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Coletânea de Artigos de Olavo de Carvalho

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Artigos_Comentrios da semana_Arquivo 2001

http://www.olavodecarvalho.org/semana/arquivo_2001.htm

Comentrios da semanaarquivo 2001

A Histria, essa criminosaZero Hora, 30 de dezembro de 2001A mensagem que no veioO Globo, 29 de dezembro de 2001Um inimigo do povoO Globo, 22 de dezembro de 2001O pas mais burro do mundoZero Hora, 16 de dezembro de 2001Acaso extraordinrio O Globo, 15 de dezembro de 2001Extrema direita e extrema burriceO Globo, 8 de dezembro de 2001Os novos puritanosJornal da Tarde, 6 de dezembro de 2001Moral imoral Zero Hora, 2 de dezembro de 2001Lies de obviedadeGlobo, 1o. de dezembro de 2001Discpulos de Saramago Globo, 24 de novembro de 2001Descrdito da mdiapoca, 24 de novembro de 2001O rtulo e a cartolaZero Hora, 18 de novembro de 2001DiagnsticoO Globo, 17 de novembro de 2001CabeasO Globo, 10 de novembro de 2001Silncio geral Zero Hora, 4 de novembro de 2001 Fraude e inconscinciaO Globo, 3 de novembro de 2001Moral leninista29 de outubro de 2001Um novo Brasilpoca, 27 de outubro de 2001Trabalho de HrculesO Globo, 27 de outubro de 2001Duas denncias Jornal da Tarde, 25 de outubro de 2001Guerra de religio?poca, 20 de outubro de 2001Jesus e a pomba de StalinO Globo, 20 de outubro de 2001A desvantagem de verpoca, 13 de outubro de 2001007, Debi e LideO Globo, 13 de outubro de 2001Crtica social e HistriaJornal da Tarde, 11 de outubro de 2001A lgica do terrorismopoca, 6 de outubro de 2001Velhas feridasO Globo, 6 de outubro de 2001Trs pistas falsaspoca, 29 de setembro de 2001Os novos ditadoresO Globo, 29 de setembro de 2001A origem dos atentadospoca, 22 de setembro de 2001Pergunta de um desesperadoZero Hora, 23 de setembro de 2001

Casta de farsantesO Globo, 22 de setembro de 2001Ato de guerrapoca, 15 de setembro de 2001A realidade da fantasiaO Globo, 15 de setembro de 2001Fracasso memorvel Jornal da Tarde, 13 de setembro de 2001A hora do lobopoca, 8 de setembro de 2001Coelhos fantasmas O Globo, 8 de setembro de 2001Loucos e tontospoca, 1o de setembro de 2001Moral e genocdioO Globo, 1o de setembro de 2001Qual o crime?Jornal da Tarde, 30 de agosto de 2001Golpe de EstadoZero Hora, 26 de agosto de 2001Mutao sbitapoca, 25 de agosto de 2001A nova ordem nacionalO Globo, 25 de agosto de 2001Um livro que ningum verpoca, 18 de agosto de 2001Ver e ouvirO Globo, 18 de agosto de 2001Breve histria do machismoJornal da Tarde, 16 de agosto de 2001Rompendo o hbitopoca, 11 de agosto de 2001Em busca da justiaO Globo, 11 de agosto de 2001Esconde-escondepoca, 4 de agosto de 2001O poder de conhecerO Globo, 4 de agosto de 2001Os pedar da bicicretaJornal da Tarde, 2 de agosto de 2001Fora do universopoca, 28 de julho de 2001O homem-relgioO Globo, 28 de julho de 2001Benfeitor ignoradopoca, 21 de julho de 2001Gnsticos e revolucionriosO Globo, 21 de julho de 2001Auto-explicaopoca, 14 de julho de 2001O testemunho proibidoO Globo, 14 de julho de 2001Filsofos a granelpoca, 7 de julho de 2001Tentando enxergar O Globo, 7 de julho de 2001De volta academiaJornal da Tarde, 5 de julho de 2001Lgica e trapaapoca, 30 de junho de 2001Lgicas paradoxaisO Globo, 30 de junho de 2001Brincar de genocdiopoca, 23 de junho de 2001Da ignorncia loucuraO Globo, 23 de junho de 2001Os ricos no parasoJornal da Tarde, 21 de junho de 2001Entrevistando meu vizinhoZero Hora, 17 de junho de 2001Crescendo em silnciopoca, 16 de junho de 2001A transfigurao do desastreO Globo, 16 de junho de 2001Racismo, aqui e em Cubapoca, 9 de junho de 2001A mo direita da esquerdaO Globo, 9 de junho de 2001Honra ao mritoJornal da Tarde, 7 de junho de 2001Filhotes do genocdiopoca, 2 de maio de 2001 Nazismo de ctedraO Globo, 2 de maio de 2001Intelectuais orgnicos O Globo, 26 de maio de 2001 Refgio dos canalhas poca, 26 de maio de 2001Terrveis mames Jornal da Tarde, 24 de maio de 2001Embelezando as Farcpoca, 19 de maio de 2001Ainda a arte de escreverO Globo, 19 de maio de 2001Explicao teraputicapoca, 12 de maio de 2001 Mentiras que rendemO Globo, 12 de maio de 2001Lies de moralJornal da Tarde, 10 de maio de 2001Medindo as palavraspoca, 5 de maio de 2001 Traio sem fimO Globo, 5 de maio de 2001Despertando da hipnosepoca, 28 de abril de 2001 A vaca louca da histria nacionalO Globo, 28 de abril de 2001 O palanque e as chinelasJornal da Tarde, 26 de abril de 2001Que raio de nacionalismo esse?Zero Hora, 22 de abril de 2001 Transgnicos em Cubapoca, 21 de abril de 2001 O holocausto contnuoO Globo, 21 de abril de 2001 Censura, ontem e hojepoca, 14 de abril de 2001 Do frum ao jardimO Globo, 14 de abril de 2001Dica para os esquerdistasJornal da Tarde, 13 de abril de 2001Cincia e ideologiapoca, 8 de abril de 2001 Ainda a canalhiceO Globo, 7 de abril de 2001Lgica da canalhiceO Globo, 31 de maro de 2001 Entre a burrice e a vigaricepoca, 31 de maro de 2001 Do mito ideologiaJornal da Tarde, 29 de maro de 2001Frases e vidasZero Hora, 25 de maro de 2001O esprito da clandestinidadeO Globo, 24 de maro de 2001Confronto de ideologias?poca, 24 de maro de 2001O que desinformaopoca, 17 de maro de 2001 Eleio no galinheiroO Globo, 17 de maro de 2001 Regra de trsJornal da Tarde, 15 de maro de 2001 Destino e EstadoO Globo, 10 de maro de 2001O menino mimadopoca, 10 de maro de 2001 Lngua e nacionalismoO Globo, 3 de maro de 2001Sutilezas da fala brasileira poca, 3 de maro de 2001O anti-horizonte Jornal da Tarde, 1 de maro de 2001O tucano de duas cabeas

Os gurus do crimeO Globo, 24 de fevereiro de 2001Sugesto aos colegaspoca, 17 de fevereiro de 2001Cavalos mortos O Globo, 17 de fevereiro de 2001O escndalo do 'Cdigo 12'Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001O irracional superiorpoca, 10 de fevereiro de 2001

Motivos da filosofiaO Globo, 10 de fevereiro de 2001O rock do brasileiro doidopoca, 3 de fevereiro de 2001

Aprendendo a escreverO Globo, 3 de fevereiro de 2001

Sacerdcio do AnticristoJornal da Tarde, 1o de fevereiro de 2001

Propaganda e CircoZero Hora, 28 de janeiro de 2001

Testemunha solitria poca, 27 de janeiro de 2001

Doutrina DifusaO Globo, 27 de janeiro de 2001

Declarao de guerrapoca, 20 de janeiro de 2001

Zeno e o paralticoO Globo, 20 de janeiro de 2001Preldio ao suicdioJornal da Tarde, 18 de janeiro de 2001

Um frum especialZero Hora, 14 de janeiro de 2001

O leitor precavidopoca, 13 de janeiro de 2001

Mostrando servioO Globo, 13 de janeiro de 2001

Tortura e terrorismoJuzes e pop stars HYPERLINK "http://www.olavodecarvalho.org/semana/tortura.htm"

O Globo, 6 de janeiro de 2001

Lgica da moral HYPERLINK "http://www.olavodecarvalho.org/semana/juizes.htm"

poca, 6 de janeiro de 2001

Jornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001

http://www.olavodecarvalho.org/semana/logmoral.htmLgica da moralOlavo de CarvalhoJornal da Tarde, 4 de janeiro de 2001

Se h um princpio moral universal, aquele que, para abreviar, chamarei "princpio de autoria": cada um autor de seus atos. Esta obviedade suprema tem conseqncias que, embora sejam igualmente bvias, muitas vezes so negadas na prtica. A ocorrncia desse fenmeno assinala, nas pessoas envolvidas, uma conscincia moral frouxa e autocomplacente. Quem quer que negue implicitamente o princpio de autoria falseia toda a moralidade.

Mas, justamente porque as dedues lgicas no caso so bem fceis de fazer, e de fato se fazem quase que por instinto, evidente que o falseamento delas, quando ocorre, raramente se d por simples erro lgico, mas denota quase sempre, no autor do juzo, algum fundo falso. No por coincidncia, as pessoas moralmente frouxas so as que mais se apressam a emitir juzos morais severos com pouco conhecimento de causa. Invariavelmente, acabam caindo na negao do princpio de autoria, e assim revelam a imoralidade de suas intenes por trs de sua mscara de probidade. So pessoas que carregam por dentro a angstia difusa de culpas mal conscientizadas, das quais buscam aliviar-se mediante acusaes a terceiros. A poltica o campo preferencial de atuao desses falsos moralistas, porque em poltica sempre se pode falar de maneira ambgua e irresponsvel, procurando por exemplo atingir pessoas determinadas e concretas atravs de acusaes genricas a entidades abstratas e indeterminadas (classes sociais, modelos econmicos), tentando dar mera responsabilidade poltica a conotao de grave culpa moral pessoal, etc.

Se cada um s est obrigado, em princpio, a responder por seus prprios atos, tambm um ato assumir livremente a responsabilidade por atos alheios, como os cnjuges se responsabilizam mutuamente por suas obrigaes econmicas, ao casar-se. As responsabilidades do indivduo podem estender-se em crculos concntricos cada vez mais amplos, indo das obrigaes mais diretas, absolutas e incondicionais s mais indiretas, abstratas e relativas, como a do governante que, pela "tica da responsabilidade" weberiana, deve assumir a culpa at mesmo pelos resultados mais indesejados e imprevisveis de suas decises, tornando-se ento "politicamente" culpado sem verdadeira culpa moral pessoal.

