior: conforme reconheceu o ministro da Defesa, a elite das Farc está escondida no Brasil.

Premissa menor: não há nada na justiça brasileira contra essas criaturas, que só podem ser expulsas do país se as Farc forem reconhecidas oficialmente como organização terrorista.

Conclusão: Lula não quer declarar as Farc terroristas porque isso arriscaria obrigá-lo a expulsar do país os dirigentes da organização, senão a tomar contra ela medidas ainda mais drásticas, e isto ele não quer de maneira alguma. Não quer porque não pode e não pode porque isso jogaria contra ele o Foro de São Paulo inteiro.

Escólio: os maiores fornecedores de cocaína ao Brasil estão abrigados no território nacional com a cumplicidade ao menos passiva do sr. presidente da República.

Tudo isso é tão claro, tão lógico e irretorquível, que mesmo crianças deveriam percebê-lo à primeira vista. Mas, quando me volto para os brasileiros adultos, não vejo no rosto deles senão aquela inconclusividade sonsa, aquela insensibilidade cega que não nasce da falta natural de inteligência, mas da recusa obstinada e torpe de reconhecer uma verdade que todos, por dentro, já sabem. Todo pecado, diz a Bíblia, pode ser perdoado -- mas não esse. É o pecado contra o Espírito Santo. Como os condenados do primeiro círculo do inferno de Dante, os brasileiros fugiram da responsabilidade de saber o que sabem -- e foram punidos com a perda do dom da inteligência.

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Nem tudo, talvez, há de estar perdido. O Brasil não precisaria, talvez, nem de cinco justos para salvá-lo. Bastaria um só: Luiz Inácio Lula da Silva. Bastaria que ele admitisse a verdade, rasgasse o manifesto infame e pusesse acima de compromissos espúrios seu dever presidencial de proteger a nação contra o narcotráfico. Não sei quantos minutos ele viveria depois disso. Mas teriam sido os minutos mais heróicos de toda a nossa História.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030309zh.htm

A mentira total

Olavo de CarvalhoZero Hora, 09 de março de 2003

 

Ao longo de 37 anos de experiência com os comunistas, nunca topei com alguma denúncia anti-americana ou anticapitalista que, bem examinada, não se revelasse uma farsa completa e um primor de maquiavelismo. Mas às vezes digo isso e as pessoas me respondem apenas: “Você não examinou todas.”

É claro que não examinei. Nenhum ser humano poderia fazê-lo. Dos 500 mil funcionários da KGB, pelo menos a quinta parte trabalhava em propaganda e desinformação, com milhões de ajudantes em todo o mundo. Nenhum governo, partido ou organização anticomunista teve jamais um aparato de propaganda que se aproximasse, nem em sonhos, dessa monstruosidade kafkiana. Qualquer tentativa de equiparar essa coisa com a CIA é ridícula. O orçamento da KGB -- sem contar a espionagem militar soviética ou equivalentes chineses -- superava o de todos os serviços secretos ocidentais somados. E a moderna e flexível organização em “redes” que a esquerda mundial substituiu às rígidas estruturas partidárias depois da queda da URSS é ainda mais vasta que a KGB. Daí as “marchas pela paz”. Em contrapartida, quase todo mundo ignora que até a II Guerra, 28 anos depois da fundação da Tcheka (antecessora da KGB), os EUA nem sequer tinham um serviço secreto permanente para atuar no Exterior. Para ter uma idéia da diferença que isso faz, basta notar que por volta de 1925 a KGB já tinha sob seu controle as pricipais lideranças intelectuais do Ocidente (há centenas de livros a respeito, mas o melhor ainda é “Double Lives” de Stephen Koch), enquanto a primeira iniciativa anticomunista séria no campo cultural veio só em 1955 com o Congresso pela Liberdade da Cultura, organizado pela CIA em Berlim Ocidental em resposta a um evento muito mais luxuoso que a KGB montara no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York.

Para ficar mais perto, aqui mesmo em Porto Alegre, comparem o orçamento do Fórum Social Mundial com o do Fórum da Liberdade e verão como os esquerdistas que se fazem

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pobrezinhos em luta contra os poderosos estão mentindo. Eles é que são os ricos e poderosos. A desproporção de forças é brutal.

Para complicar ainda mais as coisas, a propaganda comunista jamais teve a preocupação de coerência, desde que Pavlov, na década de 20, descobriu que a estimulação contraditória fomentava a credulidade das massas. O Partido Comunista jamais se inibiu de fazer ao mesmo tempo campanhas nacionalistas e globalistas, pró-judaicas e antijudaicas, ou de simultaneamente incentivar a criminalidade e acusar o capitalismo de ser uma anarquia propícia ao crime. Vindo de lados diversos, o bombardeio de mentiras parecia ainda mais espontâneo, portanto mais confiável.

Tudo isso já era assim no tempo de Stalin. Com a flexibilização em “redes”, a confusão proposital tornou-se mais desnorteante ainda, ao mesmo tempo que as verbas de propaganda soviéticas eram vantajosamente substituídas pelo dinheiro do narcotráfico, de mega-empresas de fachada, dos organismos internacionais superlotados de comunistas.

Por isso ninguém nunca examinou nem examinará criticamente nem mesmo uma parcela insignificante da mentira comunista. O tamanho da máquina que a produz já se tornou inabarcável por qualquer descrição humana. Transcendeu a esfera da política, ganhou dimensões civilizacionais: é a civilização da mentira total.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030315globo.htm

Aprendizes de Judas

Olavo de CarvalhoO Globo, 15 de março de 2003

 

Em 14 de janeiro, Mel Gibson foi ao programa de Bill O'Reilly, na Fox News, denunciar a perseguição que vinha sofrendo desde que anunciara seu intuito de filmar a crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo exatamente como narrada nos Evangelhos. Um filme abertamente cristão era mais do que o Politburô de Hollywood podia suportar: repórteres e detetives particulares não paravam de vasculhar as contas bancárias e a vida privada do ator em busca de matéria-prima para algum escândalo.

Não tendo encontrado nenhum esqueleto no armário do astro de “Coração Valente”, seus detratores passaram ao plano B: sopraram aos ouvidos de um rabino conservador, Marvin Hier, tido como freqüentador da Casa Branca, que o novo filme, “The Passion”, tinha algo de anti-semita. Muitos repórteres e críticos, entre eles o jornalista judeu Jeff Israely, da Time, tinham lido o roteiro sem notar nada disso. Tudo o que o rabino sabia era que um

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artigo da New York Times Magazine havia retratado Gibson, aliás corretamente, como um irlandês católico ultraconservador. Mas, mesmo com tão pouca munição, Hier não quis perder a ocasião de mostrar serviço ao Centro Simon Wiesenthal, do qual é um dos fundadores. Mais que depressa, deu à agência Reuters uma entrevista em que, admitindo não ter visto nada do filme e nem sequer ter lido o artigo, jogava sobre Mel Gibson as mais inquietantes suspeitas, desde a de fazer propaganda anti-semita até a de pretender, com o filme... revogar as decisões do Concílio Vaticano II!

A mídia americana, malgrado seu esquerdismo crônico e anti-israelismo agudo, até que cobriu o assunto decentemente. Mas a brasileira, que não publicara uma só palavra da denúncia de Gibson, apressou-se em dar ampla divulgação ao besteirol de Hier, apresentando-o implicitamente como expressão unânime da opinião judaica americana. Para piorar, a coisa vinha reforçada pela previsão alarmante de uma iminente “caça às bruxas” voltada contra as estrelas de Hollywood que tinham participado das passeatas pró-Iraque. Um caso concreto de perseguição política era assim encoberto sob densa camada de especulações futuras, ao mesmo tempo que a vítima se transformava em bandido por obra de uma testemunha que admitia nada saber contra ela.

O leitor pode estar se perguntando: por que dar tanta importância a essa desprezível trapaça de jornalistas de Terceiro Mundo e terceiro time, mais uma entre milhares? Já não está provado que essas criaturas são apenas idiotas úteis, ou pelo menos ambicionam sê-lo quando crescerem?

É que a utilidade da idiotice, no caso, é maior do que seus próprios portadores imaginam.

Hier não fala pela comunidade judaica. O mais eloqüente defensor de Gibson na celeuma tem sido um escritor judeu, James Hirsen, da revista Newsmax. E a atriz principal do filme, no papel da Virgem Maria, é a judia romena Maia Morgenstern, que mereceria o Oscar de desatenção se depois de todos esses meses de trabalho em “The Passion” não tivesse ali percebido sinais de anti-semitismo caso os houvesse realmente.

Mas o próprio rabino também não é unanimidade. Ele tem recebido pesadas críticas de judeus por recusar-se a usar de sua influência nos altos círculos em favor de Jonathan Pollard. Pollard é um judeu americano, analista de inteligência da Marinha, que um dia passou ao Mossad, ilegalmente, dados do serviço secreto americano sobre armas químicas e bacteriológicas fabricadas por países árabes para ser usadas contra Israel. Encrencado com a justiça, acabou se refugiando em Tel-Aviv. Toneladas de petições a três presidentes ainda não conseguiram trazê-lo de volta para casa. É difícil dizer se Pollard é um traidor ou um herói. O que é certo é que até hoje ele é uma batata quente nas relações EUA-Israel, e Hier é o último que desejaria segurá-la: teme passar por chato entre os figurões republicanos, e sua omissão o torna odioso aos milhares de fãs do espião exilado. Ora, acontece que o principal sustentáculo político e cultural de George W. Bush é a aliança, já velha de muitas décadas e cada vez mais forte, entre conservadores judeus e cristãos. Hier é um ponto fraco nessa aliança, pela sua atitude no caso Pollard. Mais vulnerável ainda ele se torna porque, além de rabino, é também homem do show business: produtor e roteirista. Vive num meio infestado de fãs de Saddam Hussein, os Martin Sheens e Sean Penns da vida. Imaginem, portanto, de onde lhe vieram as dicas falsas sobre o filme que não viu e o artigo que não

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leu. E imaginem por que foi ele o escolhido para assar a reputação de Mel Gibson até fazer dela uma batata tão quente quanto Jonathan Pollard. Que maravilha, para os inimigos dos EUA e de Israel, poder usar um rabino direitista como instrumento para espalhar a cizânia entre judeus e cristãos, ameaçando debilitar a aliança conservadora no instante em que a esquerda mundial precisa com toda a urgência varrer o assunto “armas químicas e bacteriológicas” para baixo do tapete! Mais adorável ainda é que façam isso a pretexto de combater o anti-semitismo, quando eles próprios acabam de lançar a maior onda de propaganda anti-semita que já se viu no mundo desde a década de 30. E chega a ser sublime que mostrem tal desvelo em proteger a comunidade judaica contra o temível Mel Gibson, ao mesmo tempo que, nas ruas, marcham contra Sharon e Bush ao lado do líder nazista David Duke.

E Mel Gibson? Gibson só desempenhou nesse imbróglio o papel bíblico do bode expiatório, com a diferença de que o sacrifício deste era usado para reconciliar a comunidade, enquanto o dele foi planejado para dividi-la.

Já dos jornalistas brasileiros, com sua tradicional subserviência canina aos ditames da moda esquerdista chique de Hollywood e Nova York, não se pode dizer sequer que fizeram o papel de Judas. São, na melhor das hipóteses, aspirantes a Judas. Pois Judas, ao menos, sabia para quem fazia a parte suja do serviço.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/03222003globo.htm

Guerra e império 

Olavo de Carvalho O Globo, 22 de março de 2003 

Em 1995, expus em “O jardim das aflições” a teoria de que o novo Império mundial que se formava de mistura com a globalização econômica era um fenômeno bem diferente de tudo o que se conhecera até então como “imperialismo”. Malgrado elogios recebidos de críticos nacionais e estrangeiros, o livro continuou marginal, jamais sendo citado nas discussões correntes, quer midiáticas ou acadêmicas.

Cinco anos depois, o sr. Antonio Negri ganhou um dinheirão e aplausos universais vendendo a mesma teoria em seu livro “Império”, escrito em parceria com Michael Hardt. A concordância do sr. Negri comigo ia desde as origens do processo, que fazíamos remontar ao século XVIII, até à localização explícita da sede do governo imperial, que

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ambos situávamos no edifício da ONU e não na Casa Branca. Entre esses dois extremos, concordávamos também na definição do Império como um novo paradigma civilizacional e não apenas uma mutação dos velhos imperialismos e colonialismos.

Jamais me ocorreu que o sr. Negri, o qual nunca me viu mais gordo, tivesse me plagiado. Ele apenas tinha um cérebro mais lento, o que não era culpa dele, e eu não tinha um lobby publicitário a meu serviço, o que não era culpa minha. Outras diferenças essenciais entre nós eram as seguintes:

1) Eu não podia alegar entre meus méritos intelectuais a participação em nenhum homicídio político, ao passo que o sr. Negri ostentava em seu currículo a gentil colaboração com os assassinos de Aldo Moro, a qual, vamos e venhamos, é de um sex appeal irresistível para a imprensa dita cultural.

2) O sr. Negri descrevia como focos da reação libertária à ascensão imperial precisamente alguns movimentos de massa nos quais eu enxergava a mão inconfundível do próprio Império.

3) O sr. Negri, fiel ao cacoete marxista de explicar tudo pelo econômico, via o Império como superestrutura política do capitalismo globalizado e, assim, não podia senão acabar fazendo da ONU, ao menos implicitamente, uma agência a serviço do capitalismo. Como o grosso do capital está nos EUA, o resultado era que o belo diagnóstico diferencial entre imperialismo e Império acabava por se dissolver a si mesmo e desmascarar-se como nada mais que um novo pretexto para descer o pau nos EUA.

Nada a discutir no concernente ao primeiro ponto, onde a superioridade do sr. Negri é imbatível. Quanto ao segundo, a gigantesca mobilização mundial “pacifista” em prol de Saddam Hussein mostrou com eloqüência global que os movimentos de massa nos quais o sr. Negri via uma “alternativa utópica” ao Império da ONU (e seu parceiro Hardt ainda insiste nisso, com cega teimosia, na “Folha de S. Paulo” do dia 19) são tentáculos da própria ONU, empenhados em estrangular as últimas e únicas soberanias nacionais capazes de lhe criar problemas: a americana, a inglesa e a israelense.

Por fim, os acontecimentos das últimas semanas (na verdade, dos últimos anos, isto é, desde a conferência de Durban) provaram claramente de que lado está a ONU. Mais ainda, mostraram de que lado estão os próprios neoglobalistas americanos, incluindo a grande mídia: todos a serviço da ONU e contra seu próprio país.

Tal como expliquei em “O jardim das aflições”, há dentro dos EUA um conflito de base entre forças imperiais e nacionais, ou entre os adeptos da ONU e os da nação americana, estes alinhados com Israel, aqueles com a revolução mundial que hoje irmana comunistas, neonazistas, radicais islâmicos e variados interesses antiamericanos de ocasião num pacto global de apoio à tirania genocida do Iraque e, de modo geral, a tudo o que não presta no mundo. Enfim, o que sobra de aproveitável no livro do sr. Negri são aquelas partes em que ele coincide com o meu. Tudo o mais é propaganda imperial camuflada em “utopia alternativa”.

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Um ponto que não abordei no meu livro e que seria demasiado longo discutir aqui é: como o Islã revolucionário se tornou a boca de funil para onde escoam todas as correntes antiamericanas e antidemocráticas? Resumindo brutalmente, com a promessa de um dia voltar ao assunto, digo que:

1) O radicalismo islâmico, obra de intelectuais muçulmanos de formação européia, e que remonta à década de 30, está para o Islã tradicional como a “teologia da libertação” está para o cristianismo. Ele esvazia a tradição islâmica de seu conteúdo espiritual e o transmuta na fórmula ideológica da revolução mundial. (O presidente Bush, que nossos intelectuais semi-analfabetos fingem desprezar como um caipirão, compreendeu perfeitamente esse ponto e por isso recusou com veemência a proposta indecente de dar à guerra contra o terrorismo a conotação de uma cruzada antiislâmica.)

2) Essa fórmula, por seu caráter universalista e seu invejável requinte dialético (afinal, um de seus criadores é Roger Garaudy, fino estudioso de Hegel), engloba e transcende todas as correntes anticapitalistas e antidemocráticas do século XX, desde o nazismo puro e grosso — passando por suas versões mais refinadas, como o anti-humanismo de Martin Heidegger, o desconstrucionismo de Paul de Man, o niilismo de Foucault — até as diversas versões do comunismo: stalinista, maoísta, trotskista, gramsciana etc. Conforme já profetizava seu pioneiro Said Qutub, o destino da revolução islâmica é absorver e superar — hegelianamente — todas as revoluções. Daí o aparente milagre da solidariedade entre esquerdistas e neonazistas nos protestos anti-Bush e nas intrigas antiisraelenses da ONU.

É claro que, ao embarcar numa luta de vida e morte contra a revolução mundial — e, por tabela, contra o neoglobalismo da ONU —, a própria nação americana se investe de responsabilidades imperiais. O que poderá vir a ser um Império americano propriamente dito, nascido sobre os escombros do projeto revolucionário e o virtual cadáver da ONU, é algo que só começará a se esclarecer daqui por diante. Nem eu nem o sr. Antonio Negri sabemos nada a respeito, e aí surge a quarta e última diferença entre nós: ele acha que sabe.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030323zh.htm

Fórum sem liberdade

Olavo de CarvalhoZero Hora, 23 de março de 2003

 

Ao longo de mais de uma década, o Fórum da Liberdade tem sido a maior e a mais democrática tribuna de debates no Brasil. Nada daquela farsa do Cristovam Buarque, que, rotulando Brasília de "capital nacional do debate", só chamava à tribuna seus parceiros de

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ideologia. Nada daquela manipulação grotesca do Fórum Social Mundial: liberdade de expressão para todos, exceto... todos os excetuados.

No Fórum, José Osvaldo de Meira Penna, Eduardo Gianetti da Fonseca e eu nos defrontávamos com José Genoíno, com Ciro Gomes, com Leonel Brizola. Sem truques, sem teatrinho gramsciano. Falávamos sem medo, ninguém dava moleza a ninguém e, no fim, saíamos amigos.

À medida, porém, que o novo conceito de democracia como pseudopluralismo esquerdista veio ganhando legitimidade ante a opinião pública nacional, conquistando até o apoio de um empresariado servil, o Fórum foi perdendo suporte financeiro e, no fim, se viu obrigado a recorrer à Lei Rouanet.

O Ministério da Cultura, de início, recusou a aprovação do projeto, alegando que lhe faltavam "elementos culturais". Porca miséria, que poderia haver de maior valor cultural que o debate entre destacados representantes intelectuais de todas as correntes ideológicas? Mas cultura, no entender daquela repartição pública, é só show business. Ali não havia samba, nem carnaval, nem rock, nem funk. Logo, não era cultural.

Em desespero de causa, os promotores do encontro aceitaram passar uns filminhos, que no entender do ministério eram tremendamente culturais. E aí veio o efeito colateral: como a quase totalidade da produção cinematográfica nacional é ideologicamente de esquerda, já que o lobby esquerdista é dono das verbas, o Fórum, criado e organizado por liberais e conservadores, viu-se transformado, malgré lui, em instrumento de difusão esquerdista. Diante da lista dos filmes a serem exibidos, o ministério não escondeu sua satisfação e, imediatamente, aprovou o projeto. É assim que, sem censura ostensiva e por meio de um delicado ardil gramsciano, fingindo-se amiga da democracia, a elite esquerdista impõe o mais tirânico dirigismo cultural. Estrangulado economicamente, subjugado a propósitos ideológicos que não são os seus, o Fórum da Liberdade, este ano, será um grito de protesto dos escravos. Obrigados a subir ao palco acorrentados, eles farão da exibição mesma das suas correntes a prova da hipocrisia de seus senhores.

* * *

Qualquer adjetivo pode ser usado em sentido próprio ou impróprio: como nome de uma qualidade objetiva ou como força de expressão. Mas essa distinção fica totalmente apagada quando se usa o epíteto "nazista" para qualificar George W. Bush e Ariel Sharon, como já se tornou hábito na nossa retórica jornalística, em vez de aplicá-lo a Saddam Hussein. Pois este último não é nazista em nenhum sentido figurado da palavra, e sim em sentido estrito. Toda a sua educação foi dirigida por um tio, Kairalla Tulfa, conhecido militante nazista e autor de um panfleto, "Judeus, persas e moscas", em favor da inequívoca superioridade das moscas. Foi sob as ordens desse tio que Saddam Hussein começou sua carreira cometendo, aos 20 anos, um assassinato político (v. a biografia Saddam Hussein, King of Terror, do jornalista inglês Con Coughlin).

Por mais que se force o idioma, não é possível que o qualificativo de "nazista" se aplique mais apropriadamente a Sharon ou Bush do que a esse sujeito.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030327jt.htm

Ética de ladrões

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 27 de março de 2003

 

Roubo é subtração não consentida da propriedade alheia. Essa definição, universalmente aceita, subentende que a propriedade obtida por meio de compra, herança, doação ou achado sem dono é legítima em si. Existiu propriedade muito antes de que existisse Estado, e quando este surgiu foi como garantidor da propriedade, no sentido preexistente. Nenhuma sociedade humana, antes do socialismo, desconheceu ou impugnou a propriedade assim compreendida. Tão universal é o seu reconhecimento, que não é exagero supor que constitua um instinto humano fundamental.

A ética socialista pretende que, ao contrário, a propriedade só é legítima como concessão do Estado, o que significa que é ilegítima em si e só se torna legítima per accidens. Tomá-la sem consentimento, portanto, não é ilegítimo em si e só se torna ilegítimo per accidens quando o Estado não legitima sua transferência do espoliado para o espoliador.

A conclusão é inescapável: o socialismo é, em essência, uma ética de ladrões.

Mas, para os socialistas, os proprietários é que eram todos ladrões antes do Estado socialista. Dito de outro modo, a estrutura humana que fundamenta o direito de propriedade é essencialmente má e corrupta, devendo ser substituída por uma nova estrutura que só o Estado socialista pode criar.

Essa nova estrutura pressupõe a supressão de todas as propriedades preexistentes e sua redistribuição pelo Estado socialista. O que era propriedade torna-se roubo, o que era roubo torna-se propriedade.

Mas em que consistia, substancialmente, o crime dos proprietários? Seu crime era o de usurpar as prerrogativas de um Estado que ainda não existia: eram culpados de não ter inventado as doutrinas socialistas.

Assim, aqueles que do ponto de vista da estrutura humana eram apologistas do roubo puro e simples se tornam, do ponto de vista deles próprios, os primeiros exemplares honestos da espécie humana, os inauguradores da primeira e única sociedade justa.

Page 54: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

Tão rebuscado e artificioso é esse raciocínio, que aqueles que o adotam acabam por se enroscar em contradições sem fim - e não me refiro somente a contradições lógicas, e sim existenciais: contradições que não invalidam só o pensamento, mas levam a ação a um curto-circuito que a neutraliza e esteriliza por completo, quando não faz dela uma geradora de desgraças.

Exemplo disso é a dupla atitude do governo Lula no concernente aos direitos de propriedade: por um lado, quer dar escritura definitiva aos ocupantes de terrenos nos morros cariocas; de outro, quer liberar as invasões de terras no campo.

Legalizar posses antigas e, de modo mais geral, racionalizar o sistema de propriedade formal vigente num país é medida saneadora que merece aplausos.

Terrenos possuídos de maneira ilegal ou semilegal não podem ser convertidos em capital: são riqueza morta. Um estudo feito em vários países subdesenvolvidos pelo economista peruano Hernando de Soto demonstrou que, somadas todas as propriedades imobiliárias dos pobres, elas superam em muito o total de bens das classes ricas. Teoricamente, os pobres têm portanto tudo para ficar ricos. A diferença é que os bens dos ricos têm registro legal e os deles são mera posse, de valor legal duvidoso. Nos EUA, qualquer pobretão que quer abrir um negócio começa por hipotecar sua casinha. No Brasil, na Bolívia ou no Egito, ninguém pode fazer isso, porque o sistema de propriedade formal é caótico e barreiras burocráticas intransponíveis mantêm quase toda a riqueza dos pobres num estado permanente de ilegalidade ou semilegalidade. Conclusão: eles não podem gerar capital. Estão condenados à pobreza.

A idéia do governo, de legalizar os terrenos das favelas, faria imediatamente, de milhares de favelados, pequenos empresários em potencial.

Mas que valor pode ter esse saudável reconhecimento dos benefícios sociais da propriedade, se ao mesmo tempo a propriedade privada é virtualmente abolida mediante a liberação das invasões? Trata-se de melhorar a situação dos pobres ou, como diria Lenin, de "acirrar contradições"? Ou esse governo é louco ou sua intenção não é resolver problemas: é criá-los para gerar crise social.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030329globo.htm

Denúncia assombrosa

Olavo de CarvalhoO Globo, 29 de março de 2003

 

Page 55: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

O deputado Alberto Fraga (PMDB-DF) anunciou dia 21, na Câmara, ter provas cabais de que o PT recebeu ajuda financeira das Farc nas últimas eleições.

Fraga quer que a denúncia seja averiguada por uma comissão parlamentar de inquérito e já começou a coletar assinaturas para isso.

É a acusação mais grave que alguém já fez a um partido político ao longo de toda a nossa história. As Farc são uma organização revolucionária e criminosa, responsável pela morte de pelo menos 30 mil colombianos, pelo fornecimento maciço de cocaína ao Brasil através de seu sócio Fernandinho Beira-Mar, pela contínua violação das nossas fronteiras e, segundo suspeitam as autoridades policiais, pelo adestramento de quadrilheiros cariocas nas táticas de guerrilha urbana com que têm espalhado o terror na cidade do Rio de Janeiro. Se essa entidade interfere numa eleição no Brasil, a eleição é totalmente inválida e os políticos envolvidos no caso devem responder não somente por crime eleitoral, mas por cumplicidade com o narcotráfico e por colocar em risco a segurança do país.

Porém ainda mais espantosa que a denúncia é a total incuriosidade da nossa mídia, que até agora não fez ao deputado Fraga sequer uma pergunta a respeito.

Essa indiferença contrasta de tal modo com o assanhamento dos repórteres quando dos primeiros indícios de corrupção na presidência Collor de Mello, que só pode ser explicada pelo efeito amortecedor que certos preconceitos políticos exercem, ao menos inconscientemente, sobre a ânsia de investigar e a vontade de saber. Há ainda outro fator, é claro: comparado com as Farc, PC Farias era apenas um ladrão de galinhas, e é mais fácil ser valente contra um ladrão de galinhas do que contra um exército de delinqüentes armados.

Durante as eleições, fui praticamente o único jornalista brasileiro a lembrar aos eleitores que Lula era o presidente do Foro de São Paulo, coordenação estratégica do movimento comunista no continente, na qual o PT se associara solidariamente não só às Farc, mas a outras entidades criminosas, como o MIR chileno, acionista maior da próspera indústria brasileira dos seqüestros. Na época, não me passava pela cabeça a idéia de que Lula (ou qualquer outro candidato petista) pudesse ou desejasse receber ajuda em dinheiro dessas organizações, mas a simples ligação política que a elas o associava já me parecia garantir que, eleito presidente, ele estaria de mãos amarradas e nada poderia fazer contra a criminalidade ascendente exceto no campo das bratavas evasivas e das promessas ocas, exatamente como tem acontecido até agora.

Se comprovadas as acusações, a classe jornalística inteira terá de admitir que errou gravemente ao recusar-se a incomodar o então candidato Luís Inácio Lula da Silva com perguntas sobre as relações de seu partido com a narcoguerrilha colombiana, privando o eleitorado de informações vitais para uma escolha sensata. É compreensível, pois, que, diante da obrigação de averiguar o que até ontem negava “a priori”, ela sinta, macunaimicamente, uma preguiiiiiiiça...

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Caros pacifistas, saddamistas, antibushistas e anti-americanistas em geral: No endereço http://www.skadi.net/topsites/ vocês encontrarão uma lista dos cem principais sites nazistas da internet. Quase todos eles têm algum pronunciamento a respeito da guerra. Por favor, vão lá e comprovem: eles amam vocês loucamente. E odeiam George W. Bush. Será tudo uma esplêndida coincidência, ou, como me parece, afinidade genuína? Para tirar a dúvida, fui ver o que pensavam os extremistas de direita não expressamente nazistas, como Alain de Benoist (fundador da “nova direita” francesa), o finíssimo Monsieur Le Pen ou o historiador inglês David Irving (que se autodefine como “mild fascist”). Querem saber? Eles também estão todos aplaudindo vocês. Isso é sucesso, galera.

Sempre houve quem dissesse que o antinazismo da esquerda era apenas uma fachada teatral, erguida às pressas por Stalin para encobrir uma aliança macabra que, no momento decisivo, Hitler rompera unilateralmente. O livro dos historiadores russos Yuri Dyakov e Tatyana Bushuyeva, “The Red Army and the Wehrmacht” (New York, Prometheus Books, 1995) confirmava inteiramente essa hipótese: armando a Alemanha, a URSS provocara deliberadamente a eclosão da II Guerra Mundial, na esperança de usar os nazistas como ponta de lança. Mas o teste final era o seguinte: se a afinidade entre os dois totalitarismos era autêntica, um dia eles voltariam a aparecer de mãos dadas, tão logo se dissipassem as condições que os haviam levado a uma ruptura temporária. Foi o que veio a acontecer com a emergência do radicalismo islâmico, “terceira via” totalitária que resolve as contradições e restaura a aliança anti-americana entre socialismo e nazismo. Dia 20 dei uma palestra no Clube Israelita Brasileiro do Rio explicando isso, mas o assunto é complicado demais para ser resumido aqui. Tão logo a transcrição esteja publicada no meu site, avisarei os leitores do Globo.

***

Muitos comentaristas brasileiros repetem como papagaios histéricos que “os EUA armaram o Iraque”. Nenhum deles jamais mostrou ou mencionou uma só arma americana apreendida de tropas de Saddam, seja na guerra do Golfo, seja nesta de agora. Nem avião, nem míssil, nem bomba, nem tanque, nem metralhadora. Nem sequer uma miserável pistola automática “made in USA”. Só Scuds, Kalashnikovs, etc. Mas desde quando a mentira precisa de provas?

A propósito, leiam o artigo de Charles R. Smith, “Who armed Iraq?”, em http://www.newsmax.com/archives/articles/2003/3/17/123424.shtml.

PS — Quando uma bomba supostamente americana mata por acidente 15 cidadãos iraquianos num mercado de Bagdá, a mídia se desmancha em gritos de horror e até o secretário-geral da ONU engrossa a onda de lacrimejações gerais. Mas, quando os paramilitares de Saddam Hussein disparam deliberadamente contra milhares de civis em fuga da cidade sitiada de Basra, a orquestra mundial dos bons sentimentos faz pausa para o cafezinho.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030405globo.htm

Salto qualitativo

Olavo de CarvalhoO Globo, 05 de abril de 2003

 

"L'intéressant c'est de dire justement ce qu'il est convenu de ne pas dire." (André Gide)

Gide tinha razão: o interessante, para um escritor, é dizer justamente aquilo que todo mundo combinou não dizer. Mas o interessante pode ser também perigoso.

No artigo da semana passada, por exemplo, dei duas dicas tão interessantes quanto proibidas. Primeira: o deputado Federal Alberto Fraga (PMDB-DF) diz ter provas cabais da ajuda financeira dada ao PT, nas últimas eleições, pela guerrilha colombiana (agora ele já tem 88 assinaturas no seu requerimento para a instauração de uma CPI a respeito). Segunda: todos os movimentos neonazistas, neofascistas e anti-semitas do mundo estão alinhados com a causa saddamista ou antibushista, cujos apóstolos, ao chamar por aqueles nomes justamente os adversários dela, não fazem senão imitar o exemplo de Stálin, que camuflava sua aliança com Hitler por trás de um antinazismo de fachada, tanto mais grandiloqüente e histriônico quanto mais conscientemente fingido.

Dadas essas notícias, o troco não se fez esperar: minha condenação à morte, que antes me chegava discretamente por e-mail, passou a ser publicada, sem a menor inibição, em sites da internet. São convocações abertas à militância esquerdista para que dê cabo da minha pessoa o mais rápido possível, de preferência por métodos cruéis e dolorosos:

"Sim, companheiros, -- escreve um de meus executores virtuais no site www.comunismo.com.br -- é exatamente disso que estou falando: linchamento, julgamento e execução sumários, sem direito a defesa. Essa escória humana não faz parte da solução, faz parte do problema. E quem faz parte do problema deve ser fisicamente eliminado. Fascista não tem direito a vez nem a voz. Para calar sua voz, devemos identificá-los e, se não matá-los tout court, cortar suas mãos para que não possam mais expor suas idéias por escrito, e cortar suas línguas para que não possam se expressar verbalmente."

Mais meticuloso, o site http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/251552.shtml informa aos interessados o local onde dou aulas a intervalos regulares e, repetindo centenas de vezes o refrão "Morte ao Olavo de Carvalho", sugere:

"Será que não está mais do que na hora de dar um fim físico a esse câncer chamado Olavo de Carvalho? Por que não convocar uma manifestação em frente ao local desse curso e, se possível, eliminar fisicamente esse fascista, racista, canalha e miserável?"

Page 58: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

Como é lindo ouvir esses adjetivos da boca daqueles que marcham ao lado dos skinheads pela destruição do Estado de Israel! Como é tocante ler o apelo à minha eliminação cruenta e, linhas adiante, descobrir que ela é, no entender de seus propugnadores, parte de uma "campanha contra a intolerância" (sic).

Se, quando criança, me avisassem que viveria para presenciar uma coisa dessas, eu não teria acreditado.

Mas deve ser o progresso. Cansados de me enviar ameaças que eu respondia com palavrões, bem como de espalhar mensagens falsas em meu nome, que qualquer leitor sensato identificava à primeira vista como contrafações pueris, os rapazes acharam que estava na hora de um upgrade, ou, como diria Mao Tsé-Tung, de um salto qualitativo na luta do proletariado. Passaram dos sussuros aos berros, dos avisos à preparação do ataque.

Mais maravilhoso ainda é saber que esses alucinados não estão fazendo senão levar à prática os ensinamentos recebidos de intelectuais e educadores que, longe da cena truculenta, elegantes e empoadinhos nas suas cátedras e nas suas colunas de jornal, encarnam a personificação viva da convivência civilizada e dos bons sentimentos. O inefável dr. Antônio Cândido, por exemplo (cito-o a esmo, como um entre milhares), dizia não haver mal algum em suspender por algum tempo direitos e garantias, se fosse para construir o socialismo. Pois aí está, dr. Antônio, o senhor não esperou em vão: os meninos do "mídia independente" já suspenderam pelo menos os meus direitos e garantias. Ainda não é o socialismo, mas já é alguma coisa. Claro, o dr. Antônio, ou qualquer outro no lugar dele, dirá que não quis chegar a tanto. Intelectuais de esquerda jamais querem chegar aonde chegam. Jamais quiseram o Gulag, o Laogai, a extinção dos ucranianos pela fome, o milhão de tibetanos mortos. Jamais quiseram nada do que produziram: foi tudo culpa das malditas coincidências. Eles, os donos das boas intenções, saem sempre limpos, façam o que fizerem.

Agora por exemplo, fazem campanha contra a intervenção americana, mas dizem que não são a favor de Saddam Hussein. Não, não são. São apenas contra tirá-lo do poder. São contra impedi-lo, pela força ou por qualquer outro meio (pois também abominavam as sanções econômicas), de continuar matando iraquianos em paz, à base de 110 por dia -- muito mais que a guerra --, como vem fazendo há 24 anos. Não defendem Saddam Hussein, mas a soberania iraquiana -- isto é, a soberania de Saddam Hussein. Quem pode cobrar dessas criaturas as conseqüências de suas palavras, se essas palavras já são a inconseqüencia mesma? Quem pode cobrar responsabilidades de criaturas que se dão o direito de sonhar um mundo novo à sua imagem e semelhança e jamais reconhecer como obra sua o vulto hediondo do sonho realizado?

A quem devo então recorrer em busca de proteção? Às autoridades de um governo ao qual, justamente, os Cândidos confiaram a realização de suas mais belas esperanças? Àqueles que o deputado Fraga acusa de receber dinheiro da mais vasta organização homicida da América Latina? Loco sí, pero no tonto, prefiro admitir que já não tenho direito nenhum, garantia nenhuma. De que valem direitos e garantias colocados sob a guarda de pessoas mais interessadas em proteger as Farc contra o governo colombiano do que os cidadãos brasileiros contra as Farc?

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030406zh.htm

Salvando a minha pele

Olavo de CarvalhoZero Hora, 06 de abril de 2003

 

Convidado a participar do Fórum da Liberdade, não poderei comparecer, por um motivo muito simples: dois sites da internet, www.comunismo.com.br e "Mídia Independente" -- este último uma ONG milionária com filiais em uma centena de países -- estão promovendo uma campanha pública pela extinção física da minha pessoa, e nessas circunstâncias devo ficar no Rio de Janeiro para tomar as providências judiciais cabíveis.

"Execução sumária, sem direito a defesa", exige um daqueles sites, enquanto o outro informa o local onde posso ser encontrado e sugere: "Será que não está mais do que na hora de dar um fim físico a esse câncer chamado Olavo de Carvalho?" (maiores detalhes em www.olavodecarvalho.org).

Essas coisas podem parecer extravagantes, mas é bem natural que sucedam numa época em que o próprio governo, em vez de proteger a população contra os agentes das Farc que vão dominando a indústria da violência nacional, prefere proteger as Farc contra o risco de ser chamadas de "terroristas" pelo malvado presidente da Colômbia.

Porém ainda mais criminoso que essa incitação ao homicídio é o esforço da mídia para abafar a notícia mais importante do ano: o deputado Alberto Fraga (PMDB-DF) anunciou na Câmara possuir provas cabais de que o PT foi financiado pelas Farc nas últimas eleições federais e estaduais. Embora o deputado já tenha coletado 86 assinaturas para um pedido de CPI, nada disso sai nos jornais ou na TV. Provavelmente também não se divulgará no Forum da Liberdade, que, por falta de apoio do empresariado, foi reduzido ao tipo de oposição autocastrada que é mesmo o único que cabe num país governado por parceiros de Fidel Castro.

Enquanto isso, o governo brasileiro admite que os líderes das Farc estão confortavelmente instalados no território nacional e, é claro, nada faz para perturbar o sossego de tão ilustres visitantes, responsáveis, segundo seu sócio Beira-Mar, pelo fornecimento de duzentas toneladas de cocaína, por ano, ao mercado brasileiro. Falar de "colombianização" do Brasil, diante disso, é otimismo: na Colômbia, as Farc estão fora da lei; no Brasil, sob a proteção da lei.

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Não só da lei, decerto. Se, por um lado, a articulação da narcoguerrilha continental com o terrorismo muçulmano já está mais que comprovada pela presença maciça de representantes deste último no governo Hugo Chávez e na Tríplice Fronteira, a mídia, por sua vez, está empenhada numa fortíssima campanha para demonizar as tropas anglo-americanas e livrar a cara do regime Saddam Hussein, abrigo e fortaleza de tantas organizações terroristas.

É lógico, também, que o sr. Luiz Eduardo Soares, uma das estrelas do Fórum da Liberdade este ano, e ele próprio um servidor da revolução mundial, dificilmente será incomodado com menções a temas tão desagradáveis, mas será deixado à vontade para expor a teoria oficial, segundo a qual a miséria e o desemprego geraram, por vias miraculosas e incompreensíveis, a máquina bilionária do narcotráfico e dos seqüestros, toda ela articulada politicamente no Foro de São Paulo, entidade fundada e liderada pelo nosso presidente da República.

Houve época em que por nada deste mundo eu perderia a oportunidade de espremer o sr. Luiz Eduardo com perguntas que, na minha ausência, ninguém lhe fará. Mas agora não posso: estou muito ocupado tratando de salvar a minha pele, e creio não estar longe o dia em que os leitores se verão em idêntico desconforto.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/04122003globo.htm

Satã Hussein e as pombinhas 

Olavo de Carvalho O Globo, 12 de abril de 2003 

Em boa hora o presidente George W. Bush recusou-se a fazer da guerra contra Satã Hussein uma cruzada anti-islâmica. O Islã é uma religião grande e sublime, sem a mínima parcela de culpa no que revolucionários e tiranos fazem em nome dela. Com toda a sua retórica feroz imitada do pathos religioso, eles e seus cúmplices já estavam de antemão condenados no versículo da sura II do Corão, no qual Deus adverte:  “E quando dizemos a eles: ‘Não façais intrigas na Terra’, eles respondem: ‘Somos apenas pacificadores.’ O que eles são é intrigantes. Mas não o percebem.”

Como não reconhecer aí aqueles governos que, tendo fornecido armas atômicas ao Iraque, e antevendo sua possível descoberta pelas tropas americanas, desencadearam uma campanha mundial de ocultação sob o pretexto de “paz”?

Page 61: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

A culpa que eles carregam é sem fim.

Só de prisioneiros políticos, o regime de Satã Hussein matou 33 por dia, sem parar, durante um quarto de século. Calculem o preço, em vidas humanas, das sucessivas protelações da ONU. A paz matou muito mais que a guerra, exatamente como no Vietnã. Se não lembram, posso refrescar sua memória. Entre militares e civis, os combates tinham feito mais ou menos 800 mil vítimas, dos dois lados. Retiradas as tropas americanas, os comunistas invadiram o Vietnã do Sul, tomaram o Camboja e, entre os dois países, mataram três milhões de civis, enquanto em Nova York as pombinhas da paz celebravam a humilhação americana.

A situação agora inverteu-se: as pombinhas choram nas redações, enquanto o povo iraquiano festeja o fim de seus sofrimentos, tão longamente adiado por meio de palavras bonitas.

Vejam a alegria nas ruas, as estátuas demolidas, as efusões de gratidão às tropas anglo-americanas, e aprendam: não existe, em toda a fauna planetária, bicho mais mortífero que a Pomba da Paz. Não por coincidência, uma invenção de Stálin, com a colaboração de Picasso, concebida para parasitar blasfematoriamente o símbolo cristão do Espírito Santo.

Os Chiracs, os Schroeders, os Putins, os pacifistas a soldo do Partido Comunista da Coréia do Norte, os denunciadores da “conspiração anglo-sionista”, os pseudojornalistas que invocavam os demônios pedindo uma interminável Batalha de Bagdadogrado (que acabou sendo a Batalha de Itararé) -- esses são a maior quadrilha de genocidas das últimas décadas.

Por saber disso e desejar que ninguém o saiba é que, em desespero, a Guarda Republicana da mídia brasileira apela a medidas extremas. Já não sendo possível salvar a reputação de Satã Hussein, resta sujar a de seus inimigos. Um notável jurista escreve que “o presidente dos Estados Unidos conseguiu demonstrar ser mais eficiente em matar civis do que o déspota iraquiano”. Um comentarista busca esfumar o perfil genocida do ditador caído, alegando que ninguém sabe se mais mortes se devem a ele ou às sanções econômicas da ONU. E por toda parte se dá por autodemonstrado que os EUA tudo fizeram por cobiça de petróleo, com o agravante de que eles mesmos alimentaram de armas e munições o tirano que agora derrubaram.

 Nem em sonhos pensem que pretendo puxar discussões com essas pessoas. Toda discussão pressupõe um mínimo de honestidade, exigência que as classes falantes deste país julgam dever sacrificar a não sei quais ideais mais altos.

Os brasileiros que escrevem e falam tornaram-se uma mistura de Macunaíma e Robespierre, somando à completa falta de caráter a indignação histriônica de quem se imagina incorruptível. Em nome das belezas morais que sonham encarnar, permitem-se gostosamente todas as mentiras, todas as baixezas, todos os ardis e manipulações.

O pior é que cada um desses engodos se ergue em cima de uma complexa engenharia sofística de pressupostos embutidos, cuja desmontagem requereria extensas análises, não podendo ser realizada aqui. E o público, viciado na estupidez pomposa desde os bancos

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escolares, já perdeu até mesmo aquele instinto lógico elementar, que recua diante do raciocínio falso mesmo sem saber onde precisamente se esconde o erro.

É inútil dizer ao lindo jurista supramencionado que a insensibilidade aos números, o embotamento do senso de medida e proporção, é a marca mais nítida da falta completa de honestidade intelectual. Ele não vê, nem verá jamais, a diferença entre atingir acidentalmente algumas centenas de inocentes durante bombardeios, e surrar até à morte, nos porões da polícia, 290 mil civis amarrados. Para ele, é tudo a mesma coisa, e a segunda é até mesmo um pouco mais humana.

É inútil lembrar àquele comentarista que um homicídio doloso é ação material direta exercida propositadamente contra a vítima, ao passo que associar tais ou quais mortes ao efeito de “sanções econômicas”, mesmo péssimas e devastadoras, é raciocínio estatístico indireto e conjetural, do qual só um vigarista ousaria deduzir imputações de culpabilidade absoluta. Muito menos é viável tentar mostrar-lhe que não faz sentido acusar a ONU de genocídio e, no mesmo ato, consagrá-la como autoridade moral sacrossanta que o malvado imperialismo ianque não tem o direito de desobedecer.

É inútil informar aos indignados desmascaradores de interesses petrolíferos que estes são da França, não dos EUA.

E é inútil lembrar a qualquer deles que, se algum fornecedor de armas tem culpa do que fez Satã Hussein, a culpa é proporcional ao tamanho do estoque fornecido: 57 por cento russa, 13 por cento francesa, e assim por diante até o último da fila, os EUA, com exatamente um por cento, isto é, metade quota de culpa brasileira.

É inútil dizer a essa gente o que quer que seja, porque a parte falante e escrevente deste país já consagrou o anti-americanismo como a suprema e única virtude, em cujo altar devem ser queimados até os últimos resquícios de escrupulosidade moral.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030419globo.htm

O sonho de Saramago

Olavo de CarvalhoO Globo, 19 de abril de 2003

 

O sr. José Saramago, que é quase tão inteligente quanto parece, levou quatro décadas para descobrir que Fidel Castro não presta. O sr. Luiz Inácio, que não parece nada inteligente e o é tanto quanto parece, talvez demore mais alguns meses, caso não se veja nas mesmas

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circunstâncias que levaram o escritor português a essa deprimente conclusão. Aconteceu que, após ter sonhado todo esse tempo com o ditador cubano, fazendo dele o herói de não sei quantas epopéias libertárias, uma bela manhã o romancista despertou com a estranha sensação de que o limite de sua amável complacência para com o homicídio em massa tinha sido ultrapassado. Fuzilar dezessete mil pessoas estava bem, era decente, não feria a moral nem os bons costumes. Mas dezessete mil e três, faça-me um favor! Era de tirar o sono de qualquer dorminhoco. Chocado com a tripla excrescência, Saramago enfim acordou, e já acordou brabo, acusando Fidel de ter estragado os seus sonhos.

É verdade que em épocas anteriores o sono do Nobel português tinha resistido incólume a doses bem maiores de truculências. Todo o mundo lusófono o ouviu roncando enquanto Stalin matava vinte milhões de russos, Mao sessenta milhões de chineses, Pol-Pot dois milhões de cambojanos. Mas esse aparente paradoxo tem explicação fisiológica: os jovens dormem melhor que os velhos, e o sr. Saramago, embora ninguém jamais suspeitasse disso, foi jovem antes de chegar à idade senil.

Mas, agora que ele viu a luz, não há mais como negar esta verdade fundamental: 16.999 é pouco, dezessete mil é bom, 17.003 é demais. Não o ignora nem mesmo o PPS, aquela entidade camaleônica que julgou poder varrer seu passado para baixo do tapete junto com sua antiga denominação de Partido Comunista Brasileiro. Num ato de extraordinária bravura, a agremiação enviou telegrama a Fidel, protestando contra a tremenda mancada de dar três tiros suplementares, logo quando o sonho ia chegando àquela parte em que os americanos perdiam a guerra contra a mídia.

Tão evidente é a máxima supracitada, que até os tucanos, tão refratários a perceber o que quer que seja, já deram sinal de admitir sua veracidade. O senador Romero Jucá (PSDB-RR) chegou a pedir ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, em razão dos fuzilamentos extemporâneos, condene Fidel Castro à pena máxima: ser privado de churrascos na Granja do Torto. O governo cubano, inconformado com o rigor inclemente da punição, vai protestar na ONU.

***

O ministro iraquiano da Informação tornou-se um ídolo no Ocidente graças ao seu talento de negar a realidade patente com uma fé, um entusiasmo e uma verve admiráveis, estonteando os telespectadores com um variegado leque de fanfarronadas hiperbólicas e a mais mimosa coleção de insultos da oratória universal. Seu crescente círculo de fãs chegou a dedicar-lhe um site na internet, sob o título “Nós amamos o ministro iraquiano da informação” (www.welovetheiraqianinformationminister.com).

Mas devo lembrar aos leitores que, antes de tudo, vem a pátria. O justo aplauso a “Baghdad Bob” não deve nos induzir a menosprezar os valores nacionais. Em matéria de anti-realidade e apologia do indefensável, os brasileiros nada ficam a dever aos iraquianos: se eles têm Mohammed al-Sahaf, nós temos o doutor Emir Sader. Em artigo recém-publicado, ele lançou sobre os malditos americanos a culpa dos fuzilamentos em Havana e explicou que o famoso “atoleiro”, prometido para as tropas invasoras no Iraque, só não chegou a ser observado lá porque se deslocou para Cuba, onde aguarda os infiéis para afogá-los em lama

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e ignomínia. No mesmo embalo, ele reconhecia que, ao contrário do que se poderia depreender erroneamente da reação de surpresa do sr. Saramago, os fuzilamentos sumários em Cuba não são uma novidade e sim um hábito consolidado — e aproveitava para tecer por isso os mais altos louvores a um governante que tem sido mais que fiel, fidelíssimo aos princípios revolucionários. Diante de fenômeno de tal magnitude, já estou providenciando a instalação do site “Nós amamos o doutor Emir Sader”.

***

A tese da convergência dos totalitarismos nazista e comunista na “terceira via” radical-islâmica, que venho expondo há tempos, acaba de despontar também, sem diferenças substanciais, nos cérebros de André Glucksmann e Marshall Berman. Berman reconhece ainda o caráter destrutivo e enganoso dos movimentos socialistas “pela paz”. Nos anos 30, diz ele, foi a esquerda pacifista que bloqueou o rearmamento da França e tornou as coisas tremendamente fáceis para Adolf Hitler. O mesmo argumento foi apresentado pelo nosso Gustavo Corção em “O século do nada” (1973) e lhe rendeu uma tonelada de chacotas infames.

***

Tenho recebido cartas ferozes, que me acusam de malvado por me encrespar com “meras ameaças”. Mera ameaça — uma só — foi a que recebeu certa vez por e-mail o sr. Aloysio Mercadante, armando um escarcéu dos diabos e pedindo proteção à Polícia Federal, sem que uma só voz se levantasse para criticá-lo por defender seus direitos.

