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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS DA LINGUAGEM PAULO HENRIQUE FRANCO CAVALHEIRO VT AENEAS AVGVSTVS: A RETÓRICA DAS IMAGENS DE AUGUSTO NA ENEIDA DE VIRGÍLIO MARIANA 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS DA LINGUAGEM

    PAULO HENRIQUE FRANCO CAVALHEIRO

    VT AENEAS AVGVSTVS: A RETÓRICA DAS IMAGENS DE AUGUSTO NA ENEIDA DE

    VIRGÍLIO

    MARIANA

    2017

  • PAULO HENRIQUE FRANCO CAVALHEIRO

    VT AENEAS AVGVSTVS: A RETÓRICA DAS IMAGENS DE AUGUSTO NA

    ENEIDA DE VIRGÍLIO

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

    Graduação em Letras: Estudos de Linguagem da

    Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito para

    obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos da

    Linguagem.

    Linha de Pesquisa: Linguagem de Memória Cultural

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Agnolon

    MARIANA

    2017

  • Catalogação: www.sisbin.ufop.br

    CDU: 821.124-1(043.3)

    Cavalheiro, Paulo Henrique Franco. VT AENEAS AVGVSTVS [manuscrito]: a retórica das imagens de augusto

    na Eneida de Virgílio / Paulo Henrique Franco Cavalheiro. - 2017. 112f.:

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Agnolon.

    Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Programa de Pós- Graduação em Letras.

    Área de Concentração: Estudos da Linguagem.

    1. Virgílio. 2. Retórica. 3. Propaganda . 4. Poesia épica latina. I. Agnolon,

    Alexandre. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.

    C376v

    http://www.sisbin.ufop.br/

  • Agradecimentos

    Agradeço imensamente todos os envolvidos na produção dessa dissertação e na

    confiança em mim depositada.

    Em especial, agradeço minha esposa e meu filho pela atenção e o incentivo que

    me dão constantemente: a luz que brilha em seus olhos é algo que me faz ir além e

    nunca desistir, sempre lutar, especialmente em momentos difíceis.

    Minha enorme gratidão ao meu orientador, Alexandre Agnolon, que me ajudou

    muito com seus apontamentos e sempre acreditou em meu potencial como pesquisador.

    Por fim, meus agradecimentos à CAPES pela bolsa parcial de mestrado.

  • Resumo A imagem de Augusto, sobretudo após o início de seu principado, buscava centrar sua

    imagem em uma propaganda politico-religiosa que utilizava os mais diversos

    expedientes de composição, como a estatuária, numismática e a poesia. Entre as obras

    de seu círculo, podemos encontrar na Eneida uma das mais poderosas, complexas e

    perenes obras da literatura romana, emulada por diversos autores de diferentes tempos.

    A épica do mantuano reconstruía a lenda de Eneias, que buscava refundar Troia para

    seu povo após o saque e destruição pelos gregos. Ao reconstruir o mito, o poeta deixa

    claro o elogio a Augusto e toda a casa juliocesariana, buscando vincular sua imagem a

    um passado mítico e a promessa de glória sobre o governo de Augusto. Por meio de

    extenso material para nossa metodologia de análise, nos valemos, sobretudo, dos

    trabalhos de Luke (2014), Rocha Pereira (1989), Panoussi (2010) e Grebe (2004). Nesse

    sentido, analisamos o discurso da Eneida e os efeitos retóricos e poéticos que emergem

    da produção dessa obra, assim como a construção do ethos dos personagens e seus

    equivalentes históricos, tentando verificar, sobretudo, como a imagem de Augusto e da

    casa juliocesariana é elogiada em meio à miríade de emulações e referências às lendas

    antigas. Dessa maneira, verificamos que as imagens de Eneias e Numa são construídas

    ao longo do texto imbricadas na imagem do princeps, sendo cada uma, respectivamente,

    uma face conquistadora e pacificadora, como um elogio implícito ao governante, que

    buscava perenizar a declaração pública de seu pai durante sua Laudatio Funebris ao seu

    governo, que possuía como premissas propagandísticas a paz e a frugalidade.

    Palavras-chave: Eneida; Retórica; Propaganda; Poesia.

  • Abstract

    The image of Augustus, especially at the beginning of his principate, sought to focus his

    image on a political-religious propaganda that uses the most diverse forms of

    composition, such as a statuary, numismatics and poetry. Among the works of his circle,

    we can find in the Aeneid one of the most powerful, complex and lasting works of

    Roman literature emulated by several authors of different times. The Mantuan's epic

    rebuilt a legend of Aeneas, who sought to found Troy for his people after the plunder

    and destruction by the Greeks. In reconstructing the myth, the poet makes clear the

    praise to Augustus and the whole Juli-Caesarean house, seeking to link his image and a

    mythical past and a promise of glory over the government of Augustus. By means of

    extensive material for our methodology of analysis, we mainly use the works of Luke

    (2014), Rocha Pereira (1989), Panoussi (2010) and Grebe (2004). In this sense, we

    analyze the discourse of the Aeneid and the rhetorical and poetic effects that emerge

    from the production of this work, as well as a construction of the ethos of the characters

    and their equivalents, trying to verify, above all, how the image of Augustus and the

    house of Juli is praised among the myriad of emulations and references to ancient

    legends. In this way, we see that the images of Aeneas and Numa are built throughout

    the text implied in the image of the princeps, each being respectively a conquering and

    pacifying face, as an implicit compliment to the government, which sought to

    perpetuate a public declaration of its father during his Laudatio Funebris to his

    government, that had propagandistic premises on peace and frugality.

    Keywords: Aeneid; Rethoric; Propaganda; Poetry.

  • 1

    Sumário

    Introdução ................................................................................................................................. 2

    1 – Rastreando as origens do mito ............................................................................................ 4

    1.1 - Os primórdios do mito de Eneias: Homero e Hesíodo .................................................. 5

    1.2 - Rastreando a migração do mito em Roma .................................................................. 11

    1.3 - Roma e a tradição historiográfica: Eneias como mito fundador ................................. 18

    1.4 - O mito como cânone: Ênio e a lenda de Troia ............................................................ 25

    1.5 - O surgimento de um legado: A apropriação de Júlio César ........................................ 28

    2- A Eneida como elemento retórico na construção da imagem de Augusto e Roma ............ 32

    3- A imagem de Numa como praefiguratio de Augusto na Eneida ........................................ 61

    4- A imagem de Eneias e o Espelho de Augusto ..................................................................... 79

    Conclusão .............................................................................................................................. 101

    Referências bibliográficas ..................................................................................................... 103

  • 2

    Introdução

    Augusto, ao compor seu círculo durante seu principado, buscava perenizar a

    imagem de herói que se aproximava da divindade, cujos artífices e poetas narravam uma

    série de eventos que o imaginavam como salvador e protetor de Roma. Além disso,

    além dos empreendimentos militares, sobretudo com aqueles que assassinaram seu pai,

    Júlio César, o princeps fundava sua campanha no estabelecimento da refundação moral

    e religiosa e a pax augusta, no qual emulava antigos personagens históricos e míticos,

    como Eneias e Numa.

    Entre essas obras que exaltam a essência de sua campanha, temos a Eneida, obra

    de Virgílio que busca reconstruir o mito do herói fundador de Lavínio, o berço de

    Roma, junto com Alba Longa, fundada por seu filho, Ascânio. O poeta mantuano busca

    engendrar a imagem do herói baseado em um grande esforço historiográfico, mítico e

    poético, emulando personagens do cânone que narrou o mito troiano, como Homero,

    Ênio e Névio.

    Além de (re) construir o mito troiano sob sua perspectiva, Virgílio imbrica,

    implicitamente e explicitamente, o elogio a Augusto e a toda a casa juliocesariana, de

    modo que vá ao encontro da campanha augustana, que se baseava na emulação do

    discurso de Júlio César em sua famosa Laudatio Funebris proferida em 69 a.C.

    Dessa maneira, conseguimos ver uma miríade de personagens que são

    relacionados à imagem do princeps, sobretudo por causa de suas virtudes. Entretanto,

    nos interessa aqui saber como as imagens de Numa e Eneias são construídas e essas, por

    sua vez, associadas a Augusto.

    Justificamos nossa obra pela seguinte razão: a Eneida é uma obra cânone, não

    somente romano, mas ainda serve de referência moderna. Inúmeros autores o emularam, como

    Dante em sua Divina Comédia e Camões em suas Lusíadas, e a obra é constantemente traduzida

    para várias línguas. Assim nos utilizamos não somente das traduções de Carlos Alberto Nunes,

    mas as de Manuel Odorico e Márcio Thamos, não somente pela estética das versões, mas,

    sobretudo, porque nos apoiamos na análise das ideias promulgadas, evitando que nos

    tendenciemos somente pela ótica de um tradutor.

    Além disso, a análise da obra e como ela é criada para circunscrever a imagem elogiosa

    de Augusto ao lado de outros heróis e deuses pode nos ampliar a ótica sobre a poesia e o elogio

    antigo, além de servir de auxílio aos estudos clássicos e retóricos, sobretudo como os

    expedientes poéticos servem para construir a imagem do ethos em outras obras clássicas e

    contemporâneas, e como suas obras êmulas perfazem caminhos semelhantes.

  • 3

    Dessa maneira, a dissertação possui quatro capítulos, que perfazem uma

    arqueologia em direção à análise de imagens e associações.

    O capitulo um trata do rastreio de fontes antigas que Virgílio possa ter se

    utilizado e emulado em sua obra. Esse percurso histórico de fontes compreende desde a

    sua fonte primeira e mais antiga, Homero, até às fontes contemporâneas ao poeta, como

    em Névio e Ènio, buscando, com isso, fazer uma compilação de fontes e suposições

    sobre a migração do mito e integração a seu mito fundador.

    O capitulo dois busca fazer uma análise poética e retórica da construção da

    poesia romana e associarmos essa análise aos expedientes literários de Virgílio, e de que

    forma busca impactar e persuadir seu leitor com sua escolha lexical e de que maneira o

    elogio a Augusto se insere sem que a poesia perdesse crédito com isso.

    O capitulo três faz uma análise mais detalhada desse elogio a Augusto: a

    imagem de Numa aqui é estudada e comparada com o mito do segundo rei romano e

    como ela surge, ainda que implicitamente, na Eneida. Após a analise da construção de

    sua imagem, ainda fazemos um exercício de interpretação sobre como a associação

    entre o princeps e o rei se integram como refundadores dos expedientes religosos e de

    reestabelecimento da paz.

