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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS WILLIAN MANCINI VIEIRA IMAGO CLAUDII: AS REPRESENTAÇÕES DE SÊNECA, TÁCITO E SUETÔNIO SOBRE O IMPERADOR CLÁUDIO E SEU PRINCIPADO. Mariana 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    WILLIAN MANCINI VIEIRA

    IMAGO CLAUDII: AS REPRESENTAES DE SNECA, TCITO E

    SUETNIO SOBRE O IMPERADOR CLUDIO E SEU PRINCIPADO.

    Mariana

    2012

  • WILLIAN MANCINI VIEIRA

    IMAGO CLAUDII: AS REPRESENTAES DE SNECA, TCITO E

    SUETNIO SOBRE O IMPERADOR CLUDIO E SEU PRINCIPADO.

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria do Instituto

    de Cincias Humanas e Sociais da

    Universidade Federal de Ouro Preto,

    como requisito parcial obteno do

    grau de Mestre em Histria.

    rea de concentrao Poder e

    Linguagens, linha de pesquisa Ideias,

    Linguagens e Historiografia.

    Orientador: Prof. Dr. FBIO

    FAVERSANI

    Mariana

    Instituto de Cincias Humanas e Sociais/ UFOP

    2012

  • Catalogao: [email protected]

    V658i Vieira, Willian Mancini.

    Imago Claudii [manuscrito] : as representaes de Sneca, Tcito e

    Suetnio sobre o Imperador Cludio e seu principado / Willian Mancini Vieira - 2012.

    174f. : il. color.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio Faversani.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de

    Cincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-

    graduao em Histria.

    rea de concentrao: Poder e Linguagens.

    1. Roma - Histria - Imprio, 30A.C.-284D.C. - Teses. 2. Tcito, Cornlio

    - Teses. 3. Cludio, Imperador de Roma, 10a.C.-54d.C. - Teses. 4. Sneca,

    Lucius Annaeus - Teses. 5. Suetnio - Teses. I. Universidade Federal de Ouro

    Preto. II. Ttulo.

    CDU: 94(37)

    mailto:[email protected]

  • Dedico este trabalho minha me Maria Helena

    e minha famlia pelo apoio incondicional

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo Universidade Federal de Ouro Preto, a qual eu passei estes

    ltimos sete anos, e que me ofereceu toda a estrutura possvel para que eu pudesse

    desenvolver minha pesquisa da melhor maneira. Fazer minha graduao e minha

    ps-graduao em Mariana foi muito importante e gratificante para mim.

    Ao meu orientador, professor-doutor Fbio Faversani por ter me apoiado

    tanto na graduao como na ps-graduao. Na falta de minha famlia ele sempre

    esteve presente para me incentivar, aconselhar e repreender meus erros, como se

    tambm fizesse parte da minha famlia. Ao LEIR, principalmente aos integrantes

    do ncleo da UFOP, por compartilharem de seus conhecimentos e cooperarem em

    muito com minha pesquisa. Agradeo aos professores Dr. Gilvan Ventura da Silva

    e Dr. Fbio Duarte Joly por terem aceitado o convite para compor a banca

    examinadora.

    minha famlia e amigos de Guaransia que mesmo eu me mostrando

    ausente em vrios momentos sempre torceram por mim. Agradeo a meus amigos

    e irmos da Repblica Cangao, que sempre estiveram presentes nestes ltimos

    sete anos e que alguma forma contriburam para minha pesquisa e que eu

    permanecesse em Mariana por tanto tempo. Agradeo a minha amiga Iara, por

    sempre estar disposta a verificar meu texto e por me oferecer apoio em vrios

    momentos que precisei. s minhas amigas Ana Paula e a Polyana por tambm me

    oferecerem grande apoio e acreditarem em mim. Aos meus colegas de ps-

    graduao que me possibilitaram bons debates. E as diversas pessoas que

    contriburam para meu crescimento intelectual e espiritual ao longo desses anos.

    Por fim, gostaria de agradecer a todos que me apoiaram e tambm

    queles que duvidaram de mim, porque estes ltimos me deram fora para eu

    acreditar mais em mim e prosseguir batalhando.

  • Resumo

    Mancini, Willian, Vieira. Imago Claudii: as representaes de Sneca, Tcito e

    Suetnio sobre o Imperador Cludio e seu principado. / Willian Mancini Vieira.

    2012. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de

    Cincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-

    Graduao em Histria.

    A presente dissertao trata da anlise da representao do Imperador Cludio em

    trs fontes: Apocolocyntosis de Sneca, Anais de Tcito, e A Vida dos Doze

    Csares de Suetnio. A representao do Imperador Cludio, que governou de 41

    a 54, nas fontes apresenta um imperador fraco e inapto, manipulado por suas

    mulheres e libertos. Com o passar do tempo, a historiografia passou a retratar este

    imperador de forma diferente, valorizando mais suas aes de governo do que sua

    personalidade ou os problemas na Corte Imperial. Mesmo entre as representaes

    feitas por Sneca, Tcito e Suetnio existem elementos distintos para compor a

    representao deste imperador. Este estudo leva a concluir quais os elementos

    utilizados nas fontes para compor a representao de Cludio e o porqu de seu

    uso. Assim, entendendo o processo de montagem da representao de Cludio

    podemos conhecer as expectativas que se tinham de um bom imperador e da

    sociedade romana com um todo.

    Palavras-chave: Imperador Cludio, Sneca, Tcito, Suetnio,

    representao, Imprio Romano.

  • Abstract

    Mancini, Willian, Vieira. Imago Claudii: as representaes de Sneca, Tcito e

    Suetnio sobre o Imperador Cludio e seu principado. / Willian Mancini Vieira.

    2012. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de

    Cincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-

    Graduao em Histria.

    This dissertation analyzes the representations of Emperor Claudius by three

    sources: Senecas Apocolocyntosis, Tacitus Annales, and Suetonius Vita

    Caesarum. Such representations of Claudius, who ruled from 41 to 54, in general

    reveal a weak and unqualified emperor, manipulated by women and freedmen.

    More recently the historiography has changed its view of this emperor by giving

    more importance to his political decisions than to his personality or events in the

    imperial Court. Even in the representations of Claudius by Seneca, Tacitus and

    Suetonius it is possible to discern contrasting elements that compose the image of

    this emperor. This study seeks to point out these elements and explain their

    respective reasons by the sources above mentioned. By understanding the process

    of composition of the representation of Claudius, we can perceive the expectations

    of the aristocracy in relation to the emperor and to the Roman society as a whole

    Keywords: Emperor Claudius, Seneca, Tacitus, Suetonius,

    representation, Roman Empire.

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................. 11

    1 O PODER DO PRINCEPS: UM BALANO HISTORIOGRFICO SOBRE

    AS BASES DO PODER DO IMPERADOR EM ROMA ................................... 21

    1.1 O Poder Imperial em meio Repblica ................................................................ 23

    1.2 O Patronato do Princeps Civilis ............................................................................ 27

    1.3 Soberania do Princeps ......................................................................................... 31

    1.4 O Princeps e os grupos sociais .............................................................................. 35

    1.5 O Principado de Cludio ...................................................................................... 38

    2 SNECA E A CRUEL PERSPECTIVA EM APOCOLOCYNTOSIS ............... 49

    2.1 Cludio, Sneca e a Apocolocyntosis .................................................................... 49

    2.2 A perspectiva de Sneca em Apocolocyntosis ...................................................... 56

    2.2.1 Perseguio e assassinato de senadores ....................................................... 57

    2.2.2 Aes de Governo......................................................................................... 61

    2.2.3 A Domus Caesaris ......................................................................................... 65

    2.2.4 Comportamento e postura pessoal do Imperador Cludio ............................ 67

    2.3 Concluso ............................................................................................................ 75

    3 TCITO E A PERSPECTIVA DA DOMUS CAESARIS ................................. 78

    3.1 Tcito e o Principado ........................................................................................... 78

    3.2 A perspectiva taciteana do Principado de Cludio ................................................ 82

    3.2.1 Perseguio e assassinato de senadores ........................................................... 85

    3.2.2 Aes de Governo ............................................................................................ 90

    3.2.3 A Domus Caesaris ....................................................................................... 102

    3.2.4 Comportamento e postura pessoal do Imperador Cludio .......................... 108

    3.3 Concluso .......................................................................................................... 111

    4 SUETNIO E A INAPTIDO DE CLUDIO PARA O PRINCIPADO ...... 113

  • 4.1 Suetnio e o Principado. .................................................................................... 113

    4.2 A perspectiva suetoniana do Principado de Cludio ........................................... 114

    4.2.1 Perseguio e assassinato de senadores ..................................................... 118

    4.2.2 Aes de Governo....................................................................................... 121

    4.2.3 A Domus Caesaris ....................................................................................... 129

    4.2.4 Comportamento e postura pessoal do Imperador Cludio .......................... 137

    4.3 Concluso .......................................................................................................... 143

    5 CONCLUSO .............................................................................................. 145

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................. 152

    ANEXOS ......................................................................................................... 157

    ANEXO 1 ................................................................................................................. 158

    ANEXO 2 ................................................................................................................. 159

    ANEXO 3 ................................................................................................................. 160

    ANEXO 4 ................................................................................................................. 161

    ANEXO 5 ................................................................................................................. 162

    ANEXO 6 ................................................................................................................. 165

    ANEXO 7 ................................................................................................................. 166

    ANEXO 8 ................................................................................................................. 167

    ANEXO 9 ................................................................................................................. 168

    ANEXO 10 ............................................................................................................... 169

    ANEXO 11 ............................................................................................................... 170

    ANEXO 12 ............................................................................................................... 171

    ANEXO 13 ............................................................................................................... 172

    ANEXO 14 ............................................................................................................... 173

    ANEXO 15 ............................................................................................................... 174

    ANEXO 16 ............................................................................................................... 175

  • 11

    INTRODUO

    Nosso objetivo nesta dissertao buscar a compreenso do processo de

    montagem da representao de Cludio ao longo dos primeiros anos do Principado,

    analisando trs obras: Apocolocyntosis de Sneca, Anais de Tcito e A Vida dos Dozes

    Csares de Suetnio. Buscaremos os elementos utilizados por cada autor,

    principalmente aqueles de cunho moral, para formular a sua representao de Cludio,

    assim como comparar os elementos de cada obra, e analisar quais deles se diferenciam,

    quais se assemelham, e o porqu disso ocorrer. Tambm vlido para entender este

    processo de domnios de representao comparar as representaes que as fontes fazem

    com as que a prpria mquina imperial do perodo claudiano fazia de si mesma. Nosso

    trabalho desperta interesse pela relevncia dos estudos que, desde os anos de 1930 at

    hoje, indica um crescimento dos trabalhos que abordam o Imperador Cludio e uma

    mudana na abordagem sobre a importncia e representao deste imperador. Para citar

    alguns desses estudos temos Momigliano, que escreve nos anos de 1930, Scramuzza1,

    nos de 1940, em 1990, Levick e, por ltimo, Osgood em 2010. Esta historiografia

    contempla abordagens deste imperador tanto no seu aspecto pessoal, apresentando sua

    personalidade, seu perfil psicolgico e a relao com os demais estratos sociais bem

    como com a familia Caesaris; como o seu governo, analisando a relao entre Cludio e

    o Senado, as obras realizadas e a administrao dos setores chaves do funcionamento da

    mquina imperial. Pela amplitude da abordagem, o veredito da historiografia atualmente

    aponta para um imperador taxado por parte da historiografia como um usurpador inapto,

    situado em um meio corrupto. Tanto o Senado como a Domus Caesaris so descritos

    com esse perfil da corrupo. Mesmo assim, Cludio teria realizado um governo ao

    mesmo tempo antiquado, por voltar com prticas e costumes em desuso ao longo do

    incio do Principado, e empreendedor, por ter realizado uma srie de obras pblicas e ter

    renovado o Senado romano com a introduo de provinciais.

