consolação a márcia (ad marciam, de consolatione) - sêneca

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EpÍstola Estóica

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  • Revista Latinoamericana de PsicopatologiaFundamentalISSN: [email protected] Universitria de Pesquisa emPsicopatologia FundamentalBrasil

    SnecaConsolao a Mrcia

    Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 10, nm. 1, marzo, 2007, pp. 156-181Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

    So Paulo, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=233017474013

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  • R E V I S T AL A T I N O A M E R I C A N ADE PS ICOPATOLOGIAF U N D A M E N T A Lano X, n. 1, mar/20 07

    Sneca

    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., X, 1, 156-181

    Consolao a Mrcia*

    I. 1. Se eu no soubesse, Mrcia, que voc no conhecenem a fraqueza de alma de seu sexo nem as outras imperfeieshumanas e que seu carter tem algo de outros tempos que o tornamodelo, eu no ousaria abordar sua dor esta dor que mesmo oshomens nutrem e cultivam em si com tanta complacncia e noteria concebido a esperana, em condies to ingratas, defendendo,diante de um juiz to prevenido, uma causa to irritante, procurandofaz-la ser absolvida de seu infortnio. O que me deu confiana foio vigor experimentado de sua alma, foi esta coragem que j semostrou em uma ocasio maior. 2. Sabemos como voc seconduziu em relao a um pai que voc amava to ternamente quantoa seus filhos, quase a ponto de no desejar que ele lhe sobrevivesse;ainda no estou muito certo, pois acontece de um grande amor sepermitir desejos irracionais. Voc fez tudo o que dependia de vocpara impedir que seu pai Cremuzio Cordo alcanasse a morte.Tendo-lhe sido bem demonstrado que, com os satlites de Sejano,este era o nico meio que teria de escapar servido, voc nofavoreceu seu projeto, mas renunciou luta e deixou correrabertamente suas lgrimas; voc sem dvida devorou seus gemidos,mas no os escondeu por trs de uma fronte alegre: e isto em umapoca em que se mostrava devotamento quando no se traa os seus.

    * Traduo de Monica Seincman.

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    3. Mas, logo que uma mudana de regime deu-lhe a oportunidade, voc tornoupblico o talento de seu pai, sobre o qual os carrascos se atiraram: voc oressuscitou de sua verdadeira morte, remetendo aos muitos monumentos pblicosde nosso passado os livros de histria que ele escreveu com seu sangue. O quantono lhe deve a cultura romana? O fogo destruiu uma de suas mais notveiseminncias. O quanto no lhe deve a posteridade, a quem chegar em toda a suapureza o fiel relato de uma testemunha que custou to caro ao seu autor? O quantoele prprio no lhe deve, ele cuja memria vive e viver enquanto algum valor fordado histria de Roma, enquanto houver espritos curiosos de reconstruir asaes dos ancestrais, enquanto se quiser saber o que um romano, o que umcidado que, quando todas as cabeas se curvam e se submetem ao jugo deSejano, permanece indomvel, o que um homem cujo gnio, cuja alma, cujosbraos so livres?

    4. Que perda para a repblica, deuses! Se este gnio, cujos dois mritosincomparveis o talento e a liberdade fizeram ser condenado ao esquecimento,no fosse trazido por voc luz! Ele lido, sua glria resplandece: ele est emtodas as mos, em todos os coraes; do tempo nada tem a temer; emcontrapartida os prprios crimes de seus perseguidores, que foi deles o nico feitona memria dos homens, logo ningum mais a eles se referir.

