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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA LUISA LUZE BRUM GENUNCIO SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS Rio de Janeiro 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA

LUISA LUZE BRUM GENUNCIO

SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS

Rio de Janeiro

2019

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LUISA LUZE BRUM GENUNCIO

SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Lógica e Metafísica, Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Filosofia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia C. P. Teixeira

Rio de Janeiro

2019

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LUISA LUZE BRUM GENUNCIO

SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Lógica e Metafísica, Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Filosofia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia C. P. Teixeira

Rio de Janeiro, 28 de junho de 2019.

Banca examinadora

Célia C. P. Teixeira, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Roberto Horácio de Sá Pereira, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ludovic Soutif, Doutor, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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V

Agradecimentos

Aos meus pais, em primeiro lugar, por todas as oportunidades e apoio.

Aos meus tios e tias, primos e primas pelo incentivo e chás da tarde.

Aos meus professores que muito me ensinaram, e especialmente a gostar dos desafios

filosóficos. Ao professor Marco Rufino por me direcionar no caminho da filosofia da linguagem.

Ao professor Guido Imaguire por me incentivar a me envolver seriamente com a filosofia. Ao

professor Roberto Horácio por seu contínuo apoio e incentivo. E principalmente à professora Célia

Teixeira, sem a qual este trabalho teria sido condenado a ser mera ficção. Minha orientadora tem

toda a minha gratidão pelo apoio incessante, e pelas muitas chances.

Aos meus amigos William, Diego e Gabriel pelo apoio e presença nos desafios e conquistas.

Às minhas amigas Luciana e Rosi, presentes que ganhei ao frequentar esse Programa, fontes de

inspiração e incentivo. Às minhas amigas-irmãs Bruna e Paula pelas conversas sem fim.

Aos professores Roberto Horácio e Ludovic por aceitarem o convite para participar da

Banca.

A CAPES, FAPERJ e ao PPGLM, por oferecerem as condições para o desenvolvimento

desse trabalho.

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Resumo

GENUNCIO, Luisa Luze Brum. Sentido, referência e nomes ficcionais. Luisa Luze Brum

Genuncio. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-

Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

O principal foco dessa dissertação é investigar qual o sentido dos nomes ficcionais, como é feita a

referência desses nomes e se é possível considerar que frases com esses nomes podem ser

verdadeiras. Nomes ficcionais são geralmente considerados uma subcategoria de nomes próprios.

No entanto, eles são considerados nomes vazios, ou seja, nomes sem referentes que expliquem o

sentido a eles atribuído. Os dois primeiros capítulos são compostos da exposição das teorias

principais acerca do funcionamento semântico dos nomes em geral de modo a avaliar como essas

teorias explicam as condições especiais dos nomes ficcionais. Nos últimos três capítulos avalio as

principais ideias propostas por três importantes teorias sobre ficção de modo a identificar aquilo

que me parece ser a melhor solução para dar conta do funcionamento semântico dos nomes

ficcionais e, por conseguinte, das intuições acerca da possibilidade de asserir verdades acerca da

ficção. A criação da ficção é considerada como uma atividade intencional, e as teorias mais recentes

consideram que a determinação de valores de verdade em ficção e referência de nomes ficcionais

depende do uso de operadores intencionais.

Palavras-chave: sentido, referência, nomes ficcionais, ficção, valor de verdade.

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Abstract

GENUNCIO, Luisa Luze Brum. Sense, reference and fictional names. Luisa Luze Brum

Genuncio. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-

Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de

Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

The main focus of this dissertation is to investigate how reference is made for fictional names and

if it is possible to consider phrases with such names could be true. Fictional names are usually

considered to be a subcategory of proper names, however, unlike those fictional names are

considered empty names, that is, names without referents that explain the sense linked to them.

The first two chapters are composed of the exposition of the main theories regarding the semantic

working of names in general in order to evaluate how these theories explain fictional names’ special

conditions. In the last three chapters, I evaluate the main ideas proposed by three important theories

regarding fiction in order to identify that which seems to me to be the best solution on the semantic

function of fictional names, and thus, also of the intuitions regarding the possibility of asserting

truth about fiction. Fiction making is considered an intentional activity, and recent theories consider

that fiction truth value fixing, and fictional names reference depend on the use of intentional

operators.

Keywords: sense, reference, fictional names, fiction, truth value.

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“O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.”

Fernando Pessoa, Autopsicografia

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Sumário

Introdução ..................................................................................................................................... 10

Capítulo 1 – Conteúdo semântico de nomes ................................................................................ 15

1.1 Denotação ............................................................................................................................ 16

1.2 Sentido e Referência ........................................................................................................... 22

1.3 Dificuldades das Descrições Definidas .............................................................................. 26

1.4 Diferentes Tipos de Descritivismo ...................................................................................... 28

Capítulo 2 – Referência Direta..................................................................................................... 31

2.1 Argumentos contra o descritivismo .................................................................................... 32

2.2 Referência e Existência ...................................................................................................... 37

2.3 Implicações metafísicas ...................................................................................................... 41

Capítulo 3 – Teoria do Fingimento .............................................................................................. 47

3.1 Fingimento de Asserções .................................................................................................... 48

3.2 Fingimento da Referência Direta ....................................................................................... 50

3.3 Designação Rígida na Ficção ............................................................................................. 53

3.4 Pressuposição de Existência ............................................................................................... 55

Capítulo 4 – Teoria do Faz de Conta ........................................................................................... 58

4.1 Entidades Ficcionais ........................................................................................................... 60

4.2 Fazer Ficção ........................................................................................................................ 62

4.3 Representação e Referência................................................................................................ 65

4.4 Verdade na Ficção .............................................................................................................. 67

Capítulo 5 – Ficcionalismo .......................................................................................................... 69

5.1 Ficcionalizar........................................................................................................................ 70

5.2 Verdades Ficcionais ............................................................................................................ 73

5.3 Uma Teoria de Nomes Ficcionais ...................................................................................... 75

Considerações Finais.................................................................................................................... 78

Referências bibliográficas ............................................................................................................ 80

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Introdução

Nomes próprios são um tópico filosófico interessante pois são comumente usados de forma

competente por quaisquer falantes de uma linguagem natural, entretanto a explicação do que são é

uma tarefa mais difícil do que seu uso correto1. De modo similar, nomes ficcionais são usados sem

grandes dificuldades por falantes que não estão necessariamente preocupados em como exatamente

o sentido e referência do conteúdo semântico que eles querem transmitir está sendo transmitido. O

uso competente dos nomes próprios e dos ficcionais aparentemente não depende da compreensão

de como sentido e referência são determinados, contudo seria impossível determinar o valor de

verdade de frases com estes nomes sem saber essas coisas.

Ao longo do desenvolvimento das diversas teorias da filosofia da linguagem sobre nomes

próprios, nomes vazios têm sido foco de muitas discussões. Nomes vazios são nomes sem referente,

isto é, nomes que não se referem a objetos no mundo. Alguns nomes são acidentalmente vazios,

quando parece existir um processo normal de nomeação, todavia existe algum erro em algum

momento e não há o referente que se acreditava ter sido nomeando. Outros nomes vazios, como os

nomes ficcionais são intencionalmente vazios. Enquanto produtos da criação da obra ficcional os

nomes propositalmente não se referem a nenhum objeto real. Existem outros casos de nomes

vazios, mas para o presente trabalho a pesquisa manterá o foco em nomes ficcionais.

O uso de nomes ficcionais na linguagem natural apresenta um desafio para as teorias do

significado em geral, e da referência em particular. O sentido de um nome ficcional não é o mesmo

de um nome próprio, não é determinado do mesmo modo. A contribuição semântica para o sentido

geral e valor de verdade das frases da qual este tipo de nome participa é distinta daquela que o

nome próprio faz. Com relação à referência, os nomes ficcionais podem ser usados de modos

aparentemente contraditórios: afirmando a existência de não-existentes e negando a sua existência.

Existe a inclinação de negar que “Sherlock Holmes” seja um nome com referente e ao mesmo

1 Linguagem natural são línguas que ocorrem naturalmente em sociedade (Latim, Italiano, Português etc.), em oposição

a linguagens lógicas ou computacionais, que são linguagens criadas dentro de parâmetros exatos para usos

específicos (LPO, CPPO, Java, Python etc.).

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tempo afirmar que Sherlock Holmes é uma personagem ficcional. Uma teoria da referência de

nomes próprios precisa ser capaz de responder a essas duas intuições2.

O tema dos nomes ficcionais provocou alguns filósofos a desenvolverem teorias a respeito

de como a ficção funciona de forma a responderem perguntas como: O que determina o que é

ficção? É possível existir verdade em ficção? Nomes ficcionais são nomes próprios? Entidades

ficcionais existem? Se existem, então como são criadas essas entidades? Contudo, esta pesquisa

focará sobretudo na semântica dos nomes ficcionais. Com isso em vista, começarei primeiro por

apresentar as teorias mais tradicionais da referência dos nomes próprios de forma a ver em que

medida estas nos permitem responder os problemas peculiares levantados pelos nomes ficcionais.

Se assumirmos que nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes próprios, então qualquer teoria

satisfatória acerca do funcionamento semântico dos nomes próprios em geral terá de acomodar os

nomes ficcionais. Se tal não for possível, isso poderá ser em si uma razão para abandonar a ideia

intuitiva de que nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes próprios.

Segundo Kendall Walton (1990), uma teoria que explique a referência dos nomes ficcionais

precisa ser capaz de explicar como as entidades ficcionais vêm a existir (se de fato existirem), mas

uma teoria sobre o tópico não deveria pressupor esse tipo de objeto abstrato gratuitamente. Afinal,

a intuição inicial que move o problema dos nomes ficcionais é que Sherlock Holmes não existe,

mas isso implicaria no nome próprio “Sherlock Holmes” não ter sentido nem referência. Esta

intuição precisa ser explicada, pois nomes ficcionais participam da linguagem natural, e são usados

com sentido, e alguns argumentam, com referência. A outra intuição, nomeadamente a de que é

verdade que Sherlock Homes é uma personagem ficcional, também precisa ser devidamente

explicada, pois a negação da existência de Sherlock Holmes é geralmente muito fácil e natural.

No primeiro capítulo, exporei as duas principais teorias do século XIX sobre nomes.

Começo por John Stuart Mill, um filósofo inglês que propôs uma influente teoria da referência

direta no seu livro A System of Logic. Segundo ele, nomes próprios apenas denotam objetos. Mill

2 Kit Fine (1984, p.95) explica alguns dos problemas que Terence Parsons (1980) tentou e falhou em resolver com

relação a objetos não-existentes, um problema metafísico. Entretanto, ele também indica que o ônus explicativo dos

nomes ficcionais e da existência de entidades ficcionais está do lado dos filósofos da linguagem preocupados com

teorias de nomes. Pois, dependendo de como a referência é feita, pode não existir a necessidade de introduzir

entidades ficcionais na nossa metafísica.

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considerou que nomes têm apenas a função de se referir, sem nenhuma conotação. Isso é, durante

o uso de um nome próprio não é transmitido nenhum conteúdo adicional, nenhuma das eventuais

descrições do objeto mediante suas propriedades. O nome próprio tem a sua função semântica

completamente cumprida ao fazer a referência. A referência do nome é o objeto e não as ideias que

a falante tem sobre o objeto. A falante da linguagem natural não transmite suas ideias sobre o nome

“Lua” quando diz que “A Lua é um satélite”. O uso do nome não transmite para a ouvinte ideias

como “composta primariamente por rochas”, mas o próprio objeto, ao qual a falante se refere de

forma direta.

A aplicação da teoria milliana nos levaria à conclusão absurda segundo a qual todos os tipos

de nomes vazios não teriam conteúdo semântico. Se os nomes ficcionais não têm referência, então

sua função semântica seria considerada incompleta. Seria como se não houvesse transmissão de

nenhum conteúdo semântico com o uso de “Sherlock Holmes”. Em outras palavras, quando

enunciássemos, por exemplo, “Holmes é um detetive”, nada diríamos – o que nos parece um

contrassenso. Outra consequência aparentemente inaceitável do millianismo é a de que nomes

distintos com a mesma referência, como “Phosphorus” e “Hesperus”, teriam o mesmo conteúdo.

Porém isso é algo claramente enigmático, dado que dizer que “Phosphorus é Phosphorus” parece

diferente de dizer que “Phosphorus é Hesperus”. Este tipo de crítica induziu à rejeição, mesmo que

temporária, do millianismo.

A segunda teoria que apresentarei no primeiro capítulo é o descritivismo. Especificamente,

a distinção entre sentido e referência introduzida por Gottlob Frege. As chamadas Teorias

Descritivistas, segundo as quais os nomes não só se referem como têm sentindo, permitiu dar conta

do problema levantado por Frege de frases de identidade verdadeiras e informativas. Apesar do

entusiasmo com que o descritivismo foi recebido na filosofia da linguagem, os principais filósofos

da área tinham interpretações divergentes sobre o que eram nomes e como determinar valores de

verdade de sentenças existenciais. Ademais, nenhuma das versões da teoria teve os recursos

necessários para dar conta dos nomes ficcionais completamente, não sendo capaz de responder as

intuições ingênuas sobre referência e valor de verdade associadas a estes nomes3. Todavia, veremos

no segundo capítulo que o descritivismo sofre de problemas mais profundos do que a falta de

3 Por intuições ingênuas me refiro a intuições sem análises filosóficas profundas, aquelas intuições iniciais que são

geralmente compartilhadas pela maioria da população que não se preocupa com o estudo da filosofia.

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referência para nomes ficcionais e que até nomes próprios genuínos não se enquadram no

descritivismo.

No segundo capítulo apresentarei principalmente as críticas de Saul Kripke ao

descritivismo e a aparente retomada do millianismo como teoria mais correta de nomes. Para

Kripke, a função semântica do nome próprio é nomear, ou seja, denotar ou identificar um objeto

diretamente, enquanto a de uma descrição é descrever, ou seja, referir um objeto mediante as

propriedades expressas pela descrição. Mas isso não impede, no entanto, que a referência de um

nome não possa ser fixada através de uma descrição no momento de batismo. Entretanto, as

considerações kripkeanas acerca dos nomes parecem inadequadas quando aplicadas aos nomes

ficcionais. Particularmente, se a função dos nomes é referir, e se nomes ficcionais são

genuinamente nomes, parece que somos forçados a postular um domínio de entidades abstratas ou

de outro tipo de não-existente. Não é de todo claro que se possa defender uma ontologia de

entidades ficcionais com o mesmo tipo de considerações que levaram Kripke a estabelecer a relação

de designação rígida de nomes próprios. Isto, por sua vez, deve-nos forçar a negar a ideia de que

nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes. No fim deste capítulo, examinaremos brevemente

alguns dos problemas de admitir tantas entidades abstratas na nossa metafisica.

No terceiro capítulo, apresentarei as teorias do fingimento de John R. Searle e Kripke.

Claramente os nomes ficcionais têm algum tipo de conteúdo semântico, e precisamos de uma teoria

que explique como frases como “Sherlock Holmes não existe” e “Sherlock Holmes é um detetive”

podem ambas ser verdadeiras. Parece que a referência de nomes ficcionais pode ser feita uma hora

e fracassar na outra, de forma inconsistente. As teorias do fingimento tentam explicar que as frases

da ficção produzidas por autores não são asserções, mas apenas fingimentos, e que os nomes

ficcionais inicialmente não referem apesar de terem sentido. As teorias explicam o processo de

criação das entidades ficcionais que permite que leitores e audiência usem os nomes ficcionais com

referência (e sentido) produzindo frases verdadeiras e falsas. Apesar de responder muitas das

questões do tema de nomes ficcionais, estas teorias exigem um problemático compromisso

ontológico.

No quarto capítulo, apresentarei a Teoria do Faz de Conta de Kendall Walton. A teoria de

Walton argumenta a favor da distinção entre conteúdo semântico e força na determinação de

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valores de verdade de frases na ficção. Ele considera que a produção e o consumo da ficção

envolvem a participação em um tipo de jogo de faz de conta. O meu objetivo é argumentar por

alternativas à designação rígida com relação aos nomes ficcionais, e assim evitar o compromisso

ontológico com entidades abstratas que considero desnecessárias e inadequadas como referentes

desses nomes. Walton sustenta que jogos de faz de conta dependem de representações e que são

estas, e nunca entidades ficcionais, que são acessíveis aos participantes dos jogos de faz de conta,

sejam eles autores e atores, ou leitores e audiência.

No quinto e último capítulo, apresentarei a teoria que julgo melhor explicar as intuições

comuns sobre ficção. A Teoria Ficcionalista de Gregory Currie responde satisfatoriamente as

questões problemáticas inerentes tanto à teoria descritivista quanto à referencialista, e com um

menor compromisso ontológico do que outras teorias sobre nomes ficcionais. Exporei neste

capítulo uma teoria que explica como frases com nomes ficcionais podem ser verdadeiras ou falsas,

preservando intuições comuns a respeito da ficção. O ficcionalismo propõe que as frases da ficção

não são fingimentos de asserções e nem tampouco dependem da força do ato comunicativo, mas

são um tipo de ato de fala peculiar, ao invés do mal-uso de outro tipo de ato. A autora de ficção

está envolvida num ato de comunicação no qual ela produz ficção, ela produz uma narrativa

reconhecível como não atual, e que propositalmente não faz referência ao mundo. Os nomes

ficcionais não fazem referência ao mundo real, nomes não fazem referência a nada, falantes usam

os nomes ficcionalmente para comunicar propriedades e narrativa ficcionais, de acordo com a obra

ficcional que introduz o nome4.

4 As três teorias (Fingimento, Faz de Conta e Ficcionalismo) que escolhi expor nesta dissertação são as que considerei

mais relevantes para responder as questões sobre sentido e referência dos nomes ficcionais, e valor de verdade de

frases com nomes ficcionais. As duas teorias apresentadas nos dois últimos capítulos, de Walton e Currie, foram

publicadas em 1990, com grande impacto na área da filosofia da linguagem. Entretanto, em 2005 Mark Sainsbury

publicou o livro Reference Without Referents, no qual apresenta uma teoria que explica a referência de nomes vazios

assimilando conceitos centrais do referencialismo direto e do descritivismo. A teoria de Sainsbury combina lógica

livre e condições de verdade num sistema onde o sentido dos termos é determinado por axiomas de referência que

não implicam que termos referenciais têm referentes, semelhante a como sentenças podem ter sentido sem terem

valor de verdade. A teoria de Sainsbury, comumente chamada RWR, é uma posição intermediária entre as teorias da

Referência Direta e do Descritivismo. Contudo, RWR não foi incluída nesta dissertação porque considerei que o

Ficcionalismo de Currie já oferece soluções satisfatórias para as questões tratadas nesta pesquisa, assim como

preserva muitas das intuições comuns sobre ficção e nomes ficcionais que uma teoria mais complexa como RWR não

faz.

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Capítulo 1 – Conteúdo semântico de nomes

Neste capítulo apresentarei duas teorias tradicionais que buscam explicar o conteúdo

semântico dos nomes próprios com a intenção de averiguar em que medida estas podem ser

aplicadas aos nomes ficcionais. As principais referências para esta seção são alguns trabalhos

clássicos de John Stuart Mill, que apresentou uma teoria de referência direta, e de Gottlob Frege e

de Bertrand Russell, que formularam teorias divergentes da de Mill e ficaram conhecidas como

teorias descritivistas dos nomes. Assim veremos como a teoria da referência direta de Mill e as

teorias descritivistas de Frege e de Russell divergem acerca do conteúdo semântico e dos modos

de referência dos nomes.5

Um termo geral é um termo que refere um conjunto de objetos ou a propriedades abstratas.

Termos como “baleia”, “planeta”, “filósofo” são termos gerais. Nomes próprios, como “Platão” e

“Aristóteles”, são chamados de “termos singulares”, pois referem um único indivíduo. Contudo,

nem todos os termos singulares são nomes próprios. O que faz de uma categoria gramatical um

termo singular é a sua função de designar uma única coisa ou objeto. Termos demonstrativos, como

“este” ou “aquele” também podem ser usados como termos singulares. O mesmo acontece com

descrições definidas – algo que, como iremos ver, é importante para a teoria descritivista. Por

exemplo, a descrição definida “O aluno de Platão e professor de Alexandre o Grande” se refere

(caso seja bem-sucedida) a um único objeto, nomeadamente, o filósofo Aristóteles. Termos gerais

também podem ter descrições associadas a eles, por exemplo “baleia” tem inúmeras descrições

associadas ao termo, como: mamífero marinho, endotérmico, cetáceo etc. Estas descrições não são

definidas como o tipo mencionado anteriormente, pois não selecionam um objeto singular, mas

uma classe de objetos. Neste capítulo, contudo, iremos sobretudo tratar de nomes e da sua possível

relação com descrições definidas.

Dentro da classe de nomes, os ficcionais são uma classe peculiar. Nomes ficcionais são

interessantes porque apresentam dificuldades bastante especificas às teorias que explicam a

semântica de nomes próprios em geral. Antes de podermos discutir essas dificuldades, contudo,

5 Note-se, contudo, que Russel achava que nomes em sentido lógico eram millianos, e que nomes próprios não eram

nomes em sentido lógico. Contudo, Russell, por outros motivos, é considerado um dos pais da teoria descritivista.