    O capitulo quatro analisa a figura mais importante do mito: Eneias. Buscamos

    analisar a imagem do troiano e como foi construída sua imagem, utilizando, para isso as

    fontes anteriores analisadas e perfazer a versão do mantuano. Além disso, buscamos

    entender como o poeta estrutura a imagem do herói como um espelho de Augusto, de

    modo ações e caracterização do troiano passem a percorrer um sentido de emulação

    invertido, onde o antigo mito emularia a figura contemporânea, ao invés de

    imaginarmos um sentido inverso. Por fim, buscamos entender aqui como Augusto e

    Eneias são elogiados como engrenagens mestra de Roma, onde um é fundador, e o

    outro, refundador.

  • 4

    1 – Rastreando as origens do mito

    Certo dia ouço um rapaz animado para contar a história, a seu colega de serviço,

    que havia aprendido sobre o mito de Remo e Rômulo; e assim disse:

    “Rapaz, fiquei sabendo hoje da história do Romo e Rômulo, eles foram

    amamentados por uma raposa do mato, cheia de tetas, porque foram abandonados no

    meio do mato, lá na Grécia; depois disso, eles foram achados e levados para uma cidade

    no meio da Itália. Como eles eram muito gananciosos, Romo matou o irmão dele e

    resolveu criar a cidade de Roma para ter mais poder”.

    A versão do rapaz nos faz entender como a tradição oral era capaz de fragmentar

    e alterar as versões de uma história; a oralidade altera o conteúdo, entretanto, o valor de

    verdade para aquele que se apropria é legitimo, não há certo ou errado, apenas a

    diferente perspectiva, válida em nossa intenção de significar o mundo ou explicar

    determinado ocorrido.

    Dessa maneira, podemos entender que o mito de Eneias e a Guerra de Tróia,

    uma épica que, transmitida pelo mundo antigo por mais de mil anos antes de Virgílio,

    sofreu milhares de alterações, constituindo uma miríade de versões que dão maiores

    detalhes sobre o povo ou o indivíduo que tenha se apropriado desses e contam sua

    versão, que ilustra sua imagem como um traidor ou um fundador de diversas cidades.

    Para Virgílio, ao produzir a Eneida, conseguimos entender, dessa maneira, que o

    poeta, com a intenção de explicar o mito, cotejaria uma grande quantidade de fontes e

    versões variadas com sua erudição, com o fito de, no fim, elogiar Augusto e sua casa.

    Como iremos tecer nos próximos capítulos, a obra de Virgílio é uma épica que

    faz parte de toda uma propaganda político-religiosa que ajudaria a construir a imagem

    de Augusto sob o mais difuso prisma de representações, uma verdadeira bricolagem de

    diversas fontes, utilizadas sobre os mais diversos pontos de vista ou reescritos sob

    diferentes fins, cujo esclarecimento deve ser posto, pois, como diz Clarke (1949):

    A influência exercida pela retórica dependerá da extensão que essa domina a

    cultura contemporânea... Então é relevante considerar a educação de Virgílio

    o background de seu tempo1.

    1

    The influence exersiced by rethoric will depend on the extent to which it dominates the contemporany

    culture...So it‘s relevant to consider Virgil‘s education and the rethorical backgroung of his day. Clarke,

    1949, p.17. Tradução nossa.

  • 5

    Cada fonte teve importância significativa para a obra e cada alteração registrada

    serviu de ferramenta para o poeta mantuano elencar uma obra complexa.

    Claramente, muitas das fontes que apresentaremos sobreviveram por meio de

    testemunhos, esses posteriores a Augusto e a obra. Para tanto, analisaremos com um

    olhar mais cético essas, sabido que a própria tradição disseminada pela Eneida também

    contribuiu.

    Para a coleção de fontes, lançamos mão de diversos autores modernos, como

    Horsfall(1987), Rocha Pereira(1989), entre outros. Entretanto, além de suas análises,

    nos interessa também as fontes coletadas ao longo das leituras que, algumas vezes

    mencionadas, outras não, são apresentadas nesse capítulo.

    Portanto, o capítulo presente se focará na análise de fontes, sua possível

    cronologia e um percurso histórico até chegar em Virgílio, que iniciamos agora em

    Homero, a fonte mais antiga registrada sobre o mito. em Homero, a mais antiga fonte

    que possuímos sobre Eneias e seu mito.

    1.1 - Os primórdios do mito de Eneias: Homero e Hesíodo

    Sobre a Ilíada, obra mais famosa de Homero, é importante salientar, antes de

    tudo, que essa faz parte dos livros que compõem o ciclo épico, a saber: Cíprias, Ilíada,

    Etiópidas, Pequena Ilíada, A Fuga de Tróia e Odisseia. Desses livros, apenas o segundo

    e o último sobreviveram completos, enquanto os outros nos chegaram apenas por meio

    de testemunhos, como em Proclo.

    A imagem de Eneias é apresentada com maiores detalhes entre os cantos V e

    XX, entretanto, aparece pela primeira vez no segundo canto, em que os heróis são

    catalogados2.

    Sobre os Dardânios o mando exercia o nascido de Anquises

    e da divina Afrodite o guerreiro notável Eneias

    após haver no Ida selvoso a um mortal uma deusa se unido3.

    2 Esse catálogo de preparo aos exercícios militares foi emulado por Virgílio ao final de seu livro VIII,

    para dar o aspecto de que, encerrado a parte das errâncias do herói (Odisseia), era iniciado seu combate,

    no anseio de uma nova Troia (Ilíada). 3 Hom. Ili, II. 819-821. Tradução de Carlos Alberto Nunes

  • 6

    Temos, no trecho acima, não somente a menção ao herói, mas, como é comum à

    moral guerreiro-aristocrática presente no poema, há também a referência direta à origem

    do herói, filho de Anquises e Vênus. Eneias é apresentado após Heitor, comandante dos

    troianos. Fica claro o fato de que Eneias, segundo o poema, exerce poder de mando

    sobre os guerreiros dardânios4.

    Sua concepção, de origem divina, segundo a fala homérica, ocorreu ao pé do

    Monte Ida, da união de Afrodite e Anquises. A origem divina do herói troiano aparece

    também no Hino Homérico V5, dedicado a Afrodite, como podemos ver:

    Tu não precisas temer nenhum mal, de verdade, de mim,

    Nem de nenhum dos demais imortais, pois és caro aos divinos.

    Há de nascer-te um rebento querido, senhor dos troianos,

    E dos seus filhos os filhos também seguirão como reis.

    Há de chamar-se, por nome, de Eneias, pois dói-me funesta

    Dor de eu haver com um homem mortal me deitado no leito.

    Próximo aos deuses ao máximo dentre os humanos mortais

    Sempre será o teu clã na estatura bem como na forma6.

    O excerto acima é de fundamental importância para a constituição, ao longo do

    tempo, do ethos de Enéias, já que a piedade do herói, caractere comum no mito de

    Virgílio, é inerente ao herói desde seu início.

    Ora, vemos como é cara aos deuses a linhagem de Anquises, por isso, Eneias

    possui as virtudes necessárias, próprias e hereditárias, que lhe garantirão o reino de

    Tróia, e justificam a prosperidade de sua família7.

    Além disso, o exórdio a Eneias parece seguir sempre um roteiro comum entre os

    poetas, uma vez que, na Teogonia, Hesíodo perfaz expediente similar:

    4 Dardânia foi construída pelo filho de Zeus e Electra, Dárdano, ao pé do Monte Ida, ao passo que Ílion

    fora fundada por Ilo, descendente do semideus, mais distante do monte. O reino de Troia era, portanto,

    dividido em duas cidades, Dardânia e Ílion4: as tropas desta última eram comandadas por Heitor; daquela,

    a Eneias4. Seja como for, muito embora seja no geral bastante coadjuvante a participação do filho de

    Anquises na Ilíada, é mister observar que é referido como espécie de comandante.

    5 Os Hinos Homéricos se constituem em trinta e três encômios aos deuses, que exordiavam suas virtudes

    e valores, comumente recitados em banquetes e competições, como forma de celebração da divindade,

    cuja autoria, ainda em questão, era atribuída a Homero. 6

    Hino Homérico V – A Afrodite. Tradução de C. Leonardo B. Antunes. 7 Essa prerrogativa foi claramente emulada não somente por Virgílio, no que concerne ao reino sem fim,

    prometido por Júpiter, mas pela maioria das versões e autores diversos.

  • 7

    Gerou Enéias a bem-coroada Afrodite unida ao herói Anquises

    em amores nos cimos do Ida enrugado e ventoso8.

    Assim, retornando à Ilíada, vemos que a imagem do anquisíada volta no canto

    V, em meio ao combate do filho de Licáone e Diomedes, em grande fúria, evocando seu

    príncipe:

    Príncipe Eneias mentor dos Troianos de vestes de bronze

    os sinais todos me dizem tratar-se do grande Tidida;

    sim pelo escudo o conheço pelo elmo de quatro saliências

    e pelos próprios cavalos. Ao certo não sei se é um dos deuses9.

    A presença dos deuses ao lado dos heróis é comum na maioria das épicas

    antigas, já que esses vivem como uma espécie de deus tutelar dos combatentes

    semidivinos; no caso de Eneias isso não é diferente, como podemos notar no excerto

    abaixo:

    E o chefe de homens Eneias talvez perecesse ali mesmo

    se o não tivesse notado Afrodite de Zeus a donzela

    mãe carinhosa que o havia de Anquises pastor concebido10

    .

    O que temos é a menção de Afrodite como uma espécie de deidade tutelar11, que

    mantém a salvaguarda do herói. Além do mais, o primeiro momento que prova o valor

    do herói é quando vemos Afrodite entrar no campo de batalha para proteger seu filho,

    que, por consequência, é ferida por Diomedes.

    Foi o arrogante Diomedes do grande Tideu descendente

    por ter querido livrar a meu filho do prélio funesto

    meu caro Eneias a quem especial afeição dediquei sempre

    Não se restringe aos Troianos e Aquivos a guerra somente;

    até contra os deuses eternos os Dánaos agora se atrevem12

    .

    8 Hes, Teo, Tradução de Jaa Torrano.

    9 Hom. Ili, V. 180-183. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

    10 Hom. Ili, V. 311-313. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

    11 Vale lembrar que um dos deuses que tutelam os troianos é Ares (Marte), que, como veremos, é

    comumente cultuado pelos romanos desde o surgimento do mito fundador de Roma, associado a Eneias.

    12 Hom. Ili, V. 377-381. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

  • 8

    Outro entendimento, que carece de fontes, é de que provavelmente a figura de

    Eneias estivesse ligada não somente à deusa na épica, mas é provável que talvez fosse

    circulante, principalmente na era arcaica, um culto a Afrodite que utilizasse o troiano

    como uma espécie de ligação terrena13

    ; cultos assim não eram incomuns, cultos a

    Hércules e a seu pai, Zeus eram comuns na Grécia e na Roma, e inclusive surgem na

    Eneida, no canto VIII, ao vermos a celebração dos arcádios, com Evandro, a Hércules.

