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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ANIELE ALMEIDA CRESCÊNCIO UMA ANÁLISE SOBRE O LUGAR DA HISTÓRIA E DA HISTORIOGRAFIA NAS ÚLTIMAS OBRAS DE FRIEDRICH NIETZSCHE (1882-1888) MARIANA 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

ANIELE ALMEIDA CRESCNCIO

UMA ANLISE SOBRE O LUGAR DA HISTRIA E DA

HISTORIOGRAFIA NAS LTIMAS OBRAS DE FRIEDRICH NIETZSCHE (1882-1888)

MARIANA 2018

ANIELE ALMEIDA CRESCNCIO

UMA ANLISE SOBRE O LUGAR DA HISTRIA E DA HISTORIOGRAFIA NAS LTIMAS OBRAS DE FRIEDRICH

NIETZSCHE (1882-1888)

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Instituto de Cincias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Histria. rea de concentrao: Poder e linguagens Linha de pesquisa: Poder, espao e sociedade Orientador: Prof. Dr. Srgio Ricardo da Mata.

Mariana Instituto de Cincias Humanas e Sociais/UFOP

2018

Catalogao: www.sisbin.ufop.br

C919a Crescncio, Aniele Almeida. Uma anlise sobre o lugar da histria e da historiografia nas ltimas obrasde Friedrich Nietzsche (1882-1888) [manuscrito] / Aniele AlmeidaCrescncio. - 2018. 108f.:

Orientador: Prof. Dr. Srgio Ricardo da Mata.

Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deCincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-Graduao em Historia. rea de Concentrao: Histria.

1. Histria. 2. Historiografia. 3. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. I.Mata, Srgio Ricardo da. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.

CDU: 930(043.3)

Para Aline e Jos Cludio.

Agradecimentos

O perodo do mestrado que culminou na escrita desta dissertao foi de

dois anos de muitas descobertas e aprendizados. Minha dissertao no teria sido

concluda com o mesmo xito sem a ajuda de algumas pessoas ao meu entorno.

Sendo assim, seguem abaixo os meus agradecimentos a elas.

Sou grata a meus pais, Aline e Jos Claudio Crescncio, pela oportunidade

de fazer o mestrado. Sem o apoio financeiro e emocional deles a realizao deste

sonho no seria possvel.

Agradeo a meu orientador, Srgio da Mata, pela oportunidade, pacincia

em lidar com as minhas dificuldades, por me apresentar bibliografias

fundamentais para o meu trabalho e por seu comprometimento com minha

pesquisa. Sua orientao teve grande influncia na qualidade de meu trabalho.

Minha gratido tambm a meu professor de alemo, Heiner Gehardts, por

sua pacincia em discutir comigo os fragmentos, cartas e trechos de livros em

lngua alem utilizados nesta dissertao. A Helena Mollo e a Olmpio Pimenta

por aceitarem participar da banca de qualificao. As observaes de ambos

contriburam de forma significativa para evitarmos equvocos ao longo de minha

escrita. Sou grata tambm aos demais professores da UFOP, com eles pude

ampliar minhas vises sobre os estudos histricos.

Meus agradecimentos tambm a meus colegas e amigos que conviveram

comigo durante estes dois anos, dispostos a ouvir, ajudar e contribuir com minha

formao profissional e intelectual. Agradeo a Bruna Zucherato, que me fez

sentir acolhida em Mariana e tornou-se uma grande amiga. A Larissa Breder,

minha companheira de mestrado. A Luiz Augsburger, pela ajuda com minha

escrita. A Marco Aurlio, por estar presente na minha vida. A Raquel Evangelista

e a Isaias Franco, pelas conversar na escada. A Renato Paes Rodrigues e a

Aguinaldo Boldrini pelas conversas tericas. E, em especial, a Roberto Maaneiro

com quem pude contar, sempre serei grata por sua generosidade e seu

companheirismo.

Por ltimo, agradeo ao Deutscher Akademischer Austauschdienst

(DAAD) pela oportunidade de realizar um curso intensivo de alemo na

Universitt von Duisburg-Essen. Oportunidade nica que trouxe muitos

benefcios a minha trajetria acadmica.

Resumo

Essa dissertao buscou problematizar a viso de Nietzsche acerca da histria e da historiografia, que cristalizada no Brasil a partir das afirmaes deste presentes em sua Segunda Considerao Intempestiva. impossvel entender o pensamento do filsofo sem contextualiz-lo, sendo assim, tambm discutimos o conceito de modernidade e dois grandes acontecimentos do sculo XIX que foram essenciais para a reflexo de Nietzsche acerca de sua contemporaneidade: a Unificao da Alemanha e a institucionalizao da histria. Para alcanar nosso objetivo, nos submetemos anlise das obras publicadas nas chamadas primeira e terceira fase de Nietzsche, a fim de apresentar suas semelhanas e divergncias. Tambm analisamos as relaes de Nietzsche com trs historiadores contemporneos. A partir das fontes identificamos que Nietzsche muda sua viso sobre a histria aps a publicao de sua famosa obra de 1874. Tambm pudemos perceber, acerca da relao com os historiadores, que Nietzsche admirou Burckhardt ao longo de toda a sua vida, apesar da relao polida entre ambos; Ranke foi alvo de suas crticas todas as vezes que foi mencionado por Nietzsche; e Treitschke, a quem Nietzsche cultivara certa admirao em sua juventude, foi duramente criticado em seus escritos finais.

Palavras-chave: Histria; Historiografia; Nietzsche.

Abstract

This dissertation attempted to problematize Nietzsche's view of history and historiography, which is crystallized in Brazil by his statements present in his Second Untimely Meditation. It is impossible to understand the thought of the philosopher without contextualizing it, so we also discuss the concept of modernity and two great events of the nineteenth century that were essential for Nietzsche's reflection on his contemporaneity: the Unification of Germany and the institutionalization of history . To reach our goal, we submit to analysis of the works published in the so-called first and third phases of Nietzsche, in order to present their similarities and divergences. We also analyze Nietzsche's relationships with three contemporary historians. Analyzing the sources we have identified that Nietzsche changes his view of history after the publication of his famous work of 1874. We have also been able to see from his relationship with historians that Nietzsche admired Burckhardt throughout his life, despite the polite relationship between both; Ranke was the target of his criticism every time Nietzsche mentioned him; and Treitschke, whom Nietzsche had cultivated a certain admiration in his youth, was harshly criticized in his final writings.

Keywords: History, Historiography; Nietzsche.

Lista de Abreviaturas

AO - O Anticristo

AZ - Assim falou Zaratustra

BM - Para Alm do Bem e do Mal

CI - Crepsculo dos dolos

CW - O Caso Wagner

EH - Ecce Homo

GC - A Gaia Cincia

GM - Genealogia da Moral

HDH - Humano demasiado Humano

NT - O Nascimento da Tragdia

NW - Nietzsche Contra Wagner

PI - Primeira Considerao Intempestiva

QI - Quarta Considerao Intempestiva

SI - Segunda Considerao Intempestiva

TI - Terceira Considerao Intempestiva

VP Vontade de Potncia

Sumrio

Introduo .............................................................................................................. 10

1. O Jovem Nietzsche e a Historia ......................................................................... 21

1.1 A polmica em torno da obra O Nascimento da Tragdia .......................... 24

1.2. A Segunda Intempestiva e a sua proposta de histria ................................ 37

2. Ranke, Burckhardt e Treitschke ........................................................................ 47

2.1 A Modernidade ............................................................................................ 47

2.2 Leopold von Ranke o Historicismo ............................................................. 51

2.3. Jacob Burckhardt ........................................................................................ 63

2.3 Heinrich von Treitschke .............................................................................. 70

3. Nietzsche Tardio e suas Concepes de Histria .............................................. 76

3.1. Reflexes para alm das obras publicadas ................................................. 76

3.2 A Relao de Nietzsche com o Conhecimento Histrico ............................ 80

3.3. As Ressignificaes da Histria em Nietzsche........................................... 82

Concluso .............................................................................................................. 96

Referncias Bibliogrficas ..................................................................................... 98

10

Introduo

A trajetria intelectual de Friedrich Wilhelm Nietzsche foi marcada por

inmeras continuidades e drsticas rupturas. Em meio a estas, alguns intelectuais

costumam dividir seu pensamento em diferentes fases1. Ns optamos pela diviso

de trs perodos, tcnica adotada por grande parte dos pesquisadores que estudam

o filsofo. Com isso, assim como Scarlett Marton,

[...] no pretendemos dividir a obra em compartimentes estanques, unidades fechadas em si mesmas; queremos apenas tomar a periodizao enquanto parmetro, para localizar o aparecimento de conceitos fundamentais e detectar as transformaes por que passam. Ela nos auxilia a apontar as influncias a que o filsofo se acha exposto nos diversos momentos de seu itinerrio e a recuperar as etapas do processo de elaborao de suas ideias.2

Esse fracionamento foi sugerido pelo prprio filsofo em uma carta, de

1883, a Franz Overbeck3, onde afirmava: toda minha vida tem decomposto

diante dos meus olhos: essa vida assustadora e oculta, que a cada seis anos d um

passo e quase nada quer alm4.

A diviso do pensamento de Nietzsche em trs fases contm pequenas

variaes de anos entre os que optam a adot-la. Tomaremos como referncia os

trabalhos do historiador sueco Thomas Brobjer, que considera a primeira fase de

1869 at 1874, a segunda fase de 1875 a 1882 e a terceira fase de 1883 at 18895.

Encontramos dentro deste perodo de trs fases as obras publicadas de Nietzsche e

foi nele que o filsofo atuou como professor na Universidade da Basilia, porm,

algumas das principais influncias na sua vida intelectual surgiram antes de 1869.

A primeira inspirao dele no campo filosfico foi o estadunidense Ralph

Emerson (1803-1882). Acredita-se que ele motivou o rompimento de Nietzsche

com o pensamento cristo e o influenciou aos estudos filosficos. Nietzsche 1 Marton aponta que Raoul Richter divide a trajetria de Nietzsche em duas fases, Carl Albrecht Bernouilli determina o NT um livro parte e faz uma diviso de quatro perodos, Charles Andler divide Nietzsche em duas fases e Karl Lwith utiliza a usual diviso de trs fases. (MARTON, 1990, P.23-24). 2 MARTON, 1990, p.27. 3 MARTON, 1990, p.24. 4 Traduo nossa de: Mein ganzes Leben hat sich vor meinen Blicken zersetzt: dieses ganze unheimliche verborgen gehaltene Leben, das alle sechs Jahre einen Schritt thut und gar nichts eigentlich weiter will als diesen Schritt. Disponvel em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1883,373. Acesso em: 23/08/2017. 5 BROBJER, 2008.

http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1883,373

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iniciou suas leituras das obras de Emerson entre os anos de 1861 a 1862, deixando

nos livros do autor que Nietzsche possua muitas anotaes. Os primeiros ensaios

filosficos de Nietzsche, Fatum und Geschichte e Willensfreiheit und Fatum,

foram fortemente influenciados pelo estadunidense. No se tem certeza de como

ele teve conhecimento do intelectual, mas foi possivelmente em uma livraria6.