Essa escala que vai da responsabilidade pessoal direta at a responsabilidade indireta e quase simblica bastante fcil de apreender e, como eu j disse, de fato apreendida quase instintivamente... exceto quando o desejo de inculpar mais forte que a razo. Neste caso, muito freqente na poltica, uma linguagem de imputao moral direta usada contra um acusado que no poderia ter responsabilidade pessoal concreta nos fatos em questo, como por exemplo quando o criador de uma poltica econmica desastrada (supondo-se que ela o seja mesmo) chamado de "assassino" por conta de uma complexa conjetura estatstica que associa "ndices de desemprego" a "ndices de mortalidade" e, num salto lgico formidvel, atribui a esse indivduo a autoria de no sei quantas mortes.

Esse tipo de retrica um evidente charlatanismo, e seu usurio deve ser considerado, desde logo, desqualificado para opinar em questes morais. Por exemplo, os autores do Livro Negro do Capitalismo, pardia grotesca do Livro Negro do Comunismo, procuram nivelar, como igualmente abominveis, as execues de dissidentes decretadas pessoalmente por Stalin e Fidel Castro e as mortes por desnutrio acontecidas na frica ou na sia e atribudas, mediante longas cadeias de conjeturaes econmicas, a efeitos indiretos de polticas econmicas adotadas nos pases ricos. Esse nivelamento nega, na base, o princpio de autoria, e no desculpvel como mero erro de lgica cometido com boas intenes. Os responsveis por esse tipo de propaganda desmascaram-se, no ato, como pessoas moralmente escorregadias e indignas de confiana.

Similarmente, o homem que, nada tendo cedido de seus bens aos pobres, discursa iradamente contra governantes que no tomaram tais ou quais medidas que no seu entender eliminariam a pobreza est aplicando o princpio de autoria de maneira dplice e autocontraditria: desobrigando-se de fazer pelos desamparados o pouco que est ao seu alcance, ele cobra o muito que supe estar ao alcance de outros, autonomeando-se assim um juiz mais habilitado a julgar aquilo que s conhece por conjetura do que aquilo que sabe por experincia direta. Quanto mais esse indivduo discursar contra os outros, mais estar se desmascarando a si prprio.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/juizes.htmJuzes e pop starsOlavo de Carvalhopoca, 6 de janeiro de 2001

Origens do espetacular moralismo judicirio europeu, que alguns acham um exemplo para ns

Pouco antes da queda da URSS, Mikhail Gorbachev reuniu a elite da espionagem sovitica e ordenou que a maior parcela possvel do patrimnio da KGB fosse privatizada em nome de testas-de-ferro e investida no Ocidente. Isso nada teve a ver com as privatizaes legais que se seguiram no governo Ieltsin. Foi uma lavagem de dinheiro a maior da Histria. Graas a ela, a KGB, que hoje ainda o principal esteio do governo Putin, apenas meia KGB: a outra metade est espalhada no planeta, com nomes em ingls e japons, com a cara mais capitalista do mundo, subsidiando a guerra cultural, comprando conscincias, financiando guerrilhas e trfico, com cifras que seriam impensveis no tempo em que o ouro de Moscou, para passar ao Ocidente, tinha de atravessar uma complexa rede de lavanderias secretas como a de Armand Hammer, o patrocinador da famlia Gore. Agora j vem tudo lavado.

Tal a raiz da expanso aparentemente inexplicvel da propaganda esquerdista na dcada de maior sucesso do capitalismo. No nada estranho que essa expanso se desse sobretudo nos meios universitrios americanos, hoje tomados pela fria militante e, como nota Ren Girard, cada vez mais incapacitados para tarefas intelectuais superiores. Desde a dcada de 30 o movimento comunista est consciente de que ganhar as classes intelectuais mais rentvel que converter proletrios. Apenas isso nunca foi to fcil quanto hoje: se j na Guerra do Vietn a URSS e a China gastaram mais dinheiro em propaganda antiamericana dentro dos Estados Unidos que no custeio de material blico, pode-se calcular o quanto esse gnero de operao se tornou mais maneiro com a KGB transfigurada numa rede sutil e inabarcvel de empresas e ONGs ocidentais.

Para fazer uma idia da quantia envolvida, basta ter em mente que aquele patrimnio, secreto e inacessvel mesmo ao Poder Legislativo da antiga URSS, inclua, como apenas um de seus itens, o tesouro nacional espanhol em peas de ouro, acumulado desde Felipe II, levado para Moscou durante a Guerra Civil e, evidentemente, jamais devolvido...

No por coincidncia, to logo certas aes um pouco anteriores terceirizao da KGB comearam a chamar a ateno na Europa, com a revelao de documentos dos recm-abertos arquivos do Comit Central do PCUS que atestavam as quantias formidveis passadas a partidos comunistas, a jornais e editoras e at s principais lideranas social-democrticas do Ocidente na dcada de 80, a esquerda reagiu com vigor. Ela mobilizou seus agentes no Poder Judicirio para que desencadeassem uma universal caa s bruxas, paralisando e desmoralizando mediante fceis acusaes de corrupo menor todas as lideranas liberais e conservadoras que soubessem demais.

Mas no se tratava s de ocultar o passado imediato: a sucesso de belos espetculos judicirios, com juzes transformados em pop stars, que foi uma marca dos anos 90 e na qual os caipiras de todo o planeta viram um exemplo de alta moralidade digno de fazer corar os polticos do Terceiro Mundo, serviu para desviar as atenes do pblico, dando tempo KGB terceirizada para que se espalhasse por toda parte, discretamente, sem que ningum atrapalhasse seu prspero comrcio de caixas-pretas. Foi a mais vasta operao diversionista de que se tem notcia, feita para encobrir a mais notvel trapaa de todos os tempos.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/tortura.htmTortura e terrorismoOlavo de CarvalhoO Globo, 6 de janeiro de 2001

"When one acquires a perversion, one always despises the normal... All ill people are a club."Arthur Koestler

Quem comete delito mais grave: o sujeito que coloca uma bomba em lugar pblico, despedaando transeuntes inocentes, ou aquele que d uma surra em quem fez isso? A natureza humana, a razo e o instinto respondem resolutamente: o primeiro. Em seu apoio vm a jurisprudncia universal, as leis morais das grandes religies e at o regulamento da Associao Protetora dos Animais, que no considera to lesivo ao interesse dessas criaturas dar pancadas em uma delas quanto liquid-las s dzias por meio de explosivos.

Toda a Humanidade compreende intuitivamente que o torturador, por cruel e asqueroso que seja, apenas um agressor, ao passo que o terrorista, por belo e idealista que se anuncie, um homicida por atacado, virtualmente um genocida. As diferenas no param a. Maus-tratos a um prisioneiro podem resultar do sbito impulso de fazer justia com as prprias mos, enquanto o ato terrorista supe premeditao fria, planejamento racional, execuo precisa. A tortura admite graus, que vo de um tapa na cara at os requintes de perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que um homicdio no pode ser meio homicdio, um quinto de homicdio, um-dezesseis-avos de homicdio. Condenar o terrorismo como "crime hediondo" falar de um delito definido, claro, insofismvel, ao passo que usar o mesmo termo para qualificar a "tortura" um expediente lingstico para meter no mesmo saco o torcionrio cientfico que aplicou choques a um prisioneiro por meses a fio, o sargento que lhe deu um pontap numa exploso de raiva, o mdico que lhe aplicou uma injeo para que no morresse e o soldado de planto que atendia o telefone na delegacia.

Terrorismo e tortura, enfim, no esto no mesmo plano: aquele hediondo em si, esta depende de graus e circunstncias. E, quanto ao dano infligido, o da tortura quase sempre pode ser reparado, fsica e moralmente. Mas que reparao oferecer vtima que teve o corpo feito em mil pedaos pela exploso de uma bomba?

A Humanidade inteira admite essas verdades bvias. S uma classe de seres humanos as rejeita: os "intelectuais de esquerda". Estes prefeririam antes ser dilacerados por uma bomba plstica num saguo de aeroporto do que levar pancadas num poro de delegacia e sair vivos para berrar na imprensa contra a violncia policial.

Digo isso por mera inferncia, supondo que consintam em escolher para si prprios o destino que alardeiam ser prefervel para os outros. Mas suspeito que no fundo no seja nada disso. Suspeito que, quando vituperam o torturador e enaltecem o terrorista, esto impondo s vtimas destes dois tipos de criminosos uma escala de avaliao que jamais desejariam para si prprios. Suspeito, mesmo, que a hiptese de examinar a coisa pelos dois lados jamais lhes passou pela cabea: em dcadas de leituras de autores esquerdistas, nunca encontrei um nico que se inclinasse a avaliar com igual peso e medida seus atos prprios e os alheios. Bem ao contrrio: o pressuposto bsico, o pilar mesmo do universo mental do esquerdista o sentimento de estar num patamar tico e ontolgico diferente e superior, em funo do qual aes que cometidas por outras pessoas seriam crimes hediondos se tornam mritos beatificantes quando praticadas por ele ou em nome da sua doutrina.

Foi assim que Karl Marx, aps ter escrito pginas ferinas contra os patres que abusavam sexualmente de suas empregadas, no teve o menor escrpulo de conscincia em pr para fora de casa o filho que havia gerado na sua domstica Helene Demuth.

Foi assim que a doutrina Guevara, ensinando o revolucionrio a ser "uma fria e calculista mquina de matar", tornou-se, para milhes de idiotas, uma mensagem de amor s comparvel ao Sermo da Montanha.

Foi assim que Fidel Castro, comeando sua carreira como pistoleiro de aluguel e culminando-a como genocida, veio a ser considerado pelo sr. Luiz Igncio Lula da Silva um modelo superior de conduta tica.

E assim que o Grupo Tortura Nunca Mais julga que os suspeitos de envolvimento mesmo indireto, remoto e conjetural em casos de tortura devem ser perseguidos at o fim dos tempos, como ratos, como nazistas, para que os rus confessos de terrorismo, instalados em altos postos da Repblica, possam estar tranqilos no desfrute de suas honras, glrias e mordomias. Contra estes, beneficiados pela anistia, j no se pode dizer uma palavra. Mas aqueles, segundo a presidente dessa entidade, cometeram "crimes inanistiveis, imprescritveis e de lesa-humanidade. No poderiam ocupar cargos pagos com dinheiro da sociedade brasileira." Anistia, cargos, dinheiro pblico, no entender dessa senhora, so s para os terroristas, para os que mataram por atacado. Que algum sugira estender os benefcios da lei aos que maltrataram esses pobrezinhos no varejo, e ela se encrespa: "No aceitamos essa lei."