Ameaça, é claro, já é crime. Recebo centenas delas, e nem ligo. Mas quem postou a mensagem no CMI (“Centro de Mídia Independente”) foi muito além disso, cometendo toda uma constelação de delitos gravíssimos, entre os quais incitação ao crime, apologia do crime e racismo (“camarilha nazi-sionista”), além, evidentemente, da prática do anonimato, que fere a própria Constituição Federal. Deveria eu colaborar com a ocultação dessas lindezas? Mas é preciso avisar que a página www.comunismo.com.br não teve a mínima culpa do ocorrido. Um sujeito de maus bofes copiou a mensagem assassina no CMI e a colocou lá. O gerente do site já retirou a porcaria do ar (coisa que o CMI não fez até agora) e se prontificou a me entregar o endereço eletrônico do culpado.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030424jt.htm

Dominador invisível

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 24 de abril de 2003

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A doutrina marxista da “ideologia” impregnou-se de tal modo na cultura, que mesmo os indivíduos mais alheios a qualquer militância esquerdista acham natural esperar que toda idéia ou teoria se explique, em última análise, como instrumento das ambições de uma classe ou grupo, portanto como distorção interesseira, mito autojustificador ou propaganda.

Nessa perspectiva, não há mais conhecimento objetivo. A única maneira de um sujeito escapar da prisão ideológica é assumi-la como fatalidade incontornável e incorporá-la na sua visão habitual do mundo, como um cavalo que comesse seus próprios arreios esperando, com isso, tornar-se cavaleiro. A nova objetividade do “intelectual orgânico” já não consiste em ver o mundo como é mas em transformá-lo em outra coisa para poder dizer, depois, que ele é exatamente isso.

Correntes de pensamento inteiramente alheias ao marxismo vieram a dar a esse doutrina insana algumas legitimações acidentais.

Nietzsche abominava o socialismo. Mas, rejeitando toda pretensão de veracidade como ilusão autolisonjeira de contemplativos doentes, e consagrando a “vontade de poder” como fundamento último da realidade e da ação humana, acabou dando aos dois socialismos, bolchevista e fascista, um pretexto admirável para que mandassem às favas os escrúpulos de argumentação racional e aderissem gostosamente à brutalidade da “ação direta” preconizada por Georges Sorel.

Freud, politicamente um conservador, deu impulso à destruição da fé no conhecimento ao vituperar como camuflagens da repressão sexual todas as manifestações da inteligência humana, seja na arte, na ciência, na filosofia ou na religião. E acabou malgré lui colocando a serviço da propaganda socialista o poder da fantasia sexual, tão logo a escola de Frankfurt acreditou descobrir no desejo reprimido o equivalente genésico da força de trabalho proletária “expoliada” pelo superego capitalista. Daí por diante todos os frustrados sexuais do mundo tornaram-se militantes esquerdistas em potencial.

Muitas outras modas e escolas intelectuais, às vezes bem antimarxistas, concorreram para os fins do socialismo: roendo pelas beiradas a credibilidade popular da tradição filosófica e religiosa ocidental, mas não tendo por sua vez nenhuma expressão política própria, acabaram sendo absorvidas como utensílios de guerra ideológica pela única corrente de pensamento que, além de doutrina, era uma estratégia política e uma militância organizada. Assim, à medida que se desmoralizava intelectualmente, o marxismo se renovava de maneira quase inesgotável, chamando em seu socorro novos e novos pretextos adaptados do pragmatismo, da filosofia analítica ou até do messianismo lisérgico e anárquico da New Age. Aquisição mais recente foi a retórica anti-ocidental do radicalismo islâmico. E agora até o “tradicionalismo” de Guénon e Evola pode servir para ajudá-lo um pouquinho...

Nenhuma doutrina resiste a tantas incorporações sem perder sua identidade. Mas às vezes isso é útil. À medida que afeiçoava seu organismo a tantos alimentos estranhos, o marxismo, já em versão Gramsci, flexibilizava sua estrutura organizacional, dissolvendo os antigos partidos monolíticos numa complexa rede de associações e canais com rotulagem

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infinitamente variada -- desde agremiações políticas até entidades assistenciais, “grupos de encontro” e clínicas de aborto, além de quadrilhas de narcotraficantes e seqüestradores --, que o advento dos computadores e da internet permite hoje manter unida e pronta, a qualquer momento, para ações repentinas de alcance mundial, como se viu nas passeatas “pela paz” que quase conseguiram salvar, in extremis, o regime mais tirânico e genocida do planeta.

Irreconhecível como doutrina individualizada, o marxismo continua, politicamente, a única força organizada em escala planetária. Na esfera cultural, tornou-se a influência dominante que, sem nome, quase invisivelmente, move as correntes de opinião no mundo.

Cada vez que, diante de uma idéia, você pergunta a quem ela serve antes de perguntar se ela é verdadeira ou falsa, você é quem está servindo a esse senhor invisível. A doutrina marxista da ideologia, mentira a serviço da vontade de poder, vê em tudo mentiras a serviço do poder e, como toda profecia auto-realizável, tem o dom de fazer com que aqueles que a seguem, mesmo sem saber que a seguem, se tornem exatamente aquilo que ela diz que são.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030426globo.htm

Sobre o mapa divino do mundo

Olavo de CarvalhoO Globo, 26 de abril de 2003

 

Peço licença aos leitores para me afastar por instantes da atualidade mais óbvia e dedicar este artigo a um assunto que a alguns talvez soe um tanto “esotérico”, mas que a outros parecerá de uma urgência premente. É que, diante do que tenho dito e escrito sobre a revolução islâmica, alguns missivistas ignorantes da matéria têm tido a insolência de me cobrar algum tipo de apoio a esse movimento, ou pelo menos aquela adesão indireta que se expressa como puro antiamericanismo, e o fazem atirando-me à cara o dever de obediência que supõem deva me ligar à pessoa e à obra de René Guénon, pelo fato de que o apresentei, no meu site, como um de “meus gurus” entre muitos outros de orientação intelectual completamente diversa.

Guénon é sem dúvida um sábio, e tenho pelos seus ensinamentos um profundo respeito, mas, além de não me considerar discípulo ou seguidor de quem quer que seja — a palavra “guru” sendo usada ali no sentido elástico e polissêmico que lhe dá, aliás, por vezes o próprio René Guénon —, não vejo como poderia me submeter a esses ensinamentos quando se voltam contra realidades patentes.

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Em “Oriente e Ocidente”, por exemplo, Guénon assegurava que o comunismo jamais se introduziria em nenhum país oriental, inclusive a China, porque “nela o espírito tradicional não está menos solidamente estabelecido do que em todo o resto do Oriente”. E prosseguia: “Quando os bolchevistas se gabam de conquistar partidários entre os orientais, estão apenas se iludindo.”

O livro foi publicado em 1924, mas Guénon manteve essas afirmações inalteradas na segunda edição, revista, de 1948 — um ano antes da entrada triunfal de Mao Tsé-tung em Pequim, começo de uma tirania que duraria mais de meio século, exterminaria 60 milhões de chineses e exportaria a revolução comunista para toda parte.

Mais ainda, o que pudesse restar de “espírito tradicional” na China foi de tal modo devastado pela Revolução Cultural de Mao que já não há, para os intelectuais chineses de hoje, outra via para a reconquista de uma compreensão mais profunda de sua própria tradição espiritual senão os livros de autores ocidentais como Marcel Granet ou o próprio René Guénon.

Devo supor que isso não aconteceu, porque Guénon disse que não aconteceria? Ou devo admitir que o mestre, levado pela sua confiança absoluta nos métodos dedutivos e por um exagerado desprezo à História, caiu em pura conjeturação errada? E ele não melhora em nada a sua performance quando, no mesmo tom, assegura: “O pan-islamismo, qualquer que seja a forma de que se revista, não poderá jamais se identificar com um movimento como o bolchevismo, como parecem temê-lo as pessoas mal informadas.” No máximo, admitia Guénon, os muçulmanos podiam servir-se dos comunistas para seus próprios fins e depois jogá-los fora.

Quando lemos no “Wall Street Journal” o depoimento de Ion Mihai Pacepa, o agente secreto de Ceaucescu que confessa ter inventado Yasser Arafat por ordem da KGB, ou vemos que, um por um, países islâmicos antes simpáticos aos EUA vão sendo arrastados para a órbita do antiamericanismo revolucionário, não podemos evitar a pergunta: quem, afinal, está usando quem? É verdade que o islamismo se expande no mundo, mas nada se compara, em vigor e rapidez, à rearticulação global de uma esquerda revolucionária que a queda da URSS deveria, segundo as vãs expectativas ocidentais, ter desmoralizado por completo. E até que ponto uma tradição religiosa, em concorrência com as outras, pode se servir de movimentos ideológicos visceralmente antiespirituais sem ser corrompida e esvaziada pelo manuseio de instrumento tão inapropriado e transformar-se num simulacro de si própria? O Islã esquerdizante e antiamericano de hoje parece menos o Islã tradicional do que aquela espécie de pós-Islã apocalíptico anunciado por Maomé, no qual “as mesquitas estarão vazias de piedade e os doutores da religião serão as piores criaturas sob o céu; viverão alimentando intrigas e cizânias que, no fim, recairão sobre eles mesmos”.

É verdade, ainda, que as agudas críticas à civilização moderna que se encontram nas obras dos tradicionalistas guénonianos, como Seyyed Hossein Nasr, Martin Lings ou Titus Burckhardt, podem ser facilmente absorvidas no corpo da propaganda anticapitalista e anti-americana que é o tempero básico do cardápio neocomunista no mundo. O ideólogo russo Alexandre Duguin, teórico do que ele chama “nacional-bolchevismo”, faz exatamente isso. Ele teria um sucesso danado no Fórum Social Mundial.

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Mas haverá algo de mais diabolicamente irônico do que colocar o legado das antigas espiritualidades a serviço de ditaduras socialistas e nacional-socialistas que personificam a rebelião antiespiritual moderna sob aspectos muito mais brutais e demoníacos do que tudo aquilo que se pudesse atribuir às democracias capitalistas? Não me esqueço de uma conversa que tive, anos atrás, com um desses guénonianos e antimodernos ilustres, cujo nome não cabe citar aqui, mas que me confessava, quase aos sussurros, que os EUA, onde residia, eram no fundo o país mais religioso do planeta e aquele no qual os homens de vocação mística e espiritual encontravam melhor ambiente para a realização de suas aspirações interiores, tão estranhas à agitação epidérmica dos intelectuais “modernos”.

Qualquer que seja o caso, a linha divisória dos blocos políticos e geopolíticos não coincidirá jamais perfeitamente com a das várias tradições espirituais. O “choque das civilizações”, se algum há, desenrola-se na superfície da História, enquanto nas águas profundas há mais interpenetrações e ambigüidades do que o mero analista estratégico poderia imaginar, e é bem possível que a germinação do futuro dependa antes delas que daquilo que sai nos jornais. Se os caminhos do Senhor não são os dos homens, também o mapa divino do mundo não é idêntico àquele que os políticos e estrategistas têm pendurado na parede de seus escritórios.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030426fl.htm

Jovens paranaenses

Olavo de CarvalhoFolha de Londrina, 26 de abril de 2003

 

Num livro já antigo, Wilson Martins escreveu que o Paraná era "um Brasil diferente". Tenho comprovado isso, repetidamente, desde que comecei a dar aulas neste Estado, dois ou três anos atrás. Os brasileiros de hoje são tagarelas e preguiçosos: não estudam nada e opinam sobre tudo. Os estudantes paranaenses são notavelmente mais humildes e interessados em aprender. A importância da humildade no aprendizado já era enfatizada, na Idade Média, por Hugo de São Vítor, um dos maiores educadores de todos os tempos. Humildade significa, no fundo, apenas senso do real. O culto universal da juventude obscureceu essa verdade óbvia ao ponto de que todo mundo já acha natural esperar que, aos quinze ou dezoito anos, um sujeito tenha opiniões sobre todas as coisas e, miraculosamente, elas estejam mais certas que as de seus pais e avós. O resultado dessa crença generalizada é desastroso: todos os movimentos totalitários e genocidas dos últimos séculos -- comunismo, nazismo, fascismo, radicalismo islâmico, etc. -- foram criações de jovens, e sua militância foi colhida maciçamente nas universidades.

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O culto da juventude traz, como um de seus componentes essenciais, o desprezo pelo conhecimento: se ao sair da adolescência o sujeito já traz na cabeça todas as idéias certas, para quê continuar estudando? No Brasil, esse preconceito arraigou-se tão fundo, que já parece impossível extirpá-lo. O efeito disso é que milhões de jovens, incapacitados para perceber as mais óbvias realidades, se crêem investidos do direito divino de julgar todas as coisas, homens e fatos. Além do conhecimento, falta-lhes às vezes até aquele mínimo de integração da consciência, sem o qual um sujeito não pode sequer argumentar de maneira razoável. Sua pretensão arrogante contrasta tão deploravelmente com a sua falta de recursos intelectuais, que nenhum educador dotado de bom senso se aventuraria a lhes ensinar o que quer que fosse. Raríssimos estudantes, hoje em dia, sabem distinguir princípios gerais de tomadas de posição sobre acontecimentos específicos. Adotam uma opinião sobre isto ou aquilo, sobre o homossexualismo, sobre a guerra no Iraque, e fazem dela imediatamente um princípio universal, extraindo dela conclusões que desmentem os próprios princípios da lógica ou do direito nos quais, não obstante, continuam se baseando para raciocinar sobre tudo o mais. A "autodeterminação dos povos", por exemplo, é usada para justificar a soberania de Saddam Hussein, ao mesmo tempo que se deixa de aplicá-la à minoria curda, sendo quase impossível mostrar ao falante que há aí uma contradição. Em casos como esse, uma opinião política singular se sobrepõe de tal modo aos princípios fundantes do próprio raciocínio, que uma pessoa neurologicamente normal acaba tendo o desempenho cerebral de um mongolóide. Outro dia encontrei na internet um site de jovens homossexuais que demonizavam os EUA, terra de promissão do movimento gay, e defendiam entusiasticamente as ditaduras islâmicas, nas quais o homossexualismo é crime punido com a morte. Na antiga retórica greco-latina, isso chamava-se "argumento suicida", como no caso de um judeu que fizesse propaganda nazista. O argumento suicida era tão raro que os manuais de retórica mal o citavam. Hoje em dia, tornou-se a coisa mais comum do mundo e, nas falas de estudantes brasileiros, quase um paradigma. Os exemplos que citei são só dois entre milhares. Quanto mais lisonjeada por pais e educadores, mais a juventude se torna estúpida e incapaz, anunciando uma maturidade de ressentidos, fracassados e invejosos. Tenho me defrontado com esses tipos no Brasil inteiro, mas garanto: entre os estudantes paranaenses o número deles é bem menor. Não sei como explicar esse fenômeno. Não conheço a história cultural do Estado ao ponto de arriscar alguma hipótese. Apenas assinalo o fato e reconheço ver nele um raro sinal de que, para a cultura deste país, nem tudo está perdido.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030428fsp.htm

Telhados transparentes

Olavo de CarvalhoFolha de S. Paulo, 28 de abril de 2003

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Quando algum político de direita ou simplesmente vazio de convicção ideológica é acusado de desvio de verbas e seu partido tenta eludir as investigações, a mídia em peso denuncia o joguinho sujo e, com afetações de alta indignação moral, clama por "transparência". Mas o sr. presidente da República não foi acusado de corrupção vulgar. Foi acusado de receber, quando candidato, ajuda financeira da maior organização criminosa do continente, responsável pelo fornecimento maciço de cocaína ao mercado nacional.

Para desestimular as investigações, ele não recorreu a nenhum ardil parlamentar, e sim à intimidação direta, anunciando que vai processar o denunciante, deputado Alberto Fraga (PMDB-DF), pelo crime de exercer uma das prerrogativas básicas do seu mandato parlamentar. Ao mesmo tempo -segundo leio na coluna de Elio Gaspari-, agentes do governo se mexem para evitar que Boris Casoy, o único entrevistador da TV paulista que teve a ousadia de perguntar algo a Lula sobre as Farc na campanha eleitoral, volte a magoar a alma sensível do sr. presidente.

Pior ainda, ao mobilizar a Advocacia Geral da União contra Alberto Fraga para que o processe, o sr. presidente da República se serve de um órgão público como se fosse escritório de seus advogados particulares. A ofensa do deputado -se ofensa há em pedir uma CPI- não foi feita à Presidência, mas ao sr. Luiz Inácio e ao seu partido, que são os únicos interessados na lide e aos quais cabe a obrigação de devolver, de seu bolso, o custo de cada minuto de trabalho dispendido pelos advogados da União numa causa de interesse privado.

O sr. presidente da República se serve de um órgão público como se fosse escritório de seus advogados particulares.

E ninguém na mídia parece escandalizado com essas coisas, nem cobra a averiguação das denúncias, nem censura ao sr. presidente a privatização da Advocacia Geral. A classe jornalística parece empenhada em ocultar tanto a denúncia quanto a sua repressão; a primeira noticiada somente por mim e pela imprensa de Brasília, a segunda em discretíssimas notinhas embutidas em cantos de páginas, sem menções à irregularidade do procedimento presidencial, por meia dúzia de jornais. Enquanto isso, no Parlamento e na TV, ecoa um barulho dos diabos em torno de delitos incomparavelmente menos graves atribuídos a Antônio Carlos Magalhães.

Mensagens pejorativas contra o deputado Fraga já começam a circular pela internet, num esforço de "character assassination", partido não se sabe de onde, mas destinado a minar o interesse do público nas provas e documentos que o deputado promete apresentar na CPI, para cuja constituição já conta, segundo diz, com 127 assinaturas de parlamentares, faltando apenas 45.

Não conheço Alberto Fraga, nada sei de suas virtudes e pecados, mas sei que, no tempo de Fernando Collor, ninguém alegou as más qualidades morais de seu irmão Pedro como desculpa para não lhe ouvir o testemunho. Sei que contra os "anões do orçamento" ninguém se inibiu de convocar como depoente principal um notório vigarista e assassino. Que me

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importa, pois, se o denunciante é bonzinho ou malvadinho? Tudo o que espero é que as provas que ele diz ter sobre o que parece ser o maior crime eleitoral de todos os tempos sejam reveladas. Mas não me espanta que os primeiros a tentar encobri-las sejam justamente os apóstolos da "transparência": telhados de vidro, por definição, são transparentes.

O sr. presidente da República foi fundador e, por dez anos, líder máximo do Foro de São Paulo, coordenação do movimento comunista no continente, na qual partidos legais de esquerda se articulam numa estratégia comum com organizações terroristas e criminosas como as Farc e o MIR chileno -este último acionista maior da indústria brasileira de sequestros. Só isso já bastaria para fazer dele um tipo suspeito, cuja atuação em tão turvas companhias deveria ser meticulosamente investigada.

No entanto, nas eleições de 2002, a expressão "Foro de São Paulo" foi totalmente suprimida da mídia e dos debates. Nunca, em 37 anos de jornalismo, vi um esforço de ocultação tão geral, tão cínico, tão obstinado. Também, pudera: dos concorrentes do sr. Luiz Inácio, dois eram seus parceiros no Foro de São Paulo e o terceiro, que sabia de tudo, não desejaria por nada deste mundo perturbar com conversas desagradáveis uma eleição planejada para ser uma festinha íntima de partidos de esquerda.

Na época, escrevi bastante contra tudo isso, mas rejeitava categoricamente qualquer hipótese de interesse financeiro nas ligações entre Lula e a narcoguerrilha colombiana. Agora, diante das novas denúncias, o silêncio da mídia, dos políticos e das lideranças empresariais deixa de ser apenas imoral, para se tornar francamente criminoso.

Quando toda a elite falante de um país se torna tão subserviente à falsa moral esquerdista, ela está pronta para admitir que, no fundo, um candidato presidencial receber dinheiro do narcotráfico não tem nada de mais, desde que seja narcotráfico "de esquerda". E, então, nivelar o Brasil à Colômbia será excesso de otimismo: na Colômbia, as Farc são odiadas por 98% da população. Aqui, não há amabilidade que baste para as agradar. O presidente da República recusa-se a chamá-las pelo que são; três comandantes da organização se abrigam no território nacional enquanto o ministro da Defesa alega nada ter contra eles; e os técnicos em guerrilha que ela envia para aprimorar a violência carioca são chamados pela mídia de "dissidentes" -sem a menor prova de que o sejam-, para não macular a reputação da distinta entidade assassina.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030503globo.htm

Um discurso dos demônios

Olavo de CarvalhoO Globo, 03 de maio de 2003

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Outro dia, numa de suas crônicas, Carlos Heitor Cony disse que quase toda a violência carioca vem do narcotráfico. No fundo, todo mundo sabe disso. Mas poucos estão dispostos a perceber que essa mera constatação basta para impugnar, na base, o chavão de que a miséria gera o crime. Como poderia a miséria dar à luz um negócio bilionário, que compra armas no Oriente Médio para trocá-las por duzentas toneladas anuais de cocaína das Farc? Que espantoso milagre de criação “ex nihilo” seria esse! Livros, filmes, artigos e entrevistas em profusão idiotizam o público para lhe impingir a crença nesse milagre. Mas eles próprios não são nenhum milagre: explicam-se pela irmandade ideológica entre a narcoguerrilha e a casta dos intelectuais e artistas de esquerda, instrumentos mais ou menos conscientes de uma cínica operação de despistamento: nada é mais confortável, para aqueles que buscam a destruição da sociedade por meio da violência e do crime, do que contar com uma equipe de public relations que, sob ataques grandiloqüentes a alvos genéricos como “a miséria”, “a exclusão”, “a injustiça social”, mantêm ocultos e fora de suspeita os agentes concretos e os beneficiários reais da destruição.

Mas alguns não se contentam com isso. Vão além e, voltando-se para o público que pagou para ser ludibriado, jogam sobre ele a culpa de tudo:

-- Vocês, a classe média que lê livros e vê filmes, são os exploradores, os culpados da exclusão social que força à criminalidade os humilhados e ofendidos.

A comoção na platéia mostra que o golpe a atingiu no plexo solar: pessoas incapazes de chutar um cão sarnento saem dali contritas de arrependimento pelo crime de ter uma casa, um carro, um emprego, num país em que tantos excluídos, por falta dos mais mínimos recursos para uma vida digna, são forçados, pobrezinhos, a gastar um dinheirão em cocaína na Colômbia para revendê-la nas portas das escolas às crianças brasileiras.

O estereótipo, condensado no símbolo carioca dos morros pobres ao fundo da cidade rica, já se arraigou profundamente na alma do cidadão, que, sem lembrar-se de ter feito mal algum, de repente se descobre, pela boca dos profetas da mídia e do show business, autor do mais hediondo dos crimes: a injustiça social.

E ninguém pára para fazer as contas: quanto dinheiro sobe da cidade para os morros, e quanto desce? Quanto, em drogas? Quanto, em assaltos e em resgates de seqüestros? Quanto, em impostos para dar assistência médica, luz, água e telefone a quem não paga jamais nada disso?

Façam as contas e digam: quem, nisso, é o explorado, quem o explorador? Se a fortuna que sobe os morros ficasse lá, eles seriam a Suíça. Mas ela vai direto para os Fernandinhos e daí para as Farc. A origem do crime neste Estado não é a miséria, mas é a mesma da miséria: a população pobre do Rio é explorada, sim, mas não por “nós”, a classe média -- é explorada pelos senhores do crime, que a escravizam para utilizá-la em atividades ilícitas e ainda se servem dela como emblema publicitário para esconder-se por trás de outdoors contra a “exclusão social”.

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Se o discurso de inculpação da classe média permanece eficaz, é porque o orador, prudentemente, não diz “vocês”. O discurso de acusação direta o tornaria antipático. É preciso dar à inculpação ares de confissão, para que o acusador não pareça falar contra a platéia e sim em nome dela. Então, arregalando os olhos como um ator expressionista e batendo histrionicamente no peito, ele grita “Nós”, como se quisesse assumir uma parcela da culpa. Mas, no curso dessa fala, ele não se apresenta como aquilo que é: um membro da intelectualidade esquerdista, advogado do banditismo. Durante a performance ele desempenha o papel genérico de homem de classe média, fazendo-se de chamariz e fingindo atrair a si as culpas apenas para, num golpe de jiu-jitsu, desviar-se delas no derradeiro instante e deixá-las cair sobre a platéia, enquanto ele, deslizando rapidamente do papel de acusado ao de testemunha de acusação, se safa impune. A malícia requerida para esse ardil é quase demoníaca. Dostoiévski não errou nada ao chamar a esse tipo de intelectuais “Os Demônios”.

Não espanta que, entre esses indivíduos, seja quase unânime a adesão à tese liberacionista. Legalizado o comércio de drogas no maior mercado consumidor da América Latina, estaria garantido o afluxo regular e lícito de dinheiro para a guerrilha colombiana, com sobra de incentivos fiscais e subsídios do Estado para premiar os escritores e cineastas que, nos tempos difíceis da repressão, lutaram pela boa causa.

Milhões de vidas seriam jogadas no esgoto do vício e da loucura, mas esse seria um preço barato a pagar pela glória do socialismo alucinógeno e pela prosperidade de seus apóstolos literários, jornalísticos e cinematográficos.

É desnecessário discutir em tese, abstratamente, os malefícios e benefícios hipotéticos da liberação das drogas: ela se encaixa tão claramente numa estratégia criminosa de revolução continental, que para ver o quanto é má basta identificar o seu lugar e função no plano geral da máquina.

Fechada a torneira da URSS, o movimento comunista no continente tem hoje uma e uma só fonte de sustentação financeira: o crime, o narcotráfico. Se querem legalizá-lo, é apenas para não ter de permanecer por muito tempo no duplo e desconfortável papel de seus colaboradores materiais e de seus perseguidores nominais. Quando um político respaldado num esquema revolucionário é casualmente elevado ao poder por via legal numa democracia, ele fica sempre nessa posição ambígua, na qual não pode resistir indefinidamente sem ser desmascarado. Antes, pois, que o mal cresça, é preciso mudar a regra do jogo, tornando lícito o ilícito e desincumbindo o governante do doloroso encargo de fingir que persegue aqueles a quem, por trás do pano, prometeu ajudar. Daí a gritaria pela legalização das drogas.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030504zh.htm

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Velho hábito

Olavo de CarvalhoZero Hora, 04 de maio de 2003

 

“Infelizmente está se tornando um hábito entre nós responder a opiniões que desagradam não com outras opiniões, mas com difamação”. A observação é de Luís Fernando Veríssimo, e é bastante exata.

Mas o hábito não é novo, nem brota das massas incultas, autorizadas pela sua própria ignorância a pisotear as regras da discussão racional.

Responder a argumentos com rotulações insultuosas, apelidos pejorativos e insinuações infamantes tem sido, há décadas, o tratamento-padrão reservado pelos intelectuais de esquerda a seus desafetos ideológicos, ou melhor: àqueles que eles próprios assim nomeiam, às vezes dando sentido de combate ideológico a coisas ditas e escritas com objetivo totalmente diverso, que mudam de significado ao ser examinadas por uma ótica em que tudo é ideologia.

Assim fazem e não poderiam fazer de outro modo, educados que foram na retórica leninista, que recomendava não discutir para “demonstrar os erros” do adversário, e sim para “destrui-lo”.

A história comprova-o abundantemente. Nossos maiores intelectuais que não consentiram em rebaixar-se a intelectuários, como dizia Gilberto Freyre, foram vítimas de campanhas de “character assassination”, não raro de uma absurdidade brutal. O caso de Roberto Campos, polemista jamais contestado, sempre aviltado, já se tornou clássico. Otto Maria Carpeaux, fugido do nazismo, foi recebido pelos comunistas brasileiros com uma chuva de insultos, porque lhes pareceu -- na época -- um conservador. Contra Gustavo Corção, não houve ofensa que bastasse. Nunca se discutiu uma única idéia dele. Xingá-lo bastava para apaziguar as altas exigências intelectuais da esquerda letrada. José Osvaldo de Meira Penna, então, foi acusado de tudo – de espião da CIA, de agente sionista, de propagandista a soldo do reverendo Moon -- por gente que fugia de enfrentá-lo num debate sério. O próprio Gilberto, campeão da causa anti-racista, foi chamado até de... racista.

Se a história de seis décadas não fosse tão rica de exemplos, restaria o meu próprio testemunho pessoal. Quando, antevendo as reações insultuosas e burras, coloquei satiricamente na abertura de um de meus livros um “formulário-padrão para a redação de críticas”, todo ele constituído dos chavões de praxe colhidos na literatura crítica esquerdista, nem eu mesmo imaginava que seria preenchido tão fielmente por Gerd Bornheim, Muniz Sodré, Emir Sader, Carlos Nelson Coutinho, Marilena Chauí e outros rotuladores compulsivos, todos com pose de intelectuais respeitáveis, todos abstendo-se de tentar refutar uma só linha de minhas alegações.

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Desde então, as carimbações infamantes e insinuações criminosas não pararam de cair sobre mim às dúzias, às centenas, criando uma imagem postiça de sujeito odioso e fanático, que, exibida a jovens ignorantes nos bancos de universidades, desperta neles uma compreensível vontade de me matar. Prosseguida por tempo suficiente, espalhando-se em círculos cada vez mais amplos, a acumulação de infâmias alcança o resultado previsto por Lênin: torna-se indução à violência. O adversário não é refutado, mas é destruído. Como o pavio é longo, os primeiros a acendê-lo estão agora longe demais para ser lembrados. Pairam acima de qualquer suspeita. Virando o rosto para não enxergar a ação de suas palavras, conservam a consciência tranqüila e um ar de dignidade e moderação verdadeiramente admiráveis.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030510globo.htm

A injustiça revoltada

Olavo de CarvalhoO Globo, 10 de maio de 2003

 

Para revoltar-se contra a injustiça não é preciso nenhum senso de justiça: basta um interesse pisado, um calote, uma inveja, um ciúme, o desconforto visual do burguês que contempla a multidão esfarrapada. Ninguém se indigna mais com a injustiça do que o injusto quando a sofre. A revolta do homem honesto assaltado não se compara, em intensidade e fúria, à do ladrão lesado por seus pares. A primeira contenta-se, no mais das vezes, com o esquecimento; a segunda não se aplaca nem com a vingança: após matar o ofensor, ainda se sente credora do destino que não lhe devolveu, com os bens subtraídos, o tempo perdido em humilhação e espera.

O homem que clama contra a injustiça não se ergue, só por isso, acima dela: apenas colore a injustiça geral com os tons do seu ódio pessoal, o que não o torna mais justo que a média dos outros, mas lhe infunde aquele falso sentimento de dignidade que o imuniza contra a percepção de suas próprias injustiças. Quem, na embriaguez da revolta, há de tomar distância de si para o exame de consciência e o arrependimento? A revolta contra a injustiça é um poderoso narcótico do senso moral.

Quando não se volta contra uma injustiça localizada e precisa, mas contra aquele estado de coisas geral e difuso que se chama “injustiça social”, esse ódio se torna ainda mais entorpecente: atacando um alvo impessoal e abstrato, nunca tem de provar-se melhor que ele numa acareação direta. Está livre para dizer dele o que bem entenda, num paroxismo de imputações levianas e vociferações hiperbólicas do qual nenhuma veracidade se exige e pelo qual não terá de responder nunca, nunca mais. O discurso contra a injustiça social é o

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ventre onde se gera a maior quantidade de mentiras, de calúnias, de taras do sentimento e aberrações do intelecto.

Ademais, é longo, é excessivamente longo o caminho que vai da denúncia inicial até a conquista dos meios de fazer justiça, isto é, a conquista do poder. Quantos revolucionários e reformadores messiânicos, prometendo a reparação das injustiças no final, não se livraram de responder pelas que foram praticando por sua vez ao longo do trajeto, quase sempre maiores e mais sangrentas do que aquelas que denunciavam? Cada palavra dos discursos de Robespierre, Lenin, Stalin, Mussolini, Hitler, Mao e Fidel Castro respinga de ódio a injustiças reais e imaginárias -- e todos os seus contemporâneos somados não produziram tanta injustiça quanto eles.

Na história da modernidade, a ascensão do sentimento de injustiça, que é a marca do seu ethos predominante, fazendo nela as vezes da eqüidade romana, da fidelidade judaica e da caridade cristã, vem junto com a proliferação de injustiças, crueldades e pavores jamais imaginados pelas épocas que a antecederam.

A revolta contra a injustiça não é a expressão, mas a inversão exata do anseio bíblico de justiça. Este se esmera em abster-se de cometer injustiça, mesmo ao preço de sofrê-las. Aquele busca esquivar-se de sofrê-las, mesmo ao preço de cometê-las ainda piores e em maior número. Só na mente deformada de um Frei Betto esses dois sentimentos opostos e inconciliáveis podem parecer um só.

A revolta contra a injustiça é o mais baixo sentimento moral humano. Por isso mesmo, ela é o mais fácil de incutir nas massas para as mobilizar politicamente, e é normal que partidos e líderes façam dela, em seu proveito próprio, o mandamento primeiro ou único da moralidade pública, o critério e o emblema que distinguem os bons dos maus.

Quando isso acontece, a consciência moral do povo está no seu ponto mais baixo. Todos se sentem lesados e injustiçados, todos se inflam de revolta, todos discursam, vociferam, acusam — e todos, cada vez mais, eximem-se de julgar seus próprios atos. A indignação sobe contra a moralidade que baixa, sem reparar que ela baixa, justamente, sob o peso dos insultos que recebe da revolta insana.

A revolta contra a injustiça paralisa e corrompe o senso moral, trocando a sua complexa engenharia de sentimentos e valores pelo estereótipo simples de um rancor padronizado, repetível até a alucinação, acionável por reflexo condicionado. A revolta contra a injustiça está para os sentimentos morais — para o amor, a honra, o dever, a bondade, a lealdade — como o uivo do lobo está para um coral de Bach. Se, neste país, a ascensão triunfal de uma ideologia que consagra a revolta contra a injustiça como pedra de toque da qualidade moral dos seres veio junto com a expansão generalizada da imoralidade, do banditismo e da corrupção, isso não foi coincidência de maneira alguma. A degradação do senso moral em discurso ideológico é um processo entrópico, a passagem do diferenciado ao indiferenciado, do cultivado ao rudimentar, da reflexão ao reflexo, do argumento ao slogan.

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É impossível que a conduta da sociedade não reflita, na deterioração geral das normas e dos atos, uma queda tão vertiginosa do nível de consciência de seus líderes, de seus intelectuais, de seus guias e modelos.

Quando, anos atrás, escrevi a série de artigos “Bandidos e letrados”, lembrando a intelectuais, jornalistas e artistas a culpa que lhes cabia no fomento à criminalidade, uma gota de luz que restasse no fundo de suas almas os teria induzido ao exame de consciência e à mudança de rumo. Mas essa gota já havia secado. Desde então, o caos e a violência cresceram até o insuportável -- e eles continuam bradando contra a “injustiça social” desde o alto de seu pedestal de inépcia e vaidade.

Foi por essa via que chegamos ao completo entorpecimento mental de uma sociedade idiotizada que sonha em poder reprimir o narcotráfico protegendo as Farc, acabar com os seqüestros sem tocar na reputação do Foro de São Paulo, restaurar a autoridade demolindo as Forças Armadas, impor a ordem dissolvendo a moral e a religião, instaurar o respeito por meio do deboche, da insolência pueril e da lisonja às paixões mais baixas da alma humana. O poço de inconsciência em que a liderança intelectual mergulhou este país não tem fundo.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030517globo.htm

Entre os Cacás e os Gushikens

Olavo de CarvalhoO Globo, 17 de maio de 2003

 

O primeiro passo para a maturidade intelectual é habituar-se a buscar as realidades e os conceitos por trás das palavras, em vez de deixar-se impressionar pelas associações emocionais que a linguagem corrente foi depositando nelas.

Guardadas no fundo da memória afetiva, essas associações podem ser evocadas por simples reflexo condicionado. Daí o poder hipnótico das palavras e frases feitas cuja menção desperta reações imediatas de agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação, independentemente da referência a fatos ou coisas identificáveis.

Fatos e coisas, ao contrário, nem sempre podem ser evocados por mera estimulação reflexa, exigindo antes um esforço de reconstituição consciente e crítico. E conceitos são construções ideais com conteúdo fixo repetível, que permitem à mente retornar aos “mesmos” pontos da experiência para compará-los, associá-los, distingui-los, inseri-los em estruturas lógicas maiores.

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Entre o homem que pensa por esforço consciente e aquele que se deixa arrastar pelo automatismo da memória afetiva, a diferença é quase tão grande quanto a que existe entre um adulto e um bebê de colo. O segundo, quando opina, literalmente não sabe do que fala: expressa apenas seu estado de alma, passando a léguas do objeto do qual imagina estar discorrendo. Excetuada uma estreita faixa de conversação pragmática, é assim que pensa a maior parte das pessoas. Suas opiniões traduzem anseios, cismas, temores: quase nada da realidade em que vivem.

O problema que daí resulta para as democracias é temível. De um lado, as noções de direito, liberdade, debate aberto, etc., pressupõem no cidadão a força de superar intelectualmente seu círculo de impressões subjetivas e de comunicação pragmática. De outro lado, a propaganda ideológica aposta tudo nas reações automatizadas, programáveis através de símbolos, chavões e slogans. O cidadão é convidado a exercer capacidades intelectuais superiores que, ao mesmo tempo, são reprimidas e massacradas em favor de uma lógica pediátrica na qual o rótulo vale pela substância e a proximidade de duas palavras é identidade de coisas.

Para desfazer o feitiço das palavras, é preciso descompactá-las, separando os vários significados e intenções que subentendem, e depois montá-los de novo segundo um conhecimento de experiência traduzido em conceitos claros.

Mas o que a razão se esforça em distinguir e ordenar é justamente aquilo que a propaganda busca mesclar indissoluvelmente numa grudenta pasta semântica de enorme força sugestiva e significado objetivo nenhum.

Desvencilhar-se dessa pasta exige uma concentração de espírito, uma amplitude de informação e um repertório verbal que estão infinitamente acima do que se pode esperar, no Brasil de hoje, não só da população humilde mas também de gente universitária.

Daí que essas pessoas tomem como realidade qualquer associação de palavras que se torne suficientemente usual para não suscitar estranheza.

A expressão “sociedade injusta”, por exemplo, é de uso tão freqüente que não parece conter nenhuma intenção maligna, apenas a descrição de um estado de coisas que todos admitem como real. Mas o que a experiência mostra é apenas uma sociedade pobre, mal organizada, encrencada, sofredora. Nessa sociedade há seguramente injustiças, mas chamar “injusta” à sociedade enquanto tal subentende que haja um tribunal superior a ela, capaz de julgá-la como um todo. E nenhum tribunal como esse pode existir, exceto no Dia do Juízo, fora do tempo histórico. Os homens de religião, quando muito santos, são às vezes admitidos como porta-vozes virtuais dessa justiça supratemporal, com a condição de que exerçam esse papel com modéstia e prudência, limitando-se a dar conselhos sem querer impor suas decisões à comunidade. Mas, a partir do momento em que o símbolo “sociedade injusta” adquire foros de realidade na imaginação das multidões, qualquer partido ou grupo que lance constantes acusações à “sociedade” acaba sendo aceito como porta-voz daquela instância judiciária absoluta, superior a todas as jurisdições humanas. Se a sociedade é injusta, ela não pode fazer justiça. Aquele que prometa fazê-la em seu lugar torna-se pois juiz da sociedade inteira: torna-se autoridade moral ou religiosa, mas sem o freio da abstinência política que

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limitava a esfera de ação dos religiosos tradicionais. Tem as chaves dos dois reinos: poder terrestre e autoridade celeste, César e o Papa fundidos na onipotência de uma elite militante. Antonio Gramsci recomendava explicitamente que a autoridade do Partido se elevasse ao estatuto de um “imperativo categórico”, de um “mandamento divino” (sic) que moldasse e dirigisse todas as discussões desde alturas invisíveis à massa dos cidadãos, que seriam então facilmente conduzidos como bois de carro pela elite partidária no instante mesmo em que acreditassem desfrutar de plena liberdade.

Somente uma força poderia opor-se a essa estratégia: a educação, a preparação dos cidadãos para o uso maduro e refletido da linguagem. Mas, se as instituições educacionais se tornaram caixas de ressonância do discurso ideológico, está tudo perdido: a análise dos símbolos é condenada como propaganda, enquanto a propaganda é aceita como traslado literal de realidades inegáveis.

Quando se chega a esse estado de coisas, a derrocada total da inteligência se segue inexoravelmente, reduzindo a cultura à propaganda. Então só resta decidir se a propaganda seguirá à risca as normas da burocracia ou, mais gramscianamente, se deixará enfeitar pelas fantasias vaidosas de artistas colaboracionistas -- um debate que, por essas mesmas razões, só interessa a colaboracionistas e burocratas, ou Cacás e Gushikens.

***

Hoje à tarde, o físico exilado Juan Lopez Linares, cujo filho pequeno está retido em Havana, acenderá 75 velas em frente ao consulado de Cuba em São Paulo para reivindicar a libertação dos prisioneiros políticos cubanos. Espera-se que Fidel Castro não veja nisso o risco iminente de deflagração de uma guerra mundial.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030518zh.htm

Os intelectuais

Olavo de CarvalhoZero Hora, 18 de maio de 2003

 

Que se entende por “intelectual” no Brasil de hoje? É, em essência um sujeito bom de bico empenhado em ludibriar a massa de estudantes semi-analfabetos e as pessoas de origem humilde, a quem impressiona com promessas de uma vida melhor sob o tal do socialismo, um regime maravilhoso cuja principal virtude consistirá em não ser nada daquilo que existe nos países socialistas.

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Quem quer que se dedique a isso com uma certa regularidade ao longo dos anos está habilitado a uma cátedra universitária, a subsídios estatais para a publicação de seus discursos gravados, a bolsas e fellowships de mil e uma ONGs milionárias com direito a viagens pelo Exterior.

That´s all.

Nada mais se exige, nada mais se pergunta, nada mais se cobra do pretendente a homem de letras. Se for negro, índio, gay ou mulher, isso ajuda um pouco, mas não é indispensável. O dr. Emir Sader nunca foi nada disso, mas reconhecem-lhe os méritos de quem fosse todas essas coisas ao mesmo tempo.

Há, é claro, intelectuais que ficam temporariamente à margem da oratória popular e só se dedicam a conversar uns com os outros sobre os assuntos da moda entre seus congêneres parisienses. Mas a qualquer momento podem ser convocados para assinar manifestos, gritar em passeatas, mostrar indignação ante as câmeras de TV ou desempenhar qualquer das outras ações verdadeiramente substantivas do seu ofício.

As conversações internas do grêmio, a que se dedicam nos intervalos desses momentos culminantes, podem parecer extremamente complexas à população que apreende pedaços delas por meio de suplementos culturais ou publicações similares, mas, quando examinadas de perto, mostram referir-se sempre ao estrito repertório dos assuntos de interesse dessa comunidade, os quais, sob uma impressionante variedade de formas e camuflagens, são três e apenas três: sexo, dinheiro e poder. Não há uma só tese universitária, alocução de cátedra, ensaio filosófico, artigo de jornal ou declaração televisiva dessas pessoas que, de maneira mais direta ou mais indireta, não verse sobre alguma dessas três coisas, sobre as três juntas ou sobre a falta de alguma delas. Nada mais.

Daí o interesse que suas palavras despertam numa população onde cada um está convicto de jamais ter tanto prazer sexual quanto lhe convém, tanto dinheiro quanto merece ou tanto poder quanto lhe falta para resolver todos os problemas nacionais e alguns internacionais.

Não há uma só dessas criaturas que não viva, em essência, do dinheiro dos impostos, ao qual se acrescenta a contribuição de entidades imperialistas como as Fundações Ford, Rockefeller e McArthur, dinheiro que ao ser dado a essas pessoas se limpa de todo ranço reacionário ou antipatriótico e se torna uma força viva a serviço do bem.

Não há também entre elas uma só que passe necessidades, sofra desemprego e privações ou fique desprovido por um só instante da solidariedade multitudinária dos seus pares.

Em qualquer lugar do mundo em que se encontre, o sujeito tem hospedagem e emprego garantidos e uma rede de contatos que o farão sentir-se em casa -- respaldo humanitário indispensável, porque não há nada mais triste para um autêntico intelectual brasileiro do que estar longe de Garanhuns ou de Catolé do Rocha, perdido no deserto cultural e humano de Nova York, de Londres ou de Paris.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030522jt.htm

Equilíbrio simulado

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 22 de maio de 2003

 

O noticiário sobre a dupla manifestação de sábado passado, contra e a favor das execuções de prisioneiros em Cuba, mostra que a nossa mídia chegou ao nível de cinismo da Enciclopédia Soviética, que trocava as cabeças dos personagens nas fotos para ajustar a História à propaganda oficial.

A simulação de equilíbrio, ao descrever as duas manifestações como fenômenos da mesma espécie, foi programada deliberadamente para ocultar o essencial.

O essencial é que as 75 velas acesas em frente ao consulado cubano em São Paulo, em protesto contra a prisão de idêntico número de pessoas, foram iniciativa pessoal de um exilado, o físico Juan José Lopes Linares, sem nenhum apoio de partidos ou entidades quaisquer, enquanto a contramanifestação, calculada para abafar a voz solitária de um oprimido, foi respaldada por algumas das mais ricas e poderosas organizações militantes deste país. Essas organizações têm interesse político e econômico no regime cubano, ao passo que o único interesse de Linares é trazer ao Brasil seu filho Juan Paolo, menor de idade, que continua retido na ilha pela polícia política de Fidel Castro.

As duas manifestações não são equiparáveis. Linares não é um político, não é um militante, não luta pelo poder, não tem uma receita ideológica para vender ao país. É apenas uma vítima do regime cubano, um pai desesperado que quer seu filho de volta e que sente piedade de seus companheiros de infortúnio. As pessoas que compareceram ao seu ato público foram lá porque quiseram, porque ouviram falar do acontecimento casualmente, porque leram a nota que publiquei na imprensa carioca. Não há entre elas o mínimo vínculo de militância, a mínima disciplina comum, a mínima unidade ideológica, a mínima obediência a um comando nacional ou internacional.

Os do outro lado, agitadores profissionais com carros de som e tropa de choque organizada, foram convocados por seus comandos partidários e sindicais, em obediência à rotina disciplinar da militância, como iriam, sem pestanejar, aonde quer que fossem chamados.

Nivelar as duas manifestações, apresentá-las como confronto de facções ideológicas, é falsear propositadamente a descrição dos fatos, para dar a impressão de que no Brasil existe concorrência democrática entre grupos de opinião, coisa que está completamente banida

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deste país pelo menos desde 2002, quando uma festinha de partidos de esquerda, pré-combinada no Foro de São Paulo, foi consagrada pela totalidade da mídia cúmplice como "a eleição mais transparente de toda a nossa história".

A única concorrência que se admite hoje neste país é entre socialistas e comunistas, ou esquerdistas moderados e radicais. A defesa explícita do livre mercado, da democracia liberal e da ética tradicional judaico-cristã está fora do repertório dos partidos existentes, está fora da vida pública: refugiou-se na intimidade dos lares, no gueto eletrônico dos blogs, nas rodas de amigos, no protesto pessoal de vozes isoladas.

Quem quer que tente dar a esses protestos pessoais o sentido de ações políticas organizadas, equiparando-as, para simular democracia, às de partidos milionários, é um farsante, um agente de desinformação a serviço da opressão esquerdista que vende como "pluralismo" a completa ocupação do espaço político nacional pelos seus próprios debates internos, o bom e velho "centralismo democrático" leninista.

Tudo vem sendo feito para tornar inviável qualquer oposição "de direita" ao governo petista, para reduzir o quadro político nacional a uma discussão em família entre a esquerda e a esquerda da esquerda. Todos colaboraram para isso: o empresariado e a mídia, os intelectuais, os partidos políticos, cada um disposto a vender sua dignidade em troca de uma vil sobrevivência de escravo e bajulador.

Também não são equiparáveis, a título nenhum, a situação dos 75 encarcerados e a dos cinco cubanos presos nos EUA, a que a contramanifestação biônica quis dar ares de vítimas inocentes. Estes não foram acusados de roubar um ferry boat, de fugir em busca de um futuro melhor para suas famílias. Foram acusados de espionagem. E não foram condenados a toque de caixa, no prazo de três dias, sem direito de defesa, por um tribunal secreto, num simulacro kafkiano de julgamento.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030524globo.htm

Golpe de estado no mundo

Olavo de CarvalhoO Globo, 24 de maio de 2003

 

Que existe um neoglobalismo em ação, um novo Império cuja expansão coloca em risco as soberanias nacionais, ninguém no Brasil duvida. Todos os nossos líderes políticos, intelectuais e militares se dizem conscientes e alertas quanto a esse ponto. Mas, quando perguntamos de onde vem o perigo, as respostas provam que estamos conversando com

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sonâmbulos e teleguiados, prontos a deixar-se usar como instrumentos pelo próprio inimigo que alegam combater.

Não sabem, por exemplo, o que o Império está fazendo, com discreta e espantosa facilidade, contra um país bem mais forte que o Brasil: a Grã-Bretanha.

A Grã-Bretanha como nação independente está para acabar nos próximos dias, quando Tony Blair oficializar sua anuência à nova Constituição da União Européia, que cria os Estados Unidos da Europa e transfere para a sede do Império em Bruxelas o poder de decisão do governo de Londres sobre orçamento, comércio, transportes, defesa nacional, relações internacionais, imigração, justiça e direitos humanos, reduzindo o Parlamento à condição de assembléia local subordinada.

Há quem diga que Blair deveria submeter o assunto a um referendo, mas ele não quer. Alega que a questão é complicada demais para ser julgada pelo povo. É assim que se fazem hoje os golpes de Estado: por meio de passes de mágica incompreensíveis à multidão. Uma pesquisa do jornal “The Sun” mostrou que, de fato, 84 por cento dos eleitores britânicos ignoravam a iminente transferência de soberania.

Mas, deste lado do oceano, a ignorância é maior ainda. Aqui, até as elites desconhecem tudo do novo quadro internacional. Imaginam que o neoglobalismo é uma extensão do bom e velho “imperialismo ianque” e, infladas de antiamericanismo, se preparam para combater os marines na selva amazônica.

O governo global que se forma ante os nossos olhos não é americano: é uma aliança das velhas potências européias com a revolução islâmica e o movimento esquerdista mundial. Suas centrais de comando são os organismos internacionais, e a única força de resistência que se opõe à mais ambiciosa fórmula imperialista que já se viu no mundo é o nacionalismo americano.