Exceto no perodo entre 1869 e 1873, estima-se que Nietzsche leu Emerson quase

todos os anos de sua vida at 1889. A influncia de Emerson7 em seu pensamento

pode ser comparada a de Arthur Schopenhauer (1788-1860), porm no muito

conhecida, porque Emerson no foi citado com frequncia em suas obras

publicadas, diferente do que aconteceu a Schopenhauer8.

A segunda grande influncia filosfica de Nietzsche foi Plato. O interesse

por ele surge entre 1863 e 1864. Quando o professor de Schulpforta, Karl

Steinhart, escreve uma carta de recomendao para Nietzsche, enviada a Carl

Schaarschmidt da Universidade de Bonn, ele afirma que Nietzsche um

entusiasta filosofia, em especial a platnica. No perodo que Nietzsche foi um

estudante universitrio (1864-1868) os interesses em Plato continuaram. Ele fez

dois cursos sobre o filsofo e houve inmeras referncias ao mesmo em seus

trabalhos universitrio, porm essas sempre tratavam, de maneira geral, de

questes filolgicas e no do pensamento filosfico de Plato. Nietzsche lecionou

sobre o filsofo na Universidade da Basilia e as suas vises independentes sobre

Plato comearam a surgir com sua obra publicada em 1872, o NT9. Apesar do

grande nmero de crticas a Plato ao longo de sua vida, Nietzsche sempre

respeitou muito o filsofo, em uma carta a Paul Deussen ele considera Plato o

seu grande oponente10: talvez esse antigo Plato seja meu verdadeiro grande

inimigo? Mas como eu estou orgulhoso de ter tal adversrio!11.

Como sabemos o pensamento de Nietzsche tambm foi influenciado

intensamente por Schopenhauer. Sua admirao pelo filsofo pessimista era

6 Infere-se o mesmo sobre Arthur Schopenhauer. 7 provvel que Emerson o autor que ele leu e releu mais do que qualquer outro (BROBJER, 2008, P.24). Traduo nossa de: Emerson is likely to be the author he read and reread more than any other. 8 BROBJER, 2008, p.22-25. 9 BROBJER, 2008, p.25-28. 10 BROBJER, 2008, p.28. 11 Traduo nossa de: vielleicht ist dieser alte Plato mein eigentlicher groer Gegner? Aber wie stolz bin ich, einen solchen Gegner zu haben!. Disponvel em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1887,954. Acesso em: 25/09/2017.

http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1887,954

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tamanha que persuadiu seus amigos a lerem-no, se referia a ele como um

semideus, tratava seus crticos como inimigos pessoais e, entre 1865 e 1866,

incorporou as ideias de Schopenhauer em seu cotidiano demonstrando uma

posio pessimista e negadora da vida. Ele tinha a inteno de, a partir de

Schopenhauer, fazer a filosofia influenciar os escritos filolgicos. Entre 1867 e

1868 surgiram as primeiras crticas a Schopenhauer e tambm, provavelmente, a

primeira anlise filosfica e independente de Nietzsche, porm, o afastamento do

pensamento de Schopenhauer aconteceu apenas nos anos de 1875 e 1876. Com o

rompimento, Nietzsche tornou-se muito mais ctico em relao metafsica e

arte e mudou suas vises sobre tica e pena, mas, mesmo assim, continuando a ler

e a respeitar o filsofo12.

O interesse intensivo de Nietzsche por filosofia aconteceu a partir da

leitura de duas obras: O Mundo como Vontade e Representao, de

Schopenhauer, e a Histria do Materialismo, de Friedrich Albert Lange (1828-

1875).13. No se sabe como Nietzsche conheceu Lange, mas sua primeira meno

a ele de 1866. Apesar dos comentrios entusiasmados sobre Lange em suas

cartas, Nietzsche nunca o mencionou em obras publicadas. Tanto Lange quanto

Schopenhauer foram de grande importncia para o pensamento de Nietzsche na

segunda metade da dcada de 1860. Ambos construram seus trabalhos a partir da

filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), que tambm se torna uma grande

influncia para Nietzsche, e fazem com que este se torne cada vez mais

insatisfeito com a filologia. As influncias de Lange em Nietzsche so mais fortes

nos anos de 1866 e 1868 e ele tornou-se crtico ao autor apenas entre os anos de

1884 e 188514.

A ltima grande influncia de sua juventude foi Kant. O chins de

Knigsberg, como Nietzsche costumava cham-lo, era o ponto de partida para os

filsofos alemes modernos e se tornou o principal alvo das crticas de Nietzsche

filosofia moderna. Porm, durante sua juventude15 e sua primeira fase Nietzsche

tinha grande estima pelo filsofo16. As oposies entre essncia e aparncia,

12 BROBJER, 2008, p.28-32. 13 BROBJER, 2008, p.28 e 29. 14 BROBJER, 2008, p.32-36. 15 Como jovem Nietzsche consideramos aqui Nietzsche antes da sua primeira fase. 16 Nietzsche leu sobre Kant a partir de vrios intelectuais e ao longo de toda a sua vida, entre eles: Schopenhauer, Lange, berweg, Kuno Fischer, Deussen, Romundt, Otto Kohl, Julius Bahnsen,

13

fenmeno e coisa em si, e representao e vontade influenciaram a dicotomia que

Nietzsche viu entre o apolneo e o dionisaco explicitadas no NT17.

O grande marco de separao entre o jovem Nietzsche e sua primeira fase (1869-

1874) foi tornar-se professor universitrio de filologia clssica no ano de 1869.

Nesse perodo suas leituras filosficas foram muito semelhantes as que ele tivera

quando estudante universitrio nas cidades de Bonn e Leipzig18. Schopenhauer,

Lange e Kant, por exemplo, influenciaram muito o pensamento de Nietzsche de

1865 a 1874. Ou seja, eles influenciaram o jovem Nietzsche e a sua primeira fase.

No perodo ele cogitou fazer doutorado em filosofia, para estudar esses trs

filsofos. Outra inteno sua era ensinar aos seus alunos a Weltanschauung (Viso

de Mundo) de Schopenhauer19. Essas foram as continuidades com o seu

pensamento enquanto professor universitrio, mas houve tambm algumas

mudanas. Ele preparou palestras e aulas; terminou o ndex do peridico

Rheinisches Museum fr Philologie; aumentou suas leituras sobre filosofia

clssica, em especial Plato; tinha menos tempo para Schopenhauer e

schopenhaurianos, exceto por Hartmann; leu muito sobre os aspectos filosficos

da tragdia grega e as vises de Aristteles sobre a mesma20.

A leitura e influncia de Hartmann ocorreu aps seu ingresso na Basilia.

Nietzsche leu suas obras intensivamente em 1869 e 1870, em 1873 e 1874 e

provvel que tenha lido tambm em 1887 e 1888. Muitas das influncias e

discusses de Nietzsche sobre pessimismo esto relacionadas a Hartmann, que,

influenciado por Hegel, Kant e Schopenhauer, era pessimista e apreciador da

metafsica e foi uma das primeiras fontes de Nietzsche que fazia srias crticas ao

darwinismo. Nietzsche tornou-se um crtico de Hartmann relativamente cedo21.

Ao ler a obra de Hartmann Phnomenologie des sittlichen Bewusstseins:

Prolegolena zu jeder knftigen Ethik ele perde todo o repeito por Hartmann.

Johann Zllner, Afrikan Spir, Rudolf, Lehmann, Otto Liebmann, Philipp Mainlnder, Eduard von Hartmann, etc. Porm, no temos nenhuma prova de que ele chegou a ler alguma obra do filsofo, exceto pela Critica da Faculdade do Juzo. (BROBJER, 2008, P.36 e 39). 17 MACHADO, 2002, p.10. 18 BROBJER, 2008, p.51. 19 BROBJER, 2008, p.39. 20 BROBJER, 2008, p. 39 e 51. Trs anos aps a publicao de o NT Nietzsche deu uma nova nfase aos estudos de filosofia antiga, estudando os pr-socrticos e Aristteles (BROBJER, 2008, p.57). 21 BROBJER, 2008, p.53. Uma das crticas era pelas tendncias no schopenhaurianas (como as hegelianas) em sua filosofia, no expressando o suficiente sua gratitude e dependncia a Schopenhauer (BROBJER, 2008, p.54).

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Nietzsche tambm leu, nesse perodo, as obras de seu colega na Basileia, Gustav

Teichmller. As leituras sobre Teichmller ocorreram, na verdade, durante toda a

sua vida, mas ele nunca discutiu ou expressou sua opinio sobre o filsofo22.

Seu grande apreo pelos filsofos fez com que Nietzsche tentasse se

transferir da cadeira de filologia para a de filosofia em 1971. Ele escreveu s

autoridades da Basileia afirmando interesse em filosofia moderna, com especial

nfase em Kant e Schopenhauer23.

A ampliao de leituras no campo da filosofia moderna entre 1872 e 1875

acabou resultando no escrito das suas Unzeitgemige Betrachtungen

(Consideraes Intempestivas) acerca de diferentes temas. Nesse perodo leu

David Strauss, tema de sua PI. Estudou trabalhos relacionados histria e

filosofia da Histria, como Hamann, Lichtenberg, Hartmann, Hegel, Schiller,

Emerson e David Hume, para a sua SI. Na TI seus estudos se voltaram para

Schopenhauer, Hartmann e Carl Fuchs. Nietzsche tambm leu nesse perodo

kantianos e neo-kantianos, geralmente a partir de interesses de Schopenhauer.

Alm de suas leituras schopenhauerianas, kantianas e gregas, Nietzsche tambm

leu, em seu primeiro perodo, Marcus Aurelius, alm de muitos autores que

discutiam o esttico, como o dramaturgo austraco Franz Grillparzer, Hamann e R.

H. Lotze24.

As marcas da filosofia de Schopenhauer, somadas s da msica de Richard

Wagner (1813-1883), estiveram presentes na primeira fase com tanta intensidade

que se consuma denomin-la como do pessimismo romntico25.

Os livros e pensamentos da segunda fase (1875-1882) de Nietzsche no

sero objetos do nosso trabalho, porm consideramos fundamental apresentar os

principais rompimentos e influncias de Nietzsche nesse perodo por dois

motivos: o primeiro que algumas cartas e fragmentos postumamente publicados

que apresentamos ao longo do nosso trabalho so provenientes desse perodo; o

segundo que h conceitos desenvolvidos na segunda fase que permanecem na

terceira fase de Nietzsche e, assim, so fundamentais para a nossa pesquisa.