    5. A grandeza de sua alma me impedia de considerar seu sexo, assim comode considerar a tristeza que depois de to longos anos vela incessantemente suaface. E veja quo pouco pretendo surpreend-la, usar seus sentimentos: despertoa lembrana de seus antigos sentimentos e, para persuadi-la de que esta novaferida tambm no incurvel, mostro-lhe a cicatriz de uma chaga igualmente grave.Os outros que usem da doura e de procedimentos carinhosos; eu vou tomar suador corpo a corpo, e estes olhos doentes e esgotados, que, se voc deseja averdade, choram hoje mais por costume do que por aflio, vou dom-los, se vocse dispuser, com sua ajuda, e, caso no se disponha, apesar de voc: voc deverreter e segurar desesperadamente esta dor, qual destina em seu corao o lugardeixado vazio por seu filho. 6. Se no, quando isto ter fim? Todos os remdiosfracassaram: as consolaes que seus amigos cansaram de lhe dirigir, as altasintervenes dos homens eminentes com quem tem parentesco, o trabalho, estapreciosa herana paterna; a todas estas vozes seu ouvido permanece surdo, e asvs consolaes que elas lhe oferecem quando muito um instante de distrao. Oprprio tempo, este grande remdio pelo qual a natureza apazigua at os maisterrveis tormentos, no exerceu sobre voc nenhuma ao. 7. Trs anos j sepassaram, e sua dor nada perdeu de sua primeira vivacidade: ela desperta e sereanima a cada dia; ela toma como um direito a sua durao, acreditando serdesonroso acabar. Todos os vcios criam em ns razes profundas se no ossufocamos quando nascem: o mesmo acontece com os sentimentos sombrios e

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    deprimentes, que se atormentam a si mesmos sem cessar; acabam por sealimentar de sua prpria amargura e o sofrimento se torna, para a alma infeliz,um tipo de prazer perverso. 8. Eu tambm teria preferido empreender sua curadesde o incio: um tratamento benigno bastaria para deter o mal em sua raiz;contra um flagelo inveterado necessria uma interveno mais enrgica. Assim,as chagas do corpo se curam sem dificuldade quanto mais frescas forem; preciso cauteriz-las, sondar a profundeza das carnes, nela penetrar com o dedo,quando as deixamos infectar e degenerar em lceras. Hoje, no mais posso usarde deferncia e delicadeza para enfrentar uma dor to endurecida: necessrioromper o obstculo.

    II. 1. Sei que comum, quando se admoesta algum, comear pelospreceitos e acabar pelos exemplos. Mas s vezes bom mudar de mtodo. Poisos meios a empregar variam conforme os espritos: uns cedem razo; a outros preciso alegar grandes nomes, cuja autoridade os ligue. 2. Os belos traos acegam; vou deitar sob seus olhos dois ilustres exemplos que seu sexo e seu sculome oferecem: o de uma mulher que se abandonou sem reserva ao desespero; eo de uma outra mulher que, atingida por um golpe semelhante e perdendo aindamais, no deixou infelicidade, no entanto, um longo imprio sobre sua alma,refazendo-se to logo. 3. Octavia e Lvia, uma irm, a outra esposa de Augusto,perderam cada uma um filho na flor da idade e que podiam ser consideradosherdeiros do trono. Octavia viu morrer Marcelo, sobre quem seu tio e padrastocomeava a descarregar as fadigas e as preocupaes do poder, jovem homemcom alma viva, esprito vigoroso, com uma temperana e uma moderaoverdadeiramente maravilhosas para sua idade e em um meio como o seu, infatigvelno trabalho, inimigo dos prazeres, capaz de sustentar, por mais esmagador quefosse, o fardo e, se assim posso falar, o edifcio que seu tio se dispunha a lhedeixar sobre os ombros; Augusto soube escolher bases que no cederiam sob pesoalgum. 4. Durante todo o resto de sua vida, Octavia chorou e gemeu; jamaisaceitou qualquer palavra de conforto; jamais se permitiu freqentar qualquerdistrao que fosse, absorvida por um pensamento nico que a ocupavacompletamente. Ela foi durante toda a sua vida o que fora no dia das exquias:no que lhe faltasse energia, mas ela se recusava qualquer alvio, temendoaumentar sua misria caso perdesse a felicidade das lgrimas. Ela no quis imagemalguma desse filho to ternamente amado; no sofria se dele lhe falassem. 5. Eladetestava todas as mes e mostrava um particular furor contra Lvia, cujo filhoparecia haver herdado a felicidade que prometera ao seu. No tendo prazer senocom a obscuridade e a solido, distanciando-se inclusive de seu irmo, ela rejeitouos poemas compostos em louvor a Marcelo e as outras obras que celebravam suamemria, e fechou os ouvidos a qualquer consolao. Furtando-se s cerimnias

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    oficiais, detestando at a glria por demais viva da majestade fraterna, ela seescondeu em um profundo retiro. Rodeada por seus filhos e por seus netos, elaguardou at o fim suas vestes de luto, para a grande humilhao de todos os seus,que a viam, eles vivos, agir como se ela estivesse s no mundo.