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apresentarei as principais teorias que explicam o modo de referência e associação de conteúdo

semântico dos nomes próprios e em que medida essas teorias propostas para explicar esse

funcionamento podem ser aplicadas aos nomes ficcionais. Com esse objetivo em vista, começarei

por apresentar a discussão entre as duas teorias tradicionais sobre o funcionamento semântico dos

nomes próprios. Defenderei a tese segundo a qual elas apresentam explicações insatisfatórias para

o problema específico dos nomes ficcionais.

Na seção 1.1 deste capítulo apresentarei a teoria de Mill sobre nomes próprios. Mill foi um

filósofo britânico do século XIX com estudos e publicações de grande impacto em diversas áreas

da Filosofia incluindo Política, Ética e Lógica. Escreveu um livro em 1843 chamado A System of

Logic, em que apresentou a sua teoria de nomes. O livro apresenta um sistema de lógica e

raciocínio, e Mill fez modificações no texto ao longo de trinta anos em resposta aos comentários

de seus pares, resultando em múltiplas edições. Mill considerou que definir os termos da linguagem

usada seria o primeiro passo necessário para desenvolver um sistema de lógica.

Na seção 1.2 apresentarei de modo breve a teoria descritivista de Frege. Muito pode ser dito

sobre as distinções entre sentido e referência de nomes, e suas associações com as descrições

definidas. No entanto, o motivo para fazer apenas uma breve apresentação da teoria se deve a ela

não oferecer respostas conclusivas para o problema específico dos nomes ficcionais, e às questões

que incitaram esta pesquisa. Na seção seguinte, 1.3, apresentarei uma versão diferente do

descritivismo devido às adições das ideias de Russell sobre como descrições definidas podem

interferir na determinação de valor de verdade de frases e com os problemas de identificação do

referente. Na última seção deste capítulo, 1.4, compararei algumas críticas e divergências do

descritivismo, considerando as posições diferentes dos principais filósofos da área, Frege e Russell.

1.1 Denotação

O livro A System of Logic tem a lógica como tema principal, mas começa com uma análise

da linguagem e concentra grande parte dos argumentos nas funções de nomes. Segundo o autor,

“Não se deve esperar que exista um acordo acerca da definição de qualquer coisa, até que exista

um acordo sobre o que é a coisa em si.” (1882, p.8). No seu System of Logic, Mill apresenta uma

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teoria de nomes próprios na qual argumenta que estes não têm conteúdo descritivo ou conotação.

Para Mill, o significado de um nome próprio se reduz à referência ao indivíduo nomeado. Nomes

comuns, isto é, termos gerais como anteriormente caracterizados, podem possuir algum conteúdo

descritivo, mas o conteúdo dos nomes próprios se esgotaria no indivíduo referido pelos mesmos.

Algum tipo de conteúdo descritivo pode estar envolvido na circunstância de nomeação, isto é, ao

fixar a referência do nome próprio, como no caso da Mont Blanc, onde a descrição de montanha

branca foi usada para fixar a referência do nome próprio da montanha mais alta da Europa6.

Uma teoria dos nomes deve explicar o mecanismo através do qual os nomes referem, e qual

seria a contribuição semântica dos nomes para as frases contendo tais nomes. Pense-se numa frase

como “Aristóteles foi um filósofo grego”. Segundo Mill, a única contribuição semântica do nome

“Aristóteles” para o significado desta frase é o próprio indivíduo, Aristóteles. Por outras palavras,

o papel semântico do nome “Aristóteles” se esgota no seu papel de se referir a Aristóteles. A

proposição expressa pela frase é verdadeira se Aristóteles tiver sido um filósofo grego, e falsa caso

contrário. Neste sentido, a teoria de Mill tem o apelo intuitivo de que o uso referencial de nomes

não precisaria indicar qualquer conteúdo extra além da própria referência. Nomes servem para

referir. É a sua única função. O mecanismo de referência através do qual os nomes referem é direto.

Contudo, não é claro que a única função semântica dos nomes, como Mill defende, seja apenas a

de referir. Como iremos ver, Frege apresenta um forte e importante argumento contra esta tese.

Mas vejamos um pouco melhor em que consiste a teoria milliana.

Segundo os referencialistas, que aqui entendo como aqueles que defendem a teoria milliana,

a referência ao objeto nomeado já nos forneceria o significado completo de um nome. Segundo

Mill, “Nomes próprios não são conotativos, eles denotam os indivíduos nomeados por eles, mas

eles não indicam ou implicam quaisquer atributos como pertencendo a esses indivíduos.” (1882, p.

40). Isto é, nomes apenas se referem a objetos, sem caracterizá-los, ou descrevê-los. Não existiria

nenhuma descrição essencial para asserir o conteúdo semântico de um nome além do próprio objeto

nomeado. Aqui podemos apontar no texto original de Mill um dos modos usados para justificar a

noção de que nomes não possuem um conteúdo descritivo:

6 Mesmo que as neves eternas no topo da montanha derretam e a montanha deixe de ser branca, o nome próprio

continuará fazendo referência àquele objeto específico, por isso Mill descarta que nomes tenham conteúdo

conotativo.

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Nomes não são usados apenas para fazer o interlocutor imaginar o que nós

imaginamos, mas para informar ao interlocutor o que nós acreditamos. Agora,

quando uso um nome com o propósito de informar uma crença, é uma crença a

respeito da coisa em si, não a minha ideia da coisa. (MILL, 1882, pp. 30)

Vemos no texto original a distinção entre usar nomes para falar do objeto em si e não para

veicular as ideias que os falantes associam ao objeto. A ideia de Mill é que nomes são usados para

identificar ou referir objetos, mas que ao mesmo tempo essa função referencial não conota ideias

a respeito do objeto. Não podemos transmitir nossa ideia do que o Sol é, ou as associações que

fazemos com o objeto Sol, apenas ao usar o nome “Sol”. Logo depois do trecho citado acima, Mill

(1882, p. 31) acrescenta: “Nomes, deste modo, serão sempre tratados neste trabalho como os nomes

das coisas em si, e não meramente a nossa ideia das coisas.”

O referencialismo de Mill suscita inúmeros problemas. Aquele que nos interessa

particularmente é a explicação dos nomes vazios (que inclui nomes ficcionais), porque eles não se

referem a objetos no mundo. Os nomes ficcionais não fazem referência a nada de concreto, pois é

da natureza da ficção não fazer referência a coisas atuais e não existe a coisa em si sendo referida

pelo nome nestes casos. As implicações disto são que nomes vazios não têm conteúdo semântico,

dado que nomes ficcionais não “apontariam” para nada. No entanto, parece evidente que nomes

ficcionais têm algum conteúdo semântico, uma vez que quando dizemos “Sherlock Holmes é um

detetive” comunicamos alguma coisa, damos algo a entender, e em primeira análise parece que

essa frase deveria ter um valor de verdade positivo. Isto parece levantar um problema claro para a

teoria de Mill.

Se a contribuição semântica dos nomes se esgotasse na sua referência, como defende Mill,

então sempre que usássemos nomes ficcionais ou mitológicos, estaríamos falhando em dizer

qualquer coisa. “Pégaso” e “Sherlock Holmes” são bons exemplos de nomes vazios, pois não

existem objetos no mundo aos quais tais nomes se refiram. O conteúdo semântico não estaria lá

para dar significado aos nomes, e uma frase como “Pégaso é o meu cavalo preferido” ou “Holmes

é um detetive famoso” que parecem querer dizer algo, segundo o millianismo, nada diriam dado

que teriam um buraco vazio no lugar do nome.

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A implicação de ausência de conteúdo semântico nos nomes vazios é claramente

contraintutitiva. Essa implicação vai diretamente contra as nossas intuições ingênuas a respeito dos

nomes ficcionais, e a respeito de como eles desempenham sua função dentro das narrativas

ficcionais. Admitir essa ausência de conteúdo seria como dizer que Cervantes, por exemplo, teria

escrito uma narrativa cheia de frases sem sentido, pois todas as frases com o nome “Don Quixote”

forçosamente nada diriam.

No entanto, existe conteúdo semântico nessas frases. Essa é talvez a principal razão pela

qual a tese sobre existência (e subsistência) proposta por Alexius Meinong (1904) ganhou tanto

destaque, ao menos temporariamente, na filosofia da linguagem, pois parecia resolver os problemas

associados ao millianismo. Como veremos, Meinong sustentou a tese ontológica segundo a qual

objetos inexistentes, como Pégaso, possuiriam algum tipo de existência, nomeadamente, uma

“subsistência”. Eles existiriam não no sentido forte da palavra, mas teriam ainda assim algum tipo

de existência; existiriam não de forma robusta, mas numa categoria menor de existência. Isto

permitiria responder de forma simples ao problema milliano dos nomes ficcionais. Contudo, como

buscarei defender no capítulo seguinte, esta teoria também tem problemas graves7.

As dificuldades do millianismo com nomes vazios e afirmações de existência são problemas

clássicos levantados por Frege e Russell. Afirmar ou negar a existência de coisas que não existem

é um problema interessante na filosofia da linguagem, já que o uso do nome poderia indicar a

existência de alguma coisa que logo em seguida é negada. O problema que acabamos de ver foi

explicita e claramente levantado por Kripke nas palestras que deram origem ao Naming and

Necessity publicado em 1980, e depois nas palestras que foram transcritas no Reference and

Existence de 2013. Esse problema ficou conhecido como o problema das frases existenciais

negativas.

7 A teoria de Meinong trata da existência de objetos não existentes de diversos tipos, como: objetos da mitologia,

objetos impossíveis e objetos ficcionais. Apesar da teoria de Meinong ser de grande importância para a consideração

da existência de referentes para nomes ficcionais, ela é mais abrangente do que apenas este problema particular. A

existência ou não de círculos quadrados, ou outros objetos impossíveis, não é um problema relevante para a presente

pesquisa sobre filosofia da linguagem e nomes. O problema da existência de referentes para nomes ficcionais é

importante para esta dissertação; no entanto, a discussão teórica sobre se existência e inexistência podem ser

consideradas propriedades a serem atribuídas a um objeto (como no caso de unicórnios) deixaremos com os

metafísicos.

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Pense-se numa frase de existência como:

(1) Sherlock Holmes não existe.

Se a contribuição semântica do nome para o significado de uma frase se esgotasse na sua

referência, como diz Mill, então (1) não teria significado, pois o nome “Sherlock Holmes” se refere

a nada, e logo em nada contribuiria para o significado de (1). A frase (1) não seria assim nem

verdadeira nem falsa, dado que seria destituída de significado. No entanto, isto é claramente contra-

intuitivo. A frase (1) não só diz algo, como diz algo que é intuitivamente verdadeiro. Considerar

nomes vazios sem sentido impediria afirmar a verdade de frases que negam a existência de coisas

que todos concordam não existir. Além disto, o millianismo enfrenta problemas mais gerais do que

nomes ficcionais, um pequeno nicho que invoca intuições tão divergentes das comuns aos nomes

próprios que é possível duvidar se são realmente a mesma coisa afinal.

Um dos problemas não específicos a nomes ficcionais que o millianismo enfrenta ficou

conhecido como problema das frases existenciais positivas. Considere-se agora a seguinte frase de

existência:

(2) Aristóteles existe.

Neste caso, se o millianismo estivesse correto, todas as frases como a frase (2) têm

significado, pois se o sentido do nome se esgota na sua referência, temos a garantia de que se a

frase tem significado então é verdadeira. Contudo, não podemos conhecer a priori que Aristóteles

existe, partindo simplesmente do reconhecimento de que a frase (2) tem significado. Contudo, se

o millianismo estivesse correto, bastaria que (2) tivesse significado para termos a garantia de

verdade. As frases (1) e (2) expressam proposições verdadeiras, aparentemente, mas o valor de

verdade dessas frases não depende exclusivamente do sentido do nome, mesmo porque seguindo o

millianismo a frase (1) sequer exprime algum sentido8. O valor de verdade dessas duas frases

8 O valor de verdade da frase (1) depende da aceitação ou rejeição da teoria de Meinong sobre inexistentes e da teoria

de Mill sobre nomes próprios. A aceitação da teoria de Mill, e rejeição da teoria de Meinong implica na frase

simplesmente não fazer sentido e não ter valor de verdade positivo ou negativo. A aceitação das duas teorias

implicaria por sua vez em dizer que Sherlock Holmes é um objeto inexistente que subsiste, então o nome “Sherlock

Holmes” na frase (1) teria um referente, assim sentido, e, no entanto, sendo um objeto inexistente, a frase é verdadeira

ao afirmar sua inexistência. O problema de existenciais negativos não é verdadeiramente eliminado ao admitir os

objetos estranhos da ontologia de Meinong, e esta é apenas uma das críticas que o millianismo teve que enfrentar

mesmo antes de Frege apresentar o descritivismo que parecia responder esta questão e outras, como veremos adiante.

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depende de ter existido no mundo um objeto nomeado “Aristóteles” e não ter existido no mundo

um objeto nomeado “Sherlock Holmes”.

Por fim, gostaria de apontar um problema importante e imensamente influente que induziu

à ampla rejeição, se bem que temporária, da tese referencialista de Mill. Este é o famoso problema

colocado por Frege, e que ficou conhecido como Enigma de Frege. Trata-se de um problema

relativo a frases de identidade informativas. Tome-se uma frase de identidade verdadeira como a

seguinte:

(3) Hesperus é Phosphorus.

Uma vez que os nomes “Hesperus” e “Phosphorus” se referem ao mesmo objeto,

nomeadamente Vênus, se o papel semântico dos nomes se esgotasse na sua referência, esta frase

teria o mesmo significado que a frase:

(4) Hesperus é Hesperus.

Contudo, enquanto a frase (3) é informativa, e é algo que uma pessoa não conhece a priori,

a frase (4) exprime uma tautologia e não veicula nenhuma informação. Se (3) é informativa e (4)

não é, então (3) diz algo que (4) não diz. Ou seja, (3) parece ter um significado distinto do de (4).

A única diferença entre as duas frases são os nomes “Hesperus” e “Phosphorus”. Mas se estes

nomes têm sentidos distintos, (3) veicula uma informação fundamental: esses nomes se referem ao

mesmo objeto. Na próxima seção iremos examinar este enigma com mais detalhe, especificamente,

a importante conclusão que Frege extrai dele. Desde já, tudo o que pretendo ilustrar é a dificuldade

que o millianismo tem em dar conta de frases de identidade informativas.

Face a estas dificuldades, parece que temos boas razões para suspeitar que o referencialismo

milliano fracassa como teoria dos nomes. E se a teoria fracassa na explicação do papel semântico

dos nomes em geral, tampouco será satisfatória como uma teoria para os nomes ficcionais em

particular. Nomes ficcionais não têm referentes para exaurir o conteúdo semântico. Aceitar o

millianismo nestes casos parece nos obrigar a admitir entidades abstratas para explicar o conteúdo

semântico dos nomes ficcionais. Parece que as consequências iniciais do millianismo na questão

dos nomes vazios é uma escolha entre admitir a existência de inexistentes, como Meinong sugere,

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ou a falta de significado dos nomes ficcionais como fez inicialmente Mill. Na próxima seção

consideraremos uma teoria que pretende responder às dificuldades criadas ao excluir a conotação

do significado dos nomes próprios.

1.2 Sentido e Referência

O descritivismo e sua interpretação de nomes próprios deve seu corpus principal aos

trabalhos de Gottlob Frege e de Bertrand Russell. Frege introduziu uma importante distinção entre

Sentido e Referência, no seu texto homônimo. A teoria explica que existe algum tipo de qualidade

descritiva nos nomes, oferecendo deste modo uma teoria do sentido dos nomes juntamente com

uma teoria da referência. Esta função descritiva dos nomes é a de que nomes próprios referem

indiretamente através de uma descrição definida (ou conjunto de descrições) associada pelos

falantes aos nomes. Assim, os nomes referem em função das descrições a eles associadas serem

satisfeitas. É neste sentido que o mecanismo de referência é indireto, ao contrário do que Mill

defendia. De acordo com o descritivismo, todo nome é sinônimo de uma descrição definida ou um

conjunto de descrições definidas (CAPLAN & CULLISON, 2010, p. 284).

Um dos motivos para defender o conteúdo descritivo de nomes é o caso de identidades

informativas que, como vimos, geram um problema grave para o millianismo. Se o conteúdo

semântico de um nome se reduzisse ao seu referente, então não haveria casos nos quais se referir a

um objeto por dois nomes constituísse uma identidade informativa. É através deste problema das

identidades informativas, que como vimos ficou conhecido como Enigma de Frege, que Frege

introduz a famosa distinção entre sentido e referência. Nas palavras de Frege (2009, p. 130), “se

quiséssemos considerar a igualdade como uma relação entre os objetos a que os nomes "a" e "b"

se referem, então a = b não pareceria diferir de a=a, caso a=b fosse verdadeira.”.

Frege usa o exemplo acima da identidade entre Hesperus e Phosphorus, ou entre a Estrela

da Manhã e a Estrela da Tarde para demonstrar o conteúdo descritivo dos nomes. O enigma de

Frege é apresentado como um caso de identidade informativa na frase “Hesperus é Phosphorus”

como vimos acima, quando ao mesmo tempo a relação de identidade na frase “Hesperus é

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Hesperus” não é informativa já que o sentido dos nomes não é apenas denotar o referente, senão

os dois nomes seriam sinônimos exatos.

Durante o entardecer aparece no céu um objeto de grande brilho batizado na antiguidade

por “Hesperus” ou “Estrela da Tarde”, que só é aparente por algumas poucas horas após o pôr-do-

sol. Durante o amanhecer aparece no céu um objeto de grande brilho batizado na antiguidade por

“Phosphorus” ou “Estrela da Manhã” que se torna visível antes do Sol nascer e após é ofuscado

pelo surgimento do mesmo. Tanto Hesperus quanto Phosphorus são o mesmo corpo celeste que só

fica visível nas horas do crepúsculo e da aurora, nomeadamente o planeta Vênus. Considerem-se

agora as seguintes frases:

(5) Hesperus é o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua.

(6) Phosphorus não é o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua.

À luz do millianismo, as frases (5) e (6) exprimem duas proposições contraditórias, à luz

da lei de Leibniz: objetos idênticos (Vênus, no caso) compartilham das mesmas propriedades.

Como Vênus é, com efeito, o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua, então a

proposição expressa por (5) é verdadeira, enquanto a proposição expressa por (6) é falsa. Ora, se

os dois nomes co-referem, então como alguém poderia racionalmente afirmar (5) e negar (6) ou

vice-versa racionalmente?

Considere-se as seguintes frases:

(7) Hesperus é Hesperus.

(8) Hesperus é Phosphorus.

À luz do millianismo, as frases (7) e (8) dizem o mesmo, a saber, que um objeto é idêntico

a si mesmo. No entanto, a relação de identidade que é expressa por (8) é informativa. Foi uma

descoberta empírica importante a de que a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde. Em contrapartida,

a relação de identidade expressa pela frase (7) não é informativa para ninguém.

Um outro exemplo comum na literatura é o da frase “Cícero é Túlio”. Neste exemplo, não

existe uma descoberta empírica para justificar a identidade informativa, apenas um caso de uma

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mesma pessoa ser conhecida por dois nomes distintos, contudo não deixa de ser um caso de

identidade informativa. Casos como esses foram suficientes para minar a suposição que o

significado dos nomes se esgota na sua referência.

Mas voltemos às frases (7) e (8). Apesar de serem acerca do mesmo estado de coisas no

mundo, apesar de os nomes “Hesperus” e “Phosphorus” referirem o mesmo objeto, eles parecem

ter significados diferentes. Se aplicarmos o chamado Critério de Diferença de Frege, podemos

concluir que (7) e (8) têm significados diferentes. Segundo este critério, duas frases diferem em

valor cognitivo se, e só se, for possível um falante compreender ambas, e aceitar uma, mas recusar

a outra. Pois parece claro que um mesmo sujeito pode racionalmente afirmar uma e negar a outra.

Afinal, ao passo que (7) não é informativa, (8) é. Se o valor semântico dos nomes se esgotasse na

sua referência, ambas as frases teriam o mesmo valor cognitivo, o mesmo significado, ou seja,

exprimiriam a mesma proposição já que têm o mesmo referente. Uma vez que isso não parece ser

o caso, o valor semântico do nome parece não se esgotar na sua referência. Ou seja, o nome

contribui mais do que a mera referência para proposição expressa pelas frases, algo que explica a

diferença de significado cognitivo entre (7) e (8). Frege chama de “sentido” a esse algo mais.

Mas o que são sentidos? Dado que os significados participam da linguagem natural, e são

essenciais para a comunicação, o sentido dos nomes tem de ser algo que todos os falantes

competentes apreendem ao usarem um nome. Como diz Frege:

O sentido de um nome próprio é apreendido por todos que estejam suficientemente

familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que o nome

próprio pertence; isto, porém, só de maneira parcial elucida a referência do nome,

caso ele tenha uma. (2009, p. 132)

Os sentidos são entendidos como modos de apresentação de um objeto para o pensamento.