22 BROBJER, 2008, p.52-54. 23 BROBJER, 2008, p.37. 24 BROBJER, 2008, p.60. 25 MARTON, 1990, p.27.

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Entre os anos de 1875 a 1876, Nietzsche teve sua primeira crise de

pensamento, o que acaba fazendo com que ele rompesse com Schopenhauer, Kant

e seu at ento grande amigo Wagner. Nietzsche estava ciente dessa crise e a

manifestava em cartas, bem como em seu livro HDH. Nesse perodo ele comeou

a ler sobre cincia natural, antropologia e economia poltica. Sua principal

influncia filosfica no perodo foi seu amigo Paul Re (1849-1901). Nietzsche

foi apresentado a Re no ano de 1873 por Heinrich Romuldt, porm, o interesse

de Nietzsche aumentou apenas quando leu o livro de Re Observaes

Psicolgicas (Psychologische Beobachtungen). Quando j eram amigos, Re

juntou-se a Nietzsche no famoso Bayreuth Festspielhaus, em agosto de 1876, e

tambm o deixou junto com o filsofo. Re tomou o lugar que Wagner ocupava

na primeira fase de Nietzsche, o de amigo mais prximo. Foi a partir de ento que

Nietzsche passou a escrever em aforismos, provavelmente por influncia de Re.

Ele influenciou Nietzsche a pensar a filosofia de forma mais positivista (e

comtiniana), o filsofo tambm aprovava a forma antimetafsica e pr-darwiniana

dos escritos de Re. A amizade entre eles (bem como a segunda fase de

Nietzsche) termina no ano de 1882, por causa da rivalidade entre ambos pela

jovem russa Lou Andreas-Salom26.

Outros aspectos desse perodo que merecem ser desacatados so que

Nietzsche muda seu entusiasmo inicial pelos temas: metafsica, idealismo,

pessimismo, arte e esttica. Ele torna-se mais ctico, coloca a cincia acima da

arte e preza o esclarecimento. Nietzsche simptico a Voltaire, para quem dedica

HDH. Suas leituras so menos metafsicas e estticas e mais histricas e

antropologico-filosficas. A partir de 1875 passa a ter interesse pelos franceses e

por filosofia oriental e asitica27. Dentre as influncias e/ou leituras de Nietzsche

nesse perodo esto Georg Christoph Lichtenberg, Eugem Dhring28, Philipp

Mainlnder29, Afrikan Spir30, Alfons Bilharz, filsofos britnicos, Dans Lassen

26 BROBJER, 2008, p.40-42. 27 BROBJER, 2008, p.61-66. 28 Foi um filsofo positivista, dentro das suas influncias estavam Schopenhauer, Comte e Feuerbach. Este influenciou muito Nietzsche em sua segunda fase. Foi de Dhring que Nietzsche retira o conceito de ressentimento. Na terceira fase Nietzsche rejeitou o autor de forma explicita em GM.(BROBJER, 2008, p.66-70). 29 Nietzsche tambm leu muito neste perodo. Ele era um schopenhauriano que afirmava que abstinncia sexual e suicdio eram as melhores solues para o homem e, assim, acaba cometendo suicdio. Ele afirmou que deus morreu e um forte candidato a ter influenciado a afirmao de Nietzsche que Deus est morto. (BROBJER, 2008, p. 69-70).

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Martensen, Kierkegaard31, Josef Pooper, os estoicos, Epiteto e Marco Aurlio, J.J.

Baumann, Lecky, Otto Liebmann, Otto Caspari32, Spinoza33 e Harald Hffding34.

Os grandes conceitos de Eterno Retorno, Amor Fati, Zarathustra, Vontade de

Poder, bermensch e Deus tambm so trabalhados nessa segunda fase35. A

crena de Nietzsche na cincia, enquanto meio de libertao das convices,

expressada neste perodo fez com que este fosse denominado como perodo do

positivismo ctico36.

Mesmo que Nietzsche tivera uma grande mudana entre sua primeira e sua

segunda fase, o momento em que podemos ver o maior break de seu pensamento

foi certamente cerca de 1876, como podemos ver abaixo:

[...] o Nietzsche maduro considerou o sentido histrico como mais ou menos necessria (mas no suficiente) exigncia para um profundo conhecimento da cultura, mas tambm nota que este ingrediente pode ser perigoso e prejudicial. Este Nietzsche, em oposio com sua viso anterior, considera o sentido histrico ou a sensibilidade e o conhecimento da histria como importante, at mesmo necessrio, aps o meio da dcada de 1870 [...]37.

Pela delimitao de tempo, no tornamos as obras da segunda fase de

Nietzsche como objeto de nossas anlises, porm, consideramos que o estudo

desta tambm seriam uma grande contribuio para as reflexes acerca de como

Nietzsche v o pensamento histrico.

Como j salientamos, aps romper com Re, Nietzsche inicia a terceira

fase de seu pensamento. Quanto mais Nietzsche amadureceu, menores foram suas

influncias filosficas. Este perodo, denominado como o da reconstruo da obra,

30 Nunca mencionado publicamente por Nietzsche. (BROBJER, 2008, p.71) 31 Apesar de Nietzsche ter conhecimento de seu pensamento e sua escrita, ele nunca leu nenhum texto completo de Kierkegaard (BROBJER, 2008, p.74). 32 A talvez mais importante fonte de inspirao para a ideia de eterno retorno. 33 Nietzsche teve um interesse intenso em Spinoza, com quem fez vrias descobertas, como as do eterno retorno, amor fati e foi quando desenvolveu o conceito de vontade de poder. Apesar disso, no existem evidncias de que Nietzsche leu Spinoza algum dia, suas ideias sobre Spinoza vem do autor Kuno Fischer (BROBJER, 2008, p.77-82). 34 BROBJER, 2008, p.63-82. 35 BROBJER, 2008, p.82-89. 36 MARTON, 1990, p.27. 37 BROBJER, 2004, p.317. Traduo nossa de: [...] the late Nietzsche regarded historical sense as a more or less necessary (but not sufficient) requirement for a profound knowledge of culture, but which also notes that this necessary ingredient can be dangerous and detrimental. That Nietzsche, in opposition to his earlier view, regarded historical sense or sensibility and knowledge of history as important, even necessary, after the mid-1870s [...].

17

foi no qual Nietzsche expressou maior independncia intelectual38.Em seu terceiro

perodo no houve nenhuma influncia to positiva como as anteriores. Dos

intelectuais que abordamos como principais influncias de Nietzsche at ento, o

nico em relao ao qual ele no se tornou ctico foi Emerson. Desde que se

afastara de sua ctedra, em 1879, at o ano de 1883, ele aprendeu a ler francs

fluentemente. Com isso, comeou a ler sobre literatura, cultura e filosofia

francesa. Na terceira fase Nietzsche tornou-se crtico das posies filosficas,

inclusive algumas que ele defendia anteriormente, e tambm da filosofia inglesa39.

Dentro de sua terceira fase, do ano de 1883 at o ano de 1886, ele fez

muitas leituras e releituras filosficas, tais como Schopenhauer, Emerson,

Dhring, Mainlnder, Lange, Montaigne, Hartmann, Rolph, Guyau e Re.

Nietzsche volta a interessar-se por Du Bois-Reymond, a quem enviou sua GM,

como tambm pelos fundadores do positivismo crtico (critical positivism),

Richard Avenarius e Ernst Mach. Apesar das crticas feitas a ambos os autores, h

aspectos de obras de Nietzsche, como em CI, GM e BM, que mostram um possvel

estmulo dos escritos de Avenarius e Mach. Nietzsche tambm enviou uma cpia

de GM para Mach40.

Delineados os principais aspectos das trs fases, gostaramos tambm de

abordar o que aconteceu aps a partir de 1889: como bem sabemos no incio desse

ano Nietzsche sofreu um colapso mental e foi neste perodo que suas obras

comearam a se tornar famosas. A pessoa responsvel por sua fama foi sua irm,

Elisabeth Fster-Nietzsche. Em 1885 Elisabeth ela casou-se com o antissemita

Bernhard Fster e eles mudaram-se para o Paraguai na inteno de fundar uma

colnia ariana, La Nueva Germnia. O empreendimento fracassa e por causa disso

Fster comete suicdio. Com isso Elisabeth retorna Alemanha onde Nietzsche e

seus escritos se encontravam sob tutela de sua me. Elisabeth consegue a custdia

dos escritos do irmo e inicia uma srie de promoes a imagem do filsofo.

Fster-Nietzsche criou um arquivo para o irmo, o Nietzsche-Archiv, onde

reuniu uma srie de discpulos e admiradores para o filsofo. Chegou-se a

projetar, em 1911, um templo para Nietzsche, todavia a obra nunca se

38 MARTON, 1990, p.27 39BROBJER, 2008, p.42. 40 BROBJER, 2008, p.90-95.

18

concretizou41. Ela tambm publicou uma obra que denominou como pstuma,

chamada A Vontade de Potncia42. Por muito tempo se acreditou que a VP era a

obra capital de Nietzsche. Porm, em uma visita ao arquivo, localizado em

Weimar, Karl Schlechta descobre que essa obra nunca existiu. O livro uma

compilao de vrios fragmentos de Nietzsche publicados fora da ordem

cronolgica, com a inteno de apresentar Nietzsche como um filsofo

antissemita43. Para legitimar seu projeto, Elisabeth ainda falsificou cartas de

Nietzsche Malwida von Meysenburg e destruiu as originais. A deturpao das

obras teve inmeras consequncias, como a ressignificao do conceito de

bermensch, dando a entender que se remetia superioridade da raa ariana44.

Schlechta descobriu a deturpao nos escritos do filsofo na dcada de

1950, porm, no foi ele quem fez o trabalho filolgico de pesquisar o que foi

escrito por Nietzsche e o que eram apenas falsificaes de sua irm. O trabalho

rduo de organizar uma edio crtica das obras completas (Kritische

Gesamtausgabe Werke) de Nietzsche foi empreendido por Giorgio Colli e

Mazzino Montinari, com a colaborao de Mller-Lauter45.

A disseminao das ideias de Nietzsche no sculo XX no aconteceu

apenas por influncia de Elisabeth, houve no sculo XX um boom de escritos

sobre Nietzsche46. Ernst Bertram, por exemplo, escreveu uma famosa biografia

sobre Nietzsche tentando mitificar a imagem do filsofo alemo47. As ideias de

Nietzsche tambm influenciaram de forma marcante vrios grupos e movimentos

at 1914 (socialistas, anarquistas, comunistas, feministas, literatos etc.)48.

No foram todos os amigos de Nietzsche que se uniram a esta tentativa de

mitificao a todo custo. Diferente de nomes como Johann Heinrich Kselitz49,

41 NOLTE, 1995, p.130. 42 MARTON, 2010. 43 No foi necessrio apresentar argumentos contrrios s tentativas de Elisabeth na introduo, pois eles sero facilmente encontrados em inmeras afirmaes de Nietzsche ao longo da nossa dissertao. 44 MARTON, 2010. As vinculaes de Nietzsche com o Nazismo fez com que sua irm fosse enterrada com as honras nacionais, em 1935. 45 MARTON, 2010. 46 Uma srie de biografias sobre Nietzsche foram escritas aps a sua morte. Dentre elas, sua irm escreveu a triologia Das Leben Friedrich Nietzsche (1906), Der Junge Nietzsche (1912) e Der Einsame Nietzsche (1914), seu grande amigo Franz Overbeck escreveu La Vida Arrebatada de Friedrich Nietzsche (2016) e Lou Salom escreveu Nietzsche em Suas Obras (1992). 47 BERTHAM, 1920. 48 NOLTE, 1995. 49 Tambm conhecido por seu pseudnimo: Peter Gast.