    Dio Cssio j teria analisado o Principado Claudiano por essa tica. Em sua

    obra sobre a Histria de Roma, esse autor tambm constri uma representao de um

    1 Uma das dificuldades do estudo de Histria Antiga no Brasil a dificuldade do acesso bibliografia

    especializada. A obra de Vincent Scramuzza, Claudius, um exemplo deste fato. Apesar de termos

    conhecimento de sua existncia, atravs de referncia de outras obras, no conseguimos acesso a essa

    obra, tanto pelo livro como por meio digital.

  • 12

    Cludio inapto e vicioso, at mesmo pelo tratamento da prpria famlia, mergulhado em

    um meio corrupto, mas tambm conta que realizou feitos que mereceram ser destacados

    como bons. Tcito e Suetnio tambm constroem uma representao do Imperador

    Cludio marcadamente moral. Tcito se centra na perspectiva de que o Imperador e a

    Domus Caesaris so centro de referncia moral do Imprio. O comportamento

    inadequado deste imperador e dos membros dessa casa, na viso do historiador, gerou

    uma imagem negativa de Cludio, como tirano, ora covarde, ora sanguinrio. Nota-se

    ambiguidade na obra de Tcito quando ele mostra por um lado a imagem de um tirano

    sanguinrio e por outro a imagem de um covarde passivo. Suetnio, por sua vez,

    constri a representao desse imperador partindo de sua inaptido fsica e moral. Ele

    alega ser injustificvel sua ascenso ao posto imperial. No relato suetoniano, o carter

    sanguinrio de Cludio ofuscado pelo destaque dado a sua inaptido e passividade

    diante da ao de mulheres e libertos.

    Todas essas fontes anteriores tm como referncia Sneca e sua stira

    Apocolocyntosis. No que Tcito, Suetnio ou Dio Cssio no tivessem tido acesso a

    outras fontes, mas notria a recepo da obra de Sneca por estes autores e de sua

    representao de Cludio sculos depois de ter escrito sua obra. Os elementos presentes

    na obra, tais como os vcios e o comportamento de Cludio, certamente formam a base

    para as representaes construdas. Ou seja, existe uma supremacia da obra senequiana

    diante de outras provveis fontes usadas por Tcito e Suetnio. Sneca constri uma

    imago de Cludio em que duas caractersticas sobressaem s demais: a estupidez, com a

    qual Cludio apresentado no incio, e a mais marcante, aps a passagem do discurso

    de Augusto (SEN. Apocol. X), a crueldade. Assim a sua passividade, representada pelo

    servilismo de Cludio, notada apenas diluda em poucas passagens na obra de Sneca.

    Isso marca a mais profunda diferena entre Sneca e os demais autores das outras

    grandes fontes que tratam de Cludio e seu principado. A passividade de Cludio em

    Sneca quase inexistente: a inteno do autor reafirmar a estupidez (que poderia ser

    associada passividade) e, com maior nfase, a crueldade. Messalina ou Agripina,

    esposas de Cludio e que estiveram por trs de vrias intrigas palacianas, em momento

    algum so citadas como coautoras dos crimes no Principado de Cludio, bem como os

    libertos. A nica parte em que apresentada a culpa dividida entre Cludio e outras

    personagens no momento da stira em que Cludio encontra no Trtaro Messalina e

    Narciso. Ou seja, na perspectiva senequiana Cludio o nico responsvel pelos crimes

  • 13

    cometidos em seu governo. Na contramo das perspectivas das fontes literrias,

    esttuas, epigrafia e numismtica apresentam outra imagem de Cludio. Logicamente

    devemos refletir sobre a questo da autoria e do domnio destas diferentes

    representaes. Sendo estas representaes em grande nmero, usando diferentes

    suportes e regimes de registro, seria impossvel compar-las todas no mbito de uma

    dissertao de Mestrado. Sendo assim, neste trabalho nos propomos a analisar as fontes

    antes destacadas: os Anais, de Tcito; a Vida de Cludio, de Suetnio, e a

    Apocolocyntosis, de Sneca.

    O uso do termo em latim imago baseado na ideia de representao, imagem

    mental. Esse termo tambm citado em Quintiliano: quarum ambitiose a quibusdam

    numerus augetur, sed maxime necessarias attingam. est igitur unum genus, quo tota

    rerum imago quodammodo verbis depingitur (QUINT. Inst.VIII, 3.64, grifo meu) e

    Tcito: an, si ad moenia urbis Germani Gallique duxerint, arma patriae inferetis?

    horret animus tanti flagitii imagine. (TAC. Hist. IV, 58, grifo meu).

    Para o entendimento desse conceito, aplicamos as teorias apresentadas por Roger

    Chartier na obra A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Nesta obra, o

    autor elucida como o estudo das representaes favorece os estudos das Cincias

    Sociais, e, evidentemente, os estudos da Histria, a captar as diferentes realidades

    sociais que norteiam as fontes com as quais trabalhamos. Para Chartier, essencial que

    identifiquemos o modo como construdo, pensado, dado a ler os diferentes lugares e

    momentos dentro da realidade social.

    Quando nos voltamos para a vida social, tomamos como objetos as formas e os

    motivos para a sua representao e procuramos ter como pensamento a anlise do

    trabalho de representao das classificaes e das excees que constituem as

    configuraes sociais e conceituais de um dado espao e tempo. No entanto, o que

    Chartier analisa como Histria Cultural que devemos refletir sobre o sentido que estas

    representaes tomam:

    As percepes do social no so de forma alguma discursos neutros:

    produzem estratgias e prticas (sociais, escolares, polticas) que tendem a impor uma autoridade a custa de outros, por elas

    menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para

    os prprios indivduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta

  • 14

    investigao sobre as representaes supe-nas como estando sempre

    colocadas num campo de concorrncias e de competies cujos

    desafios se enunciam em termos de poder e de dominao.2

    Para Chartier, compreendemos melhor uma obra e a inteno do autor quando

    levamos em considerao o contexto no qual o seu trabalho fora produzido e, por este

    motivo, devemos ter em mente o processo de civilizao. Este possibilita ao historiador

    seguir do discurso ao fato, indagando a fonte como simples instrumento de mediao e

    tambm como testemunho de uma realidade. Mesmo que as representaes busquem a

    universalidade, devemos ter em mente que elas so determinadas predominantemente

    pelos grupos que as forjam.

    Aplicando esses conceitos de Chartier nossa pesquisa, constatamos que h,

    tendo como ponto de anlise o Principado de Cludio, uma disputa de interesse ao

    determinar a representao, a imago deste imperador. Ao analisarmos as trs fontes, a

    stira Apocolocyntosis de Sneca, a histria Anais de Tcito e a biografia Vida dos Doze

    Csares de Suetnio, percebemos uma gama de elementos utilizados para montar a

    representao desse imperador que so decididos de forma arbitrria para corresponder

    a determinado interesse do autor de cada obra. Vrios so os motivos que levaram os

    autores a escolherem os elementos, e, ao buscar a resposta pela sua escolha, elucidamos

    um pouco da sociedade do autor no dado momento da composio de sua obra. Ainda

    aqui, h a possibilidade de contrapor a imagem gerada pelos autores com a imagem

    divulgada pelos meios dominantes do Principado. Atravs do estudo da numismtica, da

    epigrafia, de fontes textuais, de esculturas, avaliamos tambm a imagem que o prprio

    imperador queria passar de si mesmo. E, a partir desse processo, podemos entender o

    porqu alguns elementos da representao esboada pela Domus Caesaris

    permaneceram e outros foram deturpados em cada obra.

    Outro conceito que norteou esta pesquisa a dicotomia entre pblico/privado.

    Analisamos como base para a definio de pblico e privado o estudo de Aloys

    Winterling no quarto captulo de sua obra Politics and Society in Imperial Rome. Neste

    captulo o autor esclarece que no Imprio o problema da distino entre pblico e

    privado torna-se mais marcante. Primeiro, porque o Imperador no se encaixa na

    2 CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes.Traduo de Maria Manuela

    Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17.

  • 15

    estrutura da repblica, como um magistrado, no podendo ser deposto e apenas

    substitudo quando morto. A domus do Princeps se desenvolveu para uma aula. E em

    muitos aspectos era aberta a vrios setores da populao, adquirindo caracterstica de

    espao civil mesmo mantendo fundamentais distines. O fiscus, patrimonium e libertos

    e escravos so elementos aqui que tambm so importantes a serem observados, pois,

    apesar de estarem ligados diretamente ao Imperador so de utilidade da sociedade como

    um todo. O fiscus e o patrimonium, quando bem administrados, no beneficiavam

    apenas o imperador e sua famlia, mas o Imprio. J os escravos e libertos, apesar de

    terem vnculos familiares com os Imperadores, eram incumbidos a postos chaves na

    administrao imperial e transferidos ao sucessor do trono quando um imperador

    morria. Tambm vale aqui ressaltar que a posio de destaque do Princeps favorecia

    que mulheres e outros familiares ao seu redor adquirissem um poder poltico, apesar de

    serem barrados - como no caso das mulheres - na arena poltica. fcil provar que a

    diferena entre as antigas e modernas circunstncias tm sido utilizadas para a

    terminologia de pblico e privado. O poder de vida ou morte dos patres familias em

    contraposio a uma prerrogativa pblica ou de autoridade do Estado em julgar as

    pessoas, as diversas reas de uma domus que se distanciam da privacidade no sentido

    moderno, ou mesmo os banquetes que no mundo romano podem ser analisados como

    algo particular visto com fins polticos, logo pblico, nos tempos modernos.