Intil argumentar contra essa mentalidade. Sua recusa obstinada de julgar por um padro eqitativo; sua insistncia obsessiva em atribuir, sempre e a priori, motivos altrusticos aos atos de uns e intenes egostas aos de outros; sua radical incompreenso do Segundo Mandamento - tudo isso torna impossvel o confronto racional, que a cegueira ideolgica substitui por uma retrica de inculpao desvairada e autovitimizao pattica. As pessoas que se deixam embriagar por esse discurso adquirem um escotoma moral, um impedimento ao exerccio da razo e daquele senso das propores que o corolrio imediato da igualdade humana. Ningum menos dotado do instinto da igualdade jurdica do que os apstolos da igualdade econmica. S resta saber a causa profunda dessa deficincia. Segundo Joseph Gabel, um tipo de doena mental, de esquizofrenia. Segundo Eric Voegelin, uma sociopatia, uma enfermidade da esfera moral que no afeta a superfcie do eu. Mas s vezes essa discusso se torna puramente acadmica: na URSS, os esquizofrnicos e sociopatas tomaram de assalto o hospital e trancafiaram nele quem pretendesse diagnostic-los. E preciso ser ainda mais doido que eles para no perceber que esto querendo fazer a mesma coisa aqui.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/mostrando.htmMostrando servioOlavo de CarvalhoO Globo, 13 de janeiro de 2001

Se comparar a gravidade relativa dos delitos fosse o mesmo que enaltecer a prtica de algum deles, o Cdigo Penal inteiro seria uma vasta apologia do crime. Basta essa constatao lgica inicial para evidenciar o seguinte: fazer do meu artigo de sbado passado uma "defesa da tortura" requer uma dose anormalmente grande, seja de idiotice, seja de m-f.

Em casos anlogos, procuro sempre apostar na hiptese da idiotice, para poder continuar acreditando que h algo de bom no fundo das almas mais estragadas.

No caso presente, no posso. Nem o sr. Marcio Moreira Alves um idiota, nem idiota a dona Ceclia Coimbra. So ambos caluniadores maliciosos, perversos, que, com plena conscincia da mentira, atribuem a um jornalista opinies que ele no tem, com o intuito preciso de danar-lhe a reputao para em cima da sua runa construir a prosperidade do negcio mais sujo que existe na face da Terra: o comrcio do dio.

No meu artigo, afirmei com todas as letras que tortura crime. Repeti isso trs vezes. Acrescentei apenas que maltratar menos grave que matar - uma assero de simples bom-senso, que alis nem teria sentido enunciar se eu no visse na tortura um crime, de vez que, em lgica, a comparao de graus subentende a identidade de gnero.

Nada podendo alegar contra esse argumento, que que faz o sr. Moreira? Faz aquilo que, para um tipo como ele, a coisa mais fcil: ele mente. Mente, atribuindo-me propsitos que brotam da sua vontade de caluniar e no daquilo que escrevi.

Por que, em vez de se ater ao que l, o sr. Moreira prefere especular intenes ostensivamente discordes com a letra do texto e, tomando-as com obscena afoiteza como premissas certas e demonstradas, us-las como armas para difamar algum de cujos atos e de cuja moralidade ele, rigorosamente, ignora tudo? No preciso, como ele, conjeturar motivos. Se ele no me conhece, eu o conheo. Sei por que ele faz o que faz. Ele mesmo o sugere, na expresso final do seu artigo: "Separar quem lutou de peito aberto dos que se esconderam." Nos dias em que o presidente Costa e Silva fechou o Congresso, inaugurando o endurecimento e a perpetuao do regime que seu antecessor concebera como breve interregno autoritrio curativo, fiz o que achei que devia fazer: entrei para o Partido Comunista. No era a coisa mais sbia, muito menos a mais confortvel. Ela me custou, de imediato, perigos e incomodidades; a longo prazo, o arrependimento de ter, na luta contra uma ditadura encabulada e capenga, colaborado s tontas com a mais totalitria e assassina das tiranias. Mas, enquanto os meus problemas comeavam, os do sr. Moreira terminavam: naquele momento ele embarcava para Paris, onde, instalado numa bela cobertura em bairro elegante, pde desfrutar com tranqila segurana as glrias hauridas no arremedo teatral de herosmo com que dera um gran finale sua carreira de histrio parlamentar. Por isso nunca pude admirar aquilo que ele imagina ser a sua coragem, e que Benedito Valladares descreveu melhor como uma aptido de bancar o Tiradentes com o pescoo dos outros. No me perdo levianamente de ter sido comunista, nem alego para enobrecer tal desatino os motivos autodignificantes com que tantos hoje procuram maquiar sua cumplicidade com o mal do sculo. Mas no posso, em s conscincia, me acusar de covardia. Por ter sacrificado minha juventude e minha segurana em prol da esquerda perseguida que tenho hoje o estofo moral para falar duro com a esquerda triunfante. J o sr. Moreira, que tudo deve a ela e que nunca lhe deu seno o brilho mundano da sua presena nas rodas de gente bem, tem agora de justificar retroativamente sua existncia mostrando servio. E que servio, seno o mais baixo e infame, o servio do intrigante e caluniador?

J de dona Ceclia nada sei, a no ser que preside uma entidade consagrada a deformar o juzo moral das pessoas, inoculando nele o vcio de avaliar tudo com dois pesos e duas medidas. Cada palavra sua visa a bloquear a inteligncia do pblico, impedindo-o de comparar discursos com discursos, atos com atos, fins com fins, meios com meios. O simples cotejo equilibrado seria letal a uma campanha que arrecada fundos dos fiis que converte ao maniquesmo. Por isso, ao falar de guerrilheiros e militares, ela tem de confrontar os belos ideais dos primeiros com a violncia crua dos meios empregados pelos segundos, sem nenhum direito ao vice-versa. Claro: ela j escolheu a priori os mocinhos e os bandidos, reservando aos primeiros o atenuante do relativismo histrico e aos segundos a sentena implacvel da moral absoluta. No vale, por exemplo, perguntar: se os heris de dona Ceclia queriam a democracia, por que foram buscar apoio e inspirao ideolgica em ditaduras incomparavelmente mais ferozes do que aquela que combatiam? Seriam eles idiotas ao ponto de imaginar que Fidel Castro ou Mao Ts-tung desejavam instaurar aqui a liberdade que haviam esmagado nos seus prprios pases? Ou, ao contrrio, eram apenas hipcritas como a prpria dona Ceclia? Feitas essas perguntas, torna-se impossvel recusar aos militares uma comparao justa. Por isso era preciso evit-las, e nisto dona Cecilia foi tima.

Mas mesmo uma mente astuta s vezes se trai. Aps enaltecer os lances de guerrilha como expresses superiores do idealismo em contraste com a covardia da tortura, ela aponta, guisa de prova suprema da maldade e baixeza dos militares, um tpico lance de guerrilha: acusa-os de... jogar bombas. No satisfeita com esse ato falho, ela se mela mais ainda no ridculo da mentira ao proclamar que tais bombas fizeram "centenas de mortos e desaparecidos". Dos mortos, ela cita o total de exatamente um: o prprio criminoso, o notrio auto-explodido do Riocentro. No podendo nomear mais nenhum, arredonda a conta com a evasiva "e desaparecidos". Mas que raios de bombas seriam essas, capazes de desmaterializar pedaos de cadveres?

Por escandalosos que sejam esses meios de argumentao, seu emprego bem coerente com a finalidade da campanha de dona Ceclia: despertar dio unilateral a uma faco, amor devoto outra, sem ter na mnima conta a lgica, a justia ou a realidade. Por isso, ao acusar-me de "defesa da tortura" ela sabe que, como o sr. Moreira, mente para mostrar servio. E, quando se gaba do apoio internacional que recebe no exerccio dessa sujeira, temos a certeza de que seus esforos so bem recompensados.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/precavido.htmO leitor precavidoOlavo de Carvalhopoca, 13 de janeiro de 2001

aquele que desconfia que suas objees j ocorreram ao autor e j esto respondidas

A precauo mais elementar, ao ler os escritos de um filsofo, lembrar que nossas objees mais imediatas j devem ter-lhe ocorrido e podem estar respondidas, ao menos de maneira implcita, em alguma outra parte de sua obra. Um filsofo , afinal, um especialista em unidade: raramente ele enunciar alguma proposio solta, sem raiz em princpios gerais e sem uma rede de conexes com a totalidade de suas idias. Um bom leitor de filosofia no se perde na discusso de detalhes isolados, mas, guiado por um instinto de coerncia que j o torna um pouco filsofo, busca por trs de tudo os princpios e fundamentos. S as objees desse leitor contam para o filsofo. As demais so irrelevantes como tiros de espoleta, e ele s as responder por polidez. Pela mesma razo, o filsofo que publique artigos na imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da existncia de uma filosofia por trs de cada opinio isolada, tero o bom senso de refrear suas objees mais afoitas at captar melhor a posio dela no conjunto. Pois, para um filsofo, nenhum assunto, por efmero e casual que parea, solto e independente: cada um remete ao centro desde o qual tudo ou nada se explica.

Se o leitor brasileiro no est habituado a essa precauo, por um motivo muito simples: em geral os indivduos autorizados pelo Estado a representar em pblico o papel de filsofos no so filsofos de maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que no tm nem o dever nem a competncia do olhar filosfico. Tanto isso assim que, quando aparece algum filsofo de verdade, um Mrio Ferreira dos Santos, um Vilm Flusser, algum enfim capaz de pensar desde os fundamentos, a primeira coisa que fazem consider-lo um estraga-prazeres e abster-se religiosamente de prestar ateno ao que ele diz.

Diante do que escrevem esses professores, no preciso aquela precauo, porque eles no tm um quadro prprio de referncia que deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o fundo comum das conversaes pblicas do dia e podem ser compreendidas pelo simples cotejo com ideologias, modas ou programas partidrios. Mas tentar esse enfoque ante as opinies de um filsofo cortar as prprias pernas, impedindo-se de chegar a concluses ou objees relevantes.

verdade que filsofos Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y Gasset escreveram artigos de jornal, mas nenhum deles logrou a proeza ou teve a pretenso de fazer de algum desses artigos uma pea autnoma, destacvel do fundo de seu pensamento e passvel de ser julgada por si. Autonomia para romances, contos, poemas. Em filosofia, toda expresso provisria e requer o acmulo praticamente interminvel de esclarecimentos. Mas ao pblico brasileiro de hoje falta algo mais que a conscincia disso. Falta o sentido mesmo da ligao orgnica entre as asseres e os argumentos que as embasam. Em filosofia e tudo o que um filsofo escreve expresso de sua filosofia , nenhuma proposio significa nada quando considerada independentemente das razes que a ela conduzem. Nas discusses vulgares, ao contrrio, cada afirmao vale por si; os argumentos podem torn-la mais aceitvel, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes apenas a funo de floreados enfticos, destinados a sublinhar e colorir uma deciso tomada antes e independentemente deles. As idias em circulao reduzem-se assim a meia dzia de enunciados gerais simples, frmulas estereotpicas em torno das quais no h mais discusso alm da estritamente necessria para produzir, no mais breve prazo possvel, um ardoroso pr ou um indignado contra.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/forumesp.htmUm frum especialOlavo de CarvalhoZero Hora, 14 de janeiro de 2001

O Frum Social Mundial seria apenas mais um festival internacional de exibicionismo esquerdista, sem nada de especial, se no se destacasse precisamente por este detalhe invulgar: o mais descarado empreendimento de propaganda ideolgica j financiado com dinheiro pblico neste ou em qualquer outro Estado brasileiro. ilegal em toda a linha, e qualquer cidado, mediante simples ao popular na Justia, pode frustrar sua realizao a qualquer momento.