Tomemos novamente o caso de “Hesperus” e de “Phosphorus” como exemplo. Apesar de ambos

os nomes terem a mesma referência, eles apresentam-na de modos distintos. Podemos dizer que

“Phosphorus” nos apresenta o seu referente como aquele corpo celeste que surge de manhã, e que

“Hesperus” nos apresenta o seu referente como aquele corpo celeste que surge de tarde. Estas

formas de apresentação dos objetos são os seus sentidos, e o que permite explicar a diferença

cognitiva entre o conteúdo das frases (3) e (4) supra – e (7) e (8). As descrições definidas, “a estrela

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que surge de manhã” e “a estrela que surge de tarde”, respectivamente, que associamos com os

nomes, exprimiriam o sentido do nome, mas a referência (Bedeutung em Frege) continuaria sendo

o objeto nomeado, qual seja, aquele único objeto que satisfizesse as condições de identificação

impostas pelas respectivas descrições definidas associadas aos nomes, por exemplo, ser a estrela

da tarde ou ser a estrela da manhã.

O modo como o planeta Vênus é observado seria o que explica como diferentes nomes

adquirem diferentes sentidos, ao serem associados pelos falantes a diferentes descrições definidas

ao referente do nome próprio “Vênus”. Uma outra descrição definida que podemos associar a este

nome é “o corpo celeste observado ao fim da tarde”, cada descrição definida pode estar associada

a um modo diferente de primeiro contato com o mesmo objeto. Frege chamou o fenômeno de

associar sentidos distintos a nomes distintos do mesmo referente de “modos de apresentação”, isto

é, o modo e contexto de como o falante entra em contato com nome próprio e o referente explica

as variações de significação cognitiva e o porquê de a identidade ser informativa.

Os casos de identidades informativas podem ser solucionados com a relação entre nomes e

descrições. Porém, em contextos comunicacionais, não se pode esperar que o falante transmita ao

seu interlocutor exatamente a descrição que ele tem em mente. A razão é muito simples: a um nome

próprio estão associadas inúmeras descrições definidas, muitas das quais desconhecidas pelo

interlocutor/ouvinte. Assim, o uso competente de nomes próprios na linguagem natural não exige

um conhecimento total das descrições a estes associados. Haveria muito menos comunicação entre

as pessoas caso fosse necessário domínio total da linguagem para usar nomes de modo correto. Isto

por sua vez cria um problema na apreensão do sentido e da referência em uso, pois falante e

interlocutor nem sempre associam as mesmas descrições a um nome.

A noção de satisfação de predicado, que ficou popular no trabalho de Frege, não é uma

solução para o valor de verdade de frases com nomes vazios. “Sherlock Holmes” é um nome que

tem um sentido expresso pelas descrições definidas a ele associadas, mesmo que não exista um

indivíduo que possa satisfazer os predicados de sentenças com este nome. O problema é que nos

casos onde não existe o objeto que deveria ser referido pelo nome, as proposições não têm valor de

verdade positivo ou negativo (FREGE, 1948, p. 137). Como não existe um objeto no mundo para

instanciar a propriedade de ser o detetive inglês que mora em 221B Baker Street em Londres, a

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proposição não pode ser verdadeira. Contudo, como não existe o objeto referido para não instanciar

a propriedade de ser o detetive inglês que mora em 221B Baker Street em Londres, a proposição

também não pode ser falsa. Mas para Frege, isso em nada impede que elas sejam os pensamentos

expressos (Gedanke) com o uso do nome.

1.3 Dificuldades das Descrições Definidas

Bertrand Russell apresentou uma teoria sobre como funcionam as descrições definidas que

lida com casos de expressões que parecem referir e não referem, como o caso de frases existenciais

negativas. Seu artigo On Denoting, de 1905, teve grande impacto na área da filosofia da linguagem.

Em oposição a Frege, Russell sustenta que as orações com nomes vazios teriam um valor de

verdade negativo ao invés de nulo. A partir desse artigo Russell se distanciou da teoria meinongiana

sobre inexistentes, uma teoria com a qual concordava inicialmente. Vejamos dois exemplos de

frases que não podem ter valor de verdade positivos segundo Russell:

(9) Pegasus é um cavalo alado.

(10) Pegasus não é um cavalo alado.

Não existe referente para o nome “Pegasus”, isto é, não existe um indivíduo ou objeto no

mundo sendo referido por este nome que possa satisfazer o predicado de ser ou não ser um cavalo

alado. Frege comparou a linguagem, nomes e predicados, a funções matemáticas. Nomes seriam

itens saturados, e predicados seriam funções insaturadas que poderiam ser preenchidas pelos itens

saturados. Na interpretação russelliana, um nome vazio não vai poder saturar a função do

predicado, e a frase deverá ter valor de verdade negativo pois a função não pode ser corretamente

aplicada. Russell argumentou que a negação da frase inteira pode ter valor de verdade positivo,

assim sendo:

(11) Não é o caso que o Pegasus é um cavalo alado.

A negação da frase inteira ao invés da negação de uma propriedade de um nome vazio é

muito mais fácil, pois não pressupõe existência de referente para a tal atribuição de propriedade.

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Na sua versão mais comum, a teoria descritivista dos nomes supõe que um nome próprio

funciona como uma descrição definida abreviada, ou um conjunto de descrições definidas

abreviadas. Esse conjunto de descrições constituiria o sentido do nome. O referente de um nome,

por sua vez, é determinado pelo objeto que satisfaz a descrição definida, a qual confere o sentido

do nome. O uso competente dos nomes próprios exigiria um grande domínio de linguagem natural

por parte do falante, e, no entanto, o uso dos nomes parece ocorrer com sucesso para falantes que

não têm domínio perfeito da língua.

Considerem-se as seguintes frases:

(12) Sir Walter Scott é o autor de “Waverley”.

(13) Sir Walter Scott é o escocês que encontrou as joias perdidas da Coroa.

Um problema que podemos explorar com este exemplo é o de referência no descritivismo.

Se nomes são descrições abreviadas, como alega o descritivismo, o nome “Sir Walter Scott”

abreviaria as descrições definidas “o escocês que encontrou as joias perdidas da Coroa” e “o autor

de ‘Waverley’”. As duas descrições definidas deveriam ter equivalência na hora de referir o objeto

no mundo. Mas ter mais de uma descrição definida associada a um nome exige que o falante da

língua seja competente, ou seja, um falante que tenha compreensão do nome e das descrições

definidas. O uso dos nomes no descritivismo dependeria de um domínio competente da língua por

parte do falante, então nos casos em que um dos falantes de uma conversa ignora que Scott foi o

autor de “Waverley”, a descrição “o autor de ‘Waverley’” poderia ser usada para referir e não

falharia. Porém alguém que seja competente no uso do nome, não tem necessariamente que saber

que Scott é o autor de “Waverley” ou que ele foi o escocês que encontrou as joias perdidas da

Coroa. Mas então, qual a descrição definida que o falante tem de associar ao nome para ser

competente no seu uso? Não é claro qual seja, nem sequer que haja alguma descrição definida que

possa fazer esse trabalho. Esta indeterminação parece ser um problema para o descritivismo.

A questão de quais e quantas descrições definidas seriam suficientes para dar o sentido do

nome próprio não tem uma resposta que explique como a referência dos nomes é mantida através

dos seus usos por diferentes falantes da língua. Se diferentes falantes associam diferentes

descrições ao uso de um nome então o significado do nome poderá variar de uso para uso. Mas os

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significados são públicos, não são privados. Se, por outro lado, defendermos uma teoria de feixes

de descrições como faz Searle (1958), entendida como uma disjunção de todas as descrições que

os falantes associam, bastando um falante associar uma dessas descrições para que a comunicação

fosse bem-sucedida, mantém-se ainda o problema de saber que descrições incluir nesse feixe de

descrições. Por exemplo, os contemporâneos de Aristóteles associariam diferentes descrições ao

nome dele daquelas que nós associamos presentemente, significa isto que o nome mudou de

significado, ou que todas as descrições pertencem ao feixe, passadas e atuais? Não é claro que

exista uma resposta satisfatória para isto. No próximo capítulo iremos ver que o descritivismo

enfrenta mais problemas ainda. A teoria é criticada pelo modo como nome tem suas referências

fixadas e pela atribuição de sentido (descritivo) à nomes próprios.

1.4 Diferentes Tipos de Descritivismo

P. F. Strawson apresentou críticas à Teoria das Descrições Definidas de Russell em seu

artigo On Referring, de 1950. Um dos problemas que Strawson levanta para a teoria de Russell é

o modo como o valor de verdade das sentenças é determinado. Ele sustenta que, em um exemplo

famoso de Russell, “O Rei da França é calvo”, a mesma frase poderia exprimir diferentes

proposições com diferentes valores de verdade que variam de acordo com o contexto da falante.

No exemplo abaixo:

(14) A primeira ministra é do partido conservador.

A referência é variável, dependendo do contexto de fala para ser determinada. Por

conseguinte, nem a proposição nem seu valor de verdade podem ser sempre os mesmos, pois

podem variar de acordo com a falante, o local e o tempo. Alguns países têm o cargo de primeiro

ministro, e então a descrição definida “a primeira ministra” poderia ter uma referência, e o valor

de verdade dependeria de o referido ter a propriedade atribuída no predicado, no caso “ser do

partido conservador”. Se a frase for proferida em um momento em que o partido não estiver

ocupando o cargo, o valor de verdade é negativo. Se a frase for proferida em um contexto de um

país que não tem o cargo de primeiro ministro, a descrição definida a nada se refere e o valor de

verdade também será negativo. Neste caso, a referência não é bem-sucedida, pois não existirá um

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objeto que satisfaça a descrição definida, similar ao caso exemplo do “Rei da França” (1950, p.

326). Nos usos de nomes ficcionais, nunca existem as condições contextuais para que o nome refira,

isto é, sendo um nome ficcional “Sherlock Holmes” não se refere uma pessoa real, e nunca referiria,

senão não seria um nome ficcional. Em ficção, as frases respeitam as regras semânticas e sintáticas

da linguagem natural, no entanto as referências nunca se realizam.

Para Strawson, sentido é uma função da frase em um contexto, ou seja, da sua expressão

ou proferimento. Mencionar, referir e verdade ou falsidade são funções do uso da frase em um

contexto ou da sua expressão. Dar sentido a uma expressão, para Strawson, é fornecer uma guia

geral para o seu uso para referir ou mencionar, uma guia para produzir asserções verdadeiras ou

falsas (1950, p. 327). O sentido dos nomes, descrições e predicados depende da semântica e sintaxe

da linguagem usada. A referência, no entanto, é determinada pelo uso.

Strawson critica o uso de descrições definidas por Russell como expressões referenciais

como no caso abaixo:

(15) O Rei da França é calvo.

A descrição definida ocupa a posição de sujeito tendo sentido do mesmo modo que o

predicado, mesmo que sem referente. O conteúdo semântico está expresso pela frase no seu uso.

Pode ter existido algum momento no qual uma pessoa poderia proferir esta frase e estar no contexto

apropriado para que a proposição por ela expressa tivesse valor de verdade positivo. No momento

presente, esta frase exprime uma proposição com um valor de verdade negativo, pois a proposição

expressa por (15) é falsa. Ainda existem Reis, a França e a calvície, no entanto não existe no mundo

um indivíduo que corresponda a esta descrição definida que tenha a propriedade de ser calvo, já

que a França não é mais uma monarquia.

O descritivismo teve grande aceitação na primeira metade do século XX, mas teve muitos

críticos dos métodos de Frege e Russell. Strawson introduziu o conceito de variação de acordo com

contexto. Outros filósofos tiveram críticas em outras áreas, e por exemplo Oswaldo Chateaubriand

no seu artigo de 2002 “Descriptions: Frege and Russell Combined” examinou a relevância da

sintaxe para a análise descritivista. Ele atribuiu as diferenças nos modos como Frege e Russell

julgavam os valores de verdade de frases com nomes sem referência e sentenças existenciais

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negativas aos focos distintos que eles tinham em partes diferentes das orações: o sujeito para Frege

e o predicado para Russell. Ele argumentou que os descritivismos de Frege e Russell divergiam em

suas intuições sobre qual parte das orações eram descritivas, por isso a atribuição de valores de

verdade diferentes. Chateaubriand considerou que grande parte da confusão entre os dois estilos de

descritivismo é que essa distinção de foco entre sujeito e predicado não é explicita, e as explicações

dos estilos distintos foram aplicadas às duas partes das orações indistintamente, primeiro por Frege

e depois por Russell (p.213).

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Capítulo 2 – Referência Direta

Como mencionei no capítulo anterior, o descritivismo é uma teoria que oferece soluções

para os problemas do sentido de nomes vazios apesar de não explicar os modos de referência. A

teoria descritivista afirma que o sentido de um nome próprio é uma descrição definida (ou conjunto

de descrições) associada ao nome. É importante notar que a teoria descritivista pode ser vista tanto

como uma teoria em que as descrições dão o sentido dos nomes próprios, quanto como uma teoria

em que as descrições apenas determinam a referência dos nomes. Descrições podem ser usadas

para fixar a referência de nomes, entretanto referencialistas e descritivistas discordam sobre se as

descrições podem dar o sentido dos nomes9. Mas que as descrições deem o significado dos nomes

é o alvo do famoso ataque de Kripke que apresentarei neste capítulo.

O tema de como nomes referem e se estes têm conteúdo semântico foi estudado

principalmente sob a influência da teoria descritivista até às palestras de Kripke em 1970. Foi com

suas palestras publicadas no livro Naming and Necessity em 1980 que o tema dos nomes próprios

voltou à atenção da comunidade filosófica. Kripke não apresenta explicitamente uma teoria do

significado dos nomes nesse livro. Ele apresenta vários argumentos que demonstram que o

descritivismo não explica a relação dos nomes próprios com os seus referentes, e que existe uma

relação de designação rígida entre nome e nomeado.

Neste livro, Kripke argumenta contra a teoria descritivista, colocando em xeque o modo

como a referência dos nomes próprios é por ela explicada. Para ele não é caso que a referência de

um nome seja determinada por alguma propriedade que o referente precisa satisfazer, e à qual a

falante saiba ou acredite saber a respeito do referente. Em primeiro lugar, porque as propriedades

que a falante atribui ao referente podem não ser suficientes para identificá-lo. Em segundo lugar,

mesmo que elas sejam suficientes para isso, elas podem não ser verdadeiras do referente indicado,

mas de algum outro referente. Este pode ser o caso quando a falante tem crenças falsas sobre o

referente. Nestes casos, a referência parece ser determinada pelo fato de que a falante faz parte de

9 Como no caso da “Estrela da Tarde”, onde a descrição de ser uma estrela visível pela tarde é o que foi usado para

fixar a referência. No entanto, umas das descrições definidas associadas a “Estrela da Tarde” como “o objeto mais

luminoso do céu noturno fora a lua” não seria considerado como o sentido do nome por filósofos que defendem

teorias de nomes referencialistas, apenas o objeto referido em si geralmente.

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uma comunidade de falantes que usam o nome (1981, p. 106). Um dos pontos que ele rejeita com

mais veemência é que mesmo que o referente seja fixado, ou seja introduzido na linguagem, por

uma descrição definida, o nome e descrição não são sinônimos.

Kripke insiste que não apresenta uma teoria da referência, mas apenas argumentos que

mostram como os nomes se conectam à sua referência. Seus argumentos apelam a intuições fortes

e comuns sobre como nomes funcionam na linguagem natural e assim Kripke consegue sustentar

com grande plausibilidade que nomes próprios referem um único indivíduo de forma rígida (isto é,

eles referem o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis em que esse indivíduo existe).

Na seção 2.1 deste capítulo apresentarei as críticas de Kripke ao descritivismo, e seus

argumentos semântico, epistemológico e modal que demonstram sua “teoria” de referência direta

e designação rígida para nomes próprios apresentada no Naming and Necessity. Na seção 2.2

exibirei os desdobramentos da referência direta para nomes vazios e ficcionais argumentados por

Kripke em Reference and Existence, livro publicado em 2013, com a transcrição de palestras que

ele apresentou em 1973. Na última seção deste capítulo, 2.3, mostrarei alguns dos problemas com

as implicações metafísicas que a teoria de referência direta e designação rígida cria com relação

aos nomes ficcionais.

2.1 Argumentos contra o descritivismo

Muitos filósofos buscaram um retorno ao millianismo em razão da sua elegante

simplicidade na definição de como nomes apontam seus referentes e apenas isso, sem nenhum tipo

de conteúdo descritivo atrelado. O desafio que muitos encontraram foi em apresentar argumentos

fortes que pudessem sustentar as intuições de Mill e ao mesmo tempo justificar o abandono de uma

teoria do sentido e da referência por uma de apenas referência que não tem uma solução óbvia para

o problema de identidades informativas verdadeiras, nem para nomes vazios.

Kripke, com o Naming and Necessity, apresentou fortes argumentos que apontam falhas

na teoria descritivista e impulsionou uma retomada ao tipo de referência direta defendida pelo

millianismo. A ideia de que a referência esgota o valor semântico de um nome próprio e afirmar

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que o nome aponta o referente de forma direta parece mais de acordo com intuições simples. A

referência direta também evita o problema de determinar quais propriedades seriam suficientes

para determinar o referente e fariam parte da descrição definida associada a um nome próprio. Os

nomes começam a referir o objeto nomeado em um momento de batismo, e a partir daí gera-se uma

cadeia causal que liga o nome ao indivíduo desde aquele momento através de todos os seus usos.

Declarações existenciais negativas são um dos pontos de grande debate ao considerar as

duas teorias, descritivismo e referência direta. Explicar o sentido e referência de uma frase como

“Jesus não existe” depende do que você está negando. Se alguém diz a frase “Jesus não existe”, é

indistinto se a frase é uma negação do conjunto de descrições definidas associadas ao nome “Jesus”,

tais quais “um homem que tenha caminhado sobre as águas” ou “um homem que tenha multiplicado

pão”; ou se é a negação da existência do indivíduo originalmente nomeado, mesmo que ele nunca

tenha executado milagres. A inexatidão da negação se deve também ao fato que nem todos os

falantes associam o mesmo conjunto de descrições definidas ao nome “Jesus”. O nome próprio

poderia ser substituído por uma descrição definida, mas quando a comunidade de falantes não

compartilha o mesmo conjunto de descrições definidas não haveria como determinar o que está

exatamente a ser negado (1981, p. 33).

O problema da sinonímia entre nomes próprios e descrições definidas também se

apresenta quando um indivíduo tem mais de um nome. Por exemplo, “Túlio” e “Cícero” são dois

nomes da mesma pessoa (que na verdade se chamava “Marcus Tullius Cicero”), comumente

associada à descrição definida “o maior orador de Roma”. Para Kripke (1981, p. 107) o erro no

modo como o descritivismo analisa esse tipo de caso é que a relação de identidade seria definida

ao nível linguístico, entre os nomes, como em “Túlio é Cícero”, e não do indivíduo com si mesmo.

Mesmo que uma descrição seja usada para fixar a referência de um nome, esta não é

sinônima ao nome. Kripke usa um exemplo de Mill para defender este ponto. A cidade de

Dartmouth na Inglaterra tem esse nome porque está localizada na foz do rio Dart10. Ou seja,

poderíamos dizer que o nome “Dartmouth” foi introduzido através da descrição “A cidade

localizada na foz do rio Dart.” No entanto, mesmo que a foz do rio mudasse, o nome “Dartmouth”

ainda assim referiria a cidade que foi batizada com este nome. Se a foz do rio mudasse poderíamos

10 “Dartmouth” pode ser literalmente traduzido para “Boca do Dart”

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dizer ainda que “Dartmouth não fica na foz do rio Dart”, sem entrar em contradição. Se

“Dartmouth” fosse sinônimo da descrição “A cidade que fica na foz do rio Dart” não poderíamos

negar que Dartmouth fique na foz do rio Dart sem contradição (1981, p. 26).

O nome pode estar associado a uma ou mais descrições, mas a relevância da descrição se

dá no momento de batismo da cidade, e não em usos posteriores do nome. Kripke considera que

este tipo de caso explica as intuições sobre o conteúdo descritivo dos nomes próprios, porque estes

tipos de nomes parecem conter um conteúdo descritivo que dá a referência do objeto nomeado,

como nos casos de “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” (1981, p. 4). Mesmo que seja difícil

imaginar uma situação na qual a cidade tivesse sido batizada de “Dartmouth” se não fosse

localizada na foz do rio Dart, o nome não é sinônimo com a descrição.

Um argumento semântico contra a equivalência entre nomes próprios e descrições

definidas apela ao problema das identidades informativas usado por Frege contra o millianismo.

Se existe uma relação de sinonímia entre “Aristóteles” e “o professor de Alexandre”, então dizer

“Aristóteles foi o professor de Alexandre” seria mera tautologia, sem nenhum tipo de informação

veiculada (1981, p. 30). No entanto, o mundo poderia ter sido de um modo tal que Aristóteles não

fosse nenhuma dessas coisas. Considerando o aparato teórico de mundos possíveis, podemos

imaginar um mundo onde Aristóteles não satisfaz absolutamente nenhuma das condições de

identificação impostas por descrição associadas ao nome “Aristóteles”, e ainda assim “Aristóteles”

nomearia Aristóteles, caso Aristóteles existisse. Isto mostra que podemos fazer referência àquele

Aristóteles apenas com o uso do nome próprio “Aristóteles”. Não é uma verdade necessária, no

sentido intuitivo de necessário, que Aristóteles tenha tido as propriedades comumente associadas

a ele (1981, p. 74).