Os planos do governo mundial estão expostos desde 1995 no documento “Our Global Neighborhood,” publicado por uma “Comissão de Governança Global”, que prega abertamente “a subordinação da soberania nacional ao transnacionalismo democrático”. Esses planos incluem: 1. Imposto mundial. 2. Exército mundial sob o comando do secretário-geral da ONU. 3. Legislações uniformes sobre direitos humanos, imigração, armas, drogas etc. (sendo previsível a proibição dos cigarros e a liberação da maconha). 4. Tribunal Penal Internacional, com jurisdição sobre os governos de todos os países. 5. Assembléia mundial, eleita por voto direto, passando por cima de todos os Estados Nacionais. 6. Código penal cultural, punindo as culturas nacionais que não se enquadrem na uniformidade planetária “politicamente correta”.

É o Estado policial global, a total liquidação das soberanias nacionais. E não são meros “planos”: com os Estados Unidos da Europa, tudo isso entra em vigor imediatamente no Velho Continente, da noite para o dia, sem consulta popular, sem debates, sem oposição, anunciando para prazo brevíssimo a extensão das mesmas medidas para o globo terrestre inteiro pelo mesmo método rápido da transição hipnótica.

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A Inglaterra, que parecia resistir, cedeu. Hoje está claro que o apoio de Blair aos EUA no Iraque se destinou somente a amortecer o choque da traição que viria em seguida. Só num país o assunto é discutido abertamente, e a opinião pública se volta em massa contra os planos da Governança Global: os EUA.

A guerra entre os EUA e o governo mundial já começou. Se a soberania americana cair, cairão todas. E o Brasil, burro como ele só, acredita defender a sua armando-se de prevenções contra os EUA e abrindo-se gostosamente aos detonadores explícitos de toda soberania.

Uma das causas desse trágico engano é a incultura pura e simples. Mas a desinformação ativa também pesa nisso. Uma de suas inumeráveis fontes é o sr. Lyndon La Rouche, que se faz de herói antiglobalista vendendo receitas de antiamericanismo no Terceiro Mundo e é muito lido no Brasil. Num panfleto recente, ele chegou ao cúmulo de associar a política externa de Bush aos planos de governo mundial traçados por Herbert George Wells num livro de 1928, “The Open Conspiracy”.

Isso é a exata inversão da realidade. As idéias de Wells germinaram na Fabian Society de Londres, entidade socialista sob orientação da chancelaria soviética, e são a origem direta dos planos de “Governança Global” da ONU, contra os quais, precisamente, se volta a política externa de George W. Bush.

Lendas e mentiras sobre a Amazônia também ajudam a enganar todo mundo, criando a ilusão de que precisamos defendê-la contra as ambições americanas. Quem quer que investigue um pouco a presença estrangeira na Amazônia verificará que ela se constitui maciçamente de ONGs européias. Há algumas americanas, sim, mas são as mesmas que subsidiam as campanhas “pacifistas” anti-Bush, o esquerdismo internacional e, em última análise, o terrorismo.

Ignorantes e semiloucos, vemos a realidade às avessas, pedimos socorro ao bandido e colocamos nossos sentimentos nacionalistas a serviço do neo-imperialismo global, que vai nos subjugar e humilhar até um ponto que nem todos os imperialistas americanos, somados, chegaram jamais a ambicionar em sonhos.

O projeto “New American Century”, de William Kristol, mal esboçado e instantaneamente bombardeado na mídia brasileira como prova dos objetivos expansionistas do governo Bush, é apenas uma proposta, tardia e parcial, de reação possível a um esquema imperialista já implantado na Europa e em pleno processo de extensão ao resto do planeta. A guerra pelo domínio do mundo já começou. E o Brasil já entrou do lado errado.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030531globo.htm

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Explicando de novo

Olavo de CarvalhoO Globo, 31 de maio de 2003

 

Meu artigo anterior alertava aos leitores que as ambições imperialistas sobre a Amazônia -- e sobre o Brasil inteiro -- não vêm tanto do lado americano quanto daquele mesmo complexo de poderes que sustentou o lobby pró-Saddam na mídia internacional durante a guerra do Iraque.

Aglutinados nos grandes organismos burocráticos -- ONU, CE, Unesco, FMI --, e atuando também por meio de uma rede de ONGs milionárias, esses poderes têm as pretensões arrogantes de um virtual governo do mundo, criando da noite para o dia mutações políticas e sociais postiças que os povos mal chegam a entender, tomando parcelas cada vez maiores dos territórios das nações a pretexto de proteger a ecologia ou populações minoritárias, e professando abertamente destruir todas as soberanias nacionais para substitui-las pelo chamado "transnacionalismo progressista".

Suas fontes ideológicas são muitas -- do socialismo fabiano ao radicalismo islâmico, do nazifascismo ao neocomunismo e aos romantismos tradicionalistas --, e pode parecer espantoso que idéias tão heterogêneas possam servir a um objetivo unificado. Mas na conquista do poder mundial os pretextos ideológicos são simples instrumentos, enquanto a meta final é tudo, o que faz da variedade dos discursos uma vantagem em vez de um problema. Ademais, oitenta anos de experiência da propaganda soviética ensinaram que o ataque multilateral sob uma variedade de pretextos contraditórios aumenta a credibilidade do conjunto, sobrepujando em eficácia psicológica o discurso coerente.

A ambição avassaladora desse neoglobalismo, que se apresenta como uma ruptura completa com as bases da civilização ocidental -- ao ponto de o cristianismo ser formalmente excluído da lista das valores fundantes da nova CE -- tem a seu serviço recursos praticamente ilimitados. Dentro do próprio establishment americano ela tem servidores fiéis. Graças a eles, os EUA ocuparam-se, durante quase uma década, de cortar orçamentos militares e desmantelar seus serviços de segurança, tornando-se vulneráveis a ataques terroristas, enquanto a China, com a ajuda do próprio governo Clinton, subia à condição de potência nuclear capaz de ameaçar a segurança nacional americana, objetivo considerado também prioritário, hoje, para as forças armadas da CE.

Por muito tempo o povo americano, ludibriado para confundir seu interesse nacional com os do globalismo, deixou que os organismos internacionais e as ONGs a seu serviço pintassem e bordassem no seu país, como estamos deixando que o façam no nosso. Em conseqüência, ONGs ligadas à ONU e à CE já tomaram dos americanos mais de dez por cento do seu território, já impuseram às escolas dos EUA normas de ensino voltadas à destruição explícita da identidade nacional e dos valores da civilização judaico-cristã e já ganharam para a causa anti-americana as parcelas mais ativas da indústria cultural -- hoje

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meras subestações repetidoras da propaganda "transnacional progressista" --, além de subsidiar generosamente organizações terroristas.

A eleição de George W. Bush, a aprovação maciça à guerra do Iraque e a crescente hostilidade às potências européias mostraram que, finalmente, a oposição irredutível entre os interesses da América e os do neoglobalismo tinha chegado à consciência popular. A reviravolta na política externa dos EUA abalou os alicerces da burocracia mundial, suscitando uma explosão de histeria anti-americana, na qual, para cúmulo de cinismo, os próprios senhores da administração globalizada, os mais empedernidos adversários de toda soberania, apareciam como bondosos defensores de uma nação independente ameaçada pela "sanha imperialista" de George W. Bush.

Na verdade, o poderio econômico e militar dos EUA, a firmeza obstinada de Israel e a consciência histórica dos povos do Leste Europeu libertados do comunismo são as únicas esperanças de que a "pós-democracia" dos burocratas internacionais não prevalecerá.

No Brasil, o avanço do neoglobalismo se dá por várias vias simultâneas: pela ocupação da Amazônia através de ONGs ecológicas e indigenistas, pelo apoio europeu à revolução agrária do MST, pela imposição de padrões "politicamente corretos" de educação que reduzem nossa juventude à perfeita imbecilidade, pelo apoio nem sempre discreto às Farc e, sobretudo, pela desnorteante campanha anti-americana que joga sobre os EUA as culpas de seus inimigos, chegando ao absurdo de apresentar como instrumentos de interesses americanos as próprias agências da burocracia internacional.

Tudo isso é empiricamente demonstrável por montanhas de fatos e documentos que podem não ser conhecidos da elite brasileira -- sempre atrasada e inculta --, mas que se encontram reunidos em livros e teses acadêmicas de fácil acesso. Tenho analisado o assunto em aulas e conferências, desde há anos, mas não posso, no espaço desta coluna, expor o tema em toda a sua complexidade nem dar uma lista razoável de fontes. A título de amostra mínima, sugiro por ora a leitura do estudo de John Ponte, do Foreign Policy Research Institute, "The New Ideological War in the West", em http://www.fpri.org/ww/0306.200205.fonte.ideologicalwarwithinthewest.html.

Qualquer patriota sincero pode sentir-se atônito ante a novidade dessas informações, mas por isso mesmo tem a obrigação de buscar saber mais. Em vez disso, uns quantos militares da chamada "ala nacionalista" reagiram ao meu artigo com insultos e acusações caluniosas de uma baixeza indescritível, escritas em linguagem de prostíbulo (que, a contragosto mas para efeito de prova, reproduzi do meu site www.olavodecarvalho.org). Provaram, com isso, duas coisas. Primeira, que não são nacionalistas, muito menos patriotas, mas apenas anti-americanos. Dariam o Brasil a Satanás, se estivessem certos de que isso resultaria em dano para os EUA. Segunda: que muito do nosso pretenso nacionalismo mais recente, combatendo o inimigo imaginário e servindo ao inimigo real, é um tipo de alienação psicótica que, desmascarada, se torna violenta.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030601zh.htm

O império da ordem

Olavo de CarvalhoZero Hora, 01 de junho de 2003

 

Que militantes armados do MST invadam, saqueiem e ateiem fogo a uma, duas, três ou mil propriedades particulares é coisa que não me espanta. Ninguém ensina guerrilha até às crianças se não tem a intenção de fazer guerrilhas jamais.

Muito menos estranho que em vez de ser detidos pela polícia eles entreguem a ela, como criminosos, os vigias que tiveram o desplante de lhes resistir. Ninguém se intoxica da doutrina de que todos os males advêm da propriedade se não pretende tomar todas as propriedades e punir como bandido quem ouse defendê-las.

Também não me parece surpreendente que a polícia, mesmo agredida a pedradas, colabore com seus agressores e obedeça servilmente às suas ordens, prendendo quem eles mandam prender. Ela simplesmente se cansou de levar chicotadas da mídia, e, extenuada, consentiu em obedecer ao adestrador.

Também não é digno de surpresa que o governo federal, sem explicações, tome do proprietário uma fazenda gaúcha altamente produtiva, sem explicações, para dá-la de mão-beijada à organização guerrilheira, como que para premiar o crime que ela cometeu no outro extremo do país. Afinal, o presente governo segue à risca a receita do Foro de São Paulo, coordenação do movimento comunista no continente, que criou a articulação estratégica perfeita dos meios legais e ilegais para a conquista do poder absoluto.

O que me espanta, sim, é que haja pessoas capazes de acreditar que tudo isso sejam desmandos ocasionais, irregularidades, exageros que as autoridades constituídas, confiáveis como elas só, têm a mais nobre intenção de punir ou corrigir.

Pois obviamente nada disso é anormalidade, nada disso é exceção, nada disso é radicalismo avulso.

Tudo isso é norma, regularidade, lei. Tudo isso é a nova ordem social brasileira, que vai sendo instaurada progressivamente, inexoravelmente, diante de milhões de olhares acovardados, estonteados ou cúmplices que insistem em apegar-se a slogans tranqüilizantes e esperanças insensatas para não admitir a profundade do abismo que se abre à sua frente.

Quantas vezes será preciso repetir que o nosso atual presidente foi fundador e dirigente do Foro de São Paulo, que ele mesmo ajudou a conceber e subscreveu uma estratégia global

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para a instauração do socialismo no continente por meio da articulação engenhosa de discursos anestésicos e cortes cirúrgicos profundos?

Quando anos atrás o STJ do Rio Grande recusou a reintegração de posse de uma fazenda invadida pelo MST, alegando que o proprietário anterior não provara a "utilidade social" do imóvel mas sem exigir prova idêntica dos novos ocupantes, anunciei que o regime de propriedade agrária no Brasil tinha mudado e nunca voltaria a ser o mesmo.

A propriedade agrária é agora uma concessão provisória, revogável a qualquer instante por mera exigência do MST. E quem resistir irá para a cadeia.

Neste mesmo instante, milhares de teóricos do "direito alternativo" estão remoldando a interpretação de cada artigo da constituição e dos códigos, para que a reviravolta se consume hipnoticamente, sem a mudança aparente das leis, apenas de seu sentido, que passa a ser o contrário do que era, exatamente como no "1984" de Orwell.

Da noite para o dia, o que era um direito se tornará uma ameaça, o que era garantia se tornará condenação, o que era certo se tornará errado, o que era de um será de outro.

Ou vocês vão me dizer que não sabiam que "socialismo" era isso?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030605jt.htm

Independência

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 05 de junho de 2003

Intelectual independente é, por definição, aquele que fala por si, sem se arrogar outra autoridade exceto aquela inerente à inteligência, ao conhecimento e à força da personalidade. Mas, neste país, por mais que um escritor se esforce para ficar longe de partidos e grupos políticos, suas opiniões são sempre lidas como propaganda de algum deles. Basta, para isso, que desagrade aos outros. Certos leitores vão um pouco mais longe: catalogam o infeliz como cérebro de aluguel a serviço de tais ou quais “interesses”. E à palavra “interesses” segue-se quase invariavelmente o adjetivo “inconfessáveis”, dando a entender que o falante está por dentro de segredos importantíssimos.

Tão natural, espontânea e generalizada é essa reação, que ninguém se dá conta de quanto ela revela, não sobre o indivíduo de quem se fala, mas sobre o meio social que assim o julga. É que nesse meio não existe mesmo pensamento senão coletivo e instrumental. A

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expectativa geral é portanto que ninguém fale por si, mas todos “em nome de” alguma entidade ou grupo de interesses. As divergências de opinião expressam conflitos de ambições, de vontades, não diferentes apreensões do mundo real.

O pensador solitário, que no fundo não luta senão contra sua própria ignorância, é tão estranho e incompreensível nesse ambiente, que sua existência mesma é negada e, para todos os fins de conversação “culta”, ele é substituído pelo seu equivalente mais próximo na ordem volitiva: o tribuno de alguma causa ou interesse, a qual causa e o qual interesse, não sendo os do ouvinte, só podem ser algo de muito pérfido e tenebroso.

Inversa e complementarmente, aquele que se limita a ecoar o discurso do grupo a que pertence o ouvinte é aplaudido como pensador livre e independente, pelo fato mesmo de não ser nada disso. As palavras “liberdade” e “independência”, aí, não significam o que significam. Entram na conversa como expressões genéricas de louvor convencional, à maneira de “notável” ou “esplêndido”. Dissolvido o sentido da liberdade e da independência, estas podem revestir-se então de uma segunda camada de significado postiço, passando a designar o íntimo bem-estar que um grupo de pessoas sente quando suas crenças não são contrariadas, mas antes reforçadas pela autoridade aparente do pensador, evidentemente esplêndido e notável, que lhes dirige a palavra. “Liberdade”, neste segundo sentido, é ausência de desafios, de contestações, de impugnações -- de constrangimentos intelectuais, enfim, tão costumeiramente ressentidos (porca miséria!) como imposições autoritárias inaceitáveis. É assim que um escritor, quanto mais subserviente à unanimidade grupal ou partidária, mais será celebrado como corajoso outsider e apóstolo da liberdade, enquanto ao autor verdadeiramente independente se atribuirá uma variada gama de sujeições e vinculações imaginárias.

O mais deprimente em tudo isso é que o escritor assim duplamente isolado -- isolado pela sua própria independência e pela incompreensão ambiente -- nem sempre agüenta o rojão. Homens de valor como Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior acabaram se comprometendo com grupos políticos, não por interesse vil, é claro, mas em busca de respaldo social para melhor defender-se dos ataques injustos que sofriam, um da direita, outro da esquerda.

No fundo, dou graças a Deus de que os políticões “de direita” me evitem, temendo parecer solidários com as denúncias horríveis que faço contra o atual establishment esquerdista, do qual esperam sempre obter alguma esmolinha. Se gostassem de mim, eu poderia ser tentado a esperar deles algum tipo de apoio. E, se deles me viesse vantagem, ainda que modesta, eu teria me transformado num tipo vagamente parecido com o retrato que querem pintar de mim os fanáticos e cretinos de toda sorte: comunistas, petistas, direitistas laroucheanos, nacionalisteiros, anti-semitas, etc. Por frouxa que fosse a semelhança, ela me faria mal.

Antes mal interpretado do que mal acompanhado.

Mesmo a mais dura solidão intelectual é reconfortante quando nela se pode viver como o Espinosa do soneto de Machado, que “acha na independência o seu salário”, ou, melhor ainda, repetir com plena sinceridade os versos do outro Machado, o grande don Antonio:

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A mi trabajo acudo, con mi dinero pagoEl pán que me alimenta y el lecho donde yago.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030607globo.htm

Um clássico e um paralelo

Olavo de CarvalhoO Globo, 07 de junho de 2003

 

Paulo Mercadante é um de meus melhores amigos. Isso talvez devesse me inibir de escrever sobre o seu livro “A Consciência Conservadora no Brasil”, que, fora do mercado por duas décadas, volta agora em quarta edição, com nova e excelente introdução de Nelson Mello e Souza, graças à oportuna parceria da Topbooks com o Instituto de Filosofia e Estudos Interdisciplinares da UniverCidade. Mas qualquer louvor literário que eu faça a Paulo Mercadante não nasce da afeição. Eu já lia e admirava o grande escritor muito antes de conhecê-lo em pessoa, e foi essa admiração que me fez procurá-lo um dia para solicitar a honra da sua amizade, que me foi generosamente concedida. Nada pois direi direi do livro que não dissesse antes de ser amigo do autor.

A palavra “clássico” está bem gasta, mas não há outra para qualificar “A Consciência Conservadora”. É um clássico dos estudos brasileiros, não só pelas suas qualidades de estilo, que valem as de um Oliveira Martins, mas pela facilidade genial com que apreende uma das constantes fundamentais da vida nacional e torna transparente a equação por trás de alguns mistérios da nossa política.

Sua tese central, sustentada numa rica profusão de argumentos e provas, pode ser resumida em três proposições:

1. A mentalidade conservadora em geral, tal como se delineia numa tradição que vem de Edmund Burke a Russel Kirk, define-se pelo senso da continuidade temporal, pela ojeriza às súbitas mutações revolucionárias, pelo desejo de preservar a integridade do legado civilizacional por baixo das lutas e traumatismos ideológicos de cada momento histórico.

2. No Brasil, essa mentalidade adquire uma nuance peculiar, que a diferencia de todos os conservadorismos conhecidos no mundo. É que entre nós ela se instaura e se mantém por meio de uma estratégia de conciliação que, no afã de evitar as rupturas, tenta harmonizar até mesmo o incompatível. O caso mais flagrante, entre mil outros citados no livro, é a quase candura com que os mentores da nossa independência adaptaram a ideologia do liberal-capitalismo às exigências da economia escravagista, em contraste com os

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americanos que não hesitaram em se matar nos campos de batalha para afirmar a preponderância de um dos lados.

3. A conciliação a todo preço, estando na base da unidade nacional, é a origem das venturas e desventuras do conservadorismo brasileiro. De um lado, ela permitiu que o país atravessasse mudanças profundas com pouquíssimo dispêndio de sangue humano. De outro, a acomodação pragmática aos impulsos desencontrados rebaixa o valor das idéias, degradando-as a meros pretextos para os arranjos de interesses, dessensibilizando as inteligências para a diferença entre a verdade e o erro, infectando toda a cultura nacional com o vírus do fingimento e sedimentando, de tempos em tempos, o “compromisso da banalidade” como fórmula mágica para a solução aparente de problemas que, por baixo dos sorrisos do establishment, conservam toda a sua carga explosiva.

A tese é imbatível. Sua veracidade reaparece agora, da maneira mais patente, na corrida geral dos “direitistas” para aderir a um partido que chegou ao poder prometendo exclui-los para sempre da arena política. E como não notar a ânsia de conciliações impossíveis num governo que quer ao mesmo tempo reprimir o narcotráfico e continuar amiguinho das Farc, harmonizando a lei e o crime? O “conservadorismo” brasileiro, tal como o descreve Mercadante, não é uma filosofia política, não é nem mesmo uma ideologia: é uma atitude -- ou vício -- do espírito, que, fugindo aos confrontos, foge à realidade. E que o faz, não raro, camuflando em efusões de triunfalismo retórico a sua impotência de agir. Direita e esquerda no Brasil são, nesse sentido, igualmente “conservadoras”.

O anseio da unidade divina, nostalgia da coincidentia oppositorum, já havia sido notado por Hermann Keyserling como uma das constantes da alma portuguesa. Mas os portugueses nunca acreditaram que a paz entre o lobo e o cordeiro pudesse ser realizada neste mundo. Nunca confundiram a esperança apocalíptica com a fé em promessas autocontraditórias de politicos espertalhões. O livro de Paulo Mercadante relata a degradação de um símbolo metafísico em miúda acomodação de mentiras. Nós transformamos a saudade celeste dos portugueses em aposta mundana na quadratura do círculo.

***

Eric Voegelin foi um dos maiores filósofos do século XX. Sua obra “Order and History”, em cinco volumes, sintetiza e ordena numa reinterpretação global da história uma vastidão de conhecimentos quase inimaginável, das inscrições egípcias até as últimas novidades do direito, da economia e da lingüística. Dá de dez a zero em Hegel, Spengler e Toynbee somados. De origem pobre, Voegelin passou fome para estudar. Continuou homem simples, deslocado em ambientes chiques. No auge da glória acadêmica, usava ternos surrados, fumava charutos mata-rato e não tinha a menor classe no consumo de vinhos: bebia o bom e o ruim, incapaz de distingui-los, caindo de sono, vexaminosamente, ao fim do primeiro copo. Não raro esquecia-se de cortar as unhas, amareladas de fumo. Era, diziam seus confrades, “um aristocrata intelectual com gostos proletários”.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do maior país da América Latina, nasceu pobre e, ao longo de uma carreira de sucessos políticos espetaculares, foi mudando de hábitos. Aprendeu a apreciar bons vinhos, a selecionar os melhores charutos, a aparecer em público

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de unhas polidas, envergando ternos Armani, idêntico em tudo a um ricaço de nascença. No auge da glória mundana, gaba-se de não saber falar inglês, mas de seus discursos em português nada sobra exceto os erros de gramática. É um proleta intelectual com gostos aristocráticos.

Há muitos estilos de um pé-rapado subir na vida. Cada um, à medida que ascende na escala social, vai colhendo os bens que, no seu tempo de pobre, lhe pareciam os mais desejáveis. E cada um, vitorioso, tem em torno os admiradores que o merecem.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030614globo.htm

O Dalai-Lama adere

Olavo de CarvalhoO Globo, 14 de junho de 2003

 

“O sistema do marxismo é fundado em princípios morais, enquanto o capitalismo só está relacionado a ganho e rentabilidade... Não considero a ex-URSS, ou a China, ou mesmo o Vietnã, verdadeiros regimes marxistas... Penso que [sua] falha principal é que eles colocaram muita ênfase na necessidade para destruir a classe governante, na luta de classe, e isto encoraja o ódio e negligencia a compaixão... Penso em mim como meio marxista, meio budista.”

Tenzin Gyatso, o Dalai-Lama, pode imaginar-se o que bem entenda, ou metade do que bem entenda, mas, para mim, a partir dessa declaração, é impossível não pensá-lo como meio mentiroso, meio idiota. O sujeito está exilado há cinqüenta anos e ainda mente em favor da ideologia que o expulsou, que matou um milhão de seus compatriotas e que fez tudo para destruir a tradição budista no Tibete.

Nesse breve parágrafo, que reproduzo da página budista http://www.geocities.com/sakyabr3/diretorios.html, S. Santidade acrescenta à intrujice histórica a absurdidade lógica para dar o beneplácito da sua autoridade espiritual (supondo-se que ela ainda exista depois disso) à maior fraude ideológica de todos os tempos: a campanha mundial para branquear a imagem do marxismo, desvinculando-o de qualquer responsabilidade pelos regimes genocidas que criou (v. Jean-François Revel, “La Grande Parade”).

Quem quer que tenha lido Karl Marx e os teóricos do liberal-capitalismo sabe que, nestes últimos, as preocupações morais vêm em primeiro lugar, enquanto naquele estão ausentes por completo. De John Locke a Bertrand de Jouvenel, de Adam Smith a Alain Peyrefitte, de

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Aléxis de Tocqueville a Russel Kirk, a justificação do capitalismo é de ordem essencialmente moral. Já Marx não esconde seu desprezo por leis morais de qualquer espécie, às quais nega toda substancialidade, fazendo delas meras superestruturas da economia, isto é, discursos de legitimação do interesse de classe, seja escravista, feudal, burguês ou proletário. Só o que Marx alega contra o capitalismo é que, a partir de um certo ponto, ele freia o desenvolvimento dos meios de produção que ele próprio criou, isto é, se torna improdutivo. Não é um argumento moral, é econômico, histórico e técnico. Ademais, é falso: o que freia o desenvolvimento das forças produtivas é a burocracia estatal socialista (que o digam nossos 41% de impostos).

Para piorar as coisas, o apelo ao genocídio como meio razoável de ação revolucionária está nos próprios escritos de Marx e não é de maneira alguma um desvio posterior. Entusiasta da seleção darwiniana, Marx achava lógico e desejável que, na transição revolucionária, o socialismo eliminasse “uns quantos povos inferiores” (sic), especialmente orientais. O destino dos seguidores de S. Santidade já estava claramente anunciado nessas palavras.

Longe de ter-se afastado de Marx para aderir a um maquiavelismo cruel, foram seus seguidores e discípulos tardios que, encabulados com o ostensivo amoralismo do mestre, maquiaram suas palavras para lhes dar um aparente sentido sentimentalóide, humanitário, até cristão (v. Erich Fromm, “O Conceito Marxista do Homem”; Roger Garaudy, “Perspectivas do Homem”). Para esse fim, escavaram textos de juventude que pareciam ter um vago sentido de revolta contra o mal -- mas, prudentemente, mudaram de assunto quando começaram a aparecer poemas de satanismo explícito nos quais o jovem Marx se revelava ainda mais malicioso e torpe que o Marx adulto (v. Richard Wurmbrand, “Marx e Satã”).

S. Santidade, na ânsia louca de embelezar o marxismo, não se limita a isentá-lo da responsabilidade pelas conseqüências de sua aplicação: limpa-o até mesmo de seu conteúdo teorético explícito, fazendo da luta de classes um acréscimo acidental posterior, quando ela é o núcleo essencial, o centro mesmo da teoria marxista. Marxismo sem luta de classes é a geometria de Euclides sem pontos, retas e planos.

Dizer que os regimes da URSS, da China e do Vietnã se afastaram do marxismo ao concentrar-se na luta de classes é o mesmo que dizer que Fernandinho Beira-Mar se afastou do narcotráfico ao comprar cocaína das Farc. É o nonsense completo, que um conhecedor da matéria não tem o direito de proferir nem mesmo em estado de embriaguez.

Não faltará quem explique as palavras de S. Santidade por um desejo patriótico de acalmar a sanha do invasor chinês. Mas, nesse caso, elas valem tanto quanto as dos cardeais alemães que faziam discursos pró-nazistas sob a desculpa de amansar o Führer (v. Eric Voegelin, “Hitler and the Germans”).

Também não faltará quem, jamais tendo dado um pio contra a perseguição antibudista no Tibete, se faça de escandalizado com a dureza desta minha crítica ao líder dos budistas -- como se lembrar seus deveres a uma autoridade espiritual relapsa fosse crime maior do que matar um milhão de seus discípulos.

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Mas, no fundo, não estranho que até o Dalai-Lama acabe por se prosternar aos pés do Grande Satã comedor de monges. Afinal, a CNBB não faz o mesmo? Igrejas evangélicas inteiras não se aliaram ao partido que defende as Farc? Cardeais e pastores não acorreram às ruas, em massa, para proteger o monstruoso regime de Saddam Hussein?

O Evangelho não estava brincando quando anunciava que o reino da mentira arriscaria seduzir até os eleitos.

***

Cada vez mais me espanto com a duração sem fim do silêncio nacional em torno da obra de J. O. de Meira Penna. É um escritor maravilhoso, divertido, sábio e cheio de vida. Da “Psicologia do Subdesenvolvimento” até o mais recente “Da Moral em Economia”, nunca li uma linha dele que não me parecesse merecer a atenção de todos os intelectuais do país. Eles é que não têm sabido merecê-lo.

É preconceito esquerdista, dirá o leitor. Mas, no Brasil, esquerdismo e preconceito são a mesma coisa. O cardápio de leituras da esquerda nacional é limitado por uma dieta rigorosa, calculada para excluir qualquer possibilidade de contaminação por idéias que, assim, se tornam tanto mais fáceis de odiar quanto menos conhecidas.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030615zh.htm

A clareza do processo

Olavo de CarvalhoZero Hora, 15 de junho de 2003

 

Como as divergências do PT com o PT se tornaram o molde único do debate político nacional, peço aos leitores que reexaminem meu artigo “Transição revolucionária”, publicado neste jornal em 25 de agosto de 2002 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/08252002zh.htm). Nele eu descrevia o mecanismo básico da política brasileira nas últimas décadas: a transferência do eixo cada vez mais para a esquerda, de modo que o esquerdismo acabe por ocupar todo o espaço, ao mesmo tempo que impinge ao público a falsa impressão de que o cenário continua dividido, normal e democraticamente, entre uma esquerda e uma direita.

Não cito meu próprio artigo para me fazer de profeta. Cito-o para mostrar que a linha de evolução das coisas é clara demais, que para enxergá-la não é preciso ser nenhum profeta, e que o fato mesmo de que tão poucos a enxerguem é um componente fundamental do

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processo. Pois este se realiza por meio do entorpecimento das consciências, culminando na cegueira geral: a direita incapaz de perceber sua impotência, a esquerda negando sua onipotência manifesta e fazendo-se de vítima de adversários inexistentes para prevenir o nascimento de adversários futuros.

Desde 1988 cada novo governo está um pouco mais à esquerda, fechando o SNI, engordando o MST, premiando terroristas com verbas oficiais, endossando uma a uma todas as exigências “politicamente corretas”, difundindo propaganda marxista pelas escolas, etc. etc. Em vez de alegrar-se com isso, os esquerdistas ficam cada vez mais irritados e seu discurso mais violento. A escalada da brutalidade verbal, com o sr. Caio César Benjamin mandando o presidente “se f...r”, mostra que o esquerdismo se torna tanto mais prepotente quanto mais vitorioso, que nada pode safisfazê-lo senão a obediência total e incondicional, que cada concessão, em vez de aplacá-lo, só excita ainda mais sua fome de poder absoluto.

Inspirada pela fórmula leninista da “estratrégia das tesouras”, a esquerda cresce por cissiparidade, ou esquizogênese, dividindo-se contra si mesma para tomar o lugar de quaisquer concorrentes possíveis, que hoje se reduzem a quase nada.

Quem domina o centro, domina o conjunto. A esquerda inventa sua própria direita, criminalizando e excluindo do jogo todas as demais direitas imagináveis. Uns anos atrás, tornou-se feio estar à direita de FHC. Agora é impensável estar à direita de Lula. A política nacional inteira já não é senão um subproduto da estratégia esquerdista, realizando a fórmula de Gramsci, de que o Partido deve imperar sobre toda a sociedade, não com uma autoridade externa que a oprima ostensivamente, mas com a força invisível e onipresente de uma fatalidade natural, de “um imperativo categórico, um mandamento divino” (sic).

Por isso estão loucos e iludidos aqueles que, vendo o esquerdismo dividido, celebram seu enfraquecimento e sua próxima derrota. Um partido só pode ser derrotado por outro partido, jamais pela sua própria confusão interna, que é fermento de sua expansão ilimitada. E o fato é que nenhum outro partido existe. Há quarenta anos só a esquerda tem uma estratégia global, objetivos de longo prazo e uma firme determinação de remoldar a sociedade à sua imagem e semelhança. As outras facções não têm senão idéias soltas e objetivos parciais temporários, que são facilmente absorvidos ou neutralizados pela onda triunfante e irreversível do neocomunismo petista.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030619fsp.htm

O mundo cão da mídia brasileira

Olavo de CarvalhoFolha de S. Paulo, 19 de junho de 2003

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Muitos jornais e revistas brasileiros publicaram a declaração do vice-secretário da Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz, de que o petróleo tinha sido a verdadeira causa da guerra do Iraque.

Todos citaram a mesma fonte: o jornal britânico The Guardian.

Nenhum, até agora, avisou ao público que o Guardian, faz vários dias, se desmentiu nos termos mais categóricos, reconhecendo que Wolfowitz não disse nada disso.

Não há nas nossas redações um só jornalista que ignore esse desmentido. E não há um só que, por ocultá-lo, tenha perdido um minuto de sono, com problemas de consciência. Definitivamente: entre os coleguinhas, mentir contra os EUA, mentir contra Israel, mentir em favor da esquerda é, no máximo, pecado venial, que se redime com uma piscadela cúmplice e um tapinha nas costas.

E o leitor? Nem liga. Já está viciado. Ele só não gosta de que a gente lhe conte o que se passou. Fica ofendidíssimo. Quem, afinal, quer saber que fez papel de trouxa? O remédio, em tais circunstâncias, é sempre o mesmo: bater no carteiro.

Também não conheço um só jornalista brasileiro que se pergunte se está certo continuar escondendo do público que o regime muçulmano do Sudão já matou dois milhões de cristãos, que há dezenas de bispos católicos presos na China, que o PT tem vínculos estreitos com duas das principais organizações criminosas da América Latina (as Farc e o MIR chileno) ou que as principais cenas do badaladíssimo "documentário" de Michael Moore foram forjadas.

Quando um semanário mente da maneira mais descarada, dizendo que 95 por cento dos homicídios no Brasil são cometidos por motivos pessoais alheios ao narcotráfico, ninguém quer desmenti-lo porque quase todas as empresas jornalísticas são parceiras de ONGs desarmamentistas.

Quando outra revista dedica meia edição a pintar em cores demoníacas uma igreja evangélica e, condenada na justiça por difamação, esconde o fato numa notinha de três linhas, nenhuma outra publicação a denuncia, porque todas querem preservar seu direito de agir de forma análoga.

Quando explode uma gritaria geral contra a penetração americana na Amazônia, nenhum jornal ou revista conta ao público que as ONGs lá presentes são quase todas européias, associadas ao bloco anti-americano.

E a bajulação, então? Nem a moral, nem a lógica, nem o senso das proporções impõem limites a esse instinto grotesco. Quantos jornais, ante o desempenho ridículo do nosso presidente na reunião do G8 -- apresentando uma proposta pueril que tão logo ouvida por polidez foi esquecida por caridade --, não celebraram o acontecimento como uma prova de

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que Lula era um estadista de nível internacional? Quantos não venderam como uma nova águia de Haia o papagaio de Evian?

Mas, se alguém na extrema esquerda se irrita com o presidente e escreve, como o sr. Caio César Benjamin, "o sr. Lula que vá se f...r", ninguém na mídia reclama que a briga de família aí ultrapassou os limites da decência.

Mas há casos até mais lindos.

Dois anos atrás, o repórter Caco Barcelos fez um baita escândalo denunciando na TV um simulacro de acidente, supostamente montado pelo Exército Brasileiro para acobertar o assassinato de dois terroristas. Em artigo publicado na imprensa carioca, demonstrei que a simulação alegada era uma total impossibilidade física, que a testemunha apresentada não estava no local da ocorrência e que, segundo depoimento insuspeito de Jacob Gorender, as duas pretensas vítimas participaram de um assalto três dias depois de falecidas...

Pensam que isso suscitou alguma discussão entre jornalistas? Nada. Silêncio total. E a droga de reportagem acabou recebendo não um, mas dois prêmios jornalísticos.

Conclusão: no consenso do jornalismo brasileiro, falsidade não é defeito, desde que dirigida contra as pessoas certas. Contra milico, empresário ou político de direita, tudo é permitido.

E contra este articulista? Aí vale mentira, ameaça, incitação ao homicídio, o diabo.

Mas a obra-prima veio de um sujeito que é tido como jornalista respeitabilíssimo.

Em 2002, Bernardo Kucinsky escreveu na Carta Maior que eu era membro de uma equipe chefiada pelo subsecretário de Estado americano Otto Reich, incumbida de montar um golpe de Estado para impedir a eleição de Lula.

Fraude jornalística digna de Jason Blair.

O desenrolar dos fatos incumbiu-se de provar que a única intromissão americana nas eleições brasileiras foi em favor de Lula -- uma entrevista da embaixadora Donna Hjrinak que, às vésperas da votação, glorificava o candidato, sem que ninguém na mídia visse nisso nada de anormal.

Quanto ao sr. Reich, é óbvio que nunca trabalhei com ele. Nunca tive com o referido qualquer contato direto ou indireto, seja pessoal, telefônico, epistolar, internético ou telepático. Não o conheço sequer por fotografia, e se o visse na rua seria incapaz de distingui-lo do Nelson Ned, do Papa, do Abominável Homem das Neves ou do adorável Bernardo Kucinsky.

Num país decente, o autor da gracinha seria expelido da profissão. No Brasil, não só é premiado com cargo público (se bem que não haja nada de particularmente invejável num

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emprego de sub-Gushiken), mas aceito como "ombudsman" do Observatório da Imprensa, isto é, juiz da idoneidade jornalística alheia.

Quando as coisas chegam a esse ponto, todo argumento racional ou apelo à moralidade se torna impotente. A abdicação completa do senso da verdade tornou-se requisito para o sucesso profissional.

Críticas ao governo? Admitem-se, é claro -- com a condição de que venham da extrema-esquerda ou, caso a fonte seja outra qualquer, se atenham a detalhes econômicos e administrativos, sem nada que possa trazer dano à ideologia esquerdista e a estratégia do Foro de São Paulo. Esta última, aliás, embora seja o fator mais importante na condução política deste país, não pode sequer ser mencionada. Se você perguntar a mil leitores o que é o Foro de São Paulo, todos dirão que é um prédio na Praça João Mendes.

Autocríticas? São bem-vindas, decerto, desde que o caso seja apolítico como o da Escola Parque, de modo que a mídia possa fazer alarde de escrupulosidade sem abalar o prestígio moral da esquerda, intocável como o sexo das virgens mártires.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030619jt.htm

O pai dos burros

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 19 de junho de 2003

 

O Dicionário Houaiss define "socialismo" como "conjunto de doutrinas (a) de fundo humanitário que visam reformar a sociedade capitalista (b) para diminuir um pouco de suas desigualdades; conjunto de doutrinas que, (c) tendo por objetivo o bem comum, (d) preconizam uma reforma radical da organização social, mediante a supressão das classes e a coletivização dos meios de produção e de distribuição".

As características aí assinaladas são quatro. Só a última é um traço definitório: as outras três são virtudes autoproclamadas que o socialismo emprega na sua propaganda, mas que não o definem de maneira alguma. Não o definem, acima de tudo, porque não lhe são próprias, mas comuns a pelo menos dois de seus concorrentes: o liberalismo e a doutrina social da Igreja.

Nada mais expressivo do humanitarismo do que os primeiros passos com que o capitalismo emergente no século XIX marcou, por atos e não por promessas, seu ingresso na história do mundo: o governo constitucional, os tribunais livres, a liberdade de imprensa.

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Para diminuir as desigualdades, o socialismo nunca fez -- aliás nem imaginou -- nada de comparável à abolição da escravatura e das servidões territoriais, à universalização do trabalho livre e à supressão dos privilégios de casta, três realizações tipicamente capitalistas.

Por fim, muito antes da difusão das idéias socialistas o conceito de "bem comum", que remonta a Aristóteles e a Sto. Tomás, já estava integrado na doutrina social da Igreja, que dele deduzia, precisamente, a necessidade da propriedade privada dos meios de produção em vez de sua concentração em mãos de uma burocracia estatal onipotente.

Sobra, portanto, para definir o socialismo, só a coletivização dos meios de produção. Já que o Houaiss não diz o que ela é, digo-o eu: é suprimir a existência do poder econômico independente, concentrando todas as riquezas e o seu controle nas mãos dos que têm o poder político. Tal é, rigorosamente, a definição do socialismo: a unificação de poder econômico e político. No capitalismo há uma classe burguesa, dona dos meios de produção, e uma classe política que ora se alia com ela, ora lhe faz oposição (como já se vê pelo simples fato de serem tão numerosos os políticos socialistas). Há ricos fora da política e políticos sem poder econômico. No socialismo não há uma coisa nem outra: quem tem o poder político tem o econômico, e quem não tem este nem aquele não tem nada. Por isso, enquanto cada cidadão das repúblicas socialistas na década de 80 comia menos proteínas que um súdito do tzar, cada membro da nomenklatura soviética possuía uma casa de campo do tamanho do Museu da República e os chazinhos íntimos que a sra. Brejnev dava para suas amigas às quintas-feiras eram abrilhantados por nada menos que a Sinfônica de Moucou. Por isso surgiram tantos milionários das cinzas de um regime em que, nominalmente, ninguém tinha riqueza pessoal. Isso era absolutamente inevitável, sendo o socialismo o que é.

Que tantas pessoas tenham chegado a imaginar que o socialismo fosse um bom modo de reduzir as desigualdades, eis um daqueles grandes mistérios da alma humana que nem o próprio Dr. Freud jamais ousou sondar. Calemo-nos portanto diante da majestas imbecilitatis, e voltemos ao dicionário.

Uma boa definição deve dizer o essencial do seu objeto e nada além dele. O Houaiss omite a definição do socialismo e o adorna de qualidades que não são dele. Millôr Fernandes dizia que Antonio Houaiss conhecia todas as palavra do idioma, só lhe faltando saber juntá-las. Aqui, ao contrário, ele as juntou muito bem, mas só para separá-las infinitamente da realidade a que fingem aludir.

Que o verbete assim redigido acabasse sendo usado na propaganda do Partido Socialista Brasileiro na TV, nada mais natural. O próprio Houaiss era membro desse Partido. As sucessivas edições do seu dicionário constituem, portanto, uma espécie de militância de além-túmulo.

Em seu clássico Tratado da Desinformação, Vladimir Volkoff assinala que, desde a década de 30, a KGB já realçava a importância dos dicionários como instrumentos de dominação cultural, deformando a linguagem para embotar as consciências. É assim que esses grossos

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repertórios de palavras vão merecendo cada vez mais a denominação de "pais dos burros": pois geram leitores que pensam como seus autores.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030621globo.htm

Quem pode contra isso?

Olavo de CarvalhoO Globo, 21 de junho de 2003

 

O rumo das coisas neste país é tão claro, tão evidente, que qualquer dificuldade de enxergá-lo só pode nascer de uma recusa oportunista ou de um pavor mórbido de admitir a realidade.

A ocupação total do espaço dos debates políticos pelos bate-bocas internos da esquerda é já um fato consumado. Consumado e, segundo parece, irreversível. Doravante, toda divergência profunda e geral, toda polêmica entre concepções opostas da sociedade, está excluída do cenário público. Restam as miudezas administrativas e fiscais, cuja discussão deixa intacto o unanimismo socialista, transfigurado em “quadro institucional”.

As demais correntes políticas, encolhendo-se em trejeitos de bajulação servil ou saltitando em volta da mesa para ciscar migalhas do banquete federal, reduziram-se a instrumentos auxiliares das facções esquerdistas em disputa.

Se, durante a campanha eleitoral, não tivessem ajudado o candidato petista a ocultar suas ligações com o Foro de São Paulo e as Farc, não estariam hoje nessa situação.

Mas queriam porque queriam sonhar que estavam vivendo na Suíça ou na Inglaterra, numa democracia de Primeiro Mundo, num jardim pós-comunista com instituições estáveis e imunes à tentação revolucionária. Assim, ajudaram o comunismo a fazer-se de morto para assaltar o coveiro.

Agora, é tarde para reagir. O totalitarismo camuflado e sorridente que nos domina já não tolera divergência senão interna. À primeira e comedidíssima tentativa de oposição frontal, o PFL já recebeu o choque pavloviano apto a dissuadi-lo de idênticas ousadias no futuro: acusado de lavagem de dinheiro, seu líder foi posto na constrangedora alternativa de perseverar na timidez suicida ou de mostrar-se mais valente na defesa da sua própria liberdade do que o foi na da liberdade alheia.

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A investida contra ele é só mais um capítulo da novela que, conforme já anunciei aqui faz tempo, terminará com a prisão ou a marginalização completa de todos os líderes políticos não esquerdistas de maior destaque.

O uso da própria lei como instrumento de destruição da classe dominante é um requinte da estratégia revolucionária brasileira, que se preparou para isso mediante a meticulosa criação de regras fiscais e trabalhistas impossíveis de cumprir, que virtualmente criminalizam a atividade capitalista e colocam a classe empresarial de joelhos ante o governo, deixando-o agora livre para cortar cabeças ou aceitar que se curvem em preito de vassalagem.

Há mais de uma década venho escrevendo que a onda pseudomoralizante, encabeçada pelas esquerdas mas aplaudida com patética ingenuidade por quase toda a opinião pública nacional, é uma manobra insincera e astuta, um instrumento da estratégia destinada a substituir os políticos e líderes empresariais tradicionais por uma classe de revolucionários infinitamente mais ambiciosos, desonestos e perigosos do que milhares de “anões do orçamento” e juízes Lalaus.

O maquiavelismo perverso da operação revela-se na escala de prioridades no combate aos crimes. É uma escala invertida.

Não há males mais graves do que o morticínio generalizado, o narcotráfico, os seqüestros. É impossível investigar esses crimes em profundidade sem chegar às suas fontes: as Farc, o MIR chileno e, no topo, Fidel Castro e o Foro de São Paulo.

Ora, essas entidades e pessoas são intocáveis. As Farc são combatentes pela liberdade, o MIR é um grupo de idealistas angélicos, Fidel Castro é a voz de Deus na Terra, o Foro de São Paulo é um inocente círculo de debates acadêmicos.

Tal é o dogma oficial.

Logo, é preciso desviar as atenções para delitos menores e incruentos, dando a impressão de que o juiz Lalau é Fernandinho Beira-Mar, Bornhausen é Lucky Luciano e cada homem rico é um assassino de mulheres e crianças.

Aterrorizado ante a impossibilidade de conter o narcotráfico e a violência, o povão encontra alívio postiço na humilhação de ricaços de opereta, “poderosos” que não podem nada.

A manobra diversionista tem ainda a vantagem secundária de introduzir no aparente combate ao crime a subtonalidade implícita de luta de classes, preparando o povo para aplaudir, logo mais, a destruição geral e ostensiva da classe indesejável.

Para realizar a operação, os partidos de esquerda já tinham, antes do acesso ao poder, sua própria máquina investigativa, infiltrada em todos os escalões da administração e muito bem articulada com a classe jornalística, esta última ansiosa por superar sua condição subalterna de fornecedora de notícias e elevar-se ao papel de “agente de transformação social”.

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Agora têm tudo isso e mais o aparato fiscal e policial do Estado.

Quem pode contra isso? Nunca, neste país, uma facção política reuniu em suas mãos um poder tão geral, tão incontrastável, tão avassalador, em face de oposições tão frágeis e desarmadas, reféns do consentimento provisório de um poder revolucionário ao qual não convém ainda declarar seu nome.

A esquerda brasileira é onipotente. Tão onipotente que pode se dar o luxo cíclico das automutilações revigorantes, rejeitando uma parte de si como “direitista” para que todo o país acompanhe a parte restante num movimento geral para a esquerda, cada vez mais para a esquerda.

A velha classe dominante está encurralada e paralisada, gastando suas últimas reservas de energia numa fútil encenação de tranqüilidade que só prova o seu medo de perceber que está com medo.

O medo emburrece. O medo não reconhecido emburrece duplamente. Parece que neste país os empresários já não entendem sequer o que acontece quando as indústrias passam a ter metas oficiais a cumprir e punições se falharem. É o fim da liberdade econômica, a total redução do empresariado a órgão auxiliar da administração estatal. Ainda não é o comunismo, mas já é o “socialismo alemão”, a economia nazifascista, que, deixando com os burgueses a posse nominal dos meios de produção, fazia da burguesia mesma uma propriedade do Estado.

Mas quem quer saber o que acontece? É melhor fingir que não aconteceu.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030628globo.htm

Os intelectuais e o tempo

Olavo de CarvalhoO Globo, 28 de junho de 2003

 

Desde o século XVIII, a principal força agente nas sociedades ocidentais é a intelectualidade "progressista" -- reformista ou revolucionária. Suas idéias, suas iniciativas, sua influência precedem e guiam as ações das demais classes, de tal modo que não há em qualquer nação moderna nenhuma lei, instituição ou argumento de uso comum que não se possa rastrear até suas origens obscuras nas discussões de pequenos grupos de intelectuais. A expansão das crenças em círculos concêntricos é hoje um processo bem conhecido, formalizado como técnica na disciplina da "engenharia social". Organismos internacionais

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como a ONU e a Unesco, QGs da intelectualidade ativista, têm cursos especializados para formadores de "movimentos sociais": em cada protesto "espontâneo" de pobretões, famintos, marginalizados e abandonados, índios, mendigos, prostitutas, meninos de rua, há sempre o dedo de algum técnico a serviço da administração planetária. Que um poder maior se utilize dos pequenos e desemparados como armas para destruir os poderes intermediários e concentrar em suas mãos todos os meios de ação é, sem dúvida, uma das constantes cíclicas da história do mundo. A novidade é que hoje o processo é consciente, organizado, científico -- e, desde o planejamento até os últimos detalhes da execução, obra de intelectuais.

Se, a despeito dessa evidência, a intelectualidade não têm nenhuma consciência de ser a classe dominante, se seus membros não chegam a sentir o peso das responsabilidades de condutores supremos do processo histórico, é em parte porque não lhes convém, em parte porque é da natureza do poder intelectual agir a longo prazo, de tal modo que seus detentores raramente vivem o bastante para chegar a ver os resultados de suas idéias, quanto mais para responder por eles.

Não há nada mais perigoso do que um intelectual ativista quando se junta com outros no empenho de esquecer o que todos fizeram na véspera. Cada novo projeto de "um mundo melhor" nasceu assim -- e não é preciso dizer como eles terminam.

Um certo descompromisso com a prática é também necessário à liberdade interior, sem a qual não há vida intelectual. Ernest Renan confessava que não conseguia pensar sem assegurar-se de que as idéias pensadas não teriam a menor conseqüência. Mas não creiam que isso seja o cúmulo da irresponsabilidade. Renan, para poder escrever deliciosamente, exigia apenas o direito de não ser sempre levado a sério. O cúmulo não é isso: é a facilidade com que tantos intelectuais desfrutam dessa liberdade ao mesmo tempo que fazem planos para a sociedade futura e se impacientam com o mundo que não lhes obedece. Noventa por cento das opiniões elegantes em circulação não poderiam ter sido produzidas sem esse delírio de onipotência: a total ausência de escrúpulos morais aliada ao completo domínio dos meios de mudar o mundo.