No obstante sua pretenso de constituir um "pendant" esquerdista dos encontros peridicos de tericos do capitalismo na cidade sua de Davos, ele no passa de uma inverso caricatural do Frum da Liberdade, realizado anualmente pelos liberais gachos com enorme sucesso. Entre os dois fruns, no entanto, h trs diferenas. Primeira: o da Liberdade realizado dentro da lei, com dinheiro das contribuies voluntrias de participantes e patrocinadores. A segunda que nele os convidados representam todas as correntes ideolgicas -- liberais, conservadores, nacionalistas, esquerdistas --, ao passo que sua verso "Social" um Clube do Bolinha -- ou da Luluzinha -- onde s entram os ideologicamente corretos, o que marca precisamente a distncia entre o debate e a propaganda.

A terceira diferena a mais significativa de todas. No Frum da Liberdade, as pessoas so convidadas a falar conforme sua experincia no trato do assunto. Nenhum sapateiro, ali, vai alm das chinelas. A mim, por exemplo, ningum ali faz perguntas sobre desemprego ou carncia habitacional, problemas com os quais s tive contato na condio de vtima atnita, e dos quais tudo o que eu teria a dizer que de fato so uma bela encrenca. No entanto, tenho me sado melhor em reas como educao, cultura, histria etc., e o Frum da Liberdade me pergunta exatamente sobre isso. Para falar do sistema bancrio, traz o Gustavo Franco, que soube fazer a coisa andar. Para falar da empresa privada, chama o dr. Jorge Gerdau, que tem uma que funciona. E assim por diante. J o pessoal do Frum Social anuncia possuir a soluo para males de grande porte: a misria das naes pobres, a excluso social e coisas assim. Seria justo esperar que essas criaturas nos mostrassem sua folha de realizaes -- ou pelo menos a de sua ideologia -- no concernente soluo desses problemas. Poderamos perguntar, por exemplo: a quantos seres humanos o socialismo j deu uma vida melhor? Se excluirmos os membros da "nomenklatura", que obviamente tiveram a melhor das vidas, a cifra que obteremos em resposta s no nula porque negativa: em quase todas as naes socialistas o padro de vida hoje inferior ao de antes do socialismo. Na melhor das hipteses, igual: quando Cuba se gaba de ter o terceiro ou quarto lugar do continente em qualidade de sade ou educao, omite que j os tinha desde 1951, oito anos antes da revoluo. Em outros pases, como o Vietnam, a fome e a misria alcanam nveis apocalpticos, enquanto na China o salrio mdio de um trabalhador, aps meio sculo de morticnios redentores "soi disant" destinados a elevar seu padro de vida, de 40 dlares.

Em contrapartida, nesse vale de lgrimas que o capitalismo, a frao mais pobre da populao norte-americana e europia de hoje tem um nvel de consumo muito superior ao da classe mdia dos anos 50. J na frica, que segundo os doutrinrios socialistas experimentaria um florescimento econmico espantoso to logo os europeus fossem embora de l com seus malditos investimentos colonialistas, populaes inteiras hoje morrem mngua, e o Frum Social, segundo nos anunciou neste mesmo jornal o inesquecvel sr. Luiz Marques, nos mostrar que isso culpa dos prfidos ex-colonialistas que j no botam mais seu dinheiro l. Tal o "know how" que essa gente vir transmitir aos gachos em troca do dinheiro dos seus impostos.

De todos os problemas econmicos do mundo, os doutrinrios socialistas s resolveram, at agora, um nico: o seu prprio. Cada um deles tem um bom emprego em universidade, jornal ou instituio de pesquisa em prsperos pases capitalistas, e nenhum jamais foi idiota o bastante para se propor a resolver, no os problemas "do mundo", mas o de algum pas socialista. No se atrevendo a cuidar do seu prprio quintal, eles se tornaram especialistas em dar palpites no alheio: o socialismo, como se sabe, no tem vida autnoma, mas se alimenta das doaes de diletantes capitalistas insanos de Nova York e Genebra, que o sustentam mais ou menos como quem mantm, em casa, uma criao de jacars. Em retribuio, os jacars mostram os dentes e sacodem as caudas para impressionar as visitas. Essa ser toda a utilidade do Frum Social. A diferena que o salrio dos jacars no ser pago por capitalistas insanos de Nova York e Genebra, mas pelos contribuintes gachos.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/preludio.htmPreldio ao suicdioOlavo de CarvalhoJornal da Tarde, 18 de janeiro de 2001

Uma prova notvel da cretinice vigente o nmero de pessoas, na imprensa, nas universidades ou em toda parte, que imaginam que o puro dio poltico que sentem por mim as investe de autoridade bastante para negar-me o estatuto de filsofo mediante o simples acrscimo de aspas ou de alguma expresso pejorativa ao termo que o designa, sem jamais se perguntar se elas prprias estariam habilitadas, j no digo a discutir, mas simplesmente a ler e compreender por alto algum de meus livros de filosofia - uma qualificao que, por mistrio, lhes parece totalmente dispensvel no caso.

Ao multiplicar-se o nmero de episdios que a ilustram, essa auto-atribuio de autoridade intelectual por parte de sujeitos obviamente despreparados para as mais elementares tarefas de uma vida de estudos assinala, mais que uma inusitada arrogncia coletiva, uma grave perda geral do senso de realidade, do senso das propores. Ultrapassado um certo limite, a ignorncia pretensiosa deixa de ser um estado transitrio de feira moral associado m formao intelectual, e se torna um desvio de personalidade, um tipo de sociopatia.

No conheo, no presente panorama mental brasileiro, sintoma mais alarmante e mais digno de estudo.

No normal, na imprensa do mundo, que um escritor que se dirige parte mais culta do pblico desperte tanto interesse e tanta raiva na outra parte, a ponto de centenas de iletrados lhe enviarem cartas furiosas, onde as ameaas de processo judicial e de agresso fsica se mesclam pateticamente a todos os palavres do idioma, complementados pela surpreendente assertiva de que o destinatrio - no o remetente - sujeito grosseiro e sem educao.

Um detalhe interessante a repetio obsessiva de slogans e lugares-comuns do jargo esquerdista. Aparecendo justamente nas mensagens que com mais vigor condenam o meu antiesquerdismo como uma obsesso de chutar gatos mortos, a coisa soa como um eloqente coro de miados num cemitrio felino. E nunca um s desses defuntos miantes deu o menor sinal de perceber que seu prprio falatrio dava a prova da falsidade do que alegava. A perda da sensibilidade lingstica acompanha "pari passu" a ascenso do simplismo fantico e da imbecilizao moral.

Talvez ainda mais estranha a convico, que em muitos desses indivduos parece totalmente sincera, de possuir, alm daquela tremenda autoridade intelectual, tambm um significativo poder de intimidao. Escrevem, de fato, no tom feroz de quem espera que o destinatrio, lendo, fique paralisado de medo ante um impondervel perigo iminente, desista de publicar artigos e, quem sabe, at mesmo se desmaterialize em pleno ar.

Muitas dessas pessoas, numa situao normal, nem mesmo leriam meus artigos, os quais obviamente no foram feitos para elas. Se no os lessem, nenhuma falta fariam ao autor, que conta com a compreenso e a simpatia de outras - e mais vastas - faixas de pblico. Por que ento os lem, se cada leitura as precipita numa crise de raiva que culmina numa auto-eletrocuo verbal?

Tudo isso fantstico, espantoso e, numa palavra, dadasta. A observao, comum nos livros de historiadores, de que anlogos fenmenos se observam regularmente nas crises pr-revolucionrias no prova que vai haver uma revoluo no Brasil, mas sugere que uma parcela significativa da populao falante j est em pleno transe de estupidez revolucionria, preldio do suicdio nacional.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/zenao.htmZeno e o paralticoOlavo de CarvalhoO Globo, 20 de janeiro de 2001

Quando digo que a queda do nvel de conscincia das nossas classes falantes j atingiu a faixa do calamitoso, no estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates polticos, leio as principais publicaes culturais, recebo diariamente dezenas de e-mails de universitrios que levantam discusses sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atrs ainda era possvel documentar, atravs de exemplos selecionados, como o fiz nos dois volumes de "O imbecil coletivo", a veloz ascenso da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado de coisas no deixa de ter suas vantagens. A maior delas que, pelo acmulo de material, a confuso inicial dos dados cede lugar ao desenho ntido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e incompetncias que hoje caracteriza a forma mentis do opinador nacional tpico j pode ser descrito em poucas linhas.

A primeira caracterstica a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que no compreendemos bem, experimentamos naturalmente a dificuldade de express-lo. Uma figura de linguagem, apelando a semelhanas sugestivas, ajuda-nos a vencer a dificuldade. Samos de um nebuloso isolamento e penetramos na corrente da conversao pblica. A decorrente sensao de ter emergido das trevas para a luz porm totalmente ilusria: maior domnio da expresso no significa melhor conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva no significa contato com a realidade. Quase todo debatedor pblico neste pas, quando consegue domar sua dificuldade de expresso, sente ter dito algo de "objetivo", talvez at mesmo de evidente e autoprobante, quando na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais rduo o desafio expressivo, mais a vitria enganosa. A libertao das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos , decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda est muito longe de alcan-lo. No Brasil ela tende antes a substitu-lo. A confuso entre falar e conhecer uma regra estabelecida dos debates nacionais.

Nessas condies, qualquer pretenso de "conceito", quando chega a despontar, se esgota em mera definio nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a crtica de suas figuras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele prprio disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A expresso figurada e aproximativa, em vez de ser apenas o comeo do processo de investigao, o trmino dele: o sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e cr j ter em mos uma concluso lquida e certa.

Eu no diria, no entanto, que essa inpcia nasce da excessiva afeio s palavras, erroneamente assinalada como trao da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas no o amor s primeiras, mas a dificuldade de, por meio delas, chegar s segundas. Pesquisas de antropologia empresarial mostraram que nossa populao insensvel palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a mensagem atinja a conscincia. Mas essa dependncia da presena fsica do emissor assinala tambm uma dificuldade de saltar sobre a situao concreta do dilogo e apreender diretamente as coisas e relaes mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunicao menos algo a respeito da realidade externa do que as intenes e sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes "o que querem dele" do que o quid da coisa da qual se fala. Diga voc o que disser, sobre no importa o que, e ele ouvir uma ordem, um pedido, um apelo, um estmulo, uma proibio. natural que, ouvindo assim, tambm fale assim, isto , que, numa situao que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a diferena entre uma coisa e outra. Sua fala ser ento respondida na mesma clave, e assim por diante indefinidamente, numa espcie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas s outras, mais se fecham na sua iluso subjetivista.