19

houve os que mostraram resistncia s ideias de Elisabeth. Longe da tentativa de

mitificar o filsofo, seu amigo Franz Overbeck escreve uma biografia sobre

Nietzsche com distanciamento do clculo anedtico orientado ao enaltecimento

da lenda50. Overbeck desaprova a imagem imaculada de Nietzsche e, com isso,

entra em atrito com Kselitz e Fster-Nietzsche, negando-se a entregar as cartas

de Nietzsche que possua51. Explicados, em linhas gerais, os aspectos intelectuais

fundamentais do pensamento intelectual de Nietzsche para nossa dissertao,

mencionaremos a seguir a documentao trabalhada em nossa dissertao.

As principais fontes do nosso trabalho esto presentes na Edio Crtica

Digital das Obras Completas e Cartas de Nietzsche (eKGWB)52 do site Nietzsche

Source53. Nela se encontram as obras publicadas, as publicaes privadas, os

manuscritos autorizados, os escritos postumamente publicados, os fragmentos

postumamente publicados e as cartas de Nietzsche. Todas as vezes que utilizamos

a plataforma como principal fonte para um escrito de Nietzsche em nosso texto,

traduzimos o trecho utilizado para o portugus e colocamos a mesma passagem

em alemo como nota de rodap.

Como o nome de Nietzsche hoje difundido no Brasil54 e contamos com

diversas tradues de suas obras publicadas em portugus, optamos pela leitura e

anlise dessas em nosso idioma e, quando se julgou necessrio, conferimos os

fragmentos utilizados. Consultamos eles em alemo no Nietzsche Source. As obras

publicadas do filosofo que utilizamos em nosso trabalho foram: O Nascimento da

Tragdia (1872), a Segunda Considerao Intempestiva (1874), Assim falou

Zaratustra (1883-1884), Para Alm do Bem e do Mal (1886), Genealogia da

Moral (1887), O Caso Wagner (1888), Crepsculo dos dolos (1888), O Anticristo

(1888), Ecce Homo (1888) e Nietzsche Contra Wagner (1888).

O nosso segundo conjunto de fontes foram correspondncias e pequenos

textos publicados por Nietzsche e por seus contemporneos. Tivemos duas

possibilidades de acesso s cartas de Nietzsche. A primeira e principal foi o site

Nietzsche Source e a segunda diz respeito aos seis tomos de cartas do filsofo

50 RIOS. In.: OVERBECK, 2009, p.13. Traduo nossa de: distanciamiento del clculo anecdtico orientado al enaltecimiento de la leyenda. 51 PETER; BESTEBREURTJE, 2007. In.: OVERBECK, 2008, p.XXXIX. 52 Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe. 53 http://www.nietzschesource.org/#eKGWB 54 Principalmente aps a fundao do Grupo de Estudos Nietzsche por Scarlett Marton no ano de 1996. Disponvel em: http://gen.fflch.usp.br/homeport. Acesso em: 01/10/2017.

http://gen.fflch.usp.br/homeport

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traduzidas para o espanhol55. Ainda estudamos as cartas de seu amigo Jacob

Burckhardt56; bem como as correspondncias trocadas entre o telogo e amigo de

Nietzsche, Franz Overbeck57 e o historiador Heinrich von Treitschke58.

As ltimas fontes foram seis textos polemizando a obra NT. Todos eles

esto presentes no livro organizado por Roberto Machado, denominado Nietzsche

e a polmica sobre O Nascimento da Tragdia. So eles duas resenhas e uma carta

escrita pelo amigo de Nietzsche e fillogo Erwin Rohde, duas crticas ao livro

feitas por Ulrich Wilamowitz-Mllendorff e uma carta aberta a Nietzsche escrita

por Wagner.

A diviso de captulos da nossa dissertao aconteceu como explicitaremos

a seguir. No primeiro captulo trabalhamos com as obras NT e SI e com

comentrios sobre ambas feitas por intelectuais do perodo e pesquisadores no

tema. No segundo captulo trabalhamos o conceito de modernidade e o conceito

de histria no sculo XIX, este ltimo muitas vezes ligado ao conceito de

historicismo. Tentamos tambm identificar as relaes de Nietzsche com trs

historicistas de sua contemporaneidade: Burckhardt, Ranke e Treitschke. No

nosso terceiro captulo apontamos, a partir de Brobjer, certos equvocos que

podemos cometer a partir da leitura de Nietzsche e as autocrticas do filsofo em

sua maturidade em relao aos seus escritos de juventude relacionados histria.

Desenvolvemos a narrativa a partir de trechos de suas obras publicadas em sua

ltima fase: BM, GM, CW, CI, OA, EH e NW. Nossa inteno foi compreender as

reconfiguraes do conceito de histria no momento da sua produo intelectual.

55 NIETZSCHE, 2005b, NIETZSCHE, 2007a, NIETZSCHE, 2009b, NIETZSCHE, 2010, NIETZSCHE, 2011, NIETZSCHE, 2012c, 56 BURCKHARDT, 2003. 57 No tivemos acesso a todas as cartas de Overbeck, do telogo utilizamos o tomo 8 do Werke und Nachla. Neste encontram-se 189 das 3536 cartas de Overbeck. A seleo de carta aconteceu a partir de critrio subjetivo dos editores, que consideraram as situaes biogrficas mais importantes e os principais escritos de Overbeck. A amizade central com Nietzsche foi levada em considerao. (PETER; BESTEBREURTJE. In.: OVERBECK, 2008, p. XXXIX). 58 Infelizmente tambm no tivemos acesso a edio completa das cartas de Treitschke. Trabalhamos aqui com o terceiro tomo de suas cartas. Neste encontram-se o Terceiro Livro, intitulado A poca da declarao histrica e poltica da Confederao Alem do Norte.Novo Episdio. (Die Zeit des Norddeutschen Bundes historische und politische Aussge. Neue Folge.), e o Quarto Livro, intitulado No novo Imprio A histria alem (Im neuen Reich Die deutsche Geschichte) (TREITSCHKE, 1920).

21

1. O Jovem Nietzsche e a Historia

O principal objetivo da nossa dissertao discutir qual foi o lugar da

histria e da historiografia na terceira fase da produo filosfica de Nietzsche

(1882-1888). Para compreendermos esses conceitos nesse perodo crucial

estudarmos os escritos do filsofo em sua primeira fase, pois, como se sabe, o

texto mais extenso de Nietzsche dedicado histria, denominado Segunda

Considerao Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da histria para a vida,

foi publicado no incio de sua produo intelectual. Sendo assim, dedicaremos

uma parte da dissertao primeira fase (1872-1876) de Nietzsche.

Porm, antes de discutirmos este perodo, acreditamos ser fundamental

mencionar aqui um escrito de Nietzsche que precede sua primeira fase, mas

tambm leva a palavra histria no nome: um pequeno texto intitulado Fado e

Histria59. Ele foi escrito quando Nietzsche tinha apenas dezessete anos, em 1862.

Segundo o prprio autor, sua funo seria a de emitir, sobre a religio e o

cristianismo, um juzo imparcial e adequado aos tempos60. curioso que

Nietzsche tenha exaltado neste texto um esforo de imparcialidade, algo que se

tornar alvo de suas crticas quando se referir aos historiadores em sua SI, como

veremos adiante.

Apesar do ttulo, a discusso no semelhante da SI61. Suas inquietaes

aqui so acerca do cristianismo, suas discusses sobre a histria giram em torno

do religioso. Ele faz afirmaes como: a moral o resultado de uma evoluo

geral da humanidade e que por dois mil anos a humanidade foi desencaminhada

por uma quimera62. Suas crticas no se limitam ao cristianismo, mas se

estendem a outros dois ideais de massa: as ideias sociais e comunistas63.

Nietzsche faz um elogio do indivduo e da livre vontade ao longo de todo o texto.

H ainda, ao final, uma pequena anotao do mesmo ano, onde se apresenta uma

ideia que Nietzsche desenvolver e aprofundar na escrita do NT, a afirmao de

59 NIETZSCHE, 1998. A verso que utilizamos aqui se encontra no apndice de sua GM e o texto ligeiramente condensado, tal como foi apresentado por Richard Blunck em 1953, em sua biografia do jovem Nietzsche (p.163). 60 NIETZSCHE, 1998, p.163. 61 No ttulo deste Nietzsche optou por escrever a palavra histria em alemo como Geschichte. Em sua SI ele utilizou Historie. 62 NIETZSCHE, 1998, p.164. 63 NIETZSCHE, 1998, p.166. Nietzsche continuou criticando as massas durante toda a sua vida.

22

que: O fato de Deus se ter feito homem indica apenas que o homem no deve

buscar no infinito sua felicidade, mas fundar na Terra o seu cu64.

O filsofo tambm menciona a Histria Universal como um resultado de

verdades dos diferentes mundos e a considera impossvel para o homem. Ele diz,

ressaltando o papel do historiador, que o grande historiador e o grande filsofo

podem tornar-se profetas, pois ambos fazem abstrao dos crculos interiores

para os exteriores65. O elogio aos historiadores no continuar por muito tempo,

como veremos em seu escrito de 1874.

Em sua primeira fase, Nietzsche publicou: O NT (1872-1874), suas quatro

Consideraes Intempestivas66 e um pequeno texto denominado Uma palavra de

ano novo ao editor do semanrio O Novo Imprio67. Para compreendermos

melhor o que perpassa a SI, acreditamos ser fundamental a anlise de outros de

seus textos. Uma dessas obras que nos ajuda a entender o seu principal escrito

sobre histria , sem dvida, o NT, de modo que as discusses sobre esta obra

constituiro a primeira seo deste captulo.

Entretanto, antes de partimos para a anlise do NT, consideramos

igualmente importante fazer meno ao contexto histrico do perodo.

Contextualizar Nietzsche contribui para o entendimento de seus ideais. Diferente

da maioria dos pases europeus, a Alemanha teve seu territrio unificado apenas

no ano de 1871. A Unificao da Alemanha e, a partir dela, a elaborao de um

sentimento nacional comum, influenciaram a escrita das duas primeiras obras do

nosso autor. J no ano de 1866, com a vitria da Prssia sobre a ustria na

Batalha de Kniggrtz (1866), surgiram reflexes, por vezes divergentes, sobre a

criao de uma pequena Alemanha68. Porm, a ustria no era o nico pas que

64 NIETZSCHE, 1998, p.168. 65 NIETZSCHE, 1998, p.164-165. 66 Suas quatro consideraes so, respectivamente, David Strauss, o Devoto e o Escritor (1873), Da Utilidade e Desvantagem da Histria para a Vida (1874), Schopenhauer como Educador (1874) e Richard Wagner em Bayreuth (1876). 67Traduo nossa de: Ein Neujahrswort an den Herausgeber der Wochenschrift Im neuen Reich. Theodor Purschmann escreveu um livro onde chama Richard Wagner de louco. Apoiando esta ideia, Alfred Dove publicou um artigo no peridico Im neuen Reich. O texto de Nietzsche uma resposta a Dove (SCHABERG, 1995, p.29-30). Ele foi assistente de Ranke e organizador de suas obras completas. A polmica entre Dove e Nietzsche contribuiu para a forma depreciativa com que Nietzsche descreve Ranke em seus escritos. Desenvolveremos a relao entre Nietzsche e Ranke no prximo captulo. 68 Eram vrios os que discordavam de uma Alemanha unida a partir da Prssia de Otto von Bismarck. O sentimento antiprussiano era predominante no sul e estava presente em vrios grupos, como os socialistas e radicais. Contrrios a estes, estavam os nacionais liberais e seu pensamento

23

impedia Bismarck de construir um Imprio Alemo, a Frana de Napoleo III

tambm causava empecilho, pois o imperador francs intencionava impor a

hegemonia da Frana sobre a Europa ocidental. No vendo como alternativa

conter a Prssia nem conceder seu apoio, Bismark escolheu adotar uma rota de

coliso com a Prssia e tentar interromper qualquer agregao adicional de

poder69. O primeiro abalo entre os pases acontece quando Bismarck, aps

consultar o parlamento da Alemanha do Norte, no autorizou que Napoleo III

comprasse Luxemburgo, abalando as relaes entre a Prssia e a Frana70. As

duas potncias se indispuseram novamente pouco tempo depois, o que acabou

fazendo com que, em 1870, a Frana declarasse guerra Prssia71.