    O canto XX apresenta a segunda batalha de Eneias, que busca lutar contra

    Aquiles. Durante um longo colóquio insultuoso, percebemos uma provocação

    dissonante do pelida ao anquisíada.

    Ínclito Eneias por que te adiantaste dos outros guerreiros

    para arrostar-me? Pretendes acaso provar-te comigo

    esperançado de vires a ser rei dos Teucros com as honras

    do velho Príamo? Entanto ainda mesmo que as armas me tires

    não obterás só por isso o comando que Príamo exerce

    pois o monarca tem filhos e juízo perfeito demonstra14

    .

    Durante o certame, Eneias, próximo da morte pelas mãos de Aquiles, é protegido

    por Poseidon, que pesa o destino do troiano e decide o salvar.

    “Como me causa pesar o destino de Eneias magnânimo

    que por Aquileu vencido para o Hades baixar vai depressa

    só por ter dado atenção às palavras de Apolo frecheiro!

    Tolo! Que o deus não lhe serve de amparo no instante funesto.

    Mas por que causa inocente como é padecer ele deve

    pelos gemidos dos outros? É facto que foram seus mimos

    sempre acolhidos por todos os deuses do Olimpo vastíssimo.

    Vamos fazer que ele possa ficar ao abrigo da morte

    para não vir a agastar-se o alto filho de Cronos se Aquileu

    da alma o privar que o Destino ordenou que ele seja poupado

    para que não desapareça sem rasto nenhum a progénie

    nobre de Dárdano o filho que Zeus tempestuoso prezava

    mais do que quantos nasceram do amor de mulheres terrenas.

    Já os descendentes de Príamo são pelo Crónida odiados;

    13 Dionísio, em suas Antiguidades Romanas, menciona inclusive a existência antiga desses templos, que

    lhe servem como referência para a migração troiana. Além disso, como veremos adiante, Laing (1910)

    inclusive utiliza a existência desses templos para justificar uma teoria de migração da lenda para outras

    terras. 14

    Hom. Ili, XX. 178-183. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

  • 9

    mas há-de o mando exercer nos Troianos Eneias o forte

    e quantos filhos depois de seus filhos a luz contemplarem15

    .”

    Nessa cena, Poseidon censura o ato desmedido de Apolo, que o impeliu à

    batalha, e por isso, passa a assumir, temporariamente, a proteção de Eneias. Nessa cena,

    fica claro que os da progênie de Príamo era fadada ao desaparecimento, dada as

    impiedades cometidas. Dessa maneira, embora o Saque de Troia não tenha vindo até a

    nos, já podemos imaginar que houve a fuga de Eneias, aparentemente por sua piedade.

    Por fim, Poseidon revela destino semelhante ao que Afrodite houvera dito nos

    Cantos Homéricos, preconizando grande comando dos troianos ao anquisíada.

    Decerto, os caracteres bélicos do troiano parecem ter sido “abandonados” após a

    Ilíada, a retomada dessas características só aparecerá mais claramente na Eneida de

    Virgílio. Portanto, partamos para as diferentes versões do desfecho da batalha troiana,

    que apontam diferentes errâncias, rumo a diferentes povos. Assim, comecemos com

    Proclo16

    , cuja fonte é encontrada no códice 239, da biblioteca do Fócio.

    O documento possui, entre outras obras, um texto com a vida de Homero e os

    resumos sobre as obras do ciclo épico. A datação da história a que o filósofo se refere é

    impossível de apreender; colocaremos próximo aos relatos do século IV e V a.C., entre

    Helânico de Lesbos e Sófocles.

    Apesar de serem textos curtos, graças a tais resumos possuímos um panorama

    geral das narrativas perdidas do ciclo épico, assim como os personagens mais

    importantes. Assim, vemos que a imagem de Eneias surge pela primeira vez nos Cantos

    Cíprios.

    Em seguida, aconselhando-o Afrodite, faz para si uma nau, e

    Heleno lhes faz predições sobre os acontecimentos futuros.

    Afrodite manda Eneias navegar com ele.

    É provável que o filho de Afrodite tenha aparecido mais vezes na narrativa, mas

    não há menção nos fragmentos supérstites. A segunda menção sobre a imagem de

    Eneias aparece no Saque de Ílio, que, conta Proclo, é de autoria de Arctino de Mileto,

    poeta épico que viveu no século VII a.C.

    15 Hom. Ili, XX. 293-308. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

    16 Proclo, um filósofo neoplatônico, que viveu entre 412 a 485 d.C., em Constantinopla. Foi autor da

    Cristomatia.

  • 10

    Consternados com esse prodígio, Eneias e os companheiros

    escapam secretamente para o Monte Ida.

    Cena recorrente na antiguidade grega e romana e uma das mais variadas e

    fragmentadas narrativas, a história do saque de Tróia infelizmente nos veio de forma

    deficiente, faltando informações sobre quem seriam seus companheiros e que situações

    os impeliram a fugir.

    É impossível sabermos a versão de Arctino, entretanto, podemos fazer melhores

    suposições se analisamos melhor a arte do período, que costumava retratar as cenas

    mais comuns da lenda, como as cenas do saque, que, aparentemente, pareciam ser muito

    recorrentes, dada a quantidade de obras que retratam o episódio, como podemos ver

    com o seguinte vaso grego de 520 a.C., em que a fuga é demonstrada com a famosa

    cena em que o herói, com armadura completa, portando escudo e lança, carrega seu pai

    em suas costas, seguindo Hermes, que lhe indica o caminho.

    Figura 1: Vaso Grego17

    Ademais, o vaso abaixo, de datação próxima ao vaso supramencionado,

    apresenta-nos uma variação do episódio da fuga de Eneias. Nesta, Creúsa aparece junto

    ao troiano, que porta suas armas e carrega o pai nos ombros, seguido por Afrodite – o

    17 Vaso grego ático de 520 a.C., representando Eneias e Anquises em fuga, numéro de catálogo Louvre

    F118, Museu do Louvre, Paris.

  • 11

    fato de a deusa seguir o herói pode sugerir a proteção que esta confere ao herói ao longo

    de todo o ciclo épico relacionado a Eneias. De certa maneira, esses dois vasos são

    exemplos visuais de que as narrativas do saque de Troia e a subsequente fuga do herói

    eram bastante conhecidas, elementos esses absorvidos pela épica de Virgílio.

    Figura 2: Vaso Grego18

    1.2 - Rastreando a migração do mito em Roma

    A transformação da lenda homérica após sua migração e infiltração até à

    chegada à Roma é incerto; entretanto, sabemos que o mito foi adquirindo diferentes

    visões e narrativas ao longo das nações que dela se apropriaram, o que ocasionou a

    gênese de diferentes explicações que descrevessem o trajeto do troiano, muito

    18

    Ânfora grega ática de 490 a.C., com a imagem de Eneias carregando Anquises, com escudo boeotiano e

    duas lanças, a sua frente, Creúsa caminha sempre observando o troiano, e atrás do mesmo, Afrodite o

    segue. Numero de catálogo 1836,0224.138 – The British Museum. Referência bibliográfica Old Catalogue

    504 - A Catalogue of the Greek and Etruscan Vases in the British Museum, London, William Nicol, 1851.

  • 12

    provavelmente por apropriação e criação de uma argumentação que justifique as

    virtudes enaltecidas por suas nações.

    Podemos entender que, apesar de variadas, todas essas versões obedeciam a

    certos pontos acerca do herói e de sua lenda: a piedade era eixo central e virtude

    cardinal, como já vimos com os gregos, tal como a comum imagem de seu pai,

    Anquises, ao longo de sua fuga; podemos ver também que a estrutura central do ciclo

    épico é canônica sempre quando evocada pelos antigos, pois a autoridade homérica não

    é contestada em momento algum19

    ; a grande estratégia das outras narrativas era detalhar

    partes do mito não explicadas pelo cânone, como as histórias de Filoctetes e Laocoonte,

    que exploram o que Homero não havia detalhado.

    Em Roma, esse expediente não era diferente, e após sua absorção, no século V

    a.C., passou a possuir papel significativo para a construção, desde o fim da Segunda

    Guerra Púnica, de um mito que explicasse as bases míticas da fundação de Roma, como

    uma narrativa que concentrasse as virtudes do povo romano, centrada na figura lendária

    de um herói que serviria de exemplum ao uir romanus.

    Não possuímos materiais supérstites suficientes que expliquem o percurso e as

    transformações da lenda de Eneias até sua chegada às regiões do Lácio; entretanto,

    podemos estabelecer algumas hipóteses; é aqui que discutiremos as possíveis rotas de

    migração da lenda.

    Laing (1910) analisa a teoria de que a propagação da lenda de Eneias tenha

    surgido pela ligação que possuía com o culto de Afrodite; a imagem comum entre filho

    e mãe pode ter sido interpretada como uma relação una, de forma que as cidades antigas

    que preservassem seu culto estariam, inevitavelmente, cultuando tanto um quanto o

    outro; assim, não seria, hipoteticamente, incomum haver templos voltados ao culto do

    Eneias-Afrodite.

    Entretanto, há um entrave quanto ao culto, pois, de acordo com o autor, o

    mesmo havia provavelmente surgido na Tessália e se propagado pelas regiões do sul,

    leste e oeste, esses cultos. Esses cultos, de fato, abrangeram uma enorme área,

    entretanto, poucos locais mencionavam o herói e a deusa juntos, sendo que apenas cinco

    locais do suposto trajeto de troiano possuíram vestígios claros do culto de Eneias-

    Afrodite.

    19 Excetuamos a imagem do herói constituída por Menecrates, que, como podemos entender pelas

    palavras de Dionísio, não se tratava de poesia, pois é uma narrativa em prosa e com intento de

    justificativa histórica, que parte da exclusão do mito, como assim também foi feito por Dares, o Frigio e

    Dictes, o Cretense.

  • 13

    A falta de evidências, entretanto, não elimina a hipótese de infiltração da lenda

    por meio do culto a Afrodite, já que Estrabão20

    menciona que na região de Ardea e

    Lavínio havia um templo de Afrodite – desaparecido –, assumindo a possível origem

    romana dessa cidade.

    Entretanto, a falta de evidências que corroborem a apropriação da lenda sugere

    que o culto possa ter tido influência positiva na propagação da imagem e da narrativa

    das errâncias do povo troiano como fundador de cidades, como Eryx, Segesta e Aineia,

    mas não dá uma explicação clara para a infiltração de Eneias nessas regiões, que só

    passou a ser mencionado o surgimento da tradição historiográfica romana, iniciada por

    Fábio Pictor.