Uma das grandes contribuições de Kripke é a tese de que nomes são designadores rígidos,

isto é, nomes próprios designam o mesmo objeto em todos os mundos possíveis em que o objeto

existe. Já as descrições definidas, pelo menos as mais usuais, não designam rigidamente. Para

ilustrar esta ideia, considere-se a descrição definida “O aluno de Platão e Professor de Alexandre

o Grande”. Esta descrição se refere a Aristóteles. Contudo, Aristóteles poderia nunca ter estudado

com Platão, nem ter sido professor de Alexandre. Aristóteles poderia muito bem ter feito outra

coisa, ou ter morrido quando era criança. A descrição “O aluno de Platão e Professor de Alexandre

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o Grande” nesta situação contrafactual, não designaria Aristóteles. Contudo, “Aristóteles” mesmo

nesta situação, designa Aristóteles. Isto porque “Aristóteles” designa rigidamente, designa

Aristóteles em todas as situações contrafactuais, ao contrário da descrição definida. Mesmo que

tudo o que sabemos acerca de Aristóteles seja falso, mesmo que Aristóteles não satisfaça qualquer

das descrições que associamos a Aristóteles, o nome “Aristóteles”, mesmo nessa situação, não

deixa de se referir aquele individuo originalmente nomeado Aristóteles sobre o qual fomos

informados através de uma cadeia causal de uso do nome. A cadeia causal é mantida toda vez que

uma nova falante informada do nome passa a usar o nome com a intenção de fazer a mesma

referência que o nome tinha quando ela entrou em contato com ele pela primeira vez. Nomes

próprios são designadores rígidos, no entanto descrições definidas, pelo menos as mais usuais, não

o são.

Vejamos agora sucintamente os três grandes argumentos apresentados por Kripke contra

o descritivismo clássico, os quais são geralmente divididos do seguinte modo: o argumento modal,

o argumento semântico e o argumento epistêmico. Vejamos então em que consistem.

Podemos caracterizar a tese central que caracteriza o descritivismo do seguinte modo:

(TD): Se o sentido de um nome ‘N’ é dado pela descrição definida ‘OF’, então ‘N’ e ‘OF’

são sinônimos.11

Agora considere-se as seguintes frases:

(16) Aristóteles (se existe) é Aristóteles

(17) Aristóteles (se existe) é o professor de Alexandre o Grande e autor da Metafísica.

Para o Argumento Modal temos dois modos de julgar as duas frases anteriores:

No primeiro modo, temos que a frase (16) expressa uma relação de identidade necessária

enquanto a frase (17) expressa uma relação contingente. Mas se (TD) estivesse correta, então a

frase (16) e a frase (17) deveriam ter o mesmo significado. Mas dada a diferença em valor modal,

11 Note-se que estes argumentos podem-se aplicar tanto à versão clássica de descritivismo em que apenas uma descrição

é sinônima com o nome, quanto à versão de Searle do feixe de descrições. Por razões de simplificação, irei apenas

me deter na versão clássica, mas considerações idênticas podem ser aplicadas à versão do feixe de descrições.

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temos boas razões para concluir que elas também diferem em valor semântico. Logo, temos boas

razões para concluir que (TD) é falsa.

No segundo modo, consideremos duas premissas:

Premissa 1: Nomes são designadores rígidos (i.e., eles designam o mesmo objeto em todos

os mundos possíveis em que o objeto existe).

Premissa 2: Descrições definidas não designam rigidamente.

Logo, nomes e descrições têm diferentes valores semânticos. Logo, (TD) é falsa.

Ainda considerando as duas frases do exemplo acima, observemos o argumento

epistémico:

A frase (16) expressa uma verdade que pode ser conhecida a priori, enquanto a frase (17)

expressa uma verdade que só pode ser conhecida a posteriori. Mas se (TD) estivesse correta, as

frases (16) e (17) teriam o mesmo significado. Se as duas frases tivessem exatamente o mesmo

significado, então deveríamos poder conhecer a verdade expressa na frase (17) da mesma forma

que conhecemos a verdade expressa na frase (16). Uma vez que isso é falso, elas não têm o mesmo

significado. Logo, (TD) é falsa.

O terceiro tipo de argumento utilizado por Kripke foi o argumento semântico, simplificado

abaixo:

Se (TD) estivesse correta, o significado da frase (16) deveria ser o mesmo que o

significado da frase (17), mas a frase (16) não é informativa e a frase (17) o é. Pelo critério da

diferença para frases, podemos concluir que as frases diferem em significado cognitivo, dado que

é possível aceitar uma e rejeitar outra. Se diferem em valor cognitivo, então diferem em significado.

Logo, (TD) é falsa.

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Dada a força destes argumentos, parece que temos boas razões para questionar a teoria

descritivista e considerar que nomes são designadores rígidos.12

2.2 Referência e Existência

As implicações metafísicas de tomarmos nomes como designadores rígidos foram

examinadas pelo próprio Kripke no Naming and Necessity. As consequências das ideias do

primeiro livro foram publicadas no Reference and Existence. A tese de que nomes são designadores

rígidos é hoje em dia quase universalmente aceita, mas a implicação ontológica de que o termo

singular deve ter uma referência leva a pressuposição de existência de referentes para todos os

nomes. De forma a lidar com nomes ficcionais, poder-se-ia defender que existe uma entidade

abstrata rigidamente designada pelo nome ficcional. Os nomes vazios não seriam vazios, mas sim

designadores rígidos de entidades abstratas. A existência de uma entidade abstrata individual

específica referida pelo nome próprio na ficção dependeria da existência ou não existência dos

textos (ou outros meios) ficcionais ou mitológicos (KRIPKE, 2013, p. x).

Os argumentos kripkeanos defendendo que nomes próprios são designadores rígidos são

muito convincentes, como vimos na seção anterior deste capítulo. No entanto, as implicações

metafísicas de aplicar esta teoria a todos o tipo de nomes, incluindo nomes vazios, é controversa,

mesmo com a teoria da designação rígida e da referência direta sendo amplamente aceitas. Nomes

próprios designam rigidamente um indivíduo único no mundo, mas aceitar essa tese para nomes

ficcionais significaria introduzir uma enorme quantidade de entidades abstratas na nossa

metafísica, e não é claro que tenhamos boas razões para o fazer. Uma vez que entidades abstratas

são causalmente inertes, como explicar que estas possam passar a existir depois de um momento

de criação literária? Se, no entanto, estas já existiam antes do momento de criação literária, como

explicar isso dado que certas obras poderiam nunca ter sido escritas, ou dada a quantidade enorme

de possíveis obras de ficção, de obras que poderiam ter sido criadas, mas não foram?

12 Muitas propostas foram feitas na tentativa de bloquear estes argumentos, mas o consenso parece ser o de que eles

prevalecem, mesmo em versões mais sofisticadas de descritivismo, como a teoria do feixe de descrições.

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O enigma filosófico do uso de nomes sem referência, ou nomes que aparentemente não

têm referência é curioso e difícil de solucionar. Primeiro porque nem todos os nomes considerados

nomes vazios são do mesmo tipo. Parece estranho se dizer que existem diferentes tipos de nomes

vazios, uma vez que sendo sem referência, todos seriam vazios, indistintamente. Nomes vazios

podem ser considerados de tipos diferentes pois fracassam em fazer a referência de modos distintos.

Um nome como “Vulcano”, por exemplo, não possui referência. Vulcano teria sido um

planeta que Le Verrier, um astrônomo francês, postulou existir entre Mercúrio e o Sol para justificar

as discrepâncias observadas na precessão do periélio de Mercúrio com base na física Newtoniana.

O termo não tem referência pois não existe o tal planeta entre Mercúrio e o Sol. O batismo do

planeta hipotético ocorreu, mas a previsão matemática estava errada. Houve um erro no momento

no qual Le Verrier tinha intenção de fazer o batismo, não havia referente para ser batizado, e é

devido ao erro humano que esse nome é vazio.

Nomes ficcionais, no entanto, são nomes propositalmente ou intencionalmente vazios.

Não são nomes vazios por acidente, como no caso de “Vulcano”. Para Kripke (2013), um dos usos

de nomes ficcionais é se referir a entidades abstratas singulares criadas pela imaginação de uma

autora de trabalhos de ficção. Retomando Mill neste segundo livro, Kripke reitera que nomes

próprios têm apenas denotação e não têm conotação. A função semântica do nome consiste apenas

em fazer referência a um objeto e nada mais. A referência não é feita com o uso de descrições de

propriedades do objeto, mas diretamente.

O problema da implicação de existência ou falta de conteúdo semântico de nomes ficcionais

é parte do motivo para as teorias de Frege e Russell terem sido defendidas contra o millianismo.

Afinal, quando a pessoa nega a existência de Sherlock Holmes ela não parece estar usando o nome

com a intenção de referir um objeto. Não faria sentido usar nomes para referir a algum objeto e na

mesma sentença negar ao objeto a propriedade de existência (KRIPKE, 2013, p. 5). Neste caso, faz

mais sentido se dizer que não existe alguém que seja o famoso detetive britânico que fuma

cachimbo e que viva em Londres na 221B Baker Street.

Kripke não deseja negar a existência de Sherlock Holmes; na verdade, ele crê que a

personagem é existente, uma entidade abstrata criada por Sir Conan Doyle. Para ele o nome

“Sherlock Holmes” é um designador rígido daquela entidade ficcional criada por Doyle e apenas

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dela. Kripke nega que pudesse existir alguém que fosse Sherlock Holmes, mesmo que um detetive

na época descrita vivesse os fatos descritos e por acaso se chamasse Sherlock Holmes. A não ser

que houvesse uma relação causal entre ele e o Holmes de Doyle, esta pessoa não seria Sherlock

Holmes. Para Kripke a frase “Sherlock Holmes existe” é verdadeira, pois para ele não existe

problema em admitir novos tipos de entidade na metafísica dele, não para reafirmar o modo de

referência da classe dos nomes em geral (2013, p. 53). Não existiria modo de provar que Doyle

estaria escrevendo sobre o (hipotético) detetive real, e não haveria como provar que a semelhança

não seria coincidência, à qual toda ficção é suscetível (1981, p. 157).

Consideremos as duas frases abaixo:

(18) Sherlock Holmes não existe.

(19) Sherlock Holmes é uma personagem ficcional.

Prima facie, as duas frases parecem ser verdadeiras. A intuição sobre o valor de verdade da

primeira frase pode ser atribuída à distinção confusa entre real e ficcional, quando se está disposto

a considerar a ficção como realmente existente mesmo que abstrata. Kripke argumenta que

entidades ficcionais são reais, então a distinção entre real e ficcional não é clara. A segunda frase

deste exemplo é particularmente interessante porque ela parece ser independente de (18). Aceitar

(18), não parece ser a negação da existência da personagem ficcional, mas de uma pessoa atual que

pudesse ser a referência do nome (1981, p. 147). Temos nessas duas frases predicados de objetos

existentes sendo afirmados. No entanto, as frases (18) e (19) misturam dois tipos de discurso. Pois

afinal não é a personagem ficcional que está sendo negada em (18), mas sim a existência da pessoa

Sherlock Holmes, isto é, no nível linguístico não existe referente para este nome.

Kripke apresenta a noção de que a afirmação da ausência de referente do nome próprio que

aparece em uma obra mostraria que a obra em si é ficcional. Existe a personagem ficcional justo

porque não existe a pessoa real, apesar do nome próprio fazendo a referência ocorrer em uma obra

de ficção. Porém o próprio Kripke defende que esta tentativa de desambiguação não tem muito

sucesso. Segundo ele, as frases (18) e (19) apenas usam o mesmo ‘nome’, mas não fazem a mesma

referência. A frase (18) usa “Sherlock Holmes” como um nome vazio que não tem referente no

mundo atual, enquanto a frase (19) usa “Sherlock Holmes” como um nome ficcional que se refere

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a uma entidade abstrata rigidamente designada. Os usos do nome são ambíguos, e tentar determinar

a referência de um pela referência falha do outro não é um bom método.

A confusão entre frases que são verdadeiras ‘de acordo com o mundo atual’ ou verdadeiras

‘de acordo com a ficção’ parece exigir algum tipo de reformulação. Kripke compara as frases:

(20) “Sherlock Holmes não é uma pessoa real, ele é uma pessoa ficcional”.

(21) “Este não é um pato real, é um pato de brinquedo”.

Estas duas frases parecem ser paralelas no tipo de coisa que afirmam e negam, mas como

o exemplo da frase (21) não depende de entidades abstratas é mais fácil de entender a distinção que

Kripke quer introduzir. O pato de brinquedo não é um objeto de ficção, no entanto ele não serviria

o seu propósito se não houvesse algum tipo de fingimento ou representação envolvido no seu uso.

O pato de brinquedo não é um pato real, inegavelmente, e Holmes não é uma pessoa real tampouco.

No entanto, quando confrontada com um pato de brinquedo dificilmente uma pessoa vai tentar

negar a existência do pato com o mesmo conforto que se nega a existência de Holmes.

Não se segue que de todos os nomes que não têm referentes exista algum trabalho de

ficção, ou que essa correlação fraca como nos casos de Sherlock ou do pato de brinquedo possa ser

usada como regra para negar realidade e afirmar ficção ou algum tipo fraco de existência. Para

Kripke não pode haver uma equivalência entre “não existir” e “ser ficcional”. Ele usa um exemplo

de Napoleão para demonstrar o absurdo dessa equivalência. Quando uma falante diz “Suponhamos

que Napoleão nunca tivesse existido” ela não quer dizer com isso “Suponhamos que Napoleão

tivesse sido mera personagem ficcional”. Não existe equivalência alguma entre essas proposições.

Ele conclui sua crítica afirmando que Napoleão poderia tampouco ter sido uma personagem

ficcional quanto ter sido um número primo, isto é, a entidade concreta não poderia ter sido uma

entidade abstrata (1981, p. 149).

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2.3 Implicações metafísicas

Não existiria possibilidade de economia metafísica com as implicações da teoria de

referência direta. No entanto, não é só a quantidade de entidades, mas o tipo de entidade que estaria

sendo admitida motivo para criticar a teoria kripkeana especificamente com relação a nomes

ficcionais. A ontologia dessa categoria de entidades abstratas é problemática, e não é de todo claro

que existe necessidade de introduzir a categoria. Tanto a quantidade quanto o tipo das entidades

são motivo para procurar uma teoria semântica melhor para a ficção e para nomes ficcionais. A

solução kripkeana propõe entidades abstratas muito mais robustas do que a teoria meinongiana,

com sua tese de subsistência de objetos concebíveis não concretos. Quero salientar que quando se

fala de nomes vazios, mitológicos, científicos e, no caso que mais me interessa nesta dissertação,

ficcionais, a noção de referência direta através de um designador rígido implica num tipo estranho

de entidade abstrata. Ser uma entidade de um tipo estranho pode não ser um motivo forte para

rejeitar uma categoria; no entanto, pode ser suficiente se essa categoria for desnecessária e

introduzir mais problemas do que solucionar.

Entidades abstratas seriam causalmente inertes, não participam do mundo concreto e o

mundo concreto não participa delas, mas como Sherlock Holmes poderia ser uma entidade abstrata

se ele foi criado? Entidades abstratas causalmente inertes não deveriam morar em 221B Baker

Street ou em lugar nenhum, pois entidades abstratas não moram, não fumam cachimbos, não

resolvem crimes, e seria muito estranho se entidades abstratas fossem criadas pelo produto do

pensamento humano. Seria muito estranho também considerar que a totalidade das entidades

abstratas da ficção humana já existem, sempre existiram, e sempre existirão, mesmo quando não

existiam humanos e quando humanos deixarem de existir, como o número 1 existe independe da

existência da humanidade. Se existe vida inteligente fora da Terra que produza obras de ficção, as

entidades abstratas das histórias deles também deveram ser admitidas na nossa metafísica?

As entidades abstratas causalmente inertes são um tipo mais difícil de aceitar para explicar

a referência direta de nome ficcionais, pois mesmo que admitir a existência desse tipo de entidade

resolvesse as intuições que a audiência tem sobre o uso de nomes ficcionais, como seria possível

explicar a referência direta do autor (criador) da obra de ficção e nome ficcional? Até quando

admitimos a existência das entidades abstratas ficcionais, teremos casos em que a referência direta

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no texto ficcional fracassa. Peter Van Inwagen em seu artigo Creatures of Fiction de 1977 defendeu

que nomes ficcionais referem e que os objetos referidos não são entidades abstratas ou objetos

inexistentes que subsistem, mas entidades ficcionais. Van Inwagen defende que autores criam

entidades ficcionais durante o processo de criação da obra de ficção, o processo de criar frases com

o nome cria o objeto de referência. Esse tipo de entidade ficcional proposta não existe antes da

criação da obra ficcional, não é uma entidade abstrata causalmente inerte fora do espaço-tempo,

pois ela tem um momento em que começa a existir, e este é o momento de criação pela autora.

Contudo, Van Inwagen considera que as entidades ficcionais não instanciam propriedades,

nenhuma além da existência pelo menos, por exemplo: Sherlock Holmes não instancia a

propriedade de ser um detetive, mas à entidade ficcional (existente) Sherlock Holmes é atribuída a

propriedade de ser um detetive13.

David Braun (2005, p. 610) argumenta que se uma autora não tem pensamentos singulares

a respeito de uma entidade ficcional especifica quando usa o nome ficcional no processo de criação

da obra de ficção, então estará falhando em fazer referência. Independentemente de a personagem

ficcional ser uma entidade abstrata, a autora de uma narrativa raramente começa seu ato de criação

com ideias e intenções singulares a respeito de uma entidade plenamente determinada.

Propriedades são atribuídas à personagem ao longo do processo criativo da narrativa. A autora de

ficção não associa imediatamente o nome ficcional a um pensamento singular sobre uma entidade

completa e plenamente determinada ao qual o nome esteja fazendo referência. Numa série de livros,

a autora faz referência àquela personagem do primeiro romance, adiciona propriedades a uma

entidade abstrata realizada e independente? Ou a autora criará novas personagens a cada livro que

compartilham o mesmo nome apenas?

Por exemplo: o processo de criação de Sir Conan Doyle da sua mais famosa personagem

se deu antes de Doyle começar a escrever? Para que o nome “Sherlock Holmes” não tenha sido um

nome vazio, um nome com uma falha no referente, seria necessário que desde as primeiras linhas

13 O artigo de Van Inwagen apresentou uma defesa para a existência de entidades ficcionais que responde muitos

problemas da teoria de Meinong quando aplicada a nomes ficcionais. Entretanto a entidade ficcional introduzida

pela sua teoria também é estranha, a entidade não instancia nenhuma propriedade (fora a existência), mas possui

propriedades. Uma das críticas mais duras à teoria meinongiana é que o preciosismo em diferenciar entre os verbos

existir e ser não é uma real contribuição para esclarecer que tipo de entidade se está defendendo, porém podemos

ver que uma crítica similar pode ser aplicada à teoria de Van Inwagen que rejeita a capacidade de instanciar

propriedades mas não de possuir propriedades.

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Doyle tivesse em mente a entidade abstrata rigidamente designada pelo nome e descrevesse

propriedades que a entidade já possuísse ao invés de atribuir propriedades ao longo da narrativa.

Uma personagem como Holmes, que é apresentada em inúmeras narrativas distintas do mesmo

autor, teve propriedades adicionadas a cada narrativa ou cada narrativa indicaria a criação de uma

entidade nova? (BRAUN, 2005, p. 611)

O argumento de Braun afirma que a autora de ficção finge fazer a referência. Os usos

metalinguísticos de nomes ficcionais, como o uso fora da narrativa em comentários dos leitores,

apresentam um conflito neste princípio de fingimento de referência dos nomes do qual a autora se

utilizaria (2005, p. 624). A autora pode estar fingindo fazer uma referência ao escrever, mas a

leitora não está fingindo fazer uma referência ao fazer comentários sobre a obra. A leitora usa o

nome ficcional para fazer referência, e não apenas fingir fazer a referência, independentemente de

a referência ser uma entidade abstrata ou um conjunto com a soma das descrições definidas

presentes na narrativa ficcional.

Se o indivíduo Sherlock Holmes é uma entidade abstrata imaginada, criada numa obra de

ficção, muitos autores já imaginaram Holmes, muitos autores já fizeram referência a Sherlock(s)

Holmes. Se estivermos dispostos a admitir a existência da entidade abstrata Sherlock Holmes,

deveríamos então aceitar todo o elenco de personagens em todas as novelas e contos de Doyle, e

claro, Doyle não teria monopólio sobre a criação de entidades abstratas. Todos os nomes ficcionais

de todas as narrativas já criadas fariam referência a entidades abstratas rigidamente. Ou seja,

existiria uma categoria de entidades abstratas geradas nos batismos que ocorrem na criação de

trabalhos de ficção contendo no mínimo o elenco total de todas as personagens de todas as histórias

já criadas; e possivelmente outras personagens referidas pelo mesmo nome ficcional inspiradas na

original. Todas estas entidades abstratas existiram igualmente, a personagem principal de um livro

que vendeu apenas uma cópia e Sherlock Holmes.