***

A redução do processo histórico às causas econômicas é tida em geral como uma doutrina do "marxismo vulgar" em contraste com o marxismo "autêntico", o marxismo "do próprio Marx", supostamente muito mais diferenciado e sutil.

Uma das alegações que sustentam essa certeza é que "o próprio Marx" reconheceu a existência de outras forças históricas revelantes, afirmando que as causas econômicas só predominam "em última instância".

Alega-se também que Marx, certa vez, expressou surpresa ante o fato de que as peças de Sófocles ou de Shakespeare conservassem sua força dramática muito tempo depois de dissolvidos os conflitos econômico-sociais em cujo contexto foram produzidas.

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Mas, quanto à primeira assertiva, o fato é que na própria obra de Marx a explicação pelas causas econômicas impera avassaladoramente, não se encontrando um único exemplo de acontecimento histórico atribuído a "outras forças". O reconhecimento da existência delas permanece uma hipótese abstrata, genérica e sem função na máquina explicativa do marxismo.

Quanto à surpresa ante a permanência dos clássicos, que é que ela revela, senão a expectativa subjacente de que as coisas não fossem assim, de que todas as criações do espírito se dissipassem junto com as condições econômicas que supostamente as motivaram?

Não existe um "marxismo intelectualmente nobre" em contraste com o "marxismo vulgar". Todo marxismo é vulgar.

***

Quando o sr. José Rainha promete montar um acampamento guerreiro como o de Canudos, há quem diga que é pretensão megalômana. Eu, ao contrário, acho que é falsa modéstia. Canudos não tinha verbas bilionárias do governo brasileiro e da Comunidade Européia, não tinha o respaldo da mídia internacional, não tinha o apoio de uma organização continental como o Foro de São Paulo, não tinha trezentos mil militantes treinados, espalhados por todo o território nacional, não tinha um serviço secreto particular infiltrado em todos os escalões da administração pública, não tinha propriedades imobiliárias estrategicamente distribuídas ao longo das estradas, numa rede de armadilhas prontas para paralisar, num instante, a circulação nacional de veículos e mercadorias. Seus únicos aliados políticos virtuais -- os monarquistas -- estavam no exílio, sem condições de ajudar em nada ao parceiro desconhecido, perdido no meio do sertão.

Meçam a diferença, e verão quanto as palavras do sr. José Rainha foram comedidas e tranqüilizantes. E mesmo esse comedimento não o impediu de levar um pito por dar com a língua nos dentes, ameaçando abortar pela divulgação prematura um plano admirável e, no fundo, facílimo de realizar.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030629zh.htm

Simulação geral

Olavo de CarvalhoZero Hora, 29 de junho de 2003

 

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Andei discutindo outro dia no meu blog umas idéias que talvez valha a pena resumir aqui.

É que se tornou impossível examinar este país sob a ótica da filosofia política, a qual pressupõe, nos agentes do processo histórico, um mínimo indispensável de consistência, de realidade, de substancialidade. No Brasil de hoje tudo é simulação, e o único enfoque viável para estudar um caso desses é o da psicopatologia social, porque aí todas as conexões observáveis entre pensamento e realidade, entre vida interior e conduta exterior, são mesmo convencionais e fantasiosas.

O atual enredo brasileiro é totalmente composto de auto-ilusões que se sustentam na base de ilusões secundárias que cada um cria para ludibriar o próximo, mas que não raro acabam por persuadir o próprio agente, transformando-o em instrumento inconsciente daqueles a quem pretendia manipular.

A estrutura típica da ação humana, nesse quadro, é a de um engano mútuo fundado num duplo auto-engano, multiplicando-se num efeito em espelho até a total impossibilidade de controlar - ou até de narrar - o fluxo dos acontecimentos. Tudo começa com uma mentira consciente, mas que já não se reconhece como tal na prole inumerável das mentiras auxiliares produzidas automaticamente para sustentá-la.

Nesse jogo de esconde-esconde, qualquer discussão de idéias, doutrinas ou programas nunca é o que parece, mas também não é o que os produtores da comédia desejariam que parecesse, uma vez que eles não têm domínio suficiente da realidade para projetar um efeito previsível e acabam sendo eles próprios arrastados na dança de fantasmagorias que encenaram.

É a apoteose da macaquice, que termina por macaquear-se a si mesma, na ilusão suprema de poder restabelecer contato com a realidade por meio de uma macaqueação de segundo grau.

Expondo essas idéias, recebi do embaixador Meira Penna, por intermédio de um artigo seu, a sugestão de que o estado de coisas talvez se devesse ao fato de que o Brasil, por falta de saber para onde ir, está copiando meio às tontas o modelo chinês de esquizofrenia política: um Estado, dois regimes. Com a ressalva de que o nosso modelo parece menos chinês do que venezuelano - capitalismo para fora, socialismo para dentro -, a duplicidade é um fato. Só não sei se ela é causa ou resultado. Afinal, não é este o país em que todo mundo insiste em continuar esquerdista, como se isso fosse uma questão de honra, ao mesmo tempo que admite que a esquerda não tem projeto nenhum para a sociedade, como se a honra consistisse em não largar a rapadura quando se confessa já não ter dentes para roê-la? Não é este o país que admite sua impotência ante meros assaltantes de rua e ao mesmo tempo sonha em dar uma surra nos marines na selva amazônica (com o agravante de que lá não há marine nenhum e sim um punhado de guerrilheiros das Farc)? Não é este o país que sai alardeando fórmulas para acabar com a fome no mundo antes mesmo de tê-las experimentado com algum sucesso em seu próprio território? Não é a duplicidade de regime que está nos enlouquecendo: vamos entrando num regime duplo porque estamos malucos faz tempo.

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Literatura do baixo ventre

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 03 de julho de 2003

 

Nas suas Memórias, de 1994, Adolfo Bioy Casares deixou este depoimento sobre sua colaboração com Jorge Luís Borges:

"As primeiras coisas vêm primeiro, e as segundas podem-se esquecer: a prioridade era a literatura, a adequação literária, a filosofia, a verdade... Para os dois, o mais importante era compreender... Então não se tratava dele nem de mim, de quem havia falado, mas de haver entendido a verdade de algo."

No mesmo sentido, já havia anotado em Diário e Fantasia:

"A inteligência trabalha como uma espécie de ética. Não permite concessões, não tolera ruindades."

Quantos escritores brasileiros das últimas três ou quatro décadas poderiam repetir essas palavras com igual sinceridade?

Para começar, não acreditam em "verdade". Livram-se dela com dois ou três chavões relativistas ou desconstrucionistas, e não pensam mais nisso. Quanto à sinceridade, imaginam que consista em detalhes de fisiologia sexual.

A grande literatura nasce da síntese do fervor, da devoção, da sinceridade moral, com a elevação da inteligência e a amplitude da visão do mundo. Entre as décadas de 20 e 60 as letras brasileiras quase alcançaram o ponto de fusão em que a mistura desses elementos produziria a "high seriousness" exigida por Mathew Arnold. Mas, depois, a mistura desandou. Voltamos miseravelmente à escrita dos samoiedas, os literatos da Bruzundanga, assim descritos por Lima Barreto em 1922:

"Não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das coisas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das coisas... A glória das letras, só a tem quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência,

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em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade..."

A sinceridade mede-se pelo esforço. Antes de acertar definitivamente a mão com La Invención de Morel (1940), Bioy escreveu, dos vinte aos vinte e seis anos, uma infinidade de contos e romances muito ruins. Mas não foi tempo perdido:

"Naquele período de criação contínua e desafortunada, li e estudei muito. Li literatura espanhola, com a intenção de abarcá-la na diversidade dos seus gêneros, desde os começos até o presente, sem limitar-me aos autores e livros mais conhecidos; literatura argentina, sem excluir formas populares, como as letras de tango e milonga, que selecionava em El Alma que Canta e em El Canta Claro, para uma provável antologia; literatura francesa, inglesa, norte-americana e russa; algo da alemã, da italiana, da portuguesa (desde logo, Eça de Queiroz); literatura grega e latina, algo da chinesa, da japonesa, da persa. Teorias literárias. Versificação, sintaxe, gramática. The Art of Writing de Stevenson, Dealing with Words de Vernon Lee. Filosofia, lógica, lógica simbólica. Introduções às ciências, classificações das ciências, introdução às matemáticas. A Bíblia. Santo Agostinho. Padres da Igreja. A relatividade. A quarta dimensão. Teorias biológicas."

Basta ler esse parágrafo para perceber instantaneamente o que há de errado com a cultura nacional. O romancista argentino -- como aliás em seu tempo o pobre Lima Barreto, espremendo o orçamento raquítico para comprar livros de filosofia e ciência -- estudou mais durante esses seis anos do que o fez ao longo da vida inteira qualquer dos escritores nacionais que o nosso público de hoje aplaude. Quantos dentre eles chegam a ter ao menos o interesse, por vago e preguiçoso que seja, de estender sua visão das coisas por um domínio tão amplo de conhecimentos? Nenhum chega mesmo a conceber a possibilidade de fazê-lo, e, se lhe insinuamos que haveria nisso alguma conveniência, a resposta quase infalível é um par de olhos arregalados seguidos de uma desconversa mordaz. Estudo sério é para professores, e mesmo assim olhe lá! Moderação nisso. Nada além do exigido pelo currículo. Literato brasileiro que se preza tem o esforço intelectual na conta de pedantismo reacionário e, segundo afirma um deles com orgulho, "escreve com o baixo ventre".

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030705globo.htm

A imaginação esquerdista

Olavo de CarvalhoO Globo, 05 de julho de 2003

 

Page 108: Olavo de Carvalho_Artigos_2003_Comentários Da Semana

"Neurose é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita."(J. A. C. Müller)

O crítico português Fernando Cristóvão é autor do melhor estudo que se escreveu sobre a arte narrativa de Graciliano Ramos. Ele agora nos dá, com "O Romance Político Brasileiro Contemporâneo" (Coimbra, Almedina, 2003), uma chave indispensável para elucidar o fenônemo do unanimismo socialista, que se apossou deste país justamente quando a falácia do socialismo já tinha se tornado coisa evidente para toda a humanidade alfabetizada.

Esse fenômeno revela uma tal alienação, um tal descompasso entre a consciência nacional e a realidade, que não é de estranhar venha antes do exterior que daqui mesmo a ajuda para compreendê-lo.

O que concluo um tanto livremente do estudo de Cristóvão é que, em proporções alarmantes, o romance brasileiro desde 1964 deixou de ser expressão da vida nacional para reduzir-se a depósito das lamúrias de um grupo político que, frustrado nas suas ambições de poder, se fechou num solipsismo carregado de rancor e autopiedade, passando a enxergar o drama de um país na escala miúda de seus padecimentos gremiais.

"A Hora dos Ruminantes", de José J. Veiga, expôs em 1964 a visão medonha de uma sociedade integralmente subjugada, um totalitarismo maquinal que, àquela altura, se parecia menos com o autoritarismo ralo do marechal Castelo Branco do que com o Estado cubano, que a própria KGB considerava o mais perfeito engenho de controle político jamais concebido, e no qual, com auto-ironia involuntária, iam buscar abrigo e ajuda os descontentes com o novo regime. Poderosa alegoria do totalitarismo em geral, "A Hora dos Ruminantes" pouco refletia da realidade brasileira, mas tudo da imaginação esquerdista.

Com "Quarup" de Antônio Callado, de 1967, o romance tornava-se instrumento de intervenção no debate interno da esquerda em favor da luta armada. Mas a luta armada, como só seus entusiastas não previram, resultou no endurecimento da repressão e no descrédito da esquerda, em humilhante contraste com os sucessos econômicos do regime, cuja popularidade encerrava os intelectuais esquerdistas num isolamento ainda mais propício às alucinações.

Alucinatório já é o ambiente de "A Festa" de Ivan Ângelo, no qual o ressentimento político dos vencidos desanda em anarquia "carnavalista", que teorias em moda vendiam como instrumento de "libertação", mas que só serviu para fomentar a anomia geral, culminando no advento do império do narcotráfico que, este sim, oprime toda a sociedade e não apenas um grupo.

Em "Zero" de Inácio de Loyola Brandão (1976), a anomia infectava a ordem mesma da narrativa, requentando o experimentalismo vanguardista dos anos 20 para depreciar como reacionarismo opressivo a idéia de uma realidade inteligível, à qual o autor opunha o lema de "escrever com o baixo-ventre" -- um baile funk literário que antecipava, aliás mui inteligivelmente, a funkização geral da sociedade.

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Se a intelectualidade esquerdista fosse capaz de medir as conseqüências de suas palavras, seu arrependimento não teria fim. Mas ela é como um ladrão que não sente vergonha de roubar, apenas de deixar-se prender. A mentira básica da sua visão egocêntrica da sociedade brasileira jamais é posta em questão. Tudo o que se discute é o fracasso prático, a dificuldade de chegar ao poder. No fundo, o único pecado, segundo essa visão do mundo, é não ter poder.

Em "Bar Don Juan", de 1971, Antônio Callado converte-se de apologista da guerrilha em carpideira do seu fracasso. Mas a autocrítica não vai ao fundo do problema: esgota-se em lamentações de erros estratégicos e táticos.

Autopiedade grupal confundida com tragédia nacional também não falta em "O Amor de Pedro por João" de Tabajara Ruas, no qual guerrilheiros exilados, escondidos numa embaixada em Santiago, acompanham pelo rádio o bombardeio do Palácio de La Moneda -- o fim de sua última esperança de cubanização do continente.

Ao fracasso prático veio acrescentar-se a lenta e irreversível corrosão dos ideais. Nos anos 80, já ninguém podia acreditar que algum regime socialista no mundo fosse, substancialmente, mais humano que a nossa vacilante ditadura. Nem poderia pensar seriamente que a celebração da anarquia viesse a ter outro resultado senão a entrega do país à bandidagem -- um resultado que, no fundo todos desejavam, pois coincidia com as especulações de Herbert Marcuse sobre o potencial revolucionário da marginalidade e do crime. Mas, num processo neurótico bem conhecido, quanto mais funda a obstinação no erro tanto mais histrionicamente enfáticos os pretextos verbais em que sua mentira originária se camufla, até à total substituição do senso da realidade por uma retórica de comício.

A vitória completa da estereotipagem vem com A Região Submersa, do mesmo Tabajara Ruas, no qual o general-presidente Humberto I (quanta sutileza!), morto em acidente de aviação, se revela por fim um robô comandado à distância pelos americanos. Falar em "literatura", aí, já seria hiperbólico. O Brasil estava maduro para aplaudir a incultura como uma forma superior de sabedoria, ungida pelos profetas, consagrada pelas urnas e ornamentada de diplomas "honoris causa".

Não é preciso dizer que processo análogo se observou no teatro, no cinema e na poesia.

A redução narcisística da visão da sociedade brasileira às discussões internas de um grupo, o apego da intelectualidade esquerdista aos seus mitos autobeatificantes, a recusa de um exame sério das conseqüências sociais de suas próprias ações, levaram à autodestruição da inteligência, sacrificada no altar de ambições políticas escoradas numa autoridade moral tanto mais declinante quanto mais pretensiosa.

Hoje o que resta da "cultura brasileira" é assunto de marqueteiros e cabos eleitorais. Os próprios intelectuais esquerdistas sentem-se talvez um pouco mal nesse ambiente, mas não reconhecem nele a criação sua que ele, indiscutivelmente, é. E por que haveriam de condená-lo, se ele foi a condição prévia para sua ascensão ao poder e a revanche -- enfim! -- sobre tantas humilhações?

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030712globo.htm

Ainda o golpe de estado no mundo

Olavo de CarvalhoO Globo, 12 de julho de 2003

 

"They must to keep their certainty accuse All that are different of a base intent; Pull down established honour; hawk for news Whatever their loose fantasy invent And murmur it with bated breath, as though The abounding gutter had been Helicon Or calumny a song."

(W. B. Yeats, "The leaders of the crowd")

Desde a década de 20 a nata da intelectualidade comunista -- Lukacs, Horkheimer, Adorno, Gramsci -- percebeu que sua guerra não era apenas contra "o capitalismo", mas contra um alvo bem mais vasto e difuso: a "civilização judaico-cristã". A ampliação do objetivo implicava, porém, uma diluição do perfil ideológico do próprio movimento comunista, de modo a que pudesse absorver, sem discussões paralisantes, todas as correntes anti-ocidentais as mais heterogêneas.

Na época, isso não era viável, porque o comunismo triunfante na Rússia ia na direção contrária, buscando consolidar a ortodoxia doutrinal que sustentava a ditadura do Partido.

Para que aquela intuição se disseminasse em círculos mais amplos e se tornasse o eixo articulador de uma nova estratégia mundial, foi preciso chegar às décadas finais do século XX, quando o desmantelamento do império soviético deu razão àqueles pioneiros.

Hoje, é impossível não perceber a aliança mundial de neocomunistas, anarquistas, neonazistas, radicais islâmicos e até budistas contra os EUA e Israel, as últimas fortalezas da civilização condenada, contra a qual, literalmente, vale tudo.

Nebulosa, porém não menos atuante nesse front, é a colaboração de algumas nações européias nominalmente herdeiras do legado judaico-cristão: debilitado seu apego a valores tradicionais pela imigração maciça e por uma longa e incansável sabotagem cultural, deixam-se cegar por interesses imediatos às vezes totalmente ilusórios e se prestam a servir de instrumentos da sua própria destruição.

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Também essencial é a ajuda que o esquema recebe de alguns grupos político-econômicos norte-americanos, os quais, enlouquecidos pela ambição de mandar no mundo por meio do Estado global em germe na ONU, se voltam contra o seu próprio país. Se não fosse pelo Partido Democrata, pelas fundações Rockefeller e Ford, pelo New York Times e entidades semelhantes, há muito tempo a santa aliança anti-ocidental já teria se desfeito em cacos.

Nesse vasto front, a ausência de unidade ideológica formal é uma garantia contra polêmicas internas debilitantes. Ao mesmo tempo, serve para desorientar o adversário, que não sabe ao certo contra quem está lutando. A linha divisória, com efeito, não pode ser demarcada em termos de comunismo e anticomunismo, porque os comunistas sacrificaram a urgências maiores a antiga rigidez do seu discurso; nem de capitalismo e anticapitalismo, pois há poderosos interesses capitalistas de ambos os lados; nem de Estados em conflito, porque muitos Estados têm dentro de si inimigos piores que no exterior; nem de guerra civilizacional, como pretende Samuel Huntington, pois seria absurdo jogar sobre as costas do Islam a responsabilidade por uma doutrina tão "ocidental" quanto o marxismo, ainda um fator intelectual importante na luta pela conquista mundial.

O melhor estudo a respeito é "Liberal Democracy vs. Transnational Progressivism", de John Fonte.

Mas "progressismo transnacional" é apenas um nome provisório para designar a densa cobertura retórica de ódios irracionais e calúnias desencontradas que adorna um movimento cuja unidade estratégica é, no entanto, inegável.

Essa unidade revela-se da maneira mais patente na rapidez com que Estados, partidos, facções e ONGs das mais diversas filiações nominais acorrem disciplinadamente para apoiar todas as causas, mesmo inconexas em aparência, que sirvam para corroer as bases da civilização ocidental. Isto vai desde o anti-americanismo, o anti-israelismo, o anticristianismo explícitos, até as quotas raciais, o desarmamento civil, o casamento gay, o alarmismo ecológico, o abortismo, a imposição do vocabulário "politicamente correto", a medicalização da sociedade e a liberação das drogas pesadas -- com seu complemento dialético infalível, a proibição do tabaco. Todos esses movimentos vêm de fonte única -- a intelectualidade ativista entrincheirada nos organismos internacionais --, mas entre eles o observador leigo não enxerga a menor ligação e, colaborando com a parte, não imagina estar ajudando o todo.

O ataque multilateral, além de apagar as pistas da unidade estratégica que o inspira, ainda se prevalece das vantagens da propaganda contraditória, psicologicamente mais eficaz que a persuasão coerente.

Contribui ainda para estontear o observador o fato de que as ações pautadas por essa estratégia não se executam por meio de canais uniformes de fácil identificação, mas de uma complexa rede de organizações diversas, abrangendo partidos, ONGs, jornais, canais de TV, igrejas, escolas, clínicas de psicologia, instituições assistenciais de fachada e até entidades sem existência legal como quadrilhas de traficantes, grupos guerrilheiros ou o nosso MST. Os vínculos ideológicos são aí tão evanescentes quanto são sólidas e manifestas as conexões políticas e financeiras, hoje bem conhecidas.

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Nada disso é secreto, nem ao menos disfarçado: é apenas complicado demais para o observador burrinho (o que inclui boa parte das chamadas "elites"), porém simples para intelectuais do porte de Lukacs, Gramsci e seus sucessores.

Não se trata, pois, de uma "conspiração", mas de uma aposta de grandes estrategistas na estreiteza mental de seus inimigos, os quais, não enxergando o conjunto do tabuleiro, se desgastam em esforços vãos para salvar uma parte da civilização entregando as outras: querem a democracia mas cedem ao desarmamento civil ou às quotas raciais, querem a moralização da sociedade mas cedem ao abortismo, querem a liberdade de opinião mas cedem à chantagem politicamente correta, e assim por diante. Direi que as árvores encobrem o bosque? Não. Elas encobrem o incêndio que já consumiu metade do bosque.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030713zh.htm

Os inconseqüentes e a conseqüência

Olavo de CarvalhoZero Hora, 13 de julho de 2003

Os políticos, empresários e sujeitos importantes em geral que trombeteiam alegremente as virtudes do desarmamento civil têm sua proteção garantida por seguranças armados. Quer os paguem do próprio bolso ou com dinheiro público, levam vantagem sobre o cidadão comum, que na melhor das hipóteses compra a prestações um 38 e, na hora da encrenca, tem de manuseá-lo pessoalmente.

Agora Suas Excelências querem que ele renuncie a essa modesta garantia individual, sem que elas abdiquem concomitantemente das suas, bem maiores e mais eficientes.

Qual a diferença entre ter um revólver no criado-mudo e ter meia dúzia de guardas rondando a casa? Em ambos os casos trata-se de posse de armas, mas no segundo o poder das armas é duplicado pelas habilidades da tropa adestrada. Se essa diferença já é grande, maior ainda é a que há entre ter proteção dupla e não ter sequer um revólver no criado-mudo.

Aprovado o desarmamento civil, o direito à legítima defesa estará reservado a quem tenha muito dinheiro para pagá-lo.

É a instituição de uma sociedade de castas, com a posse dos meios de defesa transformada em privilégio dos grão-senhores.

Que se passa no coração de um homem que, ladeado por guardas com pistolas Glock e metralhadoras Uzi, exige que os cidadãos comuns se exponham aos mesmos riscos de que o

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dinheiro o preserva? Ou esse indivíduo tem a candura inconseqüente de um perfeito idiota ou é um monstro de cinismo e amoralidade, um sociopata, uma alma de criminoso sob uma máscara de pai da pátria.

Um dos dois é o caso de Suas Excelências.

Pessoalmente, não tenho arma. Já tive, mas ficou velha, enferrujou e foi para o lixo. Se tivesse uma e, privado dela por ordem do Estado, fosse em seguida vítima de assalto sem poder me defender, não hesitaria em responsabilizar judicialmente as Excelências que, armadíssimas, me tivessem desarmado.

Vitorioso o desarmamento civil, a diferença entre protegidos e desprotegidos será tão vasta, chocante e escandalosa, que dificilmente se poderá conter o ressentimento popular contra os privilegiados da segurança pessoal.

Mas esse risco é óbvio demais para que já não tenha ocorrido aos próprios defensores desse projeto insano. Se, a despeito disso, continuam querendo implantá-lo, ou é porque são obstinados até à insanidade, ou porque têm nisso uma segunda intenção.

Qual?

A campanha pelo desarmamento civil vem das mesmas fontes internacionais -- ONU, Comunidade Européia, fundações milionárias -- que apóiam o MST. A inevitável revolta contra a nova estratificação social dará pretexto a uma segunda campanha, desta vez pelo monopólio estatal dos serviços de segurança, pela extinção das empresas privadas que hoje protegem lojas, prédios, casas e fazendas.

Se em nome da paz e da ordem os cidadãos honestos forem entregues inermes nas mãos dos bandidos, em nome da igualdade e da democracia as grandes propriedades serão desprovidas dos meios de proteger-se a si mesmas. Principalmente as grandes propriedades rurais, que hoje têm nos seguranças armados sua única salvaguarda contra invasores apadrinhados pelo governo.

Quando todas as armas forem do governo, as propriedades serão de quem o governo quiser.

Aceitem o desarmamento civil, e aceitarão essa conseqüência incontornável.

E, se imaginam que a "opinião pública internacional" virá socorrê-los nessa hora, saibam que ela não está nem ligando para os fazendeiros da África do Sul e do Zimbábue, que vêm sendo mortos às pencas, como coelhos em temporada de caça, por governos contra os quais não se ouve uma só palavra na ONU, na CE ou na grande mídia.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030717jt.htm

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O estilo Pavlov de governar

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 17 de julho de 2003

A dificuldade maior com esse sr. Lula é que a gente tem de tratá-lo ao mesmo tempo com a reverência do cidadão comum à autoridade presidencial e com a condescendência paterna do adulto letrado para com um rapaz de pouca instrução.

É preciso levá-lo totalmente a sério, para evitar o risco de ofendê-lo, e não levá-lo a sério de maneira alguma, para evitar que suas palavras ofendam nossa inteligência.

Isso deixa qualquer um esquizofrênico.

Talvez, aliás, tenha sido essa uma das razões para ele ser escolhido candidato à presidência. O célebre neurofisiologista Ivan Pavlov demonstrou que a estimulação contraditória repetida é uma "provação intolerável" (sic) para o cérebro: ela estupidifica o ouvinte e o predispõe a aceitar servilmente qualquer ordem ou sugestão que se lhe dê em seguida, por mais absurda ou prejudicial que seja.

Lula é a estimulação contraditória encarnada.

Pois não é que ele acaba de apelar ao mundo para que "exija mais ação dos EUA em defesa da democracia", ao mesmo tempo em que protestava contra o ataque a Saddam Hussein?

Pode haver ação mais decisiva em favor da democracia do que desmantelar em duas semanas um regime ditatorial sangrento que já havia matado, comprovadamente, mais de trezentos mil prisioneiros políticos? Teria constituído "mais ação" deixar a ONU arrastar-se por mais alguns anos em debates e conjeturas enquanto em Bagdá a máquina de moer gente mantinha sua produtividade média de trinta cadáveres por dia?

E que outra ajuda à democratização universal esperaria dos EUA o nosso presidente? Que aplaudissem o regime de Fidel Castro? Que estimulassem com um empréstimo milionário a escalada ditatorial de Hugo Chávez? Que recusassem chamar de terrorista, para não magoar inofensivos narcotraficantes, o regime de terror imposto pelas Farc a metade da população colombiana? Que, em suma, agissem à imagem e semelhança de Luís Inácio Lula da Silva?

E, diante do protesto do presidente da Polônia, que lhe lembrava o fato arquiconhecido de que os EUA são a única potência internacional que já fez alguma coisa séria para demolir ditaduras no mundo, nosso bisonho governante ainda se queixa de ter sido "mal interpretado"!

Como interpretar uma contradição monumental senão mostrando que é uma contradição monumental? Já ensinava Benedetto Croce: "O erro fala com voz dupla, uma das quais

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proclama o falso e a outra o desmente; e é um contender de sim e não, que se chama contradição... O erro condena-se, não pela boca do juiz, mas ex ore suo."

Ex ore suo -- por sua própria boca --, o presidente da República constrange-nos a escolher entre uma destas alternativas: ou ele quer nos desorientar, ou está ele próprio desorientado, ou estas duas hipóteses se mesclam indissoluvelmente na desorientação geral do país.

O cidadão comum que, de boné do MST na cabeça, fizesse apelos à paz no campo, seria imediatamente acusado de louco ou de piadista infame. Mas o presidente faz exatamente isso e o público, não sabendo se deve rir ou chorar, indignar-se ou temer, prefere fingir que não viu nada. Finge uma vez, duas, três: na quarta, seu cérebro está programado para não ver a quinta. Nem a sexta. Nem a milésima. Está programado para não ver mais nada nunca mais e para aceitar com docilidade bovina tudo o que lhe entre pelos ouvidos, se vier de fonte oficial. Leiam Pavlov. É exatamente assim, literalmente assim que funciona a estimulação contraditória. Seus efeitos já são perceptíveis em todo o território nacional, onde são cada vez em menor número os olhos abertos para enxergar a enormidade grotesca das situações que se sucedem neste Brasil de 2003, Ano I da Era Lula.

Se eu quisesse endoidar um país, esse seria o homem que eu escolheria para presidi-lo. Para ser respeitado, venerado, obedecido sem discussões, ele não precisaria ser um estadista inspirado, ter planos geniais, tomar decisões corajosas. Aliás não precisaria nem governar. Bastaria que falasse. Que falasse e continuasse falando exatamente do jeito que fala. Em breve tempo, não haveria mais cérebro humano com forças para contradizê-lo. Sem modificar uma só lei, sem desfigurar as instituições, sem ferir no mais mínimo que fosse a ordem democrática, ele teria se tornado rapidamente um monarca absoluto. Absoluto por absoluta falta, nos seus virtuais opositores, de condições neurológicas para dizer-lhe "Não".

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030719globo.htm

Para uma antropologia filosófica

Olavo de CarvalhoO Globo, 19 de julho de 2003

A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por trás de toda variação local e histórica, pode-se resumir em seis interrogações básicas, articuladas em três eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas sim temporais e variáveis, dão as coordenadas da orientação do homem na existência.

O primeiro eixo é "origem-fim". Ninguém jamais soube onde e quando o conjunto da realidade começou nem como ou quando vai terminar. Pode-se arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmogônico ou a imagem do "big bang", uma teologia da

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criação ou um atomismo materialista, cada qual com sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão, pois dela depende o nosso senso de orientação no tempo, a possibilidade de conceber projetos e dar forma narrativa às nossas experiências.

O segundo eixo é "natureza-sociedade". Todo homem vive entre dois campos da realidade, um anterior e independente da ação humana, o outro criado por ela. A diferença e a articulação desses campos aparecem no contraste entre o geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo contra os animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de encontrar na natureza um abrigo contra os males do convívio social. A natureza pode aparecer como um pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A sociedade pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas tentativas só revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo seu contrário, seja de articulá-los numa equação definitiva, seja de compreender um deles sem referência ao outro.

O terceiro eixo é "imanência-transcendência". Cada ser humano sabe que ele próprio existe, que tem um "mundo" interior de experiências, recordações, desejos, temores. Mas sabe também que esse poço é sem fundo, que ninguém pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na esposa, a proteção contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é próximo e estranho a si mesmo. Por outro lado, para além de tudo o que se pode conhecer da realidade, para além de toda experiência alcançável, cada homem e cada cultura pressente um fator "x", que, desde acima ou desde o fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que são e não de outro modo. "Por que existe o ser e não antes o nada?": assim formulava Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la pela concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade ordenadora ou de uma fantástica auto-regulação de coincidências. Podemos até expulsá-la da discussão pública, deixando-a à mercê do arbítrio privado, com a abjeta covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que não escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias articulações são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos conceber o transcendente à imagem do nosso ser íntimo, como divindade bondosa que nos compreende e nos ama -- mas isso fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza fria e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços impessoais e mecânicos de uma fórmula matemática -- mas isso não nos impedirá de amaldiçoar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade humana quando nos oprime ou nos reconforta.

Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de ignorância e conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um articula-se com seu oposto, num mútuo esclarecimento -- ou multiplicação -- de tensões. E no ponto de interseção dos três eixos, como no das três direções do espaço, fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano.

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Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que estabelecem entre os seis fatores por meio de assimilações e reduções. Muitas culturas arcaicas privilegiavam o fator "origem", explicando sociedade e natureza por um mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência. A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando poder deduzir dela uma ordem intelectual completa e definitiva. A modernidade absorveu tudo na oposição natureza-sociedade, esperando não menos utopicamente reduzir os mistérios da transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística. Preparou assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram da sociedade a razão última da origem e do fim, colocando entre parênteses a natureza, sufocando a imanência e vedando o acesso à transcendência. Cada um desses arranjos, mesmo o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório, como experimento de sondagem numa certa direção que os interesses de um momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza numa proibição de olhar para além da articulação admitida. Só a abertura da alma para a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá acesso à experiência realista da condição humana e, portanto, à possibilidade da sabedoria. Todas as explicações que, para enfatizar uma articulação em particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis.

Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola analítica, o nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, -- todas aquelas, enfim, que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico neste país -- são doenças espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido à pergunta.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030726globo.htm

A vitória do fascismo

Olavo de CarvalhoO Globo, 26 de julho de 2003

Tom Jobim dizia que no Brasil o sucesso é um insulto pessoal. Sem querer, explicava assim a ampla aceitação da ideologia socialista entre nós. Para o cidadão normal de uma democracia, o êxito de quem quer que seja é resultado do talento e da sorte. Para frustrados e invejosos embriagados de mitologia socialista, é o efeito de uma planificação maligna das classes dominantes, o produto diabólico de uma máquina de exclusão social inventada e controlada por astutos engenheiros sociais burgueses.

Na imaginação socialista, os capitalistas não fazem outra coisa senão reunir-se na calada da noite para premeditar a ruína dos pobres. Para isso, criam todo um aparato ideológico de

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“reprodução” dos padrões sociais existentes, contratando intelectuais e técnicos para estudar meios de não deixar mais ninguém subir na vida.

O capitalismo, nesse sentido, é uma sociedade administrada, um mecanismo racional calculado nos seus mínimos detalhes para bloquear o progresso social.

Só que, após ter descrito e acusado essa máquina com requintes de análise corrosiva, no instante seguinte o socialista aparece condenando a “anarquia do mercado” e fazendo a apologia da economia planejada como solução para todos os males...

Já tenho me perguntado como é possível uma criatura mudar de discurso tão radicalmente, sem nem perceber que se contradiz. Cinismo ou inconsciência? Maquiavelismo ou burrice?

Observem a rigidez da disciplina no PT ou no MST, e obterão a resposta. O militante socialista ou comunista sacrifica tudo à hierarquia partidária, mesmo a moralidade, mesmo as exigências mais íntimas da consciência pessoal. É natural que projete essa conduta sobre a fisionomia do inimigo, concebendo-a à sua própria imagem e semelhança. Mas toda fantasia projetiva é necessariamente paradoxal, é ao mesmo tempo direta e inversa. De um lado, o capitalismo aparecerá aos olhos do socialista como uma hierarquia maquinal análoga à do seu partido, apenas com signo ideológico oposto. De outro, a atmosfera partidária, com aquele seu unanimismo que dá a cada um dos militantes um sentimento tão vivo de participação, de proteção mútua, de “comunidade solidária”, é vivenciada como o embrião de sociedade ideal, em contraste com a qual a realidade do capitalismo aparecerá como pura confusão e lei da selva.

Basta olhar o capitalismo diretamente, sem o viés projetivo da disciplina socialista, para ver que ele não é nem uma coisa nem a outra, mas apenas a integração de várias premeditações parciais -- os cálculos dos vários interesses privados -- num ambiente geral frouxamente atado pelas regras da convivência democrática.

Mas a idéia mesma de “regra” tem sentido diferente para socialistas e capitalistas. Numa democracia capitalista, as regras do jogo são fixas, ao passo que as finalidades gerais do esforço social vão mudando conforme as inclinações da opinião pública a cada momento. Numa sociedade socialista -- ou nos partidos que lutam por ela --, é o contrário: as finalidades são constantes, cristalizadas no símbolo utópico do “ideal”, e as regras do jogo é que mudam segundo as conveniências estratégicas e táticas vislumbradas pelos líderes em cada etapa da luta.

Por isso é tão difícil um socialista compreender o capitalismo quando um homem formado nas regras do capitalismo entender a mentalidade socialista. Esta último tentará explicar a conduta socialista pela racionalidade de interesses econômicos, acreditando que tais ou quais vantagens obtidas no caminho aplacarão os ódios e as ambições da militância enragée. O segundo enxergará o capitalismo por meio de uma grade de fantasias projetivas macabras, e acabará acusando a classe burguesa de ser ao mesmo tempo uma maçonaria racionalmente organizada para saquear o mundo e um aglomerado caótico de egoísmos incapazes de organizar-se.

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Não espanta que toda tentativa de fusão entre capitalismo e socialismo resulte numa contradição ainda mais funda: quando os socialistas desistem da estatização integral dos meios de produção e os capitalistas aceitam o princípio do controle estatal, o resultado, hoje em dia, chama-se “terceira via”. Mas é, sem tirar nem pôr, economia fascista. De um lado, burgueses cada vez mais ricos, mas -- como dizia Hitler -- “de joelhos ante o Estado”. De outro, um povo cada vez mais garantido em matéria de alimentação, saúde, habitação, etc., mas rigidamente escravizado ao controle estatal da vida privada.

Também não espanta que os socialistas, não entendendo o capitalismo, procurem descrevê-lo com a fisionomia hedionda do fascismo, que, por afinidade, entendem perfeitamente bem. E muito menos espanta que, abominando então o capitalismo como uma espécie de fascismo, acabem sempre lutando em favor de reformas econômicas e políticas que o transformarão exatamente nisso. Como a economia socialista em sentido integral é inviável, como nunca se chega lá, e como por outro lado os burgueses raramente têm fibra para resistir à investida socialista contra o liberal-capitalismo, o resultado é sempre o mesmo: a vitória do fascismo.

A única diferença entre as economias fascistas dos anos 30 e a de agora é que aquelas eram de escala nacional e, para impor-se, recorreram muito logicamente a um discurso carregado de mitologia patrioteira e racista. A de hoje é mundial, devendo portanto usar de pretextos simbólicos que, ao contrário, sirvam para dissolver as identidades nacionais e os valores morais e religiosos a elas associados. Daí o pacifismo, o feminismo, o multiculturalismo, o desarmamentismo civil, o casamento gay, etc. Ideologia, já definia o velho Karl Marx, é um “vestido de idéias” em torno de objetivos que nada têm a ver com idéias. Hitler confessava, em privado, não acreditar nem um pouco na discurseira racista que usava para infundir nos alemães um sentimento de ódio travestido de amor à justiça. Os próceres do globalismo progressista também não acreditam no besteirol politicamente correto que injetam nas massas de militantes idiotizados. Tanto quanto o comunismo e o fascismo de velho estilo, o “socialismo democrático” ou “terceira via” de hoje é um compactado de maus sentimentos numa embalagem de belas palavras.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030727zh.htm

A solução final

Olavo de CarvalhoZero Hora, 27 de julho de 2003

Primeiro, a população foi levada a engolir, contra toda evidência econômica, a balela de que a distribuição de terras aos pequenos agricultores acabaria com a miséria no campo. Contornando o debate franco, condenando a priori as mais fundadas e razoáveis objeções

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como pretextos malvados a serviço de interesses vis indignos de atenção, a tese conseguiu se impor sem dificuldade.

Logo em seguida, pelos mesmos métodos, persuadiu-se o público a aceitar as invasões de terras "improdutivas".

Na terceira etapa, tratou-se de legitimar o MST, juridicamente inexistente, como entidade qualificada para embolsar bilhões em verbas federais, com direito a usá-las a salvo de qualquer fiscalização e sem nenhuma obrigação legal explícita.

Depois levou-se o povo a encarar como normais e decentes as invasões de terras produtivas e a completa destruição de fazendas organizadas e rentáveis, enaltecendo como obra de caridade social a sua transformação em favelas rurais.

Tratou-se então de justificar o uso de meios violentos pelos invasores como ato de "resistência" -- argumento que, embora baseado na inversão da ordem temporal das ações e reações, também foi aceito sem maiores controvérsias.

Mais adiante, os órgãos de segurança que observavam discretamente o movimento foram condenados pela mídia como quadrilhas de olheiros ilegais, enquanto a presença de espiões do MST em todos os escalões da administração pública não suscitava a indignação de ninguém.

Então começaram os bloqueios de estradas, as ocupações de prédios do governo, os seqüestros de funcionários públicos. Jamais punidos, tornaram-se um direito consuetudinário.

A revelação de que muitas terras tomadas pelo MST não estavam sendo usadas para fins agrícolas e nem mesmo como abrigos de desocupados, mas como campos de treinamento de guerrilhas, já não suscitou nenhum escândalo, nenhuma investigação: o Brasil estava pronto para aceitar tudo, tudo, desde que viesse com a chancela do MST, bandeiras vermelhas e posters de Che Guevara.

Agora, por fim, o líder do MST confessa que seu objetivo não é obter apenas terras suficientes para os camponeses pobres, mas dominar a agricultura brasileira inteira, extinguindo por completo os direitos de propriedade atualmente existentes e matando todos os fazendeiros: "A luta camponesa abriga hoje 23 milhões de pessoas. Do outro lado há 27 mil fazendeiros. O que nos falta é nos unirmos, para cada mil pegarem um. Não vamos dormir até acabarmos com eles."

Um plano revolucionário e genocida não poderia ser exposto em termos mais claros, mas quem liga? Prometendo transformar o Brasil num Zimbábue, a declaração do sr. Stedile é criminosa em si, independentemente de que venha ou não ser traduzida em atos. Mas o Brasil foi adestrado para não perceber nada, não sentir nada, não pensar em nada. Em vez disso, prefere condenar os que percebem, pensam e sentem. Quem quer que ouse entender as palavras do sr. Stedile com o sentido que têm será acusado de exagero paranóico. Afinal,

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quando Hitler anunciou pela primeira vez a "solução final", toda a Alemanha tomou suas palavras como mera figura de retórica.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030809globo.htm

O último dos reacionários

Olavo de CarvalhoO Globo, 9 de agosto de 2003

Num ensaio publicado em 1961 na Partisan Review, Lionel Trilling observava que o traço essencial da cultura intelectual moderna era "uma crença de que a função primária da arte e do pensamento consiste em libertar o indivíduo da tirania da sua cultura -- no sentido ambiental do termo -- e permitir-lhe erguer-se diante dela com autonomia de percepção e de julgamento".

O tema da cultura intelectual versus cultura ambiental aparece já num estudo anterior do crítico norte-americano, The Opposing Self ("O Eu Oponente"), de 1955. A literatura romântica entre os séculos XVIII e XIX assinala o advento do "escritor" como tipo humano marcado pela capacidade -- ou necessidade -- de sobrepor ao império do discurso coletivo a autoridade intrínseca de uma visão do mundo nascida da experiência pessoal. Numa época de derrocada geral das crenças e valores, quando tudo parecia naufragar na banalidade compressiva da sociedade de massas, o testemunho direto do artista adquiria uma força moral comparável à de Sócrates ante a assembléia de seus carrascos. A "cultura intelectual" era o refúgio do espírito contra a "cultura adversária" -- a cultura dos slogans e da demagogia.

Mas a era do escritor moderno já estava em declínio em 1961. Desde algum tempo, assinalava Trilling, era cada vez maior, nos meios intelectuais, o número de pessoas que aderiam à "cultura adversária". Os jovens que ingressavam no mundo das letras já não queriam exercer a autêntica, a profunda liberdade de consciência, com toda a grave responsabilidade íntima que ela implicava. Em vez disso, queriam "pensar por si mesmos", fórmula pomposa que significava apenas: repetir servilmente as beatices progressistas em vez das conservadoras.

A situação tomara esse rumo no instante em que as universidades se tornaram o canal e molde predominante da carreira literária. Transformados em classe profissional acadêmica, os escritores da segunda metade do século XX cortaram os laços com a experiência pessoal para integrar-se na revolta padronizada do "intelectual coletivo". Sua rebelião já não era a do espírito contra o mundo: era a "rebelião das massas".

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Dois outros fatores contribuíram para esse resultado. Primeiro, o ensino acadêmico tornou-se fornecedor de mão-de-obra para a "índústria cultural", substituindo a autenticidade individual pela "novidade" produzida em série. Segundo: as novas fórmulações ideológicas do progressismo, herdadas sobretudo da Escola de Frankfurt, diluíam a marginalidade criadora do "eu oponente", absorvendo as possíveis individualidades intelectuais no ódio coletivo a toda cultura superior. "Diversidade" e "multiculturalismo" são fórmulas que hoje desviam os jovens letrados dos anseios espirituais mais profundos, substituídos pelas satisfações morais postiças do discurso "politicamente correto".

Essas considerações não me vêm à mente assim por nada, a esmo, mas a propósito de um personagem de quem se falou muito nos últimos dias: aquele homem extraordinário que foi Roberto Marinho. Ele foi o criador e senhor da maior organização de indústria cultural do continente. Teve a máquina nas suas mãos e não hesitou em usá-la para orientar o país na direção que lhe parecia a mais desejável. Mas, acima das suas crenças, acima do seu próprio poder de empresário e de líder, havia para ele um recinto sagrado, intocável: a liberdade da consciência. Ele combatia tenazmente por aquilo em que acreditava, mas com idêntico vigor lutava para que ninguém fosse privado da possibilidade de acreditar no contrário. Como intelectual e jornalista ele foi, nesse sentido, um típico filho das letras modernas, um homem para quem a liberdade interior, em si, valia mais do que este ou aquele conteúdo de consciência, do que esta ou aquela idéia, do que esta ou aquela certeza, por importante e querida que fosse. Dono da máquina, não apenas não se deixou engolir por ela, mas também impediu que ela esmagasse, com o seu peso, a liberdade de seus próximos -- incluindo-se nesta categoria os seus mais rancorosos adversários e detratores, aqueles mesmos que fizeram dele o brasileiro mais difamado e caluniado do século XX, mais até do que Roberto Campos.

Roberto Marinho foi, assim, homem de outra época.

Para a quase totalidade dos intelectuais de hoje, a vitória da sua causa, do seu partido, da sua crença, está tão acima de qualquer outro valor ou ambição, que cada um a identifica com a vitória da liberdade mesma, da liberdade geral e universal, da grande e definitiva liberdade que há de imperar na bela "sociedade mais justa" de amanhã. E em nome de tão elevado ideal é legítimo e válido, e até moralmente obrigatório, suprimir pelo caminho a liberdade pequena e provisória, a liberdade de consciência dos indivíduos. O problema é que esta é uma realidade concreta, da qual toda a literatura moderna dá testemunho, enquanto a outra é uma hipótese abstrata, um chavão para uso de agitadores e cabos eleitorais. Os antigos totalitarismos falavam em nome da ordem, da autoridade, da hierarquia. Ostentavam com orgulho o nome de ditaduras. O neototalitarismo contemporâneo sufoca a liberdade viva em nome de um estereótipo de liberdade, feito para a autolisonja fácil de "movimentos sociais" criados em série por intelectuais ativistas, a prole inumerável, ruidosa e prepotente da universidade de massas e da indústria cultural.

Para a cultura intelectual moderna, a tolerância era, em essência, tolerância para com os adversários. Os novos tempos substituiram-na pela fórmula da "tolerância libertadora" proposta por Herbert Marcuse: "Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita."

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Hoje, aqueles que mais professam abominar a autoridade, a ordem, a repressão, são os primeiros a convocá-las para sufocar as vozes discordantes. Por isso a defesa da liberdade de consciência, como advertia o próprio Trilling, tornou-se conservadora, "reacionária". Roberto Marinho foi, nesse sentido, o último dos grandes reacionários. E por isso é mais fácil elogiá-lo, depois de morto, do que seguir o exemplo

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030802globo.htm

Tudo dominado

Olavo de CarvalhoO Globo, 02 de agosto de 2003

 

Alguns adversários do governo vêem na queda da popularidade do presidente da República um auspicioso sinal de que o eleitorado vai se libertando da ilusão esquerdista. Mas isso sim é que é ilusão. A força de uma corrente política não se mede pelo prestígio de um de seus membros, mas pela somatória dos seus meios de ação, comparados aos do antagonista. O mais decisivo é a predisposição do público para aceitar o discurso de um dos lados. Hoje em dia, a credibilidade a priori da fala esquerdista é tão hegemônica que qualquer argumento contra, já não digo para ser aceito, mas simplesmente para ser compreendido, tem de se traduzir nos termos dela, esvaziando-se de toda energia própria. A esquerda tem o monopólio do ideário nacional, da linguagem dos debates públicos, dos critérios de julgamento do bem e do mal. Isso equivale, em política, ao domínio do espaço aéreo em estratégia militar. O inimigo pode criar focos de resistência limitados e pontuais, mas o conjunto, o esquema geral, está sob controle. Como diriam os evangélicos, está tudo dominado.

Um dos sinais mais inequívocos é o direito adquirido que qualquer esquerdista tem de ser interpretado sempre da maneira mais benévola, enquanto toda palavra que venha da direita é, infalivelmente, ouvida com malícia.

Imaginem o que aconteceria se um líder dos fazendeiros, somando os militantes do MST, dissesse: "Vamos nos organizar e acabar com todos eles." Quem, na mídia ou na classe política, hesitaria em ver nisso um apelo ao genocídio?

Mas, quando o sr. Stedile anuncia seu propósito de reunir um exército de 23 milhões de militantes para "acabar com todos os fazendeiros", o dr. Marcio Thomaz Bastos, com a cara mais bisonha do mundo, pontifica que o movimento chefiado por esse indivíduo "não é caso de polícia". O presidente do PT, José Genoíno, mais calmante que um Dienpax na veia, filosofa que a tomada de propriedades pela força "é coisa da vida". E o bispo

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Casaldáliga, levando sua caricatura simiesca da fé cristã às últimas conseqüências, condena como "satanismo" a resistência às invasões.

Vocês lembram o que a mídia fez com o ex-governador Maluf quando, numa frase desastrada, disse "Estupra mas não mata"? É claro. Um direitista, ou qualquer um assim rotulado, não tem direito sequer a um lapsus linguae, por mais patente e boboca que seja. Mas quando o sr. Stedile conta as cabeças de seus adversários e promete cortar todas, é o próprio ministro da Justiça quem vem correndo diluir o conteúdo de suas palavras, para que não manchem a reputação de um "movimento social", coisa inocente e cândida por definição.

Como "acabar" com 27 mil cidadãos, senão matando-os ou aterrorizando-os? Se essa ameaça não é caso de polícia, confesso que ficarei inibido de apelar ao socorro policial na eventualidade de algum desafeto meu, reunindo mil parceiros armados de foices, facões, revólveres e carabinas, prometer "acabar" comigo. Mil contra um, antigamente, era covardia, era massacre. Hoje é "movimento social". E "honni soit qui mal y pense". Afinal, os revisionistas do Holocausto também não alegavam que Hitler jamais ameaçara "matar" os judeus, apenas "acabar" com eles? Foram os pérfidos sionistas que, retrospectivamente, atribuíram más intenções àquele doce de criatura.