    Em suma, podemos admitir que a religião e imagem de Eneias-Afrodite talvez

    fossem correntes na região que circunda Roma, mas não podemos concluir com certeza

    que fora essa a via de infiltração.

    Além da hipótese da propagação do culto a Afrodite pelas cidades aportadas

    pelos troianos, temos a linha de raciocínio que sugere a infiltração acompanhada do

    êxodo de outros povos, que poderiam estar associados ou não a uma possível guerra de

    Tróia.

    Knight (1937) nos dá uma clara visão que a infiltração da cultura grega se

    iniciou nas regiões ocidentais antes de 1000 a.C., e que o mito do filho de Afrodite não

    surgiu repentinamente nas regiões da Etrúria; mesmo que romanos e gregos não

    dispusessem de contato direto antes das guerras púnicas, Roma estava exposto às

    constantes influências das lendas e histórias gregas, assim, havendo uma indireta

    colonização cultural grega.

    Quanto à origem da Etrúria, Knight (1937) discorre que:

    Antigas versões das origens etruscas e a antiga população da Itália,

    especialmente “pelasguiana”, podem conter recordações dessas influências

    muito antigas. Há não muito tempo atrás, foi feita uma tentativa de

    reconciliar teorias antigas ao supor que estavam em aparente contradição, e

    que a população etrusca era composta de imigrantes marítimos vindos da

    Ásia Menor, que, em terra, se agregaram aos outros imigrantes oriundos do

    Nordeste, enquanto os “pelasguianos” representavam um elemento de

    propagação da Grécia21

    .

    20

    Strab, Geo, V,3,3. 21

    Knight, 1937, p 75. Tradução nossa.

  • 14

    Apesar de ser uma hipótese, não deixa de ser pertinente, visto que, no tocante à

    língua, temos aí uma evidência mais clara; pois os pelasgos, povo considerado precursor

    dos gregos, imigraram do Oriente para outras regiões do Ocidente, entre eles a costa da

    Itália, promovendo a origem das línguas frígia, etrusca, grega e latina. Uma evidência

    desse desembarque na costa da Itália é que o latim é essencialmente oriundo de um

    dialeto diferente daqueles que o circundam22

    , o que sugere que os povos latinos e

    etruscos são oriundos de uma intrusão marítima, e não de uma migração terrestre;

    assim, aventamos a possibilidade de que as infiltrações das lendas e da língua grega

    tenham se iniciado por meio desta, na costa da Itália, se espalhando para cidades

    próximas e assumindo novas versões.

    Obviamente, dessa possível herança cultural grega, nem todas as histórias do

    ciclo eram recontadas ou representadas com igual afinco, havia certa predileção por

    uma determinada cena ou outra, e, entre as imagens mais comuns, encontramos a

    narrativa da fuga de Eneias para o monte Ida ou sua partida pelo mar23

    , comumente

    recontada como uma lenda de fundação de cidades que buscava se integrar às lendas do

    ciclo.

    Entre as reproduções, há uma quantidade significativa de representações em

    cerâmicas oriundas da Etrúria, como um vaso do século V a.C., que mostra a imagem de

    Eneias fugindo com Ascânio, carregando seu pai e sendo guiado por Hermes.

    22 Knight, 1937, p74. .

    23 De fato, era comum para muitas regiões próximas, como Segesta.

  • 15

    Figura 9: Vaso etrusco24

    Apesar da grande quantidade de vasos supérstites que retratam a cena (cerca de

    21) na Etrúria, há a hipótese de que esses sejam uma importação ática, por certo

    intercâmbio com a Grécia; entretanto, a descoberta da estatueta de terracota reforça a

    hipótese de que a Etrúria era grande difusora da lenda de Eneias na costa da Itália.

    24

    Vaso etrusco, do século V a.C., representando Eneias em fuga com pai às costas, Ascânio à frente,

    guiados por Hermes. Munique, Staatliche Antikensammlungen.

  • 16

    Figura 10: Estatueta de terracota25

    Sobre a propagação do mito, especificamente a de Eneias, não há clara razão

    dessa instituição. Para Knight (1937), a adoção se tratava da necessidade de vinculação

    das cidades a um passado lendário que se vinculasse ao ciclo épico; já para Alföldi

    (1971), tratava-se de uma substituição do antigo herói fundador, Odisseu, para delimitar

    mais claramente a rivalidade contra os gregos26

    .

    Como a Etrúria estabeleceu laços de dominação e cooperação com Roma,

    principalmente em seus estágios iniciais, esta alimentou a sociedade romana com grande

    parte de seus costumes e lendas27

    , como o sistema monetário, composto por metais e

    25 Estatueta de terracota de Veios, com Eneias carregando seu pai, Anquises, às suas costas. Roma. Museo

    di Villa Giulia. 26

    “Uma diferente visão foi expressa por Alföldi em seu trabalho. Ele estava determinado a provar que o

    mito veio para Roma por meio do Lácio. Ele alega que o mito e o culto de Eneias em Lavínio e no Lácio

    era antigo, provavelmente antes do sétimo século a.C. Ele acreditava que os etruscos haviam trocado Odisseu por Eneias como herói fundador quando começaram a ver os gregos mais como inimigos do que

    parceiros de negócios no quinto século a.C. Ele também acreditava que os latinos adotaram Eneias como

    um resultado direto da invasão etrusca do Lácio e Campânia, embora este não tenha ido até o século VI e

    não tão cedo quanto o sétimo como ele alegou. "A extraordinária popularidade de Eneias na Etrúria, como

    revelado na pesquisa realizada pela Schauenburg, reflete o imenso respeito com que um dos fundadores-

    herói foi considerado”. – Alföldi (1971), in Mountford (2013). 27

    As regiões que Roma havia estabelecido eram antigas colônias etruscas, como em Lavínio.

  • 17

    pesos e, sobretudo, seus mitos28

    , que foram incorporados no quinto século antes de

    Cristo, tornados correntes em Roma após o desfecho da Primeira Guerra Púnica.

    As hipóteses, como dissemos, apontam para a influência etrusca na transmissão

    da lenda, sobretudo, a imagem de Eneias em Roma, pois parece que uma infiltração

    oriunda de Segesta não parece fazer muito sentido devido à pouca influência exercida

    no século V a.C., e a possível origem de Eryx parece mera hipótese infundada, já que

    sua influência era ainda menor.

    Entretanto, apesar de termos clara prova de que a Etrúria tinha conhecimento e

    valorizava Eneias, muito provavelmente por sua eusebia (a pietas grega), parece

    infundado afirmar, como em Alföldi (1971), que o herói possa ter sido tratado como

    fundador ou que houve um culto em seu nome, já que não possuímos provas

    arqueológicas, numismáticas nem literárias que tratem dessa relação.

    Do mesmo modo, parece sensato entendermos, como dissemos antes, que os

    romanos absorveram a cultura etrusca, e dela obtiveram conhecimento de suas lendas,

    mas nos é obscuro entendermos como os romanos interpretaram o mito do troiano e sua

    pietas no quinto século a.C.

    Hosfall29

    aventa que a possível origem dessa associação esteja associada à

    Batalha de Heracleia, em que Pirro, autoproclamado eácida30

    , portanto, descendente de

    Aquiles, no comando de tropas da Macedônia e Magna Grécia, decide, em 280 a.C.,

    atacar Roma, buscando relembrar o mito homérico da Ilíada ao tentar destruir os

    romanos, como uma alusão aos antigos troianos derrotados.

    É exatamente nesse ponto que, segundo o autor, os romanos decidem por

    associar a lenda de Eneias à de Remo e Rômulo, considerando-o, assim, oikistés

    romano31

    , o que legaria aos irmãos dióscuros sua descendência divina e de origem

    troiana.

    Por esse motivo, temos razões satisfatórias para entender o porquê do mito da

    fundação romana não apresentar unicidade e evidenciar balizas históricas que admitam

    28 A invasão romana a Veios em 396 a.C. abre horizontes de entendimento quanto ao momento mais

    preciso da apropriação do mito, já que a famosa estátua de terracota com a cena da fuga de Eneias era

    dessa região, clara evidência de conhecimento do mito; sua ocupação sugere que possa ter sido esse o

    momento mais preciso de quando os romanos tiveram clara ciência do herói troiano, sendo reproduzido

    posteriormente após o fim da segunda guerra punica. 29

    Hosfall, 1987, p.21 30

    “aio te aeacida, romanos uincere posse‖. Enn, Ann. VI, 174. 31

    Como veremos em algumas versões, o mito cita Lavínio como cidade fundada pelo troiano que passou

    a ser Roma, em outras, Alba Longa. Já na versão virgiliana, como aludiremos à frente, o poeta associa as

    duas cidades às bases romanas, eliminando o certame etiológico.

  • 18

    sua coexistência: enquanto, na maioria das lendas, Remo e Rômulo mantêm a fundação

    de Roma, os historiadores e poetas admitem sua existência primeira em Lavínio ou Alba

    Longa, cidades que teriam sido fundadas por Eneias32

    . Dessas versões, uma das mais

    próximas e primeira da aproximada data de gênese da identidade troiana a Roma que

    afirmam essa versão é a de Fábio Pictor; para tanto, prossigamos com a análise.

    1.3 - Roma e a tradição historiográfica: Eneias como mito fundador

    A tradição historiográfica fora tardia em Roma, já que apenas com Fábio Pictor

    (254 – 166 a.C.), o mais antigo historiador e o primeiro a adotar a tradição livresca e

    escrever uma das primeiras versões do mito de fundação, os historiadores de Roma

    passaram a cultivar esse costume de escrever a história.

    Como nos alude Dionísio em As Antiguidades Romanas, a influência desse

    historiador se tornou referência e inspirou as obras de outros romanos33

    , e pelo que

    entendemos, sua obra canonizou o mito de Eneias.

    Sua história de Roma, perdida, foi continuamente emulada por diversos autores.

    A obra, além disso, serviu para centrar a mentalidade romana acerca de uma linha de

    pensamento linear dos eventos e, acima de tudo, o estabelecimento de uma autoridade,

    que serviria, como veremos em outras versões, como fonte primeira aos historiadores e

    poetas.

    Como não nos chegou material supérstite acerca deste, a nós foram legados

    testemunhos de Eusébio, Dionísio, Macróbio, Tito Lívio e Plínio, o velho. Assim,

    utilizaremos alguns desses para rastrear os detalhes sobre a versão pictoriana acerca da

    origem mítica de Roma, nos permitindo estabelecer um panorama geral de como a

    apropriação romana da lenda serviria de aporte para a obra de Virgílio.