    III. 1. Lvia perdeu seu filho Druso, gro-duque, se vivesse, e j gr-capito; ele j havia penetrado at o corao da Germnia e l plantado oestandarte de Roma em lugares em que mal se sabia da existncia dos romanos.Morreu durante a campanha, objeto, ao longo de sua doena, do respeito dosprprios inimigos, que suspenderam seus ataques e no ousaram desejar suaprpria vantagem. A essa morte que encontrou servindo a repblica acrescentava-se a imensa desolao dos cidados, das provncias e de toda a Itlia, que viu seucortejo fnebre, na passagem do qual muncipes e colonos precipitavam-se comgosto para lhe render uma suprema homenagem, ir at Roma, como em umcortejo triunfal. 2. A me no pde recolher nem os ltimos beijos de seu filho,nem as caras palavras de sua boca expirante. Ela seguiu durante esse longo trajetoos restos de seu Druso, e cada uma das inumerveis piras cujas chamas via brilharatravessando a Itlia renovava, por assim dizer, sua perda e reavivava sua dor;mas, to logo pde deposit-lo em seu tmulo, ela a sepultou ao mesmo temposeu filho e sua dor. No se afligiu alm do que lhe permitiam as civilidadesenquanto o imperador estava vivo, nem a eqidade enquanto tinha outro filho.Depois no deixou de pronunciar o nome de Druso, de ter constantemente suaimagem diante de seus olhos, na intimidade ou em pblico, de gostar de falar ede ouvir falar dele; ela viveu com a sua lembrana a lembrana daqueles que nomais esto, que no se poderia alimentar e cultivar em si quando ela se torna pordemais cruel.

    3. Escolha, pois, destes dois exemplos, aquele que lhe parece mais louvvel.Se quiser seguir o primeiro, voc se retirar de entre os vivos, ter averso aosfilhos dos outros, aos seus e at a este que voc chora, voc ser um sinistropressgio para as mes que a encontraro, voc rejeitar os prazeres honestos elegtimos, sob pretexto de que ameaaro seu infortnio, voc maldir a luz dodia, da qual ser prisioneira, e voc se insurgir contra a sua prpria vida, lentademais para dar fim sua misria; coisa vergonhosa entre todas e que no seesperar de uma alma que se fez conhecer melhor, voc se mostrar to extenuadade viver quanto incapaz de morrer. 4. Se tomar como modelo a condutadiferentemente razovel e humana da segunda mulher ilustre que citei, voc nose consumir de dor, voc no se martirizar por prazer. E que loucura, deuses,castigar-se pelo infortnio e aumentar voluntariamente seus males! A pureza, adelicadeza dos sentimentos dos quais voc sempre deu prova em todas ascircunstncias marcar-se-o aqui ainda: pois o sofrimento tambm tem seu pudor.

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    E este jovem enfim, to digno que seu nome e seu pensamento jamais lhe doseno alegria, ser muito mais honrado por voc se somente se oferecer aos olhosde sua me, assim como no tempo em que vivia, em feies felizes e sorridentes.