    Segundo Winterling a anlise das fontes no nos permite com exatido definir o

    que pblico e o que privado para os romanos. No entanto, Winterling aponta para a

    anlise do uso semntico de tais termos para assim se definir o que seria essas duas

    categorias, especialmente sua aplicao sobre a estrutural sociopoltica do Imprio,

    legitimando o governo do Princeps.

    Magistrados 'privados', segredos 'pblicos', jogos 'privados' diante do pblico cvico, a sequncia "pblico - privado - imperial" que

    simultaneamente mantm e anula os termos opostos: enquanto a

    continuao da velha dicotomia claramente possui um carter

    contrafactual, essa inovao semntica produz paradoxos por ser contempornea com a antiga terminologia. A expectativa normativa

    do comportamento do Imperador que vinha de mo em mo com as

    novas distines princeps/privatus e princeps/publicus igualmente paradoxal. Era esperado que ele se comportasse como um privatus

    ainda que ele fosse fundamentalmente diferente dos outros.3

    3 WINTERLING, Alloys. Politics and Society in Imperial Rome. Wiley-Blackwell. 1. ed. 2009, p. 73

  • 16

    Outro uso semntico destacado por Winterling e que merece destaque o que a

    prpria mquina imperial se utilizou para se posicionar dentro da dicotomia de

    publicus/privatus. Segundo o autor, principalmente do perodo de Nerva a Marco

    Aurlio, momento em que as instituies do governo imperial j estavam seguramente

    concretizadas, permitiu-se aos imperadores adaptarem-se a esta crtica republicana,

    excluindo a figura do Imperador do discurso. Ao se excluir o Imperador, gerou-se uma

    forma ambgua de discurso, um tipo de paradoxo que vinha sendo realizado, e que retia

    a contrafactualidade em que Imperador e aristocracia j estavam inseridos. Ou seja, este

    processo significou um possvel afastamento da corte dos assuntos restritos unicamente

    ao Estado romano. A aristocracia aceitou este discurso, que desencadeou o mesmo

    tempo na perda da funo de manter a velha Res Publica.

    O terceiro uso semntico destacado por Winterling apresenta duas dicotomias

    princeps/privatus e princeps/publicus. Atravs dessas permitido ao Imperador ser

    analisado diante dos dois contextos, e no fugindo da situao singular oferecida pelo

    Principado, em que instituies republicanas existem, mas que se mostram por diversas

    vezes subordinadas ao poder imperial:

    Por este razo, a nova diferenciao semntica contempornea, respectivamente, princeps/privatus princeps/publicus, que almejava

    fazer justia s mudanas, foi capaz apenas de tomar a forma do

    paradoxo "pblico - privado - imperial". Enquanto a velha distino

    subordinava o Imperador e sua esfera de ao diferena em uma maneira contrafactual, e a nova paradoxalmente depositava - de novo

    contrafactualmente - distinguir a um Imperador pblico de um

    Imperador privado.4

    Desta forma, para nossa pesquisa, a conjuntura princeps/privatus visou anlise

    do Imperador em relao aula Caesaris, e princeps/publicus a anlise do Imperador

    em relao s polticas do Estado Romano. Isto permite que possamos ler as fontes de

    maneira a distinguir o Imperador com relao ao controle exercido sobre a aula, o modo

    como essa era representada atravs da mquina imperial, e o modo com que seus

    membros adquiriam influncia junto ao Imperador e como a usavam. Do mesmo modo,

    permite tambm avaliar as aes dos Imperadores voltadas para o Estado Romano,

    como exemplo sua relao com o Senado, com as legies, com os povos limtrofes ao

    Imprio Romano e as polticas de construo de obras pblicas.

    4 Idem, p. 76.

  • 17

    essencial esta diferenciao para entendermos melhor a representao de

    Cludio, principalmente para a historiografia que tende a demarcar fortemente os

    assuntos relativos domus Caesaris e a poltica de Estado empregada por este

    Imperador.

    Buscamos analisar o processo pelo qual as fontes criam a imago de Cludio.

    Aventamos a hiptese que essa imago possui elementos comuns nas trs fontes

    analisadas, mesmo essas sendo de gneros literrios distintos e de pocas distintas.

    Cremos que a partir da primeira imago criada por Sneca na stira menipia

    Apocolocyntosis so gerados certos signos, certas perspectivas, certas expectativas que

    perduram ao longo do tempo at serem novamente observados na obra Anais de Tcito.

    Esta obra de cunho histrico que aborda tanto os assuntos relativos poltica do Imprio

    como os assuntos da corte no Principado de Cludio continua a usar certos signos,

    certas perspectivas que j se encontravam presentes em Sneca. O mesmo processo de

    uso de certos signos e expectativas ocorre com a obra A Vida dos Doze Csares, que

    contm uma biografia de Cludio.

    Outra hiptese com a qual trabalhamos que grande parte das imagines geradas

    nas trs obras so fundamentadas em aspectos morais. Estes aspectos morais so

    representados tanto por um mos maiorum quanto por expectativas tidas como ideais de

    comportamento dos Imperadores nas dicotomias Princeps/publicus e Princeps/privatus.

    A aproximao ou afastamentos dessas duas normativas determinaram o carter que a

    imago de Cludio adquiriu em cada obra analisada.

    Nossa pesquisa se divide em quatro captulos. Um de debate historiogrfico

    intitulado O Poder do Princeps - um breve balano historiogrfico sobre as bases do

    poder do Imperador em Roma, em que abordaremos as diversas instncias de

    sustentao do poder imperial. Faremos uma escolha por quatro perspectivas: a primeira

    delas analisa que o perodo imperial formado por uma diarquia (Imperador e Senado

    governando o Imprio cada qual com sua jurisdio, e cada um legitimando a ao do

    outro), a segunda sobre o poder imperial estaria relacionada ao emprego do patronato

    imperial, e de como a aplicao deste possibilitou a formao de um partido ou de uma

    corte que centralizou o poder do Imprio em uma casa, a Domus Caesaris; a terceira

  • 18

    perspectiva se baseia em analisar o Imperador como algum soberano e o controle do

    exrcito e de algumas instncias judicirias confeririam ao Imperador poder absoluto

    sobre os demais sditos, e uma ltima dada pela relao entre Imperador e os diversos

    grupos sociais formadores do Imprio, tais como a aristocracia senatorial e a plebe, e

    como o controle destes grupos davam suporte tanto poltica imperial como prpria

    pessoa presente no cargo de Princeps.

    Tambm neste captulo falaremos um pouco sobre o Principado de Cludio, e

    sua relao com aos diversos setores da sociedade romana: a tentativa de uma poltica

    de harmonia com o Senado, o tradicionalismo e conservadorismo de seu Principado, a

    centralizao poltica, valorizao da disciplina nos exrcitos, a poltica de apoio s

    provncias, as reformas na composio do Senado. Isto de maneira simplificada, j que

    retomaremos estes assuntos ao longo dos demais captulos.

    Os demais captulos trataram da abordagem das fontes. Escolhemos separar

    cada fonte em um captulo para aprofundar em suas particularidades. No entanto, sem

    perder a importante conectividade existente entre elas. O segundo captulo intitulado

    Sneca e a cruel perspectiva em Apocolocyntosis trata da obra de Sneca,

    Apocolocyntosis, e a representao de Cludio que se extrai desta. Falaremos um pouco

    sobre a vida de Sneca e o contexto de sua atuao no Imprio. Tambm abordaremos

    sua relao direta com o Imperador Cludio, tratando seu exlio e seu retorno como

    tutor de Nero, e por fim a sua obra Apocolocyntosis.

    Feito isso iremos para a anlise da fonte em si. Listarei as passagens que tocam

    em determinados valores da representao de Cludio e comentarei os recursos

    utilizados por Sneca para criar uma perspectiva negativa de Cludio. Estes valores, de

    incio, pensamos em separar nas seguintes partes:

    - Perseguio e assassinatos de senadores;

    - Aes de governo;

    - A Domus Caesaris;

    - Comportamento e postura do Imperador Cludio.

  • 19

    O terceiro captulo dedicado anlise da obra de Tcito intitulado Tcito e a

    perspectiva da Domus Caesaris. Neste captulo abordaremos a obra de Tcito, Anais, e

    a representao que este autor faz do Imperador Cludio. Falarei um pouco sobe a vida

    de Tcito, dando enfoque ao perodo de sua vida em que esteve presente nas esferas de

    poder durante os principados de Domiciano e Trajano. Analisarei alguns pontos centrais

    para a composio de sua obra, bem como estes se relacionam com o Principado em si.

    Por fim, falarei um pouco sobre a obra em anlise, os Anais, dando enfoque

    composio dos livros sobre o Principado de Cludio.

    Feita esta etapa, partirei para a anlise da fonte em si. Novamente listarei as

    passagens que tocam determinados valores atribudos a Cludio e que so evidentes em

    sua representao na obra de Tcito. A diviso destes valores ao longo do captulo

    seguir um modelo semelhante ao do captulo anterior, ficando divididos nas seguintes

    partes:

    - Perseguio e assassinato de Senadores;

    - Aes de governo;

    - A Domus Caesaris;

    - Comportamento de Cludio.

    O quarto captulo intitulado Suetnio e a inaptido de Cludio ao Principado

    aborda a obra de Suetnio, A Vida dos Doze Csares, e a representao que este autor

    faz de Cludio nesta obra. Falaremos um pouco sobre o autor e como este se insere na

    estrutura de poder imperial, como por exemplo, quando ocupou o posto de ab epistulis

    durante o Principado de Adriano. Analisaremos tambm alguns temas centrais na

    composio das biografias suetonianas, destacando como estruturada a biografia de

    Cludio.