Hegemonia lingüística é isso: basta mudar o nome de um crime, e ele deixa de ser crime. Passa a ser uma "coisa da vida", se não a expressão da vontade divina, que só "satanistas" ousariam contrariar.

Mas as massas de camponeses sob o comando de Mao Tsé-tung não eram um "movimento social"? Não eram "movimentos sociais" as hordas de pés-rapados que, com estandartes nazistas, marchavam pelas ruas de Berlim exigindo "acabar" com os ricos e os comunistas? Não são "movimentos sociais" as tropas de invasores que, no Zimbábue, já "acabaram" com mais de mil fazendeiros? Não é "movimento social" a narcoguerrilha colombiana, que dá emprego a milhares de plantadores pobres?

Segundo o nosso governo, as Farc são uma organização tão respeitável quanto o governo da Colômbia. Se, portanto, com a melhor das intenções sociais, elas injetam no mercado nacional duzentas toneladas de cocaína por ano, isso é ou não é um caso de polícia? É crime ou "coisa da vida"? Perguntem ao ministro da Justiça, perguntem a José Genoíno, perguntem a Dom Pedro Casaldáliga. A língua portuguesa do Brasil, aviltada pelo abuso semântico institucionalizado, já não serve para a gente se explicar sobre o que quer que seja: serve só para papaguear chavões esquerdistas.

Por isso é que os fazendeiros se enganam tragicamente quando pensam que, com guardas armados, podem resistir às invasões. Não se vence, com balas, a força da hegemonia, o poder hipnótico de seduções verbais que, ao longo de décadas de "revolução cultural", enfeitiçaram a alma da sociedade. Não se vence, com resistências locais e avulsas, uma estratégia abrangente e complexa que muito antes de dominar o Estado já dominava todas as consciências.

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Por isso também se enganam aqueles que, escandalizados com a maré montante das invasões e da violência em geral, cobram do governo que "tome uma atitude", que "cumpra sua função". Ele já tomou essa atitude, já cumpre essa função. Todo partido revolucionário que, por meio do voto, sobe ao poder numa democracia constitucional, só pode ter uma dentre duas funções: ou assume a condução do processo revolucionário, como fizeram Allende e João Goulart, arriscando-se a terminar como eles, ou, ao contrário, fica na retaguarda, acalmando os investidores internacionais, anestesiando a opinião pública e montando um simulacro de normalidade enquanto deixa às organizações militantes a incumbência de, com sua discreta ajuda, tomar a dianteira e apoderar-se de todos os meios de ação, isolando e paralisando o adversário. Esta última alternativa é complexa e delicada, mas indolor: as únicas armas de que um governo precisa para ser bem sucedido nela são anestésicos, soporíferos, tranqüilizantes, eufemismos, evasivas e desconversas. E no manejo desse arsenal o governo Lula é formidavelmente bom.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030810zh.htm

Truculências

Olavo de CarvalhoZero Hora, 10 de agosto de 2003

Nosso embaixador em Havana louva os fuzilamentos de dissidentes como exemplo a ser imitado, o líder do MST promete "acabar com todos os fazendeiros", e a menor suspeita de que haja nisso alguma indução à violência é condenada como delírio paranóico. Em contraposição, a TFP faz uma inofensiva passeata em São Paulo -- e imediatamente pululam advertências apocalípticas contra o ressurgimento da "direita truculenta".

Truculento, isto sim, é desnível entre as abordagens, que trai de imediato a escolha prévia, o partidarismo louco que não quer saber da verdade ou da justiça, mas apenas de esmagar o adversário, seja lá ao preço que for.

Se a diferença do grau de "truculência" entre as duas organizações estivesse apenas nos discursos, ela já seria grande o bastante para que qualquer tentativa de inverter-lhe as proporções já se denunciasse, instantaneamente, como falsificação malévola.

Mas a diferença não é só de palavras. É de atos.

O MST, além de invadir, saquear e incendiar propriedades, já seqüestrou funcionários do governo, matou guardas de fazendas, degolou um cidadão em plena praça pública.

Nada de longínquamente parecido consta do "curriculum" da TFP. Por que então ela é que é "truculenta" enquanto o MST é um lindo e respeitável "movimento social"?

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Resposta: o sentido do termo "truculência" muda conforme o acusado se desloque de um lado para outro no espectro ideológico. O grau máximo de truculência não consiste em invadir, saquear, aterrorizar e matar. Pode-se fazer tudo isso sem truculência nenhuma. Pode-se fazer tudo isso com delicadeza, bondade, etéreo idealismo e toneladas de "ética". Truculência, mesmo, é ser direitista.

Mas onde se publicam aquelas advertências? Em jornalecos de partido? Em panfletos de propaganda? Nada disso. Publicam-se nos grandes jornais, assinadas por articulistas tidos como profissionais sérios, sem compromisso ideológico, devotados tão somente à prática do melhor jornalismo.

Quando Antonio Gramsci dizia que as ordens do Partido revolucionário deveriam pairar sobre o universo mental coletivo com a autoridade invisível e onipresente "de um imperativo categórico, de um mandamento divino", era a isso que ele se referia: a opinião mais partidária que se possa imaginar, a distorção ideológica mais extrema já não poderiam ser identificadas como tais e seriam aceitas como os protótipos mesmos do pensamento isento, equilibrado, suprapartidário -- a encarnação pura da voz da razão. Na mesma medida, a opinião adversa, mesmo expressa com serenidade, mesmo apelando à autoridade dos fatos e argumentando da maneira mais racional possível, estaria impugnada a priori como extremismo, fanatismo e -- para cúmulo de ironia -- "preconceito". E é claro que a simples exigência de um confronto honesto seria tomada como criminosa adesão às opiniões condenadas -- uma regra que alguns leitores não deixarão de aplicar a este mesmo artigo, fazendo de seu autor um partidário da TFP malgrado as reiteradas e inúteis expressões de sua discordância com os princípios dessa organização.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030816globo.htm

A História segundo Godot

Olavo de CarvalhoO Globo, 16 de agosto de 2003

 

Entre intelectuais de formação marxista, é endêmica a dificuldade de raciocinar desde os fatos, desde a experiência direta, sem o apelo a todo um esquadrão de premissas dogmáticas, de pressupostos indeclarados, cujo poder de validar conclusões depende por inteiro da cumplicidade de um público lingüisticamente intoxicado. A fé comum, a rede de crenças semiconscientes cristalizada num extenso rol de cacoetes verbais coletivos, tem o dom de infundir credibilidade em afirmativas que, examinadas com um pouquinho, só um pouquinho de senso crítico, se revelam absolutamente insustentáveis.

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A expressão "capitalismo tardio", por exemplo, é usada a torto e a direito para dar a entender algo que se toma por abundantemente conhecido e demonstrado. Acabo de relê-la, pela milionésima vez, na entrevista de Roberto Schwarz à revista Cult, onde ele a repete com a mesma candura bisonha de gerações e gerações de marxistas. A referência cronológica do adjetivo é claramente absurda. Ela dá a entender que o capitalismo tem um prazo fixo de existência histórica, já vencido, sendo toda a existência posterior desse sistema um acidente protelatório que, no fundo, não altera em nada o cronograma infalível da profecia socialista. Em quase metade do planeta, o que acabou foi o socialismo, enquanto o capitalismo continua se expandindo, indiferente às profecias. Mas basta pronunciar a jaculatória "capitalismo tardio", e num instante as doses respectivas de realidade e fantasia se invertem: os fatos tornam-se evanescentes, a hipótese messiânica adquire a presença real, física, de um fato consumado. É um ritual de magia teúrgica, a evocação de uma miragem que, pelo poder da fé, se torna mais real do que o mundo presente. Credo quia absurdum est.

Mais que um ato de fé, é um distúrbio psicótico da percepção de tempo. Na visão cristã da História, o tempo e a eternidade se articulavam numa relação tal que nela a eternidade podia localizar-se, sem contradição, "acima" de todos os tempos, "em" cada um deles ou "depois" da consumação deles, conforme fosse concebida em sua tripla natureza de supratempo, de permanência imutável ou de moldura metafísica dos tempos. Na historiologia marxista, essas características são projetadas sobre uma determinada fração do tempo, a época do socialismo, que, encarregada de personificar a meta a que conduzem as épocas anteriores, se investe, por impregnação semântica, dos outros dois atributos da eternidade: torna-se a chave da cronologia e o ponto fixo por cima de todos os tempos, o supra-fato permanente do qual os fatos da História são meras aparências ou camuflagens provisórias.

A psicose marxista faz de um futuro conjetural a suprema realidade incumbida não só de medir o avanço dos tempos, mas de conferir ou negar realidade a cada um conforme se aproxime ou se afaste da expectativa projetada para além deles. O futuro deixa de ser contingente, tornando-se necessário, enquanto o passado deixa de ser fato irreversível para tornar-se hipótese contingente que o futuro há de validar ou impugnar, não quando e se esse futuro vier a se realizar, mas desde já. Embora nenhum teórico socialista possa dizer quando o tal socialismo virá a imperar no mundo, a duração maior ou menor do capitalismo é antecipadamente medida na escala do esperado advento do seu sucessor, o Godot da cronologia histórica, transfigurado em papel-título do "Exterminador do Futuro".

Não uso o termo "psicose" à toa. Confiram em qualquer tratado de psicopatologia (por exemplo, Gabriel Deshaies, Psychopathologie Générale, Paris, P. U. F.), e verão que a estrutura do tempo no marxismo é idêntica à da temporalidade mórbida nos delírios de um paranóico: aquilo que não aconteceu, que simplesmente se supõe venha a acontecer, torna-se o critério da realidade do acontecido.

A credibilidade das conclusões extraídas de premissas assim formadas não depende, é claro, de nenhuma persuasão racional, mas da impregnação na expectativa messiânica subentendida, que a intensidade emocional do senso de participação no empenho de realizá-la transformará no equivalente onírico de uma evidência autoprobante.

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Na linguagem dos marxistas, são milhares as expressões desse tipo, compactações de pressupostos insensatos que, jamais analisados ou conscientizados, funcionam como vírus de computador, corrompendo e viciando a inteligência para que jamais atine com as verdades mais óbvias.

A mente formada nesse molde é capaz de prodígios de automistificação que o cidadão comum nem imagina, mas que acabam por infectá-lo justamente porque ele dá ouvidos aos intelectuais marxistas como se estes fossem pessoas normais e sinceras, sem suspeitar que está naquele mesmo momento sendo vítima de um ataque mortal ao seu crédulo e indefeso HD.

É só a deformidade congênita da mente marxista que pode explicar os abismos de baixeza em que mesmo os melhores pensadores dessa escola mergulhavam sem o menor sinal de algum abalo de consciência. O próprio Karl Marx, que escreveu páginas candentes contra os burgueses que abusavam das proletárias, nunca permitiu que o filho que tivera com a empregada se sentasse à mesa com a família. Max Horkheimer, no famoso instituto de Frankfurt, reduzia seus colaboradores à miséria para assegurar a si mesmo ganhos dignos de um rei. Adorno, o sensibilíssimo Adorno, filho de um próspero comerciante de vinhos, conspirava para tomar o emprego de Herbert Marcuse, que não tinha onde cair morto. Essas condutas, entre os mais célebres intelectuais marxistas, são a regra e não exceções. Mais que vulgar hipocrisia, elas revelam uma lacuna de consciência, um hiato entre a inteligência teorizante e a vida real.

Se querem a explicação do estado caótico e tempestuoso da vida brasileira hoje, basta ter em conta a influência dominante e avassaladora que o marxismo, sem que se lhe opusesse uma só gota de contraveneno, veio exercendo na formação universitária das nossas elites intelectuais e políticas desde pelo menos a década de 80. Marxistas são, por definição, pessoas desorientadas e confusas, ansiosas para arrastar os outros na voragem da sua confusão.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030821jt.htm

Tudo por um queijo

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 21 de agosto de 2003

 

A estratégia do movimento comunista mundial é hoje tão complexa, tão sutil, tão abrangente, que suas próprias vítimas potenciais -- os capitalistas, incluindo nisto os donos

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da mídia -- se prestam docilmente a colaborar com ela, por total incapacidade de apreender a unidade de propósitos por trás de uma alucinante variedade de táticas.

Que um mesmo movimento explore, numa parte do mundo, os apetites sexuais da classe alta e, noutra, o atavismo reacionário de moralistas islâmicos enragés, eis algo que parece ao observador sonso uma hipótese demasiado rebuscada para não ser pura teoria da conspiração.

No entanto ela é a simples aplicação lógica dos preceitos estabelecidos há mais de quarenta anos por Herbert Marcuse, que para a mídia ocidental foram objeto de curiosidade passageira durante as agitações de 1968, mas que na elite comunista continuaram a ser estudados com muita seriedade.

Os comunistas, tal como fizeram os nazistas, anunciam antecipadamente e com bastante exatidão o que vão fazer, mas a coisa sempre parece demasiado inverossímil para merecer atenção, e a piada invariavelmente se transforma em tragédia quando sai do papel para a realidade. Uma revolução que em vez da unidade de interesses do proletariado se apoiasse numa massa heterogênea de estudantes, milionários gays, esposas mal amadas, mendigos, prostitutas e fanáticos religiosos parecia menos um perigo iminente do que um capítulo de "O Incrível Exército Brancaleone". No entanto o Exército Brancaleone hoje lança bombas sobre o edifício da ONU em Bagdá, em perfeita sintonia com seus agentes na mídia ocidental, que imediatamente proclamam ser tudo culpa... dos americanos, é claro.

A capacidade dos comunistas para ações contínuas e de longo prazo contrasta da maneira mais acachapante com o imediatismo superficial das análises empreendidas pelos supostos "especialistas" acadêmicos e jornalísticos em que a classe empresarial deposita toda a sua confiança.

Poucos meses antes das eleições de 2002, doze desses experts brasileiros e americanos entrevistados pelo Herald Tribune asseguravam, com certeza científica, que Lula nunca teria mais de trinta por cento dos votos. Na mesma época, escrevendo na imprensa carioca, eu dizia que era absolutamente impossível uma derrota do PT nas eleições. Evidentemente, o louco era eu.

E ninguém desconfia que entre os tais experts podia ser tão grande o número de simples idiotas pomposos quanto de agentes de desinformação capacitados, bem pagos por organizações comunistas para amortecer os temores do adversário. É sempre assim. Quando os comunistas anunciam o que vão fazer, aterrorizando suas vítimas potenciais, tudo o que estas querem é um desmentido que as alivie. Em troca de umas palavras tranqüilizantes, dão tudo. E pouco lhes importa de quem vão comprar o alívio. Como ratos de Pavlov, correm do choque para o queijo e, quando o encontram, ficam até felizes de saber que vem da mesma fonte. Vêem nisso um sinal reconfortante de que o dono do laboratório é seu amigo.

Mas aqueles mesmos que em 2002 induziram o empresariado a um falso sentimento de segurança ante a força eleitoral da esquerda são hoje ouvidos com profundo respeito quando persuadem a classe proprietária a colaborar com um governo que, enquanto isso,

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discretamente, vai tratando de abolir a propriedade privada por meio de impostos progressivos inspirados numa receita criada por Marx e Engels em 1848. Quando a reforma tributária for um fato consumado, será tarde para chorar. Mas, novamente, o errado sou eu.

Com idêntica circunspecção, o governo vai montando sua parceria com Hugo Chávez, tal como anunciado por loucos em que ninguém acreditou, entre os quais, evidentemente, o autor do presente artigo. E, ao planejar duas novas plataformas para a Petrobrás, no valor de dois bilhões de dólares, faz a licitação por meio de discretas cartas-convite, endereçadas a três empresas de sua predileção, furtando-se à concorrência pública. A única hipótese de que essa denúncia do deputado João Caldas (PL-AL) venha a encontrar repercussão é que algum radical de esquerda, rompendo por ingenuidade patriótica o silêncio da estratégia petista, ponha a boca no mundo. Como a nossa mídia já não admite alternativa ao governo de esquerda senão uma oposição de esquerda, a esperança de que a verdade prevaleça depende de que ela passe, apertada, entre as rachaduras do bloco esquerdista.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030823globo.htm

Eta povinho bem informado!

Olavo de CarvalhoO Globo, 23 de agosto de 2003

Se é certo aquilo que dizia Nelson Rodrigues, que toda unanimidade é burra, o anti-americanismo das nossas elites falantes é uma das expressões de burrice mais densas, incontestes e admiráveis que o mundo já conheceu. Mal assentada a poeira do atentado ao prédio da ONU, já pululavam em todos os canais de TV os experts de sempre, lançando a culpa de tudo sobre quem? George W. Bush, naturalmente. Não precisaram, para isso, a mínima investigação, não precisaram sequer aguardar uma descrição precisa dos fatos. Com a instantaneidade da ressonância mórfica, os diagnósticos incriminatórios apareceram prontos, definitivos, inapeláveis como demonstrações matemáticas. O script já tinha sido comprado na papelaria fazia meses, faltando apenas pagar o Darj e preencher nos espaços em branco o local do atentado e o número de vítimas. Muito menos foi preciso responder a objeções, que seriam uma intolerável falta de polidez num ambiente de tanta concórdia e interpaparicação carinhosa. No máximo, perguntas pré-calculadas para levantar a bola, armando o gol que, em seguida, os repórteres aplaudiam segundo o formulário litúrgico mais previsível.

No dia seguinte, a versão escrita da cerimônia apareceu, intacta e fiel, em todos os jornais.

Se isso é jornalismo, se isso é livre debate, se isso é circulação de idéias e informações, então os americanos devem ser mesmo muito, muito ignorantes. Pois se a verdade sobre a política deles é conhecida com tanta certeza no Brasil, país em que pouco se lê, cuja

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contribuição intelectual ao mundo é quase nula e que tem reconhecidamente os estudantes mais ineptos do universo, como é que eles não se dão conta de nada e continuam confiando em George W. Bush? É muita ingenuidade, é muita desinformação, é muita falta de leitura, não é mesmo?

Talvez não seja culpa deles. Talvez sejam uns pobres manipulados. Talvez a imprensa lá esteja sob controle estatal, talvez as empresas jornalísticas sejam poucas e inibidas por dívidas, talvez os repórteres sejam tímidos, talvez não exista sequer, naquele deserto de homens e idéias, um vibrante jornalismo investigativo como aquele que, neste nosso paraíso da livre informação, redescobre ou reinventa semanalmente os crimes da ditadura militar.

Não há um só brasileiro que não saiba, de fonte segura, que os americanos lutam apenas por dinheiro enquanto seus inimigos têm lindos ideais, que Saddam só ficou malvado por culpa do embargo econômico (a mesma causa dos fuzilamentos em Cuba, é claro), que as armas iraquianas de destruição em massa nunca existiram nem muito menos estão na Síria, que três mil iraquianos mortos em combate são uma cifra imensamente mais chocante do que trezentos mil prisioneiros políticos mortos nos cárceres de Bagdá antes da invasão.

Nós, brasileiros, sabemos de tudo. Às vezes, é claro, falhamos. Errare humanum est. Se procurarmos nos nossos jornais a expressão "Foro de São Paulo", não a encontraremos, embora ela seja o nome da organização internacional comunista que decide os rumos da política neste país. Se procurarmos uma transcrição do manifesto assinado em 2001 pelo nosso atual presidente em favor das Farc, não o encontraremos. Se vasculharmos as edições dos últimos dez anos em busca de uma menção, mesmo breve, à matança sistemática de cristãos nos países comunistas e muçulmanos, nada encontraremos. Se revirarmos jornais e revistas em busca de alguma informação sobre os milhares de proprietários rurais trucidados pelos governos do Zimbábue e da África do Sul, nada. Se buscarmos uma palavrinha sobre a produção em massa de transgênicos em Cuba, nada. Se quisermos uma dica sobre as conexões entre neonazismo e anti-americanismo internacional, nada. Lendo toneladas de jornais brasileiros, jamais ficaremos sabendo que a liberação das drogas aumentou a criminalidade na Holanda e na Suíça, que o massacre de crianças cuja culpa o filme de Michael Moore atribui à fabricação de armas foi motivado por ódio anticristão, que o desarmamento civil foi uma experiência desastrosa que Israel abandonou, que reformas agrárias socialistas produziram a atual miséria africana, que as tais ONGs que atentam contra a soberania nacional na Amazônia não são americanas mas todas elas ligadas ao establishment mundial anti-Washington. Sobretudo, jamais ficaremos sabendo se é verdade ou não que a campanha eleitoral do PT em 2002 foi subsidiada pelas Farc, pois os jornalistas investigativos brasileiros jamais seriam indiscretos ao ponto de querer tirar a limpo essa denúncia insolente do deputado Alberto Fraga.

Mas quem precisa saber desses detalhes desprezíveis? O essencial, o importante, não nos escapa. Sabemos que George W. Bush é Adolf Hitler, que a violência carioca é causada pelo capitalismo, que os gays são a minoria mais oprimida do planeta, que a população brasileira é maciçamente racista, que defender uma propriedade contra invasores é mais criminoso do que invadi-la, que Mel Gibson é anti-semita e que o sr. presidente da República tem dons miraculosos que lhe permitem conhecer tudo sem estudar nada.

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Sabemos que na Colômbia não existem terroristas, apenas combatentes pela liberdade em luta contra um governo tiranicamente eleito pelo povo. Sabemos que na Amazônia não há um só narcotraficante das Farc mas milhares de soldados americanos. Sabemos, principalmente, que quem quer que negue algumas dessas verdades é um bêbado, um alucinado ou um nazista. Tudo isso nos é ensinado pela nossa mídia. É certo que tudo, ou quase tudo, é repetido também nos manuais escolares do ensino público, no parlamento, em cursos universitários e numa infinidade de livros, atestando a pujança da nossa cultura. Mas quem ousará criticar, como suplérflua, a repetição de verdades tão fundamentais? E como poderia um país inteiro enganar-se nessas coisas, com o belo pluralismo de idéias que impera na nossa mídia, nas nossas universidades, por toda parte enfim do mundo verde-amarelo? Enganados, sim, estão os americanos. Lá ninguém discute nada, ninguém diverge, ninguém investiga. É um amém geral, da Nova Inglaterra à Califórnia. Ao menos, faço votos de que o leitor continue acreditando nisso, para que não sofra o choque de perceber o estado de apartheid intelectual que se interpôs entre o Brasil e o mundo.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030824zh.htm

Aforismos para a decifração do Brasil

Olavo de CarvalhoZero Hora, 24 de agosto de 2003

O brasileiro é o povo mais burro e pretensioso das Américas, governado pelos políticos mais fingidos e inconseqüentes do Hemisfério Ocidental, instruído pelos pseudo-intelectuais mais ignorantes e tagarelas do universo. É por isso que aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, o futuro a Deus pertence.

***

No Brasil, a admissão preliminar de total desconhecimento de um assunto não é nunca o prelúdio a interrogações polidas, mas a julgamentos taxativos fortalecidos pelo completo desprezo ao interlocutor estudioso e pelo orgulho de poder opinar sem base, como se a ignorância fosse uma prova de inspiração divina.

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Noventa por cento dos eleitores que votaram em Lula não o fizeram senão por ódio aos estudos. Um semi-analfabeto empacotado num terno Armani não pode simbolizar os pobres, mas os ricos ignorantes. À confusão entre cultura e diploma corresponde, mutatis mutandis, a identificação de ignorância com pobreza.

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Sinto um impulso cada vez mais irresistível de abandonar de vez os assuntos de atualidade nacional. É que o Brasil já não pode ser descrito sem atentado ao pudor.

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Um país em que a margem de lucro da iniciativa privada é de 2 a 3 por cento e os impostos são de quase 50 por cento só tem, obviamente, um único problema a resolver: diminuir os impostos e aumentar os lucros, isto é, livrar-se o mais rápido possível dos socialistas e mergulhar de cabeça no capitalismo. Mas isso não vai acontecer, porque os socialistas têm mais dinheiro e já tomaram providências para que não restem na arena política senão dois tipos de pessoas: eles próprios e os mais socialistas.

***

Um país em que 50 por cento das terras pertencem ao governo e não são usadas para absolutamente nada, enquanto milhões de sem-terra subsidiados pelo Estado invadem e queimam fazendas particulares produtivas, é evidentemente um país que escolheu sacrificar seus bens no altar da propriedade estatal inútil, e nada vai impedi-lo de continuar praticando essa religião bárbara até que a última vaca leiteira seja queimada pelo último sem-terra.

***

Quando digo que o Brasil é hoje um país sem horizonte, um país condenado a sair da História, sempre aparece alguém me descrevendo as maravilhosas perspectivas de desenvolvimento econômico que nos são abertas por tais ou quais fatores internacionais. O simples fato de que alguém identifique um horizonte de futuro com meras possibilidades de desenvolvimento econômico já é sinal de ignorância letal. Na segunda metade do século XIX, o país europeu com melhores perspectivas de desenvolvimento econômico era a Rússia. O que lhe faltava não era isso: era uma elite intelectual que tivesse mais apego aos seus deveres do que a ambições revolucionárias. A economia é o setor mais volátil e superficial da História. Em poucos anos um país pode sair do atraso para o progresso econômico, e vice-versa. Mas uma cultura, uma atmosfera de consciência clara e de diálogo inteligente, leva séculos para se criar -- e, uma vez perdida, é quase impossível recuperá-la. Se querem conhecer as perspectivas do Brasil, não olhem as estatísticas e o PNB, mas comparem os nossos políticos, a nossa classe intelectual dos anos 30 a 60 com os de hoje. Comparem Francisco Campos com Marcio Thomaz Bastos, Gustavo Capanema com Christovam Buarque, Graciliano Ramos e Manoel Bandeira com Marilene Felinto, Miguel Reale e Mário Ferreira dos Santos com Marilena Chauí, Carlos Lacerda e Oswaldo Aranha com Babá, Heloísa Helena e o dr. Enéas. Vejam o nosso presente e conhecerão o nosso futuro.

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/030825inconf.htm

Vítimas e vítimas

Olavo de CarvalhoInconfidência (Belo Horizonte), 25 de agosto de 2003

Um dos traços mais salientes e escandalosos da vida brasileira hoje em dia é a diferença de estatuto social entre dois grupos de "vítimas": as "vítimas da ditadura" e as "vítimas do terrorismo". Em ambos os casos, a expressão engloba não somente pessoas que sofreram danos diretos por parte de seus respectivos algozes, mas também seus familiares e descendentes, herdeiros das lágrimas, das dores e do prejuízo. Mas toda semelhança termina aí. No resto, o contraste é brutal. Enquanto os membros do primeiro grupo se deleitam e se lambuzam num festival de belas indenizações estatais e desagravos sem fim nos jornais e na TV, sem contentar-se com isso mas antes enfezando-se e choramingando cada vez mais à medida que seus egos feridos recebem novas e novas satisfações, os do segundo se afundam cada vez mais num silêncio contrito e amedrontado, como se em vez de vítimas fossem criminosos. Ninguém os indeniza, ninguém os consola, ninguém sequer se lembra deles. E há decerto uma boa razão para isso: eles são a prova viva de que os do outro grupo não são inocentes perseguidos, mas cúmplices de crimes hediondos, cujo troco receberam e jamais se conformaram em receber, acreditando-se até hoje merecedores de prêmio e não de castigo pelos seqüestros, homicídios e atentados que praticaram.

De fato, o regime de 1964 não cometeu violência física contra quem quer que fosse, limitando-se a demitir funcionários e a cassar mandatos de políticos acusados de corrupção ou de cumplicidade na agressão armada que, desde 1962, a ditadura cubana vinha fomentando e subsidiando no Brasil.

A violência começou do outro lado. Quando o governo começou a reagir em 1968, organizando a máquina repressiva que terminaria por estrangular a guerrilha rural e urbana, seus inimigos já tinham realizado 84 atentados a bomba e não poderiam esperar que tanta gentileza continuasse indefinidamente sem resposta à altura.

No cômputo final, houve mais ou menos 300 mortos entre os esquerdistas, 200 entre os agentes do governo, nenhum dos lados podendo, razoavelmente, alegar que só levou pancadas sem dar nenhuma. E restará sempre aos adeptos do regime militar a alegação verídica de que sua violência foi inteiramente reativa, e aliás moderadíssima quando se compara a vasta desproporção de forças com a pequena diferença do número de vítimas. Os homens do governo poderiam ter matado a esquerda inteira: limitaram-se a matar o suficiente para não morrer.

É absolutamente inaceitável o argumento que procura falsear esse equilíbrio alegando que havia uma diferença de valor moral entre os motivos de um lado e do outro, que uns defendiam uma ditadura e outros lutavam pela democracia. Pois estes últimos tinham sua central de comando e sua base de operações em Cuba, uma tirania sangrenta que, àquela

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altura, já havia matado 14 mil civis desarmados. Não há sinceridade nem moral em sujeitos que, a pretexto de lutar contra uma ditadura, se aliam a outra mil vezes mais repressiva e até genocida.

Na melhor e mais branda das hipóteses, isto é, descontando-se as razões subjetivas de parte a parte, mortos são mortos e mereceriam um tratamento igualmente respeitoso, vítimas são vítimas e mereceriam iguais desagravos, danos são danos e mereceriam iguais reparações.

O exílio, o ostracismo deprimente em que a mídia e o governo colocaram as vítimas do terrorismo é a prova da total falta de sinceridade, da monstruosa desonestidade das nossas elites falantes e dominantes. Neste mesmo momento, há centenas de famílias que, amedrontadas pelo assalto publicitário à imagem de seus mortos, choram em segredo, com medo de revelar uma história que, em circunstâncias normais, lhes seria motivo de orgulho.

Enquanto o governo não tirar essa gente do depósito de lixo em que a escondeu, enquanto a esquerda nacional não admitir seus crimes em vez de jogar sobre seus adversários o monopólio do mal, tudo neste país será fingimento, mentira, hipocrisia e pecado.

Os homens de farda, entre os quais o terrorismo colheu a maior parte de suas vítimas, são os primeiros que têm o dever de jamais se conformar com a segunda morte que o establishment brasileiro impôs a pessoas cujo único crime foi o cumprimento do dever.

E não há maneira mais nobre de comemorar a data de Caxias do que cada um perguntar a si mesmo, no fundo da sua consciência: o que o patrono do nosso Exército faria diante de uma situação dessas? Ajudaria a encobrir, com sorrisos lisonjeiros, um passado que não pode nunca acabar de passar? Ou levantaria sua voz, dia após dia, no mais justo dos protestos, até que o último descendente da última vítima recebesse tratamento digno?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030826fsp.htm

Dialética da inveja

Olavo de CarvalhoFolha de S. Paulo, 26 de agosto de 2003

A inveja é o mais dissimulado dos sentimentos humanos, não só por ser o mais desprezível mas porque se compõe, em essência, de um conflito insolúvel entre a aversão a si mesmo e o anseio de autovalorização, de tal modo que a alma, dividida, fala para fora com a voz do orgulho e para dentro com a do desprezo, não logrando jamais aquela unidade de intenção e de tom que evidencia a sinceridade.

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Que eu saiba, o único invejoso assumido da literatura universal é O Sobrinho de Rameau, de Diderot, personagem caricato demais para ser real. Mesmo O Homem do Subterrâneo de Dostoiévski só se exprime no papel porque acredita que não será lido. A gente confessa ódio, humilhação, medo, ciúme, tristeza, cobiça. Inveja, nunca. A inveja admitida se anularia no ato, transmutando-se em competição franca ou em desistência resignada. A inveja é o único sentimento que se alimenta de sua própria ocultação.

O homem torna-se invejoso quando desiste intimamente dos bens que cobiçava, por acreditar, em segredo, que não os merece. O que lhe dói não é a falta dos bens, mas do mérito. Daí sua compulsão de depreciar esses bens, de destruí-los ou de substituí-los por simulacros miseráveis, fingindo julgá-los mais valiosos que os originais. É precisamente nas dissimulações que a inveja se revela da maneira mais clara.

As formas de dissimulação são muitas, mas a inveja essencial, primordial, tem por objeto os bens espirituais, porque são mais abstratos e impalpáveis, mais aptos a despertar no invejoso aquele sentimento de exclusão irremediável que faz dele, em vida, um condenado do inferno. Riqueza material e poder mundano nunca são tão distantes, tão incompreensíveis, quanto a amizade de Abel com Deus, que leva Caim ao desespero, ou o misterioso dom do gênio criador, que humilha as inteligências medíocres mesmo quando bem sucedidas social e economicamente. Por trás da inveja vulgar há sempre inveja espiritual.

Mas a inveja espiritual muda de motivo conforme os tempos. A época moderna, explica Lionel Trilling em Beyond Culture (1964), "é a primeira em que muitos homens aspiram a altas realizações nas artes e, na sua frustração, formam uma classe despossuída, um proletariado do espírito."

Para novos motivos, novas dissimulações. O "proletariado do espírito" é, como já observava Otto Maria Carpeaux (A Cinza do Purgatório, 1943), a classe revolucionária por excelência. Desde a Revolução Francesa, os movimentos ideológicos de massa sempre recrutaram o grosso de seus líderes da multidão dos semi-intelectuais ressentidos. Afastados do trabalho manual pela instrução que receberam, separados da realização nas letras e nas artes pela sua mediocridade endêmica, que lhes restava? A revolta. Mas uma revolta em nome da inépcia se autodesmoralizaria no ato. O único que a confessou, com candura suicida, foi justamente o "sobrinho de Rameau". Como que advertidos por essa cruel caricatura, os demais notaram que era preciso a camuflagem de um pretexto nobre. Para isso serviram os pobres e oprimidos. A facilidade com que todo revolucionário derrama lágrimas de piedade por eles enquanto luta contra o establishment, passando a oprimi-los tão logo sobe ao poder, só se explica pelo fato de que não era o sofrimento material deles que o comovia, mas apenas o seu próprio sofrimento psíquico. O direito dos pobres é a poção alucinógena com que o intelectual ativista se inebria de ilusões quanto aos motivos da sua conduta. E é o próprio drama interior da inveja espiritual que dá ao seu discurso aquela hipnótica intensidade emocional que W. B. Yeats notava nos apóstolos do pior (v. "The Second Coming" e "The Leaders of the Crowd" em Michael Robartes and The Dancer, 1921). Nenhum sentimento autêntico se expressa com furor comparável ao da encenação histérica.

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Por ironia, o que deu origem ao grand guignol das revoluções modernas não foi a exclusão, mas a inclusão: foi quando as portas das atividades culturais superiores se abriram para as massas de classe média e pobre que, fatalmente, o número de frustrados das letras se multiplicou por milhões.

A "rebelião das massas" a que se referia José Ortega y Gasset (La Rebelión de las Masas, 1928) consistia precisamente nisso: não na ascensão dos pobres à cultura superior, mas na concomitante impossibilidade de democratizar o gênio. A inveja resultante gerava ódio aos próprios bens recém-conquistados, que pareciam tanto mais inacessíveis às almas quanto mais democratizados no mundo: daí o clamor geral contra a "cultura de elite", justamente no momento em que ela já não era privilégio da elite.

Ortega, de maneira tão injusta quanto compreensível, foi por isso acusado de elitista. Mas Eric Hoffer, operário elevado por mérito próprio ao nível de grande intelectual, também escreveu páginas penetrantes sobre a psicologia dos ativistas, "pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose... Vivendo vidas estéreis e inúteis, não possuem autoconfiança e auto-respeito, e anseiam pela ilusão de peso e importância." (The Ordeal of Change, 1952).

Por isso, leitores, não estranhem quando virem, na liderança dos "movimentos sociais", cidadãos de classe média e alta diplomados pelas universidades mais caras, como é o caso aliás do próprio sr. João Pedro Stedile, economista da PUC-RS. Se esses movimentos fossem autenticamente de pobres, eles se contentariam com o atendimento de suas reivindicações nominais: um pedaço de terra, uma casa, ferramentas de trabalho. Mas o vazio no coração do intelectual ativista, o buraco negro da inveja espiritual, é tão profundo quanto o abismo do inferno. Nem o mundo inteiro pode preenchê-lo. Por isso a demanda razoável dos bens mais simples da vida, esperança inicial da massa dos liderados, acaba sempre se ampliando, por iniciativa dos líderes, na exigência louca de uma transformação total da realidade, de uma mutação revolucionária do mundo. E, no caos da revolução, as esperanças dos pobres acabam sempre sacrificadas à glória dos intelectuais ativistas.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030830globo.htm

Honra temível

Olavo de CarvalhoO Globo, 30 de agosto de 2003

A entrevista do comandante das Farc à Folha de S. Paulo do dia 27 comprova: cabe a mim a temível honra de ter sido, por ocasião das eleições de 2002, o único jornalista brasileiro que disse a verdade sobre as relações íntimas entre o PT e a guerrilha colombiana. Todo o restante da mídia preferiu ocultá-las para não trazer dano à candidatura de seu querido Lula,

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o qual decerto não teria a votação que teve se esses fatos chegassem maciçamente ao conhecimento do eleitorado.

Reyes admitiu que foi sucessor de Lula na presidência do Foro de São Paulo -- coordenação do movimento comunista no continente -- e que no Brasil as Farc têm contatos regulares "com distintas forças políticas e governos, partidos e movimentos sociais", destacando os nomes de -- adivinhem quem? -- Emir Sader e Frei Betto. Mas nada do que ele disse é propriamente novidade. Em novembro de 2002, tudo isso, e mais a assinatura de Lula num manifesto que em defesa das Farc acusava o governo colombiano de "terrorismo de Estado", já constava de documentos publicados no site do próprio Foro, os quais, não podendo ser negados, foram cobertos de silêncio. Sua divulgação teria, com efeito, pegado muito mal, sobretudo porque ainda estava viva na memória do eleitorado a confissão do traficante Fernandinho Beira-Mar ao exército colombiano, de que havia trocado armamentos trazidos do Oriente Médio por 200 toneladas de cocaína das Farc para revenda no mercado nacional.

Mais tarde, a recusa geral de dar divulgação às denúncias do deputado Alberto Fraga, sobre possíveis contribuições em dinheiro das Farc para a campanha de Lula, não foi senão a extensão lógica da omissão consensual que já durava meses.

A simples existência do Foro de São Paulo continua, até hoje, praticamente desconhecida do público, malgrado o reconhecimento explícito, da parte de Lula, de que deveu sua eleição aos esforços "não somente de brasileiros mas de outros latino-americanos", como ele disse logo no seu discurso de posse. Que país é este, que, informado oficialmente de que estrangeiros influenciaram o curso de uma eleição no seu território, não tem nem a curiosidade de perguntar quem são eles? Nem no tempo da censura militar foi possível ocultar por tanto tempo informações tão relevantes. Por ter furado esse bloqueio, tornei-me objeto de ódio de muitos colegas de profissão, recebi uma enxurrada de insultos e ameaças de morte, e ainda houve quem achasse muito antidemocrático que eu protestasse contra essas efusões de gentileza. Mais ainda: pelo meu esforço quixotesco de contrabalançar neste modesto espaço a omissão da mídia inteira, fui até acusado de ser "repetitivo" em vez de variar digestivamente os assuntos da coluna...

Tudo isso é extravagante, é louco, é assustador, mas no fundo não me espanta, pois está tudo coerente com o espírito insano da época e do lugar, tal como retratado, com realismo implacável, no livro recém-publicado do comentarista econômico Luís Nassif, "O Jornalismo dos Anos 90" (São Paulo, Editor Futura, 2003). O autor atém-se mais aos fatos da sua área especializada, com uma ou outra excursão a outros domínios, mas os episódios que ele coleta e expõe com grande coragem e honestidade são suficientes para justificar uma conclusão geral: a mídia brasileira é, com assombrosa freqüência, menos voltada para a informação correta do que para a destruição, a todo preço, das pessoas e instituições que caiam no desagrado da classe jornalística. Sua ânsia de revirar esgotos para sujar por igual as reputações de culpados e inocentes contrasta brutalmente com sua olímpica falta de curiosidade no caso Farc-PT.

***

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Com poucas horas de intervalo, nosso governo condenou os terroristas de Bagdá e premiou com sólida indenização mais um terrorista nacional dos anos 70, depois de tantos já beneficiados pela generosidade estatal. Deve-se concluir dessa atitude que, segundo nossas autoridades, o terrorismo só é mau quando praticado longe do nosso país? Para os que jogam bombas no Iraque, vergonha e ignomínia. Para os que as jogam no Aeroporto de Guararapes ou no QG do II Exército, honra e glória. Melhor: honra, glória e dinheiro.

Mas, se o tratamento dado aos criminosos é tão paradoxal, ainda mais surpreendente é aquele reservado às vítimas. Se você ficou trinta dias em cana por incitar greve ilegal, sem que na cadeia nenhum sargento, praça ou oficial tocasse num único fio de seu cabelo ou de sua barba, você tem direito a indenização substantiva e a uma bela aposentadoria como a do sr. presidente da República. Mas, se você teve seu corpo dilacerado em tantos pedaços pela explosão de uma bomba que nunca mais você foi visto inteiro ou mesmo em partes no mundo dos vivos, como aconteceu com o sargento Mário Kozel Filho, você tem o direito de ser desprezado pela mídia como inexistente, enquanto seus familiares esperam, envelhecem e sofrem em humilhante silêncio durante três décadas e meia, vendo seus assassinos serem homenageados e premiados, e obtendo no fim uma pensão mensal de R$ 300,00, o equivalente, pelos meus cálculos, a outras tantas cuspidas mensais na cara.

Sei que, graças a essa simples e irrecusável comparação, serei chamado de fanático, de nazista, de genocida, de assassino de índios, negros, mulheres, gays e inumeráveis criancinhas daquelas que aparecem nas fotos do Sebastião Salgado.

Mas -- querem saber? -- pouco me importa. Se pararem de me xingar é que vou começar a me perguntar onde foi que errei.

***

A Unicamp vai realizar, em novembro, mais um "Colóquio Marx-Engels" do seu "Centro de Estudos Marxistas", o qual, como se vê pelo nome e pela lista de membros, não é uma instituição acadêmica supra-ideológica mas um think tank revolucionário (mais um!). Caberia a Unicamp inteira nessa classificação? Não sei. Só há um meio de testar. Vou encaminhar oficialmente à sua reitoria a proposta de um "Colóquio Antimarxista", com a participação dos mais eminentes intelectuais anticomunistas do mundo (David Horowitz, Ronald Radosh, Harvey Klehr e tutti quanti), e veremos como a entidade reage. Pode examinar o caso com isenção e seriedade ou pode tomá-lo, a priori, como insulto e provocação intolerável. Que é que vocês acham? Juro que vou fazer o teste.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030904jt.htm

Dois brasileiros falando

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Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 4 de setembro de 2003

 

Leiam e comparem, por favor, estes dois parágrafos:

1) "O adolescente A. D., 14, que fugiu de casa para se juntar às Farc, ficou decepcionado ao conhecer as ações do grupo: "Mãe, que decepção. Pensei que fossem revolucionários, mas são de direita.’" (Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2003.)

2) "O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem: ‘Todo mundo sabe que nunca aceitei o rótulo de esquerda.’" (O Estado de S. Paulo, 27 de agosto de 2003.)

O que esses dois brasileiros verbalizam não são idiossincrasias pessoais, não é aberração psicopática, não é desvio de linguagem. É, isto sim, cultura. Cultura, ao menos, no sentido em que a define a Constituição federal: "Expressão do modo de ser do nosso povo." Nenhum ser humano, por natureza ou inclinação pessoal, sem a ajuda de todo um ambiente cultural, de todo um sistema de educação, de toda uma mutação geral da linguagem pública, pode chegar a confundir-se tão profundamente quanto ao sentido do que ele próprio diz, quanto o chegaram esse menino fujão e esse presidente evasivo.

O mais lindo, no caso, é que ambas as falas se tornaram alvo de profusos comentários, subscritos pelos mais abalizados formadores de opinião, sem que nenhum deles se desse conta da anomalia semântica envolvida, aliás idêntica nos dois casos.

Toda palavra tem denotação e conotação, ou sentido direto e sentido translato. Ela indica ou sinaliza alguma coisa, e ao mesmo tempo pode associar a essa coisa uma reação do falante, um valor, uma nuance subjetiva qualquer. "Cachorro", por exemplo, denota um certo bicho, mas, conotativamente, pode designar o carinho que se tem por um animal de estimação ou o desprezo a um ser humano que age caninamente. As conotações mudam, a denotação permanece.

A palavra "esquerda" significa um conjunto de movimentos e partidos políticos, cujo conteúdo ideológico pode ser um tanto difícil de definir, mas que permanecem, materialmente, distintos de seus contrários. Ao mesmo tempo, significa as reações de agrado ou desagrado que o falante expressa ante essas entidades. Se gosta delas, "esquerda" é uma virtude. Caso contrário, um vício.

Os valores associados à palavra "esquerda", porém, adquiriram, em relação a suas encarnações materiais, uma espécie de autonomia metafísica. Ela pode significar o bem, a virtude, a paz e a justiça, ou inversamente o crime, a anarquia, a revolução, de maneira totalmente independente de sua personificação histórico-política. A. D. vê nessa palavra o símbolo de tudo o que é bom e generoso. Logo, suprime de seu significado a mais típica -- e a mais tipicamente criminosa -- organização esquerdista da América Latina. Lula quer cair fora da imagem de revolucionário e anarquista. Logo, recusa-se a ver algum

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esquerdismo na sua carreira de presidente de um partido esquerdista e dirigente máximo do órgão coordenador da esquerda latino-americana. As conotações suprimiram as denotações. A expressão dos sentimentos subjetivos prescinde de qualquer alusão aos objetos correspondentes.

Se, discutindo seu conteúdo, ninguém percebeu nada de estranho nas frases mesmas, é que falar assim já se tornou normal e quase obrigatório no Brasil. Pouco importa o "de quê" você está falando. O que importa é o que você "sente". Não existem mais coisas, fatos, situações. Existe somente o amar ou odiar, o desejar ou repelir, o agradável ou o desagradável. Ao ouvir o que dizem A. D. e o presidente, a galera reage exatamente como eles, gostando ou desgostando, sem nem de longe perguntar "de que". Porque falar "de" alguma coisa já se tornou dispensável: tudo o que importa é expressar sentimentos, ainda que seja por alguma entidade etérea, indefinível, autocontraditória e perfeitamente inexistente.

A língua portuguesa do Brasil, primeiro, suprimiu duas pessoas verbais, a segunda do singular e a do plural, obrigando-se a rodeios incrivelmente postiços para separar interlocutor e assunto. Depois, aboliu a distinção entre termo próprio e impróprio, tornando-se incapaz de distinguir entre conceitos e figuras de linguagem. Por fim, eliminou as denotações, fazendo com que a expressão dos sentimentos valha por si, sem precisar de objeto.

Houve tempo em que a queda dos brasileiros na inconsciência era motivo de riso. Depois, tornou-se alarmante. Hoje é uma tragédia irreversível, consolidada na regra lingüística.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030906globo.htm

Celebrando Theodor Adorno

Olavo de CarvalhoO Globo, 6 de setembro de 2003

 

Para apagar a má impressão residual dos atentados de 11 de setembro, nada melhor do que desviar as atenções para outros acontecimentos associados à mesma data.

Nosso governo vai celebrar nesse dia a memória de Salvador Allende, morto em 11 de setembro de 1973. Pranteado como vítima de "golpe militar", Allende foi tirado do poder constitucionalmente, por decisão da Câmara dos Deputados e da Suprema Corte, que, ante sua resistência armada, convocaram o Exército para expulsá-lo. Padeceu o que padeceria Fernando Collor se, após a votação do impeachment, transformasse o Palácio do Planalto

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num bunker em vez de voltar para casa (v. "A Tale of Two Chileans", de Robin Harris, www.lakota.clara.net/harris.pdf).

Outro 11 de setembro, já festejado antecipadamente, é o centenário de Theodor Adorno, segundo a mídia nacional um dos maiores filósofos do século XX. Na verdade, não existe nenhuma filosofia de Theodor Adorno, apenas aplicações engenhosas que ele fez das idéias de seu amigo Max Horkheimer à estética e à crítica cultural. Horkheimer e Adorno são inseparáveis como o yang e o yin -- sendo Adorno o yin, o lado mais externo e aparente.

A inspiração comum dos frankfurtianos é bem óbvia, ainda que invisível até hoje para suas tietes. Seu marxismo inicial era bem diluído. Estavam vagamente interessados em judaísmo, e suas primeiras críticas ao mundo moderno lembravam as dos tradicionalistas românticos. Mas, meninos ricos, revoltadíssimos contra as famílias que os paparicavam, o retorno à religião de seus pais era mais do que seu orgulho podia suportar. Por isto seu destino não foi o do seu contemporâneo Franz Rosenszweig, materialista reconvertido: seus estudos judaicos se desviaram, em vez disso, para o lado mais fácil -- a heresia gnóstica. Aí encontraram a fórmula para poder continuar marxistas sem abdicar de uma certa aura de mistério religioso. Os princípios da "teoria crítica" de Horkheimer e Adorno são pura gnose traduzida em freudomarxês. O gnosticismo jura que a criação foi um erro maligno cometido por uma divindade menor, o Demiurgo, contra a vontade do deus superior, entidade excelsa que jamais cairia em semelhante esparrela. O universo sendo inteiramente mau, o dever do espírito é lutar pela destruição de tudo o que existe. A "teoria crítica" segue essa receita à risca, enxergando horror por toda parte e afirmando mesmo que uma sociedade mais justa não pode existir ou sequer ser imaginada, mas acreditando ver nisso um motivo a mais para odiar as injustiças do presente. Abominar o mal sem crer no bem parece coisa de herói trágico, e aí reside o "glamour" peculiar dos frankfurtianos. Mas, no fundo, é de um comodismo atroz. Moralmente, permitiu a Max Horkheimer proclamar, com Maquiavel, que todo poder e riqueza vêm da opressão e da mentira, e ao mesmo tempo encarnar pessoalmente essa teoria, gabando-se de dominar seus colaboradores "como um ditador" (sic) e enriquecendo à custa da vil exploração do trabalho deles. Intelectualmente, a brincadeira era ainda mais cínica. Não havendo critério de justiça, a denúncia das injustiças estava autorizada, sem pecado, a ser ela própria injusta, arbitrária e louca. Assim, embora reconhecendo que o comunismo soviético era "o mal absoluto", Adorno e Horkheimer preferiram deixá-lo em paz, concentrando suas baterias no ataque à sociedade americana e fornecendo ao movimento comunista o simulacro de autoridade moral que o ajudou a sobreviver à queda da URSS. Seu colaborador Herbert Marcuse achava o livre debate uma coisa barbaramente repressiva, preferindo, como mais democrático, o cerceamento direto de todo discurso anti-esquerdista. Através de Marcuse, a Escola de Frankfurt inspirou a censura "politicamente correta", que hoje, em muitas universidades americanas, condena a estágios de "reeducação sensitiva" obrigatória, como nos centros soviéticos de "reforma da mentalidade", quem quer que se oponha à ortodoxia marxista dominante (v. www.zetetics.com/mac/articles/reeducation.html, www.newsmax.com/commentarchive.shtml?a=2000/10/29/152520 e www.shadowuniv.com/reviews/9901hlr-has-kors.html). Parece estranho apostar na Novilíngua de "1984" como instrumento de "libertação", mas como poderia ser de outro modo se o ponto de partida é a universalidade do mal e, portanto, a absoluta falta de vontade -- ou capacidade -- de discerni-lo do bem? Quando Marcuse nos intoxica de

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expressões tão manifestamente embromatórias quanto "tolerância repressiva" e "intolerância libertadora", ele apenas enfeita com o rótulo de "dialética" a técnica pavloviana da estimulação paradoxal que dissemina a confusão maliciosa de liberdade e opressão. A teoria crítica inteira, com efeito, é uma coleção de engenhosos artifícios de auto-estupidificação moral, que culminam na louvação devota do Marquês de Sade como exemplo de conduta superior e na apologia da "perversidade polimórfica" (sic) -- incluindo, evidentemente, sadismo, masoquismo e pedofilia -- como única forma de sexualidade saudável. Não espanta que, fugidos do nazismo, Horkheimer e Adorno não conseguissem enxergar diferença substantiva entre morrer numa câmara de gás em Auschwitz e pontificar livremente numa bem remunerada cátedra em Columbia, sob os aplausos da sociedade chique. Tal é a origem do equivalentismo moral que, hoje, finge igualar a democracia americana aos mais sangrentos totalitarismos, dos quais o próprio equivalentista, já que ninguém é de ferro, busca refúgio em Nova York ou Miami. Raros filósofos foram, como os frankfurtianos, tão escrupulosos em apontar os pecados alheios quanto insensíveis aos seus próprios. Mas a "teoria crítica" consiste precisamente nisso, segundo confessava Horkheimer: rosnar soturnamente contra o universo mau, mas tratando de levar, enquanto isso, "um alto padrão de vida" (sic). Nesse sentido, não se pode julgar que Theodor Adorno tenha agido mal quando, ao ver as doutrinas da Escola de Frankfurt levadas à prática por estudantes rebeldes, chamou a polícia tão logo eles invadiram sua sala.