    IV. 1. No lhe proporei mximas demasiadamente rudes: no a convidoa opor uma firmeza inumana s misrias da humanidade e no pretendo secar aslgrimas de uma me no dia mesmo dos funerais. Submetamo-nos juntos a umrbitro: a questo a ser debatida entre ns ser de saber se nossas dores devemser grandes ou se devem ser eternas. 2. No duvido que o exemplo de Lvia, dequem era amiga particular, no tenha um grande valor a seus olhos: ela quema engaja em suas deliberaes ntimas. No primeiro transporte da dor, no momentoem que nossas feridas so as mais refratrias e as mais violentas, ela se deixouconsolar por Areus, o filsofo de seu marido, e ela reconheceu que esta ajuda erapreciosa para ela: ela lhe devia mais do que ao povo romano ao qual queria afligircom a sua tristeza; mais do que a Augusto, que, privado de um dos seus doisapoios, no necessitava alm disso dos lamentos de seu meio; mais do que a seufilho Tibrio, cuja ternura a impediu, apesar da crueldade de um luto ao qual omundo inteiro se associava, de se sentir atingida seno no nmero de seus filhos.3. Eis, eu suponho, como ele abordou e de que modo se dirigiu a uma mulher topreocupada em manter sua reputao: At este dia, Lvia, at onde sei, eu quenunca me afasto de seu esposo e que sou o confidente no apenas daquilo quese revela ao pblico, mas dos movimentos mais secretos de seus coraes, vocsoube por sua conduta no dar motivo para crtica alguma; e isto no apenas nasgrandes ocasies, mas mesmo nas mais cotidianas, voc se imps a jamaisnecessitar da indulgncia da opinio pblica, este juiz to imparcial dos prncipes.4. Ora, nada conheo de mais belo do que ver aqueles que so educados nombito supremo prodigalizarem o perdo em torno de si e jamais solicit-lo parasi mesmos. Siga, pois, mais uma vez hoje a regra de toda uma vida, e cuide parano cometer nenhum erro, nenhuma imprudncia, que tenha de se arrepender.

    V. 1. Eu lhe suplico e lhe conjuro em seguida no se mostrar rebelde eintratvel a seus amigos. Voc no ignora que eles se perguntam qual deve ser suaconduta, se eles falaro de Druso diante de voc ou se se proibiro, arriscando-se a ofender sua glria, parecendo t-lo esquecido, ou ofender a vocpronunciando o nome dele. 2. Quando estamos reunidos entre ns, evocamos suasaes e suas palavras com toda a admirao que lhe devida; diante de voc,nossas bocas se calam. Voc assim se priva do maior dos prazeres, o de ouviros louvores a seu filho, enquanto voc daria a sua vida, tenho certeza, se fossecoisa possvel, para perpetu-los para sempre. 3. Sofra, pois, provoque mesmoos encontros em que se tratar dele; tenha um ouvido atento ao nome e

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    lembrana de seu filho e evite ver nisto uma tristeza a mais, como tantas pessoasque, em semelhantes circunstncias, consideram como uma parte de suainfelicidade as consolaes que lhe so oferecidas. 4. At agora, voc coloca todoo seu peso sobre o ponto dolorido; cega ao que ele tem de bom, voc noconsidera de sua fortuna seno a face mais cruel. Seus olhos no se voltam parao tempo feliz em que desfrutava de seu filho, para o tempo de seus docesencontros, de suas caras carcias infantis, de seus progressos escolares: voc seprende unicamente ao ltimo aspecto das coisas e, como se a realidade no fossesuficientemente aterrorizante por si s, voc a sobrecarrega com todas ascrueldades possveis. Eu lhe suplico, no queira a glria perversa de passar pelamais infeliz das mulheres. 5. Pense ao mesmo tempo que h muito pouco mritoem mostrar sua coragem na prosperidade quando a vida escoa sem obstculos:um mar calmo e um vento favorvel tambm no valorizam a habilidade do piloto; preciso a tempestade para que uma alma se d a conhecer. Assim, no se deixeaterrorizar; longe disso, reforce sua postura e, por mais violento que seja ochoque, resista, passado o primeiro abalo, ao golpe que se abateu sobre suacabea. Nada pode atingir tanto a Fortuna quanto uma alma que no se perturba.Aps o qu, ele lhe expunha que ela possua um outro filho vivo e que lherestavam netos daquele a quem perdera.