    Realizada esta etapa, faremos a anlise da obra em si e dos elementos

    utilizados por Suetnio para a composio de uma representao de Cludio, tendo

    como ponto chave a inaptido deste como caracterstica marcante da biografia. A

    diviso dos elementos que prope neste captulo ter algumas diferenas em relao aos

    demais:

  • 20

    - A famlia de Cludio;

    - Falta de um grande cursus honorum;

    - Ascenso ao Principado de aes de governo;

    - Postura e comportamento de Imperador.

    Por fim, realizaremos uma concluso onde buscaremos interligar as ideias

    presentes nos quatro captulos anteriores de forma definitiva.

  • 21

    1 O PODER DO PRINCEPS: UM BALANO HISTORIOGRFICO SOBRE AS

    BASES DO PODER DO IMPERADOR EM ROMA

    Este levantamento historiogrfico visa a analisar quais so as principais

    abordagens no estudo das bases do poder dos Imperadores romanos. Este tema central

    aos estudos do Principado romano e tem sido abordado sob as mais diferentes

    perspectivas, uma vez que envolve os mais diversos campos da experincia social,

    como, para citar os exemplos mais marcantes, a economia e a religio. Nossa inteno

    apontar que para estas diversas perspectivas existem tanto a influncia da esfera pblica

    quanto da privada para a manuteno do poder por parte de Imperador. Relaes de

    patronato e servilismo, caractersticos da esfera privada, sendo praticados pelos grandes

    senhores da aristocracia e seus libertos e escravos, esto constantemente associadas com

    atitudes de alcance pblico tal como o comando das legies e outras aes a servio do

    Imprio.

    Este captulo surgiu da necessidade de se rever parte do que havamos proposto

    no projeto de mestrado, que visava a abordar o conceito de mos maiorum nas

    representaes dos Imperadores romanos. Porm, ao longo da pesquisa, alguns

    questionamentos s proposies iniciais foram se consolidando e isto implicou em um

    desvio do objetivo central inicial. Questes como: O que , em um todo, o mos

    maiorum? E, se ele mutvel, como j fora apresentado no projeto de pesquisa, de qual

    mos maiorum trataremos para estudar como o governo de Cludio foi avaliado? Seria

    aquele ligado ao tempo da fundao de Roma? Ou seria aquele vinculado ao projeto de

    restaurao de Augusto, que pregou uma revalorizao deste conceito e fez uso dele

    para aumentar seu poder? Ou talvez aquele da poca de Cludio, que, assim como

    Augusto, almejou que a sociedade se voltasse ao mos maiorum como forma de conduta

    social? Ou ainda aquele da poca de Tcito e Suetnio, que tem como referncia as

    virtudes de Trajano como possvel definio do mos maiorum?

    A soluo encontrada por ns para assim podermos analisar o julgamento

    moral dos Imperadores romanos, e em especial Cludio, tem como base as expectativas

    que principalmente a aristocracia romana tinha sobre o que um Imperador teria que ser e

    fazer. Esta informao possvel observar nos documentos, j que as trs fontes

  • 22

    utilizadas para nossa pesquisa foram escritas por aristocratas romanos. Sneca e Tcito

    eram senadores, enquanto Suetnio era equestre. Todos eles estiveram presentes na

    corte imperial. De forma mais destacada temos o caso de Suetnio, que foi ab epistulis

    no Principado de Adriano e o de Sneca, preceptor e um dos principais conselheiros de

    Nero. Nos escritos destes autores possvel observar que a aristocracia romana tinha

    uma srie de expectativas sobre o que o Imperador deveria fazer para governar e, assim,

    ser considerado um bom Imperador. Boa parte destas expectativas comum para as trs

    fontes que analisamos Apocolocyntosis, de Sneca, Anais, de Tcito, e A Vida dos

    Doze Csares, de Suetnio.

    Primeiramente optamos, assim, pela discusso de quatro possveis vises para

    se entender o poder imperial em Roma. Como uma primeira viso, destacaramos aquela

    que analisa que o perodo imperial formado por uma diarquia (Imperador e Senado

    governando o Imprio, cada qual com sua jurisdio, e cada um legitimando a ao do

    outro). Esta perspectiva se concentra em uma leitura da sociedade romana por um

    carter mais jurdico, mais preso s leis, e que tem como grande nome o historiador

    alemo Christian Mathias Theodor Mommsen. Outra viso sobre o poder imperial

    estaria relacionada ao emprego do patronato imperial, e de como a aplicao deste

    possibilitou a formao de uma corte que centralizou o poder sob o Imprio em uma

    casa, a Domus Caesaris. Como grande nome dessa perspectiva, temos Andrew Wallace-

    Hadrill. Uma terceira viso toma o Imperador como um soberano que tem no controle

    do exrcito e de algumas instncias judicirias as fontes de seu poder absoluto sobre os

    demais sditos. Como um nome que classificamos seguir esta viso, temos Edward

    Gibbon. E uma ltima viso dada pela relao entre Imperador e os diversos grupos

    sociais formadores do Imprio, tais como a aristocracia senatorial e a plebe, e como o

    controle destes grupos dava suporte tanto poltica imperial como prpria pessoa

    presente no cargo de Princeps. Como exemplo, analisamos o estudo sobre a honra de

    Lendon.

    Outra escolha efetivada diz respeito ao recorte temporal. Centramos nossa

    anlise no perodo que a historiografia chama de Alto Imprio, que se estende do ano

    31(ou 27) a.C. at 193 d.C. Esta escolha tem como critrios o fato de as fontes

    estudadas (Sneca, Tcito e Suetnio) estarem situadas neste recorte temporal e pelo

    fato de que no sculo III a sociedade romana passaria por uma srie de mudanas

  • 23

    sociais que alterariam significativamente as formas de poder, em especial em razo da

    assim chamada anarquia militar e a ampla difuso do cristianismo, com sua adoo

    pelos Imperadores, o que alterou bastante os aspectos simblicos relativos ao poder.

    A apresentao da bibliografia se concentrar na anlise de como os

    historiadores destacam os meios pelos quais os Imperadores romanos do sculo I e II

    mantinham seu poder frente sociedade e por quais vias eram questionados ou mesmo

    contestados e depostos.

    1.1 O Poder Imperial em meio Repblica

    Uma das hipteses para explicar a manuteno do poder imperial est centrada

    na ideia de que houve uma preservao das magistraturas republicanas em meio a um

    sistema imperial. Essas magistraturas republicanas teriam sido a base para a

    administrao imperial nos anos iniciais do Principado. Ou seja, Principado e Repblica

    seriam sistemas diferentes e at mesmo opostos (conforme o aspecto que se considere),

    mas que se sobrepuseram constantemente.

    Estas declaraes, relativas situao jurdica, tambm so

    inequvocas: regime senatorial e o mando do imperador so

    incompatveis em termos de direito constitucional ("exclui ... uns aos outros"), eles s coexistem, e a convivncia no uma expresso

    dentro do sistema jurdico. Isto descrito como "real" ("praktisch"),

    um termo (semelhante encontrada em "factual" e "de fato"), que emprega regularmente Mommsen como antnimo de "legal". Segundo

    Mommsen, dyarchia descreve, portanto, um estado constitucional de

    coisas em que duas estruturas legalmente incompatveis de

    organizaes polticas ("instituies") convivem lado a lado.5

    Nesta perspectiva, o Imperador no possua amparo legal coerente que

    legitimasse seu poder por si mesmo. Os imperadores precisavam buscar ento no

    Senado e no povo de Roma a legitimao de seu poder. O Senado e o povo de Roma

    esperavam que o Imperador, por meio desse poder a ele concedido, zelasse pela ordem e

    que os eventos das Guerras Civis, que assolaram Roma no fim do sculo I a.C., e

    voltaram a perturbar a paz interna nos anos 68-69 d.C. no ocorressem novamente.

    5 WINTERLING, Aloys. Politics and Society in Imperial Rome. London: Wiley-Blackwell, 2009, p. 130.

  • 24

    Nesta perspectiva, quando Augusto restabeleceu a paz interna, ele disse no fundar uma

    nova forma de governo, mas que estava restituindo os poderes ao Senado e ao povo de

    Roma6.

    Mommsen (1875) tem como princpio a ideia de uma diarquia no Imprio

    romano. Desde os primrdios da repblica, as principais magistraturas eram compostas

    aos pares: dois cnsules, dois pretores (exceo ditadura, que correspondia a uma

    situao extraordinria). Assim, mesmo no Principado, o Imprio mantinha-se em uma

    diarquia: o Senado com poderes perptuos e que fariam a transio de poder de

    Imperador para Imperador, e o Imperador que daria ordem sociedade como um todo a

    partir da vitria de Augusto na batalha de cio (31 a. C.). Os nicos dispositivos

    legais obtidos por Augusto para formalizar seu poder foram o imperium proconsulare

    e a tribunicia potestas. Havia um auxlio mtuo entre Senado e Imperador. Como nos

    apresenta Winterling, a ideia de diarquia de Mommsen estaria marcada na rotina da

    atividade pblica. A distribuio de responsabilidades entre imperador e senado deixaria

    claro tambm certo desequilbrio entre os dois polos de poder. Para Winterling:

    Em relao aos assuntos da administrao prtica, Mommsen diagnosticou de certo modo uma colaborao de Senado e Principado,

    em parte um diviso de competncias, e de certo modo uma

    competio entre ambos "nos quais, contudo o poder imperial absolutamente o mais forte". Mommsen cita em geral, a administrao

    imperial como um exemplo de diviso de competncias, divididos em

    termos de situao entre Senado (provncias senatoriais, Roma e a Itlia) e Imperador (administrao imperial; por conseguinte as

    finanas pblicas - o Senado era responsvel pelo fundo comunal, o

    aerarium, cuja significncia, contudo, diminuiu em relao ao novo

    fundo imperial; e finalmente, a exclusiva responsabilidade do

    Imperador para os assuntos militares tambm) 7.

    No somente estes afazeres eram divididos, mas tambm as honrarias amide

    partiam do Senado, assim como frequentemente ocorria com a cunhagem de moedas,

    por exemplo. Este ltimo dado pode ser constatado atravs de uma anlise das fontes

    numismticas. A maioria das moedas cunhadas possui a sigla SC (ex senatus consultum)

    6 In consulatu sexto et septimo, postquam bella civilia exstinxeram, per consensum universorum potitus

    rerum omnium, rem publicam ex mea potestate in senatus populique Romani arbitrium transtuli. (Em meu

    sexto e stimo consulados, depois de extinguir as guerras civis e, por consenso de todos, senhor de tudo,

    passei a repblica de meu poder para o arbtrio do Senado e do povo romano) AUG. RGDA 34,1. Trad:

    TREVIZAN, M. A., VASCONCELLOS, P. S., REZENDE, A. M. de. 7 WINTERLING, op. cit., p. 131.