A Guerra Franco-Prussiana foi apoiada por todos os estados que

constituiriam, no ano seguinte, a Alemanha. Depois de uma srie de combates

sangrentos em Lorena, uma parte do exrcito francs sob o comando do marechal

Bazaine foi capturada na cidade fortaleza de Metz72. Os franceses se rendem,

Napoleo III capturado com 100 mil prisioneiros de guerra. Aps a guerra, o

novo imprio alemo formado em 1871 e Wilhelm I proclamado Kaiser73. O

novo pas se caracterizava como

um estado constitucional nacional com um parlamento eleito por sufrgio universal masculino, que consistia de uma federao pouco rgida de estados quase independentes, cuja totalidade era dominada pelo estado militar prussiano 74

Por ser um pas com formao recente, a Alemanha no possua bandeira

nem hino nacional e os alemes no partilhavam do sentimento de pertencimento

de que primeiro a Alemanha deveria ser unida, e somente ento a questo constitucional poderia ser resolvida. Bismarck considerava a batalha de 1866 apenas uma soluo temporria. O problema alemo ser resolvido de forma definitiva quando, depois que conseguiu o apoio dos nacionais liberais, se criou o Estado-nao. Este seria regido por um sistema monrquico e conservador, dominado pela Prssia. (KITCHEN, 2013, p.152-154). 69 KITCHEN, 2013, p.154-155. 70 A venda s aconteceria, segundo o rei da Holanda, com o apoio da Prssia. (KITCHEN, 2013, p.155). 71 KITCHEN, 2013. 72 Nietzsche participou desta guerra como enfermeiro voluntrio em Metz, como mencionaremos adiante. 73 KITCHEN, 2013, p. 158-160. 74 KITCHEN, 2013, p.161.

24

a uma ptria comum, inclusive cada estado tinha sua prpria constituio e

administrao75.

Com a Unificao da Alemanha houve a necessidade de construir uma

identidade alem comum para todos os estados. Diversos intelectuais fizeram suas

contribuies para esta identidade, inclusive Nietzsche. neste contexto poltico

mais amplo que ele escreveu o NT e a SI. Como perceberemos a seguir, Nietzsche,

que era favorvel unificao, fez em ambos os livros sua proposta para a nova

sociedade alem.

1.1 A polmica em torno da obra O Nascimento da Tragdia

Nossa anlise do NT ser dividida em duas partes. Primeiro, abordaremos

algumas passagens especficas da obra, com o intuito de compreender os

conceitos e as ideias principais da mesma. Em um segundo momento, atentaremos

para a polmica que esta obra suscitou entre os fillogos contemporneos de

Nietzsche.

Quando nos deparamos com este escrito, encontramos trs ideias principais76.

A primeira uma explicao da origem, composio e finalidade da arte trgica

grega77. Para Nietzsche, a tragdia grega, ou tragdia tica, resultado da soma

de duas divindades artsticas: Apolo e Dionsio78. Estes nomes se manifestam em

sua concepo artstica, no em ideias, mas nas figuras enrgicas e claras de seu

mundo mitolgico79. Na maioria das vezes que Nietzsche se refere a estas

figuras, as chama de foras.

A principal caracterstica da fora dionisaca a embriaguez, e com ela

esto a luxria, a crueldade e a desenfreada indisciplina sexual. O culto a este

deus leva ao que Nietzsche chama de Uno-Primitivo. Por outro lado, a fora

apolnea indica um mundo dos sonhos, do prazer e da alegria, o indivduo vive o

Principium individuations. Para Nietzsche a reconciliao de ambas as foras, que

75 KITCHEN, 2013, p.161. 76 MACHADO, 2005, p.7. 77 MACHADO, 2005, p.7. 78 NIETZSCHE, 2005, p.27. 79 NIETZSCHE, 2005, p.27.

25

so opostas, o momento mais clebre da histria do culto grego80. O filsofo

as v como complementares. Para ele: Apolo no conseguia viver sem

Dionsio!81, como podemos ver a seguir:

[...] consideramos o apolneo e seu contraste, o dionisaco, como foras de arte que emergem da prpria natureza sem mediao do artista humano, e nas quais se contentam por enquanto e de modo direto os seus impulsos artsticos, por um lado como o mundo configurado pelos sonhos, cuja perfeio se encontra sem nenhuma semelhana com a elevao intelectual ou com a formao artstica individual, por outro lado, como verdade embriagadora, que tambm no leva em considerao o indivduo, mas que chega a procurar destru-lo e redimi-lo por um sentimento mstico de unio.82

Elas atuaram, segundo Nietzsche, de forma salutar entre os gregos. O

filsofo conta uma lenda onde o rei Midas persegue Sileno, companheiro de

Dionsio, e o pergunta sobre o que mais conveniente para o homem. Sileno

responde: O melhor para ti inacessvel: no ter nascido, no ser, ser nada

em segundo lugar, porm, ... morrer em breve.83 A partir desta resposta trgica,

os gregos so obrigados a criar os seus deuses. Com isso, eles no apenas podem

viver, mas conseguem inverter a resposta de Sileno e o pior para eles a morte

prxima, o pior em segundo lugar o fato de terem de morrer alguma vez84. Esta

a harmonia da vida para Nietzsche e este o equilbrio entre a fora apolnea e a

fora dionisaca. A tragdia grega o coro dionisaco, que sempre se descarrega

num mundo apolneo de imagens85.

Nietzsche volta a esta ideia na SI, onde ele defende que, ao trazer a histria

diante do tribunal, no se deve julgar se um acontecimento do passado foi justo ou

no, mas o quanto ele contribui para a vida no presente. Pois a vida nunca parte de

uma fonte de conhecimento. Para Nietzsche at o julgamento da justia seria

injusto. Assim ele volta a Sileno e afirma que tudo o que surge merece perecer.

Por isto, seria melhor que no tivesse surgido86. No apenas nesse curto trecho,

mas, ao longo desta obra, encontramos aproximaes com o NT. Isso sugere que

80 NIETZSCHE, 2005, p.33. 81 NIETZSCHE, 2005, p.39 82 NIETZSCHE, 2005, p.31. 83 NIETZSCHE, 2005, p.35. 84 NIETZSCHE, 2005, p.36. 85 NIETZSCHE, 2005, p.55. 86 NIETZSCHE, 2003, p.30

26

tenha havido influncia deste escrito na SI. Outro indcio que o renascimento da

tragdia, quando for abordado na SI, o foi a partir da proposta de uma Histria

Mtica.

Segundo Machado, a segunda ideia importante de O nascimento da

tragdia a denncia da morte da arte trgica perpetrada por Eurpedes87. Para

Nietzsche a tragdia grega pereceu de suicdio e a pessoa responsvel por isso

teria sido Eurpedes88. O problema foi que este, disputando com squilo, fez o

povo aprender a observar, discutir, tirar concluses artisticamente e com as mais

sagazes sofisticaes89: houve uma mudana na linguagem pblica, a tragdia

passou a ser pensada de forma racional.

Hoje concebemos Eurpedes como um dos trs grandes nomes da tragdia

grega, ao lado dele esto squilo e Sfocles90. Se Nietzsche quis o renascer da

tragdia, por que crticou Eurpides? Isso acontece, pois no foi qualquer tragdia

grega que Nietzsche quis fazer renascer, mas especificamente a de squilo. Para

Nietzsche, squilo e Sfocles estavam em posse do favor pblico, j Eurpides

sentia-se superior91, pois ele tentou tirar o componente dionisaco e possante

da tragdia e reedific-la de modo puro e novo, sobre a base da arte, do costume e

da concepo do mundo no dionisaco92.

importante ressaltar que, por mais que Nietzsche afirmasse um equilbrio

entre as foras dionisaca e apolnea, as caractersticas de Dionsio sempre foram

mais importantes para ele. O problema, a seu ver, no foi que a arte trgica, como

um todo, fora extinta, e sim, como Nietzsche afirma sobre Eurpedes, que a

divindade que falava por sua boca no era Dionsio, nem Apolo, mas sim um

demnio recm-nascido, e que se chamava Scrates93.

87 MACHADO, 2005, p.9. 88 NIETZSCHE, 2005, p.64. 89 NIETZSCHE, 2005, p.66. 90 Pensando cronologicamente squilo (525 a.C. 456 a.C.) foi o primeiro da trade. Sfocles (497 ou 496 a.C. 406 0u 405 a.C.) e Eurpedes (480 a.C. 406 a.C.) so contemporneos. 91 NIETZSCHE, 2005, p.69. Apesar do elogio a Sfocles neste trecho, mais a frente Nietzsche o v como uma pessoa que ajudou a destruir a tragdia, mesmo que no tanto quanto Eurpedes (NIETZSCHE, 2005, p.80). Wilamowitz-Mllendorff considera a relao de Nietzsche com Sfocles divertida, pois ele no se atreve a conden-lo, mas no consegue dissimular que gosta muito pouco dele (WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005b, p.76). 92 NIETZSCHE, 2005, p.71. 93 NIETZSCHE, 2005, p.71.

27

O problema em Scrates foi que, segundo Nietzsche, aquele considerava

apenas a forma racional de ver o mundo, excluindo a arte. Assim, para o filsofo

alemo, s Apolo sobreviveu a partir de Scrates:

No esquematismo lgico cristalizou-se a tendncia apolnica, assim como verificamos em Eurpedes algo semelhante e, ainda mais, uma transposio do dionisaco na afeio naturalista. Scrates, o heri dialtico no drama platnico, lembra-nos a natureza parecida do heri euripidico, que obrigado a defender as suas aes por contra-razes e razes, e que por isso corre freqentemente o perigo de perder o nosso trgico co-sofrer94

O detrimento de Apolo nesta primeira fase de Nietzsche ocorre pois neste

perodo seus escritos estavam sobre influncia do romantismo de Wagner e da

viso dualista de mundo de Schopenhauer e Kant.