    VI. 1. de voc, Mrcia, que se trata: voc que Areus apoiou; mudeo nome, a voc que suas consolaes se dirigiam. Consideremos, no entanto,Mrcia, que a perda que voc sofre supera as que as outras mes jamaisexperimentaram: no a lisonjeio, no diminuo sua infelicidade. 2. Se as lgrimastriunfam sobre o destino, lamentemo-nos; que nossos dias se passem a gemer,que nossas noites sem sono sejam apenas desolao; rasguemos com nossas mosnosso peito mortificado e no poupemos nem mesmo o nosso rosto; entreguemo-nos a todos os furores de um desespero to salutar. Mas, se nossos soluos noressuscitam os mortos, se todo o nosso desamparo no muda uma sorte imutvele fixada desde sempre, se a morte no larga sua presa, cesse esta dor intil. 3.Partindo da, governemo-nos e no nos deixemos levar por sentimentos cujaviolncia nos dilacera. Vergonha do marinheiro a quem as vagas tiram o leme, quedeixa suas velas baterem ao sabor dos ventos e abandona seu barco tempestade;mas admiremos, at em seu naufrgio, aquele que o mar engoliu segurando o lemee lutando ainda.

    VII. 1. No entanto, est conforme natureza lamentar os seus. Quemo contesta, desde que estes lamentos sejam moderados? A simples partida daquelesque nos so caros nos causa, tanto quanto a sua morte, uma irresistvel emoo,que aperta os coraes mais duros. Mas o preconceito para isto contribui mais

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    do que imposto pela natureza. 2. Veja quanto a dor dos animais violenta, e noentanto como passa rpido: as vacas mugem um dia ou dois, a corrida louca edesordenada dos cavalos no dura mais do que isso; quando as bestas selvagenscorreram atrs de seus filhotes e erraram pelas florestas, quando muitas vezesvoltaram sua cova devastada, seu furor passa em um instante; o pssaro se agitacom gritos cortantes em torno de seu ninho deserto: no instante seguinte, retomatranqilamente seu vo. Nenhum animal lamenta por muito tempo sua progenitura,exceto o homem, que se faz cmplice de sua dor e no se afligeproporcionalmente ao que sente, mas medida em que se lhe fixado. 3. Vocquer provas de que a natureza no exige que nos esgotemos em lamentos?Inicialmente, o mesmo luto afeta uma mulher mais do que um homem, um brbaromais do que uma pessoa civilizada, um ignorante mais do que uma pessoainstruda. Ora, quando uma coisa retira sua fora da natureza, esta forapermanece a mesma em todos os indivduos; patente que o que varia no emanada natureza. 4 O fogo queimar indiferentemente indivduos de todas as idades,habitantes de todos os pases, tanto homens quanto mulheres; o ferro far sentira no importa qual corpo sua faculdade de cortar: por qu? Porque a naturezaque lhes deu suas propriedades e jamais excluiu ningum. Pela pobreza, pelo luto,pelo desprezo, todos so afetados diversamente, conforme seja mais ou menosinfectado pelos preconceitos e que a falsa idia que faz a priori das coisas quenada tm de terrvel lhe tirem mais ou menos sua fora e sua coragem.

    VIII. 1. Em seguida, quando uma coisa obra da natureza, ela no diminuiao longo do tempo. A dor desaparece aos poucos: a mais persistente, aquela quecada dia v renascer e que se insurge contra os remdios, enfraquece no entantosob a ao soberana do tempo, que acalma todas as rebelies. 2. Sua dor, Mrcia, ainda extrema, e j parece se atenuar: no mais o violento desespero do incio, uma melancolia tenaz e obstinada, que o tempo apagar pouco a pouco. Cadavez que seu esprito se ocupar com outra coisa, ele se libertar mais e mais. Porenquanto, cuide-se; mas obrigar-se tristeza no mais como a ela se abandonar.3. Como seria mais conforme distino de seu carter colocar fim sua dor,em vez de esperar que cesse, e no permitir que chegue o momento em que a dora deixe contra a sua vontade! Rompa antes com ela.