Walton (1990, p. 386) argumenta por uma teoria que dispense a necessidade de entidades

abstratas para explicar como os nomes ficcionais fariam referência. Ele também apontou que os

tipos de entidades abstratas introduzidas levantam mais perguntas do que respondem. Por exemplo,

uma das críticas mais comuns é que podemos considerar que entidades ficcionais, sejam estas

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personagens, objetos ou locais, têm a característica interessante de serem incompletas14. Objetos

concretos são completos e completamente determinados15. Por exemplo, a leitora que estiver lendo

“O problema final” de Doyle, pode não saber quantos fios de cabelo ela possui naquele dado

momento, no entanto, o número será par ou ímpar (assumindo que ela tenha cabelo); em

comparação, será impossível para a leitora saber se enquanto Holmes estava nas Cataratas de

Reichenbach a personagem tinha um número par ou ímpar de fios de cabelo. A informação não

está descrita na narrativa e é indeterminada e indeterminável. Isto é, Sherlock Holmes nas Cataratas

de Reichenbach não tinha um número par nem ímpar de fios de cabelo. Holmes não tem um número

par de fios de cabelo e Holmes não tem um número ímpar de fios de cabelo. Por isso a personagem

seria indeterminada, no momento de criação por Doyle e em todos os momentos em que é lida, e a

personagem seria indeterminável, nunca poderia possuir uma dessas propriedades sem entrar em

contradição com propriedades que já possuísse. Essa é a interpretação mais radical da existência

da entidade abstrata ficcional, onde depois de criada ela tem existência completamente

independente do autor, e existe como um Tipo imutável16.

A personagem ficcional é tão indeterminada que poderia ser feito o argumento radical de

que Sherlock Holmes sequer é uma pessoa ficcional, poderia ser uma alienígena, pois em nenhum

momento a espécie da personagem é determinada17. Considerando que poucas propriedades são

determinadas da totalidade possível, alguns estudiosos defendem que a não ser que em cada obra

de uma série as mesmas propriedades sejam atribuídas novamente, cada nova obra seria sobre uma

nova personagem. De modo semelhante, se numa mesma obra as mesmas exatas propriedades são

atribuídas a duas personagens, elas seriam apenas uma ou nenhuma, indistintas. (WALTON, 1990,

p. 387).

14 A dificuldade inescapável de poder criar predicados sobre nomes vazios faz parte da própria discussão sobre a

possível existência dos referentes dos nomes ficcionais. Para propósitos práticos, vou me valer da teoria do

fingimento por enquanto, um tipo de pressuposição de existência apenas para os propósitos do argumento.

15 Excluindo casos de sobreposição quântica. 16 Sendo o Tipo um conjunto de propriedades, e Tokens, instâncias particulares, no caso em questão qualquer menção

de Sherlock Holmes seria apenas um Token, e a entidade abstrata completamente separada referida seria o Tipo.

17 Existe a pressuposição de um certo compartilhamento de expectativas e conhecimentos sociais gerais envolvido na

criação pela autora e consumo por audiência. A importação de referências do mundo real muitas vezes tem a ver

com isso, uma novela se passa em Londres ao invés de Nárnia porque permite uma economia de descrições para

criar a narrativa. A peça “Júlio Cesar” de Shakespeare depende de uma compreensão mínima a respeito da história

do Império Romano.

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Walton considera que esses cenários hipotéticos não estão de acordo com o modo como

usamos os nomes ficcionais na linguagem natural. Leitores tendem a descrever ficções do mesmo

modo que descrevem concretos particulares comuns. Na linguagem natural é difícil identificar um

modo de referência distinto sendo usado para fazer a referência de nomes como “Hamlet” e “Louis

XIV”. Para Walton (1990, p. 387), esse tipo de erro não pode ser evitado se houver a insistência de

tratar a linguagem natural como completamente literal, especialmente quando se usa nomes

ficcionais. Entretanto, qualquer teoria que tentar explicar ficção, discurso ficcional, nomes

ficcionais e entidades ficcionais não deveria ser um sistema que funcione ad hoc apenas para cada

uma dessas funções, mas uma teoria que englobe todos esses itens problemáticos (WALTON,

1990, p. 388).

O ficcionalismo modal, uma das teorias mais ousadas sobre ficção, tenta explicar a

referência de nomes ficcionais e verdade em ficção ao considerar que a narrativa ficcional do nosso

mundo possa ser fato em um mundo possível e que as personagens poderiam ser pessoas que

vivessem esses fatos nos outros mundos possíveis18. Este tipo de teoria oferece uma resposta para

o problema da ficção ser indeterminada e incompleta: Sherlock Holmes19 nas Cataratas de

Reichenbach tinha um número par de fios de cabelo no mundo possível w’ e tinha um número

ímpar de fios de cabelo no mundo possível w’’, e os mundos w’ e w’’ são completamente iguais

com apenas uma diferença, a quantidade de cabelo de Holmes naquele momento; assim a referência

de Holmes do nosso mundo atual seriam os dois Sherlocks Holmes de w’ e w’’

Kit Fine (1984, p. 127) escreveu uma crítica sobre o livro de Terence Parsons, Nonexistent

Objects, onde ele censura esse tipo de racionalização com mundos possíveis e ficção. Como

estamos no mundo atual, temos uma posição metafisica privilegiada que pode induzir o filósofo a

tentar justificar a realidade e verdade da narrativa ficcional e personagens ficcionais do nosso

mundo como fatos que ocorrem em um mundo possível.20 Justamente com esse argumento Fine

18 O ficcionalismo modal permitiria falar de verdade na ficção e não só de frases verdadeiras na ficção ou a respeito da

ficção e personagens ficcionais, porque de acordo com essa teoria, a narrativa ficcional é a descrição de fatos de

algum mundo possível w’.

19 Estamos considerando que identidades transmundo são mantidas, pois estamos fazendo a referência, mas ao mesmo

tempo apenas consideramos como referência do Sherlock Holmes de Doyle aqueles Sherlocks de mundos aonde as

narrativas ocorreram como fato.

20 Posição metafísica privilegia simplesmente porque o nosso é o mundo atual e não um mundo possível.

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critica o ficcionalismo modal, pois se for aceitável outorgar realidade aos frutos da nossa

imaginação em mundos possíveis, será preciso aceitar que a Torre Eiffel pode ser produto da obra

ficcional de outro mundo. Pessoas, locais e objetos poderiam ser introduzidos ao mundo atual

através da ficção de outros mundos, e isto é indubitavelmente absurdo.

Contudo, ser um objeto ficcional parece ser uma propriedade categórica de um objeto. De

modo que faz parte de ser Sherlock Holmes não ser uma pessoa real, como no exemplo acima no

texto, é constituinte do pato de brinquedo não ser um animal orgânico. Na teoria de Parsons objetos

ficcionais são considerados entidades abstratas necessárias. Não seria uma questão empírica se

existe um objeto Sherlock, mas Fine (1984, p. 131) não concorda com essa tese. Para ele, objetos

ficcionais são criados, introduzidos no contexto de uma história e deste modo empiricamente

atualizados. A teoria de Parsons vai contra intuições simples e fortes de que autores criam suas

obras e suas personagens. Fine (1984, p. 140) sustenta uma visão antirrealista quase tão severa

quanto oposta à de Parsons. Ele considera que o objeto ficcional é um objeto de referência, que a

existência do objeto ficcional depende completamente da marca ou símbolo pelo qual foi

introduzido. Ou seja, a existência de Sherlock seria intrinsicamente ligada às obras ficcionais onde

o nome foi usado e introduzido; lembrando o pato do exemplo, seria como se o pato de brinquedo

deixasse de existir ao destruir o plástico do qual ele é feito, e não fosse mais possível fazer

referência a ele após o momento de destruição.

Neste capítulo vimos que a teoria descritivista tinha falhas no modo como atribuía sentido

e como determinava a referência dos nomes próprios. Os argumentos de Kripke apontaram essas

falhas, como vimos nesta seção. Ele também apresentou uma tese de referência direta e designação

rígida que é amplamente aceita hoje em dia. A referência direta aplicada à nomes ficcionais implica

na existência de entidades abstratas. No entanto, a existência de entidades abstratas ficcionais e

qual tipo de entidades estas seriam (se existirem) são questões de debate constante. Apresentei

algumas das posições mais radicais derivadas da implicação de existência de entidades abstratas

nesta última seção. Nos próximos capítulos veremos teorias que tentam explicar como o sentido e

referência dos nomes ficcionais é determinado, e como podemos ter simultaneamente intuições tão

contrárias com respeito à existência do que estes nomes referem e do valor de verdade de frase com

estes nomes, mesmo quando se concorda que esse tipo de nome tem sentido.

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Capítulo 3 – Teoria do Fingimento

Como vimos no capítulo anterior, existem fortes razões para aceitar a tese da referência

direta no caso dos nomes próprios. No entanto, o conteúdo semântico dos nomes próprios na ficção

implicaria a existência de uma entidade abstrata (de algum tipo). Considero que as implicações da

teoria fazem com que ela não seja adequada para responder todas as questões sobre nomes

ficcionais satisfatoriamente. A pressuposição de que exista uma entidade abstrata para cada nome

ficcional não precisa ser o ponto de partida para uma resposta ao problema de como estes nomes

têm conteúdo semântico. Muitos filósofos propuseram teorias sobre sentido na ficção, inclusive,

como vimos, o próprio Kripke, que reintroduziu a teoria da referência direta no campo dos nomes

próprios.

Nos dois primeiros capítulos vimos os desafios de afirmar que existem frases verdadeiras

com nomes ficcionais (além dos problemas com sentenças existenciais negativas). Kripke defende

que não é preciso ajustar a teoria da referência de nomes próprios para explicar o conteúdo

semântico de nomes ficcionais. Faria parte do fingimento envolvido na ficção supor que os critérios

de referência dos nomes estão sendo cumpridos. Pode ser que o fato de os critérios não serem

satisfeitos seja justamente o que determine que o trabalho em questão seja ficcional, mas o

fingimento faria parte da ficção também. Kripke chama isso de “Princípio do Fingimento”, e

poderia ser aplicado a obras de ficção e nomes ficcionais independente de qual teoria da referência

de nomes esteja sendo levada em consideração.

Na seção 3.1 exporei a Teoria do Fingimento apresentada por John R. Searle no artigo The

Logical Status of Fictional Discourse (1975), e em seguida, na seção 3.2, a interpretação de Kripke

da teoria que ele apresentou no Reference and Existence. Na seção 3.3 apresentarei as implicações

da designação rígida de Kripke para os nomes ficcionais, que são tema central dessa dissertação,

enquanto na última seção, 3.4, apresentarei alguns dos problemas com a designação rígida de

entidades ficcionais, principalmente o problema da pressuposição de existência.

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3.1 Fingimento de Asserções

John R. Searle defendeu que a produção de linguagem falada ou escrita era a performance

de Atos de Fala do tipo ilocucionário.21 Para ele existe uma relação entre o sentido das palavras e

frases e os atos ilocucionários performados com a produção dessas palavras e frases. No entanto,

as palavras e frases na ficção não mantêm a mesma relação com atos ilocucionários que a

linguagem natural. Os sentidos atrelados às palavras não mudam, por exemplo “cachimbo marrom”

descreve o mesmo tipo de objeto da mesma cor no discurso de ficção ou não-ficção. Mas apesar

do sentido literal das palavras não mudar, os atos ilocucionários e perlocucionários performados

por frases da ficção funcionam de modo distinto da não-ficção.

Para tentar explicar essa diferença Searle chama atenção para o que são asserções: frases

que uma falante profere com compromisso de afirmar algo verdadeiro22. Uma autora de ficção não

produz suas frases com o compromisso de afirmar algo verdadeiro, justamente o oposto é o que

determina que sua produção textual seja ficcional, que não existe intenção de afirmar algo

verdadeiro. Por exemplo, podemos imaginar que Doyle escrevendo “Sherlock Holmes fumava um

cachimbo marrom” não tinha intenção ou compromisso de afirmar algo verdadeiro. Por isso, para

Searle, o que diferencia o discurso ficcional do não-ficcional é a força, pois a diferença não depende

do sentido das frases, mas da intenção interlocutória da autora.

Searle (1975 p. 325) propõe que a autora de ficção apenas finge fazer uma asserção, pois

não tem intenção de afirmar algo verdadeiro, não tem intenção de fazer uma asserção. Ele leva em

consideração o fato de que fingir é um verbo intencional, não se pode fingir sem que exista a

intenção de fingir. Não existe distinção semântica e sintática entre o texto de ficção e não-ficção;

o que diferencia um do outro é a intenção ilocucionária da autora. Searle conclui essa análise da

distinção do que faz um texto ser ficcional afirmando que são as intenções ilocucionárias da autora

no momento de produção da obra que determinam a categoria a qual ela pertence, ficção ou não-

21 J. L. Austin apresentou sua Teoria dos Atos de Fala no seu livro How to do things with words (1962), onde através

da análise de frases não declarativas ele interpreta que existem três níveis no discurso performático (através do qual

executa-se ações): locucionário (produção e sentido do proferimento), ilocucionário (a ação executada pelo

proferimento) e ilocucionário (a compreensão e consequência do proferimento). Searle foi um dos mais

proeminentes e prolíficos filósofos a trabalhar no campo de Atos de Fala. 22 Existem muitos tipos de Atos de Fala, como promessas, ordens, pedidos, perguntas etc. Nem todos os autores

concordam com que tipo de categorias de Atos de Fala existem e como classificar os proferimentos. Para a presente

discussão asserções já serão suficientes para explicar as diferenças entre ficção e não-ficção.

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ficção. O argumento principal a favor da teoria do fingimento é que a autora finge fazer a referência,

então não existiria a necessidade do compromisso ontológico com entidades ficcionais (eliminando

a aparente contradição em frases como “Sherlock Holmes é um detetive” e “Sherlock Holmes não

existe”).

Para Searle, quando os leitores ou audiência usam um nome ficcional, eles estão de fato

fazendo uma referência. Um dos argumentos que ele usa para justificar essa noção é que as frases

são verificáveis. Se eu declaro “Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street”, essa frase poderia

ser considerada uma asserção, e este uso de “Sherlock Holmes” fará referência à personagem

ficcional criada por Doyle, e pode-se considerar que a frase é verdadeira, pois a personagem tem a

propriedade de viver em 221B Baker Street. As frases de Doyle com o nome “Sherlock Holmes”

nos romances e contos não teriam valor de verdade porque Doyle apenas fingia fazer referência a

uma pessoa real enquanto estava criando a narrativa. O fingimento da autora cria as personagens

ficcionais. Nós, o público, usamos o nome ficcional para fazer referência à pessoa ficcional que a

autora fingiu ser uma pessoa real enquanto escrevia. Nós, o público, podemos fazer declarações

verdadeiras sobre personagens ficcionais (SEARLE, p. 329).

O sucesso do ato de fala de referência é que precisa existir um objeto que esteja sendo

referido pela falante. Ao fingir fazer a referência a autora finge que existe um objeto sendo referido.

Na medida em que o público compreende e participa do fingimento, ele também finge que existe

o objeto referido. Para Searle (1975, p. 330) é o fingimento da referência que cria a personagem

ficcional, e é o fingimento com participação do público que permite a este mesmo público falar

sobre a personagem com frases falsas e verdadeiras. A autora cria a personagem ficcional que não

existia antes ao fingir a referência. Após este momento de criação, a leitora pode fazer referência à

personagem com sucesso. A leitora não precisa fingir fazer referência como a autora, mas fazer de

facto referência à personagem. Segundo esta teoria, na frase acima eu não fingi fazer referência a

uma pessoa real chamada “Sherlock Holmes”, mas referi-me a personagem ficcional Sherlock

Holmes.

Ainda no mesmo artigo, Searle (1975, p. 328) faz uma comparação entre a ficção na

literatura e no teatro que julgo ter implicações interessantes para a discussão de fingimento na

ficção e entidades ficcionais. Ele argumenta que uma história (literária ou oral) ficcional é o

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fingimento de uma representação de um estado de coisas, enquanto uma peça sendo interpretada

não é o fingimento de uma representação de um estado de coisas, mas o fingimento do próprio

estado de coisas, onde os atores fingem serem as personagens23. Segundo Searle “a força

ilocucionária do texto de uma peça é como a força ilocucionária de uma receita de bolo. É um

conjunto de instruções sobre como fazer alguma coisa, nomeadamente, como performar uma

peça”24 (1975, p. 329). Em uma peça ou um filme o fingimento fica a cargo dos atores, enquanto

diretores, profissionais de som e luz, figurinistas etc. não fingem estar representando um estado de

coisas. Esses profissionais dos bastidores trabalham para produzir o estado de coisas onde os atores

vão atuar a narrativa. Para Searle, a autora de uma peça não participa do mesmo tipo de processo

de fingimento de referência que a autora de um romance.

3.2 Fingimento da Referência Direta

Kripke concorda com muito do que Searle falou sobre fingimento de referência em ficção.

Vimos no capítulo anterior que ele defende que nomes próprios fazem referência direta e são

designadores rígidos. Através da teoria do fingimento, ele tenta explicar como funcionam ambos

os conceitos para nomes ficcionais. Kripke não estava preocupado com Atos de Fala, mas sim com

esclarecer sua tese sobre referência direta e designação rígida que tinha começado a expor em

Naming and Necessity. Segundo ele, o processo de criação de um trabalho de ficção é um trabalho

de fingimento. O criador da obra de ficção finge contar fatos, finge batizar um indivíduo, finge que

cada uso do nome ficcional se refere a algo ou alguém (2013, p. 23). Um dos pontos interessantes

do argumento de Kripke é que não importa o critério que se use para o batismo, seja de referência

direta ou descritivista, pois também se finge que qualquer que seja o método, ele está sendo usado

do modo correto. Faz parte do processo de criação de um trabalho de ficção fingir que houve um

23 Existem muitas escolas de pensamento dentro de escolas de atuação sobre se atores fingem serem personagens ou

se atores representam personagens (ou representam ações e sentimentos de personagens). Para Searle em 1975 essas

nuances não eram importantes, mas acho relevante mencionar que independente da opinião dos filósofos alguns

atores apenas representarão seus papeis (falas e ações) sem grandes preocupações com fingirem serem pessoas

fictícias.

24 Tradução própria.

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processo correto de batismo e fingir que a referência dos nomes ficcionais é feita do modo correto,

qualquer que seja o modo dessa referência.

Ele sustenta que não é preciso ajustar a teoria de referência de nomes próprios para explicar

o conteúdo semântico de nomes ficcionais. Faria parte do fingimento envolvido na ficção supor

que os critérios de referência dos nomes estão sendo cumpridos. Pode ser que o fato de os critérios

não serem satisfeitos seja justamente o que determine que o trabalho em questão seja ficcional, mas

o fingimento faria parte da ficção também. Kripke chama isso de “Princípio do Fingimento”, e

como dito acima, poderia ser aplicado a obras de ficção e nomes ficcionais independente de qual

teoria de referência de nomes esteja sendo levada em consideração.

A pessoa que concordar com Mill tem que afirmar que a função semântica do nome é

nomear e não descrever um referente. Num trabalho de ficção seria necessário fingir que essa

função essencial estaria sendo satisfeita. Seguindo esse princípio, para quem concorda com Mill,

as proposições que ocorrem num trabalho de ficção seriam apenas pseudo-proposições. (KRIPKE,

2013, p. 24). No entanto, nem todas as proposições e nomes presentes em trabalhos de ficção são

ficcionais. Existem histórias ficcionais sobre Sherlock Holmes e Londres, nessas histórias as

proposições teriam partes ficcionais sobre Sherlock Holmes, e partes não-ficcionais sobre Londres.

Ao comentar sobre as histórias podemos afirmar “Londres existe” e “Sherlock Holmes não existe”,

porque este último nome apenas faz parte de um fingimento de batismo e fingimento de referência

do nome, sem de fato apontar um indivíduo, algo diferente do caso de “Londres”, que tem uma

referência real e concreta (2013, p. 20).

A pessoa que, por sua vez, concordar com Frege e Russell sobre a função descritiva dos

nomes, também poderia aplicar o princípio do fingimento ao modo como nomes são usados na obra

de ficção. Para o defensor do descritivismo, o nome próprio significaria “a coisa que satisfaz as

propriedades apresentadas na história”. No entanto, as descrições dadas nas histórias não parecem

ser suficientes para que um único objeto satisfaça as descrições. Não haveria como determinar que

apenas um objeto fosse capaz de satisfazer as descrições definidas contidas na história o suficiente

para fixar a referência ali ao invés de inúmeros outros objetos. As descrições nunca seriam

definidas fracassando em determinar a referência (2013, p. 26).

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Devemos também ter em mente que se não existir um objeto ou indivíduo que satisfaça as

descrições dadas na história, então não existiria o referente do nome. Se esta implicação for

suficiente para explicar o caso de “Sherlock Holmes”, não o é para o caso de “Londres”. Se um dia

no futuro distante não existir mais nenhum registro de Londres além daqueles nas histórias de

Holmes, o nome próprio “Londres” não passaria a ser o fingimento de um nome. Isto é, o batismo

e a determinação da referência através da cadeia causal ainda seriam suficientes para determinar a

referência e considerar que este não é um nome vazio, e não poderíamos afirmar verdadeiramente

que “Londres não existe” ou que “Londres” não se refere a nada (2013, p. 27). A história e nome

ainda seriam sobre um lugar real, mesmo que o único registro que sobrevivesse fosse em uma obra

ficcional.

Para Kripke (2013, p. 28), as descrições associadas com as propriedades descritas na obra

ficcional não servem para apontar a referência, pois a atribuição das propriedades também faz parte

do fingimento da ficção. Pelo uso das frases da ficção finge-se expressar proposições ao invés de

expressá-las de fato. Não é a intenção de Kripke argumentar por um novo tipo de função de

referência para nomes ficcionais, mas argumentar que existe uma categoria semântica de nomes de

fingimento (2013, p. 29).