  • 25

    8, o que significa que apesar das oficinas de cunhagem estarem sob administrao

    imperial, era o Senado que aprovava parte expressiva da emisso monetria.

    J o estudo de Fbio Faversani (2001) constri a hiptese segundo a qual o

    Estado se formaria por uma parte institucional e de uma parte orgnica, havendo grupos

    que teriam seus prprios interesses a buscar atravs do Estado. Para ele, qualquer forma

    de governo precisa de meios para legitim-lo. Neste sentido, o Principado teria sua parte

    orgnica representada pela centralizao poltica no Imperador e os meios de se

    beneficiar do Estado e se daria pelo acesso dos membros da sociedade clientela

    imperial. Articulada a essa parte orgnica estaria institucionalizao que legitimaria a

    existncia do Principado. O controle do Imperador sobre as demais camadas sociais se

    desenvolve por meio de aes de cunho "apoltico" (de carter paternalista-clientelista),

    mas se utilizando de meios institucionais para tal, oferecendo magistraturas e honrarias

    que existiam em funo da manuteno do carter institucional do Estado. Analisando a

    proposio de Sneca acerca da posio de Nero, afirma que:

    O Imperador no faz dos senadores, nem de ningum, seus amigos.

    Esse o pressuposto do ideal senatorial, no o de Sneca. O

    Imperador de Sneca tem apenas inferiores, exceo feita aos deuses. O Imperador de Sneca trata aos homens como seus filhos. Ele ensina

    a Nero que lhe foi concedido o ptrio poder graas a seu

    comedimento em consultar os filhos e colocar seus prprios interesses depois dos deles (III, XII, 2). Afinal, fundamentada e estvel a

    grandeza daqueles que todos sabem estar tanto acima quanto a favor

    deles (III, I, 3). Assim, se Sneca tivesse de impor alguma direo a

    Nero, no seria o ideal senatorial, mas o clientelismo de Estado! Essa forma paternalista de governar guiou no s todo o principado de

    Nero, como o de muitos Imperadores que o sucederam.9

    Deste modo, o Imperador se relacionaria com a sociedade romana tanto atravs

    de relaes pessoais com seus dependentes quanto pela ocupao dos espaos

    institucionais mais importantes por seus aliados. Seu poder devia sobressair ao dos

    demais. Para Sneca, particularmente, fica claro que o imperador deve usar tanto de seu

    poder pessoal quanto do aparato do Estado para favorecer seus sditos, todos eles

    considerados seus inferiores. Os sditos, em contrapartida, na perspectiva adotada pelo

    filsofo, deveriam servir ao propsito do Imperador, como os filhos servem ao pai.

    8 MATTINGLY, Harold & SYDENHAM, Edward A. The Roman imperial coinage. Vol. I. London:

    Spink & son, 1948. 9 FAVERSANI, Fbio. A Sociedade em Sneca. (Tese de Doutorado). So Paulo, Universidade de So

    Paulo, 2001, p. 141.

  • 26

    Sneca, por este motivo, criticou Cludio, que se deixava levar por mulheres e libertos,

    e no tinha a postura esperada de um Imperador.

    O estudo de Diane Favro (1992) mostra que Augusto no pode se desfazer do

    sistema republicano para implementar o Principado. O cursus honorum (carreira das

    honras) continuou existindo e foi de grande importncia para os imperadores

    preservarem seu poder sobre a aristocracia romana. Os altos cargos da Repblica, que

    durante o Principado perderam muito de sua efetividade graas jurisdio imperial,

    eram usados como moeda de troca pelo apoio poltica imperial. Os partidrios do

    Imperador contavam com A indicao do Princeps diretamente ou at mesmo

    indiretamente nas eleies para os cargos. Todo esse poder era afirmado em prol da

    ordem pblica, o que na teoria da autora fez com que Augusto fosse considerado um

    Pater Patriae. O prprio Augusto em suas Res Gestae se dizia igual em potestas a

    qualquer um dos romanos que ocupassem magistraturas, mas que ele se distinguia todos

    os demais pela sua auctoritas10

    .

    Ao fornecer a todos os grupos um papel na manuteno urbana,

    Augusto estabilizou uma extensa base de poder. Igualmente

    importante, ele criou o aspecto de uma bem ordenada sociedade na quais todos tinham um lugar e responsabilidade na grande capital.

    Ornamentos oficiais visualmente arfimavam o status de cada cargo e

    permitiu a todas as classes, mesmo libertos, aspecto magistral. Conceitualmente, Augusto pode justificar sua incluso como Pater

    Patriae. Um bom pai romano conduzia as vidas de seus descendentes

    e melhorava a domus da famlia.11

    No somente Augusto foi portador desse ttulo, mas nas fontes possvel

    encontrar momentos em que este ttulo de Pater Patriae foi dado a outros imperadores

    que a seu ver souberam fazer grandes administraes em prol do povo de Roma. Um

    desses Imperadores teria sido Cludio que recusara o ttulo em 48, aceitando o ttulo de

    Pai do Senado12

    .

    10 Post id tempus auctoritate omnibus praestiti, potestatis autem nihilo amplius habui quam ceteri qui mihi

    quoque in magistratu conlegae fuerunt. (Depois disso, vi-me frente de todos pela autoridade, mas

    nenhum poder tive a mais do que meus outros colegas tambm de cargo) AUG RGDA., 34,3. 11 FAVRO. Diane. "Pater urbis": Augustus as City Father of Rome. The Journal of the Society of

    Architectural Historians, Vol. 51, No. 1, 1992, p. 83. 12 ob ea Vipstanus consul rettulit patrem senatus appellandum esse Claudium: quippe promiscum patris

    patriae cognomentum; nova in rem publicam merita non usitatis vocabulis honoranda: sed ipse cohibuit

    consulem ut nimium adsentantem. (Por tudo isto props o cnsul Vipsnio que Cludio tomasse o ttulo

    de pai do Senado, porque o nome de pai da Ptria era muito genrico; e os benefcios extraordinrios,

  • 27

    1.2 O Patronato do Princeps Civilis

    Uma das teorias a respeito de como os Imperadores romanos mantiveram seu

    poder durante o Imprio aponta para a formao de grandes redes de patronato e, no

    pice destas redes, uma corte13

    imperial (ou uma Aula Caesaris14

    ). A dominao do

    Estado por parte de Augusto se faz por meio de magistraturas j existentes e controladas

    pelo Senado, e so nelas e no prprio Senado que seus partidrios so colocados para

    manter o controle do Estado.

    Wallace-Hadrill, em Princeps Civilis (1982), avalia que o carter civil do

    Imperador passa a ser preponderante nas relaes sociais em Roma devido

    concentrao do poder em uma corte. Bons e maus imperadores seriam julgados a partir

    da manuteno ou restaurao de uma ordem social e de suas relaes com o Senado. A

    civilitas seria um elemento chave para entender como o Imperador faz uso de seus

    conhecimentos, vivncia e poderes para que isso acontea. Um bom exemplo desse

    processo seria o Imperador Cludio, que criticado nas fontes por ter se tornado

    imperador sem ter assumido grandes responsabilidades anteriormente15

    e por ter

    convivido muito prximo a escravos durante a infncia16

    , mas que exercitava a

    feitos Repblica , tambm pediam extraordinrias recompensas: mas o Csar estranhou ao cnsul esta

    demasiada adulao)TAC. Ann. XI, XXV. 13 As alternativas corte e consilium princepis so mais usadas, tendo sido bastante difundidas e repetidas a

    partir, principalmente, dos trabalhos de Crook (CROOK, J. Consilium Principis. Cambridge: University

    Press, 1955) e Wallace-Hadrill (The imperial court. In: BOWMAN, A. K.; CHAMPLIN, E.; LINTOTT,

    A. (eds.), The Cambridge Ancient History. v. 10: The Augustan Empire, 43 B.C. - A.D. 69. Cambridge:

    Cambridge University Press, 1996, p. 283-308). 14 WINTERLING, Aloys. A court without state. The aula Caesaris. In: Politics and society in Imperial

    Rome. London: Wiley-Blackwell, 2009. O termo aula Caesaris ainda no encontrou muita difuso na

    historiografia Foi proposto por Winterling em livro que tem este ttulo. A obra, escrita em alemo, ainda no foi traduzida.No sendo versados neste idioma, no pudemos estud-la. 15 Pois assim, Tibrio Cludio Nero Germnico, filho de Druso, filho de Lvia, obteve o poder imperial

    sem ter sido previamente testado em qualquer posio de autoridade, salvo apenas ter sido cnsul.

    DioCass. LX, 2. 16

    Estas enfermidades, contudo, no foram a causa de tanto problemas para ele como foram os libertos e

    as mulheres a quem ele se associou. Isto era por demais evidente que qualquer um de seus colegas: ele era

    governado por escravos e mulheres. Desde criana, ele tinha sido criado por pajens e no meio do terror.

    Tinha, por essa razo, fingido simplicidade a uma maior extenso do que era realmente verdade, como ele

    prprio admitiu no Senado. DioCass.. LX, 2.

  • 28

    eloquncia17

    . A teoria que Wallace-Hadrill prope para compreender a natureza do

    poder imperial anlise da Corte Imperial como centro de poder. Aps o processo de

    guerras civis e o povo estando pacificado, a disputa pelo poder estaria centrada na corte

    onde o Imperador concentraria todas as honrarias importantes. Logo, para se ter acesso

    a estas, era preciso estar prximo ao imperador. Ou seja, o poder do Imperador seria

    conferido pela extenso que sua corte alcanaria.