Em certo sentido essa vitria de Dionsio fcil de compreender. A oposio Dionsio/Apolo era a base do plano de Schopenhauer: vontade/aparncia, coisa em si/fenmeno. Como Schopenhauer, Nietzsche, em 1870, distinguia o homem submetido ao imprio da vontade, reduzido ao estado de puro contemplador95

Para Scrates a arte trgica no dizia a verdade e para Plato, seguidor

daquele, ela representava o agradvel e no o til96. Este era o grande problema de

Nietzsche com ambos. A morte da arte trgica levou apenas um elemento consigo,

o dionisaco, e houve a vitria da iluso apolnica97. Com isso, Nietzsche

considera que a parte mais digna, a mais importante, a mais merecedora de ser

vivida, e mesmo a nica vivida98 foi a que pereceu.

A terceira ideia importante do livro a tentativa de encontrar o

renascimento da tragdia, ou da concepo trgica do mundo, em algumas

manifestaes culturais da modernidade99. E, com isso, lutar contra a influncia

de Scrates na sociedade moderna. Pois este influencia at o momento presente

94 NIETZSCHE, 2005, p.80. 95 LEBRUN, 2000, P.123. Traduo nossa do espanhol. 96 NIETZSCHE, 2005, p.79. 97 NIETZSCHE, 2005, p.37. 98NIETZSCHE, 2005, p.37. 99 MACHADO, 2005, p.11.

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e, mais ainda, por todo o futuro100. Nietzsche chega concluso de que a

tragdia morre pela dissipao do esprito da msica e sendo assim ela pode

simplesmente poder nascer por intermdio do mesmo esprito101. nesta terceira

ideia que encontramos o principal ponto de convergncia com a SI: Nietzsche

quer que a tragdia renasa, em seu perodo, a partir do msico Richard Wagner.

A msica alem deve ser entendida em sua poderosa marcha solar de Bach a

Beethoven, de Beethoven a Wagner102. Alm destes msicos Nietzsche

acreditava que havia uma nobre luta cultural tambm em Goethe, Schiller e

Winckelmann103. O carter otimista de sua obra, quase em tom proftico104,

afirmava: acreditai na vida dionisaca e na renascena da Tragdia! O tempo do

homem socrtico passou105.

Encaminhando-se para o fim da obra, Nietzsche criticou a histria

afirmando que

todos que se submetem a um exame severo se sentiro decompostos de tal forma pelo esprito crtico-histrico de nossa educao, que unicamente por caminhos eruditos, por abstraes mediadoras, podero crer na existncia do mito nos tempos antigos. Sem mito, porm, perde toda cultura sua fora natural, s e criadora, somente o horizonte rodeado por mitos torna unidade um movimento cultural inteiro106

Entre outras coisas, o que Nietzsche quis em o NT foi o renascimento do

mito alemo!107. Ele continuou com esta proposta, como veremos adiante,

quando escreveu a sua SI.

O NT foi uma obra muito criticada no s por outros fillogos e filsofos,

o prprio Nietzsche escreveu algumas objees a esta obra mais tarde. Em 1886,

trs anos antes de ter seu ltimo trabalho publicado, ele escreveu um Ensaio de

100 NIETZSCHE, 2005, p.82. 101 NIETZSCHE, 2005, p.86. 102 NIETZSCHE, 2005, p.105. 103 NIETZSCHE, 2005, p. 107 e 108. 104 Willamowitz-Mllendorff afirma sobre declaraes deste carter na obra que Nietzsche no se apresenta como um pesquisador cientifico: sua sabedora, conseguida pela via da intuio, exposta ora em um raisonnement [raciocnio] que s tem parentesco com o dos jornalistas. (WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005a, p.56). 105 NIETZSCHE, 2005, p.109. 106 NIETZSCHE, 2005, p.119. 107 NIETZSCHE, 2005, p.121.

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uma Autocrtica, no qual a primeira reflexo de Nietzsche foi sobre a base daquele

livro que

havia de ser uma questo de grande fascnio e relevo, alm de muito pessoal, como indica o momento que foi escrito e, inobstante, independentemente no momento a respeito da qual foi escrito, durante o tumultuoso perodo da guerra franco-alem nos anos de 1870 e 1871108

Nietzsche participou de forma voluntria na guerra franco-prussiana como

enfermeiro no front109. Quando ele afirmou que o que o motivara a escrever o NT

fora uma questo de grande fascnio e relevo, Safranski acredita que se tratou de

que Nietzsche vive o comeo da guerra como irrupo do dionisaco110. Esta

guerra em particular foi to importante para o filsofo que este chegou a dizer

que, em seu incio, ele se encontrava nos Alpes, mas algumas semanas depois j

se estava diante dos muros de Metz111.

As crticas de Nietzsche a sua obra de estreia no se limitam questo do

fascnio com o qual a escreveu. Ele ainda afirmou que o NT fora uma obra da

mocidade, uma obra de principiante, bem como um livro denso, mal-escrito,

incmodo, delirante, sentimental, aqui e acol adocicado at o feminino, desigual

no tempo, sem desejo para o asseio lgico112. no mnimo curioso aqui que ele

reclame da sua falta de lgica, que seria evidentemente um elemento socrtico.

Inclusive ele escreve para Erwin Rohde logo aps a publicao do NT uma carta

sobre a primeira resenha, no publicada, que seu amigo fez sobre o livro. Para

Nietzsche h um desacordo entre os dois sobre a ttica a adotar para dar conta do

livro, pois considera mais eficaz deixar de fora da discusso o seu aspecto

metafsico113, ou seja, a questo do mito.

Nietzsche afirmou que era lamentvel que no disse, como poeta, aquilo

que naquele tempo o fiz como prosador. Talvez o conseguisse! Ou, ao menos,

como fillogo114. uma critica aqui sobre a forma com que escolheu escrever

sua obra. Em sua maturidade, Nietzsche viu Dionsio com outros olhos. O 108 NIETZSCHE, 2005, p.13. 109 Cf.: SAFRANSKI, 2001, p.58. 110 SAFRANSKI, 2001, p.58. 111 NIETZSCHE, 2005, p.13. 112 NIETZSCHE, 2005, p.15. 113 MACHADO, 2005, p.20. 114 NIETZSCHE, 2005, p.16.

30

Dionsio que era opositor de Scrates no escrito do primeiro Nietzsche, virou

opositor de cristo em sua terceira fase115. O Nietzsche maduro se arrependeu de

no ter tentado resolver o problema da arte a partir dela mesma, mas a partir de

critrios cientficos e racionais, porm, tal erro fora sanado com sua escrita de AZ

que, segundo Machado, realiza o projeto nietzschiano de fazer a escrita atingir a

perfeio da msica116.

Embora ele tivesse feito todos estes apontamentos, tambm teceu alguns

elogios ao escrito. Uma questo fundamental da obra foi a relao do grego com

a dor117, nela s justificada a existncia do mundo como acontecimento

esttico118. Nietzsche tambm fez elogios obra no sentido de que ele inventou

uma doutrina e uma valorizao fundamentalmente contrrias, puramente

artsticas e anticrists119, e assim, essencialmente dionisaca.

A publicao de o NT causou, como se sabe, problemas para a carreira de

Nietzsche enquanto fillogo. Quando a obra foi publicada, ele j era professor

universitrio de filologia clssica. Com a polmica em torno do escrito, os

universitrios da Basilia fogem dele120; mas no foram s seus alunos que

ficaram descontentes com o contedo desta obra, ela gerou uma polmica que

abordaremos a seguir.

Nietzsche escreveu, ainda antes da publicao de o NT, a Rohde. Na carta

ele pedia sua opinio, pois temia que sua obra no fosse lida nem por fillogos,

nem por msicos, nem por filsofos121.Quando o livro foi publicado, ele se

preocupou com o silncio de seus pares e, assim, escreveu para Friedrich

Ritschl122. Ritschl no apoiou a obra de Nietzsche, pois discordava da relao feita

entre filologia, arte e filosofia123. Ele tambm considerou o NT uma bobagem

espirituosa124. Ritschl via sua disciplina assentada na cincia e discordava da

proposta de Nietzsche de querer transform-la em arte. Ele escreveu uma carta a

115 LEBRUN, 2000. 116 MACHADO, 1997, P.25. 117 NIETZSCHE, 2005, p.16. 118 NIETZSCHE, 2005, p.17. 119 NIETZSCHE, 2005, p.19. 120 SAFRANSKI, 2001, p.73. Basilia uma cidade na Sua onde Nietzsche lecionava. 121 MACHADO, 2005, p.16-17. 122 Ritschl foi seu professor de filologia e o indicou para o cargo na universidade de Basilia. Era muito admirado por Nietzsche (SAFRANSKI, 2001, p.17). 123 MACHADO, 2005, p.18. 124 JANZ apud SAFRANSKI, 2001, p.73.

31

Nietzsche onde defendia a interpretao histrica como o mago da filologia.

Postura que o leva a vrias crticas de fundo a O nascimento da tragdia125.

Na carta mencionada acima havia quatro objees ao escrito de Nietzsche:

a) Ritschl no via a arte como nica fora libertadora; b) pensava que a salvao

do mundo no vinha de um sistema filosfico; c) no considera que as foras

espirituais do povo grego pudessem servir como modelo para outros povos e

outros perodos; d) e, por fim, questionava se as reflexes de Nietzsche eram um

fundamento para a educao da juventude ou apenas um desprezo pela cincia126.

compreensvel a posio de Ritschl acerca do escrito de Nietzsche, pois ao

longo do sculo XIX houve uma estreita relao entre o desenvolvimento de

vises, mtodos e prticas na histria e na filologia127. E, sendo assim, a filologia

era histrica, cientfica e metdica.

Ritschl foi o primeiro, mas no o nico fillogo que desaprovou o trabalho

de Nietzsche. Aps a publicao de o NT, Rohde escreveu uma resenha sobre o

livro de seu amigo. Ela foi recusada e ele escreve outra, mais detalhada, que desta

vez foi aceita. Quatro dias aps sua publicao publicado um texto, com crticas

dirigidas tanto a Rohde quanto a Nietzsche, pelo fillogo Ulrich von

Willamowitz-Mllendorff128. Com isso, de forma no surpreendente, Wagner129

escreveu uma carta aberta em apoio a Nietzsche. A polmica no parou por a,

pois Rohde publicou, aps a carta de Wagner, uma rplica ao texto de

Willamowitz-Mllendorff. A ltima publicao da polmica a segunda parte da

Filologia do futuro de Willamowitz-Mllendorff. So as peculiaridades desta

polmica que desenvolveremos a seguir.

Rohde escreveu uma resenha sobre o livro de Nietzsche a revista de

filologia Litterarische Zentralblatt, mas ela foi recusada130. Nietzsche preocupa-se

125 MACHADO, 2005, p.18. 126 MACHADO, 2005, p.18. 127 BROBJER, 2007, p.162. Traduo nossa de: throughout the nineteenth century there was a close relationship between the developments of views, methods, and practices in history and in classical philology. 128 importante ressaltar que ele era casado com a filha do historiador Theodor Mommsen, por quem Nietzsche no tinha muito apreo. Encontramos em um fragmento de 1872 uma crtica a Mommsen afirmando que ele faz Histria Romana a partir da enjoativa relao do pattico ponto de vista do partido (traduo nossa). Disponvel em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/NF-1872,19[196]. Acesso em 14/03/2017. 129 Wagner exaltado em o NT. Para Nietzsche, ele seria o compositor que poderia elaborar um renascimento da tragdia na Alemanha, a partir da msica. 130 MACHADO, 2005, p.19.