***

Gostei da cartinha da Unicamp. Pena que fugisse à questão central: a reitoria, afinal, topa ou não topa promover, ao lado ou depois do "Colóquio Marx-Engels", um "Colóquio Antimarxista"? Se não topa, a recusa já é resposta suficiente, sendo desnecessárias as explicações enviadas ao Globo.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030907zh.htm

Ciência política?

Olavo de CarvalhoZero Hora, 7 de setembro de 2003

 

No site das Faculdades Porto-Alegrenses, http://www.fapa.com.br, encontro estas linhas de um tal Reginaldo Carmelo de Moraes, professor de ciência política da Unicamp, publicadas na indefectível Caros Amigos e recomendadas como leitura para os alunos do curso de licenciatura em História daquela instituição gaúcha:

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"Os neoconservadores adeptos do filósofo Leo Strauss retomaram a seu modo a teoria nazi de Carl Schmitt, de modo a adaptá-la ao fundamentalismo cristão de Bush e seus íntimos. Schmitt, principal jurista do Terceiro Reich, tomara como tarefa liquidar a Constituição da República de Weimar. Dizia que ela, fundada sobre o liberalismo político e os direitos individuais, era corrompida e impotente para conter os movimentos políticos carismáticos e ‘mitos irracionais’ com que os bolcheviques e similares conquistavam as massas. Por isso, defendia um regime de exceção, uma ditadura, que governasse por decreto e salvasse a ordem... Strauss e seus discípulos nos EUA não esqueceriam essas lições do mestre. Eles também teriam seu incêndio do Reichstag e sua invasão da Polônia. Logo depois do 11 de setembro, o Departamento de Justiça baixou normas legais que davam ao governo federal poderes de um Estado policial."

Se algo aí se demonstra é que esse menino nunca leu nada de Carl Schmitt, muito menos de Leo Strauss. Longe de tentar defender o Estado contra o assalto dos "mitos irracionais", Schmitt via a própria ordem política como essencialmente irracional, constituída da rivalidade entre alternativas que, não admitindo arbitragem lógica, requeriam a divisão sumária do campo entre "amigos" e "inimigos" e a luta pela vitória a todo preço.

Essa doutrina ajustava-se como uma luva não somente à ideologia nazista, mas também à comunista, o que fez de Carl Schmitt, como escreveu Corrado Occone, "il reazzionario che piace a la sinistra" (o reacionário que agrada à esquerda). Não há, efetivamente, diferença essencial entre ela e a regra leninista do debate político, que visa "não a persuadir o adversário, nem a apontar seus erros, mas a destruí-lo".

Houve realmente, às vésperas da II Guerra Mundial, uma corrente política empenhada na busca dos objetivos que Carmelo diz terem sido os de Schmitt. A constituição austríaca de 1934, impondo um regime de exceção para conter o avanço dos "mitos irracionais", não se inspirou em Schmitt, mas, ao contrário, no temor causado pela vitória nazista na vizinha Alemanha. Carmelo troca as bolas e atribui ao nazismo as intenções de suas vítimas austríacas.

Ainda mais resplandecente de ignorância é a conclusão do parágrafo, segundo a qual o atentado ao World Trade Center teria dado a "Strauss e seus discípulos" a oportunidade de colocar em prática a doutrina Schmitt: em 11 de setembro de 2001, Leo Strauss não podia "recordar as lições" de quem quer que fosse, pois estava morto desde 1973.

O espírito de Carl Schmitt baixou é sobre o próprio Carmelo, que, no seu ataque aos neoconservadores, não busca apontar algum erro na sua filosofia, da qual ele nada sabe, mas apenas sujar-lhes a reputação por meio de uma associação postiça com o teórico nazista, do qual, para cúmulo de ironia, o citado Leo Strauss, judeu fugido do III Reich, foi um dos críticos mais severos.

Até quando a simples adesão a uma vulgar e baixa retórica esquerdista será, neste país, condição necessária e suficiente para o exercício do cargo de professor universitário, independentemente e acima das mais elementares exigências intelectuais?

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Obra e vida em filosofia

Olavo de CarvalhoO Globo, 13 de setembro de 2003

 

O que escrevi aqui sobre a Escola de Frankfurt não foram observações de improviso, mas uma seleção extraída de notas que há tempos venho juntando sobre o problema das relações entre "obra" e "vida" em filosofia. Uso aspas para indicar que ambos os conceitos são mais nebulosos do que a banalidade dos termos indica à primeira vista.

Quando se fala da "obra" de um poeta, de um romancista, o que se entende por isso não é tudo o que ele escreveu, mas só a parte formalmente literária, publicada ou publicável. O que sobra -- rascunhos, cartas, declarações orais - é material biográfico que não afeta o julgamento da "obra", embora possa contribuir indiretamente para a sua compreensão. Mesmo da parte publicada, às vezes só uma pequena fração interessa, esteticamente. Isso é assim porque a arte é inerentemente busca da forma -- forma identificável, material, estável. Os "sentidos" que aí as gerações de leitores acreditarão encontrar podem variar, mas, por isso mesmo, subentendem a permanência da forma (nada o comprova melhor do que a obsessão de documentar -- fixar -- aquelas manifestações artísticas, pretensamente revolucionárias, que se alardeiam fluidas e transitórias por princípio).

A filosofia, ao contrário, -- toda filosofia -- constitui-se essencialmente do seu "sentido", que o filósofo busca transmitir por todos os meios ao seu alcance, inclusive literários, não estando o valor desse sentido condicionado ao maior ou menor sucesso da sua exteriorização verbal. Tudo o que nos sobrou de Aristóteles são rascunhos, fragmentos, notas de aula. Seus "livros" não são livros: são arranjos póstumos. A parte publicada, que Cícero louvava como "um rio de ouro" da eloqüência, perdeu-se irremediavalmente. Se isso acontecesse a um poeta, a um ficcionista, teríamos aí, na melhor das hipóteses, um caso de grande escritor falhado: a intenção subjetiva que não se traduz em forma, ou que a perde, é a definição mesma do fracasso artístico. Que seria Shakespeare sem suas peças, seus sonetos, reduzido a sonhos e esboços de intenções? Mas a filosofia de Aristóteles subsiste integralmente nos escombros da sua expressão escrita. E o ensinamento oral de Platão, reconstituído desde mil e um indícios, é hoje considerado mais importante do que toda a sua obra publicada, da qual constitui a chave-de-abóbada.

Compreendem a diferença?

É que a filosofia, busca do sentido, é permanente reinterpretação e retificação de si mesma, raramente admitindo fechar-se em expressão acabada e irretocável. Daí que um rascunho,

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um trecho de carta, uma frase solta possam às vezes iluminar de tal modo o conjunto, que acabem assumindo um posto elevadíssimo na hierarquia dos pensamentos do filósofo.

As melhores idéias de um filósofo não coincidem necessariamente com seus escritos mais limpos e acabados. Isso quando a quase totalidade da obra, como no caso de Leibniz ou de Husserl, não se constitui mais de anotações que de obras prontas para publicação. Não por acaso, o pai dos filósofos, Sócrates, não deixou obra escrita. É o pensador oral por excelência.

Por isso as relações entre "obra" e "vida" não podem ser as mesmas em literatura e filosofia. A idolatria do "texto", em que a USP viciou gerações inteiras de estudantes, só serviu para apagar a distinção entre filosofia e filologia. Não que a análise do texto seja desimportante. Mas ela não basta: às vezes, o melhor de uma filosofia está no que o filósofo apenas pensou, sem chegar a escrever -- observação que, aplicada à literatura, seria puro nonsense.

É claro que nem tudo, na vida de um filósofo, é igualmente significativo para a compreensão de sua filosofia. Há nela, como em qualquer vida, uma extensa faixa que se constitui somente do caos da experiência bruta, fragmentária, semiconsciente e até impessoal, da qual o filósofo se esforça por apreender o nexo interno que, uma vez conscientizado, se integrará no seu pensamento filosófico, quer chegue a ser escrito, quer fique na intenção. É esta passagem da experiência à consciência explícita que assinala a diferença entre a pura matéria existencial de uma filosofia e a sua forma intelectual personalizada, não sendo o filósofo responsável pela primeira, mas certamente pela segunda.

Por outro lado, há atos, escolhas e decisões maduramente pensados que devem, sem hesitação, ser compreendidos como interpretações, aplicações ou extensões que o filósofo deu aos seus próprios princípios orientadores.

É neste e não naquele aspecto da relação obra-vida que devem ser buscados, quando existem, os sinais da "paralaxe cognitiva" a que me referi em artigos anteriores. Seria pueril cobrar de um filósofo aquela "coerência entre palavras e atos", literal, material e estereotipada, que os moralistas cobram dos homens públicos. O que se pode e se deve exigir é que aquela parte da vida que de maneira clara e consciente se integra no universo pensado de um pensador não seja, pelo seu conteúdo significativo, um desmentido formal dos princípios da sua filosofia. E mesmo neste caso ainda será preciso distinguir entre um lapso momentâneo, uma incongruência estrutural, um auto-engano ou uma astúcia premeditada. O caso de Maquiavel é claro: a publicação de uma receita de conspiração afirma implicitamente que essa conspiração não será realizada, pelo menos como está no livro. Mas Maquiavel era esperto demais para não perceber isso. "O Príncipe", portanto, não é uma descrição científica da sociedade política: é um "mito". Os intérpretes, hoje, são quase unânimes quanto a esse ponto.

Já a opção de Horkheimer e Adorno por um "alto padrão de vida" no meio da miséria geral cuja culpa eles lançavam, precisamente, nas classes de alto padrão de vida, não pode ser considerada nem uma incoerência moral, nem um sinal de cegueira involuntária, mas sim a

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expressão consciente de um cinismo gnóstico que odiava o mal sem amar o bem. Como todo gnosticismo, a filosofia dos frankfurtianos é ódio, não ao mal, mas ao Ser.

Mutatis mutandis, o soberbo desprezo de Karl Marx ao filho bastardo que teve com a empregada também não é uma "incoerência". É a prova de algo que o próprio Marx reconhecia, mas que hoje seus admiradores se recusam a enxergar: que sua adesão à causa dos pobres não tinha o mínimo sentido ético -- era apenas a conseqüência lógica, fria e amoral, de uma certa interpretação da História.

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Teoria da conspiração

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 18 de setembro de 2003

 

Não creio ter merecido a gozação que o caro embaixador Meira Penna fez comigo no JT do dia 15, ao dizer que atribuo o esquerdismo febril da nossa mídia a “uma conspiração com centro diretor em Moscou”.

Doravante, meus detratores poderão alegar que até um de meus melhores amigos, intelectual digno de todo o respeito, me cataloga entre os teóricos da conspiração. Mas é claro que o embaixador não quis nada disso: apenas abreviou em excesso uma referência que, por extenso, ocuparia todo o seu artigo. Compactada até o absurdo, virou caricatura, facilitando involuntariamente a negação maliciosa dos fatos que o próprio Meira Penna denunciava.

O expediente usual de quem nada tem a responder a uma denúncia irrefutável é deformá-la por meio de um rótulo pejorativo -- e “teoria da conspiração” é pejorativo o bastante para colocar o acusado sob suspeita de delírio paranóico. O próprio embaixador, malgrado suas precauções, não escapará dessa rotulação.

É verdade que a maioria dos usuários do termo só soube dele pelo filme com Mel Gibson e Julia Roberts, mas isso só dá ainda maior eficácia ao seu emprego difamatório, pois a platéia também está por fora do assunto e nada tem mais força persuasiva do que a cumplicidade espontânea de duas ignorâncias. Se você quer ser acreditado sem a mínima contestação, fale sobre coisas das quais nada sabe a alguém que delas tudo ignore. É infalível. Na ausência total de referência objetiva, a unanimidade sonsa é uma tábua para os náufragos.

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É óbvio que nunca expliquei o esquerdismo da mídia por qualquer conspiração, e sim pela hegemonia de um movimento de massas que, pelo seu próprio tamanho, é o inverso de uma conspiração. A dominação esquerdista é gritante, escancarada e cínica, ao ponto de nem sequer precisar responder aos seus críticos. Conspiração é, ao contrário, uma trama secreta com objetivos pontuais, urdida entre o menor número possível de participantes para evitar vazamentos, e posta em execução pelos meios mais discretos à disposição dos interessados. Uma “teoria da conspiração” é o oposto exato da explicação fundada numa estratégia ampla e de longo prazo como a da “revolução cultural” gramsciana.

Mas não importa: no Brasil os termos correntes do vocabulário político nunca são usados para designar os objetos que lhes correspondem, mas para expressar os sentimentos toscos e confusos de adesão ou repulsa que se agitam na alma do falante. Por isso mesmo, as genuínas teorias da conspiração nunca são impugnadas como tais. São aceitas, ao contrário, como verdades de senso comum, com a condição única de que o suspeito da trama seja norte-americano. A população brasileira está maciçamente persuadida de que a CIA matou Kennedy, de que o Pentágono montou o golpe militar de 1964 no Brasil e o de 1973 no Chile, de que um grupo de astutos capitalistas do petróleo planejou a invasão do Iraque. Se, porém, desafiando as coerências estereotipadas, você informa que Jimmy Carter usou o FMI para estrangular o governo Somoza e entregar o poder aos sandinistas, que Bill Clinton cedeu à China segredos nucleares vitais depois de eleito com verbas de propaganda chinesas, que Al Gore é acionista de uma empresa que fez lavagem de dinheiro para o Comintern, você é carimbado imediatamente de “teórico da conspiração”, embora nem de longe esteja falando de conspirações e sim de dados oficiais, públicos e amplamente documentados.

“Teoria da conspiração” é, igualmente, qualquer menção, por mais leve e indireta, à ação da KGB no mundo, quanto mais no Brasil. A KGB, no imaginário nacional, é uma entidade etérea e inexistente, criada pela engenhosidade pérfida de conspiradores anticomunistas. Documentos, testemunhos, análises, bibliotecas inteiras nada podem contra a força obstinada dos símbolos mágicos inoculados, desde os bancos escolares, no fundo das almas de milhões de brasileiros.

Em suma, “teoria da conspiração” é uma dentre mil muletas léxicas a serviço dos deficientes mentais loquazes que orientam e dirigem o país. Se, de passagem, um escritor sério se permite usar o termo no sentido enganoso consolidado pelo uso mágico, isto só prova que o domínio exercido pelos pajés esquerdistas sobre o ambiente mental da taba não é uma conspiração, mas o efeito difuso da lenta e profunda impregnação hegemônica do vocabulário: num momento de distração, até o homem honesto acaba falando na língua deles.

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Ciência e ideologia 

Olavo de Carvalho O Globo, 20 set. 2003 

Vinte e quatro séculos atrás, Sócrates, Platão e Aristóteles lançaram as bases do estudo científico da sociedade e da política. Muito se aprendeu depois disso, mas os princípios que eles formularam conservam toda sua força de exigências incontornáveis. O mais importante é a distinção entre o discurso dos agentes e o discurso do cientista que o analisa. Doxa (opinião) e epistemê (ciência) são os termos que os designam respectivamente, mas estas palavras tanto se desgastaram pelo uso que para torná-las novamente úteis é preciso explicar seu sentido em termos atualizados. Foi o que fez Edmund Husserl com a distinção entre o discurso “pré-analítico” e o discurso tornado consciente pela análise de seus significados embutidos.

“Pré-analítico” é o discurso que tem vários significados confusamente mesclados e por isso não serve para descrever nenhuma realidade objetiva, apenas para expressar o estado de espírito -- ele próprio confuso -- da pessoa que fala. Mas esse estado de espírito, esse amálgama de desejos, temores, anseios e expectativas, é por sua vez um um componente da situação objetiva. Por meio da análise, o estudioso decompõe os discursos dos vários agentes em distintas camadas de intenções e redesenha a situação segundo um mapa que pode sair bem diverso daquele imaginado pelos agentes.

Por exemplo, na linguagem corrente podemos opor o comunismo ao anticomunismo como duas “ideologias”. Objetivamente, porém, o comunismo tem uma história contínua de 150 anos e, malgrado todas as suas dissidências e variantes, é um movimento histórico identificável, uma “tradição” que se prolonga justamente por meio do conflito interno. Já o “anticomunismo” abrange movimentos sem nenhuma conexão ou parentesco entre si, que coincidem em rejeitar uma mesma ideologia por motivos heterogêneos e incompatíveis. Só para dar um exemplo extremo, o rabino Menachem Mendel Schneerson, célebre ativista anti-soviético, era anticomunista por ser judeu ortodoxo; Joseph Goebbels era anticomunista por achar que o comunismo era uma conspiração judaica.

Comunismo e anticomunismo só constituem espécies do mesmo gênero quando considerados como puras intenções verbais desligadas de suas encarnações históricas, isto é, da única realidade que possuem. O comunismo é uma “ideologia”, isto é, um discurso de autojustificação de um movimento político identificável. O anticomunismo não é uma ideologia de maneira alguma, mas a simples rejeição crítica de uma ideologia por motivos que, em si, não têm de ser ideológicos, embora possam ser absorvidos no corpo de diversas ideologias. Outro exemplo. O conceito nazista de “judeu” não correspondia a nenhuma realidade objetiva, e sim a um complexo de projeções imaginárias. Mas este complexo, por sua vez,

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expressava muito bem o que o nazista gostaria de fazer com as pessoas nas quais a imagem projetada se encaixasse de algum modo. Esse desejo, por sua vez, coincidia com os de seus companheiros de partido e dava ao nazista um senso de identidade como participante de um empreendimento coletivo, cuja unidade se reconhecia no ódio comum ao símbolo do seu inimigo ideal.

Os líderes nazistas estavam conscientes disso. Hitler declarou-o expressamente nas suas confissões a Hermann Rauschning, e Goebbels, quando o cineasta Fritz Lang recusou um cargo no governo alegando ter mãe judia, respondeu: “Quem decide quem é ou quem não é judeu sou eu.” Mas a massa dos militantes imaginava estar despejando seu rancor sobre um inimigo preciso e bem definido.

Não é preciso dizer que os conceitos comunistas do “burguês” e do “proletário” são igualmente fantasmagóricos -- se bem que envoltos numa embalagem intelectualmente mais elegante. O próprio historiador marxista E. P. Thompson reconheceu que é impossível distinguir um “proletário” por traços econômicos objetivos: é preciso acrescentar informações culturais e até psicológicas -- entre as quais, é claro, a própria auto-imagem do sujeito que se sente integrado nas “forças proletárias” pelo ódio à imagem do “burguês”.

Os kulaks, que foram mortos aos milhões na URSS, eram nominalmente “camponeses ricos”. Ninguém sabia dizer se para ser catalogado como “rico” era preciso ter uma vaca, duas vacas ou talvez uma dúzia de galinhas, mas isso pouco interessava: o kulak era um símbolo, e a militância comunista no campo consistia em odiá-lo. A força da identidade grupal comunista, reiterada pelos constantes discursos de ódio, se projetava sobre o kulak e lhe conferia uma aparência de realidade social perfeitamente nítida. Por isso o militante não sentia ter errado de alvo quando matava um camponês que não tivesse vacas nem galinhas, mas apenas um ícone da igreja russa na parede. A crença religiosa transferia a vítima para outra classe econômica.Também é evidente que o “latifundiário”, objeto de ódio do MST, não é nenhuma classe objetivamente identificável, mas um símbolo do malvado acumulador de bens agrários socialmente estéreis, símbolo que pode se ajustar, conforme as circunstâncias, até aos empreendimentos agrícolas mais úteis e benéficos, poupando de qualquer censura mais grave a imensidão de terras improdutivas do próprio MST.

É analisando e decompondo esses compactados verbais e comparando-os com os dados disponíveis que o estudioso pode chegar a compreender a situação em termos bem diferentes daqueles do agente político. Mas também é certo que os próprios conceitos científicos daí obtidos podem se incorporar depois no discurso político, tornando-se expressões da doxa. É isso, precisamente, o que se denomina uma ideologia: um discurso de ação política composto de conceitos científicos esvaziados de seu conteúdo analítico e imantados de carga simbólica. Então é preciso novas e novas análises para neutralizar a mutação da ciência em ideologia.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/09212003zh.htm

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Ele quer mais 

Olavo de Carvalho Zero Hora, 21 de setembro de 2003 

Quando a mídia começou a gotejar veneno contra o novo regime instalado no Brasil em 1964, políticos preocupados foram procurar o marechal Humberto Castello para lhe sugerir a criação de uma agência oficial de divulgação, encarregada de corrigir o noticiário.Castello recusou a sugestão, esbravejando que, enquanto fosse presidente, não permitiria uma reencarnação do DIP -- o famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura Vargas.Pois o que agora o governo Lula está montando é bem pior do que isso. O repórter João Domingos, em O Estado de S. Paulo de 14 de setembro, informa:“Com 1.150 funcionários, ao custo de R$ 90 milhões por ano na Radiobrás e um sistema de pronta resposta e de correção das notícias ‘equivocadas’, o governo está adotando uma nova estrutura de comunicação com pretensões que vão além do mero aperfeiçoamento da máquina de divulgação oficial. Trata-se de um projeto montado para alcançar - com noticiário oficial e gratuito - um público estimado em 100 milhões de pessoas em todo o País. A operação resulta num agigantamento do noticiário oficial, jamais atingido nem durante ditaduras como a de Getúlio Vargas, em que tudo era controlado pelo célebre DIP. ‘É o DIP do século 21’, escandaliza-se o ex-deputado Prisco Viana, político que testemunhou meio século de ditaduras.”Ora, Castello estava mesmo acuado pela opinião pública internacional. Se criasse um DIP, poderia ao menos alegar legítima defesa. Mas nem isso sua consciência lhe permitiu. Já o sr. Lula não se contenta com ser paparicado pela mídia internacional e protegido pela nacional, sem cuja omissão unânime no caso da parceria PT-Farc ele jamais teria sido eleito. Ele não se contenta com governar um país em que a CUT tem 800 jornalistas na sua folha de pagamentos, o PT um exército de colaboradores em todas as redações, o esquerdismo o monopólio absoluto da mídia cultural, o MST espiões e agentes infiltrados em todos os escalões da administração federal, incluindo Polícia Federal e Forças Armadas, bem como nas principais empresas privadas.Ele não se contenta com viver num país em que o ensino público se tornou uma máquina de propaganda a serviço da beatificação de Che Guevara, Salvador Allende e Fidel Castro.Ele não se contenta com governar um país em que as crianças de escola foram maciçamente reduzidas por seus professores a um exército de reseva para engrossar passeatas e gritar slogans governistas, com prêmios para os meninos obedientes e aberta discriminação para os indóceis e recalcitrantes.Ele não se contenta com governar um país em que dirigentes das Farc podem transitar livremente, sob a proteção do governo, sem sequer ser incomodados com perguntas sobre

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as duzentas toneladas de cocaína que Fernandinho Beira-Mar disse ter comprado deles para revender no território nacional.Ele não se contenta com governar um país em que os partidos de oposição nominal foram reduzidos a barganhar uns meses sobrevivência em troca de apoio a medidas que virtualmente garantem sua extinção num futuro nada longínquo. Ele quer mais.Se a consciência de Castelo Branco era demasiado rígida para aceitar mais poder do que o mínimo necessário para o exercício do seu mandato, a do sr. Lula é elástica o bastante para acompanhar o crescimento ilimitado -- se bem que altamente previsível -- do seu desejo de poder.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030927globo.htm

O tempo invertido

Olavo de Carvalho

O Globo, 27 de setembro de 2003

 

Ligo na TV-Câmara e vejo uma socióloga, Maria Lúcia de Oliveira, ensinando a um grupo de atentas universitárias, sob o patrocínio do governo, que a associação do masculino com o ativo e do feminino com o passivo foi um ardil machista concebido por um poder político para impor a sujeição às pobres mulheres.

Essas associações simbólicas, diz ela, disseminam-se pela repetição geral até tornar-se forças sociais inconscientes. Impregnadas no vocabulário, modelam e dirigem a vida psíquica das multidões, como botões de comando invisíveis, internalizados pela astúcia do poder.

Ela diz isso como se fosse a verdade científica mais certa e provada, e as alunas recebem a mensagem como se fosse a luz da razão que vem libertá-las, enfim, das trevas antigas do preconceito e da ignorância.

O esquema repete-se, diariamente, numa infinidade de salas de aula, programas de rádio e TV, conferências, revistas, jornais e, evidentemente, livros.

A orgulhosa convicção de estar desenvolvendo uma visão mais realista das coisas, fundada nos progressos da educação, espalha-se assim em milhões de almas que, por isso, se sentem libertas do obscurantismo das “gerações passadas”, uma unidade de medida que abrange

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numa pasta uniforme, remontando na linha do tempo, desde papai e mamãe até o homem de Neanderthal.

No entanto a lição aí absorvida é uma estupidez descomunal, que só pode ser aceita por inteligências deficientes, incapazes das mais elementares perguntas críticas.

A associação masculino-ativo, feminino-passivo, aparece em tantas culturas antigas, tão separadas no tempo e no espaço como a hindu, a chinesa, a persa e a ameríndia, que a possibilidade de que não constitua a tradução simbólica espontânea de uma constante da experiência humana, e sim a invenção artificiosa de algum “poder político” maquiavélico, repousa inteiramente sobre a hipótese pueril de que então existisse uma casta governante mundial, capaz de impor seus decretos e sua linguagem aos quatro quadrantes da Terra.

A hipótese é tão idiota que não merece consideração, mas platéias inteiras de estudantes a aceitam porque são incapazes de remontar da idéia à premissa imediata que a sustenta.

Significativamente, um poder mundial tal como o subentendido nessa premissa é algo que só muito recentemente pôde vir à existência, graças à rede mundial de telecomunicações. A invenção do telégrafo foi a primeira conquista rudimentar que inaugurou a expansão do poder numa escala que ultrapassaria as mais delirantes ambições de Júlio César ou de Gengis-Khan. Até o século XVIII, qualquer ordem emanada de um governante podia levar semanas ou meses para chegar às últimas fronteiras do território sob seu comando. Todo poder, mesmo o mais organizado e eficiente, era diluído pelas distâncias e pelas dificuldades de comunicação. A idéia, por exemplo, de uma Igreja monolítica, de uma rede clerical global sob as ordens de Roma, e que só teria começado a desfazer-se com o advento da ciência e das Luzes, é um mito que a imaginação moderna projeta sobre o passado, recriando-o à sua própria imagem e semelhança. Até a Renascença, os papas não conseguiam sequer nomear seus bispos, uma prerrogativa que só muito dificilmente foram arrancando de uma multiplicidade de poderes locais independentes. A idéia mesma de um controle global unificado não começa a desenhar-se na imaginação humana senão com Kant, no começo do século XIX, nem se traduz em projeto sistemático antes de Cecil Rhodes, na passagem do XIX para o XX, nem em iniciativas concretas antes do advento do Comintern, da Fabian Society e principalmente da ONU.

Não por coincidência, a reinvenção do passado histórico segundo os cânones fantasiosos da socióloga da TV-Câmara, com todo o complexo de emoções e símbolos de protesto feminista associados, só se disseminou, justamente, numa época em que, pela primeira vez na história, um poder político, jurídico e educacional se constituiu em escala planetária e hoje impõe suas crenças e valores a toda a população mundial, através de campanhas publicitárias e programas educacionais passivamente aceitos por todos os governos nacionais que, em caso de rebeldia, se veriam imediatamente excluídos do crédito bancário nas grandes instituições financeiras internacionais, sem o qual não sobreviveriam uma semana.

A nova linguagem da rebeldia feminista, do protesto gay, das quotas raciais, do ecologismo, do abortismo, do desarmamentismo etc., é produto de intelectuais ativistas, engenheiros sociais e planejadores estratégicos diretamente ligados, seja ao núcleo do novo

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governo global, seja à sua rede informal de agências espalhadas pelo mundo sob a forma de ONGs, seja à grande mídia internacional que se tornou uma caixa de ressonância da novilíngua “politicamente correta”.

Mais curioso ainda é que, quando se fala em “poder mundial”, as multidões associam a expressão ingenuamente aos EUA, como se fosse o governo de Washington e não a ONU quem, diante dos nossos olhos, cria as novas leis trabalhistas e raciais, as novas mormas educacionais e códigos de conduta, as novas regras da diplomacia e da administração planetária que se impõem ao mundo com a maior facilidade e encontrando pouquíssima resistência -- a qual, quando vem, vem precisamente dos EUA.

Milhões de porta-vozes em milhares de TVs-Câmaras pelo mundo a fora treinam diariamente exércitos de semi-intelectuais para que repassem à população aqueles novos padrões de linguagem que, ao moldar a imaginação e os sentimentos das multidões, ainda farão o prodígio de ocultar a existência da sua fonte, levando-as a acreditar que tamanho poder sobre as consciências não existe hoje e não está sendo exercido sobre elas naquele preciso instante, mas existiu num passado remoto e dele nos libertamos pelo advento da gloriosa modernidade.

É a inversão geral da consciência de tempo histórico, base para a construção imaginária de um mundo às avessas.

É alucinante, mas é precisamente assim.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031002jt.htm

Relendo notícias

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 2 de outubro de 2003

Os brasileiros lêem e ouvem muitas notícias, mas parecem ter alguma dificuldade para juntá-las numa ordem inteligível. A título de exercício para melhorar o desempenho lógico dos interessados, ofereço aqui esta breve seqüência, cuja ordem e conexão internas são bastante evidentes:

(1) Folha Online, 11 de novembro de 2001 – “Um documento elaborado pela Operação Cobra (sigla para Colômbia-Brasil) da Polícia Federal, encarregada de desarticular o narcotráfico na fronteira da Amazônia brasileira, identifica bases de produção de cocaína sob o domínio das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)... Chamadas de complexos [conjunto de laboratórios de refino], as bases produzem mensalmente, segundo o relatório, cerca de 45 toneladas do cloridrato de cocaína. A droga partiria em aviões de

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pistas clandestinas na Colômbia para Europa e os Estados Unidos e até para o Brasil. ‘Não temos mais dúvidas das relações das Farc com o narcotráfico. A guerrilha tem o comando das drogas e isso é uma ameaça para a fronteira brasileira’, afirma o delegado Mauro Spósito, coordenador da Operação Cobra.

(2) Época, 13 de maio de 2002 – “Apreensão de 62 quilos de cocaína revela a rota das Farc para enviar a droga da Colômbia ao Brasil. -- Até a semana passada, o traficante carioca Fernandinho Beira-Mar, preso no Rio de Janeiro, era o principal exemplo da ligação entre o narcotráfico no Brasil e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a guerrilha que mantém o país vizinho em guerra civil. Beira-Mar foi preso há um ano pelo Exército colombiano, quando comprava cocaína das Farc. Na tarde da quinta-feira, uma operação da Polícia Federal no porto da cidade amazonense de Tefé estabeleceu um novo elo dessa conexão. Os policiais apreenderam 62 quilos de cocaína fornecidos a brasileiros pelo comandante Rafael Oyola Zapata, o principal líder das Farc na Amazônia colombiana, com um quartel-general em Puerto Santander, às margens do Rio Caquetá. Depois de ‘batizada’, isto é, misturada a ingredientes pouco nobres, essa remessa renderia uns 180 quilos, já com destino certo: os consumidores de Fortaleza, do Recife e do Rio de Janeiro.”

(3) O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 2003 – “A polícia apreendeu 15 quilos cocaína, ontem, na Favela Beira-Mar, reduto do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. O símbolo das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), grupo guerrilheiro com quem ele trocava cocaína por armas, estava na embalagem da droga.”

(4) Folha de S. Paulo, 27 de agosto de 2003 (Entrevista de Raul Reyes, comandante das Farc) – “Reyes: As Farc têm contatos não apenas no Brasil com distintas forças políticas e governos, partidos e movimentos sociais... Folha: O senhor pode nomear as mais importantes? Reyes: Bem, o PT, e, claro, dentro do PT há uma quantidade de forças; os sem-terra, os sem-teto, os estudantes, sindicalistas, intelectuais, sacerdotes, historiadores, jornalistas... Folha: Quais intelectuais? Reyes: [O sociólogo] Emir Sader, frei Betto [assessor especial de Lula] e muitos outros.”

Se a conexão lógica ainda está difícil de perceber, posso tentar torná-la mais visível através de algumas perguntas didáticas:

1 – Esses fatos indicam ou não que uma quadrilha de traficantes, grande fornecedora de cocaína ao mercado brasileiro, está muito bem entrosada com a liderança petista e com o governo federal?

2 – Como pode o governo tão intimamente ligado a uma organização criminosa ter idoneidade para zelar pela segurança pública?

3 – Mesmo supondo-se que não resulte dessas relações perigosas nenhum lucro ilícito para os figurões petistas nelas envolvidos, elas já não constituem por si mesmas uma ostensiva falta de decoro, incompatível com o exercício de cargos públicos?

4 – Os partidos ditos “de oposição” não percebem nada disso ou têm medo de perceber?

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Bem sei que o raciocínio lógico, nos dias que correm, se tornou uma prática imoral, insultuosa, maligna e intolerável. Por isso mesmo não darei as respostas que obtive para essas perguntas, e sugiro que o leitor, se alguma vier a obter por esforço próprio, trate de guardá-la para si, em profundo silêncio, para não magoar a sensibilidade de possíveis ouvintes.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031004globo.htm

O poder da burrice

Olavo de CarvalhoO Globo, 4 de outubro de 2003

Numa discussão, a superioridade intelectual nem sempre é vantajosa. Quando excessiva, torna-se um inconveniente, pela simples razão de que nada pode fazer um debatedor render-se a um argumento que esteja acima da sua compreensão. Quanto mais esmagado sob montanhas de fatos e provas, mais ele se sentirá imune e vitorioso, saindo do debate persuadido de que foi vítima de injustiça. Se há uma força invencível neste mundo, é a burrice. Por isso os demagogos e cabos eleitorais que fazem as vezes de professores não procuram desenvolver em seus alunos a inteligência, que arrisca torná-los sensíveis a objeções, e sim a burrice, que faz deles criaturas invulneráveis e coriáceas como rinocerontes.

Num recente debate sobre as quotas raciais, fiz o que pude para explicar a meus interlocutores a diferença -- que mencionei em artigo anterior nesta coluna -- entre o compactado emocional pré-analítico da doxa e o discurso analítico do conhecimento, mostrando em seguida que a argumentação da “affirmative action” estava no primeiro caso e não podia ser levada a sério como descrição da realidade. Mal terminei de falar, e um militante se levantou indignado:

-- Quer dizer que o senhor nega a existência do apartheid?

Eu não poderia ter solicitado um exemplo mais didático. No uso vulgar do termo apartheid comprime-se uma multidão de significados heterogêneos: um regime jurídico de separação formal entre as raças acompanhado de perseguição genocida, a mesma separação sem violência genocida, a segregação informal pacífica ou violenta sem suporte jurídico, o ódio racial explícito sem segregação formal ou informal e acompanhado ou não de condutas agressivas, o ódio incubado e implícito, o vago desprezo cultural sem expressão em atos e até mesmo o famoso “racismo sutil”, cuja presença ou ausência depende da subjetividade do observador que atribui intenções mesmo quando negadas com veemência pelo próprio agente. Tudo isso, no vocabulário dos quotistas raciais, é apartheid.

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Responder “sim” ou “não” à existência de tudo isso em bloco é uma impossibilidade. Por que, então, formular a pergunta com termo tão elástico e enganoso? Simples: para dar ares de delito a qualquer resposta que não seja a desejada pelo interrogante. É obrigatório, aí, não só admitir como fato líquido e certo a onipresença do alegado “racismo sutil”, mas ver nele um crime tão grave quanto a segregação explícita e o genocídio. Qualquer hipótese que fique abaixo disso, que não consinta em igualar o Brasil à Alemanha nazista, torna-se ela própria um crime de racismo. Para isso serve a confusão de significados: para mudar à vontade o sentido das objeções e recobri-las de uma aura criminosa mesmo quando são conclusões lógicas elementares ou a expressão de fatos notórios. Trata-se de atemorizar para inibir, de vetar a possibilidade da discussão racional por meio da intimidação psicológica.

Isso começa como um ardil premeditado, um truque de erística concebido por técnicos em manipulação de consciências. Mas, ao propagar-se, perde toda intencionalidade consciente e torna-se um automatismo introjetado, um cacoete mental. As pessoas já não o usam para confundir os outros, mas para expressar, com tocante candura, sua proibição interna de compreender o que elas mesmas dizem, seu temor e incapacidade de abandonar por um momento sequer o círculo dos chavões sagrados e examinar a realidade sob outros aspectos, ainda quando a omissão destes esvazie de significado o seu próprio discurso por falta de pontos de comparação. No fim das contas, já não verbalizam senão um sistema de tabus destinado a bloquear o acesso ao significado de qualquer objeção possível, tornando repulsiva e criminosa a simples tentação de examiná-la. Imantado da ilusão de santidade e interiorizado ao ponto de tornar-se um substituto do senso de identidade para o seu portador, o sistema reage com violência à destruição de qualquer das suas partes e se recompõe como um rabo de lagartixa.

É evidente que mentalidades assim formadas estão intelectualmente danificadas, e por isso mesmo imunes à persuasão racional: querer fazê-las perceber o que quer que seja é como exigir que um paralítico saia andando. Para voltar ao exercício da inteligência normal, precisam de um milagre.

A distribuição democrática dessa lesão mental é a finalidade essencial da educação neste país.

Alguns observadores desatentos imaginam que, para produzir um mal tão profundo, seja preciso toneladas de doutrinação e propaganda. Nada disso. Basta usar a técnica do “ato comprometedor”, descoberta por J. L. Freedman e S. C. Fraser em 1966 e hoje incorporada à pedagogia oficial. Se um grupo de pessoas é induzido a imitar, ainda que a título de mera experiência, uma determinada conduta que não compreendam bem ou que seja contrária às suas convicções, em 76 por cento dos casos elas mudarão suas convicções para adaptá-las retroativamente à conduta imitada. Basta portanto um professor enviar seus alunos uma vez, uma única vez, a uma manifestação em favor de qualquer “causa” que não estejam em condições de julgar por si próprios, e 76 por cento deles aderirão automaticamente a essa causa, qualquer que seja. Ora, enviar alunos a manifestações políticas, reforçando a incitação por meio de recompensas e castigos às vezes nada sutis, tornou-se entre os professores brasileiros do ensino médio quase uma obrigação, mesmo porque eles próprios tiveram suas convicções formadas mais ou menos assim e não vêem nada de mau naquilo

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que fazem. Consolidada a estupidez por algumas repetições, resta para o ensino universitário apenas a tarefa de embelezá-la com uns toques de vocabulário pedante.

Platão considerava que, após o homicídio, o segundo delito mais grave era o de arruinar a alma de jovens e crianças. E Jesus Cristo dizia que o melhor a fazer com os culpados desse crime era amarrar-lhes uma pedra no pescoço e jogá-los ao fundo do mar. Mas não creio que na baía da Guanabara haja espaço bastante para todos eles.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031005zh.htm

Alienação nacional

Olavo de CarvalhoZero Hora, 5 de outubro de 2003

Em trinta e tantos anos de estudos e de jornalismo, nunca vi um caso de alienação tão grave e tão geral quanto a obstinação dos brasileiros em ignorar as relações PT-Farc ou, nos casos extremos, em negar a existência delas contra toda a evidência de fatos e documentos.

Quem quer que fale a respeito, pouco importando que o faça ante adeptos ou adversários do governo, vê erguer-se diante de si uma barreira de hostilidade mal disfarçada, como se houvesse traído um compromisso de silêncio firmado entre todos os homens de boa vontade, do qual dependesse a própria sobrevivência do país. O Brasil inteiro parece ter apostado sua honra e seu futuro num pacto de vassalagem cega, depositando mais fé na palavra de um partido do que algum dia depositou na palavra de Deus.

A motivação psicológica dessa atitude é bem compreensível: da parte dos petistas, ela reflete, seja a astúcia de quem sabe de tudo e não deseja revelar nada, seja, nos restantes, a autodefesa das almas contra a possibilidade de um escândalo que as deprimiria além do que podem suportar. Da parte dos antipetistas, denota a natural relutância de admitir que podem ter sido feitos de idiotas.

Mas uma explicação psicológica não é uma justificação moral.

Os fatos são de tal ordem que menosprezá-los é uma loucura e um crime, é fazer com que todo o debate político brasileiro, fugindo sistematicamente do essencial, se torne uma desconversa suicida.

1. O comandante das Farc, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou que a cúpula petista é o principal contato da organização no Brasil.

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2. Como fundador e dirigente do Foro de São Paulo -- coordenação estratégica do movimento comunista no continente --, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva assinou, em dezembro de 2001, um manifesto que alardeava solidariedade às Farc e condenava como “terrorismo de Estado” sua repressão pelo governo da Colômbia. Tão logo divulguei esse documento, ele foi retirado do site do Foro, http://www.forosaopaulo.org, o qual logo em seguida foi desativado, permanecendo “em reconstrução” há muitos meses.

3. Embora desde 2002 já não reste entre as autoridades policiais e militares muita dúvida razoável quanto ao envolvimento das Farc no tráfico de cocaína para dentro do Brasil, o sr. Lula insiste em proclamar a inocência delas e em dar à narcoguerrilha colombiana o estatuto de organização política legítima. Ninguém tem sequer a curiosidade de perguntar se o defensor entusiasta de uma organização tão obviamente suspeita pode ter idoneidade para ser, ao mesmo tempo, o responsável máximo pela segurança do país.

4. A denúncia do deputado Alberto Fraga (PMDB-DF), de que o PT havia recebido contribuições de campanha das Farc, foi abafada pela quase totalidade da mídia nacional, e o pedido de constituição de uma CPI para investigar o assunto está congelado até hoje na Câmara Federal.

Se tudo isso não significa nada, se a fé nacional na honorabilidade petista está acima dos meros fatos, se enfim o país não tem o mínimo interesse em tirar a limpo uma questão que lhe parece ínfima e desprezível, por que deveria eu insistir? Na condição de único jornalista brasileiro que vem falando do assunto há dois anos, não encontrando como resposta senão insultos e represálias, tenho a impressão de que já fiz mais do que era do meu dever. Qualquer que seja o rumo das coisas doravante, ninguém há de me acusar de omisso.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031011globo.htm

As coisas como estão

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de outubro de 2003

 

Neste país, o que quer que você diga, por mais exato e fundamentado no exame da realidade, será sempre ouvido como expressão de uma preferência emocional racionalizada ex post facto. As categorias "verdade" e "falsidade" foram abolidas, exceto como maneiras camufladas de dizer "Gosto" e "Não gosto".

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A propaganda eleitoral, onde só o que importa é a exibição de bom-mocismo e o apelo ao sentimento de solidariedade grupal, tornou-se o modelo e critério dos debates públicos. O que esteja acima disso cai fora do círculo de compreensão dos ouvintes ou é achatado para caber naquilo que entendem, isto é, no "pró" e no "contra" sumários e instintivos, seguidos da respectiva adjetivação laudatória ou infamante.

O exame estilístico da linguagem corrente da mídia, do parlamento e das universidades comprova o fenômeno que estou apontando, cuja gravidade pode ser medida por um dado histórico: semelhantes embrutecimentos da inteligência só se observaram às vésperas de grandes carnificinas, como o terror revolucionário na França e a ascensão do nazismo na Alemanha.

O fenômeno expressa a "politização" da vida mental, no sentido que Carl Schmitt, precursor do nazismo, dava ao termo "política": aquele setor das contendas humanas em que nenhuma arbitragem racional é possível, só restando somar de um lado os amigos e de outro os inimigos para ver quem ganha.

O que talvez diferencie o caso brasileiro é que entre nós a politização schmittiana é unilateral: só uma facção tem direito à linguagem feroz das opções irracionais. As outras têm de diluir suas preferências numa sopa de atenuações, rodeios e eufemismos para não desagradar ao Príncipe. Na melhor das hipóteses, falam duro contra detalhes, preservando o todo, que sai legitimado e fortalecido. Para piorar, esses detalhes estão quase sempre associados a interesses específicos de certos grupos, que os defendem bravamente na mesma medida em que, por medo de assumir uma identidade ideológica, se abstêm de combater as concepções gerais, a filosofia política dominante. Resultado: a esquerda sai enobrecida como portadora de uma mensagem política respeitável, enquanto seus adversários posam como defensores mesquinhos de seus próprios interesses, vazios de qualquer significação moral, cultural ou social. Com essa oposição, quem precisa de adeptos?

Um caso exemplar é o dos liberais e conservadores que, desistindo de lutar em nome de suas idéias, tentam vendê-las ao governo, seduzi-lo com a oferta de uma fórmula mágica para eternizar-se no poder: que abrace a causa capitalista, aconselham, e complete a abertura de mercado mal iniciada por Collor e FHC, obtendo por esse meio (o único possível, é verdade) um sucesso econômico estrondoso.

A premissa do argumento é que o partido governante está livre para deixar-se guiar pela pura racionalidade econômica, desprezando dez anos de promessas solenes, firmadas no Foro de São Paulo, de ajudar a implantar o comunismo no continente. Os liberais acusam o marxismo de economicismo, mas no fundo economicistas são eles. Na sua imaginação, Lênin e Mao raciocinavam como capitalistas, pautando suas decisões pela Bolsa de Valores em vez de orientar-se pela estratégia revolucionária. Para qualquer marxista alfabetizado, a economia burguesa é uma fantasia elegante que pode ser desfeita a qualquer momento pela realidade brutal do roubo, dos seqüestros, das invasões, do narcotráfico, da violência organizada. O marxismo é economicista da boca para fora. No momento da decisão, é um materialismo militar, não econômico. Os liberais, que adoram economia e odeiam truculências, sonham com um mundo em que tudo seja decidido pacificamente pelo cálculo

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econômico, e com freqüência sonham já estar nele. A esquerda, que não entende nada de economia mas tudo de estratégia revolucionária, deixa que eles fiquem nessa ilusão para que não pensem em montar uma estratégia contra-revolucionária. E eles não pensam mesmo.

A sugestão de um "PT capitalista" só seria boa se pudesse ser aceita por Fidel Castro, Hugo Chávez e as Farc. Na prática, é esperança ingênua de vender uma dieta vegetariana ao lobo, mais ou menos como na monarquia absolutista os intelectuais subversivos só podiam divulgar suas idéias encobrindo-as de loas ao poder estabelecido, glorificando o que abominavam. Total e abertamente contra, ninguém pode ser. A oposição só é permitida quando salva as aparências, fingindo adesão ou limitando o alcance do seu discurso. O poder pisca um olho e faz de conta que aceita a homenagem, anotando o nome do fingido para destruí-lo na primeira oportunidade (lembrem-se de Antonio Carlos Magalhães).

Significativas, sob esse aspecto, são as opiniões de "conservadores" que alternam críticas moderadas ao MST com ataques ferinos a George W. Bush, um tortuoso e inútil esforço de morde-e-assopra que nem por isso atenua o ódio que a esquerda tem por eles.