Da a compulsiva necessidade de "tomar posio" antes e independentemente de conhecer as coisas em questo, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumentao ou prova seno como expresso mais elaborada de uma "tomada de posio" subjetiva. No Brasil no se discutem idias, teorias, vises da realidade: discutem-se "posies" - atitudes, preferncias, gostos e antipatias. Se verdade o que dizia Henry James, que "os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas", ento somos, indiscutivelmente, uma nao de escravos.

evidente que, no alcanado o nvel do pensamento conceptual, mais impossvel ainda fica provar o que quer que seja. Da a segunda caracterstica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa ignorncia do que seja uma prova ou demonstrao, na verdade uma total inconscincia da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reiterao enftica ou o apelo a novas figuras de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os sentimentos do ouvinte e os da platia, sem nem de longe tocar nos objetos em questo. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real.

Curiosamente, indivduos que ignoram tudo dos critrios de prova em filosofia ou cincia esto bem atualizados com as limitaes desses critrios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limitao se torna um substitutivo do critrio mesmo e por sua vez absolutizada, com grande reconforto para o presunoso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no cume da evoluo epistemolgica - como um paraltico que, ao ter notcia dos argumentos de Zeno sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior s pessoas capazes de andar.

PS - Aps acusar-me de um crime que no cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o sr. Marcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para no ter de se rebaixar ao nvel da minha pessoa. Sapientssima deciso. Ele que fique l em cima, no seu "grand monde" de comunistas chiques, e no desa mais ao humilde porozinho que, em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo.

J o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implcita parece ter endossado as acusaes do sr. Moreira, no requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas acusaes para o ralo da completa desmoralizao, com elas h de ir automaticamente, sem deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/decguerra.htmDeclarao de guerraOlavo de Carvalhopoca, 20 de janeiro de 2001

O frum esquerdista no Rio Grande no contra a Nova Ordem Mundial, contra o Brasil

Quando voc discute com um comunista, ele exige, antes de tudo, que voc aceite a premissa de que ele defende os pobres e voc os ricos. Se voc a aceita ou, por desateno e comodismo, deixa de contest-la com veemncia, ele passa a trat-lo com toda a delicadeza, porque sabe que aos olhos da platia voc j est liquidado e que quanto mais polido ele for da por diante mais somar, ao prestgio de defensor dos oprimidos, a boa imagem de democrata respeitador do adversrio moribundo.

Se, em vez disso, voc mexe em alguns pontos doloridos da m conscincia esquerdista sua aliana de um sculo com os tubares do monopolismo capitalista, a explorao macia do trabalho escravo para financiar o movimento comunista internacional, a corrupo de milhares de jornalistas e polticos pelas verbas descomunais da KGB , a ele resolve o problema dizendo que voc partiu para os ataques pessoais, que voc um fascista ou que no se fazem mais direitistas educados como antigamente.

J sei, portanto, o que vo me responder quando eu disser que o Frum Social Mundial, em Porto Alegre, uma gigantesca mobilizao de verbas e foras estrangeiras para um ataque direto soberania nacional, disfarado em defesa de nossos interesses na arena econmica do mundo.

Mas nem sempre essa gente responde. O prefeito petista de Porto Alegre, por exemplo, no respondeu nada quando meses atrs, num debate, eu lhe disse que, com toda a sua aparente defesa de nossa integridade territorial, seu partido, se chegar ao poder, no somente entregar a Amaznia como ainda poder ceder mais uns Estados, de quebra, pela simples razo de que tudo isso j foi pago. J foi pago esquerda nacional, hoje maciamente financiada por empresas e ONGs tentaculares a servio dos mesmos interesses que ela finge combater.

O silncio do prefeito, no entanto, foi menos eloqente que as recentes declaraes do vice-governador do Rio Grande, Miguel Rossetto, segundo o qual toda a oratria canina que o FSM vai despejar sobre o capitalismo internacional no afetar em nada as boas relaes do governo do Estado com o Banco Mundial. evidente: o festival de esquerdismo na capital gacha no pode arranhar no mais mnimo que seja os interesses do monopolismo global. Pode apenas destruir por completo o estado de direito no Brasil, criando e legitimando o precedente escandaloso do apoio oficial pregao genocida dos narcoterroristas colombianos.

Mas esse precedente no o nico: ao participar despudoradamente da sustentao logstica de um empreendimento de propaganda ideolgica ostensiva, o governo gacho derrubar, de um s golpe, a legislao eleitoral existente, sob os olhos complacentes do Executivo, do Legislativo e do Judicirio federais, que, temendo as reaes da mdia cmplice, no ousaro punir a arrogante ilegalidade explcita dessa declarao de guerra revolucionria.

Apresentar o frum como uma alternativa aos debates capitalistas de Davos apenas um truque publicitrio, operado com o auxlio do diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, clebre propagandista empenhado em, sob o pretexto de apoio aos nacionalismos, fortalecer o brao estatista, centralizador e burocrtico da Nova Ordem Mundial, em detrimento, definitivo ou provisrio, de seu brao privatista e neoliberal.

O frum no sonha em alterar no que quer que seja a Nova Ordem Mundial. Sonha apenas em mudar o lugar do Brasil dentro dela, transformando-o, de uma prspera nao capitalista apta a disputar uma posio de liderana, numa Colmbia devastada e eternamente cabisbaixa.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/ddifusa.htmDoutrinao difusaOlavo de CarvalhoO Globo, 27 de janeiro de 2001

Um pblico que est contaminado de doutrinao marxista at a medula no tem, por isso mesmo, a menor idia de que est sendo doutrinado. A primeira etapa da doutrinao puramente cultural, difusa, e no visa a incutir no sujeito a menor convico poltica explcita, mas apenas a moldar sua cosmoviso segundo as linhas bsicas da filosofia marxista, sem este nome, naturalmente, e apresentada como se fosse "o" conhecimento em geral. Com exceo de um reduzidssimo nmero de intelectuais que estudaram criticamente o movimento comunista e das pessoas demasiado pobres que no receberam educao nenhuma, so raros os cidados brasileiros que j no estejam conquistados para essa viso do mundo, no mnimo por desconhecer que ela uma viso e no o prprio mundo.

Em especial, a explicao da histria com base no esquema marxista das classes sociais economicamente definidas, que o terreno prvio para uma doutrinao mais ativa, j se pode considerar definitivamente integrada nos esquemas de pensamento da mdia e da populao instruda, ao ponto de que ningum, a, tem a conscincia de que ela apenas uma teoria entre outras e todos a tomam como se fosse um traslado direto da realidade vivida. Por menos que ela coincida com a efetiva distribuio das foras no panorama social brasileiro, o cidado espontaneamente apela aos seus conceitos bsicos - se no sua nomenclatura - para expressar o que acha que se passa na sociedade. Assim, por exemplo, a burocracia estatal, em vez de ser encarada como uma fora autnoma - o que um trao caracterstico da sociedade brasileira - e embora nela se recrute a maior parte da militncia esquerdista, se tornou invisvel o bastante para que os efeitos de suas aes sejam atribudos "classe dominante", compreendida no sentido de "os ricos" ou "os capitalistas". A classe mdia, que abrange 46% da nossa populao e inclui a quase totalidade das pessoas politicamente atuantes (sobretudo na esquerda), no tem nenhuma conscincia de si como entidade distinta, mas cada um, dentro dela, espontaneamente divide o quadro social entre os "os ricos" e os "os pobres", tomando os discursos partidrios como se fossem tradues fiis das realidades sociolgicas subjacentes e catalogando-se a si mesmo na classe dos pobres, sem reparar que os pobres o colocam na classe dos ricos e, na verdade, o invejam e o odeiam mais do que a qualquer banqueiro. A alienao entre a realidade social e o discurso de auto-explicao, em tais circunstncias, total.

Com igual facilidade, a compreenso das idias como expresses estereotipadas de interesses de classe projetada sobre a imagem do nosso passado histrico, passando como um trator sobre o fato, facilmente comprovvel mas marxisticamente inexplicvel, de que no Brasil os discursos ideolgicos quase nunca coincidem com os interesses objetivos das classes sociais envolvidas. Na educao pblica, nos livros, nos programas pretensamente educativos da TV, a reduo marxista das criaes culturais a superestruturas dos interesses de classe j est to profundamente integrada no vocabulrio corrente que quem deseje apresentar alguma outra verso da histria no tem nem por onde comear a se explicar e pode at cair no ridculo ao bater de frente com o "senso comum" (no sentido gramsciano do termo).

De maneira bastante compreensvel, mas nem por isto menos irnica, quanto mais limitado o horizonte de uma pessoa esteja aos cnones da vulgata marxista, mais ela reagir com quatro pedras na mo denncia de que existe propaganda do marxismo no Brasil e, mais ainda, idia de que os comunistas tenham algum poder entre ns. Ser invisvel, j dizia Ren Gunon, da essncia mesma do poder.

Uma segunda fase da doutrinao a que vai associar, ao esteretipo das classes, os valores morais e emocionais necessrios a despertar reaes de agrado ou desagrado conforme o discurso ouvido soe de maneira a parecer associado aos "interesses de classe" dos bondosos pobres ou dos malvados ricos, por menos que, objetivamente, tenham algo a ver com isso. O discurso em favor da livre empresa, por exemplo, embora objetivamente fale em favor da imensa populao pobre que vive da economia informal, rejeitado como defesa dos interesses da "elite" e das multinacionais, enquanto o discurso estatizante, embora no arranhe no mais mnimo que seja os interesses das classes ricas e de fato fortalea a burocracia onipotente que reduz o pas pobreza mediante uma carga tributria escorchante, facilmente aceito como traduo dos interesses dos "excludos". Da alienao passa-se ento alucinao, mas, no por coincidncia, a prpria angstia decorrente do vago pressentimento da loucura em seguida explorada para gerar mais dio imagem estereotipada da "classe dominante", responsabilizada por todos os males e personificada em indivduos e grupos que, na verdade, no so dominantes de maneira alguma e funcionam como puros bodes expiatrios, como por exemplo os militares. A tal ponto os smbolos convencionais se substituem percepo dos fatos que um acontecimento como o Frum Social Mundial, em Porto Alegre, passivamente aceito pelo seu valor nominal de manifestao antiglobalista, malgrado o apoio que recebe da ONU, o corao da Nova Ordem Mundial, bem como da rede mundial de ONGs que esto para a ONU como as veias e artrias esto para o corao.

PS - Tendo outras coisas a dizer neste meu espao semanal em vez de gast-lo para rebater a nova investida caluniosa de dona Ceclia Coimbra (O GLOBO, 20 de janeiro), mas ao mesmo tempo repugnando-me toda afetao de silncio superior, coloquei uma resposta a ela e a seus comparsas no meu website, http://www.olavodecarvalho.org, onde mostro como essa senhora, por inpcia furiosa, prova o que queria desmentir e desmente o que queria provar. E, doravante, chega de explicaes: qualquer nova tentativa de fazer do meu artigo "Tortura e terrorismo" uma apologia da tortura ser respondida diretamente com um processo judicial.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/tsolitaria.htmTestemunha solitriaOlavo de Carvalhopoca, 27 de janeiro de 2001

Ele no um militante antifidelista: s um sujeito que conhece Cuba porque ajudou a faz-la

Oscar Lus Geerken foi assessor do Comit Revolucionrio cubano. Dedicou 16 anos de sua vida causa fidelista, at que, em 1993, fugiu para Miami. No se ligou a nenhuma organizao contra-revolucionria. No pretende ser mais que uma testemunha solitria, e foi nessa condio que, convidado por um amigo, veio a Porto Alegre para descrever, a quem deseje ouvi-lo, alguns aspectos da economia cubana que, definitivamente, no esto na pauta do Frum Social Mundial.