    Relaes sociais encontraram concreta expresso em Roma na

    permuta de officia, a etiqueta de 'servios' de uma natureza puramente cerimonial correspondido de inferior para superior (cliens para

    patronus, amicus para amicus) em mudana para mais benefcios

    materiais. O Imperador era o maior patrono de todos, e no devia nada

    a qualquer cidado. Havia numerosas ocasies, por causa da salutio da manh era formada uma progressiva recepo, quando aos seus amicii

    era permitido apresentar cumprimentos (um privilgio). Mas, isso era

    normal. A Mais dramtica evidncia de sua superioridade era a ateno que ele poderia gerar ao ser visto ao prestar respeito a seus

    inferiores sociais.18

    No entanto, essa hiptese de Wallace-Hadrill no considera o fato do poder ser

    conferido ao Imperador por uma instncia coexistente a ele: o Senado. Outro ponto que

    a ideia de Wallace-Harill no contempla justamente o que acontece em 69, quando os

    candidatos imperiais so feitos longe de Roma, com peso decisivo das legies nas

    rpidas sucesses testemunhadas aps o suicdio de Nero. Ou seja, nesse momento a

    civilitas de Roma deixa de ser central em contraposio fora dos exrcitos. Como

    disse Tcito, foi revelado o segredo do Imprio ("arcanum Imperii)19

    : o imperador

    poderia ser feito longe da corte, por um elemento militar.

    Richard Saller, em sua obra Personal patronage in early empire (1982), indica

    no patronato, enfatizando a Aula Caesaris, o maior sustentculo do poder imperial. Para

    ele, o Imperador asseguraria seu poder indicando as pessoas mais leais para assumirem

    cargos chaves do Estado romano (tanto de cunho senatorial quanto equestre). Isto

    17 Disciplinis tamen liberalibus ab aetate prima non mediocrem operam dedit ac saepe experimenta

    cuiusque etiam publicavit. (Aplicou-se, desde a juventude, s disciplinas liberais com um zelo fora do comum e, repetidas vezes, deu ao pblico amostras do seu saber, em cada gnero) SUE. Cl, 3. 18 WALLACE-HADRILL, Andrew. Civilis Princeps: between citizen and king. Journal of Roman

    Studies, 1982, p. 40. 19 finis Neronis ut laetus primo gaudentium impetu fuerat, ita varios motus animorum non modo in urbe

    apud patres aut populum aut urbanum militem, sed omnes legiones duces que conciverat, evolgato imperii

    arcano, posse principem alibi quam Romae fieri. TAC. Hist. I,.4. (O fim de Nero, aps as primeiras

    efuses de alegria, causou reaes diversas no s aos senadores de Roma, ao povo e Guarda

    Pretoriana, mas em todas as legies e seus generais, uma vez que o segredo do Imprio havia sido

    revelado porque podia se fazer um prncipe fora de Roma).

  • 29

    possvel de se observar nos episdios dos julgamentos no perodo de Cludio, como, por

    exemplo, no episdio da denncia a Valrio Asitico20

    . Essa proposta semelhante de

    Syme. Percebe-se que h uma srie de expectativas em torno das aes do imperador,

    expectativas quanto a certo comportamento moral e conformao de uma aristocracia

    a seu redor. Mais uma vez a proximidade do imperador o objetivo para a aquisio de

    um maior poder ao mesmo tempo em que, ao oferecer certas casas com tais beneficia e

    honores, o Imperador busca a coeso para a continuidade e estabilidade do exerccio do

    seu poder. A oposio a este partiria da camada no favorecida por este beneficium, ou

    daqueles que no aceitavam ser subalternos a setores vistos como mais baixos pela elite

    dos homens livres na sociedade para alcanar estes beneficia (especialmente mulheres e

    libertos). Uma das pessoas que criticaram amplamente esta poltica - mas que foi

    beneficiado por ela - foi Sneca, notadamente durante o Principado de Cludio e mais

    especialmente sob Nero. Em sua obra Apocolocyntosis, Sneca, que critica Cludio por

    seus libertos (assim como suas esposas) possurem grandes poderes dentro da Aula

    Caesaris21

    , teve seu regresso do exlio pelas graas de Agripina, segunda esposa do

    Imperador e me de Nero, que lhe passou a tarefa de ser preceptor de seu filho22

    .

    Amicitia Caesaris era assumida pelos contemporneos por transmitir com isto honores et auctoritas - uma apropriao a qual numerosos

    exemplos ao longo do Principado confirmam. Na viso de Tcito, era

    20 sestertium quindecies et insignia praeturae Crispino decreta. adiecit Vitellius sestertium decies Sosibio,

    quod Britannicum praeceptis, Claudium consiliis iuvaret. rogatus sententiam et Scipio, 'cum idem' inquit

    'de admissis Poppaeae sentiam quod omnes, putate me idem dicere quod omnes,' eleganti temperamento

    inter coniugalem amorem et senatoriam necessitatem. (O senado decretou um milho e meio de sestrcios

    a Crispino, e as insgnias de pretor; Vitlio acrescentou que se desse mais um milho a Sosbio, por ser o

    mestre de Britnico, e o conselheiro de Cludio. Sendo rogado Cipio para dar seu parecer, respondeu: Pois que eu concordo convosco nos crimes de Popeia, tambm agora deveis crer que em tudo o mais

    serei da vossa opinio. Prudncia esta admirvel, com que nem faltou ao amor conjugal, nem

    obrigao de votar como senador) TAC. Ann, XI, 4. 21 Excandescit hoc loco Claudius et quanto potest murmure irascitur. Quid diceret, nemo intellegebat, ille

    autem Febrim duci iubebat, illo gestu solutae manus et ad hoc unum satis firmae, quo decollare homines

    solebat, iusserat illi collum praecidi. Putares omnes illius esse libertos: adeo illum nemo curabat. (Neste

    momento, Cludio pega fogo e dasabafa com um barulho danado. Ningum compreendia nada:

    certamente, mandava que a Febre fosse presa; e mandava com aquele seu gesto da mo trmula, todavia

    firme s para enviar a gente ao cadafalso. Ele tinha dado a ordem de cortar-lhe a cabea; mas ali todos

    pareciam ser libertos, pois ningum lhe dava ouvido.) SEN. Apoc., VI, 2. 22 at Agrippina ne malis tantum facinoribus notesceret veniam exilii pro Annaeo Seneca, simul praeturam impetrat, laetum in publicum rata ob claritudinem studiorum eius, utque Domitii pueritia tali magistro

    adolesceret et consiliis eiusdem ad spem dominationis uterentur, quia Seneca fidus in Agrippinam

    memoria beneficii et infensus Claudio dolore iniuriae credebatur. (Porm Agripina, para no se dar

    somente a conhecer por aes de iniquidade, alcanou para Aneu Sneca o perdo do seu desterro, e

    dignidade de pretor, tendo para consigo, que executava uma coisa muito do agrado do pblico pela fama

    eminente de seus talentos e letras; que nele teria bom mestre para a educao de Domcio, e que os seus

    conselhos valeriam muito para realizar suas esperanas futuras. E havia para isto todo o fundamento,

    porque Sneca, tendo sido desterrado por Cludio, naturalmente lhe conservava sempre rancor pela

    lembrana da injria, e era ao mesmo tempo agradecido mo benfeitora de Agripina)TAC. Ann, XII, 8.

  • 30

    pela amicitia principum que Popeo Sabino (cos. 9 d.C.) mudou por

    atravs de todas as magistraturas senatoriais e teve o governo de

    grandes provncias.23

    Winterling (2009), tentando recuperar uma tradio Mommseniana, reflete que

    no h aparatos legais que confiram poder ao Imperador. O que existe durante o

    Principado so duas estruturas antagnicas de poder que se sobrepe e se infiltram uma

    na outra. Prncipe e Senado coexistiram cada qual com sua jurisdio, e uma

    legitimando a existncia da outra. O Senado conferia o poder ao Princeps, alm de

    conceder formalmente certas honras a ele, a seus familiares, e a outros aristocratas, alm

    de ser responsvel por certas aes administrativas, como a permisso para cunhagem

    de moedas, ou decidir sobre a declarao de guerra. J o Imperador indica diretamente

    ou indiretamente aqueles que vo ocupar as magistraturas senatoriais e todas as demais,

    sempre que queira (o que, a meu ver, um limite para a hiptese de uma diarquia).

    Enquanto a corte imperial tinha assumido muitas das funes poltica

    das velhas instituies republicanas, estas ainda conservaram seus

    papis determinando o ranquiamento social - o qual elas tinham

    sempre feito. O Imperador podia, naturamente, decidir sobre os membros do Senado, influenciar a ordem no interior do Senado

    atravs do adlectio, tornar seus favoritos aristocratas em cnsules, e

    premiar com a ornamenta pretoriana a seus libertos: isto significa, tambm, que decide sobre quem poderia ocupar as posies no

    ranquiamento social. Ainda que ele estivesse impossibilitado de

    influenciar de fato que os velhos cargos fornecessem ao detentor de status social, que era, a hierarquia como tal. Isso no nega que

    precisamente por causa da imensa significncia do favor imperial e

    por causa da oportunidade de ganhar poder e riqueza resultante da

    proximidade ao Imperador, importantes impropriedades de status existissem no meio das tradicionais ordines desde o Imperador - de

    oportunidade - precisamente no premiasse seus favoritos a posies

    de honra dentro da hierarquia aristocrtica.24

    A anlise de Winterling, calcando-se nos aspectos prticos e concretos da

    atividade poltica, permite-nos pensar que o Imperador, atravs de um controle direto ou

    indireto sobre a eleio dos magistrados, assim como pelo controle das legies (ainda

    que a maioria dos primeiros imperadores nunca estivesse frente de exrcitos), tinha

    condio para regulamentar as disputas polticas de tal modo que os eventos das guerras

    23 SALLER, Richard. Personal Patronage under the Early Empire. London: Cambridge University Press,

    2002. P.43 24 WINTERLING, Alloys. Politics and Society in Imperial Rome. Wiley-Blackwell. 1. ed. 2009, p.P.100

  • 31

    civis anteriores a Augusto no mais ocorressem. Assim sendo, o Imperador teria a

    misso de pacificar e proteger do povo de Roma, e especialmente o Senado25

    .

    1.3 Soberania do Princeps

    Outra alternativa para explicar o exerccio do poder imperial advm do

    controle que o Imperador tinha sobre questes militares e civis. O Imperador possua o

    imperium proconsulare e a tribunicia potesta, o que lhe permitia o controle dos

    exrcitos, em todas as instncias, e poderes judicirios, agindo sempre como uma

    instncia superior na justia romana.