    IX. 1. De onde vem ento, se ela no resulta de uma exigncia da na-tureza, a obstinao que colocamos a nos desolar? que ns nunca imagina-mos uma infelicidade antes do momento em que ela acontece. Acreditamos queestamos garantidos por um privilgio especial e que o caminho que tomamos mais seguro do que o dos vizinhos: os infortnios do outro no nos fazem com-preender que eles so comuns a toda a humanidade. 2. Quantos funerais passam

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    diante de nossa porta! e no pensamos na morte. Quantos falecimentos prema-turos! e sonhamos com o tempo em que nossos bebs recebero a toga, serooficiais, herdaro os bens paternos. Quantos ricos so repentinamente reduzidos mediocridade sob nossos olhos! e jamais nos vem ao esprito que nossa pr-pria fortuna corre os mesmos riscos. fatal que afundemos, no momento em queo choque nos surpreende; um golpe h muito esperado se amortece ao nos atin-gir. 3. Voc percebe, ento, que voc um alvo oferecido a todos os golpes e queas setas que trespassavam seus vizinhos deixaram de toc-la em sua passagem.Pense que voc anda quase sem armas no assalto de muralha, ou de uma posi-o fortemente ocupada pelo inimigo e praticamente inexpugnvel: espere ser fe-rido, e diga para si mesmo que todas as pedras, flechas, lanas que voam aoacaso sobre sua cabea foram lanadas contra voc. Cada vez que algum cairdo seu lado ou atrs de voc, grite bem alto: Voc no me enganar, Fortuna!Se eu sucumbo sob seus golpes, no ser por no ter desconfiado ou me postoem guarda. Eu sei o que voc est pensando: voc abateu um outro, mas a mimque voc visava. 4. Quem, ento, contemplando seus bens, os olha jamais comoperecveis? Quem de ns jamais ousou sonhar com o exlio, com a misria, coma morte dos seus? E quem, pois, convidado a considerar isto, no rejeitou a ad-vertncia como um sinistro pressgio e no lanou estas catstrofes diretamentesobre a cabea de seus inimigos ou do conselheiro inoportuno? 5. No acredi-tei que isto aconteceria. Voc no acredita que uma coisa acontea quando sabeque ela possvel, quando voc a v chegar a cada dia a no se sabe quantas pes-soas? Ah!o belo verso e que mereceria no vir dos palcos:

    O que pode atingir um pode atingir todos os outros.

    Este homem perdeu seus filhos: voc pode perd-los tambm. Este outro foicondenado: sua inocncia corre o mesmo risco. Eis de qual aberrao somos v-timas e por que falhamos no vigor quando os revezes que jamais prevramos nosassaltam. Tiramos dos males presentes sua fora quando os vimos vir de longe.

    X. 1. Quaisquer que sejam, Mrcia, os bens exteriores cujo brilho noscerca, filhos, honras, riquezas, vastos trios e vestbulos abarrotados de clientescujo porte, reputao, mulher nobre ou bela, objetos diversos tributrios de umdestino movedio e caprichoso, eis a tantos ornamentos que no so nossos eque apenas nos so emprestados. Nenhum deles nos dado, no verdadeiro sentidodo termo. O cenrio que mobilia a cena feito de acessrios emprestados, queser preciso devolver a seus proprietrios: uns sero retomados no primeiro dia,outros no dia seguinte; muito poucos ficaro at o fim. 2. Assim, no nos iludamos:o que nos cerca no nos pertence; no passamos de depositrios. Deles temos ouso e do desfrute por um tempo que o possuidor, senhor de suas liberalidades,

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    limita a durao como lhe aprouver. Devemos estar sempre prontos a saldar umadvida cujo vencimento no est fixado, e restituir sem reclamar primeirarequisio; somente os maus pagadores discutem com seus credores. 3. Nossoafeto por todos os nossos, por aqueles que queremos que nos sobrevivam emvirtude da ordem dos nascimentos, assim como para aqueles que formam elesmesmos o voto legtimo de nos superar, deve considerar que no nos foi prometidonem t-los para sempre, nem mesmo t-los por muito tempo. Tragamos sempre mente que os objetos aos quais nosso corao se liga so chamados a nosdeixar, melhor ainda que eles nos deixem j: pensemos que a posse dos bens quetemos da Fortuna no nos garantida por nada. 4. Apresse-se em desfrutar deseus filhos, d-lhes em troca todas as alegrias possveis, e experimente semdelongas todos estes prazeres do corao: no a autoriza a contar com a noiteseguinte, e este termo est ainda demasiadamente distante; eu deveria dizer: nesteexato minuto. Corra! O inimigo est no seu encalo; logo ele dispersar seupequeno grupo, romper, fazendo-lhe dar altos gritos, sua sociedade familiar.Tudo perda no mundo, e vocs se mostram, infelizmente!, incapazes de vivernesta fuga incessante.