    Na versão pictoriana, o historiador, narrando o mito do herói, já estabelecido

    com os aborígenes34

    , provavelmente em seu reinado sobre os Latinos, assim afirma:

    "[...] foi predito para Eneias que um animal de quatro patas iria levá-lo para o local da

    cidade.”35

    .

    32 Admitimos ser a maior das versões, pois, segundo Dionísio, algumas versões admitem que Eneias

    fundasse Roma. 33

    “Quinto Fábio, chamado de Pictor, a quem inspirou Lúcio Cíncio, Pórcio Catão, Calpúrnio Pisão e a

    maioria dos outros historiadores...” Dio, Rom. Ant. 1. 79. 34

    Povos nativos da costa da Itália, Lácio e seus arredores. 35

    Eus. Chro. p. 283.

  • 19

    Aparentemente, segundo essa versão, Eneias já tinha noção de que Roma seria

    fundada, sendo que os deuses haviam dito onde seria o local. Essa noção é muito

    comum a todos as versões do mito, especialmente em Virgílio, pois a imagem do

    anquisíada é sempre associada ao conselho divino, devido à sua pietas, e a tradição

    incorporou a Roma, sugerindo que a fundação da Urbs era obra do Destino, o mesmo do

    canto XX da Ilíada, que traça o futuro incontrolável à deidade.

    Sobre o governo de Eneias em Lavínio, há um mistério quanto ao destino do

    Rei Latino, já que em Ab Urbe Condita 1,1 existem duas versões; na primeira, ao

    estabelecerem-se em terras laurentinas, Eneias entra em confronto contra Latino, sendo

    esse derrotado, fato que faz com que peça trégua ao troiano, estabelecendo uma aliança

    familiar; na segunda versão, antes de entrar em combate, Latino realizou um pequeno

    colóquio com o troiano, em que, ao saber da história troiana, estabeleceu paz e aliança

    sem derramamento de sangue, fazendo com o que rei lhe oferecesse abrigo e governo,

    garantindo sua filha, Lavínia, em casamento, fundando Lavínio sob seu nome e tendo

    Ascânio como primeiro filho36

    .

    Procederemos com cautela quanto a essas versões, principalmente a segunda

    fonte como um testemunho de Pictor, por conter uma provável contaminação com a

    tradição virgiliana, já que a narrativa, com exceção do mito sobre seu filho, é muito

    semelhante à versão do mantuano, principalmente quando vemos em 1.2, onde vemos

    que a filha de Latino havia sido prometida a Turno, fato que enfureceu o rei dos

    rútulos37

    ao saber da quebra de seu acordo.

    36

    “A partir deste ponto, há uma dupla tradição. De acordo com a primeira, Latino foi derrotado em

    batalha, estabeleceu paz com Eneias, e, posteriormente, uma aliança familiar. De acordo com o outro,

    enquanto os dois exércitos estavam prontos para batalhar, esperando o sinal, Latino avançou na frente de

    suas linhas e convidou o líder dos estranhos para uma conferência. Ele perguntou-lhe que tipos de homens

    eram, de onde eles vieram, o que tinha acontecido para fazê-los sair de suas casas, o que eles estavam em

    busca de quando eles desembarcaram em território latino '. Quando soube que os homens eram troianos,

    que seu líder foi Eneias, filho de Anquises e Vênus, e que sua cidade tinha sido queimada, em que os

    exilados, sem-teto, foram agora à procura de um lugar para se instalar e construir uma cidade, ficou tão

    impressionado com o porte nobre dos homens e seu líder, e da sua disponibilidade para aceitar qualquer

    paz ou de guerra da mesma forma, que lhe deu a mão direita como uma promessa solene da amizade para

    o futuro. Um tratado formal foi feito entre os líderes e cumprimentos mútuos trocados entre os exércitos.

    Latino recebeu Eneias como um convidado em sua casa, e ali, na presença de seus divindades tutelares,

    completou a aliança política por uma doméstica, e deu a sua filha em casamento a Eneias. Este incidente

    confirmou os troianos na esperança de que eles tinham atingido o prazo de suas andanças e ganharam um

    lar permanente. Eles construíram uma cidade, que Eneias chamou de Lavínio, o nome de sua esposa. Em

    um curto espaço de tempo, um menino nasceu de seu novo casamento, a quem seus pais deram o nome de

    Ascânio”, Tit. Liv. Urb. Cond. 1.1. 37

    Lavínia havia sido prometida a ele (Turno) antes da chegada de Eneias, e, furioso ao encontrar um

    estranho a quem foi dada preferência, declarou guerra contra Latino e Eneias. Tit. Liv. Urb. Cond. 1.2.

  • 20

    Caso essa tenha sido, de fato, a versão do historiador romano, teremos uma fonte

    clara, não somente de quem Virgílio teria se inspirado, mas também uma explicação

    sobre a origem de seu filho que se coaduna com algumas versões gregas do ciclo épico,

    corroborando com a ideia de que Eneias não havia gerado filhos em Tróia, pois apenas o

    teria em Lavínio, e que, de fato, o troiano fora casado em sua terra natal.

    Retornando ao testemunho em Eusébio, segundo a lenda, ao resgatar um

    sacrifício que fugiu, uma leitoa branca prenha, Eneias percebe que essa deu cria a trinta

    filhotes brancos e se recorda de seu presságio, entendendo que seria esse o lugar onde

    Roma surgiria:

    [...]a porca escapou de suas mãos e foi perseguida até uma colina, onde deu à

    luz trinta leitões. Eneias foi surpreendido por este presságio, e de acordo com

    a profecia, tentou construir no local38

    .

    Na ânsia de fundar a cidade, mais um presságio refreia sua ação, e, sob

    obediência aos desígnios divinos, posterga a fundação de Roma para seus descendentes.

    Mas ele foi avisado em sonho, para que não encontre a cidade até trinta anos

    se passarem, o mesmo número que os leitões que nasceram com a porca; e

    então desistiu da tentativa39

    .

    No mesmo ano, Eneias morre

    40 (na versão de Fábio, Eneias reinou por três

    anos), e, passados 30 anos, Ascânio, seu filho, funda a cidade de Alba, chamada assim

    pela cor alva da porca que criou os filhotes, e Longa por sua extensão. Provavelmente a

    cidade atingiu longa extensão por ser o período em que Tito Lívio diz haver ocorrida a

    derrota dos etruscos41

    , garantindo assim uma grande espoliação de terras.

    Após a morte de Eneias, seu filho Ascânio se tornou rei e, após trinta anos,

    fundou uma colônia na colina, que chamou de Alba, devido à cor da leitoa.

    38 Eus. Chro. p. 283.

    39 Eus. Chro. p. 283.

    40 Nenhuma versão deixa claro como Eneias morre, segundo Diodoro (Eus. Chro. p. 283.), o herói

    desaparece, e deixa a entender que passou a fazer parte dos deuses, se tornando um imortal. 41

    Esse tinha sido o crescimento do poder latino, principalmente através da derrota dos etruscos, que nem

    com a morte de Eneias , nem durante a regência de Lavinia, nem durante os anos imaturos do reinado de

    Ascânio, nem Mezêncio, os etruscos ou qualquer outro dos seus vizinhos se aventuraram em atacar. Tit.

    Liv. Urb. Cond. 1.3.

  • 21

    Ascânio também adicionou outro nome, Longa, que significa “longa”, pois a

    cidade era estreita em largura e grande em comprimento42

    .

    Do testemunho de Eusébio acerca da versão de Fábio Pictor, temos duas

    informações importantes. Um dos detalhes é que, apesar de não haver citado Lavínio, o

    historiador fala da fundação de Alba Longa, cidade dá origem à Roma, fato que elimina

    a dúvida da origem mítica de Roma.

    Essa versão perdurará por praticamente todas as versões posteriores43

    , passando

    por Catão, Névio, Virgílio e o anônimo do Origo Gentis Romana, transformando

    Lavínio na cidade que Eneias reinou durante sua curta vida em novas terras.

    Outro detalhe importante é acerca da figura de Ascânio, seu filho. Lembremos

    que, na tradição grega, a descendência de Eneias era duvidosa e confusa, pois não havia

    um referencial ou autoridade que expressasse claramente se o troiano possuísse filhos

    ou não.

    Dessa maneira, no momento que Pictor publica sua narrativa, a imagem do neto

    de Vênus passa a ser figura necessária à tradição da fundação romana, ou seja, é filho

    único até a chegada em terras latinas. Entretanto, a dúvida acerca da mãe do filho de

    Eneias ainda paira por sobre as versões do mito; pelo que entendemos acerca por Pictor,

    Ascânio é filho de Lavínia.

    Quanto ao nome de Ascânio, veremos que ele se altera levemente em

    determinadas narrativas que precedem sua fuga, sendo seu nome troiano Euryleon44

    .

    Céfalo de Górgis, outro grego, o menciona como um entre três irmãos, junto com Remo

    e Rômulo45

    ; essas versões mais incomuns, entretanto, não eram frequentes ou

    relevantes, já que não foram absorvidos por nenhum autor romano do cânone.

    Outra importante observação: a partir da incorporação ao mito do fundador de

    Roma, houve a necessidade de vincular a descendência troiana aos reis de Roma;

    portanto, temos um terceiro nome: Sílvio. Esse, também muito controverso, por vezes é

    mencionado como filho de Eneias, em outras, de Ascânio, já que, dependendo da

    versão, há a figura do usurpador ou do herdeiro.

    Após Pictor, Catão, o velho, sob influência do primeiro, escreve sua obra

    Origens, em que descreve o surgimento do povo romano, de Eneias até os reis de Roma.

    42 Eus. Chro. p. 283.

    43 Devemos desconsiderar as versões gregas, pois são inúmeras e extremamente distoantes.

    44 Rastreamos esse nome nas obras de Homero, e também não localizamos conexão com Eneias.

    45 Eus. Chro. p. 275.

  • 22

    Sua obra infelizmente não sobreviveu às intempéries do tempo, sendo legado trechos da

    obra sob testemunho (ex libro) de autores posteriores, como Sérvio e Macróbio.

    Sérvio, em seus Comentários à Eneida é o autor que mais se utilizou de partes

    da obra do censor sobre sua obra e a lenda de Eneias, que contava sobre seu destino ao

    atracar em terras latinas.

    Lembremo-nos que a versão de Pictor, por escassez de informações, deixou

    algumas lacunas quanto aos companheiros que vieram e o que houve antes de encontrar

    seu presságio. Parece que o testemunho de Sérvio em Ad. Aen. I resolve essa dúvida:

    Aeneam cum patre ad Italiam uenisse et propter inuasos agros contra

    Latinum Turnumque pugnasse, in quo proelio periit Latinus. Turnum postea

    ad Mezentium confugisse eiusque fretum auxilio bella renouasse, quibus

    Aeneas Turnusque pariter rapti sunt. migrasse postea in Ascanium et

    Mezentium bella, sed eos singulari certamine dimicasse.