A isso reduz-se, hoje, a oposição liberal ou conservadora. A situação criada nas últimas eleições presidenciais, com quatro candidatos de esquerda monopolizando o palco, foi longamente preparada e veio para ficar. Não há lugar para mais ninguém. Só o que resta aos descontentes é fazer-se de inofensivos, engolindo em seco, disfarçando sua condição de excluídos, fingindo-se de amigos do chefe e lisonjeando-o com sugestões edificantes. Quem é louco de dizer as coisas como são e agüentar o rojão das difamações, boicotes, intrigas, discriminações e ameaças de morte? Não há outra maneira de defender a liberdade, mas essa ninguém quer. O lado mais kafkiano da história é que, no ambiente de inibição geral, o ônus do combate aberto recai inteiramente sobre os ombros de uns poucos intelectuais independentes, os quais, não sendo políticos nem militantes de coisa alguma, acabam passando por porta-vozes de uma "direita" que, no fundo, não merece senão o seu desprezo.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031014fsp.htm

Orgulhosa ostentação de inépcia

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 14 de outubro de 2003

 

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Quando um dia se escrever a história da patologia espiritual brasileira, um capítulo inteiro deve ser dedicado ao “manifesto” com que alguns intelectuais -- entre os quais os uspianos de sempre, é claro -- reagiram ao artigo do crítico Nelson Ascher sobre Edward Said.O artigo, publicado na Folha do dia 29, resumia documentos recém-divulgados, dos quais se concluía que o historiador árabe havia falsificado sua autobiografia para posar de mártir palestino, atrair a piedade ocidental e obter com isso as vantagens de praxe, entre as quais uma cátedra em Columbia.Said nunca foi grande coisa. Suas críticas ao orientalismo, que legitimaram seu prestígio acadêmico, foram apenas uma caricatura politizada das análises clássicas de René Guénon, que datam de 1921 -- uma dívida que Said, espertamente, se omitiu de reconhecer. O restante da sua obra limita-se a ecoar o multiculturalismo convencional, obrigatório nas universidades americanas desde o advento do método “desconstrucionista” introduzido nelas pelo nazista Paul de Man.Mas, quando um historiador chega ao cúmulo de adulterar sua própria história, o que quer que ele escreva sobre a história dos outros perde toda credibilidade. E a própria causa que ele defende sai arranhada do episódio, já que, por definição, cliente honesto não se esconde por trás de artimanhas de advogado picareta.Ascher nada mais fez do que relatar o caso, com toda a exatidão e comedimento que se poderia exigir. Tanto bastou para que a cólera da intelectualidade ativista, temível como um esquadrão de baratas, desabasse sobre ele com todo o peso de um “manifesto”.O que mais chama a atenção, nesse documento, é a presunção de credibilidade automática com que seus signatários se eximem de apontar qualquer falha, por mínima que seja, no escrito que condenam, o qual, ao contrário, acreditam ter fulminado in limine mediante a declaração sumária de que “merece repúdio e não resposta”. Não estamos diante de uma argumentação, de uma refutação, mas de um decreto imperial que prescinde de fundamentos porque a confiabilidade de quem o assina é autofundante e nem de longe concebe que possa ser questionada. Mas o fenômeno tem dois aspectos. De um lado, há a facilidade, a cândida desenvoltura com que assim se transfere a questão desde o domínio da realidade histórica para o dos gostos e preferências subjetivos. Já não se trata de saber se algo aconteceu ou não aconteceu, mas de decidir se aquilo que se conta a respeito é agradável ou desagradável a um certo grupo de indivíduos. Marco Túlio Cícero já dizia que a raiz de todos os males humanos é a aspernatio rationis, o desprezo pela razão, o orgulho insano da alma que impõe suas veleidades como lei suprema, atropelando a justa demanda de motivos racionais. Essa patologia torna-se ainda mais alarmante quando observada em pessoas nominalmente dedicadas a atividades que são de conhecimento, não de gastronomia, erotismo ou diversões públicas.Por outro lado, a condenação que elas proferem não se volta contra uma doutrina ou opinião, mas contra fatos bem documentados, acreditando poder suprimi-los do mundo mediante a simples expressão do desagrado imperial, lacônica e sem explicações. Aqui a autoconfiança fátua da autoridade mandante já não pretende apenas dobrar a vontade dos súditos, mas revogar por decreto a estrutura da realidade, fazendo com que, à ordem do soberano, o acontecido desaconteça e o ser reflua ao não-ser. A sobranceria imperial transfigura-se em força demiúrgica, em poder divino. Há aí sem dúvida um componente de loucura, mas não é loucura simples. A doença espiritual dos intelectuais iluminados só pode ser compreendida pelo estudo acurado do seu estilo verbal. Felizmente, esse é um campo já desbravado por investigadores capacitados

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como Henri de Lubac, Joseph Gabel, Norman Cohn e Eric Voegelin. Esse estilo caracteriza-se pelo uso abundante de expressões em que significados mutuamente contraditórios se comprimem numa pasta indiscernível, inútil para a descrição de realidades objetivas mas excepcionalmente apta à veiculação camuflada de sentimentos turvos que, declarados por extenso, seriam indecentes, mas que assim embaralhados adquirem a enganosa aparência de coisa nobre.A expressão “não merece resposta” é das mais típicas. Autêntica mensagem cifrada, para compreendê-la é preciso decompor analiticamente suas várias camadas de significado em cada exemplo concreto. No caso presente ela significa:(a) Não tem resposta, porca miséria. É verdade mesmo. (b) Não podemos deixar sem resposta.(c) Portanto responderemos que não vamos responder nada, de tal modo que a falta de resposta funcione como prova da nossa superioridade olímpica que não consente em responder a qualquer um.Os três significados aparecem, mesclados e fundidos, na expressão “Não merece resposta”. Por meio dela, o sentimento vil de humilhação e derrota ante fatos irrespondíveis se transfigura em jactância triunfalista, a qual, sendo totalmente deslocada da situação real, não poderia mesmo deixar de denunciar involuntariamente sua própria farsa, ao inflar-se em arremedo grotesco da autoridade divina. Nada disso seria possível se os signatários do documento, sabendo que estão em luta contra a verdade, não sufocassem a voz da própria consciência, imbecilizando-se de propósito para não ter de dar o braço a torcer. Qualquer um que consinta em participar de uma comédia psicológica desse tipo, ainda que o faça por uma só vez na vida, já está automaticamente desqualificado para qualquer atividade intelectual séria. Mas esse grupo é signatário contumaz de manifestos imperiais “de repúdio” sem explicações, entre os quais aquele que há tempos emitiu contra o poeta Bruno Tolentino quando ele acusou Haroldo de Campos de cometer erros numa tradução de Dylan Thomas. A reincidência obsessiva na ostentação de inépcia revela a gravidade de um sintoma exemplar da desolação intelectual brasileira.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031018globo.htm

A pergunta ausente

Olavo de CarvalhoO Globo, 18 de outubro de 2003

 

Semanas atrás, expus aos leitores minha idéia de que a posição do ser humano na estrutura da realidade se define por seis perguntas-limite, que nem encontram respostas satisfatórias nem ficam totalmente sem resposta, e que por seu conteúdo se dispõem em três pares de opostos, formando um sistema de tensões. Venho trabalhando esse tema faz tempo, usando,

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para lhe dar a devida articulação, alguns conceitos já bastante aprofundados pela tradição filosófica. A idéia geral de perguntas-limite é de Eric Voegelin. “Tensão” é termo que emprego no sentido definido por Mário Ferreira dos Santos na sua “Teoria Geral das Tensões”, manuscrito inédito que estou preparando para publicação com notas e comentários. A disposição em cruz veio de Eugen Rosenstock-Huessy e Raymond Abellio, mas tive de modificá-la para que fosse útil ao meu esquema. A formulação de cada uma das seis perguntas também não é pura invenção: resume uma multidão de expressões diversas que lhes foram dadas pelos filósofos desde Platão.

Enfim, o esquema não é uma bela idéia que tive de repente, mas o resultado de um longo trabalho de investigação. Em todo o trajeto, bem como no esquema final obtido, a pergunta principal, que articula as outras cinco e dá a escala da sua significação, é evidentemente a pergunta pela transcendência. Sua formulação mais clássica é de Leibniz: “Por que existe o ser e não antes o nada?” Albert Einstein dizia que só a atenção contínua a essa pergunta coloca a inteligência humana na perspectiva certa. Quando abandonamos a questão do fundamento último do ser (e portanto do conhecimento), a própria ciência perde a substância da sua racionalidade e se desmantela em perguntas insensatas com respostas arbitrárias. A perda da racionalidade das ciências foi descrita brilhantemente por Edmund Husserl em “A Crise das Ciências Européias” (1933) e ela está na raiz das grandes catástrofes históricas do século XX. Sua origem remonta ao matematismo mecanicista da Renascença, mas não é impróprio dizer que o mal só adquire proporções alarmantes com o advento das duas grandes ideologias messiânicas do século XIX, positivismo e marxismo, esquemas em círculo fechado que proíbem perguntas sobre tudo o que esteja para além de seu quadro de referências.

Daí obtemos uma sugestão importante para o diagnóstico da miséria espiritual brasileira. O positivismo e o marxismo foram as influências predominantes na formação da nossa intelectualidade, que deve a isso o estreitamento crônico do seu horizonte de interesses. Durante anos ocupei-me de ler os principais livros brasileiros, e notei que a pergunta fundamental estava ausente em quase todos eles, em contraste com uma dedicação obsessiva a problemas epidérmicos e passageiros de ordem sociológica, psicológica, política e econômica. Com exceções que se tornavam ainda mais notáveis pela raridade (um Machado de Assis, um Jorge de Lima, um Mário Ferreira, um Bruno Tolentino, por exemplo), a inteligência brasileira se movia numa esfera local alheia ao interesse espiritual mais alto da humanidade. Mesmo a nossa vasta literatura de inspiração religiosa não ia em geral além das preocupações morais e pastorais, facilmente degeneradas, a partir da década de 60, em pura pregação política. E nos últimos anos já seria exagero chamar de “política” o que se vê neste país: restam apenas o show business e a propaganda.

Na minha esfera de experiência direta, posso garantir que, ao longo da vida, não conheci mais de dois ou três brasileiros para os quais a pergunta sobre o fundamento do ser, ou qualquer das outras cinco, considerada na escala dessa pergunta-matriz, tivesse a realidade de um interesse pessoal decisivo. Mesmo nos meios acadêmicos de filosofia, que deveriam lidar com elas profissionalmente, a atração que despertam é remota e indireta: uma coisa é o corpo-a-corpo com um problema essencial, outra totalmente diversa a atenção escolar a obras de filósofos da moda que, por acaso, trataram dele. Tanto que a interrogação de Leibniz só entra na nossa literatura acadêmica pelo viés de Heidegger, que, nesse ponto ao

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menos, é de segunda mão (na verdade de terceira, pois ele herdou a pergunta de Schelling e não diretamente de Leibniz). O interesse, no caso, é por “Heidegger”, não pelo fundamento do ser. A abordagem é erudita, livresca, não filosófica. O que se chama de filósofo, nesses meios, não é o homem que luta com os enigmas nucleares da existência: é o “especialista” nas obras de fulano ou beltrano, conhecidas até os últimos detalhes de análise textual. O “texto” é tudo; os problemas e a realidade, nada. O culto da futilidade chega, aí, às proporções de um pecado contra o espírito. E ainda se esconde por trás do pretexto nobilitante de uma austeridade disciplinar, que se abstém de tratar dos problemas filosóficos diretamente por zelo de escrupulosidade filológica.

Quando olharem a sociedade brasileira e notarem o seu panorama de corrupção, de caos, de violência e de desorientação geral, por favor, lembrem-se de que esse estado de coisas pode ter causas que vão além da superfície política e econômica do dia. Lembrem-se de que uma cultura sem interesse pelo fundamento não pode, a longo prazo, criar senão uma sociedade desprovida de fundamentos, um edifício de frivolidades queridas que, ao primeiro vento mais forte, cai como um castelo de cartas.

***

A propósito da recente convocação do governo para que as “entidades representativas da sociedade civil” ajudem na reestruturação da Abin, não serei bondoso o bastante para explicar, em detalhes, o óbvio: que a convivência íntima entre serviços secretos e sociedade civil nada tem de democrático, mas é a marca essencial dos regimes totalitários. Iludidos pelo atrativo enganoso da palavra “participação”, os brasileiros se prestarão agora a colaborar com a criação de uma polícia política onipresente.

***

Dica de livro: não percam o ensaio de J. O. de Meira Penna, “Nietzsche e a Loucura”.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031019zh.htm

Cerco totalitário

Olavo de CarvalhoZero Hora, 19 de outubro de 2003

A convocação do governo Lula para que as “entidades representativas da sociedade civil” colaborem na reestruturação da Agência Brasileira de Inteligência é o passo mais ousado que já se deu para a implantação de uma polícia política totalitária neste país.

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Com “polícia política totalitária” não quero me referir nem mesmo a algo de parecido com os serviços de repressão criados pelo regime militar. Por temíveis que a mídia os apresente em retrospecto, esses eram organismos profissionais, de elite, sem ligação com entidades militantes e movimentos de massa. É essa ligação que define uma polícia política totalitária, e é ela que agora o governo planeja estabelecer.

A opinião pública brasileira está tão imbecilizada pelo jargão esquerdista oficial, que tudo o que venha com o rótulo de “participação da sociedade” lhe parece sinônimo de democracia. O detalhe de que, no concernente aos serviços secretos, essa participação é o inverso da democracia, é algo que lhe escapará por completo. Num Estado democrático, os serviços de inteligência mantêm-se o mais possível longe da sociedade. Num Estado totalitário, a polícia política está por toda parte, através de parcerias formais ou informais com partidos políticos, sindicatos, entidades culturais, jornais, universidades, etc. Uma vez iniciadas as “consultas” planejadas desde agosto, essas parcerias estarão formadas automaticamente.

Muitas delas, na verdade, já existem. O MST, uma das entidades convocadas, já confessou ter agentes infiltrados em todos os escalões da administração pública, e provavelmente sua espionagem é até mais vasta e eficiente que a da Abin. O próprio partido governante, acusado em 1993 de ter um vasto serviço secreto particular, chefiado pelo atual ministro José Dirceu (aliás um agente muitíssimo bem treinado pela espionagem militar cubana), jamais se explicou satisfatoriamente a respeito.

Os militantes esquerdistas na classe jornalística estão suficientemente organizados, em algumas redações, para antecipar-se aos serviços oficiais de inteligência e usurpar seu papel, como aconteceu, anos atrás, no escandaloso episódio de apropriação de documentos reservados das Forças Armadas por repórteres de um jornal paulista. Na ocasião, anunciei que uma nova estrutura dos órgãos de inteligência, concebida para servir à política de esquerda, já estava em gestação subterrânea e que logo ouviríamos falar dela oficialmente. Pois já estamos ouvindo.

A gravidade da mudança anunciada pode ser medida pelo fato de que, entre as entidades convidadas a interferir, algumas têm ligações importantes com organizações terroristas como as Farc e o MIR chileno, este último o acionista maior da indústria brasileira de seqüestros. O próprio presidente da República, não convém esquecer, foi até pouco tempo atrás o dirigente máximo do Foro de São Paulo (coordenação estratégica do movimento comunista no continente), com alguma autoridade, portanto, sobre as Farc e o MIR.

Para piorar, a nova Abin que vai nascer dessas relações perigosas pretende dobrar o seu número de agentes e ganhar autonomia para grampear telefones e quebrar sigilos bancários e telefônicos, mesmo que para isso seja preciso mudar a Constituição Federal. É um cerco totalitário clássico, evidente, indisfarçável. Mas não será mesmo preciso disfarçá-lo: os brasileiros estão acovardados e estupidificados demais para distinguir entre uma corda no pescoço e uma gravata Armani.

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Efeitos do messianismo

Olavo de CarvalhoO Globo, 25 de outubro de 2003

 

Todos os messianismos modernos -- hegelianismo, marxismo, positivismo, nietzscheanismo, teilhardismo, holismo, ecologismo, multiculturalismo, teologia da libertação, progressismo globalista da ONU, etc. -- baseiam-se, em última análise, numa inversão psicótica da percepção do tempo: inventam um futuro hipotético e o tomam como premissa categórica para reinterpretar o passado histórico, abolindo a relação lógica do necessário e do contingente. Quando o futuro chega e a divindade anunciada não aparece, seja ela o Príncipe de Maquiavel, a sociedade sem classes, o Super-Homem ou o reinado de Gaia, começam as “revisões” que modificam o sentido da doutrina originária para transfigurar o vexame em alimento de novas promessas messiânicas, as quais então se sucedem num florescimento inesgotável. Inesgotável como a estupidez humana.

Estou escrevendo um livro a respeito e, no material que coletei para isso, o que mais chama a atenção é a facilidade com que inteligências normais e até superiores, quando arrastadas no turbilhão dos messianismos, se debilitam até à completa inépcia mesmo em raciocínios elementares. Há uma forma especificamente moderna de burrice, que difere da amathia platônica ou da “insensatez” anselmiana. Robert Musil denominava-a propriamente “estupidez” (Dummheit) e a associava ao impulso de fugir do mundo da experiência direta para viver numa “Realidade Segunda” que só existe para o intelectual iluminado, portador do messianismo. Vista de dentro da Realidade Segunda, a estupidez parece sábia. Sua verdadeira natureza só aparece quando a conduta do personagem é confrontada com as exigências do ambiente imediato. Aí a insensibilidade do intelectual iluminado à realidade da vida revela-se de um grotesco exemplar.

Lucien Goldmann, discípulo de Georg Lukács e um dos mais brilhantes intelectuais marxistas dos anos 60, estava certa vez num debate com Eric Voegelin. O autor de Order and History explicava sua tese de que as ideologias revolucionárias modernas são gnosticismos imanentistas, isto é, propostas loucas de que a eternidade vai se materializar, logo adiante, num capítulo da História. Goldmann, indignado, exclamou que o socialismo, para ele, era “uma experiência religiosa perfeitamente autêntica”. O historiador Jacques Madaule, que mediava o debate, desconversou rapidinho, poupando Goldmann de ser apontado como exemplo vivo da tese do adversário.

Mas a estrutura íntima do pensamento marxista, uma vez introjetada, não pode mesmo deixar de jogar a mente mais engenhosa numa sucessão de atos falhos freudianos que denunciarão o seu mau funcionamento de base.

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Recentemente, um professor da Faculdade de Direito da USP, Alysson Leandro Mascaro, escrevendo na revista Carta Capital, apontava como raiz dos nossos males o patrimonialismo estatal descrito por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder e, no parágrafo seguinte, deduzia daí uma condenação, não às políticas estatizantes e socialistas que a esquerda sempre defendeu, mas... ao liberalismo!

Outro professor de Direito, este da Unicamp, Márcio Bilharino Naves, inspirado no jurista marxista Evguenii Pachukanis (teórico da abolição imediata do Estado após a revolução comunista), dizia achar um absurdo o conceito burguês do “cidadão” universal abstrato, despojado de suas peculiaridades concretas (condição de classe econômica, por exemplo), mas, ao mesmo tempo, denunciava a maldade dos regimes burgueses que restringem o direito de greve às reivindicações econômicas, aprisionando o cidadão na sua identidade de classe profissional e não lhe permitindo fazer greves políticas, isto é, greves de cidadãos universais abstratos...

Do ponto de vista prático a questão é irrelevante, pois, políticas ou não, as greves só existem na sociedade “burguesa”, enquanto no socialismo são punidas com prisão ou morte. Mas, como ilustração do loop lógico messiânico, é altamente didática.

Não se deve acusar esses raciocínios de simples erros de lógica. Seria um desrespeito a seus autores, homens inteligentes. O problema deles não é de raciocínio: é de percepção. Se prestassem atenção ao mundo da experiência vivida, veriam que não é como o imaginam. Mas só o vêem através do espelho profético do mundo futuro, e aí ele fica parecendo uma daquelas telas de Escher em que uma mão se desenha a si própria ou uma escada em caracol termina de volta no primeiro degrau. Quer você chame isso de “dialética”, de “holismo”, de “enfoque sistêmico”, de “desconstrucionismo” ou do que quer que seja, uma coisa é certa: o caso é grave.

Não se trata, é claro, de uma psicose no sentido literal do termo. Alguns dos melhores estudiosos do assunto, como Henri de Lubac, Albert Camus, Norman Cohn e Eric Voegelin, enfatizam o caráter puramente espiritual da enfermidade, que pode se manifestar em almas cujo funcionamento permanece normal fora do horário de expediente acadêmico. Qualquer que seja o diagnóstico, porém, nenhum dos afetados pela doença tem a mínima consciência da sua anomalia, mas todos sentem, por causa dela, um profundo descontentamento com a realidade em que vivem: como esta jamais se comporta da maneira que esperavam, acreditam que o erro é dela e abominam ainda mais o mundo presente e passado, recusando-lhe o direito de existir exceto como prólogo irreal da realidade futura. É um mecanismo de retro-alimentação que agrava formidavelmente a maluquice toda.

***

Ainda a propósito do grotesco, e mais ou menos na mesma linha de considerações, creio já ter citado aqui a observação de Karl Kraus, de que certas épocas não podem ser satirizadas, pois são satíricas em si mesmas e, nelas, a piada é indiscernível da realidade. Pois não é que, poucos meses após o sucesso das “Memórias de um Picareta Ético” do Agamenon Mendes Pedreira, o dr. Luís Eduardo Soares apareceu explicando que o nepotismo, quando

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praticado em favor de sua esposa, é profundamente ético? E não é que a classe dos cientistas sociais em peso correu para lhe dar razão?

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Para além do charlatanismo

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 30 de outubro de 2003

 

Entre outros serviços que presta à humanidade, o dr. Emir Sader publica regularmente na internet uma coluna denominada “O Mundo pelo Avesso”. O intuito pedagógico já se revela no título: significa que, para saber o que se passa no mundo, basta inverter o que diz o colunista.

Agora, por exemplo, ele nos dá esta definição de esquerda e direita, que extraiu de Norberto Bobbio: “No nosso tempo, todos os que defendem os povos oprimidos, os movimentos de libertação, as populações esfomeadas do terceiro mundo, são a esquerda. Aqueles que, falando do alto do seu interesse, dizem que não vêem por que distribuir um dinheiro que suaram para ganhar, são e serão a direita.”

O discurso de auto-exaltação de uma corrente política, sozinho ou acompanhado das conclusões depreciativas que dele se deduzam quanto à corrente adversária, não constitui jamais uma definição desta ou daquela, mas apenas um dado, entre outros, do próprio complexo fenomênico que se pretendia definir. Será tão difícil perceber a diferença entre uma definição de “porco” e um rabo de porco ou pé de porco? Rabo, pé, orelha, pernil -- tudo isso são dados, entre outros, da entidade porcina, dos quais se há de extrair, por síntese abstrativa, a definição buscada. O erro de lógica que Bobbio comete e Sader aplaude é grosseiro demais para ser tolerado mesmo num menino de ginásio. Mas é precisamente para isso que alguns sujeitos tiram diploma de cientistas políticos: para poder dar a tolices pueris, quando lhes convêm, a aparência enganosa de opinião séria e científica.

Qualquer corrente política, para ser corretamente conceituada, tem de ser examinada na junção de dois níveis, pelo menos: seu discurso ideológico e sua ação histórica efetiva. Bobbio e Sader omitem-se de cumprir essa exigência elementar por um só motivo: sabem que, se algum sistema econômico deste mundo gera fome e miséria em proporções alarmantes, é o socialismo. Nenhum outro conseguiu matar à míngua, com um só plano econômico, trinta milhões de pessoas, como Mao Tsé-tung fez no “Grande Salto para a Frente” da agricultura chinesa. Nenhum conseguiu baixar a quota de proteínas ingeridas pelo cidadão médio para uma quantidade inferior à de seis décadas antes, como a URSS dos

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anos 80. O socialismo produz tanta fome, que acabou por assumi-la como coisa útil, transformando-a em arma estratégica para liquidar oito milhões de camponeses ucranianos rebeldes.

A corrente política que na prática gerou esses efeitos pode, é claro, alegar que o fez com a melhor das intenções humanitárias. O que não pode é ser definida por um cientista político unicamente com base nessa pretensão autolisonjeira, abstraída daquela prática e de seus resultados. Pois, como fenômeno objetivo, a esquerda mundial aparece definida justamente por essa contradição, pelo contraste chocante entre a generosidade das alegações e a miséria das realizações, nunca pelas alegações em si, amputadas de toda substância histórica e consideradas tão somente na sua intencionalidade verbal de idéias puras.

Mutatis mutandis, a recusa egoísta de socorrer o pobre não é um programa assumido declaradamente por nenhuma corrente política direitista, conservadora ou capitalista, mas uma intenção maligna que lhes é atribuída, desde fora, pela ideologia adversária. Conceder a um partido o privilégio de autodefinir-se pelos seus méritos idealizados e de definir ao mesmo tempo o adversário pela atribuição pejorativa de intenções, isso não é ciência política nenhuma: é charlatanismo explícito.

Mas Sader vai além: exige que todos se assumam como direitistas ou esquerdistas segundo a definição citada, qualquer recusa de enquadrar-se na estereotipagem bobbiana sendo condenada in limine como hipocrisia: “Escolha o seu lado e lute por ele, sem esconder seus valores.” O dever primordial e supremo do homem sincero, portanto, consiste em mentir: mentir em favor de si mesmo, se está na esquerda; contra si mesmo, se está na direita, tornando-se assim o direitista ideal da esquerda, aquele que não precisa sequer ser difamado porque consente em difamar-se a si próprio. Chamar essa proposta de charlatanismo seria eufemístico. A malícia de impor a colaboração com o engodo como uma obrigação moral das vítimas está acima dos talentos do charlatão vulgar. O dr. Sader põe nisso um toque de gênio -- o único, creio eu, que a natureza avara lhe concedeu nesta vida.

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Velha lenda

Olavo de CarvalhoO Globo, 01 de novembro de 2003

 

Embora quase nunca mencionada pela mídia brasileira, a nova onda global de anti-semitismo é motivo de grave preocupação no mundo civilizado. Livros como o da líder feminista Phyllis Chesler, “The New Anti-Semitism”, ou o artigo de Daniel J. Goldhagen

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sobre “The Globalization of Anti-Semitism”, são comentados em toda parte, e a revista “Whistleblower” consagrou ao assunto a sua edição inteira de outubro. Em artigo no “Monde”, Eric Marty, professor de Literatura na Universidade de Paris, acusou o governo francês de cumplicidade com a epidemia de violência antijudaica. E na Inglaterra, informa o Jewish Post, “o anti-semitismo está vivo e passa bem”, agora patrocinado até pela TV oficial, a BBC.

O fenômeno, que parece não ter limite geográfico, começou a dar na vista a partir da conferência de Durban e teve seu momento mais espetaculoso nos movimentos “pacifistas” que se seguiram ao 11 de setembro.

Em episódios como esses, a aliança da esquerda com grupos neonazistas em apoio ao anti-semitismo islâmico só surpreende a quem, em vez de conhecimentos históricos, tenha na cabeça a velha lenda do “antinazismo” esquerdista, criada por Stalin para encobrir a colaboração entre os dois regimes totalitários, que não começou no Pacto Ribentropp-Molotov de 1939 mas no dia mesmo da eleição de Hitler em 1933, e sem a qual o poderio nazista jamais teria crescido como cresceu.

Hoje isso é tão conhecido que já não suscita discussão entre historiadores. Mas a versão publicitária comunista é a que prevalece ainda na nossa mídia e, sedimentada no fundo da memória coletiva, falseia toda a visão popular do assunto. Nessa visão, quem quer que se oponha ao unanimismo esquerdista, mesmo quando este se alia com neonazistas contra o Estado de Israel, já é “ipso facto” um nazista. E quem quer que apóie Yasser Arafat no seu intuito de varrer os judeus do Oriente Médio pode fazê-lo a salvo de suspeitas de anti-semitismo, já que está santificado pela imersão nas águas lustrais da lenda stalinista. Esses são os critérios subjacentes em praticamente tudo o que se diz neste país sobre o Oriente Médio. Quem pode discutir a sério uma questão em que o apego psicótico à mentira já mil vezes desmoralizada se tornou o critério geral e único de avaliação dos argumentos?

***

Digo isso, até, por experiência pessoal. Por haver contestado a lenda, fui acusado de nazista e racista pela falecida revista “Bundas”, a única publicação que, conforme observei na época, tivera a franqueza admirável de ostentar no logotipo o nome do órgão pensante de seus redatores. Movi-lhe uma ação de danos morais e perdi, pois o juiz entendeu que a imputação falsa de crime, se feita por motivo de ódio ideológico, era um direito inalienável do cidadão.

Escandalizado, recorri, e terça-feira passada fui ao julgamento do recurso na Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Nada direi quanto à decisão da côrte, pois não me parece decente o uso brasileiro de pressionar o judiciário através da mídia, tão fartamente exercido em casos como Eldorado de Carajás e Carandiru. Mas não posso deixar de comentar o voto do desembargador Nagib Slaibi Filho, que ali ouvi incrédulo e estarrecido. Para sustentar a redução do episódio a um bate-boca político, S. Excia. buscou mostrar, por meio de duas citações textuais, a presença de um acentuado viés ideológico na atuação jornalística do apelante. Que assim o fizesse, tudo bem, embora fosse um tanto esquisito que poupasse de idêntico exame a parte contrária. O lindo da história foi o manejo

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das citações. A primeira veio do lema do meu site, “Sapientiam Autem Non Vincit Malitia”, que S. Excia. traduziu como “A sapiência não vence a malícia”, trocando nominativo por acusativo e transformando-me em apologista da malícia invencível -- infâmia que, graças à exemplar erudição latina do magistrado, acabou respingando também sobre o apóstolo S. Paulo, autor da máxima. Como segunda e decisiva evidência do meu ideologismo, S. Excia. citou uma frase do meu artigo “Que é o fascismo?” (O Globo, 8 de julho de 2000). No contexto original, ela apresentava a leitura irônica que eu fazia da lenda comunista acima mencionada, demonstrando o seu anti-semitismo implícito e sua completa absurdidade. Solta no ar, separada da referência às sentenças que a antecediam, a frase perdia o sentido irônico e passava a soar, ela própria, como literal declaração de anti-semitismo, ficando portanto atribuída a mim a opinião que eu ali expressamente condenava. Fôra mediante o uso desse truque sórdido que “Bundas”, fiel ao espírito do seu nome, impingira a seus leitores a mentira do meu “nazismo”. Ao usar como pretensa prova do meu viés ideológico a citação truncada, sem dar o devido reconhecimento à contrafação já denunciada nos próprios autos do processo, o desembargador não fez senão imitar o procedimento malicioso da revista, legitimando o engodo, reiterando o insulto e duplicando o dano. Não digo que S. Excia. o tenha feito de má-fé. Mas, quando juízes lêem como analfabetos funcionais e traduzem latim como analfabetos “strictu senso”, que chance tem a Justiça de prevalecer?

***

Falando em analfabetismo, esse é aliás o estado a que o bloqueio ideológico do mercado editorial reduziu os leitores brasileiros no que diz respeito ao pensamento liberal e conservador, precioso legado antitotalitário que só conhecem através das falsificações caricaturais espalhadas pela esquerda para fazê-lo passar por nazismo e, assim, reforçar a lenda. Pela primeira vez em trinta anos surge uma discreta mas vital rachadura no ominoso muro-de-Berlim intelectual que nos aprisiona. Devemos isso à coragem da Topbooks, que lançará terça-feira que vem, às 18h30, na Academia Brasileira de Letras, seus “Clássicos da Liberdade”. A coleção inclui “Democracia e Liderança” de Irving Babbit, “Ensaios” de Lord Acton e as “Cartas” do grande historiador suíço Jacob Burckhardt, que Otto Maria Carpeaux considerava peças de alcance verdadeiramente profético.

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Nonagenários

Olavo de CarvalhoZero Hora, 02 de novembro de 2003

 

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Ao denunciar que o governo está “pondo a mídia de joelhos”, o big boss da Folha de S. Paulo, Otávio Frias de Oliveira, disse o que todo mundo já sabia mas ninguém queria reconhecer em público. Estrangular as empresas para depois ir em seu socorro com verbas oficiais é um jogo totalitário demasiado sórdido para não dar na vista.

É admirável que um empresário de 91 anos tenha a coragem de falar, quando seus colegas mais jovens e vigorosos preferem fazer-se de desentendidos, seja por timidez, seja por julgar que é um grande negócio barganhar a liberdade pelas migalhas caídas da mesa do BNDES, a mesma na qual Hugo Chávez e Fidel Castro se empanturram sem ter de dar nada em troca.

Mas não se pode esperar que um só homem, mesmo com experiência nonagenária, diga tudo. Frias só falou da pressão econômica de cima. Mas e o controle político das redações? E a censura interna que, há décadas, mantém a opinião pública na ignorância de fatos essenciais para que não enxergue a escalada neocomunista no continente? E a desinformação organizada, que, por meio de uma retórica diversionista anti-americana, busca ocultar do povo o auto-sacrifício da soberania nacional à volúpia de poder do novo governo mundial que vai se formando na ONU? E a ditadura cultural que expeliu das livrarias e das universidades toda a bibliografia inconveniente aos propósitos do esquerdismo, aprisionando duas gerações de brasileiros numa nova caverna de Platão em que os escravos já não podem sequer saber que são escravos? E a lenta e irrevogável imposição dos cacoetes verbais “politicamente corretos” no vocabulário da mídia e das escolas, que obriga o pensamento coletivo a ceder à mentalidade esquerdista mesmo quando tem veleidades de fazer-lhe oposição? E a sorrateira política de “ocupação de espaços”, que fez da esquerda um fiscal onipresente que não pode ser fiscalizado por ninguém?

Sem essa longa preparação do ambiente, jamais um governo petista teria a ousadia de tentar controlar a mídia por meio da chantagem econômica. Sem ela, não haveria talvez nem sequer o governo petista. Sem ela, nenhum brasileiro teria aceitado como coisa normal o engodo de uma eleição pré-calculada para obrigar o eleitorado a escolher entre a esquerda e a esquerda mesma. Para a mídia ser posta de joelhos, foi preciso primeiro colocar de joelhos o país inteiro.

Frias não falou de nada disso, nem tinha a obrigação de falar. O que me pergunto é: quando aparecerá um reitor de 91 anos para denunciar que é prisioneiro da inquisição petista na universidade? Quando aparecerá um escritor de 91 anos para denunciar a ditadura esquerdista no establishment cultural? Quando aparecerá um repórter de 91 anos para revelar as conexões PT-Farc? Quando aparecerá um policial de 91 anos para denunciar o governo que entrega a polícia inerme nas mãos dos delinqüentes? Quando aparecerá um militar de 91 anos para denunciar a manipulação esquerdista que ao mesmo tempo debilita por todos os meios as Forças Armadas e fomenta nelas a loucura anti-americanista para induzi-las ao suicídio?

Antigamente, a tarefa de mostrar a nudez do rei incumbia às crianças. Mas estas já estão corrompidas demais pelos “parâmetros curriculares” politicamente corretos para poder enxergar a diferença entre corpos nus e vestidos, ao passo que os adultos, quando a

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enxergam, preferem calar-se porque têm pequenos interesses e grandes ilusões a preservar. Só homens de 91 anos lembram-se ainda dessa diferença e não têm a esperança louca de sobreviver indefinidamente por meio do silêncio covarde. Por isso o futuro, hoje, depende desses homens sem futuro.

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Os EUA vistos da Bruzundanga

Olavo de CarvalhoO Globo, 08 de novembro de 2003

 

O resultado das últimas eleições americanas é mais uma prova de que o público brasileiro, sob o guiamento de “analistas”, “comentaristas”, “especialistas” etc. e tal, ignora cada vez mais profundamente o que se passa no país mais poderoso do mundo, centro vital de lutas e decisões que afetam a vida de todos nós.

A darmos crédito a esses senhores, a presidência Bush estava liquidada, arrastando em sua queda irreversível o Partido Republicano. Bem, o fato é que após essas eleições os Estados sob governo republicano são 29, contra 21 democratas. Mais ainda: de onze estados sulistas tradicionalmente democratas, nove já passaram para os republicanos.

Tudo isso era mais que previsível, e os próprios democratas não o escondiam. O último congresso deles começou com a apresentação de um levantamento estatístico segundo o qual o partido, àquela altura, podia contar com um terço do eleitorado, se tanto. Houve choro e ranger de dentes. Mas a notícia foi omitida pela mídia brasileira em peso, provavelmente a mais fanática torcida que os democratas americanos têm na arquibancada mundial.

A quase totalidade das informações publicadas neste país sobre os EUA vem de fontes ostensivamente clintonianas, como o New York Times, o Washington Post, a CBS e a CNN. Há nisso uma distorção crônica da realidade, pois lá a influência desses gigantes é bem menos gigantesca do que parece à imaginação brasileira, nenhum deles podendo concorrer tranqüilamente com a rede de pequenas estações de rádio e sites de jornalismo eletrônico, nos quais a opinião conservadora, expelida da mídia chique, semeou incontáveis focos de resistência.

Para saber o que se passa nos EUA, é preciso contrastar a opinião da grande mídia com a dos pequenos, que somados a transcendem em penetração popular e, não raro, em qualidade

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jornalística. E não se pode ignorar a ascensão da Fox, que cresceu nadando contra a corrente.

Esse estado de coisas é reflexo de transformações bem mais profundas da sociedade americana, das quais o pessoal daqui não tomou até hoje o menor conhecimento. É que a massa de militantes “contraculturais” dos anos 60, a horda dos admiradores de Ho Chi Minh, veio a tornar-se o establishment, a “camarilha dominante” da década de 90, ocasionando, em reação, o surgimento de uma nova contracultura, agora inspirada na crítica conservadora e judaico-cristã aos valores puramente terrestres e mundanos promovidos por aquela geração. Para começar a entender essa inversão de posições, leiam ou releiam os livros de Ivan Ilitch, o jesuíta que quarenta anos atrás se tornou um ídolo da New Left com sua defesa revolucionária de uma “sociedade sem escolas”. A “sociedade sem escolas”, o homeschooling, é hoje um ideal defendido pelos conservadores, principalmente religiosos, ao passo que a elite esquerdista, responsável pela criação do ministério da Educação no governo Carter, luta por um ensino cada vez mais burocratizado, odiando o homeschooling e fazendo de tudo para proibi-lo. Não é essa a única proposta “contracultural” que foi absorvida pelos conservadores: eles travam hoje o mesmo combate que a esquerda empreendia nos anos 60 contra a “medicalização” da sociedade, contra o uso da medicina como instrumento de controle social e político, enquanto a liderança esquerdista mudou de conversa tão logo sentiu que os execrados botões de controle estavam ao alcance dos seus dedos. Nas universidades, o movimento pela liberdade de expressão (free speech movement), que duas gerações atrás abriu o recinto acadêmico para a pregação esquerdista ostensiva, tornou-se uma frente de batalha dos conservadores, agora voltada contra a tirania do “politicamente correto” que reitores esquerdistas impõem por meio de castigos, ameaças e regulamentos mais rígidos e autoritários do que tudo aquilo que indignava os rebeldes dos anos 60. Não é coincidência que o principal porta-voz do movimento hoje em dia seja David Horowitz, que começou como líder estudantil de esquerda, naquela época, e foi trocando de posição à medida que via mudarem de mãos as bandeiras às quais havia dedicado sua vida.

Na esfera das idéias, a profundidade e riqueza da crítica cultural empreendida por autores conservadores como Russel Kirk, Irving Kristol, Roger Kimball, o próprio Horowitz e tantos outros -- todos eles ainda ignorados no Brasil -- mostram que o poder de iniciativa intelectual também foi passando da esquerda para a direita, preparando a grande mudança da atmosfera geral dos debates públicos que, ao alcançar sua expressão mais exteriorizada e visível, se manifesta, por exemplo, nos recentes acontecimentos eleitorais, os quais só podem constituir surpresa para as classes falantes mais incultas, mais desinformadas -- e mais falantes -- do globo terrestre: as nossas.

O hiato entre a consciência nacional e a realidade do universo em torno vai-se tornando um abismo intransponível. Acho muito engraçado, por exemplo, ver os nossos políticos e educadores pontificando sobre o despreparo da classe estudantil, que nos testes internacionais tira o último lugar. Eles falam disso desde fora e desde cima, como se o fenômeno tivesse causas impessoais e não resultasse diretamente da influência deles próprios. Nossos estudantes não são incultos por falta de verbas, por falta de planejamento técnico, por falta de regulamentos: são incultos porque nossos políticos e educadores são incultos, porque os guias iluminados da mentalidade nacional são incultos, porque a elite

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opinante deste país é inculta, pretensiosa e fútil como o era no tempo em que Lima Barreto, rindo para não chorar, traçava o seu perfil satírico em “Os Bruzundangas”.

***

Heróicos gatos pingados, sob a liderança do embaixador Meira Penna, fizeram uma manifestação em frente à Embaixada americana... em favor da Alca. Os americanos nem acreditaram. Esse miúdo acontecimento tem a grandeza de um gesto de resistência estóica que rompe, simbolicamente, trinta anos de monopólio esquerdista dos atos públicos.

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Linguagem criminosa

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 13 de novembro de 2003

 

Alguns antipetistas regozijam-se de que, por uma frase dita na África, o presidente da República esteja sendo fritado na mesma frigideira politicamente correta que durante três décadas ele ajudou a aquecer. Mas isso é o cúmulo da mesquinharia. O homem tem toda a razão ao alegar que não disse nada de mais. A mídia internacional nos bombardeia diariamente com tantas imagens apocalípticas da miséria e violência africanas, que qualquer um, ao encontrar nesse continente uma cidade limpa, bonita e pacífica, tem a impressão de estar em outro lugar. A tentativa de desencavar do fundo da observação banal um pérfido intuito racista é ela própria uma perfídia criminosa.

Na verdade, é algo mais: é uma técnica muito precisa de atribuição de intenções, hoje de emprego universal e sistemático como arma de guerra cultural, inspirada nas especulações semânticas da Escola de Frankfurt e calculada para fomentar artificialmente o ódio político por meio de uma astuta engenharia da cizânia.

O argumento implícito que aí o público é levado a aprovar baseia-se numa premissa racista oculta que o ouvinte, na quase totalidade dos casos, não está em condições de trazer à luz por meio da análise, e que ele acaba aceitando às tontas ao endossar-lhe as conclusões. Trata-se de criar nele uma culpa inconsciente por crime de racismo, da qual ele tentará se livrar pela inculpação do bode expiatório que no mesmo instante lhe é oferecido para esse fim.

Se todo sujeito que faz uma crítica à sociedade ou à cultura africanas está, no mesmo ato, depreciando a raça negra, isso significa que raça e sociedade, portanto cultura, têm um

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vínculo inseparável de dependência intrínseca. Cada raça tem uma cultura e cada homem está condenado a identificar-se com a cultura originária “da sua raça”, sem poder desligar-se dela e integrar-se em outra.

Essa premissa ostensivamente racista já não é subscrita por nenhum cientista sério. Está provado e bem provado que qualquer homem, de qualquer origem racial, pode integrar-se em qualquer cultura e passar a representá-la com tanta autenticidade quanto os membros da raça que a criou, como o negro Púchkin personifica a cultura russa e o judeu Heine a alemã.

Ao aceitar a premissa não declarada de que a crítica à sociedade africana deprecia a raça negra, o ouvinte ingênuo entra na linha de raciocínio que identifica raça e cultura e se torna ele próprio virtualmente um racista malgré lui. Justamente por não perceber com clareza as implicações de sua atitude, ele não pode evitar o desconforto psicológico da incongruência mal conscientizada, do qual então ele buscará alívio projetando a acusação sobre o primeiro suspeito ao seu alcance.

Todo o patrulhamento verbal politicamente correto constitui-se de truques dessa natureza, construídos para paralisar a inteligência e inocular nas almas uma confusão de sentimentos ruins pronta para ser canalizada na direção do ódio irracional mais desejado. A operação, que se reproduz automaticamente usando as suas próprias vítimas como novos agentes de propagação, acaba por fazer de cidadãos pacíficos e bem intencionados os instrumentos de uma campanha de ódio com a qual, informados da situação, jamais admitiriam colaborar.

Se existe um uso criminoso da linguagem, é esse. Voltado contra líderes do velho regime militar ou contra o sr. Luís Inácio Lula da Silva, é igualmente maligno, desumano e porco.

Tanto quanto muitos outros brasileiros, eu desejaria ver o sr. Luís Inácio bem longe da presidência. Mas se para tirá-lo de lá for preciso recorrer a tais expedientes, prefiro que ele seja brindado com um mandato vitalício. Quando usado por “direitistas” ou “conservadores”, ou, melhor dizendo, pelos oportunistas sem convicção que a esquerda convencionou designar por esses nomes, o ardil se torna ainda mais desprezível por acrescentar, à malícia, a burrice (sua contrapartida inseparável, já que a malícia não é outra coisa senão a caricatura demoníaca da inteligência). Pois é preciso ser muito, muito burro para achar que é esperteza destruir a reputação de um político esquerdista à custa de consolidar na alma popular a autoridade do preconceito politicamente correto, a grande arma dos fanáticos esquerdistas na sua luta contra a sanidade, a moral e convivência civilizada.

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Da barbárie à decadência

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Olavo de CarvalhoO Globo, 15 de novembro de 2003

 

Vocês já devem ter ouvido dizer que o Brasil saltou da barbárie à decadência sem ter passado pela civilização. Antigamente isso era piada, mas cada vez mais adquire toda a aparência de uma verdade passível de confirmação empírica.

Observo, por exemplo, que a vulgata marxista mais infame, desprezada como lixo burocrático pelos intelectuais de esquerda dos anos 60, é hoje aceita como alta cultura universitária, sem que ninguém mais pareça notar a diferença.

Acabo de ler, nas apostilas de um professor da Faculdade de Direito da USP, tido como um dos mais brilhantes intelectuais da instituição, que a linguagem e o pensamento estão tão profundamente interligados que “quem não fala não pensa”. Alunos do cidadão repassam-me essa enormidade com toda a inocência, sem dar-se conta de sua implicação mais óbvia: se não se pode pensar sem palavras, uma criança tem de aprender a falar para depois poder pensar, donde se conclui que a pobrezinha terá de enfrentar o aprendizado da fala sem nenhum auxílio da capacidade pensante. Crianças assim só existem no corpo docente da USP. Se as outras funcionassem como elas, não restaria alternativa senão explicar a sua aquisição da linguagem pela mera reflexologia animal, levando o materialismo pavloviano às últimas conseqüências, coisa que mesmo a velha Academia de Ciências da URSS temia fazer. A mais elementar observação dos fatos ensina que o pensamento lógico está presente já na comparação e catalogação imaginativa das propriedades sensíveis dos corpos -- forma, cor, movimento --, e que sem o sistema de categorias aí subentendido seria impossível, depois, apreender as diferenças entre classes de palavras. Dos estudos clássicos de Rudolf Arnheim sobre o “pensamento visual” até as análises de Xavier Zubiri divulgadas na década de 90, ninguém mais nega a obviedade proclamada 2.400 anos atrás por Aristóteles, de que não há linguagem sem abstração, nem abstração sem um senso lógico das categorias embutido de algum modo na simples percepção sensível. Zubiri vai até além e proclama que a apreensão da “realidade” como tal, distinta da simples estimulação recebida por um corpo, é a forma propriamente humana de percepção, a diferença mais imediata e decisiva entre o homem e o animal.

Inversa e complementarmente -- e a própria apostila que mencionei dá exemplo disso --, é claro que se pode “pensar” com meras palavras, formando cadeias inteiras de silogismos sem a mínima apreensão das entidades referidas, portanto sem nenhuma consciência da diferença entre as definições nominais dos termos e as qualidades objetivas dos seres e estados respectivos. O falante, aí, tão logo consiga formar uma combinação de palavras que lhe pareça razoável desde o ponto de vista gramatical e semântico, acreditará piamente estar pensando sobre coisas existentes, e nada poderá tirá-lo da ilusão de que seu universo de frases é o extremo limite do mundo real. É precisamente isso o que no Brasil de hoje se chama “pensar”, e é natural que, generalizando suas limitações pessoais, os praticantes

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desse vício acabem chegando à conclusão de que, para o restante da humanidade, pensar sem palavras é tão impossível quanto para eles próprios.

Toda a possibilidade de um ser humano conhecer a realidade objetiva repousa na capacidade que ele tenha de analisar criticamente sua própria linguagem com base na experiência sensível, externa e interna, percorrendo em marcha-a-ré toda a cadeia que sobe das percepções mudas -- experiência pessoal direta -- até os complexos semânticos e sintáticos mais elaborados. Um escritor que busca o “termo próprio”, com a obsessão de um Flaubert ou de um Eça de Queiroz, não faz senão comparar sua percepção das propriedades sensíveis com os registros convencionais da memória verbal coletiva anotados na fala popular, na tradição literária e nos dicionários. O domínio superior da expressão lingüística é impossível sem um senso agudo da distância que há entre linguagem e percepção, senso cujo exercício é justamente a base da conexão crítica entre pensamento e realidade. Especialmente aprimorado nos escritores e filósofos, esse exercício é no entanto uma capacidade elementar sem a qual os seres humanos não poderiam jamais escapar das malhas de qualquer ilusão verbal tecida por eles próprios. Um escritor de verdade é portanto um especialista em percepções, empenhado em protegê-las contra a força dissolvente do fluxo lingüístico, e assim, mallarmeanamente, em “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Não é necessário dizer que, nessa acepção, a maioria dos indivíduos que neste país ostentam hoje em dia o título de escritores não são escritores de maneira alguma, e sim precisamente o contrário: são profissionais da tagarelice, dedicados a sobrepô-la de tal modo ao mundo percebido que no fim já não seja possível recorrer ao testemunho da percepção para confirmar ou impugnar o que dizem. Quando adquirem nisso um certo grau de habilidade, estão maduros para declarar o primado da linguagem não só sobre o pensamento, mas sobre a realidade, transformando o psitacismo no mais alto dos deveres intelectuais. Que o façam sob pretextos desconstrucionistas elegantíssimos, nada mais natural. A linguagem dessa gente não é “bárbara”, no sentido de elementar e simplória. Ao contrário, é tanto mais sofisticada quanto mais burra, mais postiça e mais incapaz de confronto com a realidade. Que, por outro lado, os indivíduos assim formados ou deformados sintam cada vez mais atração pelo vulgar e grosseiro, até o ponto de colocar sua pena orgulhosamente a serviço de demagogias revolucionárias torpes e sangrentas, celebrando o “humanismo de Che Guevara”, a compaixão social do genocídio maoísta, os ideais justiceiros do narcotráfico ou a piedade cristã do aborto em massa, é algo que se compreende sem muita dificuldade: pois a mente que disse adeus ao mundo das percepções sente mesmo a nostalgia da realidade e tem de buscar no “popular”, como ela mesma o nomeia, um sucedâneo simbólico daquilo que perdeu para sempre. É o salto, se não da barbárie à decadência, ao menos da decadência á barbárie.

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Muito lógico

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Olavo de CarvalhoZero Hora, 16 de novembro de 2003

 

A unificação das forças armadas latino-americanas é necessária, diz o ministro José Dirceu, para “a defesa do continente”. Defesa contra que? Sem um inimigo potencial, não há plano de defesa que faça sentido. No momento, a única ameaça de agressão armada que pesa sobre o continente é aquela que vem de organizações terroristas como as Farc ou o MIR chileno. Mas essas organizações estão sob a orientação política do Foro de São Paulo, entidade fundada -- e dirigida por dez anos -- pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que decerto não gostaria de agir contra elas. Como líder do órgão coordenador da estratégia comunista na América Latina, é bem mais natural que ele use de seu prestígio e autoridade para proteger seus antigos subordinados. No tocante às Farc em particular, ele já deixou claro que, no seu entender, elas não devem ser combatidas, muito menos punidas pela morte de 30 mil colombianos, e sim premiadas com o reconhecimento de seu estatuto de partido político legítimo. Em documento assinado em dezembro de 2001, ele qualificou de “terrorismo de Estado” a luta movida pelas forças armadas colombianas contra a guerrilha. Quando, portanto, seu ministro-chefe da Casa Civil diz que a mencionada unificação militar tem entre outros objetivos o de “ajudar a Colômbia”, é óbvio que isso não se refere a ajuda contra as Farc: nosso governo jamais consentiria em ampliar para dimensões continentais o execrável “terrorismo de Estado”. Devemos ajudar a Colômbia, isto sim, a evitar uma “possível invasão norte-americana”. Eis o inimigo.