O princípio do fingimento não poderia ser aplicado à categoria de nomes com erros nos

processos de batismo, como no nome “Vulcano” que mencionei anteriormente. Esses nomes e

frases com esses nomes não eram frases fingindo expressar proposições. Quando Le Verrier previu

nos seus modelos matemáticos a existência de Vulcano, ele não fingiu fazer asserções. Le Verrier

não proferiu frases com um nome com o qual ele fingia ter referência, ou que ele estava fingindo

ter sido fixada quando ele estava fingindo o batismo de um referente. Le Verrier afirmou aquelas

frases com um nome que ele acreditava possuir uma referência, e estava errado no momento do

batismo porque não tinha um referente e em todos os momentos subsequentes nos quais usou o

nome com intenção de fazer a referência erroneamente atribuída. No entanto, para Kripke (2013,

p. 30-31), existe uma equivalência entre o fingimento de asserções na ficção e o erro nas asserções

com nomes com falha no batismo inicial. Mas isto é bastante implausível dado as faltas de

equivalência evidentes no processo de introdução dos nomes.

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3.3 Designação Rígida na Ficção

Kripke afirma repetidas vezes que nomes próprios servem para referir. No caso de nomes

em uma obra de ficção não importa que exista um indivíduo no mundo que satisfaça as descrições

dadas na narrativa. Se tivesse existido alguém que satisfizesse todas as descrições definidas

atribuídas a Sherlock Holmes, ainda assim, esse indivíduo não seria Sherlock Holmes. O nome

“Sherlock Holmes” é usado com a intenção de fingir referir um objeto específico, e não qualquer

indivíduo que satisfaça a lista de propriedades atribuídas nos predicados das sentenças na obra de

ficção.

Kripke (2013, p. 41) argumenta que a teoria do fingimento pode ser aplicada aos nomes

ficcionais independentemente de como se pretenda fixar a referência (através de um batismo ou

descrição definida), como já tinha mencionado anteriormente. No entanto, ele defende que nomes

ficcionais são nomes próprios genuínos, e que são designadores rígidos com apenas um único

referente. Por outras palavras, na tese kripkeana nomes ficcionais são uma subclasse de nomes

próprios. Se os nomes próprios são designadores rígidos, os nomes ficcionais também o são.

Sherlock Holmes não precisa ter feito tais e tais coisas, Doyle poderia ter parado de escrever sobre

a personagem depois do primeiro livro. Então a designação não seria derivada do conjunto de

descrições definidas associadas ao nome, mas ao uso do nome que faz sempre a mesma referência.

“Sherlock Holmes” não seria o nome de um indivíduo qualquer indeterminado concreto ou abstrato

que apresente as propriedades atribuídas à personagem, mas um indivíduo abstrato unicamente

designado pelo nome.

Apesar de propor uma teoria do fingimento que ele afirma funcionar independentemente de

qual modo de referência se tenha em mente, Kripke volta a invocar nossas intuições a respeito de

contrafactuais para argumentar a favor de nomes designarem rigidamente. A aplicação dessa teoria

no caso dos nomes ficcionais leva a uma metafísica com muitas entidades abstratas. Pois é isso que

significa dizer que o nome “Sherlock Holmes” designa rigidamente um único indivíduo, e não um

indivíduo qualquer que se encaixe no conjunto de descrições definidas a ele atribuídas.

Vejamos os esforços de Kripke para definir o que compõe as categorias de nomes e

entidades abstratas ficcionais. O exemplo que o autor usa no seu argumento é o dos unicórnios, já

que existe o consenso que não existam unicórnios, entretanto, o nome “unicórnio” tem sentido. Até

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o momento não foi descoberto nem inventado um espécime do tipo unicórnio, mas é possível

imaginar que este não é o caso. É possível imaginar que poderiam existir unicórnios. Para Kripke

(1981, p. 24) não é uma verdade necessária que unicórnios não existiriam se o mundo tivesse sido

diferente25. Mas como o mundo não foi diferente do que é, então não existem, nunca existiram e

não existirão unicórnios. Kripke defende que seria impossível determinar que um unicórnio exista,

se for inventado ou achado em pesquisas arqueológicas um indivíduo que se assemelhe à definição

do que é um unicórnio, não haveria como confirmar que o nome referiria àquele indivíduo. Ele

apresentou duas teses para explicar o caso dos unicórnios. A primeira é a tese metafisica que

nenhuma situação contrafactual pode ser descrita como uma na qual unicórnios existiriam; dado

que são uma espécie mitológica, do mesmo modo que tigres são uma espécie natural. A segunda é

uma tese epistemológica segundo a qual ainda que houvesse a descoberta arqueológica de um

animal com todas as propriedades atribuídas aos unicórnios na mitologia, esta descoberta não

poderia ser tomada sozinha como prova da existência de unicórnios (1981, p. 156).

Se os unicórnios da mitologia fossem uma espécie particular, o mito fornece informação

insuficiente sobre a estrutura interna do animal para determinar uma espécie única, então não

haveria modo de determinar se quais espécies possíveis ou atuais teriam sido unicórnios. Do

mesmo modo, a mera descoberta de animais com as propriedades atribuídas a unicórnios nos mitos

não provaria que estes seriam os animais dos mitos. Poderia ser mera coincidência que as

propriedades do animal atual se assemelham às propriedades descritas do animal do mito26. De tal

modo que não podemos afirmar realmente que existiu o unicórnio do mito, porque seria preciso

alguma conexão histórica que mostrasse que o mito é sobre esses animais (1981, p. 157).

Kripke (2013, p. 48) considerou que seria possível traçar um paralelo entre os casos do

nome da espécie mitológica “unicórnio” e o do nome ficcional “Sherlock Holmes”. Para ele,

mesmo que tivesse existido alguém que instanciasse todas as propriedades atribuídas a Sherlock

Holmes, não haveria modo de provar que essa pessoa fosse de fato Sherlock Holmes. A frase

comum no prefácio de romances “As personagens desta história são ficcionais e qualquer

25 Existe o argumento que participa da descrição definida de unicórnios que eles são mitológicos e não existem no

mundo atual, e por definição não poderiam existir porque deixariam de ser mitológicos, e então deixariam de ter

uma das propriedades essenciais do conjunto de descrições definidas. 26 É comum encontrar no início de um romance uma nota dizendo que qualquer semelhança a pessoas e locais reais é

mera coincidência. A obra de ficção é produzida com a intenção de não fazer referência ao mundo atual.

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semelhança com pessoas e lugares reais é mera coincidência” reafirma essa intuição comum. Do

mesmo modo se pode afirmar que o termo “unicórnio” ocupa uma categoria semelhante à do termo

“tigre”, exceto que o primeiro ocorre na mitologia. Para o caso dos unicórnios poderia ser aplicada

a seguinte paráfrase “A espécie deste mito é ficcional e qualquer semelhança com espécies atuais

existentes ou extintas é mera coincidência”. Caso houvesse a descoberta de algo que poderia ter

sido um unicórnio, seria preciso provar alguma conexão histórica causal com o mito de onde

provém o nome para explicar a referência. Senão continuaria sendo mera coincidência qualquer

semelhança entre animal real e mito (2013, p. 50). Por praticidade poderíamos chamar a nova

espécie descoberta pelo nome do animal mitológico, mas seria o caso de usar um único nome para

dois conteúdos semânticos distintos. Ainda não teríamos o animal do mito como parte do mundo

atual, mas apenas um novo animal com um nome que já tem outro uso.

3.4 Pressuposição de Existência

Analisando uma das implicações de frases existenciais positivas com nomes ficcionais,

Kripke cita Hintikka (apud KRIPKE, 2013, p. 55) que comenta as complicações do cogito

cartesiano na ficção, com o exemplo de Hamlet, que pensa, mas não existe. É conhecimento comum

que Hamlet não existe, que a peça de Shakespeare é apenas ficção. Na peça, Hamlet tem muitos

pensamentos e muitos monólogos nos quais expõe seus pensamentos, mas como Hamlet poderia

pensar e não existir? Podemos tentar contextualizar a frase “Hamlet pensa” com algum tipo de

operador de ficção: “Na história ficcional, Hamlet pensa”. Seria preciso adicionar o operador a

todas as frases, ou supor que ele estaria implícito em todas as frases com o nome ficcional. Hamlet

pensa, e logo existe dentro da história ficcional relevante. Não existiria falácia em afirmar que

Hamlet pensa e faz monólogos e não é uma pessoa real (KRIPKE, 2013, p. 57).

Na peça Hamlet, a personagem homônima contrata atores para interpretarem uma peça

chamada “O assassinato de Gonzago”. Nesta peça dentro da peça é apresentada uma narrativa de

crimes que Hamlet suspeita serem iguais aos de seu tio. No contexto da peça de Shakespeare,

Hamlet é uma pessoa real, o príncipe da Dinamarca, enquanto os atores que ele contrata interpretam

personagens fictícias, uma das quais o próprio Gonzago que dá nome à peça dentro da peça. Para

Hamlet fora da peça dentro da peça não existe Gonzago, enquanto para nós fora da peça não existe

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Hamlet. A peça “O assassinato de Gonzago” só existe dentro da ficção de Hamlet, não existe na

realidade essa peça, ao contrário de Hamlet, que é uma obra de ficção que existe no mundo atual

(2013, p. 59). Durante a peça de Shakespeare nunca se declara que Hamlet seja uma personagem

ficcional. A narrativa da peça Hamlet afirma que Gonzago é ficcional, mas não Hamlet (2013, p.

61).

Independente de Gonzago ser uma ficção dentro da ficção de Hamlet, ainda podemos falar

sobre a personagem, e segundo Kripke (1981, p. 148), existe uma pressuposição de existência no

uso do nome ficcional. Se falamos sobre personagens ficcionais devemos estar prontos a admitir a

existência delas. Ele crê que existem níveis diferentes de linguagem envolvidos nos nomes vazios.

Por um lado, o nome ficcional envolve o fingimento da referência, e por outro envolve o processo

de criação de uma entidade ficcional através do fingimento da referência, similar ao que Searle

defendeu. De tal modo que Gonzago e Hamlet têm igual estatuto metafísico, ambos são entidades

ficcionais.

Nomes ficcionais podem ser usados de modos metalinguísticos, e isso já foi sugerido como

um método para explicar sentenças existenciais negativas. Poderíamos dizer que uma frase como

“Papai Noel não existe” é um modo mais simples de dizer que “Papai Noel” é um nome vazio sem

referente (1981, p. 151). No entanto, essa explicação incorre em novos problemas. Segundo Kripke,

existe uma diferença entre aprender um novo nome vazio, como uma estrangeira que ouve pela

primeira vez o nome “Papai Noel”, e ao indagar sobre o nome, é informada que é um nome sem

referente e entre conhecer o nome primeiro, como uma falante da linguagem natural, para aprender

tardiamente que o nome não refere, como geralmente acontece com crianças. A criança aprende

que “Papai Noel não existe”, e não apenas que o nome “Papai Noel” não tem referente (1981, p.

153). Alguém pode acreditar que Papai Noel não existe baseado apenas no conhecimento que

“Papai Noel” não tem referente. Mas Kripke (1981, p. 155) defende que a pessoa pode dizer mais

com a frase “Papai Noel não existe” do que apenas que o nome “Papai Noel” não tem referente.

Porque entender que “Papai Noel” não tem referente não depende de entender o que o nome denota,

apenas a ausência de um objeto sendo referido.

Kripke tinha dois objetivos com os argumentos que expus nesta seção: explicar a referência

direta a entidades ficcionais e reforçar sua tese sobre designação rígida dentro do contexto de nomes

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ficcionais. Quando argumentou sobre a ficcionalidade de Unicórnios e Sherlock Holmes, Kripke

defendeu que não haveria como provar uma ligação causal que provasse que os nomes fizessem

referência a objetos concretos hipotéticos. Um possível detetive que coincidentemente tivesse

vivido aquelas aventuras ou um fóssil que tivesse as propriedades descritas não seriam o Sherlock

Holmes de Doyle ou o unicórnio da mitologia. Do mesmo modo, se houvesse uma obra ficcional

que descrevesse uma pessoa que tivesse vivido todos os mesmos acontecimentos que Napoleão

viveu, isso não significaria que Napoleão teria sido então uma personagem ficcional (1981, p. 150).

Expondo o argumento deste modo, fica mais clara a intuição sobre designação rígida que Kripke

busca explorar para nomes ficcionais.

Não surpreendentemente, o autor de Reference and Existence sustenta a existência de

entidades ficcionais. Kripke usa sua teoria apenas para explicar como as entidades ficcionais são

criadas através do fingimento dos autores, e como após a criação que fixa a referência, qualquer

um pode fazer a referência à entidade ficcional. A teoria do fingimento busca resolver o problema

das entidades abstratas causalmente inertes já que explica a criação de entidades ficcionais. Além

disso, almeja resolver o problema de a criação de uma obra ficcional não ser uma série de atos de

asserção falsas, ao mesmo tempo que preserva a possibilidade de referência às entidades criadas

através da obra e frases com valor de verdade positivo com os nomes ficcionais. No entanto,

existem outras teorias que tentam explicar como é feita a referência de nomes ficcionais que são

mais intuitivas e exigem menor compromisso ontológico, e apresentarei duas delas que julguei

mais relevantes para esta pesquisa particular em seguida neste texto.

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Capítulo 4 – Teoria do Faz de Conta

Neste capítulo mostrarei os pontos mais relevantes da Teoria do Faz de Conta de Kendall

Walton, que ele apresentou no livro Mimesis As Make Believe. Apesar do livro de Walton ter sido

lançado anos antes do livro de Kripke, as palestras deste foram apresentadas mais de uma década

antes do Mimesis As Make Believe ter sido lançado. Walton criticou a teoria do fingimento por um

problema intrínseco ao estudo da ficção que, no entanto, tinha menor impacto em outras áreas da

filosofia: que os teóricos do fingimento não entenderam o que é a ficção. A teoria do fingimento

ignora que exista um ato ou intenção específica ao fazer ficção, ao dizer que o autor apenas finge

um ato de fala. O discurso de ficção é sistematicamente estudado como um espelho do discurso

sério ao invés de um objeto em si27. Walton defende que fazer ficção é participar de um jogo de

faz de conta, semelhante aos jogos em que crianças brincam que são heróis onde nenhuma delas

acredita que passou a ser outra pessoa, mas cada criança faz de conta que é outra pessoa.

O impulso de tratar nomes ficcionais como nomes próprios geralmente impede que as frases

com nomes ficcionais possam ser verdadeiras a não ser que a falante esteja disposta a admitir

muitas entidades abstratas na sua metafísica. Porém, creio que existe algo fundamentalmente

diferente no modo como uma frase com um nome próprio com referente é falsa e no modo como

uma frase com um nome ficcional é falsa. Deve existir uma diferença nos modos como as frases

“Aristóteles é um detetive” e “Sherlock Holmes é um detetive” seriam falsas se é verdade que

Aristóteles existe e Sherlock Homes não28. Afirmar frases falsas outorgando propriedades à

Aristóteles que ele nunca teve é um esforço diferente de afirmar uma frase falsa que implica a

existência de uma entidade inexistente.

A narrativa ficcional não é a respeito do mundo concreto, não é um relato de fatos, caso

contrário não seria ficção. A ficção pode ser considerada como uma narrativa que não existe no

27 Discurso sério sendo aquele que refere e comenta sobre o mundo real, com seus objetos e conceitos. O discurso sério

geralmente também tem o privilégio de poder ser verdadeiro ou falso, ou de afetar a realidade como os performativos.

28 A frase “Sherlock Holmes é um detetive” não precisaria ser considerada falsa se a falante aceitar a existência de

entidades abstratas da ficção. Para Mill (sem considerar a subsistência de Meinong) e para Frege as frases com

nomes ficcionais são falsas, apesar de Frege preservar a noção de sentido mesmo na ausência do referente.

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mundo real. Se a narrativa for um relato de fatos atuais29 então não é um produto de ficção. A

produção artística, seja poética ou visual, não pretende asserir fatos a respeito do mundo, mas criar

uma narrativa sobre algo que diverge da realidade do mundo como ele é. Daí narrativas ficcionais,

poemas ou interpretação de atores não deverem ser classificadas como falsidades. Contar uma

história é diferente de mentir.

A teoria sobre ficção de Walton diz que existe um processo de faz de conta envolvendo a

autora que faz de conta que faz asserções em narrativas em obras ficcionais e a audiência que faz

de conta que aceita aquelas asserções, que aceita participar do jogo de faz de conta. Fazer ficção e

usar nomes ficcionais em frases não seria um ato de fala em si, mas apenas o fazer de conta que se

executa um ato de fala, seja uma asserção, uma ordem etc. como parte de uma representação de um

jogo de faz de conta. Segundo essa explicação, o que caracteriza o texto de ficção é o nível de

força, e não o sentido ou a referência dos nomes e frases30. O uso dos nomes ficcionais também é

analisado dentro dessa teoria de faz de conta, com o sentido sendo associado a estados mentais

representacionais e a referência a contextos dos jogos de faz de conta.

Este capítulo tem quatro seções, na seção 4.1 apresentarei alguns dos argumentos de Walton

sobre o motivo para separar o problema de sentido e referência dos nomes ficcionais das questões

metafísicas sobre existência de inexistentes e pressuposição de existência de entidades abstratas e

ficcionais. Na seção 4.2 apresentarei os argumentos de Walton sobre ficção e discurso ficcional. A

intenção da autora de uma obra de ficção pode determinar que frases literalmente idênticas sejam

em um momento ficção e em outro não-ficção. Na seção seguinte 4.3 apresentarei o conceito de

representação na teoria do faz de conta, que é dos conceitos mais importantes para esta teoria.

Walton propõe que usamos representações nos jogos de faz de conta, que é desse modo que

participamos desse tipo de jogo. Na última seção, 4.4, apresentarei as conclusões de Walton sobre

a possibilidade de termos frases verdadeiras sobre ficção e com nomes ficcionais.

29 Atual no sentido de real, aquilo que é de fato, aquilo que existe no mundo atual. 30 Força, ou geralmente força ilocucionária, se refere à intenção com a qual a falante faz proferimentos. Quando uma

falante faz uma asserção, profere uma frase que acredita ser verdadeira feita com a intenção de comunicar essa

convicção, podemos dizer que foi usada força assertórica, isto é, a força de uma asserção.

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4.1 Entidades Ficcionais

Segundo Walton, nós, leitores e audiência de obras de ficção, aprendemos desde cedo que

“Pedro e o Lobo” é apenas uma história e que Pedro e o Lobo nunca existiram. No entanto, ao

sermos questionados sobre a existência dessas personagens, a primeira resposta tende a ser que elas

existem. Com um único folego afirmamos o truísmo de que não existem dragões, unicórnios ou

cavalos alados, e que nunca existiram. Contudo, no folego seguinte aceitamos que existem sim,

eles existem na ficção, existem dragões, unicórnios e cavalos alados. É devido a esse conflito de

intuições sobre o estatuto ontológico de entidades ficcionais que existe um problema de saber qual

o conteúdo semântico dos nomes ficcionais, e afinal em como determinar qual o sentido e

referência desses nomes, e se sequer é possível ter frases com valor de verdade com esses nomes.

A existência ou não existência de entidades ficcionais é um problema exigente, porque não

é de todo claro como defender as duas intuições contrárias. Alguns filósofos tentaram enquadrar o

problema numa distinção entre ser e existir, ou entre o que existe e o que é atual31. Uma frase como

“Sherlock Holmes existe, mas ele não é real” é produto da tentativa de explicar as intuições

contrárias com uma metafísica com categorias e distinções especiais para entidades abstratas. Para

Walton (1990, p. 385), esse tipo de esforço não consegue explicar as contradições do problema

inicial, e não são boas tentativas de mesclar os dois lados do argumento. Esse tipo de esforço remete

à proposta de Meinong de criar uma distinção entre coisas que existem e subsistem, quando o cerne

do problema com entidades ficcionais é outorgar qualquer tipo de existência a objetos inexistentes.

Ademais, nem todos os inexistentes são do mesmo tipo, por exemplo o círculo quadrado é um

objeto inexistente impossível bem diferente de Sherlock Holmes, um objeto inexistente ficcional.

Mesmo que estejamos dispostos a admitir a existência de um indivíduo chamado Sherlock Holmes,

se ele existisse não seria apenas uma entidade abstrata, mas uma entidade ficcional,

fundamentalmente diferente de números e cores, por exemplo.

31 O argumento de Meinong sobre subsistência é uma referência recorrente para filósofos que querem defender que

nomes ficcionais fazem referência direta.

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Para alguns filósofos realistas32, teorias de fingimento ou faz de conta não são relevantes,

pois eles simplesmente aceitam o compromisso ontológico atrelado a entidades ficcionais33. Mas

como vimos na seção anterior, existem bons motivos para aceitar algum tipo de teoria de

fingimento a respeito das referências de nomes ficcionais, já que o processo de batismo e referência

é distinto daquele usado em nomes próprios normais. A teoria do fingimento pode ser adaptada

para as principais formas divergentes de referência de nomes, então não faz sentido não considerar

suas aplicações à ficção, aceita Walton (1990, p. 388). As afirmações de existência de entidades

ficcionais dos filósofos realistas ignoram ou desconsideram a importância do caráter de faz de

conta que é constituinte da ficção. Eles confundem o fingimento de referir com nomes da ficção

com compromisso ontológico genuíno fora da ficção. Ao lidar com ficção, a imersão no faz de

conta é fácil e natural, e tão profunda que afeta nossa percepção da distinção do discurso sobre

ficção e realidade.