    Juntamente com o controle sobre a mquina militar e sobre as mais importantes

    decises a serem tomadas pelo Estado, havia ainda a concentrao de honras e o

    monoplio do triunfo. Isto impediu que as disputas republicanas continuassem com o

    mesmo vigor que tinham no Principado. O medo da conquista de uma visibilidade

    maior que a do Imperador (que poderia levar o indivduo morte) e as limitaes

    impostas pelo plano imperial, alteram o carter da disputa por poder em Roma. No

    Principado para se ter poder era necessrio estar prximo ao imperador, e em diversos

    momentos se manter em uma posio discreta (ao invs de se projetar), j que as honras

    e reconhecimento deviam estar sempre direcionados ao Princeps.

    O estudo de Gibbon caracteriza bem isso. Em sua obra Declnio e Queda do

    Imprio Romano (1788) o historiador comenta sobre como a decadncia da sociedade

    romana se relaciona com a centralizao do poder nas mos do Imperador, e como a

    mquina militar garantia esse controle. A anlise de Gibbon se concentra no perodo que

    se estende do sculo II em diante, mas muitos conceitos utilizados por ele podem ser

    aplicados ao sculo I. O monoplio do triunfo militar e a garantia do imperium ao

    Princeps limitavam a ao dos generais. Gibbon aponta que a decadncia da sociedade

    teria se iniciado j no sculo II. Uma srie de fatos que refletem no poder do Imperador

    seriam os indicadores de mudanas que levariam o poder imperial ao colapso. Um

    25 Importante lembrar que Senatus Populusque Romanus (Senado e povo de Roma) era a sigla inscrita nos

    estandartes carregados pelas legies de Roma.

  • 32

    primeiro seria a poltica instaurada por Augusto de manuteno das fronteiras do

    Imprio de Roma. Esta poltica foi instaurada por Augusto, pois este imperador

    estimava que a mquina administrativa do Imprio fosse insuficiente para administrar os

    territrios dominados, resultantes de expanso durante a Repblica. As ltimas grandes

    conquistas foram estabelecidas pelos generais republicanos e por Augusto logo no incio

    do Principado. A partir deste, os Imperadores somente mantiveram as fronteiras j

    estabelecidas, mantendo-as conforme os limites naturais (os desertos da frica e

    Arbia ao sul, Tigres e Eufrates a leste, Reno e Danbio ao norte e o Atlntico a oeste).

    Apesar das raras excees, como Cludio26

    , as fronteiras continuaram estagnadas at o

    reinado de Trajano no sculo II.

    Felizmente, para descanso da humanidade, o sistema comedido

    recomendado pela sabedoria de Augusto foi adotado pelos temores e vcios de seus sucessores imediatos. Empenhados na busca do prazer

    ou no exerccio da tirania, os primeiros Csares raramente se

    mostravam s tropas ou s provncias; tampouco estavam dispostos a

    permitir que os triunfos negligenciados por sua indolncia fossem usurpados pelo comando e bravura de seus lugares-tenentes. O renome

    militar de um sdito era considerado insolente usurpao da

    prerrogativa imperial, pelo que se tornava dever, tanto quanto interesse, todo general romano guardar as fronteiras confiadas a sua

    vigilncia sem aspirar a conquistas que se poderiam demonstrar no

    menos fatais a ele prprio que aos brbaros vencidos.27

    Por esta passagem de Gibbon vemos que o controle do Imperador sobre as

    tropas, assegurado pelo imperium proconsulare, um elemento forte para se verificar a

    26 O Imperador Cludio conquistou a Bretanha, que havia sido atacada por Jlio Csar. Expeditionem unam omnino suscepit eamque modicam. Cum decretis sibi a senatu ornamentis triumphalibus leviorem

    maiestati principali titulum arbitraretur velletque iusti triumphi decus, unde adquireret Britanniam

    potissimum elegit, neque temptatam ulli post Diuum Iulium et tunc tumultuantem ob non redditos

    transfugas. [...]Ad cuius spectaculum commeare in urbem non solum praesidibus provinciarum permisit,

    verum etiam exulibus quibusdam; atque inter hostilia spolia naualem coronam fastigio Palatinae domus

    iuxta civicam fixit, traiecti et quasi domiti Oceani insigne. Currum eius Messalina uxor carpento secuta

    est; secuti et triumphalia ornamenta eodem bello adepti, sed ceteri pedibus et in praetexta, M. Crassus

    Frugi equo phalerato et in veste palmata, quod eum honorem iteraverat. (No realizou seno uma nica

    campanha e assim mesmo modesta. Foi quando o Senado lhe conferiu os ornamentos triunfais. Como se

    achasse esta distino inferior majestade do Princeps e desejasse uma honra de um triunfo real,

    escolheu de preferncia, para o adquirir, a Bretanha, em que ningum ainda pusera o p, desde o Divino Jlio Csar, e que se sublevara [...]Permitiu a vinda Cidade, para esse espetculo, no somente dos

    governadores das provncias, mas ainda de alguns exilados. Entre os despojos inimigos, colocou, frente

    de seu palcio, um coroa naval ao lado de uma coroa cvica, para assinalar que ele atravessara e por assim

    dizer, domara o oceano. Sua mulher Messalina acompanhava-o de carro. Atrs dele marchavam os que

    haviam merecido os ornamentos triunfais, todos a p e em toga pretexta, salvo Crasso Frugi, que montava

    a cavalo, ornado de faleras, e vestia um manto ornado de palmas, porque era a segunda vez que obtinha

    tal honorificncia). SUE Cl. , XVII. 27 GIBBON, Edward. Declnio e Queda do Imprio Romano. Trad. Joo Paulo Paes. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2005, p. 34.

  • 33

    fonte do poder imperial e as contradies que decorreriam da. Com base na questo do

    monoplio do triunfo e das honras, outros autores desenvolveram suas teses partindo

    das hipteses de Gibbon.

    Syme, em The Roman revolution (1939), trabalha com a ideia de que Augusto

    formou um novo sistema poltico, o Principado, em meio desordem causada pelas

    Guerras Civis. Com esse grande poder pessoal, assegurou o controle de diversas

    magistraturas, criando uma dinastia e fixando um partido em setores chave do Imprio;

    o que lhe permitiu dar continuidade a sua poltica. Isso s foi possvel porque Augusto

    em momento algum visou desmontar o sistema republicano. Ao contrrio, manteve-o e

    lhe deu certa estabilidade - que havia perdido ao longo dos anos finais da Repblica.

    Augusto pregou uma reformulao moral e poltica da sociedade, "criando" um novo

    mos maiorum, substituindo a velha aristocracia por novas famlias, em evidncia no

    contexto das Guerras Civis e do inicio do governo de Otaviano. Assim, tornou o

    governo mais autocrtico do que nunca atravs da conformao de uma nova

    aristocracia, que exerceria de fato o poder, independentemente de qual fosse a ordem

    institucional.

    O Princeps e seus amigos controlavam os acessos a todas as posies de honra e proveito na carreira senatorial, distribuindo a seus

    partidrios magistraturas, sacerdcios e comandos provinciais. A

    questura admitida a um homem para a mais alta ordem integrar e na

    sociedade, o consulado trouxe nobilidade e um lugar na frente dos ranques da oligarquia.

    28

    Fergus Millar, assim como Wallace-Hadrill, destaca, em sua obra The emperor

    in the Roman world (1977) a importncia das aes concretas dos imperadores para

    compreender quais suas bases de sustentao. Para Millar, o Imperador Romano era

    uma mistura de senador republicano e de rei helenstico (basileus). Nesta perspectiva, o

    privado e o pblico se entrelaariam constantemente, sendo explicitado isso nos consilia

    amicorum do Imperador. Logicamente, fazer parte deste consilium acarretava em ganho

    de poder dentro da sociedade. Mas a nfase de Millar ser dada a outro aspecto do

    exerccio do poder pelo imperador. Este se relaciona como os demais setores da

    sociedade romana fazendo uso da escrita para o cumprimento de muitas de suas

    atividades. por esta via que a jurisdio imperial realmente se mostra e por muitas

    28 SYME, Ronald. The Roman Revolution. Oxford University Press, 2002, p. 369.

  • 34

    vezes por ela que se d o acesso aos benefcios imperiais. uma via de mo dupla, do

    imperador para seus sditos e dos sditos para o imperador. O estudo de Fergus Millar

    o que mais claramente centra a anlise da manifestao do poder imperial na sua prpria

    prtica. Afirma que o poder do Imperador se manifesta pela sua prpria prxis,

    misturando assuntos de domnio pblico e privado constantemente. A jurisdio

    imperial era muito abrangente segundo o autor: poderia atuar dentro da cidade de Roma,

    nas provncias e at mesmo fora dos domnios imperiais, devido a sua relao com

    alguns reinos clientes. Por ser to extensa, em muitos momentos, esta jurisdio causou

    uma srie de ressentimentos por parte da elite senatorial devido interferncia de

    membros da familia imperial em assuntos administrativos do Imprio. Outro ponto

    conflituoso na relao Imperadores e Senado era a atuao jurdica de alguns desses

    Csares. Os Imperadores tinham poder de agir como segunda instncia em assuntos

    relacionados s domus, sendo a primeira instncia reservada aos patres, quando do

    ponto de vista estritamente institucional o Senado era a mais elevada esfera de justia.

    Essa intromisso do Imperador muitas vezes gerava rancor nos senhores, principalmente

    devido atuao de mulheres e libertos sobre o veredicto dos Imperadores. E qual a

    maneira utilizada para agir em contrapartida ao rancor desta elite? A soluo seguida

    pelos Imperadores se apoiava no patronato. Assim utilizando-se da oferta de honrarias,

    como governos provinciais, o apoio a eleies consulares, dentre outras, os Imperadores

    acabavam conseguindo obter em alguns casos a tolerncia e o apoio de suas aes.

    O exerccio do patronato tinha desde o incio sido um essencial

    elemento em funo do Imperador. Toda lenta expanso na escala de

    postos mantidos pelos equites eram preenchidos pelo direto

    apontamento do Imperador, como eram todos os postos imperiais nas provncias imperiais, e muitos outros apontamentos fora do cursus

    central das magistraturas em Roma. A entrada no Senado para aqueles

    que no tinham ascendncia senatorial era seu presente, e assim era a extenso da sua commendatio para alguns candidatos para cada uma

    das magistraturas apropriadas.29

    atravs dessas "correspondncias" que o poder do imperador era levado a

    todas as partes do Imprio. A eloquncia era um fator que permitia ao Imperador

    executar tarefas como controle das provncias, julgamentos e recebimento de

    embaixadas, senatus consulta, e demais trmites, buscando ser persuasivo quanto

    propriedade e pertinncia de suas decises. Atravs dessa mesma via, os que desejavam

    29 MILLAR, Fegus. The Emperor in the Roman World. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd, 2001, p.

    275.