A escolha, na verdade, não parece ser muito nova. Já em 2000, Miguel Urbano Rodrigues, escrevendo no jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português, informava que os militares brasileiros da região amazônica estavam estudando os manuais do general Giap e de Che Guevara, com o objetivo de prerarar-se para uma eventual guerra de dissuasão contra o invasor americano. Embora o jornalista português citasse como fonte o brasileiro Márcio Moreira Alves, sendo em seguida citado por este, numa retroconfirmação circular um tanto suspeita, o fato é que pelo menos um deles não estava nada desinformado: Márcio é íntimo freqüentador dos meios militares nacionais e chegou a ser cogitado para o cargo de reitor civil da Escola Superior de Guerra.

Curiosamente, a mais profunda interferência americana nos assuntos militares da América Latina, durante a última década, foi o Plano Colômbia, do qual os esquerdistas só se queixam por pura ingratidão ou por astúcia diversionista. Pois esse Plano, proibindo o governo colombiano de tocar na guerrilha, teve por objetivo justamente transferir às Farc o patrimônio dos antigos cartéis, transformando-as naquilo que são hoje: um poder financeiro e militar temível. Vindo de um presidente americano cujas afinidades com a esquerda revolucionária internacional são notórias no seu país (embora jamais mencionadas pela mídia brasileira), isso foi de uma lógica exemplar. Também é muito lógico que a esquerda nacional, após ter feito de tudo para desmantelar as nossas Forças Armadas enquanto viam nelas algum resíduo “direitista”, pensem em fortalecê-las por meio da união continental agora que, debilitadas, desmoralizadas e aparentemente esvaziadas de suas convicções tradicionais, elas já começam talvez a gostar de seus antigos algozes, dispondo-se a colaborar com eles no vasto front do anti-americanismo internacional.

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Um conselho de Heráclito

Olavo de CarvalhoO Globo, 22 de novembro de 2005

 

A regra mais importante do método filosófico é talvez aquela que Heráclito formulou na severa concisão da máxima: “Os homens despertos estão todos no mesmo mundo. Quando dormem, vai cada um para o seu mundo.” Abraham Lincoln traduziu isso dizendo que você pode enganar muitas pessoas por algum tempo ou algumas pessoas por muito tempo, mas não todo mundo o tempo todo. Saber que estamos no mesmo mundo em que viveram os sábios da China e do Egito, os profetas de Israel, os místicos hindus, os sacerdotes africanos e indígenas, os filósofos da Grécia e da Europa medieval, e que substantivamente nossa vivência da realidade não é mais rica nem mais válida que a deles, deveria bastar para alertar o intelectual moderno de que suas idéias, se não resistem a um confronto com a unanimidade dos séculos, não devem valer grande coisa.

Durante muito tempo os filósofos respeitaram essa unanimidade, embora só a conhecessem parcialmente. Hoje os livros clássicos de todas as tradições estão acessíveis em línguas modernas, e quem quer que ignore a convergência essencial das suas respectivas visões do universo, sobretudo no concernente à estrutura dos mundos espirituais, deve ser considerado in limine um apedeuta indigno de entrar na discussão de qualquer assunto intelectualmente relevante. Na impossibilidade de ler tudo, pelo menos a massa de documentos reunidos por Whitall N. Perry em “A treasury of traditional wisdom”, que acaba de sair em nova edição mais completa, é de conhecimento obrigatório para quem quer que pretenda opinar em questões de filosofia, religião, moral ou política. As três formas essenciais de registro da experiência espiritual humana são o mito, a revelação, a filosofia clássica. Essas três linguagens são eminentemente intertraduzíveis. Pelo seu estudo apreendemos a unidade da experiência humana da existência e descobrimos o óbvio: que ela forma o fundo do qual emergem todos os conceitos, todas as idéias, todos os critérios de conhecimento, mesmo nas ciências mais presumidamente autônomas como a física e a química (se têm dúvidas, consultem “A ciência e o imaginário” de André Corboz e outros, UnB, 1994). Fora disso, é tudo loucura pessoal ou moda cultural, destinada a dissolver-se no esquecimento, por mais barulho que faça durante algum tempo. No entanto é impressionante o número de filósofos dos dois últimos séculos que, com candura quase psicótica, asseguram que toda a humanidade anterior esteve enganada quanto a si própria e que eles são os primeiros a desvelar a autêntica realidade. Por milênios as gerações dormiram, imersas em mundos fictícios, até que Karl Marx, Freud, Nietzsche ou Heidegger viessem despertá-las para lhes informar — finalmente! — onde estavam. Acreditavam

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buscar Deus ou a sabedoria, Marx informa-lhes que apenas defendiam inconscientemente uma ideologia de classe. Imaginavam aspirar à perfeição moral, Freud lhes revela que era tudo um disfarce do desejo sexual reprimido. Sonhavam realizar elevados ideais, Nietzsche lhes mostra que só queriam o poder. Pensavam investigar o ser, Heidegger acusa-os de encobri-lo. Isto quando não aparece algum desconstrucionista para lhes dizer que nem mesmo existiam, que eram apenas signos de um texto imaginário.

Mesmo quando a investigação revela que essas interpretações pejorativas foram construídas em cima de fraudes, de manipulações e de ilogismos assombrosos, seu prestígio atual é tão grande que elas encobrem com sua sombra tudo o que veio antes delas, como se Sócrates ou Lao-Tsé não tivessem mais o direito de falar com suas próprias vozes, mas só pela boca de algum fiscal moderno. O resultado é que cada “nova verdade”, em vez de aumentar o acervo dos conhecimentos, só serve para suprimi-lo, para torná-lo incompreensível às gerações subseqüentes. A experiência humana de um Marx, de um Freud, de um Nietzsche — para não falar de um Sartre ou de um Foucault — é extraordinariamente diminuída, contraída, deixando de fora continentes inteiros registrados no legado universal. Para ser aceitos na comunidade intelectual elegante, temos de recortar nossa alma segundo o figurino desses egos mutilados, desprezando tudo o que não caiba no seu horizonte restrito. A “autoridade da ignorância”, como a denomina Eric Voegelin, tornou-se o critério supremo em todas as discussões. Já não queremos ser anões nos ombros de gigantes. Queremos que os gigantes se prosternem para que os anões se tornem a medida da estatura humana.

Platão e Aristóteles estavam conscientes, por exemplo, de que não podiam usar termos gerais sem primeiro decompô-los analiticamente em suas várias camadas de significado. Passados mais de dois milênios, aceitamos grosseiras figuras de linguagem — “materialismo dialético”, “libido”, “vontade de poder” — como se fossem conceitos objetivos, e nem sequer nos damos conta de que não resistem à mais modesta decomposição analítica. Raciocinamos por fetiches e fórmulas mágicas. Acreditando estar no pináculo do conhecimento, descemos ao nível do auto-engano pueril.

A onda de ataques à memória do general Ernesto Geisel é um espetáculo deprimente de hipocrisia, pois não busca senão encobrir, sob uma afetação de escândalo ante delitos conjeturais, os dois únicos grandes crimes efetivos praticados por aquele ex-presidente. E busca encobri-los porque ambos foram cometidos, precisamente, com a cumplicidade ao menos moral de seus atuais acusadores: (1) a ajuda fornecida a Cuba para a investida imperialista que matou cem mil angolanos; (2) os empréstimos irregulares ao governo comunista da Polônia, as famosas “polonetas”, um rombo de fazer inveja a milhares de juízes Lalaus e outros tantos PCs Farias.

Quarta-feira, participei pela última vez de um debate com intelectual esquerdista. É sempre a mesma coisa. Provo que o sujeito não sabe do que está falando, que não leu os autores que cita, que não compreende o que ele próprio diz — e o fulano sai batendo pezinho, alegando autoridade sacrossanta e dizendo-se vítima de complô. Para mim, chega. Não agüento mais bater em criança.

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Engenharia da delinqüência

 

Olavo de CarvalhoO Globo, 29 de novembro de 2003

 

Os movimentos que vivem da incitação à revolta popular sempre usaram das crianças e adolescentes como instrumentos para a dissolução dos costumes, a quebra dos elos de lealdade e confiança, a disseminação do caos e, no fim, a perseguição e assassinato dos indesejáveis.

Desde as “cruzadas das crianças” na Idade Média até a Juventude Hitlerista, a “Revolução Cultural” de Mao Tsé-tung e as rebeliões estudantis dos anos 60, o testemunho da história é constante e uniforme. A diferença principal que, nesse ponto, se observa entre as épocas, é que desde o início do século XX a exploração da rebeldia infanto-juvenil veio deixando de ser um improviso casual para tornar-se uma técnica racional, uma engenharia da “transformação social”, hoje consolidada em atividade profissional subsidiada por grupos políticos e por grandes organismos internacionais.

O empreendimento abrange desde a dissolução dos sentimentos morais e sua substituição pelo Ersatz publicitário mais oportuno até a organização dos grupos juvenis para a ação direta, passando por vários estágios intermediários como a doutrinação nas escolas, a incitação sutil ou ostensiva ao vício e à delinqüência, o cultivo sistemático do ódio a bodes expiatórios, a transfiguração da ignorância juvenil numa fonte mágica de autoridade moral e, last not least, as modificações legais e institucionais necessárias para bloquear qualquer reação possível.

Nas almas dos jovens submetidos a essa coordenação de influências, os efeitos variam: o simples desprezo à família e à moral, a exigência arrogante de espaço irrestrito para o atendimento dos próprios caprichos, a queda na devassidão e no vício, a participação na violência política organizada ou o ingresso na delinqüência explícita são apenas diferentes formas de expressão adotadas por distintas individualidades de acordo com suas inclinações pessoais e as circunstâncias fortuitas. Todas essas modalidades, com seu impacto convergente, são no entanto igualmente necessárias à “transformação social” desejada. Por isso é que os líderes e incitadores políticos da rebelião são também, inseparavelmente, apóstolos do imoralismo, advogados da liberação das drogas e, sobretudo, protetores da delinqüência, empenhados em criar toda sorte de obstáculos legais e culturais à repressão da criminalidade. A pluralidade dos meios reflete a unidade dos fins.

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É inevitável que o sistema de educação pública, uma vez sob o domínio dessa gente, se torne instrumento prioritário de destruição da sociedade e passe a atuar em perfeita sintonia com os demais fatores geradores do caos. Quando esses grupos combatem qualquer proposta repressiva e em troca oferecem a “educação” como remédio supremo para a delinqüência, eles omitem o fato amplamente comprovado de que, por toda parte, a ampliação do sistema educacional não diminuiu em nada a criminalidade entre os jovens, mas antes a inflou até os limites do insuportável, fazendo das escolas mesmas os focos preferenciais da violência, do tráfico de drogas, etc. Nos EUA, a culpa das escolas na expansão da criminalidade se tornou tão evidente, que suscitou a eclosão do movimento de homeschooling, por iniciativa de pais que se recusavam a submeter seus filhos ao adestramento estatal para o ódio político, o imoralismo prepotente e a maldade. Ano após ano, testes e pesquisas confirmam que as crianças educadas em casa aprendem mais e têm melhor padrão de conduta do que suas coetâneas entregues aos cuidados dos “agentes de transformação social”. Os apóstolos da “cura pela educação” não querem as crianças mais longe do crime, apenas mais ao alcance de um planejamento estratégico perverso e incalculavelmente malicioso, para o qual tanto faz transformá-las em delinqüentes avulsos ou em disciplinados militantes. Entre a delinqüência e a militância há aliás vários graus de transição e mescla, entre os quais o mais notável é o emprego de meninos de escola como veículos para campanhas de difamação e intimidação nas quais seus guias e mentores não desejem sujar pessoalmente seus veneráveis dedos. Nas tropas de acusadores mirins que se sentem escoradas em pretextos de alta moralidade para o extravasamento vaidoso de ódios postiços realiza-se, então, a síntese perfeita dos dois itens da máxima de Lênin: “Fomentar a corrupção e denunciá-la.”

Quando o efeito conjugado de tantos ataques à sociedade se avoluma até criar um estado de comoção geral consciente, os condutores do processo, prevalecendo-se do fato de que são também os dominadores monopolísticos dos canais de informação e debate, lançam a culpa de tudo na própria “sociedade injusta” e oferecem, para os males que eles mesmos criaram, a panacéia de transformações sociais ainda mais profundas, reivindicando o indispensável acréscimo de poder sem o qual -- lamentam informar -- não será possível realizá-las. A máquina da destruição alimenta-se de seus próprios dejetos, crescendo até o ponto em que, vitoriosa a nova ordem, a criminalidade avulsa já não seja necessária e a violência infanto-juvenil possa ser absorvida na máquina estatal revolucionária sob a forma de uma “Guarda Vermelha” ou de uma “Organização da Juventude Cubana”.

Por isso, quando parentes de vítimas da criminalidade infanto-juvenil solicitam a atenção de um político, na esperança de que intervenha contra um estado de coisas intolerável, é da maior prudência perguntar antes se o referido não deve sua carreira, precisamente, ao fomento desse estado de coisas. O direito de voto aos 16 anos e a concomitante inimputabilidade penal, por exemplo, não são peças avulsas, que se possam separar à vontade: são engrenagens solidárias de uma complexa e trabalhosa engenharia do caos. Quem se empenhou em construir essa obra magna não há de querer desmontá-la só porque a isso o convocam, entre lágrimas, umas quantas famílias sofredoras politicamente irrelevantes. Quanto às vítimas inocentes, ele pode dizer em favor delas as duas ou três palavrinhas de praxe, diante das câmeras, mas no fundo seu coração repousa tranqüilo, confiante na máxima de Bertolt Brecht, súmula da moral revolucionária: “Quanto mais inocentes eram, tanto mais mereciam morrer.”

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Não deixem de ler “Cadernos da Liberdade” de Sérgio Augusto de Avelar Coutinho. Está fora das livrarias, mas pode ser encomendado pelo e-mail [email protected].

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031130zh.htm

Engordando o porco

Olavo de CarvalhoZero Hora, 30 de novembro de 2003

 

Consciente de que as nossas classes empresariais são incapazes de enxergar o mundo exceto sob a ótica de um sonso economicismo, a liderança esquerdista tem conseguido fazer delas instrumentos prestativos para a implantação de uma ditadura comunista neste país.

Os mais tolos e servis são justamente os empresários inflados de pretensões intelectuais, que leram uns verbetes do Dicionário de Política de Norberto Bobbio e já saem afagando seus próprios ouvidos com a recitação pomposa dos termos recém-aprendidos -- ética, sociedade civil, controle externo, democracia participativa, etc. --, cujo alcance estratégico nem de longe percebem, pois para isso precisariam ter estudado muito Antonio Gramsci depois de adquirir a sólida base marxista-leninista necessária para saber do que ele está falando.

Ouvem dizer, por exemplo, que para acabar com a corrupção o único remédio é o “controle externo” da polícia e do judiciário pela “sociedade civil organizada”. Iludidos pelo valor nominal das expressões, sem saber que são termos técnicos do vocabulário gramsciano no qual têm uma carga semântica muito precisa, diferente do que as palavras sugerem na acepção geral, chegam quase às lágrimas ante a imagem rósea que nelas se parece anunciar, e prestam-se por isso a colaborar na empreitada revolucionária como se estivessem lutando por seus mais viscerais interesses. Um grupo deles, totalizando a quarta parte do PNB, já pôs tudo a serviço da realização de tão sublimes ideais.

Quem tenha estudado Gramsci, no entanto, sabe que “sociedade civil organizada” quer dizer apenas o Partido, gigantescamente ampliado até perder sua identidade aparente, espalhado por meio de seus agentes até os setores mais periféricos da vida social, e transformado portanto -- nos termos do próprio Gramsci -- “num poder invisível e onipresente”, habilitado a dominar a sociedade com a força ao mesmo tempo avassaladora e imperceptível “de um imperativo categórico, de um mandamento divino” (sic). É a

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completa ditadura do Partido, não imposta de cima para baixo por um decreto autoritário explícito que arriscaria suscitar resistências, mas injetada aos poucos nas veias da sociedade, como uma droga alucinógena que a própria vítima acabará por exigir em doses cada vez maiores. Quem quer que, à luz dos ensinamentos gramscianos, observe a prática petista no dia a dia, verá que ela se orienta pelo sentido originário que esses termos têm em Gramsci, e não pela segunda camada de significados postiços, criada para fins de auto-intoxicação de idiotas úteis. Que estes, pelo caminho, recebam o estímulo ocasional e passageiro de algumas vantagens menores, é coisa que nada tem de estranho: ninguém mata o porco antes de engordá-lo.

E a proposta que acolhem não quer o “controle externo” só da polícia e do judiciário, mas do legislativo, dos ministérios, das empresas, das entidades religiosas e educacionais, dos órgãos assistenciais e da mídia. Nunca palavras tão doces e atraentes foram usadas para encobrir uma realidade tão brutal e hedionda. Nunca uma tirania comunista foi oferecida com embalagem tão vistosa, com aparência tão inofensiva. E o empresariado, com típica auto-ilusão nouveau riche, compra tudo. Compra e paga.

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PS – Se você quer compreender um pouco mais da estratégia revolucionária de Antonio Gramsci, leia o livro de Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, “Cadernos da Liberdade”. Está fora das livrarias, mas pode ser encomendado pelo e-mail [email protected].

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031204jt.htm

Três notinhas

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 4 de dezembro de 2003

 

Ninguém é mais odiado que o descobridor de uma verdade cujo tempo ainda não chegou. Não lembro quem disse isso, mas é uma observação profunda. Vejam por exemplo os chimpanzés. Um deles descobre um novo reservatório de bananas, e imediatamente cai em descrédito, vira um pária. Só quando a localização do tesouro se torna de domínio público é que o infeliz recobra seus direitos símios. O fenômeno, observado milhares de vezes pelos etologistas, repete-se igual na comunidade humana, onde, na maior parte dos casos, a veracidade intrínseca das doutrinas importa menos do que a aceitação popular que as transfigura em forças historicamente atuantes. Uma “história sociológica das idéias” é, nesse sentido, uma história dos pensamentos humanos compreendidos à luz de sua semelhança com os dos chimpanzés.

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O “historicismo absoluto” de Antonio Gramsci, no qual o próprio conceito de veracidade intrínseca é sacrificado à onipotência da difusão das idéias enquanto fatores de “transformação da sociedade”, equivale literalmente, sob esse aspecto, à completa redução da inteligência humana à escala de seu correspondente simiesco. Daí o sucesso da filosofia gramsciana no país da macaquice intelectual.

Não digo isso com nenhuma intenção de gracejo.

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Quando Pol-Pot matou dois milhões de pessoas no Camboja, intelectuais iluminados como Noam Chomsky acharam que isso era um sacrifício doloroso (sobretudo para a alma sensível do próprio Pol-Pot, é claro), mas necessário para libertar o povo cambojano da opressão e do obscurantismo.

Infelizmente, o zelo e a dedicação do ex-governante comunista a essa causa piedosa não surtiram os efeitos desejados. Passadas mais de três décadas, os cambojanos, malgrado a drástica diminuição do seu número, continuam com problemas. Só para dar um exemplo, 65 por cento deles não sabem ler. Entre as mulheres, 78 por cento. Essas cifras podem impressionar, mas é inegável que seriam mais altas se o destino cruel não tivesse abortado o projeto polpotiano de eliminar o analfabetismo por meio da eliminação dos analfabetos.

Os americanos, porém, frios e insensíveis a tão evidentes méritos do extinto regime comunista do Camboja, continuam interferindo nos assuntos internos da pobre nação, sem o mínimo respeito pela sua soberania. Não tendo mais o que inventar para dar asas à sua incontida prepotência imperialista, resolveram agora juntar dinheiro de doadores particulares para espalhar por aquele país bibliotecas e laboratórios de informática, naturalmente repletos de sórdida propaganda capitalista, como os nomes de editoras de livros e as marcas das fábricas de computadores made in USA.

Sei que você não é disso, mas se quiser colaborar com mais essa trama pérfida do grande capital, escreva para [email protected].

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Demonizado, achincalhado sem direito de defesa, acusado de todos os males reais e imaginários que se abateram sobre regiões que jamais o conheceram, o liberalismo -- para não falar do conservadorismo -- foi totalmente excluído dos debates públicos neste país, onde a “socialdemocracia”, seja a tucana ou a da “ala moderada” do PT, representa hoje o máximo de direitismo permitido.

Um candidato que advogue o corte dos impostos, a primazia da livre empresa, a redução da órbita de influência do Estado, a supressão de “programas sociais” dispendiosos e inúteis, o combate à hegemonia cultural esquerdista na mídia, o ensino da moral religiosa nas escolas ou desarmamento unilateral dos bandidos tornou-se, em qualquer eleição municipal, estadual ou federal brasileira, um personagem tão deslocado e improvável quanto um

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brontossauro na Lagoa Rodrigo de Freitas, tão insultuoso e inaceitável ao ambiente em torno quanto um rabino ortodoxo num baile gay.

Os poucos liberais e conservadores que restam na cena política esforçam-se para garantir uma sobrevivência humilhante, cingindo-se a críticas de detalhe que evitem todo combate ideológico frontal, isto quando não se esforçam para posar de bons meninos, copiando, nas idéias e nas palavras, o figurino “politicamente correto” de praxe. O único resultado que obtêm com isso é camuflar o esquerdismo revolucionário das idéias da moda, fazendo-as passar por verdades universais supra-ideológicas e ajudando a marginalizar como “fanático de direita” quem quer que se aventure a contestá-las.

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A universidade do ministro Buarque

 

Olavo de CarvalhoO Globo, 6 de dezembro de 2003

 

Os brasileiros não fazem muita questão de apreender o significado das palavras, mas, em compensação, são hipersensíveis ao tom, à ênfase, ao pathos emocional com que são pronunciadas. Julgando tudo por esse critério auditivo ou epidérmico, quase sempre chegam a conclusões que são a inversão simétrica da realidade.

O exemplo desta semana vem-nos do sr. ministro da Educação, Cristovam Buarque, o qual, por jamais fazer uso daquela retórica de açougueiro tão característica do sr. João Pedro Stedile, é tido como um primor de equilíbrio e moderação, como um democrata avesso a radicalismos e truculências. Mesmo aqueles que o desprezam não vêem nele senão um discursador inócuo, o equivalente intelectual do placebo, ou, para não sairmos dos domínios da farmacopéia, o genérico do Conselheiro Acácio.

Para vocês verem que nem sempre o estilo é o homem, essa doce criatura acaba de confessar em público uma das intenções mais brutais e prepotentes que já passaram por um coração de político neste país. Num recente seminário em Brasília, ele disse que a universidade brasileira deve inspirar-se no radicalismo do MST e tornar-se uma máquina de guerra ideológica, “uma ameaça” contra os “conservadores”. Os jornalistas que o ouviram entenderam-no perfeitamente bem, mas, como torcedores petistas e zeladores da imagem convencional do sr. Buarque, não desejaram reconhecer nas suas palavras o seu óbvio sentido de pregação totalitária e preferiram dar a impressão de que ele não fizera senão um

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apelo a que as universidades cumprissem seu papel normal de espaço aberto para o confronto das idéias. Com isso, deram à proposta do ministro a eficácia letal de uma mensagem cifrada, destinada a ser compreendida somente pelo círculo interno dos revolucionários, incumbidos da realização do projeto, sem despertar suspeitas no âmbito mais vasto da opinião pública, isto é, daqueles que um dia hão de arcar com as conseqüências do projeto realizado. Mas, quer o público o perceba ou não, a livre discussão das idéias na universidade é exatamente o contrário do que o ministro propôs. Uma instituição que se abre democraticamente a todas as correntes de opinião não pode, ao mesmo tempo, cerrar fileiras contra uma delas, muito menos fazê-lo ao ponto de tornar-se, para ela, “uma ameaça”. E nesse ponto o sr. Buarque não poderia ter sido mais claro. Ele não disse que deseja um confronto, dentro da academia, entre os conservadores e seus adversários, esquerdistas, progressistas ou como se queira denominá-los. Ele disse, sem qualquer atenuação ou ambigüidade, que “a” academia, como um todo, deve investir com a força unificada de um bloco ideológico contra os conservadores, e fazê-lo com a “radicalidade” do MST. Qual o espaço concedido às idéias “conservadoras” no MST? Tal é exatamente a quota de liberdade que elas devem desfrutar na universidade ideal do sr. Buarque.

Não sei bem o que o ministro quer dizer com “conservadores”. O que quer que eles sejam, uma coisa é clara: no entender de S. Excia., o lugar deles não é na universidade, ensinando, expondo e debatendo: é fora delas, recebendo os ataques que vêm de dentro. Seria o caso de perguntar: mas onde é que eles estão agora, senão precisamente aí? Alguém neste país ignora que o pensamento conservador e liberal já está excluído do nosso ambiente universitário? Alguém ainda não foi informado de que os autores mais estudados e badalados no meio acadêmico brasileiro são Marx e Gramsci, enquanto os pensadores antimarxistas importantes, um Russel Kirk, um von Mises, um Irving Kristol e todos os demais na mesma linha são sistematicamente omitidos? Alguém é tão inculto que não saiba disso, ou cínico ao ponto de fingir que não sabe? O sr. ministro é uma coisa ou a outra. Para ele, os poucos conservadores e liberais que restam na academia, marginalizados, acossados, intimidados, já são em número excessivo, o bastante para levá-lo a caracterizar o pensamento brasileiro como “profundamente conservador”. Como se houvesse, nas nossas universidades, um festival de apologias do capitalismo em vez de um florescimento canceroso de homenagens a Che Guevara, de revisionismos históricos comunistas, de teologias e filosofias “da libertação”, de “direitos alternativos” e de mil e um outros marxismos recauchutados. Como se eu próprio, todas as vezes que compareci a uma universidade pública, a convite extra-oficial e quase confidencial de grupos minoritários, não fosse sempre advertido de que, com a minha pessoa, um discurso antimarxista entrava ali pela primeira vez em décadas -- e pela porta dos fundos.

O ministro não sabe de nada, ou faz que não sabe? É um ignorante ou um cínico? Não tenho a menor idéia, mas um homem que, para impor sua concepção totalitária, despreza a esse ponto as evidências mais gritantes, não é decerto um “moderado” nem um Conselheiro Acácio: é um sectário perigoso, um fanático cego, um militante intoxicado de ideologia, que, em nome das ambições do seu partido, se permite pisotear sem o menor escrúpulo de consciência os deveres da honestidade intelectual que, pelo cargo que ocupa, lhe incumbiria representar em grau eminente.

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Nunca, ao longo da história do Brasil, uma concepção tão policial e ditatorial da universidade foi defendida de maneira tão explícita. Nunca uma doutrina educacional tão abjeta e hedionda foi advogada em voz alta por uma autoridade federal. Até o público que a aplaudiu de perto, aliás, foi apropriado para a ocasião: pois ladeavam o sr. Buarque, na oportunidade, o ministro da Educação de Cuba, país onde a redução da universidade à condição de arma de guerra ideológica já não é um ideal e sim um fato, e o do Sudão, tirania escravagista e genocida empenhada na sistemática matança de cristãos. O discurso do sr. Buarque não podia ter tido platéia mais apropriada.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031213globo.htm

Censura planetária

Olavo de CarvalhoO Globo, 13 de dezembro de 2003

 

Até hoje, a internet esteve à mercê da liberdade de mercado, e por isso até os piores inimigos do mercado sempre puderam usá-la para o que bem entendessem. No mundo todo, os sites comunistas, socialistas, anti-americanos e anti-israelenses ocupam espaço bem maior que seus concorrentes liberais, conservadores, cristãos, sionistas etc. O motivo é óbvio: aqueles têm mais dinheiro -- da Comunidade Européia, da ONU, das fundações Ford e Rockefeller, do sr. George Soros e do narcotráfico, entre outras fontes -- e estão organizados em escala global, não encontrando resistências senão locais e esporádicas, sustentadas a duras penas por idealistas quixotescos em estado de inadimplência.

Mas a superioridade esmagadora não contenta os apóstolos do “mundo melhor”. Eles querem o controle absoluto, o poder de censura total. Esse é o projeto que os governos da China, da África do Sul e do Brasil (duas ditaduras comunistas e uma ex-democracia em acesso de socialização galopante) vão apresentar na “World Summit on the Information Society”, a realizar-se na Tunísia em 2005. Se esses loucos não forem detidos no seu intuito macabro, os dias da liberdade de discussão na internet estarão contados.

A desculpa é que a internet está “nas mãos de poucos” e é preciso dar um jeito nisso. O que eles não esclarecem é que esses poucos são eles próprios. A democracia com que sonham é a oficialização da sua hegemonia, transfigurada em domínio universal.

Como o governo Bush está contra o projeto, é claro que o estoque de ódio anti-americano na alma do mundo será investido maciçamente em campanhas pró-controle, de modo que em breve estreará nas ruas o mais explicitamente orwelliano dos espetáculos: massas de militantes enfurecidos exigindo censura em nome da democracia.

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Não que eles odeiem a liberdade. Eles a amam. Amam-na tanto que a querem toda para si próprios, sem nada para mais ninguém. Fidel Castro, por exemplo, jamais teve a sua liberdade cerceada pelo governo cubano. No Brasil, todos os jornalistas desfrutam amplamente da liberdade de ocultar ao público a existência do onipotente “Foro de São Paulo”, coordenação estratégica do comunismo latino-americano. Na África do Sul, nunca um agente do governo foi impedido de saquear e incendiar fazendas. E na China nenhum pequeno funcionário, desejando prender, torturar e matar cristãos, teve jamais suas mãos atadas pela autoridade superior.

Não pensem que na formulação verbal que dou a esses fatos haja algum intuito de paradoxo. Ela é exata e literal. O paradoxo está nos fatos mesmos, produzidos pela dialética da praxis revolucionária. Afinal, perguntava o próprio Hegel, que é a dialética senão o espírito de contradição sistematizado? Ao transpor-se dos domínios da abstração filosófica para o campo da ação política, a dialética de Hegel e Marx não pode produzir senão um “mundo às avessas”, título aliás de uma coluna assinada na internet pelo ultradialético dr. Emir Sader, aquele mesmo segundo o qual eu não existo e ele por sua vez é um ens realissimum.

Em escala menor, a total inversão da realidade pode ser observada, por exemplo, no noticiário brasileiro sobre a guerra cultural nos EUA. Há quarenta anos a esquerda domina as universidades americanas por meio do terrorismo intelectual, demitindo, boicotando e suprimindo qualquer oposição conservadora. O fato está documentado em centenas de livros e artigos (v. um mostruário aqui), mas nem uma só palavra a respeito saiu jamais na nossa mídia. Então os conservadores lançaram uma campanha pró-liberdade de expressão nas universidades (Academic Bill of Rights), e publicaram um manifesto contra os ditadores esquerdistas do meio acadêmico. Tanto bastou para que estes fossem pranteados na mídia tupiniquim como vítimas de neomacartismo. A classe jornalística deste país já perdeu os últimos escrúpulos de veracidade e está possuída pelo espírito de torcida. A coluna do dr. Sader tornou-se a quintessência do jornalismo nacional.

Não só do jornalismo. “Às avessas” é expressão perfeita para descrever um presidente que, após alardear o combate à fome como prioridade máxima, sai distribuindo dinheiro para o comunismo internacional enquanto o PIB desce a zero e o número de desempregados sobe para quatorze milhões. Aplica-se também com precisão a um governo que promete eliminar a violência desarmando as vítimas, ou combater o narcotráfico por meio do cultivo de relações amistosas entre os ministros da República e o comandante das Farc, Raul Reyes. E é a imagem fidedigna de uma nação persuadida de que o melhor a fazer pelos agricultores pobres é deixá-los atear fogo às fazendas produtivas e depois alimentá-los com cestas básicas pagas pelos contribuintes.

Se vocês querem entender esse e outros aspectos da teratologia brasileira, têm de investigar como eles se originaram. Um bom começo é ler os “Cadernos da Liberdade” de Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, estudo meticuloso de como a “revolução cultural” gramsciana foi reduzindo a consciência nacional ao presente estado de apatetada e dócil estupidez. O livro pode ser encomendado pelo e-mail [email protected].

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http://www.olavodecarvalho.org/semana/031214zh.htm

Reclamação inútil

Olavo de CarvalhoZero Hora, 14 de dezembro de 2003

 

Meu falecido amigo José Carlos Bardawil, que foi chefe da sucursal da IstoÉ em Brasília, conta nas suas memórias “O Repórter e o Poder” que, dentre seus colegas de ofício, os únicos que não temiam perda de emprego eram os comunistas. Eles gabavam-se, com razão, de dominar o mercado de trabalho. A intimidade, a quase identidade de jornalismo e comunismo neste país pode ser avaliada por uma publicação oficial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, “Jornalismo 1930-1980”, onde mal se distingue entre a história da profissão e a história do PCB.

Com a dissolução da velha disciplina partidária e a adoção de estratégias flexíveis inspiradas em Antonio Gramsci, o poder do movimento comunista sobre a imprensa nacional cresceu mais ainda, ao ponto de, em 1993, a confissão de dirigentes da CUT de que a entidade tinha oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos (mais que várias empresas jornalísticas somadas) já não provocar nenhum escândalo. Hoje em dia o povo está completamente domado: ninguém mais vê nada de imoral ou alarmante em que o governo federal crie uma agência de autopropaganda maior que o velho DIP da ditadura Vargas. Em compensação, a simples presença de um ou dois anti-esquerdistas nas páginas de opinião de qualquer jornal ou revista é denunciada como sinal apocalíptico de que “a direita se reorganiza”. O cinismo dessas denúncias é ilimitado. Meu próprio site www.midiasemmascara.org, publicação de fundo de quintal, mantida à custa de cortes no meu orçamento doméstico e do trabalho gratuito de abnegados comentaristas excluídos da “grande mídia”, é continuamente atacado como orgão do “grande capital”, enquanto o gigantesco indymedia, site de propaganda anti-americana com sedes em uma centena de capitais do mundo, posa de nanico e “independente”.

A situação absurda, imoral, calamitosa, já não desperta porém a mínima inquietação no público, que, bem ao contrário, não esconde sua má vontade de ouvir qualquer palavra, por breve que seja, contra o estado de coisas, isto quando não diagnostica a reclamação como sintoma de paranóia.

Por isso é inútil protestar aqui, ou em qualquer outro lugar, contra a demissão do economista Roberto Fendt da revista “Conjuntura Econômica”, da Fundação Getúlio Vargas, em cuja edição de outubro ele havia publicado matéria de capa sobre o banquete de cargos oficiais oferecido pelo governo federal aos militantes petistas. Ouvi Roberto Fendt falar em vários “Fóruns da Liberdade” do Instituto de Estudos Empresariais do Rio Grande,

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e o considero um dos poucos brasileiros que têm algo a dizer. Só que, precisamente, esse algo está na lista dos assuntos proibidos. Raquítico e manietado, o jornalismo de oposição move-se hoje entre limites estreitos, devendo sobretudo ater-se às opiniões gerais, abstratas e doutrinárias, sem tocar nos fatos. Fendt pagou o preço por violar essa regra, mas quem se incomoda com isso? Anestesiado e emburrecido por quarenta anos de “revolução cultural”, o país está pronto para achar que o preço foi justo. Afinal, passou o tempo em que o jornalista era um transmissor de fatos. Hoje ele é um “agente de transformação social”, e ninguém mais apropriado para pagar seus serviços nessa área -- ou demiti-lo quando não os presta a contento -- do que o grande Partido-Estado que decide os rumos da vida nacional.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218fsp.htm

A grandeza de Josef Stálin

Olavo de CarvalhoFolha de S.Paulo, 18 de dezembro de 2003

 

A Segunda Guerra Mundial foi preparada e provocada deliberadamente pelo governo soviético desde a década de 20, naquilo que constituiu talvez o mais ambicioso, complexo e bem-sucedido plano estratégico de toda a história humana. O próprio surgimento do nazismo foi uma etapa intermediária, não de todo prevista no esquema originário, mas rapidamente assimilada para dar mais solidez aos resultados finais.Os documentos dos arquivos de Moscou reunidos pelos historiadores russos Yuri Dyakov e Tatyana Bushuyeva em "The Red Army and the Wehrmacht" (Prometheus Books, 1995) não permitem mais fugir a essa conclusão.

Reduzida à miséria por indenizações escorchantes e forçada pelo Tratado de Versalhes a se desarmar, a Alemanha sabia que, para ter seu Exército de volta, precisaria reconstruí-lo em segredo. Mas burlar a fiscalização das potências ocidentais era impossível. A ajuda só poderia vir da URSS.

Enquanto isso, Stálin, descrente dos movimentos revolucionários europeus, pensava em impor o comunismo ao Ocidente por meio da ocupação militar. Nessa perspectiva, a Alemanha surgia naturalmente como a ponta-de-lança ideal para debilitar o adversário antes de um ataque soviético. Foi para isso que Stálin investiu pesadamente no rearmamento secreto da Alemanha e cedeu parte do território soviético para que aí as tropas alemãs se reestruturassem, longe da vigilância franco-britânica. De 1922 até 1939, a URSS militarizou ilegalmente a Alemanha com o propósito consciente de desencadear uma guerra de dimensões continentais. A Segunda Guerra foi, de ponta a ponta, criação de Stálin.

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O sucesso do nazismo não modificou o plano, antes o reforçou. Stálin via o nazismo como um movimento anárquico, bom para gerar confusão, mas incapaz de criar um poder estável. A ascensão de Hitler era um complemento político e publicitário perfeito para o papel destinado à Alemanha no campo militar. Se o Exército alemão iria arrombar as portas do Ocidente para o ingresso das tropas soviéticas, a agitação nazista constituiria, na expressão do próprio Stálin, "o navio quebra-gelo" da operação. Debilitando a confiança européia nas democracias, espalhando o caos e o pânico, o nazismo criaria as condições psicossociais necessárias para que o comunismo, trazido nas pontas das baionetas soviéticas com o apoio dos movimentos comunistas locais, aparecesse como um remédio salvador.

Para realizar o plano, Stálin tinha de agir com prudente e fino maquiavelismo. Precisava fortalecer a Alemanha no presente, para precipitá-la num desastre no futuro, e precisava cortejar o governo nazista ao mesmo tempo em que atiçava contra ele as potências ocidentais. Tarimbado na práxis dialética, ele conduziu com espantosa precisão essa política de mão dupla na qual reside a explicação lógica de certas contradições de superfície que na época desorientaram e escandalizaram os militantes mais ingênuos (como as sutilezas da estratégia do sr. José Dirceu escandalizam e desorientam a sra. Heloísa Helena).

Por exemplo, ele promovia uma intensa campanha antinazista na França, ao mesmo em tempo que ajudava a Alemanha a se militarizar, organizava o intercâmbio de informações e prisioneiros entre os serviços secretos da URSS e da Alemanha para liquidar as oposições internas nos dois países e recusava qualquer ajuda substantiva aos comunistas alemães, permitindo, com um sorriso cínico, que fossem esmagados pelas tropas de assalto nazistas. A conduta aparentemente paradoxal da URSS na Guerra Civil Espanhola também foi calculada dentro da mesma concepção estratégica.

Mobilizando batalhões de idiotas úteis nas classes intelectuais do Ocidente, a espetaculosa ostentação estalinista de antinazismo -cujos ecos ainda se ouvem nos discursos da esquerda brasileira, última crente fiel nos mitos dos anos 30- serviu para camuflar a militarização soviética da Alemanha, mas também para jogar o Ocidente contra um inimigo virtual que, ao mesmo tempo, estava sendo jogado contra o Ocidente.

Hitler, que até então era um peão no tabuleiro de Stálin, percebeu o ardil e decidiu virar a mesa, invadindo a URSS. Mas Stálin soube tirar proveito do imprevisto, mudando rapidamente a tônica da propaganda comunista mundial do pacifismo para o belicismo e antecipando a transformação, prevista para muito depois, do antinazismo de fachada em antinazismo armado. Malgrado o erro de cálculo logo corrigido, o plano deu certo: a Alemanha fez seu papel de navio quebra-gelo, foi a pique, e a URSS ascendeu à posição de segunda potência mundial dominante, ocupando militarmente metade da Europa e aí instalando o regime comunista.

Na escala da concepção estalinista, o que representam 40 milhões de mortos, o Holocausto, nações inteiras varridas do mapa, culturas destruídas, loucura e perdição por toda parte? Segundo Trótski, o carro da história esmaga as flores do caminho. Lênin ponderava que sem quebrar ovos não se pode fazer uma omelete. Flores ou ovos, o sr. Le Pen, mais

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sintético, resumiria o caso numa palavra: "Detalhes". Apenas detalhes. Nada que possa invalidar uma grandiosa obra de engenharia histórica, não é mesmo?

Por ter colaborado nesse empreendimento, o sr. Apolônio de Carvalho foi, no entender do ministro Márcio Thomaz Bastos, um grande herói. Mas, se o miúdo servo de Stálin tem as proporções majestosas de um herói, o que teria sido o próprio Stálin? Um deus?

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm

A natureza do marxismo

Olavo de CarvalhoJornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003

 

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muito acima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui a totalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais, motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soa aos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partes contra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.

A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que  impõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.

Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento pode ser “sentido”

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e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem “princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.

Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” -- sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031220globo.htm

Natal proibido

Olavo de CarvalhoO Globo, 20 de dezembro de 2003

 

Embora 92 por cento dos americanos celebrem o Natal, qualquer festejo natalino está proibido nas escolas públicas dos EUA. Mesmo a simples menção verbal ao nascimento de N. S. Jesus Cristo deve aí ser substituída por alusões neutras a “festas”. Infrações são

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punidas com suspensão ou expulsão, para os alunos, e demissão, para os professores. O nome de Jesus, qualquer prece cristã e até entrar no recinto com uma Bíblia embaixo do braço estão proibidos o ano inteiro em muitas outras repartições oficiais. São considerados violações da “separação Igreja-Estado”, preceito que não está na Constituição mas que a facção mais esquerdista do Partido Democrata conseguiu impor ao Congresso na era Clinton, cavando um abismo entre os costumes populares e a regra oficial.

A previsível reação de incredulidade do leitor brasileiro ante essas notícias provém de uma só causa: o Brasil está separado dos EUA -- e, a rigor, do resto do mundo – por um muro-de-Berlim cognitivo cada vez mais impossível de saltar.

A mídia brasileira em peso, entre lágrimas, descreve os muçulmanos nos EUA como um grupo perseguido e acuado. Mas durante o ano inteiro de 2002 as queixas de discriminação anti-islâmica registradas -- quase todas de meros suspeitos de terrorismo interrogados pela polícia e liberados, e nenhuma com denúncia de agressão física, demissão de emprego, privação da liberdade de palavra, etc. -- foram pouco mais de seiscentas. Para você fazer uma idéia do que isso significa, seiscentos é o número de advogados voluntários que trabalham para uma só associação cristã de direitos humanos e mal dão conta dos casos graves de discriminação anticristã que lhes chegam diariamente.

As amostras que tenho colhido na imprensa americana sobem a centenas de casos e estão à disposição dos leitores que me escrevam a respeito. Mais ainda são as que constam do best seller “Persecution” do advogado David Limbaugh. Alguns exemplos:        

Cristãos indicados para altos cargos no governo federal têm sido invariavelmente vetados pelo Congresso, sob a alegação de que sua presença atenta contra a “separação de Igreja e Estado”.

Ron Greer, pastor de uma comunidade evangélica em Madison, Wisconsin, teve sua pregação interrompida por gritos que vinham de fora da igreja. Foi averiguar e deparou com uma multidão de manifestantes anticristãos que, em aberta incitação ao genocídio, gritavam: “Tragam os leões!”

Mildred Rosario, uma professora do Bronx, fez uma prece junto com a classe pela morte de um dos alunos, e foi demitida. O instrutor Simpson Gray perdeu o emprego por entrar na mesma escola com uma Bíblia.  

Numa escola elementar de New Jersey, um menino foi punido por dar a seus colegas uns lápis com a inscrição “Jesus ama as criancinhas”. A Côrte de Apelação local deu razão à escola.

Em St. Louis, Missouri, Raymond Raines, aluno do quarto ano primário, rezou em voz alta antes do almoço na Waring Elementary School. Ganhou uma semana de suspensão.

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Num programa da Nation Public Radio (estação do governo), o comentarista Andrei Codrescu exclamou: “A evaporação de quatro milhões de pessoas que acreditam nesse lixo (o cristianismo) faria do mundo um lugar melhor.”

A Biblioteca Pública de Meridien, Conn., retirou de suas paredes todas as imagens de Jesus Cristo, julgando-as ofensivas à comunidade islâmica.

No condado de Galveston, Texas, o juiz distrital Samuel B. Kent colocou policiais nas escolas públicas para que prendessem -- isto mesmo: prendessem -- qualquer estudante que violasse a “separação Igreja-Estado” pronunciando o nome de Jesus.

Em inumeráveis mesquitas americanas, na TV e nas ruas, os imams vociferam impunemente apelos à guerra mundial contra o “Grande Satã”, mas o general William G. Boykin perdeu seu posto de comando por ter dito que a luta contra o terrorismo era uma guerra contra a falsa religião. Em muitas escolas públicas da Califórnia, a prática da religião islâmica é obrigatória, enquanto a da cristã é proibida; o aluno que diga uma palavra contra o Islam é forçado a submeter-se a estágio de “reeducação da sensitividade”, que inclui recitações do Corão.

No Canadá é pior ainda. O pastor John Hagee mostrou na estação CTS de Toronto um vídeo no qual imams muçulmanos, em plena América, pregavam abertamente a violência contra os judeus. Foi punido -- ele, não os imams -- por “violar o código de ética” da emissora. Mark Harding, um canadense acusado de falar contra o Islam, foi condenado a 340 horas de serviço comunitário numa entidade muçulmana, incluindo leitura obrigatória de propaganda pró-islâmica.

Nada disso foi jamais noticiado na mídia nacional. Os EUA que o leitor brasileiro imagina conhecer são uma entidade imaginária, diversa e às vezes inversa da realidade.

Enquanto isso, a matança de cristãos no mundo islâmico sobe a cifras assustadoras, sem que nenhum jornalista do Brasil, país nominalmente cristão, sinta o menor repuxão na consciência por ocultar do público esse genocídio sem fim. Paul Marshall, autor de Religious Freedom in the World: A Global Survey, informa que “desde que o Front Nacional Islâmico tomou o poder nos anos 80, dois milhões de sudaneses cristãos e animistas foram assassinados.” Na Arábia Saudita a religião cristã é formalmente proibida, enquanto no Irã só pode ser praticada em recinto fechado.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031227globo.htm

O orgulho do fracasso

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Olavo de CarvalhoO Globo, 27 de dezembro de 2003

 

“O world, thou choosest not the better part!”

(George Santayana)

Língua, religião e alta cultura são os únicos componentes de uma nação que podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração histórica. São os valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e não somente ao povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e admirado por outros povos. A economia e as instituições são apenas o suporte, local e temporário, de que a nação se utiliza para seguir vivendo enquanto gera os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir.

Mas, se esses elementos podem servir à humanidade, é porque serviram eminentemente ao povo que os criou; e lhe serviram porque não traduziam somente suas preferências e idiossincrasias, e sim uma adaptação feliz à ordem do real. A essa adaptação chamamos “veracidade” -- um valor supralocal e transportável por excelência. As criações de um povo podem servir a outros povos porque elas trazem em si uma veracidade, uma compreensão da realidade -- sobretudo da realidade humana --que vale para além de toda condição histórica e étnica determinada.

Por isso esses elementos, os mais distantes de todo interesse econômico, são as únicas garantias do êxito no campo material e prático. Todo povo se esforça para dominar o ambiente material. Se só alguns alcançam o sucesso, a diferença, como demonstrou Thomas Sowell em Conquests and Cultures, reside principalmente no “capital cultural”, na capacidade intelectual acumulada que a mera luta pela vida não dá, que só se desenvolve na prática da língua, da religião e da alta cultura.

Nenhum povo ascendeu ao primado econômico e político para somente depois se dedicar a interesses superiores. O inverso é que é verdadeiro: a afirmação das capacidades nacionais naqueles três domínios antecede as realizações político-econômicas.

A França foi o centro cultural da Europa muito antes das pompas de Luís XIV. Os ingleses, antes de se apoderar dos sete mares, foram os supremos fornecedores de santos e eruditos para a Igreja. A Alemanha foi o foco irradiador da Reforma e em seguida o centro intelectual do mundo -- com Kant, Hegel e Schelling -- antes mesmo de constituir-se como nação. Os EUA tinham três séculos de religião devota e de valiosa cultura literária e filosófica antes de lançar-se à aventura industrial que os elevou ao cume da prosperidade. Os escandinavos tiveram santos, filósofos e poetas antes do carvão e do aço. O poder islâmico, então, foi de alto a baixo criatura da religião -- religião que seria inconcebível se não tivesse encontrado, como legado da tradição poética, a língua poderosa e sutil em que se registraram os versículos do Corão. E não é nada alheio ao destino de espanhóis e portugueses, rapidamente afastados do centro para a periferia da História, o fato de terem

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alcançado o sucesso e a riqueza da noite para o dia, sem possuir uma força de iniciativa intelectual equiparável ao poder material conquistado.

A experiência dos milênios, no entanto, pode ser obscurecida até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que um povo de mentalidade estreita seja confirmado na sua ilusão materialista por uma filosofia mesquinha que tudo explique pelas causas econômicas. Acreditando que precisa resolver seus problemas materiais antes de cuidar do espírito, esse povo permanecerá espiritualmente rasteiro e nunca se tornará inteligente o bastante para acumular o capital cultural necessário à solução daqueles problemas.

O pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse povo. Todas as demais explicações alegadas -- a exploração estrangeira, a composição racial da população, o latifúndio, a índole autoritária ou rebelde dos brasileiros, os impostos ou a sonegação deles, a corrupção e mil e um erros que as oposições imputam aos governos presentes e estes aos governos passados -- são apenas subterfúgios com que uma intelectualidade provinciana e acanalhada foge a um confronto com a sua própria parcela de culpa no estado de coisas e evita dizer a um povo pueril a verdade que o tornaria adulto: que a língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro, a prosperidade depois.

As escolhas, dizia L. Szondi, fazem o destino. Escolhendo o imediato e o material acima de tudo, o povo brasileiro embotou sua inteligência, estreitou seu horizonte de consciência e condenou-se à ruína perpétua.

O desespero e a frustração causados pela longa sucessão de derrotas na luta contra males econômicos refratários a todo tratamento chegaram, nos últimos anos, ao ponto de fusão em que a soma de estímulos negativos produz, pavlovianamente, a inversão masoquista dos reflexos: a indolência intelectual de que nos envergonhávamos foi assumida como um mérito excelso, quase religioso, tradução do amor evangélico aos pobres no quadro da luta de classes. Não podendo conquistar o sucesso, instituímos o ufanismo do fracasso. Depois disso, que nos resta, senão abdicarmos de existir como nação e nos conformarmos com a condição de entreposto da ONU?