32

com isso, sugerindo a Rohde que ele deveria, como j mencionamos acima,

deixar de fora da discusso o seu aspecto metafsico131. Rohde discordava da

posio de Nietzsche e considerava mais importante a unificao do eu e do todo

no mito132.

No incio da resenha Rohde afirmou que o caminho da investigao

histrico, [...] um modo superior de considerao histrica133, o que foi uma

sntese muito breve dos argumentos de Nietzsche em sua obra. Rohde reforou os

argumentos da importncia do mito com afirmaes como a msica d luz o

mito, a obra de arte superior se apresenta a ns na tragdia mtica e afirmou

que Nietzsche fez uma feliz associao das consideraes estticas e

histricas134. Ele deu reforo ideia de Nietzsche da criao de uma nova cultura

para a Alemanha, afirmando que o povo foi despertado de um sono.

Com a primeira resenha recusada, Rohde escreveu uma nova a pedido de

Nietzsche135, mais longa e detalhada. Ele continuou como um defensor do

contedo da obra, bem como de Wagner e de Schopenhauer. Segundo Rohde, o

mundo dos mitos podia iluminar toda a vida com muito mais clareza do que a

sabedora de nossos pensamentos eruditos136.

Quatro dias aps a publicao da segunda resenha apareceu a crtica de

Willamowitz-Mllendorff. Nesta constava que Nietzsche, alm de seguidor de

Schopenhauer e Wagner, tambm era professor de filologia. O fillogo disse, em

tom irnico: Evidentemente, Aristteles e Lessing no entenderam o drama. O

senhor Nietzsche entendeu137. As crticas a Nietzsche como uma pessoa que via

o dionisaco como uma religio e um dogma estavam presentes ao longo da

resenha. Willamowitz-Mllendorff seguiu seu texto apontando inmeros erros

filolgicos cometidos por Nietzsche e disse que este fizera uma ofensa nossa

me Pforta138 com tais equvocos. Para ele, Nietzsche agira com ignorncia e

131 MACHADO, 2005, p. 20. 132 MACHADO, 2005, p. 21. 133 ROHDE, In.: MACHADO, 2005a, p.35 134 ROHDE, In.: MACHADO, 2005a, p.37-39. 135 MACHADO, 2005, p. 21. 136 ROHDE, In.: MACHADO, 2005b, p.49. 137 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005a, p.57. 138 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005a, p.62. Ambos estudaram no colgio.

33

falta de amor verdade, e se o fizera no mundo dos sonhos, no haveria problema,

mas que desa da ctedra na qual deveria ensinar cincia139.

A prxima publicao acerca da obra feita por Wagner, que primeiro

abordou de forma breve sua formao em relao aos estudos gregos, para depois

tecer suas crticas a Wilamowitz-Mllendorff. Ele afirmou que todos os nossos

artistas e poetas, passam muito bem sem a filologia140 e com isso acabou fazendo

com que Nietzsche fosse ainda mais depreciado no meio filolgico, reforando o

argumento de Willamowitz-Mllendorff de que Nietzsche no fizera um trabalho

sistemtico. Ritschl chega a se manifestar sobre esta carta declarando que Wagner

no sabia nada de filologia, deveria ter ficado calado a esse respeito. Ritschl

disse sentir pena de Nietzsche, pois este no encontra melhores armas contra o

detestvel panfleto de Wilamowitz141.

Rohde tentou publicar uma carta a Richard Wagner, que, na verdade, era

dirigida a Willamowitz-Mllendorff. Ela foi recusada pela editora. Nietzsche

intercedeu a Ritschl acerca desta questo, mas seu ex-professor disse no querer

alimentar uma polmica contra a filologia142. Com isso, o texto de Rohde foi

publicado por um editor de Wagner. Escrito com entonao agressiva, tinha a

inteno de destruir os argumentos do texto de Willamowitz-Mllendorff143.

Na carta Rohde afirmou que no iria mais retornar ao livro de Nietzsche,

pois quem quer que seja que esteja em condies de entender o livro ser

profundamente impregnado por essas qualidades, sem precisar do auxlio

alheio144. Em sua opinio, apenas lendo algumas rplicas do doutor

[Wilamowitz-Mllendorff] ao amigo [Nietzsche] j se perdia todas as esperanas,

qualquer leitor bem informado e no pertencente corporao dos fillogos

perceberia como os apontamentos de Wilamowitz-Mllendorff so inferiores145.

Para ele, o que escreveu Wilamowitz-Mllendorff, daria a seguinte

impresso do livro de Nietzsche: que um diletante da literatura de arte estaria

transmitindo em seu livro, com a inocncia de um completo ignorante, doutrinas

erradas a respeito da Antigidade e que os aspectos que no livro de Nietzsche

139 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005a, p.78. 140 WAGNER, In.: MACHADO, 2005a, p.81. 141MACHADO, 2005, p.27. 142 MACHADO, 2005, p.28. 143 MACHADO, 2005, p.29. 144 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p.87. 145 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p.89-91.

34

poderiam conseguir esclarecer os problemas difceis de nossa cincia, parecero

indignos de ateno.146 no mnimo curioso que Rohde fizesse crticas aos

profissionais de sua rea e, logo aps, reivindicasse reconhecimento cientifico no

campo. Ele ainda reduziu a filologia a um mero exerccio de perspiccia e

memria147 e a considerou no utilizvel de modo prtico148. Continuando suas

crticas direcionadas a Willamowitz-Mllendorff ele escreveu:

Em todo caso, posso contar com o que permaneceu do interesse filolgico que lhe foi deixado por seu professor de Leipzig e alimentado com uma fora cada vez maior pela nostalgia, sempre renovada nessa poca brbara. E, assim, tenho confiana de lhe dar uma resposta favorvel quando convido o senhor a fazer um passeio pela terra antiga, um tanto empoeirada e seca, da erudio filolgica.149

Rohde referiu-se a Leipzig, pois foi onde ele, Nietzsche e Willamowitz-

Mllendorff estudaram. O professor de Leipzig seria Ritschl. A meno a

Ritschl na resenha chamou nossa ateno por dois motivos. Primeiro, porque este

no apoiou o livro de Nietzsche. Segundo, pois, levando em considerao que

Ritschl defendia a filologia enquanto cincia, acreditamos que o mesmo teria

muito mais em comum com Willamowitz-Mllendorff do que com Nietzsche.

A ltima publicao da polmica foi feita por Willamowitz-Mllendorff.

Ele a denominou Filologia do Futuro! Segunda Parte!. Sua resposta foi,

novamente, a de um defensor contundente da cincia. Disse que faria uma

cavalgada pela terra rida e empoeirada da erudio filolgica e no pretendia

ter como pblico pssaros dionisacos, mas fillogos de verdade150. Ele queixou-

se da divulgao da resenha ou da carta de Rohde afirmando que mandaram

imprimir em bom papel o hino de E.R. e o enviaram anonimamente, de uma vila

nas montanhas bvaras151. Este escrito foi enviado, segundo o fillogo, a

supostos amigos do grupo. Se isto realmente aconteceu, seria intrigante pensar

que o escritor de Zaratustra, que em sua maturidade afirmou que Zaratustra no

146 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p. 91-92. 147 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p.93. 148 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p.125. 149 ROHDE, In.: MACHADO, 2005c, p.99. 150 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005b, p.129. 151 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005b, p.130.

35

deve ser pastor de um rebanho, nem co do pastor!152, estava tentando conseguir

seguidores para suas ideias j em 1872.

Willamowitz-Mllendorff deixou claro em sua resenha que no se

importava com as crticas dirigidas a ele, pois o debate cientifico nunca era levado

para o campo pessoal. Tambm fez vrias crticas a Rohde, pois este considerava

tudo o que seu amigo diz verdadeiro e belo, enquanto tudo o que eu digo falso

e ruim153. Assim, diferente de Willamowitz-Mllendorff, Rohde no estaria no

campo de batalha da cincia. Ele e Nietzsche eram cultores de Wagner, e este era

tido por ambos como um dolo154. Para Willamowitz-Mllendorff o que

Nietzsche e Rohde defendem so tolices de crebros degenerados155. Com isso,

terminou a polmica pblica acerca de o NT.

Como vimos, a filologia era uma cincia na qual Nietzsche tinha formao

e onde exercia seu trabalho na Universidade da Basilia. Porm, Nietzsche no

aceitava o carter cientifico de sua profisso e tentou ser aceito em seu campo

escrevendo e legitimando trabalhos com inclinaes ficcionais e filosficas.

interessante que a viso de Nietzsche enquanto fillogo e, simultaneamente, como

crtico ferrenho cincia filolgica encontrou repercusso na contemporaneidade.

O grande linguista e crtico literrio alemo Harald Weinrich, ao estudar o

esquecimento em Nietzsche, refere-se ao NT, SI e GM. Ao concluir suas

reflexes sobre este tema, ele divide Nietzsche em dois: o fillogo Nietzsche, a

partir de suas primeiras obras supracitadas, e o filsofo Nietzsche, utilizando

como parmetro a Genealogia da Moral156. Mesmo afirmando que os fillogos

profissionais perceberam que Nietzsche no se interessa pelo passado quanto

pelo presente, Weinrich o considerou seu NT uma obra histrico-filolgica157.

Ainda hoje, as desqualificaes de Nietzsche filologia no campo cientifico so

consideradas um trabalho filolgico. Como j eram por Rohde e Wagner, como

mostramos anteriormente.

152 NIETZSCHE, 2012, p.29. 153 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO, 2005b, p.133. 154 WILAMOWITZ-MLLENDORFF, In.: MACHADO , 2005b, p.147. 155 MACHADO, 2005, p.31. 156 WEINRICH, 2001, p.184. 157 WEINRICH, 2001, p.180.

36

Apenas dois anos aps a publicao de o NT, Nietzsche escreve outra obra

com argumentos muito semelhantes. Sua crtica agora no mais referida ao

campo filolgico, mas ao campo historiogrfico, como veremos a seguir.

37

1.2. A Segunda Intempestiva e a sua proposta de histria

essencial, em um estudo onde o tema so as concepes de histria na

obra de Nietzsche, passar pela sua SI. Ela j foi muito estudada dentro e fora do

Brasil, suas ideias so conhecidas e discutidas por vrios historiadores158. Seu

subttulo, denominado da utilidade e desvantagem da histria para a vida, j nos

d uma ideia prvia do propsito da escrita desta obra. A compreenso do lugar da

histria e da historiografia nos seus escritos de juventude ser aqui, como j

mencionamos, contraposto anlise das ltimas publicaes do filsofo.