    Eneias com seu pai para a Itália partiram, e próximo às terras invadidas,

    contra Latino e Turno lutaram, Latino pereceu no combate. Posteriormente,

    Turno fugiu em direção aos domínios de Mezêncio em busca de auxílio e as

    batalhas recomeçaram, nas quais Eneias e Turno igualmente pereceram.

    Posteriormente isso mudou nas batalhas de Ascânio e Mezêncio, mesmo

    assim, travaram uma batalha singular46

    .

    Embora não exista informação sobre onde atracaram ou como vieram para a

    Itália, se fora por terra ou mar, ao menos temos ideia do que ocorreu com Eneias e

    Ascânio quando adentraram terras estranhas. Temos ideia, então, que o encontro entre

    Eneias e os aborígenes, na visão de Catão, não foi amigável, já que o censor anuncia o

    embate, que resultou na morte de Latino. Com a retirada de Turno, rei dos rútulos, em

    amparo às forças de Mezêncio, um segundo combate se estabelece.

    Virgílio parece ter se apropriado de parte dessa versão do mito nesse ponto, já

    que narra em sua épica três batalhas, contra Mezêncio, Camila e Turno. Entretanto, o

    poeta altera parte da narrativa, já que Latino se alia a Eneias por conselho de seu pai,

    Fauno, e o mesmo rei sobrevive no final da narrativa. Além disso, Mezêncio é odiado

    por seu povo, sobretudo por sua impiedade, sendo esse acolhido por Turno.

    Na narrativa de Catão, temos umas das poucas explicações para a morte de

    Eneias, que teria perecido juntamente com Turno. Tendo como base a lenda de Pictor, é

    46 Seru. ad Aen. I 267. Tradução nossa.

  • 23

    pertinente entender que o espaço entre a primeira e segunda batalha foi de três anos,

    uma vez que, com a morte de Latino, provavelmente foi o troiano que havia tomado o

    poder, reinando por um curto período de tempo até sua morte. Além do mais, o

    esperado ocorre, Ascânio assume o poder e promove um terceiro confronto, que, aos

    olhos do censor, fora um embate singular.

    Além do mais, é importante notar a presença de Anquises na Itália; a fuga para

    novas terras inclui seu pai na jornada, mas, para as dúvidas acerca do caminho que

    alcançou e local de sua morte, o trecho a seguir nos esclarece:

    In hoc autem monte [Erycino] dicitur etiam Anchises sepultus, licet

    secundum Catonem ad Italiam uenerit.

    No entanto, nesse monte [Ericino] Anquises está sepultado, segundo Catão,

    para a Itália veio.47

    A narrativa de Catão é muito clara e detalhada, Anquises sobreviveu à jornada

    de fuga de Tróia, chegou à Itália vivo, e fora sepultado exatamente no monte Ericino, na

    costa da Itália; infelizmente não temos informações mais claras sobre quando ele

    morreu, se no reinado de Eneias ou de Ascânio.

    Continuando a tradição de Pictor e demonstrando a influência que possuía, o

    censor resolveu manter a imagem do Ascânio fundador de Alba Longa após a morte de

    seu pai.

    Quod Cato ait, triginta annis expletis eum [Ascanium] Albam condidisse.

    Como Catão disse, trezentos anos se completam em que ele [Ascânio] fundou

    Alba Longa.48

    Como não há informações acerca das motivações ou possíveis presságios na

    obra do romano para a fundação de Alba, como a razão do nome, os porcos do

    presságio, entre outros, podemos aventar (com cautela) a possibilidade de que esse

    momento seja um símile da obra pictoriana. Entretanto, o trecho acima recebe mais

    informações acerca da batalha, fundação de Alba Longa e seu irmão Sílvio.

    47

    Seru. ad Aen. I 570. Tradução nossa. 48

    Seru. ad Aen. I 269. Tradução nossa.

  • 24

    Aeneas, ut Cato dixit, simulac uenit in Italiam, Lauiniam accepit uxorem.

    propter quod Turnus iratus tam in Latinum quam in Aenean bella suscepit a

    Mezentio impetratis auxiliis. — sed, ut supra diximus, primo bello periit

    Latinus, secundo pariter Turnus et Aeneas. postea Mezentium interemit

    Ascanius et Laurolauinium tenuit. cuius Lauinia timens insidias grauida

    confugit ad siluas et latuit in casa pastoris Tyri. — et illic enixa est Siluium.

    sed cum Ascanius flagraret inuidia, euocauit nouercam et ei concessit

    Laurolauinium, sibi uero Albam constituit. qui quoniam sine liberis periit,

    Siluio, qui et ipse Ascanius dictus est, suum reliquit imperium. — postea

    Albani omnes reges Siluii dicti sunt ab huius nomine, sicut hodieque Romani

    imperatores Augusti uocantur, Aegyptii Ptolomaei, Persae Arsacidae, Latini

    Murrani, ut ―Murranum hic atavos et avorum antiqua sonantem nomina per

    regesque actum genus omne Latinos‖.

    Eneias, como diz Catão, assim que chegou à Itália, recebeu Lavínia como

    esposa; irado por causa disso, Turno empreendeu guerras, tanto contra

    Latino, quanto contra Eneias, tendo obtido a ajuda de Mezêncio, o que ele

    próprio demonstra ao dizer: “basta que ele avance contra ambos, latinos e

    troianos”. Mas, como dissemos acima, na primeira guerra morreu Latino; na

    segunda, Turno e Eneias ao mesmo tempo; depois, Ascânio matou Mezêncio

    e Tomou Laurolavínio. Lavínia, temendo as insidias dele, grávida refugiou-se

    nas florestas e escondeu-se na cabana do pastor Tirro, ao qual alude, dizendo:

    “e o pai Tirro, a quem os rebanhos reais obedeciam”, e lá deu a luz a Sílvio.

    Mas, como Ascânio ardesse de ódio, chamou a madrasta e lhe concedeu o

    Laurolavínio, mas fundou, para si, Alba. Ele, que morreu sem filhos, deixou

    todo seu império a Sílvio, que também foi chamado de Ascânio, de onde, em

    Lívio, há erro relativo ao qual Ascânio teria fundado Alba. Depois disso,

    todos os reis albanos foram chamados Sílvios por causa do nome daquele,

    assim como ainda os imperadores romanos são chamados Augustos, os

    egípcios Ptolomeus, os persas Arsácidas, os latinos Murranos, como

    “Murrano, representada toda a linhagem pelos reis latinos, a alardear os

    ancestrais e os nomes dos antigos antepassados”.49

    Sobre o trecho, algumas informações se repetem, outras são essenciais para

    entenderemos, indiretamente, algumas questões. A ideia recorrente das três batalhas e as

    sequências de mortes se repete, entretanto, vemos aqui o primeiro contraponto com a

    fonte de Pictor.

    49 Seru. ad Aen. VI 760. Tradução de Priscila Campanholo.

  • 25

    Quando falávamos acerca da possível origem de Ascânio, afirmamos, com

    cautela, que a fonte de Tito Lívio poderia preencher algumas lacunas nas interpretações

    do ciclo épico, mas nesse ponto vemos o filho de Eneias apto para a batalha, de forma

    que matou Mezêncio, governou Laurolavínio50

    e fundou Alba Longa; dessa forma, seria

    impossível que esse fosse filho de Lavínia, além do fato dessa ter medo do neto de

    Anquises por estar grávida e lhe conceder um meio-irmão.

    Além disso, é claro quando Catão menciona que Lavínia é madrasta (nouercam),

    cabendo a maternidade de Ascânio a Creúsa, que provavelmente havia morrido em

    Tróia. Assim, pelo menos para a versão de Catão, Creúsa era personagem corrente e era

    mãe de Ascânio no primeiro cânone do mito de Eneias.

    Aqui, Sílvio é meio irmão de Ascânio, mas não é uma figura usurpadora, o reino

    de Alba Longa foi a ele transferido, mas esse assumiu o nome do irmão, o que geraria

    uma dúvida sobre qual dos irmãos teria fundado Alba51

    .

    A dúvida gerada é se o filho de Lavínia é ou não de Eneias; acreditamos que seja

    filho do troiano, pois desse modo a gens troiana permaneceria e seria transmitida aos

    reis de Alba Longa e Roma, já que, nessa narrativa, Sílvio é o único que possui

    herdeiros, entretanto, permanecemos céticos, já que a difusão de diversas versões era

    frequente.

    Como é comum ao mito oral, as imagens de Ascânio e Silvio são controversas,

    sobretudo com relação à sua naturalidade e caracterizam-se como personagens de

    querelas contumazes, ora se figurando como irmãos, ora como usurpadores. Tito

    Lívio52

    , com o fito de encerrar essa questão, resolve o problema, concedendo a Ascânio

    um filho, esse, Sílvio.

    1.4 - O mito como cânone: Ênio e a lenda de Troia

    Os 18 cantos dos Anais de Ênio53

    , compostos após as obras de Lívio Andrônico

    e Névio, foram obra essencial para a formação do uir em Roma, até o advento da

    50 O nome antigo de Lavínio, que repousava sobre o nome de Laurento.

    51 Inferimos que essa apropriação do nome tenha se ocasionado por alguma querela entre versões da lenda

    que competiam a Sílvio a fundação da cidade de Alba Longa. Catão, no intento de preservar a tradição,

    associou nome igual aos dois, o que possivelmente ocultaria a dúvida e favoreceria a tradição matrimonial

    romana. Outra possível explicação é por Catão não se interessar na possibilidade de que um filho de um

    segundo casamento ou herdeiro ilegítimo herdassem a história de Roma. 52

    Tit. Urb. Con. 1.3. 53

    Famoso poeta épico romano, nomeado alter Homerus que viveu entre 239 a 169 a.C.

  • 26

    Eneida, quando a produção virgiliana suplantou os Anais em importância, passando a se

    tornar obra fundamental na educação romana.

    A obra buscava ir além de seus precursores romanos, pois buscava retratar um

    espaço de aproximadamente mil anos de história de Roma em versos, desde a chegada

    de Eneias às terras itálicas até cerca de 184 a.C.

    Assim, embora tenha nos sido legado cerca de metade do material original, os

    fragmentos passam a revelar o profundo apreço que o poeta empenha em estipular uma

    tradição analítica, perenizando uma imagem mais perene da lenda de Eneias em Roma,

    cuja tradição será constantemente emulada e testemunhada por autores posteriores,

    como Horácio e Quintiliano.