  • 35

    algo do poder central moldavam peties aos imperadores e enviavam embaixadas para

    conseguir os favores imperiais.

    1.4 O Princeps e os grupos sociais

    Como ltima de nossas tipologias para organizar os estudos no que se refere a

    quais fatores seriam decisivos para a consolidao do poder imperial, podemos apontar

    a interao com os diversos grupos sociais que formam todo do Imprio Romano.

    Temos sempre que ter em mente que as fontes no trazem uma forte oposio ao regime

    imperial, mas sim pessoa que ocupa a posio de imperador.

    Um bom estudo que possumos sobre este controle de grupos sociais para a

    manuteno de poder est na obra de Ana Teresa Marques Gonalves. Atravs da

    temtica da oposio a Imperadores, a autora nos mostra como a ao dos diversos

    grupos sociais pode desestabilizar a poltica imperial. Para Gonalves, em sua

    dissertao de mestrado A Oposio aos Imperadores durante o Perodo do Severos:

    uma anlise da obra de Herodiano (2001), o principal foco de oposio aos

    imperadores no primeiro sculo do Principado estava na aristocracia de Roma e da

    Itlia. Considerando a aristocracia como senadores formando um grupo verificamos que

    estes possuam meio de mobilizar as massas, criar opinies, pois estavam envolvidos

    por um meio intelectual capaz de cooptar tanto iguais como outros grupos de mais baixo

    estatuto social como a plebe e o campesinato provincial. Como modo de combater esta

    oposio era comum os Imperadores implantarem seus partidrios dentro das principais

    casas do Imprio. Logicamente, isso no acabava com a oposio, mas controlava

    grande parte das manifestaes.

    No h no mundo antigo fato moral separado do fato poltico no que

    concerne conduo dos desgnios imperiais. A tica era a nica

    esfera de comportamento possvel capaz de limitar o poder do soberano; poder este muito mal limitado, como o prprio Boissier

    afirma. Em muitos momentos conceitos morais defendidos pelos

    formadores da opinio pblica romana, ou seja, a aristocracia, que tem acesso aos meios de comunicao e de produo de ideias da poca,

    so usados para justificar para o real descontentamento poltico,

    econmico e social dos opositores. Suas censuras feriam no apenas o

    homem, mas tambm o soberano, pois ao se tornar imperador esses

  • 36

    dois papis se fundiam num s. O homem que detm o poder

    inseparvel do cargo que lhe d esse poder.30

    O que analisamos que o grupo formado pela aristocracia um importante

    opositor ao Imperador, e que os meios que dispunham podiam mobilizar os demais

    grupos, podiam desestabilizar a poltica assim como a pessoa do Imperador. Essa

    mobilizao possvel graas a uma justificativa atrelada a um poder simblico, um

    poder moralizante, pertencente elite intelectual da sociedade romana. Manter a maior

    parte desse grupo favorvel ao Imperador era essencial para a consolidao do poder do

    Princeps.

    Outro estudo que merece ser destacado como explicao para a concentrao

    de poder dentro da sociedade romana o de J. E. Lendon, Empire of Honour: The art of

    Goverment (1997). Neste trabalho, o autor abordou a honra como indicao de poder de

    um indivduo na sociedade romana. No seu entendimento, a honra era uma qualidade

    pessoal e sua influncia se estendia tanto para seu corpo social (este individuo quando

    servia s causas do Estado) como para seu corpo familiar (aqueles com o qual o

    indivduo possua vnculos sanguneos ou de casamento). A honra possui trs

    caractersticas: a honra fonte de valor que pode levar o indivduo honra ou desonra.

    A honra, neste sentido, fica investida como fonte de legtima autoridade social, pois

    algo criado para ser obedecido, para ser seguido e respeitado. A honra , ainda, fonte de

    sano social negativa, pois a perda de sua honra causava grande comoo, levando

    indivduos a perderem status social e clientela. Na sociedade imperial, o Princeps no

    era apenas visto como o ponto mais alto do governo e comandante militar supremo, mas

    tambm como ponto mais alto de um grupo social definido pela honra. Suas virtudes

    poderiam estar alm daquela que se imaginava possvel para um indivduo normal. Mas

    tanto os sditos poderiam ver o Imperador como este super-humano, indicado pelos

    deuses para governar, um lder carismtico, o militar excelente; como tambm poderiam

    v-lo como um aristocrata que junto aos demais competia pelas honras aristocrticas. O

    prmio dessa competio era o Imprio. A manuteno de sua honra estava ligada

    execuo de aes que os outros esperavam.

    A vulnerabilidade da honra do Imperador, e seu desejo de ampli-lo,

    permitiu grandes concentraes de prestgio - principalmente nas

    30 GONALVES, A. T. M. . Conflito e Oposio no Alto Imprio Romano: Breve Balano

    Historiogrfico. Boletim do Cpa, Campinas, v. 6, n. 11, 2001, p. 45-64.

  • 37

    grandes cidades do Imprio, especialmente Roma - influenci-la. Na

    verdade, o tratamento do Imperador a plebe urbana da cidade de Roma

    era talvez a mais marcante manifestao de sua preocupao com sua honra: sua doao e comparecimento aos jogos; suas provises de

    milhares de gladiadores para estes jogos e um conjunto de animais

    mais exticos do mundo e bestas selvagens; sua ruinosa distribuio

    de comida e dinheiro; e seu entusiasmo em assegurar o abastecimento de gros para a cidade s custas de um vasto trabalho. A deciso de

    Constantino em recrutar para sua nova capital Constantinopla uma

    nova multido, sobre a qual era dissipada o mesmo cuidado sobre a multido romana (sem despojar a cidade eterna), indica que a plebe

    urbana no era apenas uma besta a ser aplacada, mas, uma importante

    suporte ao governo imperial. Isso era um consenso para avali-lo, ao

    longo do exrcito e da aristocracia, como um componente imperial essencial.

    31

    O que podemos concluir que, para Lendon, a honra uma significao de

    poder, apesar de ser uma coisa abstrata. Aqueles Imperadores que no realizavam um

    bom uso de sua honra ou prestgio, visando ao bem estar de todos, foram fortemente

    criticados pelos historiadores da poca. Na Repblica, a luta pelas honras era aberta e

    todos os aristocratas participavam dela. J no Principado a luta pelas honras era

    controlada pelo Imperador. Lutar pelas honras nesse perodo podia destacar o indivduo

    a ponto de torn-lo um concorrente do Princeps e a partir disto s havia dois passos

    possveis: tomar o posto de Imperador ou correr o risco de ser executado.

    Luciane Munhoz Omena, em sua tese Pequenos poderes na Roma Imperial: o

    povo mido sobre a ptica de Sneca (2007) caracteriza haver um pacto entre o

    Princeps e as massas. No entanto, esse pacto no seria amparado por uma legislao,

    como tambm opinam outros autores, como j vimos, estando a estabilidade do poder

    merc de constantemente o Imperador conseguir persuadir a plebs. O Princeps

    "possuidor" da Patria Potestas e, a partir disso, espera-se que ele proteja o povo de

    Roma. A autora se baseia nas fontes senequianas para avanar a hiptese de que a

    manuteno do poder pelo Imperador se dava atravs de relaes de carter

    "paternalista" com a plebs, e, quando esse perdia o favor da plebe, automaticamente via

    seu poder ruir. Essa massa desprovida de conceitos morais que possam ser associados

    ao mos maiorum, diversamente do que ocorreria com o Senado, e um abalo no bem

    comum ou mesmo rumores poderiam gerar esse desgaste entre Imperador e plebe.

    31 LENDON, J. E.. Empire of Honour. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 120.

  • 38

    O imperator, nesse sentido, deve prestar contas plebe, sendo

    moderador e benfeitor, assim estabelecer uma relao centrada na

    admirao e receber em troca, a aprovao de suas ordens. Evitar por consequncia, como as rixas, presentes segundo Sneca, nestes

    homens hierarquicamente inferiores (De Clementia. III, V e 4). De

    acordo com o pensamento senequiano, mesmo os homens humildes, a

    quem tudo falta, devem ser agraciados com o nome de homens (De Clementia. Pr. I,3).

    32

    Percebemos, assim, pela importncia que Sneca d ao trato entre Imperador e

    plebe, que este grupo social era, sim, um grande sustentculo para o poder imperial. Isto

    justificaria as polticas ligadas a toda uma esfera de atuao que depois seria alcunhada

    de poltica de Panis et circenses, dedicada ao perfeito abastecimento de trigo e vinho, e

    oferta de grandes jogos nos Circos, Teatros e Anfiteatros. Ter-se-ia uma relao

    recproca, o Imperador zela pela plebs, e esta no se opunha poltica imperial.

    O que podemos concluir que o poder imperial gira em torno de esferas

    pblicas e privadas, constantemente confundidas entre si. Atravs Dos estudos que

    apresentamos at aqui, percebemos, por exemplo, que a esfera pblica simbolizada

    atravs da relao entre Imperador e Senado, pelo controle dos exrcitos, pelo

    administrao da justia, dentre outras, que so partes essenciais do poder imperial.

    Vemos estas funes concretas ganharem destaque especialmente nos estudos de

    Mommsen, Gibbon e Millar. J a esfera privada pode ser expressa na formao de uma

    corte, no patronato imperial, na caracterstica paternalista do trato do Imperador com o

    povo de Roma, e o servilismo que passou a demarcar as relaes entre Imperadores e

    sditos. Vemos isso principalmente nos estudos de Wallace-Hadrill e Syme.

    1.5 O Principado de Cludio

    Nossa contribuio visa a estudar determinadas fontes, aprofundando a anlise

    nas representaes que elas trazem sobre os imperadores, em especial sobre o

    Imperador Cludio (41 d.C. 54 d.C.). Atravs do estudo das trs fontes citadas no

    incio deste estudo (Sneca, Tcito e Suetnio), percebemos que elas nos trazem

    informaes a respeito do controle exercido por Cludio sobre seus sditos atravs dos

    32 OMENA, Luciane Munhoz. Pequenos poderes na Roma Imperial: o povo mido sob a ptica de

    Sneca. (Tese de Doutorado.) So Paulo:, Universidade de So Paulo, 2007,. p. 115-116.

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    mesmos aparatos pblicos e privados relacionados neste captulo. Nesta parte do

    ca