A imprensa gacha, com as poucas excees de sempre, tem feito o que pode para ocultar essa presena incmoda, que, se exibida em tamanho natural, bastaria para desmoralizar o custoso empreendimento publicitrio subsidiado pelo governo estadual e destinado a oferecer aos brasileiros o modelo de progresso e prosperidade de algumas das naes mais atrasadas e miserveis do planeta.

Para compensar um pouco essa injustia, abdico de expressar aqui minha opinio pessoal e cedo este espao a algumas frases aterradoras ouvidas logo aps um almoo, na quarta-feira, num rodzio gacho:

Sem nenhum exagero, hoje comi mais carne de vaca que durante toda a dcada de 80 em Cuba. No mximo, s vezes, conseguamos uns pedaos de frango.

Mas como as coisas chegaram a esse ponto?

Bem, a reforma agrria cubana distribuiu as terras frteis entre as fazendas estatais e os camponeses independentes. Aquelas, embora tendo capital, equipamentos, fertilizantes e assistncia tcnica, nada conseguiram produzir, enquanto os camponeses, sem nada disso, produziam alguma coisa. Como isso dava m impresso, foram acusados de vender no mercado negro, de elevar artificialmente os preos, de trair a revoluo. Perderam suas terras e muitos foram para a cadeia. A produo de alimentos em Cuba tornou-se irrisria. Mesmo produtos de primeira necessidade, como leite em p e papinhas para nens, que antes da revoluo eram feitos em Havana, depois da reforma agrria tiveram de ser importados.

E os novos restaurantes que o governo liberou para a iniciativa privada?

Cada restaurante pode ter no mximo 12 cadeiras, e mesmo assim difcil ter o que servir. O sujeito oferece, por exemplo, um frango. Passa o fiscal e pergunta: Onde comprou? claro que foi no mercado negro. Onde mais poderia ser? A o restaurante fechado e o camarada vai preso.

Mas a situao no pode ser ruim como em nossas favelas.

Em matria de alimentao, o favelado brasileiro est melhor servido que o cidado mdio cubano. Em assistncia mdica e educao, o cubano ganha, mas j ganhava antes da revoluo.

E os salrios?

Para voc fazer uma idia, um amigo meu, que cirurgio, ganha 430 pesos cubanos por ms: mais ou menos US$ 15. J sei que, de Cuba, viro nos prximos dias informaes de que o homem um maluco, um farsante, um isto, um aquilo, e recebero toda a ateno que a imprensa local negou ao acusado. Para a massa puerilizada pela propaganda, a credibilidade de uma calnia diretamente proporcional a sua difuso, mas o homem experiente sabe que, para sujar bem, preciso estar bem sujo: mais fcil para Fidel Castro sujar a reputao da testemunha que limpar o que ela viu em sua ilha.

PS. Dada a prioridade das declaraes de Geerken, minha resposta ao deputado Jos Dirceu, planejada de incio para sair aqui, ser colocada em minha homepage, http://www.olavodecarvalho.org, durante a prxima semana. http://www.olavodecarvalho.org/semana/propacirco.htmPropaganda e circoOlavo de CarvalhoZero Hora (Porto Alegre), 28 jan 2001

J tive a ocasio de observar que a propaganda petista, investindo pesado na imagem de honestidade incorruptvel e no discurso de inculpao moralista, fica, ela prpria, no apenas aqum dos padres de qualquer cdigo moral superior, mas muito abaixo das exigncias mais corriqueiras do Cdigo de Proteo ao Consumidor.

Ela acaba de confirmar isso, com os outdoors com que cobriu a cidade de Porto Alegre nos primeiros dias do Forum Social Mundial. Eles apregoam que o partido contra toda injustia, em qualquer lugar do mundo. Essa propaganda uma fraude em toda a extenso da palavra, e o partido deveria ser responsabilizado judicialmente por mentir aos eleitores de maneira to cnica e descarada.

De um lado, so notrios os esforos dos lderes petistas para disfarar e acobertar a crueldades e violncias do regime cubano, mais vastas, mais graves e mais atuais que aquelas que eles prprios, fingindo altos sentimentos de indignao tica, denunciam no general Pinochet.

Neste mesmo momento, o mdico Elias Biscet, reconhecido pela Anistia Internacional como prisioneiro de conscincia, sofre torturas sem fim num crcere em Havana, pelo simples fato de opor-se poltica oficial de abortos em massa. E que faz o PT? Denuncia o crime? Expulsa de suas fileiras aquele horrendo ex-padreco que proclamou a Cuba de Fidel o reino de Deus na Terra? No. Em vez disso, o governo petista do Rio Grande do Sul patrocina com dinheiro pblico esse grotesco festival de propaganda fidelista que o Forum Social Mundial.

A Anistia Internacional acaba de denunciar a morte de 77 membros da seita Falun Gong em prises chinesas, e que faz o PT? Alardeia o fato, com palavras emocionadas, do alto da tribuna do Forum Social Mundial? Nada. Discursa contra naes democrticas que protegem refugiados e acolhem perseguidos polticos de todas as provenincias ideolgicas.

O ex-assessor do Comit Revolucionrio Cubano, Oscar Lus Geerken, vem a Porto Alegre com seus recursos pessoais, para contar aos gachos os crimes e atrocidades da revoluo que ele mesmo ajudou a dominar seu pas, e que fazem os petistas e seus solcitos servidores jornalsticos? Ajudam-no a combater a injustia em qualquer lugar do mundo? No. Fazem tudo para ocultar a sua presena incmoda, quando no para sujar a reputao desse combatente solitrio mediante insinuaes srdidas, em linguagem copiada ipsis litteris dos discursos caluniosos com que Fidel Castro se evade das denncias irrespondveis dos refugiados cubanos de Miami.

Sim, o cartaz do PT pura propaganda enganosa, como propaganda enganosa a declarao do governador Olvio Dutra, de que o gasto de dinheiro pblico com esse circo comunista se justifica como investimento, por trazer turistas e seu dinheiro para a cidade de Porto Alegre. Que bela desculpa! Se ela valesse alguma coisa, valeria muito mais para justificar um congresso de turistas neoliberais, que, a darmos crdito ao que se diz no prprio Forum, tm muito mais dinheiro.

Para mim, esse Forum foi a p de cal nas pretenses petistas de encarnar algo de moralmente digno e saudvel. Propaganda sectria travestida de debate, apologia de regimes escravistas envolta em pompas de guerra santa contra a misria, nele o discurso monolgico de uma ideologia socioptica s no ocupou todo o espao porque umas centenas de jovens corajosos, de doze diretrios estudantis gachos, invadiram o plenrio para vaiar os Olvios, Lulas e Zs Dirceus e, sem deixar-se atemorizar pela presso policial, dizer-lhes umas verdades na cara, resumidas no refro: O Forum tem um milho; a educao, nem um tosto.

Excetuado esse instante de sinceridade, o Forum foi aquele festival de oratria canina e autobeatificao que, de uns anos para c, assinala indefectivelmente o estilo esquerdista de ser. Contemplando esse espetculo abjeto, perdi o pouco de respeito que ainda poderia ter por essa gente, e declaro alto e bom som: mais at do que o velho Partido Comunista, que no fundo da sua produo industrial de mentiras conservava ao menos a fidelidade a uma doutrina explcita em nome da qual podia ser cobrado, o PT, que usa de todas as doutrinas conforme lhe convenham, e que tanto pode ser marxista como envergar a mscara trabalhista, socialdemocrata ou social-crist sempre que julgue que esses disfarces o aproximaro do poder, tornou-se a encarnao da falsidade escorregadia e do maquiavelismo oportunista.

***

Agora, uma atenozinha aos meus crticos.

Na revista "Nao-til" nmero 73, o articulista Marco Antnio Trisch Mendona, protestando contra a abertura de espao na imprensa para estas minhas consideraes quinzenais, concede no entanto metade da sua coluna transcrio de uma delas. No nego que gostei dessa parte do seu artigo. Na metade que lhe resta, ele informa que lambeu a "Retrica" de Aristteles, o que deve ser verdade, por inusitado que parea esse modo de absoro de conhecimentos, e tambm que comunista, coisa que ningum jamais suspeitaria, no mesmo? Em seguida, interpretando uma frase na qual digo que os educadores esquerdistas, em vez de alfabetizar seus discpulos, querem adestr-los para o ataque como se fossem ces, ele entende que chamo esses discpulos de ces -- o que mostra que pelo menos no seu caso o adestramento obteve xito, ao ponto de dispensar a alfabetizao quase que por completo. No momento culminante da sua argumentao, ele declara que sou muito histrico, e esta horrvel constatao psiquitrica o deixa num tal estado de nervos que ele prprio cai vtima de tartamudez histrica e, em transe, exclama: "No sei o que dizer!" -- uma assero que no hesito em admitir como incontestvel e auto-evidente.

J o tal Juremir no se cansa. Quer por toda lei dizer alguma coisa contra mim. Quando no encontra nada, apela a algo que pelo menos parea contra. Com o ar de quem vai soltar um petardo, fazer um arraso, me desmoralizar por completo, ele informa aos leitores do "Correio do Povo" do dia 14 que dei cursos de astrologia e sou autor de alguns livros a respeito. Omite, obviamente, que essa informao est acessvel no meu site, http://www.olavodecarvalho.org, e que ela no tem nada de escandaloso, exceto aos olhos de quem, como o prprio Juremir, desconhea a distino entre os dois sentidos da palavra "astrologia": de um lado, a vulgar tcnica preditiva, de outro a simblica cosmolgica das Artes Liberais, sem a qual no se compreende uma s linha de Dante ou de Sto. Toms, e que hoje matria de conhecimento obrigatrio para todo estudante de histrias das idias em qualquer centro civilizado. A ignorncia do Juremir, no caso, to vasta que lhe encobre o horizonte inteiro, levando-o a supor que todos os seus leitores tomaro a palavra "astrologia" no seu sentido pop, o nico que ele conhece, e da tiraro concluses temveis para a minha reputao intelectual. Esse Juremir realmente um caso para a assistncia social. No posso sequer cham-lo malicioso. A malcia dele a de um menino que, tendo feito coc nas calas, d um sorrisinho de orgulho maquiavlico, achando que cometeu uma perversidade digna do Marqus de Sade.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/anticristo.htmSacerdcio do AnticristoOlavo de CarvalhoJornal da Tarde, 1o de fevereiro de 2001

Cuba o nico pas do Ocidente onde o cidado pode ser preso por mandar batizar um filho. Quando um ex-sacerdote diz ver nesse pas "o reino de Deus na Terra", est claro que ele no se despiu apenas da batina, nem da f catlica, mas dos ltimos vestgios de moral crist, mesmo laicizada, que ainda pudessem restar no seu corao de apstata.