    Em seus Anais, o poeta inicia a épica justamente onde ela se aproxima do fim: a

    morte de Príamo e o saque de Tróia.

    quom ueter occubuit Priamus sub Marte Pelasgo

    quando o velho Príamo caiu morto sob o Marte Pelasgo54

    E, do mesmo modo que Névio havia representado Anquises, Ênio assim o

    emula, atribuindo a ele os trabalhos sacerdotais, e, portanto, os de augúrio, deixando

    subentendido que a imagem de Laocoonte tenha desaparecido na épica eniana.

    doctusque Ancisa, Venus quem pulcherrima dia

    fata docet fari, diuinum ut pectus haberet

    e o douto Anquises, a quem a belíssima deusa Vênus

    ensina a prever o futuro, para que tivesse o dom da profecia55

    Ou seja, há dupla interpretação sobre o momento da fuga, se ocorrera antes do

    saque, por seu augúrio, ou depois, mas com um plano em mente; não há uma forma de

    mensurar qual delas fora adotada, já que, como vimos antes, temos versões que aludem

    a esses dois momentos distintos.

    Os fragmentos seguintes demonstram que Vênus se revela e suplica a Eneias

    para que ouça os comandos de seu pai.

    quom superum lumen nox intepestas teneret

    54

    Enn, Ann, fr.10. Tradução de Everton S. Natividade. 55

    Enn, Ann, fr.12. Tradução de Everton S. Natividade.

  • 27

    transnauit cita per teneras calignis auras

    constitit inde loci propter sos dia dearum

    .........face uero,

    quod tecum precibus pater orat....

    quando a calada da noite ocupou a luz celeste

    rápida voou através dos suaves vapores do nevoeiro

    desde então, a deusa das deusas permaneceu no lugar, próxima deles

    faz, então, o que o pai te pede com súplicas56

    Localizados antes da chegada às terras ítalas, os fragmentos apontam um pedido

    de Vênus para que Eneias obedeça seu pai. Portanto, podemos interpretar que possa ter

    havido uma divergência com seu pai, sendo necessária a intervenção da deusa para

    arrefecer os ânimos, como fora por Atena com Aquiles, ou esse possa ter cumprido o

    destino de Laocoonte e sido assassinado ainda em Tróia, antes lhe dando instruções dos

    procedimentos a serem adotados, a saber: partir da cidade com cidadãos troianos e as

    divindades tutelares, os Penates.

    Essa é uma das raras fontes onde Eneias não foge com seu pai em ombros; no

    caso, a pietas do herói seria interpretada de forma diferente, em que a obediência às

    ordens do pai que pereceu se converte em devoção filial, como uma forma de fé aos

    dons e os presságios confiados a ele.

    Ademais, nos fragmentos posteriores, há a advertência a Eneias sob qual rumo

    tomar e qual terra sediar a nova Tróia, em que Vênus explica a razão e a história antiga

    das terras ítalas.

    est locus, Hesperiam quem mortales pehibebant

    quos homines quondam Laurentis terra recepit

    .......Saturno,

    quem Caelus genuit

    ....... late Saturnia terra

    quam prisci casci populi tenuere Latini

    existe um lugar, em que os mortais chamavam Hespéria

    homens que outrora a terra de Laurento recebeu

    a Saturno,

    que o Céu gerou

    56

    Enn, Ann, frs.13-16. Tradução de Everton S. Natividade.

  • 28

    muito ao longe, a terra de Saturno

    que os priscos latinos, o povo antigo, ocuparam57

    Laurento é uma região do Lácio que é comumente associada à lenda circulante

    de Saturno; era dito que essa foi a região onde o Saturnino, responsável, nos Dias e

    Trabalhos, pela instauração da Era de Ouro, se escondeu após sua expulsão do Olimpo,

    que, em troca, ensinou ao povo as artes da agricultura, representado comumente como

    um deus associado à fertilidade e à opulência. Nessa região, cabia ao anquisíada ocupar

    e estabelecer sua nova Tróia na região do Laurento, onde os aborígenes, priscos latinos,

    ali residiam.

    Os fragmentos a seguir dão um salto para os gêmeos Remo e Rômulo, nos

    fazendo perder boa parte do enredo consagrado em Roma. Ademais, podemos notar

    que, mesmo tendo pouca informação sobre a narrativa dos Anais, Virgílio absorveu

    grande parte dos expedientes da lenda sob a pena de Ênio e Névio, emulando diversas

    passagens e recriando as de mitos mais antigos em outras.

    1.5 - O surgimento de um legado: A apropriação de Júlio César

    O uso da imagem em Roma, sobretudo no período republicano tardio, não era

    legado somente à autoridade sacerdotal, mas era comumente utilizada como forma de

    amplificação da persona retórica e um elemento de descrição e reconhecimento dos

    cidadãos dentro da urbs.

    A cultura romana, assim como a grega, era baseada no profundo reconhecimento

    de seu semelhante com base não somente em sua fala, mas, acima de tudo, em sua

    gesticulação e imagens. Tais sociedades eram educadas para “ler” as imagens e perceber

    mínimos detalhes que caracterizam um indivíduo, como sua história, descendência,

    entre outros elementos descritivos.

    Portanto, bustos, mosaicos, pinturas e máscaras de cera adornavam toda a villa

    romana, como forma de perenização das virtudes de seus antepassados e enaltecimento

    de sua gens.

    Esse expediente, já comum na era da República Tardia (146 -27 a.C.), passa a

    ser utilizado como forma de amplificação e evidenciação de personagens políticos, que,

    de uma forma ou outra, se associavam a figuras míticas.

    57 Enn, Ann, frs.17-21. Tradução de Everton S. Natividade.

  • 29

    A razão jazia no próprio momento de dissociação da República, onde os

    aristocratas começaram a associar sua imagem à de outras figuras míticas, como por

    exemplo, o ditador Sula, como vemos na moeda abaixo.

    Figura 12: Denário de prata58

    A referida moeda, cunhada a pedido de Sula durante a segunda guerra

    mitridática, faz alusão ao momento que Roma vivia, como podemos ver no reverso, em

    que o soldado com escudo com uma inscrição “M” é claramente Mitridates enfrentando

    Sula. No obverso da moeda, a imagem de Apolo serve de justificativa para o poder

    romano, pois o deus também era visto no campo de batalha tanto quanto no das artes;

    além disso, os instrumentos ritualísticos ao lado do deus mostram que Sula era revestido

    de poder sacerdotal e pietas, importantes elementos ao personagem bélico.

    Esse processo, ainda incomum no tempo de Sula, passaria gradativamente a ser

    utilizado por outros aristocratas romanos, alcançando seu auge em Augusto, que se

    reveste de todos os meios necessários para que sua persona seja anuída, não só pelo

    poder temporal, mas pelo divino.

    Júlio César, estando ciente desse pensamento entre os políticos de seu tempo, em

    69 a.C., com a morte de sua tia Júlia, vê nesse momento o ideal para vincular

    publicamente o passado de sua família aos heróis míticos de Roma59

    , em sua laudatio

    funebris:

    58 Denário de prata, cunhado em 82 a.C., em Roma. Em seu obverso, temos a imagem de Apolo laureado

    e um litus, com a marca denominacional de Roma abaixo; em seu reverso, é representada uma batalha

    entre um homem com espada e outro com lança, com a inscrição C. SERVEIL (Servílio Vatia, o triúnviro

    monetário). Número de catalogo 2002,0102.3165 – The British Museum. Referência bibliográfica RRC

    370/1b - Crawford, M H, Roman Republican Coinage, Cambridge, CUP, 1974. 59

    Esse procedimento não era inédito para a família Júlia, entretanto, Júlio César fora o mais célebre

    membro a afirmar essa reivindicação.

  • 30

    Durante sua questura, tendo perdido a tia, Júlia, e a esposa,

    Cornélia, fez-lhe segundo costume o elogio público nos rostros.

    No discurso sobre a tia, eis que lhe disse, aludindo à dupla

    ascendência da morta e de seu próprio pai: “Do lado da mãe,

    minha tia descende dos reis; do lado do pai, liga-se aos deuses

    imortais. É com efeito de Anco Márcio que saíram os reis

    Márcios, e tal foi o nome de sua mãe; e é de Vênus que

    descendem os Júlios, de cuja família constituímos um dos

    ramos. Ela junta, pois, ao caráter dos reis, que são senhores dos

    homens, a santidade dos deuses, de quem dependem os

    próprios reis.”60

    .

    No elogio fúnebre, fica evidente que, vinculando duas figuras lendárias, os reis

    Márcios e a estirpe oriunda de Vênus, Júlio César tenta justificar que sua família tem

    origem em Eneias, demonstrando que os Júlios são a gens mais antiga de Roma.

    Além disso, há duas prerrogativas que César sustenta. A primeira é oriunda da

    parte de pai, pois aponta que é alguém predestinado ao imperium e ao comando da gente

    romana; a segunda jaz sob a autoridade religiosa, pois fora flâmine de Júpiter e pontífice

    máximo em 63 a.C;

    Dessa forma, César estabelece um expediente de pertinência necessário para que

    os governantes seguintes possam reivindicar sua ascendência divina.

    O resultado da imagem de sua casa representada como descendente de origem

    divina passou a ser sua propaganda política, de tal forma que, durante o triunvirato,

    passou a cunhar essa associação em moeda, uma quebra de paradigma de representação

    no ambiente romano.

    60

    Suet, Jul, I.6.

  • 31

    Figura 13: Denário de Prata61

    Na moeda acima, vemos como a imagem de Eneias passa a ser apropriada por

    César, pois é representada a relação familiar entre Vênus, no obverso, em relação ao

    troiano, que, representando a cena mítica do Illiou Persis, foge para o estabelecimento

    de uma nova Tróia, portando o Paládio e carregando seu pai. A inscrição “CAESAR”

    vincula toda essa cena com a gens Iulia: Eneias passa a ser, nesse momento, ancestral

    dos Júlios.

    Nas versões arcaicas, o governo é legado aos reis albanos após a morte de Eneias

    e o governo de Ascânio, já que o filho de Eneias morre sem deixar descendentes.

    Portanto, há aí uma drástica modificação na interpretação do mito, pois há uma

    continuidade da gens, único meio que possibilitaria essa denominação de César ao

    afirmar origem troiana e parentesco com Vênus.

    As representações “embrionárias” do mito que inicia uma nova era de

    representação da lenda de Eneias ainda são simples, com pequenas reproduções de

    cenas e nomes inscritos; entretanto, com o círculo augustano, essas representações

    passam a adquirir mais complexidade, formas mais detalhadas e reescritas que

    recontariam todo o trajeto de suas errâncias, estabelecimento, guerras e o destino de

    Roma.