Para aqueles filósofos que não são realistas, há possíveis refutações à existência de

entidades ficcionais. Walton (1990, p. 390) argumenta que as intuições sobre ficção e outros tipos

de abstratos são muito divergentes. Intuitivamente, em contextos não acadêmicos e não-teóricos

ordinários, a inclinação natural da maioria das pessoas é fazer declarações afirmando que ficções

não existem. Nestas mesmas situações essas mesmas pessoas dificilmente negariam a existência

de propriedades e números. Raramente alguém afirmará “Vermelho não existe” ou “O número 1

não existe” do mesmo modo não-teórico que se tende a afirmar frases como “Sherlock Holmes não

existe”. O consenso que objetos da ficção não existem é muito maior do que a negação de outros

tipos de abstratos. A negação de propriedades, universais e números costuma ser um esforço

acadêmico mais avançado do que o da audiência casual ao afirmar que “Hamlet não existe”.

Os debates a respeito do status ontológico de entidades ficcionais parecem ser alimentados

pelo hábito que as pessoas têm de fazer asserções que parecem ser sobre entidades ficcionais, e que

essas asserções são em muitos casos asserções de verdades. Talvez ao invés de estudar as

implicações metafisicas desse tipo de discurso devêssemos começar a análise da ficção com o

32 Que defendem a realidade externa de objetos, inclusive objetos abstratos.

33 Filósofos como Kripke se preocupam com o modo como a entidade ficcional é criada, introduzida, especialmente

considerando os problemas de entidades abstratas serem causalmente inertes, mas estes filósofos não rejeitam a

existência das entidades em si da sua metafísica.

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estudo da linguagem usada. Será que seria correto considerar as frases com nomes ficcionais como

asserções? Walton (1990, p. 391) defende que este não é o caso, que são asserções problemáticas.

As frases seriam nestes casos participação no faz de conta, fingimentos de asserções.

4.2 Fazer Ficção

Walton propõe um modo de distinguir ficção de não ficção, e seu argumento usa o conceito

de representação. Representação é um conceito central para a teoria do faz de conta que Walton

propôs: representações são ferramentas (obras ficcionais ou artefatos) usados nos jogos de faz de

conta. A teoria dele é ampla, e explica jogos de faz de conta em muitos contextos, pois considera

todas as formas artísticas e brincadeiras de faz de conta de crianças como participando da categoria

de ficção. Teatro, cinema e música são mais fáceis de entender como jogos de representação talvez,

pois os intérpretes representam histórias e melodias, mas existe uma parte na produção da ficção

que depende da audiência que recebe e entende a representação, e é por causa da participação da

audiência que ele julga que existe uma semelhança com jogos de faz de conta. A apreciação da arte

depende da troca entre criador e intérprete da obra com a audiência que consome a arte, seja uma

pintura, uma peça ou uma obra literária (1990, p. 72). Para Walton, livros, pinturas e brinquedos

servem como utensílios para as representações que os participantes criam ao embarcarem no jogo

de faz de conta.

Se um trabalho literário é ficção ou não-ficção isso não é demonstrado pelas palavras que

o compõem. Não é possível fazer esta distinção através da composição sintática e semântica (com

exceção dos nomes) do conteúdo das frases. A mesma sequência de palavras, as mesmas frases

podem estar presentes em uma biografia ou em um romance. Tampouco a diferença entre ficção e

não-ficção depende da relação das palavras com o mundo. O que constitui o caráter fictício da obra

não depende da existência de entidades ficcionais ou reais, ou correspondência com fatos. Segundo

Walton (1990, p. 77), o crucial não é o valor de verdade da obra ficcional, mas o valor de verdade

que a autora indica para a obra se ela faz asserções quando escreve sua narrativa. Não importa o

quão corretamente Tolstói descreveu os estados mentais de Napoleão, Tolstói escreveu uma obra

de ficção ao criar “Guerra e Paz”.

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Walton quer principalmente desenvolver uma teoria que explique a ficção em múltiplos

meios de arte, seu foco é mais em estética do que propriamente filosofia da linguagem. No entanto,

a sua teoria do faz de conta teve grande penetração no campo de estudo dos nomes ficcionais. O

caso de romances históricos é particularmente interessante para o debate do que faz um texto ser

ficção ou não, pois não existe a interrupção da narrativa ficcional quando a autora descreve eventos

históricos. Tampouco existe a interrupção da narrativa quando se usa nomes próprios importados

da realidade, como quando Doyle descreve aventuras de Sherlock Holmes em Londres, ou Tolstói

descreve Napoleão invadindo a Rússia34.

Seria incorreto interpretar frases asseridas num romance histórico como interrupções da

ficção. Segundo Walton (1990, p. 79), Tolstói não interrompe seu trabalho na sua ficção quando

ele escreve que Napoleão invadiu a Rússia, mesmo que ao escrever isso ele estivesse afirmando

que Napoleão de fato invadiu a Rússia. A descrição de um fato histórico ao invés de um fato

ficcional dentro da narrativa não interrompe a ficção, do mesmo modo que fazer uma referência

geograficamente correta a Londres não detrai da ficção da obra. Para Walton (1990, p.396), o uso

primário de uma frase assertiva que aparenta estar fazendo referência a entidades ficcionais é o

fingimento. O que é asserido por meio delas deve ser entendido primeiro pelo papel que tem no faz

de conta.

A crítica de Walton (1990, p. 84) à teoria de fingimento é que a ficção é considerada como

uma forma de discurso parasítica ao discurso “sério”. A divisão parece respeitar intuições a respeito

de realidade e verdade, já que usamos o discurso sério para falar sobre o mundo real. Falamos sobre

o mundo real quando produzimos a frase “a neve é branca”, e determinamos que é uma frase

verdadeira porque a neve é branca. Mas não existe diferença no sentido literal das palavras da frase

“a neve é branca” quando ela for parte da ficção. No entanto, a frase da ficção já não se refere ao

mundo real, e dependendo da narrativa pode nem ser verdade. As diferenças nos modos de

referência nos levam a crer que as sentenças da ficção não são exatamente como as sentenças do

34 O uso do nome próprio “Napoleão”, claramente importado do mundo real, e ligado aos eventos que serviram de

inspiração para a narrativa ficcional é um ponto de discussão entre filósofos da ficção, nomes ficcionais e entidades

ficcionais. Existem argumentos que defendem que a referência, mesmo no romance, será sempre Napoleão, enquanto

outros defendem que o Napoleão de Tolstói é uma personagem ficcional, uma entidade abstrata separada e distinta

da pessoa real Napoleão. Ainda outros defendem que no romance de Tolstói o nome “Napoleão” apenas refere o

conjunto das descrições definidas contidas na narrativa.

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discurso normal, algum tipo de fingimento de linguagem ao invés de linguagem em si. Walton

(1990, p. 85) quer defender em seu livro que fazer ficção não é o fingimento ou uma representação

de um outro tipo de ato ilocucionário, mas que é um tipo de ato ilocucionário próprio. Obras de

ficção seriam veículos do ato ilocucionário de fazer ficção.

As teorias de atos de fala tentam entender a linguagem como ações que falantes performam

ao invés de propriedades de palavras e frases. Do mesmo modo como frases são os veículos usados

para asserir, prometer, questionar etc., as obras de ficção são os veículos através do qual se faz

ficção. Em um nível básico e intuitivamente compreensível pela audiência normalmente a autora

não performa os atos ilocucionários de uma pessoa que usa as mesmas palavras em um contexto

de não-ficção ao escrever ficção. O ato comunicativo que a autora executa com uma frase como

“Chove em Londres” é diferente do ato de fala que um meteorologista no telejornal matinal executa

com a mesma frase.

Walton argumenta que não deveríamos chamar frases como “asserções”, pois asserir é uma

função ligada a ações humanas. Ele defende que ações são nesse sentido mais fundamentais que

frases. Frases assertivas são relevantes na medida que as pessoas asserem. Frases são asserções,

diz Walton, apenas no sentido derivativo. Uma frase é uma asserção se é uma frase que falantes

tipicamente usam para fazer asserções; de modo semelhante, representar ficcionalmente é uma ação

das pessoas (1990, p. 86).

No capítulo anterior vimos um tipo de aplicação da teoria dos atos de fala à ficção; ali a

Teoria do Fingimento foi usada para explicar a existência de entidades ficcionais e como a

referência de nomes ficcionais é feita. Neste capítulo vemos uma teoria que não considera o ato de

fazer ficção como o fingimento de algum tipo de ato de fala. As diferenças, defende Walton (1990,

p. 88), entre os atos ilocucionárias e atos de fazer ficção estão nos diferentes papéis das intenções

dos agentes. O receptor de um ato ilocucionário, o interlocutor, tem ocasião de se perguntar sobre

as intenções do falante: ele está afirmando isso, está prometendo aquilo, está ordenando ou

pedindo? Em contrapartida, o leitor de um romance, espectador de uma peça ou observador de um

quadro raramente vem a se indagar sobre quais verdades ficcionais e efeitos35, se algum, o autor

ou artista pretendeu gerar. O ato de fazer ficção produz uma obra (como o ato ilocucionário com

35 Além dos óbvios de gerar entretenimento e lucrar social e economicamente com a produção artística.

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frases) que pode ser uma representação de algum ato de fala, um romance sobre uma promessa por

exemplo, no entanto a obra em si não é um ato de fala ou comparável a um veículo do ato de fazer

ficção. A linguagem depende da ação dos falantes. No entanto, a ficção depende de jogos de faz de

conta, e a obra de ficção é um utensílio no jogo de faz de conta. Fazer ficção é construir tais

utensílios.

4.3 Representação e Referência

Walton defende que o conceito de representação é fundamental para a ficção. Jogos de faz

de conta entre crianças estão repletos de exemplos de representações no seu sentido mais simples.

Os utensílios usados durante os jogos também são usados como representações: a espada de

plástico representa a espada de verdade, como a menina representa a Mulher Maravilha. Nicholas

Wolterstorff (1976, p. 124) argumenta que em uma peça teatral a audiência entra em contato com

representações das personagens executadas pelos atores e atrizes, nunca com as personagens

ficcionais.

Qual o objetivo de afirmar que temos representações de coisas atuais em obras ficcionais?

Existe a tendência de considerar conexões entre ficção e o mundo atual gratuitas, do ponto de vista

estético. Não obstante, é preciso saber se existem pessoas, lugares e eventos atuais no mundo

ficcional36. Os objetos de representação podem ajudar a responder esse tipo de dúvida (WALTON,

1990, p. 114). Representação de objetos atuais é um problema para romances históricos: Napoleão

está sendo representado ou referido em Guerra e Paz?

Segundo Walton (1990, p. 106), quando se cria representações de que uma pessoa seja alta

ou seja um detetive, se cria a ficção que a pessoa é alta ou é um detetive. Normalmente obras

também representam seus objetos como existentes. Por praticidade estética, o autor pode narrar a

sua história com eventos que ocorrem em Londres que é um local associado a inúmeras descrições,

plenamente caracterizado. Através dessa escolha estilística o autor criará a ficção que a ação se

passa na Londres atual. Para Walton (1990, p. 115), o uso de locais atuais fornece a autores e

36 Walton argumenta que a obra e os utensílios de ficção permitem que os participantes do jogo de faz de conta criem

um mundo ficcional, onde a narrativa ocorre, onde as pessoas são as personagens, e os utensílios assumem papéis

dentro do faz de conta.

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leitores a praticidade da economia na caracterização. Quaisquer discrepâncias entre lugares atuais

e os apresentados na obra são simplesmente supostas pela audiência como fazendo parte da ficção.

Enquanto pressupõe-se que o resto da Londres atual permanece inalterado na Londres ficcional.

Mesmo quando não se trata de referência à objetos atuais, durante a leitura de uma narrativa

ficcional supõe-se, por exemplo, que as regras da física e lógica continuam operando. Salvo a

presença de instrução na obra para pensar diferente o leitor pressupõe muitas coisas a respeito do

mundo ficcional como sendo semelhantes ao mundo real.

A aplicação do conceito de representação permite explicar os modos como nos engajamos

com a ficção, com suas obras e objetos, e permite o conceito de verdades ficcionais e que nos

engajemos com elas. Representações sobre ficção são estados mentais dos participantes do jogo de

faz de conta das ficções. Existem elementos além do simples contato com a obra de arte envolvidos

na sua apreciação, por exemplo: o ato de ler um romance permite a aquisição conhecimento, mas

também gera crenças na leitora. Algumas crenças podem ser como no caso de referir e representar

Londres num romance, aonde uma gama de caracterizações podem ser pressupostas e outras

crenças dependem de inferências lógicas sobre ações das personagens e eventos da narrativa.

Ambos tipos de crença participam das representações associadas com a obra de ficção, e são

estados mentais que ocorrem quando a leitora ou audiência se engaja com a narrativa ficcional.

Contudo, a representação não elimina a dúvida sobre que tipo de objeto é representado pela

obra, se objetos ficcionais ou objetos reais. Walton (1990, p. 133) nos propõe um exercício de

visualização: eu posso imaginar um gato no tapete, ou posso imaginar que existe um gato no tapete,

que no tapete tem um gato, um gato qualquer. No primeiro caso, não preciso ter um gato específico

em mente quando imagino que o gato está em cima do tapete, no entanto parece mais apropriado

descrever esse tipo de cenário como se eu tivesse um gato específico em mente. No segundo caso,

quando apenas imagino um tapete com gatos em cima, eu não imagino um gato específico no

mesmo sentido. A relevância da distinção ressaltada aqui é que todos os gatos são específico

singulares, indubitavelmente, mas se o gato da minha imaginação no primeiro caso é um objeto

que eu possa identificar e referir, então deve existir o tal gato para ser identificado, mesmo que não

seja um gato atual.

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4.4 Verdade na Ficção

A percepção de que a ficção (ou mundo da ficção) é um produto e objeto do nosso mundo,

da nossa realidade é o que gera questões a respeito de quantos fios de cabelo Sherlock Holmes tem.

O nosso mundo é completo, mas o mundo da ficção não o é, como falamos na seção 2.3. É incomum

ver uma pessoa se preocupando com quantos fios de cabelo ela tem, mas a mesma pessoa pode

achar estranho que é impossível saber quantos fios de cabelo Sherlock Holmes teria. Os fios de

cabelo seriam ficcionais, então não deveria fazer diferença quantos Holmes tinha nas Cataratas de

Reichenbach. Entretanto, quando pensamos em ficcionalidade como um tipo de verdade é preciso

que algum número de fios de cabelo seja verdadeiro e outros infinitos falsos.

Frases verdadeiras a respeito do mundo da ficção não podem ser afirmadas como

verdadeiras a respeito do mundo real, como se fossem o caso atual. Existe o hábito de dizer frases

como “Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres” ao invés de dizer “No mundo

das histórias de Doyle, Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres”. De acordo com

Walton (1990, p. 206), o operador ficcional é constantemente omitido no discurso ordinário, e essa

omissão é responsável por intuições contraditórias e desentendimentos em geral. Este tipo de

omissão, por praticidade ou descuido reiterado, raramente ocorre com outros operadores

intencionais.

Algumas frases a respeito de ficção são mais apropriadas do que outras, sustenta Walton

(1990, p. 398), especialmente porque a ficção é um jogo de faz de conta. A frase “Sherlock Holmes

é um detetive” é mais apropriada do que a frase “Sherlock Holmes é um padeiro” dentro do tipo de

jogo autorizado pela obra de Doyle. A participação esperada dos leitores da obra é fazer de conta

que eles também falam frases verdadeiras ao invés de falsas quando falam sobre o mundo ficcional.

Esse tipo de ato de fingimento não pressupõe que o falante esteja asserindo coisas verdadeiras ou

falsas para explicar que algumas frases são mais apropriadas do outras aos jogos específicos de faz

de conta previstos na obra de ficção.

Walton (1990, p. 430) conclui a apresentação de sua teoria afirmando que é possível dizer

frases verdadeiras ficcionalmente, como quando alguém finge fazer asserções. A participação nos

jogos permite que crianças, leitores, atores etc. usem representações para fazer de conta que estão

em contato com o mundo ficcional. Durante a participação no jogo de faz de conta asserções com

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valor de verdade podem ser feitas, mas serão, como todas as ações e objetos dentro do jogo, apenas

ficcionais. Quanto ao discurso “sério”, não é possível referir as entidades ficcionais sem participar

do jogo de faz de conta. Como afirmou Wolterstorff (1976), não entramos em contato com as

personagens, apenas com representações delas. Fora do jogo de faz de conta a introdução do

operado ficcional elimina as ambiguidades tradicionais, indicando a qual domínio a referência

realmente pertence e evitando confundir o mundo ficcional com o mundo real. Nem todos os

filósofos ficam satisfeitos com uma solução que envolve paráfrases, no entanto a frase “No mundo

das histórias de Doyle, Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres” parece ser

verdadeira de um modo muito simples e intuitivo.

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Capítulo 5 – Ficcionalismo

Uma das minhas críticas da aplicação da teoria de referência direta aos nomes ficcionais é

que as entidades abstratas da ficção não são uma solução tão elegante quanto a teoria da referência

direta que implica sua existência, como vimos na seção 2.3. Se fossem entidades abstratas robustas,

apresentariam propriedades incongruentes entre si, e com a natureza abstrata das próprias

entidades. Entidades abstratas teriam as propriedades atribuídas na obra de ficção, que podem ser

propriedades físicas ou contraditórias, como estar vivo e morto. No entanto, entidades abstratas são

causalmente inertes. Sendo assim, não podem ser criadas, pois sempre existiram. Mas então

existiria um número gigantesco de entidades abstratas para dar conta de todas as histórias possíveis,

que nunca foram escritas, mas que poderiam ter sido.

Não considero que entidades abstratas ficcionais são necessárias para explicar o conteúdo

semântico de nomes ficcionais. Existem teorias com menor compromisso ontológico que também

explicam o conteúdo semântico. O grande número de entidades que teríamos que admitir na nossa

metafisica é desconcertante considerando que a referência direta não é a única explicação

disponível. Um outro motivo para rejeitar a referência direta para nomes ficcionais é que a teoria

introduz novas dificuldades à questão dos nomes ficcionais, com entidades ficcionais com suas

propriedades contraditórias ou entidades abstratas casualmente inertes. Entidades abstratas para

nomes ficcionais não deveriam ser admitidas sem se examinar as outras possibilidades explicativas

do conteúdo semântico. Uma teoria ontologicamente mais econômica e que preserve as intuições

acerca do funcionamento dos nomes ficcionais será, assim, preferível. Neste capítulo chamarei

atenção para o Ficcionalismo, uma teoria que busca explicar o conteúdo semântico aparente dos

nomes sem implicar a existência de entidades abstratas para cada nome ficcional.

As teorias de fingimento e faz de conta têm um erro nas suas argumentações. Ambas as

teorias supõem que falante e autor fingem ou fazem de conta que o nome ficcional faz referência a

um indivíduo do mundo atual. Mas o uso competente do nome ficcional é justamente aquele em

que não se faz referência a um objeto concreto.37 Neste capítulo quero apresentar o que eu considero

37 Considero, neste caso, falante competente aquele que saiba que o nome é ficcional, diferente do exemplo de Kripke

com as crianças que usam o nome “Papai Noel” sem saber que não existe referência.

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a melhor teoria para explicar o conteúdo semântico de nomes ficcionais. As teorias de referência

direta e fingimento não respondem satisfatoriamente a todos os desafios sem enormes

compromissos ontológicos.

Na seção 5.1 apresentarei a teoria sobre ficção de Currie. Nomes ficcionais ocorrem dentro

de ficções, e seus usos são mais atrelados ao que é a ficção do que o que são nomes próprios. Por

este motivo Currie considera que é preciso qualificar o que é a ficção e como ela difere de outras

formas de discurso, propondo que ocorre um ato de fala específico na produção de obras de ficção.

Na seção 5.2 explorarei a noção de verdade na ficção, proposta por Currie de um modo distinto do

que Walton havia feito com a noção de coerência com o “mundo da ficção”. Na seção 5.3 exporei

e analisarei os argumentos de Currie sobre como nomes ficcionais têm sentido e referência, assim

como se a sua proposta se sustenta contra as teorias já vistas nesta dissertação.

5.1 Ficcionalizar

Gregory Currie (1990) apresenta uma alternativa à teoria do fingimento chamada de

Ficcionalismo que consegue preservar as intuições de como dar conta do conteúdo semântico dos

nomes ficcionais. O Ficcionalismo me parece muito mais natural e intuitivo do que as teorias do

fingimento e do faz de conta. Currie argumenta que não é só uma distinção de força que diferencia

o discurso ficcional do discurso assertórico ou declaratório. A diferença se deveria ao tipo de ato

de fala ser distinto dos demais. O criador de uma obra de ficção, seja ela textual, visual, auditiva

etc. tem a intenção de criar uma narrativa não-verídica, uma narrativa fantasiosa. O criador de uma

narrativa de ficção estaria ficcionalizando ao gerar a sua história, e suas descrições e nomes

ficcionais referem somente ao cenário da sua narrativa. Vejamos com mais detalhe em que esta

teoria consiste.