Isso no quer dizer que seja um ateu. O atesmo uma rejeio da f, no uma inverso dela. A inverso coloca no topo o que estava embaixo, chamando o inferno de cu, odiando o que Deus ama e amando o que Deus abomina. O Anticristo no um no-Cristo, uma supresso do Cristo: um Cristo s avessas, que ilude as multides porque corresponde ao Cristo ponto por ponto, apenas de cabea para baixo. Por isso o ex-sacerdote no se torna ateu. De certo modo, continua sacerdote. Sem isso, no poderia oficiar o rito diante do crucifixo invertido.

A inverso no troca somente o alto pelo baixo, mas o interior pelo exterior. Toda religio, e o cristianismo tambm, possui um ncleo de doutrina imutvel e uma infinidade de smbolos exteriores que mudam com o tempo, refletindo a adaptao da f s modas culturais e s variaes do imaginrio popular. Numa poca com forte senso da hierarquia, a imagem de Cristo-Rei sugeria a analogia da Nova Aliana com a estabilidade da ordem social e csmica. Numa sociedade democrtica, predomina a imagem do Cristo simples e popular, a circular annimo entre mendigos e prostitutas. Cristo contm em si, inseparavelmente, a autoridade e a simplicidade. A moda cultural enfatizar autonomamente uma ou outra, de maneira que ela acabe por se tornar, sozinha, o emblema do cristianismo. A essa altura, que faz a Igreja do Anticristo? Enverga esse emblema e o ostenta com tal espalhafato, que ele acaba por encobrir e substituir o ncleo da f, jogando-o fora em nome de algo que, aos olhos da multido, passa pelo mais puro cristianismo.

A divinizao dos smbolos da realeza permitiu que a autoridade do Cristo-Rei personificada no monarca legitimasse, sem grande escndalo pblico, a matana de bispos e santos. Numa poca de igualitarismo, a moda cultural a "igreja dos pobres". Em seu nome so renegados e abolidos os Dez Mandamentos, o Credo e cada palavra do Evangelho, sem que ningum se d conta de ter-se afastado do cristianismo um s milmetro. Proibir a missa, criminalizar o batismo, matar multides de crentes tornam-se provas de profunda f crist.

Quanto mais adventcio, perifrico e desprezvel o smbolo, maior seu poder de usurpar o lugar do simbolizado. No conhecemos com certeza, por exemplo, a figura real do Jesus histrico. Todas as suas representaes so imaginrias. Algumas pocas conceberam-no com os traos nobres de um prncipe, outras com a fisionomia rstica de um campons; umas, como um adulto atltico, de olhar severo; outras, como um jovem de expresso sonhadora e barba rala. Na nossa poca, onde moda populista se somou a idolatria da juventude, veio a predominar esta ltima imagem. E a coincidncia fortuita dela com os traos de Ernesto Che Guevara basta para dar verossimilhana identidade essencial desse genocida frio e psicopata com o prprio Jesus Cristo, proclamada pelo sacerdote acima referido. Esa trocou sua primogenitura por um prato de lentilhas, que ao menos o alimentou por umas horas; o sacerdote de que estou falando sugere que a troquemos pela contemplao idiota de um "poster" que, se fosse o dos Beatles, funcionaria igualmente bem para essa finalidade.

Mas quem o tal sacerdote? Aluses e indiretas, sobretudo proferidas com ar de inocncia, no so do meu estilo. Se me perguntarem se estou falando do tal de Betto, responderei que indiscutivelmente sim, com a ressalva de que no o aponto como indivduo e sim como amostra casual de um tipo cujo nome legio. Tanto que chego a confundi-lo com o sr. Boff, em razo da xifopagia espiritual que os une, e, no conseguindo distinguir nenhum dos dois do peruano Gutierrez que de certo modo os gerou, poderia aplicar a qualquer dos trs a descrio acima, sem mudar uma s palavra. Pouco importam, enfim, os nomes: o sacerdcio do Anticristo misso impessoal como um comissariado do povo na extinta URSS, e ningum lhe vende a alma sem entregar, com ela, a identidade pessoal.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/escrever.htmAprendendo a escreverOlavo de CarvalhoO Globo, 3 de fevereiro de 2001

lendo que se aprende a escrever - eis o tipo mesmo da frmula sinttica que traz dentro muitas verdades, mas que de to repetida acaba valendo por si mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles contedos valiosos que, para ser apreendidos, requereriam que a frmula fosse antes negada e relativizada dialeticamente do que aceita sem mais nem menos.

Ler, sim, mas ler o qu? E basta ler ou preciso fazer algo mais com o que se l? Quando a frmula passa a substituir estas duas perguntas em vez de suscit-las, ela j no vale mais nada.

A seleo das leituras supe muitas leituras, e no haveria sada deste crculo vicioso sem a distino de dois tipos: as leituras de mera inspeo conduzem escolha de um certo nmero de ttulos para leitura atenta e aprofundada. esta que ensina a escrever, mas no se chega a esta sem aquela. Aquela, por sua vez, supe a busca e a consulta. No h, pois, leitura sria sem o domnio das cronologias, bibliografias, enciclopdias, resenhas histricas gerais. O sujeito que nunca tenha lido um livro at o fim, mas que de tanto vasculhar ndices e arquivos tenha adquirido uma viso sistmica do que deve ler nos anos seguintes, j um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha mergulhado na "Divina comdia" ou na "Crtica da razo pura" sem saber de onde saram nem por que as est lendo.

Mas h tambm aquilo que, se no me engano, foi Borges quem disse: "Para compreender um nico livro, preciso ter lido muitos livros." A arte de ler uma operao simultnea em dois planos, como num retrato onde o pintor tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes da frente e as linhas do fundo. A diferena entre o leitor culto e o inculto que este toma como plano de fundo a lngua corrente da mdia e das conversas vulgares, um quadro de referncia unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e profundo, de mais pessoal e significativo num escritor. O outro tem mais pontos de comparao, porque, conhecendo a tradio da arte da escrita, fala a lngua dos escritores, que no nunca "a lngua de todo mundo", por mais que at mesmo alguns bons escritores, equivocados quanto a si prprios, pensem que .

No h propriamente uma "lngua de todo mundo". H as lnguas das regies, dos grupos, das famlias, e h as codificaes gerais que as formalizam sinteticamente. Uma dessas codificaes a linguagem da mdia. Ela procede mediante reduo estatstica e estabelecimento de giros padronizados que, pela repetio, adquirem funcionalidade automtica.

Outra, oposta, a da arte literria. Esta vai pelo aproveitamento das expresses mais ricas e significativas, capazes de exprimir o que dificilmente se poderia exprimir sem elas.

A linguagem da mdia ou da praa pblica repete, da maneira mais rpida e funcional, o que todo mundo j sabe. A lngua dos escritores torna dizvel algo que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela delimita um horizonte coletivo de percepo dentro do qual todos, por perceberem simultaneamente as mesmas coisas do mesmo modo e sem o menor esforo de ateno, acreditam que percebem tudo. Esta abre, para os indivduos atentos, o conhecimento de coisas que foram percebidas, antes deles, s por quem prestou muita ateno. Ela estabelece tambm uma comunidade de percepo, mas que no a da praa pblica: a dos homens atentos de todas as pocas e lugares - a comunidade daqueles que Schiller denominava "filhos de Jpiter". Esta comunidade no se rene fisicamente como as massas num estdio, nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e dos eleitores. Seus membros no se comunicam seno pelos reflexos enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitrias que brilham na vastido escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de noite, vistas da janela de um avio.

Uma enfim, a lngua das falsas obviedades, outra a das "percepes pessoais autnticas" de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos, entre os quais os nossos professores de literatura, asseguram que no h diferena. Mas o nico mtodo cientfico em que se apiam para fazer essa afirmao o argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos artifcios sofsticos, que consiste em deduzir, de seu prprio desconhecimento de alguma coisa, a inexistncia objetiva da coisa. A lngua literria existe, sim, pelo simples fato de que os grandes escritores se lem uns aos outros, aprendem uns com os outros e tm, como qualquer outra comunidade de ofcio, suas tradies de aprendizado, suas palavras-de-passe e seus cdigos de iniciao. Tentar negar esse fato histrico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras de Saussure negar a existncia das partculas atmicas pela impossibilidade de conhecer ao mesmo tempo sua velocidade e sua posio.

A seleo das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de apreender, na variedade do que se l, as regras no escritas desse cdigo universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner, Camilo a Sfocles e Eurpides, Elliot a Confcio e Jalal-Ed-Din Rmi.

Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura inicitica: a conquista da palavra perdida que d acesso s chaves de um reino oculto. Fora disso, rotina profissional, pedantismo ou divertimento pueril.

Mas a aquisio do cdigo supe, alm da leitura, a absoro ativa. preciso que voc, alm de ouvir, pratique a lngua do escritor que est lendo. Praticar, em portugus antigo, significa tambm conversar. Se voc est lendo Dante, busque escrever como Dante. Traduza trechos dele, imite o tom, as aluses simblicas, a maneira, a viso do mundo. A imitao a nica maneira de assimilar profundamente. Se impossvel voc aprender ingls ou espanhol s de ouvir, sem nunca tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos escritores?

O fetichismo atual da "originalidade" e da "criatividade" inibe a prtica da imitao. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem da mdia. O mximo que eles conseguem produzir criativamente banalidades padronizadas.

Ningum chega originalidade sem ter dominado a tcnica da imitao. Imitar no vai tornar voc um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se eleva altura de poder imitar os grandes, segundo porque, imitando um, depois outro e outro e outro mais, voc no ficar parecido com nenhum deles, mas, compondo com o que aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de dizer, acabar no fim das contas sendo voc mesmo, apenas potencializado e enobrecido pelas armas que adquiriu.

nesse e s nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. um ler que supe a busca seletiva da unidade por trs da variedade, o aprendizado pela imitao ativa e a constituio do repertrio pessoal em permanente acrscimo e desenvolvimento. Muitos que hoje posam de escritores no apenas jamais passaram por esse aprendizado como nem sequer imaginam que ele exista.

Mas, fora dele, tudo barbrie e incultura industrializada.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/doido.htmO rock do brasileiro doidoOlavo de Carvalhopoca, 3 de fevereiro de 2001

Desencontrado, eu mesmo me contesto(Chico Buarque de Hollanda, em Calabar)O que aconteceu no Rock in Rio a imagem viva da esquizofrenia nacional. O sujeito se veste de americano, pula e dana o dia inteiro ao som da msica americana e, quando v na tela a bandeira dos Estados Unidos, se inflama de brios patriticos e brada contra o colonialismo cultural. Depois continua pulando e joga latas de protesto na cabea de Carlinhos Brown quando ele quer estragar o festival de americanidade tocando msica baiana. J viram uma coisa dessas? Olvio Dutra tomando Coca-Cola numa cuia de chimarro para disfarar e fazendo um discurso contra a gua negra do imperialismo.