Ao ler a obra notamos que ela foi marcada por vrios conceitos

importantes para a reflexo historiogrfica159 e j nas primeiras linhas Nietzsche

evidenciou qual era, para ele, a funo da histria:

precisamos dela para a vida e para a ao, no para o abandono confortvel da vida ou da ao ou mesmo para o embelezamento da vida egosta e da ao covarde e ruim. Somente na medida em que a histria serve vida queremos servi-la160

Nesta obra, Nietzsche viu a historiografia a partir de trs modelos: a

Histria Monumental, a Histria Antiquria e a Histria Crtica. A proposta do

autor de apontar as desvantagens e vantagens da histria para a vida estava

presente na descrio destes trs tipos de histria.

A Histria Monumental, para Nietzsche, seria aquela que age e aspira. Ela

diz respeito antes de tudo ao homem ativo e poderoso, ao homem que luta em uma grande batalha e que precisa de modelos, mestres, consoladores e que no permite que ele se encontre entre seus contemporneos e no seu presente.161

A Histria Monumental seria til quando servisse de modelo para os

homens do presente. Em momentos de fraqueza, ela proporcionaria coragem. Isso

seria possvel quando, a partir dela, se presumisse que o que foi possvel uma vez

158 BARROS (2010), CALDAS (2006), REIS (2011), etc. 159Por exemplo os conceitos de lembrana, esquecimento, sentido histrico, a-histrico, supra-histrico, fora plstica, fenmeno histrico, etc. 160 NIETZSCHE, 2003, p.5 161 NIETZSCHE, 2003, p.18.

38

[...] ser algum dia possvel novamente162. A desvantagem desta concepo de

histria estaria em quando o homem, ao invs de utiliz-la como inspirao,

prejudicar-se-ia por ela. Ela poderia fazer o que foi grande e poderoso no passado

impedir o desenvolvimento da grandeza e do poder no presente e ter como lema:

deixem os mortos enterrarem os vivos163.

A Histria Antiquria seria, segundo o pensamento de Nietzsche, aquela

que preserva e venera. Esta cuida, com mo muito precavida, do que ainda existe

de antigo, busca preservar as condies sob as quais surgiu para aqueles que viro

depois dele164. Para o filsofo alemo, esta histria serviria vida, enquanto

conectasse uma populao a suas origens. Podemos perceber isso na passagem

abaixo:

Como histria poderia servir melhor vida, a no ser se conectasse as geraes e as populaes menos favorecidas sua terra natal e aos hbitos de sua terra natal, enraizando-as e impedindo-as de vaguear por a em busca do que melhor no estrangeiro e de se engajar em uma luta ferrenha por ele?165

Nietzsche ainda chamou o apego terra natal de sentido histrico

apropriado. Faz crticas busca de um povo por uma histria cosmopolita166.

Como a Histria Monumental, a Histria Antiquria tambm tem suas

desvantagens. O problema desta apareceria quando o novo fosse recusado e

hostilizado e o antigo, venerado. Este momento se daria quando a histria serve

de tal modo vida quanto o sentido histrico no conserva mais a vida, mas a

mumifica167.

Quando Nietzsche fez apologia s duas primeiras formas de histria, ele

usou como exemplo o poeta Goethe. Ele relacionou o poeta Histria

Monumental, mencionando uma carta onde Goethe afirmava no encontrar entre

as pessoas de seu tempo nenhuma natureza utilizvel. E a aluso a Goethe em

162 NIETZSCHE, 2003, p.20. 163 NIETZSCHE, 2003, p.24. 164 NIETZSCHE, 2003, p.25. 165 NIETZSCHE, 2003, p.27. 166 Acreditamos tratar-se aqui de uma crtica a propostas como a do filsofo Immanuel Kant e seu texto Ideia de uma Histria Universal com um Propsito Cosmopolita. Nietzsche fazia duras crticas a Kant, bem como a qualquer tentativa de universalismo. Mesmo no citando Kant nominalmente, plausvel interpretar que as crticas neste momento do texto so dirigidas ao filsofo de Knisgberg. 167 NIETZSCHE, 2003, p.28.

39

relao Histria Antiquria acontece para legitimar a importncia do passado: o

poeta teria estado em frente a um monumento de Erwin Steinbach e afirmado que

foi o momento em que viu a obra de arte alem pela primeira vez novamente168.

Goethe foi, na SI, um dos exemplos de grandes homens que se guiaram de forma

correta a partir do passado. Na impossibilidade de encontrar inspiraes em seu

tempo, recorreu ao passado para encontrar exemplos dignos de inspirao. Como

visto at aqui, a Histria Monumental e a Histria Antiquria poderiam servir

vida, mas tambm poderiam se apresentar como um perigo a mesma. Levando

isso em considerao, Nietzsche afirmou que precisaramos muito

freqentemente de um terceiro modo, o modo crtico: e, em verdade, este tambm

uma vez mais a servio da vida169.

A Histria Crtica, para Nietzsche, precisaria explodir e dissolver, ela

traz o passado diante do tribunal. No era a justia, nem a misericrdia, que se

encontrava em julgamento para o filsofo, mas a vida. Essa histria tinha um

carter perigoso, pois homens e pocas, que servem desta maneira vida, ao

julgarem e aniquilarem o passado, so sempre homens e pocas perigosos e

arriscados170.

Seriam estes, para Nietzsche, os servios que a histria pode prestar

vida171. Mesmo assim, os temas abordados na obra estavam longe de se

esgotarem nessa tipologia. Foram inmeras as menes, neste livro, a seu presente

quando ele utilizou termos como: nosso tempo, nossa poca, homem

moderno, cultura moderna, ns alemes do presente e europeu super-

orgulhoso do sculo XIX, etc.

A partir deste conjunto de termos, pressupomos que Nietzsche dirige a SI

para pessoas especficas: seus contemporneos alemes172. importante aqui

pensar sobre o termo, traduzido como Intempestiva (unzeitgemss).

zeitgemss a palavra em alemo para o que acompanha o tempo, o que atual

e moderno. Un um prefixo de negao. Sendo assim, consideraes

intempestivas em Nietzsche tinham como objetivo discordar de certas ideias do

168 NIETZSCHE, 2003, p.26. 169 NIETZSCHE, 2003, p.29. 170 NIETZSCHE, 2003, p.30. 171 NIETZSCHE, 2003, p.31. 172 Tanto aqui, quando em O Nascimento da Tragdia, Nietzsche fala aos homens, em especiais os alemes, de seu tempo.

40

mundo atual desde uma perspectiva adquirida junto a outra sensibilidade, prpria

de outras pocas, tratando-se de um exerccio ou ensaio com intenes crticas. O

prprio Nietzsche confirmou isso quando disse que a inteno dele com esse

escrito era ser publicamente instrudo e alcanar uma posio correta sobre a

nossa poca173. Para ele a SI, pois tenta compreender pela primeira vez, algo

que a poca est com razo orgulhosa sua formao histrica como prejuzo,

rompimento e deficincia da poca174.

Outro tema que Nietzsche dedicou ateno especial neste texto foi o

esquecimento. Weinrich considera a abordagem do esquecimento por Nietzsche

como uma arte, a arte do esquecimento 175. Nietzsche criou um breve dilogo

para abordar a questo da lembrana e do esquecimento onde escreveu:

O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que no me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer tambm responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas tambm j esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso.176

O filsofo introduziu assim o tema do excesso de histria, defendendo que

seria possvel viver quase sem lembrana, mas impossvel viver sem

esquecimento. Weinrich contrape o filsofo aos historiadores do XIX, que

cultivam um excesso de memria, pois

a histria, e isso a histria transformada em arte e cincia, dos comeos at a atualidade, que com a multiplicao de seus conhecimentos, mas tambm pelo seu mero avano no tempo, cresce com sempre maior complexidade e se deita como uma massa onerosa sobre a memria do ser humano de formao histrica, at que este, de tanta carga de lembranas, perde a possibilidade de viver e agir177

H quem pense diferente sobre a necessidade do esquecimento para a vida

e o excesso de histria das nossas sociedades. O filsofo alemo Hermann Lbbe,

assim como Nietzsche, via como essencial o inevitvel dever de memria em

173 NIETZSCHE, 2003, p.6. 174 NIETZSCHE, 2003, p.6. curioso que Nietzsche considere-se a primeira pessoa a tentar entender sua poca, sendo que dentre suas influncias h contemporneos seus. Podemos citar, por exemplo, Schopeunhauer e Wagner. 175 WEINRICH, 2001, p.180. 176 NIETZSCHE, 2003, p.7. 177 WEINRICH, 2001, p.180.

41

conciliao com o alvio psquico produzido pelo esquecimento178. Mas este

discordava da concepo de febre histrica de Nietzsche, ou seja, de que haveria

um excesso de histria na modernidade, assim como destoava da supervalorizao

de Nietzsche no que tange o esquecimento. Para Lbbe, os efeitos da conscincia

histrica e da personalizao histrico-cientfica da memria, em nossa

civilizao moderna [...] no resultaram em perda de vitalidade cultural. Mesmo

que existisse na modernidade uma intensa presentificao do passado, isso no

comprometeria a capacidade de inovao da nossa sociedade, como Nietzsche

sugeria no XIX179.

Nietzsche, como vrios outros intelectuais do sculo XIX, foi lido por seus

contemporneos, como tambm os leu. J mencionamos alguns destes eruditos no

tpico anterior, mas daremos ateno especial aqui aos historiadores de seu

perodo180. A SI foi escrita como uma crtica ao modo como a histria estava

sendo pensada e escrita na Alemanha contempornea. Por que a questo da

histria era to importante para Nietzsche, a ponto de ele escrever a SI unicamente

para tratar de tal tema? Cremos que parte da resposta a Unificao da Alemanha

(1871), a qual nos referimos no incio deste captulo. Podemos entender isto com

mais clareza quando nos deparamos, no livro, com suas alegaes em relao ao

conhecimento produzido por historiadores acerca da unificao:

aqui deve constar expressamente o meu testemunho, que a unidade alem neste sentido supremo que ns almejamos, e a almejamos mais ardentemente do que a reunificao poltica: a unidade do esprito e da vida alemes depois da aniquilao e da oposio entre forma e contedo, entre interioridade e conveno.181

A unificao, tardia se comparada a outros pases europeus, trouxe a

necessidade de se pensar uma histria comum, nacional, para o povo alemo.

Com isso, foi elementar a participao dos historiadores para se pensar a nao e

178 LBBE, 2016, p.287. 179 LBBE, 2016, p.288. 180 Dentre os inmeros historiadores que Nietzsche leu e eram seus contemporneos esto: Mommsen, Niebuhr, Droysen, Burckhardt, Grote, Gibbon, Sybel, Ranke, Brochard, Buckle, Carlyle, Gervinus, Herder, Lobeck, Michelet e Treitschke (BROBJER, 2004, p.312). 181 NIETZSCHE, 2003, p.40.

42

houve a convergncia entre o desenvolvimento da cincia histrica alem e o

processo de unificao poltica182.

Esta dualidade acabou fazendo com que alguns historiadores pensassem

politicamente183 acerca de sua poca, o que no agradou a Nietzsche. Encontramos

incontveis crticas aos historiadores e cincia histrica da poca sobre essa

questo na SI. Dentre elas, temos menes aos adoradores do processo,

cincia pura, ao conhecimento puro, pura fon