A posição de Currie não é exatamente uma expansão da teoria de Walton, mas ele utiliza

parte do aparato teórico de Walton para também negar a ideia de fingimento pela parte do autor e

do público da narrativa ficcional. Existem tipos de fingimentos de atos de fala (paródia, imitação e

mentiras) que não são ficção. Por meio desses atos de fala ficcional a autora da obra não tem

intenção de criar uma narrativa de faz de conta ou uma narrativa que seja compreendida como

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ficcional. A teoria de Walton sobre os jogos de faz de conta ainda se assemelha à teoria do

fingimento, pois tanto autor quanto leitores e plateias estariam fazendo de conta, fingindo acreditar

numa narrativa ficcional como factual. No entanto, Currie entende que produzir e consumir ficção

são atos nos quais se aceita as narrativas como propositalmente ficcionais, sem em nenhum

momento haver a pretensão de fingir que a narrativa fosse factual.

A intenção de uma falante ao fazer o pronunciamento ficcional é que uma audiência entenda

o sentido do seu pronunciamento e que ele é ficcional. Mas, naturalmente, pode haver mal-

entendidos, ou seja, erros de interpretação por parte da audiência quanto à natureza ficcional na

obra. Um dos melhores exemplos nesse sentido, é o caso de “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe,

que supostamente não foi escrito como ficção, mas que é lido como se fosse. Trata-se do que Currie

chama de pseudo-ficção.

A autora de uma obra ficcional não finge fazer asserções, pois isso não produziria o valor

de engajamento da audiência almejado na produção de ficção. A audiência não finge que acredita

em asserções da autora quando lê ou assiste a um trabalho ficcional, essa ação tampouco produziria

o valor de entretenimento que geralmente se busca na ficção. A audiência participa do faz de conta

ao aceitar a narrativa ficcional como sendo a reprodução de um fato conhecido pela autora. A

disposição da audiência de participar do faz de conta da autora se deve a reconhecer que não existe

a tentativa de contar uma mentira, mas uma narrativa fictícia. Currie define mentira como uma

asserção feita com o conhecimento de que o conteúdo asserido é falso. Doyle não estava mentindo

sobre Sherlock Holmes ao criar sua narrativa. É uma defesa antiga ao argumento da mentira da

ficção que o poeta não mente. No caso onde não existe asserção, como com a autora de ficção,

nada é dito que possa ser verdadeiro ou falso (1990, p. 5).

Para melhor compreendermos o ficcionalismo, é importante termos clara a distinção entre

sentido e força. Podemos identificar o que uma frase diz meramente pelo sentido (como na ficção)

ou pela força e sentido (como em asserções). O sentido é o conteúdo ou proposição expressa pelo

proferimento de uma frase qualquer na obra. Em contrapartida, a força constitui os diferentes

modos pelos quais entretemos o conteúdo expresso por uma frase. Esses são os chamados atos de

fala: asserir, ordenar, solicitar, indagar, esperar, desejar etc. É necessário distinguirmos aqui o que

Searle (1969) denomina diferentes “condições de ajuste” entre a proposição expressa pelo

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proferimento de uma frase e o mundo. No caso de asserções, o conteúdo asserido será verdadeiro

quando a proposição expressa pelo proferimento se “ajustar” ao mundo, ou seja, reproduzir o modo

como o mundo se comporta. Em contrapartida, o conteúdo de um imperativo será “satisfeito”,

quando o mundo se “ajustar” à proposição expressa pelo imperativo. Entretanto, em ambos os

casos, o valor do conteúdo proposicional de uma oração é determinado pelas suas relações

referenciais dos componentes da frase com o mundo. Por exemplo, na asserção da frase “Vênus é

um planeta”, o conteúdo proposicional expresso será verdadeiro se a referência do nome próprio

“Vênus”, um particular, instanciar a propriedade expressa pelo predicado “ser um planeta”.

Segundo Currie (1990), as relações de referência também vão depender do significado das

expressões veiculadas pelos proferimentos; por exemplo, o conteúdo “ser um planeta” depende do

significado de “ser um planeta”. As considerações sobre força não têm relevância para determinar

a referência dos componentes oracionais da frase proferida. A afirmação segundo a qual frases da

ficção não têm valor de verdade provém da confusão entre sentido e força (1990, p. 6). Podemos

criticar as teorias que afirmam a falsidade das frases ficcionais examinando o modo como lidamos

com frases falsas na linguagem natural. Se as frases ficcionais fossem falsas, nós, os leitores, não

acreditaríamos nelas, e não conseguiríamos apreciar a narrativa ficcional.

Dentro da narrativa ficcional temos frases com sentido, e podemos tentar pensar sobre o

valor de verdade delas. Uma frase como “Londres é a capital da Inglaterra” poderia ter o mesmo

sentido no The Guardian quanto numa das histórias de Doyle. Aqui podemos considerar a frase

literalmente, e ela é verdadeira puramente porque a relação do referente com o predicado se dá no

mundo. No entanto, Doyle não estaria fazendo uma asserção, enquanto o jornalista do The

Guardian por sua vez estaria fazendo uma asserção. Haveria então duas ocasiões de produção da

mesma frase literal, na qual uma resulta numa asserção e a outra não (1990, p. 15).

Autores de ficção não fazem asserções quando criam frases ficcionais, e são dúvidas sobre

força ao invés de sentido que precisam ser respondidas para entendermos o que é ficção. A teoria

do fingimento está errada ao afirmar que a autora de ficção está fingindo asserir algo. Currie (1990,

p. 13) defende que a autora performa um ato comunicativo que não é o fingimento de algum outro

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ato, assertivo ou de outro tipo, em oposição tanto a Kripke quanto a Walton38. A ficção emerge,

Currie (1990, p. 24) defende, com a prática de narrar histórias. A autora que produz uma obra de

ficção está engajada num ato comunicativo. Este ato envolve possuir um certo tipo de intenção: a

intenção que a audiência ou leitora vai acreditar no conteúdo da história que é narrada. Para Currie,

o sucesso do ato comunicativo depende de a audiência aceitar que a narrativa é ficcional, isto é, foi

construída sem fazer referência a coisas e pessoas reais. As teorias de fingimento ou faz de conta

tratariam essa etapa do jogo da ficção de fingir acreditar que a narrativa é factual. Contudo para

Currie não existe a pretensão de fingir fazer referência a coisas atuais, apenas referência à

elementos do mundo da ficção, como descrito na obra de ficção. A percepção de que uma obra é

ficção dependeria de identificar a intenção do autor de não fazer referência a coisas atuais, de contar

uma narrativa não factual como se fosse factual, como uma ficção.

5.2 Verdades Ficcionais

A teoria do faz de conta introduziu muitos conceitos interessantes no modo como podemos

estudar ficção. Currie (1990, p. 73) defende um conceito modificado de faz de conta no qual a

participação da leitora é menos ativa. Para Walton a obra ficcional é um utensílio para o jogo de

faz de conta que a leitora aceita jogar para se envolver com o mundo da narrativa de ficção. Currie

propõe que a leitora da narrativa ficcional está fazendo de conta que ela está sendo informada dos

eventos narrados por alguém com conhecimento deles. A leitora faz de conta que entra em contato,

através de canais confiáveis, com as personagens e suas ações. Fazer de conta que se acredita em

uma história ficcional não é apenas fazer de conta que a história é verdadeira, mas que ela está

sendo contada como fato.

Esta proposta de jogos de faz de conta depende do conceito de verdade ficcional. Currie

(1990, p. 56) argumenta que uma proposição P que seja verdadeira na ficção ou ficcionalmente

verdadeira não tem um tipo peculiar de valor de verdade a ser outorgado, mas apenas que P é

38 Walton também critica a teoria do fingimento de Kripke, mas para Currie a definição de que a autora faz de conta

que faz asserções não é suficiente para o ato intencional de criar ficção, que é um ato comunicativo em si, não uma

representação de um outro tipo de ato fala.

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ficcional, ou que é ficcional que P é verdadeira. As coisas que são verdade na ficção ou são

ficcionalmente verdadeiras são as coisas que fazem parte da narrativa.

Observemos o conceito de verdade ficcional aplicado a alguns exemplos:

(22) Sherlock Holmes é um fumante de cachimbo.

(23) É verdade na ficção que Sherlock Holmes é um fumante de cachimbo.

Tomemos a frase (22) como P, e consideremos o prefixo “É verdade na ficção” como um

operador F, um operador de ficção. A frase (23) tem o prefixo sobre ficção, mas podemos agora

representar a proposição e operador como F(P). Segundo o conceito de verdade ficcional de Currie,

P é falsa e F(P) é verdadeira. A frase (22) não expressa uma proposição verdadeira, no entanto a

frase (23) expressa (1990, p. 57). Ser ficcional não é a mesma coisa que ser verdadeiro, mas pode

ser considerado como uma propriedade de proposições.

A verdade ficcional dependeria do que pode ser determinado que uma fonte confiável da

história (como fato possível) poderia acreditar ser verdade, como a figura do narrador. Contudo,

tanto a fonte confiável que informa a história quanto suas crenças ocorrem dentro do escopo do

nosso jogo de faz de conta. Para participar do jogo de faz de conta não é necessário conhecer cada

detalhe que é verdade na ficção. Sabemos enquanto audiência que o autor não tem conhecimento

dos eventos da história como fato (senão não seria uma escrita de ficção), e sabemos que o autor

não acredita nas suas frases (pelo menos não todas, frases como “Londres é a capital da Inglaterra”

dependem de representação e referência ao mundo real, e que não teriam seu valor de verdade

alterado por fazerem parte da ficção). Uma das dúvidas anteriormente apontada neste texto, é a

respeito da completude dos objetos ficcionais. Contudo o autor é uma fonte confiável da narrativa,

e aquilo que ele informa na obra de ficção é plenamente determinado. Para Currie, o operador

ficcional vai permitir rejeitar as acusações de incompletude e atribuição de propriedades

contraditórias, como no caso abaixo:

(24) Não é parte da ficção que Sherlock Holmes tenha um número par de fios de cabelo no

seu confronto com Moriarty nem é parte de ficção que ele não tinha.

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Não faz parte da descrição que Sherlock Holmes seja completamente determinado, com um

número exato de fios de cabelo em dada situação porque não está incluso na obra de arte nenhuma

informação sobre isso. Sobre as descrições inclusas na narrativa, estas sim são determinadas.

Entretanto muitas descrições estão fora do escopo da narrativa e são indetermináveis.

5.3 Uma Teoria de Nomes Ficcionais

A pressuposição que nome ficcionais são nomes próprios genuínos faz com que o filósofo

tente explicar nomes ficcionais sem considerar primeiro como estes funcionam, tratando a classe

como derivativa. Atrelar a categoria de nomes ficcionais com a de nomes próprios induz à confusão

do que é verdade na história com o que é verdade simpliciter. Com certeza é verdade nas histórias

de Doyle que “Sherlock Holmes” é um nome próprio – o nome de um grande detetive, de fato. Mas

o que é verdade na ficção não é necessariamente verdade. Currie (1990, p. 128) propõe que é

verdade que um nome ficcional é uma expressão que na história é um nome próprio. Contudo, o

nome ficcional é mais do que apenas isso. Napoleão é uma personagem em “Guerra e Paz”, mas

não uma personagem ficcional, já que os usos de Tolstói do nome “Napoleão” no livro não seriam

então como um nome ficcional. Isto é devido a existir uma pessoa real de quem é verdade que na

história o nome dele é “Napoleão”. Em oposição, é verdade nas histórias de Doyle que “Sherlock

Holmes” é um nome próprio, mas não existe uma pessoa real de quem seja verdade que na história

o dele seja “Sherlock Holmes”.

Acima Currie chamou nomes ficcionais de nomes próprios nas histórias, mas se fossem de

fato nomes próprios seriam nomes vazios, sem referente. Nomes ficcionais parecem ter sentido,

eles contribuem para o sentido das frases nas quais eles aparecem. Se não fosse assim, não seria

possível compreender histórias ficcionais. Mas se nomes ficcionais forem nomes próprios seria

necessária uma teoria que explicasse como nomes vazios podem contribuir para o sentido de frases

nos quais eles aparecem. Alguns usos de nomes ficcionais fora das histórias parecem ser em frases

verdadeiras, como “Sherlock Holmes é uma personagem ficcional” (1990, p. 131). Se o nome não

referisse absolutamente então como a frase faria sentido? Ao fim, Currie (1990, p. 129) rejeita que

nomes ficcionais sejam nomes próprios.

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Currie (1990, p. 146) argumenta que uma teoria de nomes ficcionais plausível deve dar

conta dos diversos tipos de usos dos nomes ficcionais. Os usos variam desde o ato inicial do autor

de criação, ao engajamento do leitor com a história e até os comentários e especulações que

parecem separar a personagem do texto de origem e tratá-la como um objeto autônomo de estudo39.

Estes tipos de uso são muito diferentes uns dos outros, e uma teoria de nomes ficcionais precisa

levar essa distinção em conta. Currie considera que não é necessário usar nomes ficcionais para

escrever ficção, isto porque ele defende que a autora faz um uso ficcional de nomes enquanto

escreve ficção. Quando a autora usa um nome ficcional ao escrever ficção, ela faz um uso ficcional

do nome ficcional.

Quando um comentador faz uso do nome ficcional, por exemplo na frase (22) o valor de

verdade depende do uso implícito do operador F, explícito na frase (23). Doyle, quando escreveu

frases semelhantes nas suas histórias estava fazendo um uso ficcional do nome ficcional, pois

estava fazendo ficção. O comentador, por sua vez, não deseja fazer ficção, deseja fazer asserir sua

frase que acredita ser verdadeira. Como tínhamos visto em Walton, este tipo de declaração deixa

de ser ambígua e passa a ter um valor de verdade positivo quando usada com um operador

intencional como prefixo, tal qual “é parte da história que” (CURRIE, 1990, p. 158). O problema

é que sem o operador F, o nome próprio na frase (22) não tem referente, é um nome vazio; enquanto

com o operador F o nome próprio é ficcional (ficcionalmente tem referente) e a propriedade

atribuída a ele na frase participa da mesma ficção

Currie sugere que quando “Sherlock Holmes” é usado no escopo do operador intencional o

nome ficcional passa a funcionar como uma descrição definida abreviada. A descrição abreviada

de todas as descrições e proposições que fazem parte da narrativa da obra de arte. O leitor

provavelmente não tem a descrição total em mente quando usa o nome fora do contexto da ficção.

As descrições associadas podem variar de leitor para leitor, mas Currie (1990, p. 159) propõe que

a teoria trate a descrição como um ideal semântico que um leitor perfeitamente atento, informado

e de boa memória associaria ao nome “Sherlock Holmes”.

39 Muitos dos usos do nome “Sherlock Holmes” nesta dissertação poderiam ser considerados deste terceiro tipo, como

quando estamos considerando a existência e inexistência da personagem ou afirmando e negando outras profissões

que não as descritas nas histórias de Doyle.

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Considerar nomes ficcionais descrições complexas ao invés de mecanismos de referência

direta permite evitar compromissos ontológicos indesejados, mas parece não responder a todas as

intuições que temos sobre histórias ficcionais e o que é verdade sobre elas. Por exemplo, é verdade

que na história de Doyle “Sherlock Holmes” é um mecanismo de referência direta: na história é de

fato o nome próprio de um indivíduo particular, no caso Sherlock Holmes. Também é verdade na

história que a identidade de Sherlock Holmes não está associada as suas aventuras enquanto

detetive, isto é, na história se Holmes não tivesse vivido aquelas aventuras descritas ele ainda seria

Sherlock Holmes, ele seria idêntico a si mesmo, afirma Currie (1990, p. 165). Enquanto pode ser

verdade que nas histórias de Doyle “Sherlock Holmes” é o nome próprio de alguém, não existe

nenhuma pessoa real de quem seja verdade que o nome dele seja “Sherlock Holmes”. Ocorre um

erro de pressuposição de existência de uma entidade abstrata na ausência de uma entidade concreta

que seja a referência do nome próprio (apesar de que o nome é ficcional, e só é próprio dentro da

história).

Apesar desta teoria precisar introduzir o operador intencional para ficção F, como a teoria

do faz de conta fez, considero que ela oferece melhores respostas sobre como nomes ficcionais tem

sentido e referência, e até mesmo como é possível ter frases com nomes ficcionais com valores de

verdade positivo ou negativos. Comparando as duas teorias, o modo como Currie propõe a

participação do leitor no processo da ficção é bem mais simples do que o modo como Walton

propõe que o jogo de faz de conta aconteça. As considerações sobre o conceito de representação e

estados mentais introduz passos extras no processo de ficcionalização. O Ficcionalismo tem

soluções mais intuitivas a respeito dos usos informais e formais de nomes ficcionais do que as

Teorias do Fingimento e do Faz de Conta. Ademais Walton sacrifica a possibilidade de verdade na

ficção e sobre ficção, a participação no jogo de faz de conta permitiria usos dos nomes ficcionais

em frases mais ou menos apropriadas ao jogo (como autorizado pelo utensílio). A teoria de Currie,

contudo, autoriza o uso dos nomes ficcionais em frases com valor de verdade, oferecendo mais

soluções com menor compromisso ontológico e envolvimento de estados mentais.

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Considerações Finais

Começamos esta pesquisa com dúvidas a respeito do sentido e referência de nomes

ficcionais, e se nomes ficcionais sequer podem ser considerados uma subcategoria de nomes

próprios já que não parecem funcionar do mesmo modo. Apresentamos os modos como nomes

próprios têm sentido e se referem nos dois primeiros capítulos. Nomes ficcionais são geralmente

considerados uma subcategoria de nomes próprios, no entanto, quando considerados com as

mesmas explicações de funcionamento geralmente levam a questionamentos sobre a existência de

entidades abstratas e a possibilidade de que as frases com nomes ficcionais sequer tenham valor de

verdade.

Nos três capítulos seguintes apresentamos três teorias para tentar explicar como nomes

ficcionais podem ter sentido, e como a referência é feita, se ela é feita. A teoria do fingimento

explica como entidades abstratas são criadas através da ação do autor de ficção de fingir fazer

referência. Das teorias que apresentamos esta é a que preserva mais da tese de referência direta e

designação rígida e preserva a implicação de existência de entidades abstratas. Outrossim, esta

teoria não considera que exista uma diferença no tipo de nome usado na ficção e no discurso

normal, apenas no modo como os nomes são usados.

A teoria do faz de conta explica sentido e referência de nomes ficcionais e valor de verdade

para frases da ficção sem precisar admitir entidades abstratas. Esta teoria preserva muitas intuições

comuns a respeito do que é a ficção. Vimos que a teoria do fingimento afirma que fazer ficção é o

fingimento de fazer outro ato de fala, todavia a teoria do faz de conta afirma que fazer ficção é uma

ação em si e não apenas a deturpação de outra ação. Esta teoria tem uma preocupação com a estética

da ficção de um modo geral, não só com o sentido e referência dos nomes ficcionais. Contudo, as

soluções desta teoria dependem de paráfrases, operadores intencionais de ficcionalidade, e a

introdução de estados mentais representacionais.

A terceira e última teoria apresentada foi o ficcionalismo, que é mais conservadora do que

as outras duas em algumas áreas, pois dispensa entidades abstratas e estados intencionais; no

entanto, é expansiva em outras, como no conceito de ficcionalização (que inclui o fazer ficção, a

atribuição de crenças à narradores, e ficcionalizar referências, nomes, verdades etc.) e o uso de

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paráfrases. Esta teoria considera nomes ficcionais (e de fato toda a ficção) como uma categoria que

deve ser explicada de um modo exclusivo a eles. Os nomes ficcionais são ligados às descrições

contidas nas narrativas ficcionais que, por sua vez, dependem de atos comunicativos dos autores

que produzem ficção. Os nomes ficcionais são diferentes dos nomes próprios, com funções

diferentes. A conclusão é que nomes próprios são mecanismos de referência direta e nomes

ficcionais são descrições definidas abreviadas.

A solução proposta por Currie para o problema é ad hoc, mas a ficção é um tipo específico

de fenômeno comunicativo, seja através da palavra escrita, falada ou representações visuais. As

intuições e fácil compreensão competente do que é o discurso ficcional são motivo para aceitar

estudar a ficção em si, e por isso soluções para os problemas dentro dessa área, como sentido e

referência de nomes ficcionais, serão específicas à ficção e distantes das teorias de nomes próprios.

Considerando nossas questões iniciais da pesquisa esta parece ser a melhor teoria, pois responde

às dúvidas sobre sentido e referência de nomes ficcionais preservando o maior número de intuições

com menor introdução de entidades abstratas na nossa metafísica. Ademais, a distinção introduzida

entre nomes ficcionais e nomes próprios permite admitir frases com valor de verdade com nomes

ficcionais além das existenciais negativas. A possibilidade de discurso verdadeiro a respeito de

ficção é um bônus para uma teoria que tente explicar sentido e referência de nomes ficcionais.

Como vimos, algumas das teorias negavam completamente a possibilidade de sentenças que não

fossem existenciais negativas terem valor de verdade positivo. Enquanto outras autorizavam esse

tipo de discurso verdadeiro apenas com a implicação de grandes compromissos ontológicos.

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