Mas, no Frum Social de Porto Alegre, a imagem adquiriu corpo, vida e movimento: entre vaias e apupos Nova Ordem Mundial, a ilustrada assemblia manifestou seu amor ao direito trabalhista global, ao desarmamento civil, s quotas raciais preferenciais e ao controle da internet quatro quintos do programa da Nova Ordem Mundial. O quinto restante foi objeto de debates s porque os participantes querem fazer tudo isso com os mtodos econmicos de Cuba, do Vietn e da Coria do Norte, o que certamente no ser motivo de discusso por muito tempo, j que a Nova Ordem Mundial sabe respeitar a independncia das naes e larg-las sozinhas, num arrabalde infecto, quando elas fazem uma opo preferencial pelo suicdio. Com a maior tranqilidade, ela virou as costas aos povos da frica, que gritavam de revolta contra o capitalismo internacional que no os largava e hoje espumam de dio contra o capitalismo internacional que os abandonou. No futuro Brasil socialista, quando estivermos disputando a tapa uma perna de rato, Olvio Dutra, exibindo indignado uma lata de Coca-Cola vazia, dir que tudo culpa da maldita Ford que o deixou na mo quando ele mais precisava dela.

Quando digo que este pas est louco, insano, necessitado de urgentes cuidados psiquitricos, as pessoas pensam que estou brincando. Mas vejam o nmero de nossos compatriotas que nos anunciam o socialismo com a seriedade e a compenetrao de quem tivesse nas mos um remdio salvador. O Estado socialista mais rico e poderoso que j existiu foi a URSS. Era a segunda potncia industrial do mundo. Se o Brasil implantar o socialismo hoje, levar meio sculo, na melhor das hipteses, para alcanar o patamar de desenvolvimento que a URSS havia escalado quando, em 1991, veio ao cho. Qual a altura desse patamar? Segundo dados oficiais, o cidado mdio sovitico, em 1987, recebia metade da rao de carne que o sdito do czar comia em 1913. Os negros sob apartheid na frica do Sul tinham mais carros per capita que os soviticos. Em 1989, sem guerra nem nada, havia racionamento de comida em Moscou. A famlia mdia (mdia, no pobre) de quatro pessoas espremia-se num cmodo de 3 metros quadrados, como nossos favelados. O operrio, trabalhando um ano inteiro, ganhava metade do que uma me americana desempregada recebia por ms do servio social. Tudo isso, claro, nas regies mais desenvolvidas. Na periferia Uzbequisto e Tadjiquisto, por exemplo 93% das casas no tinham esgoto e 50% nem gua encanada. A atmosfera era a mais poluda da Europa e os investimentos em sade os mais baixos do mundo industrializado.

Mas o socialismo ao qual os brasileiros esto pedindo receitas de prosperidade no nem o da URSS. o de Cuba, da Coria do Norte, do Vietn, lugares aonde um russo s ia por aquele esprito de sacrifcio patritico com que um oficial ingls do sculo passado, abandonando o conforto de seu clube londrino, se aventurava nas matas do Sudo, entre mosquitos e orangotangos, pela glria da Rainha. E ainda dizem que o doido sou eu.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/motivos.htmMotivos da filosofiaOlavo de CarvalhoO Globo, 10 de fevereiro de 2001

As idias influenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela validade objetiva do seu contedo do que por servir de smbolos que condensam sentimentos coletivos -- desejos, dios, temores, esperanas. possvel, at, que toda idia brote desses sentimentos. Mas a transformao do sentimento em idia tem vrios graus possveis de elaborao. O simples desejo de expressar o anseio coletivo no a nica motivao que leva um filsofo a criar uma doutrina. H tambm o impulso de coerncia e o simples desejo de conhecer a realidade, de abrir-se variedade dos fatos mesmo quando contrariem os nossos sentimentos e quando no possam facilmente ser reduzidos unidade de uma explicao. Esses trs motivos de filosofar so, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na frmula pessoal define o estilo e o modo de ser de cada filsofo. O tipo extremo, no qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir os outros dois, to raro quanto o composto equilibrado dos trs. Mas "que los hay, los hay".

O tipo mesmo do filsofo "expressivo" Nietzsche. Ele costumava comparar-se a um perdigueiro, farejando o vento em busca do possvel, do latente, que depois ele cristalizava em smbolos literrios de um poder sugestivo quase hipntico. natural que este estilo de pensamento, por estar ainda muito prximo da imaginao potica, se expresse numa linguagem descontnua, aforstica, metafrica. Por isto Nietzsche no tem propriamente uma doutrina, mas uma massa gnea de doutrinas virtuais, umas em conflito com as outras e algumas em conflito aberto com os fatos. O brilho da sua forma literria encobre e revela, ao mesmo tempo, a hesitao informe de um saber que se anuncia e no acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo herico e a corroso decadentista, o nietzscheanismo uma aurora vacilante que perde o seu momento e no se levanta jamais.

No extremo oposto est Spinoza. Seu apego coerncia lgica era tanto, que ele no apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma acabada e plena de uma deduo geomtrica, mas ainda proclamou a absoluta soberania cognitiva da pura deduo racional e desprezou como intil e enganosa a experincia dos fatos. O spinozismo o esprito de sistema levado s suas ltimas conseqncias. H um encanto esttico tambm a, mas no do tipo verbal: a beleza abstrata da unidade lgica, um diamante boiando no infinito, fora do tempo, longe da "agitao feroz e sem finalidade" deste nosso mundo. Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na ao, no emprico, s mostram a falta de pudor de exegetas que se apressam a interpret-lo s avessas para p-lo a servio de fins prticos que no eram nem poderiam ser os dele.

Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do orculo, e o segundo do artista plstico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar de ser filsofo, aproxima-se antes do modelo do cientista emprico. Max Weber. Weber meteu na cabea um problema -- o das relaes entre economia e moral religiosa -- e, na tentativa de resolv-lo, criou instrumentos intelectuais que perfazem, no fim das contas, toda uma filosofia das cincias. Se jogarmos a sua obra fora e dela s conservarmos os seus escritos de epistemologia e mtodo, eles j bastaro para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas, acumulando fatos em cima de fatos e indo busc-los nos registros de todas as civilizaes ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal modo a rea de sua investigao que, tendo lanado inicialmente uma hiptese, morreu sem ter chegado a saber exatamente se era verdadeira ou falsa. Mas seu legado incompleto precioso. Ele deixou-nos algo mais que um problema e um mtodo. Deixou-nos um exemplo de probidade intelectual levada at o extremo do auto-sacrifcio.

Em geral, os filsofos tm um pouco de cada uma dessas tendncias, arranjadas em padres mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por exemplo, uma mistura da imaginao simblica de Nietzsche com a nsia weberiana de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da coerncia lgica, no lhe resta outro instrumento de unificao dos fatos seno o smbolo mesmo. Por isto sua filosofia da histria antes uma metfora, uma potica da histria.

Uma combinao mais freqente a do segundo tipo com o terceiro: aquele misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso, mas seco e sem imaginao, que nas pocas de prestgio universitrio impera do alto das ctedras como um rbitro do razovel e do irrazovel. Penso em Victor Cousin, em Lon Brunschvicg ou em tantos, tantos dentre os neo-escolsticos! Fazem um bom trabalho e so importantes durante algum tempo, mas depois so esquecidos.

A combinao mais letal a do primeiro com o segundo tipos, sem nada ou quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tendncias com o construtor de sistemas, sem a humildade do cientista ante os fatos, produz o arquiteto de desastres. Nele a possibilidade captada no ar se transmuta, pela estruturao lgica, em projeto de ao que alia, fora arregimentadora do smbolo e certeza racional da ordem, o total desprezo pela realidade quando ela insiste em contrari-lo. o homem que no compreende nem quer compreender o mundo, mas transform-lo imagem e semelhana de um desejo enrijecido em sistema. Infelizmente, pela prpria lgica das coisas, este , de todos os tipos, puros ou combinados, aquele que tem mais fora de ao imediata sobre o contorno social. Karl Marx.

O equilbrio das trs tendncias uma felicidade raras vezes alcanada. O homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a coerncia do segundo, a honestidade cientfica do terceiro. Sua filosofia, mesmo temporariamente ignorada pelos seus contemporneos, sempre uma fora benfica que atravessa os sculos, inspirando, ensinando, civilizando. Os filsofos deste tipo so uma bno para a humanidade. Exemplos? Bem, no me resta muito espao para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor algum dia, voto, para o momento, em Aristteles e Leibniz.

PS - No meu site da internet um de meus artigos vem antecedido do aviso de que foi rejeitado por todos os peridicos a que o ofereci. Embora a frase obviamente no implique que eu o tenha oferecido a todos os peridicos do pas, alguns engraadinhos parece que da deduziram, e passaram a insinuar, que fui censurado no GLOBO. No leram ou fizeram que no leram a data do artigo, muito anterior ao incio de minha colaborao neste jornal. Proclamar os mritos de uma publicao que sabe respeitar a liberdade de seus colaboradores no s um dever: um prazer. Alegremente, pois, informo que aqui jamais sofri censura ou restries de espcie alguma, por mais que isto doa a pessoas que, no gostando nem de mim nem do GLOBO, muito apreciariam que eu as sofresse.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/superior.htmO Irracional SuperiorOlavo de Carvalhopoca, 10 de fevereiro de 2001

Tal personagem j est entre ns. Converse dois minutos com ele e emburre para sempre.

Outro dia perguntei a um festejado jornalista brasileiro o que ele achava de algo que eu tinha lido num determinado livro e obtive a seguinte resposta: Nunca ouvi falar e acho que no tem o menor fundamento.

Desde que entrei mais ativamente na arena dos combates jornalsticos, em 1995, quase 100% das objees que tenho encontrado assumem a forma desse argumento: Eu no sei do que voc est falando, logo voc est errado.

Em lgica, isso se chama argumentum ad ignorantiam: deduzir, do prprio desconhecimento de uma coisa, a inexistncia da coisa. uma das formas elementares de sofisma, e o que me espanta que ela tenha adquirido, para a mentalidade dos brasileiros falantes, tanta autoridade e tanta credibilidade.

A premissa dessa atitude mental , evidentemente, a mais insustentvel que se pode imaginar: Eu sei tudo (logo, o que eu desconheo no existe). O sujeito que raciocina nessa base tem um dogmatismo pueril e autoconfiante que chega a ser comovente em sua total candura. verdade que, no uso dirio, o sofisma aparece disfarado sob a forma de um entimema, isto , de um silogismo com premissa oculta: o sujeito faz uma elipse mental, saltando direto do sentimento de surpresa para a negao peremptria da novidade repulsiva, sem se dar conta do pressuposto lgico que embasa sua concluso. Ele no , pois, conscientemente dogmtico. Mas, em vez de atenuar a gravidade do erro, isso s pe em relevo uma prodigiosa inconscincia.