    É certo que grande parte do cânone que Virgílio tenha utilizado como fonte de

    sua épica se localiza entre Homero, Névio, Ênio e Catão. O mito para o poeta, que na

    verdade se trata de uma versão que buscava mostrar o máximo de sua erudição e sua

    imagem como colecionador de fontes, sendo as principais essas em que fizemos um

    percurso histórico.

    Além disso, a obra acaba, por consequência, elogiando a imagem de Augusto,

    uma continuidade do pensamento de César que, por conveniência, passa a integrar a sua

    propaganda como princeps. São vários os elementos elogiosos, explícitos e implícitos,

    existentes em seus aspectos retóricos e históricos, que veremos a seguir.

    61

    Denário de prata, cunhado em 47 a.C., na África. Em seu obverso, vemos a imagem de Vênus; em seu

    reverso, a imagem de Eneias, carregando ser pai, Anquises, em seus ombros, e carregando o paládio com

    sua mão esquerda, ao lado da inscrição CAESAR (César). Número de catálogo RR2p469.34 – The British

    Museum. Referência bibliográfica RRC 458/1 - Crawford, M H, Roman Republican Coinage, Cambridge,

    CUP, 1974,

  • 32

    2- A Eneida como elemento retórico na construção da imagem de

    Augusto e Roma

    A retórica, arte da persuasão, para Córax e Tísias, era um conjunto de regras e

    elementos que buscavam um intermediário entre experiência e prática62

    , era a arte que

    deveria ser combinada com a filosofia e o direito para se obter a omnium rerum scientia

    e a justiça63

    , elementos comuns em grande parte dos estudos literários antigos.

    Embora a poesia seja considerada diferente pela maioria dos antigos e estudiosos

    modernos, sobretudo por atingir fins diferentes, é comum percebermos a existência de

    artifícios retóricos que buscam atingir um determinado público e propiciar os mais

    variados tipos de afecções, como tristeza, ira e compaixão, provocando, inclusive, a

    visualidade, de modo que o leitor (ou ouvinte) se imagine inserido na cena narrada.

    Virgílio, como um uir romanus, foi educado em diversas áreas do

    conhecimento: política, poesia, oratória, entre outras matérias essenciais, e a influência

    dessas obras é notável, nos forçando a discordar de Clarke (1949), que afirma que não

    há, de fato, elementos suficientes para que a obra seja considerada de cunho retórico.

    O motivo de tal refutação é simples: é impossível que teçamos uma arte com

    uma divisibilidade matemática. Virgílio era um cidadão romano, compartilhava, acima

    de tudo, ideias comuns, como os elementos básicos da educação romana, a retórica,

    filosofia, legislação romana e literatura.

    Dessa maneira, a retórica, assim como a política e a poesia, era parte dessa

    coluna da educação romana, e cabe a nós entender como esses elementos se engendram,

    sobretudo o elemento mais evidente do mecanismo retórico: a elocução e sua

    capacidade de provocar os mais diversos tipos de emoção.

    Dessa forma, mesmo que seu auditório saiba que a obra se trata de res ficta,

    produto em que seu público é ciente que a narrativa é fictícia, ainda assim a obra é

    verossímil.

    62 Grimaldi, 1980, p.4-5.

    63 Ao contrário de Antônio em seu diálogo De Oratore, a personificação de seu irmão, Quinto, defensor

    da ideia do excelente orador como o natural magnus ingens, Crasso, personificação do ideal ciceroniano,

    prezava pela prática oratória em detrimento do mero tecnicismo, de modo a valorizar o usus e a uita, com

    o fito de obter a omnium rerum scientia, por meio do uso da sapientia.

  • 33

    Nesse sentido, sua função não parece ser diferente de Dionísio de Halicarnasso,

    que fez um apanhado de fontes e mitos romanos da mesma maneira que Virgílio assim o

    fez, entretanto, esse possuíia estilo e métrica, assim como sua capacidade de estimular a

    imaginação.

    Observando por esse aspecto, o poeta mantuano não deixa de ser um historiador-

    orador, com não somente o fito de informar ou orientar o leitor acerca de seu lugar no

    mundo, mas também de reformatar o mundo e a pessoa, pelos mais diversos motivos.

    Além disso, parte de seu trabalho, além da narrativa épica, era focado no

    convencimento de seu auditório sobre a genealogia dos Júlios e o elogio a Augusto.

    Assim, como notamos, sobretudo em Cícero, os poetas são, como qualquer cidadão,

    doutrinados pela arte da oratória, já que essa fazia parte da educação do vir romanus, e,

    inevitavelmente, as obras poéticas serviam como parte do exercício de formação, já que

    o poeta, por seu poder de eloquência, se convertia em modelo basilar do orador quando

    aponta essa virtude como elemento de persuasão.

    Atque id primum in poetis cerni licet, quibus est proxima cognatio cum

    oratoribus: quam sunt inter sese Ennius, Pacuvius Acciusque dissimiles,

    quam apud Graecos Aeschylus, Sophocles, Euripides, quamquam omnibus

    par paene laus in dissimili scribendi genere tribuitur!

    E, em primeiro lugar, é possível notar entre os poetas, que têm um parentesco

    próximo com os oradores, o quanto Ênio, Pacúvio e Ácio são diferentes uns

    dos outros, bem como, entre os gregos, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, embora

    se atribua a todos eles um mérito quase igual num gênero de escrita

    diferente64

    .

    A aproximação é grande, e por muitas vezes a linha tênue entre historiador,

    orador, mitógrafo e poeta se confunde, sobretudo pela capacidade de elocução e

    disposição do artífice, como vemos no trecho abaixo:

    Parce metu, Cytherea, manent immota tuorum

    fata tibi; cernes urbem et promissa Lauini

    moenia sublimemque feres ad sidera caeli

    magnanimum Aenean; neque me sententia uertit.

    Hic tibi (fabor enim, quando haec te cura remordet,

    64 Cic. Orat. III, 27. Tradução de Adriano Scatolin.

  • 34

    longius, et uoluens fatorum arcana mouebo)

    bellum ingens geret Italia populosque ferocis

    contundet moresque uiris et moenia ponet,

    tertia dum Latio regnantem uiderit aestas,

    ternaque transierint Rutulis hiberna subactis.

    At puer Ascanius, cui nunc cognomen Iulo

    additur (Ilus erat, dum res stetit Ilia regno),

    triginta magnos uoluendis mensibus orbis

    imperio explebit, regnumque ab sede Lauini

    transferet, et longam multa ui muniet Albam.

    Hic iam ter centum totos regnabitur annos

    gente sub Hectorea, donec regina sacerdos

    Marte grauis geminam partu dabit Ilia prolem.

    Inde lupae fuluo nutricis tegmine laetus

    Romulus excipiet gentem et mauortia condet

    moenia Romanosque suo de nomine dicet.

    His ego nec metas rerum nec tempora pono:

    imperium sine fine dedi. Quin aspera Iuno,

    quae mare nunc terrasque metu caelumque fatigat,

    consilia in melius referet, mecumque fouebit

    Romanos, rerum dominos gentemque togatam.

    Sic placitum. Veniet lustris labentibus aetas

    cum domus Assaraci Phthiam clarasque Mycenas

    seruitio premet ac uictis dominabitur Argis.

    Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,

    imperium Oceano, famam qui terminet astris,

    Iulius, a magno demissum nomem Iulo.

    Hunc tu olim caelo spoliis Orientis onustum

    Accipies secura; uocabitur hic quoque uotis.

    Aspera tum positis mitescent saecula bellis;

    cana Fides et Vesta, Remo cum fratre Quirinus

    iura dabunt; dirae ferro et compagibus artis

    claudentur Belli portae; Furor impius intus

    saeua sedens super arma et centum uinctus aenis

    post tergum nodis fremet horridus ore cruento.

    Não temas, Citeréia, ainda é o mesmo

    o destino dos teus; tu verás, sim,

    de Lavínia a cidade e as prometidas

  • 35

    muralhas e às estrelas do alto céu

    o magnânimo Enéias levarás,

    pois não voltei atrás em meus desígnios.

    Ele (eis que te direi, já que te aflige

    essa preocupação, e passo a passo

    volverei os segredos do destino),

    levando uma terrível guerra à Itália,

    dominará os povos mais ferozes

    e aos homens imporá leis e muralhas,

    até o terceiro estio o vir reinando

    no Lácio e três invernos se passarem

    após a submissão dos duros Rútulos.

    E teu jovem Ascânio, a quem agora

    o cognome Iúlo é dado (este era Ilo

    enquanto estava em pé o reino de Ílio),

    estará no poder até que os meses,

    volvendo em sucessão, perfaçam trinta

    grandes giros; a sede do reino ele

    mudará de Lavínia para a longa

    Alba, que cingirá de fortes muros.

    Aí, de Heitor a raça reinará

    trezentos longos anos, até que

    Ília, a sacerdotisa real, dê,

    por Marte engravidada, à luz dois gêmeos.

    Depois, vestindo a pele da ama loba,

    Rômulo, satisfeito, acolherá

    a todos, construirá as marciais

    muralhas e, a partir do próprio nome,

    chamará de romanossua gente.

    A estes, nem no espaço nem no tempo

    fixo limites: dei-lhes um império

    sem fim. E mesmo a rude Juno que ora,

    por receio, mar, terra e céu castiga,

    mudará seu juízo e, assim como eu,

    irá favorecer sempre os romanos,

    donos do mundo, povo togado.

    Assim desejo. Lustros decorridos,

    um tempo chegará em que a casa

    de Assáraco terá Fítia e a célebre

    Micenas sob o jugo, e Argos aos pés.

  • 36

    Nascerá, de uma nobre estirpe, César,

    troiano que, estendendo o Império ao mar,

    a fama elevará até os astros;

    Júlio, seu nome, advém do grande Iúlo.

    Serenamente um dia tu o verás

    trazendo aos céus espólios do oriente;

    nas preces, como um deus, será invocado.

    Então, os rudes tempos se farão

    amenos, com o término das guerras;

    a cândida Boa Fé e Vesta, Remo

    e o irmão Quirino as leis irão ditar;

    duras trancas de ferro fecharão

    as portas da sinistra Guerra; dentro

    o ímpio Furor, sentado sobre as armas

    cruéis e tendo as mãos atrás das costas

    amarradas com cem grilhões de bronze,

    horrendo, rugirá com a boca em sangue”65

    .

    A ascensão do império romano aqui é descrita pelo poeta; notamos que o poeta,

    em poucas linhas, consegue sintetizar toda a história do mito romano, desde a fundação

    mítica até os tempos de Augusto, dotado de elocução e g