    5. Se voc chora porque seu filho morreu, culpe a hora em que ele nasceu:seu fim lhe foi determinado desde o instante que veio ao mundo. Foi a este preoque ele lhe foi dado, a sorte que o perseguir desde o ventre de sua me. 6. Nsestamos sob a sujeio da Fortuna; seu jugo rude e invencvel, e devemos apenasnos submeter aos tratamentos, justos ou injustos, que sua fantasia nos inflige.Nossos corpos sofrero suas violncias, seus ultrajes, suas crueldades: elaqueimar uns, tanto a ttulo de castigo, quanto guisa de remdio; ela carregaroutros: tanto pela mo do inimigo, quanto pela de um concidado; ela entregarestes sem recurso aos caprichos de um mar revolto e, quando tiverem lutadobastante contra as vagas, ela no os jogar nem mesmo sobre uma praia ou umamargem, mas os esconder no ventre de alguma fera monstruosa; ela esgotaraqueles por doenas de toda espcie e os manter longamente suspensos entre avida e a morte. Como uma senhora caprichosa, imprevisvel e indiferente ao quefaz a seus escravos distribuir a torto e a direito castigos e favores. 7. Para queserve se lamentar sobre os detalhes da existncia? toda vida que deveria nosafligir. Novos males nos avassalaro antes de nos libertarmos dos antigos.Dominemo-nos, pois, sobretudo vocs mulheres, que so imoderadas na dor, emanejemos as foras do corao humano, que devem atenuar tanto sofrimento.

    XI. 1. E que esquecimento este, afinal, de sua prpria condio e dade todos? Voc nasceu mortal e gerou mortais. Sendo voc mesma um corpocaduco e arruinado, onde pululam as doenas, voc esperava ver sair de umasubstncia to frgil seres slidos e imortais? 2. Seu filho est morto: o que dizer,

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    seno que ele atingiu o limite rumo ao qual os que nasceram, acredite, maisafortunados que eles andam sem detena? Toda esta multido que se disputa noFrum, que se diverte no teatro, que ora nos templos, caminha para este objetivonico mais ou menos rapidamente. O que voc ama, o que voc despreza, tudose igualar na mesma cinza. 3. O clebre conhece-te, que figura entre os orculosda Ptia, no tem outro sentido. O que o homem? Um vaso que se quebrar aomenor abalo, ao menor movimento. No necessrio um vendaval para reduzi-la a p: um primeiro choque um pouco violento a deslocar. O que o homem?Um corpo dbil e frgil, desnudo, indefeso por sua prpria natureza, que temnecessidade do auxlio alheio, exposto a todos os danos da Fortuna; pasto e vtima,quando exerceu bem seus msculos, da primeira fera vinda; moldado de matriamole e inconsistente e brilhando somente por seus traos exteriores; incapaz desuportar o frio, o calor, a fadiga, mas que a corrupo e a ociosidade rapidamenteteriam desagregado; merc de seus alimentos, com cuja carncia se enfraquece,com cujo excesso se rompe; tendo mil penas e mil dificuldades para se conservar;cuja respirao to precria e to pouco segura que um rudo desagradvelbatendo bruscamente em seus ouvidos o detm imediatamente; um corpo que ,em si mesmo, fonte intil e perversa de perigos. 4. E nos espantamos, depoisdisso, com que ele morra, quando a morte precisa seno de um suspiro! Acaso necessrio um esforo colossal para abat-lo? Um odor, um sabor, um cansao,uma viglia, uma bebida, um alimento e tudo aquilo sem o que no pode viver, lheso fatais. No pode dar um passo, sem tomar imediatamente conscincia de suafraqueza: todos os climas lhe so nefastos; se beber uma gua nova, se respirarum ar ao qual no estava habituado, ao menor acidente, ao mais leve dano, ei-lodoente. Criatura fraca, frgil, que inaugura a existncia pelas lgrimas, comquantas agitaes este desprezvel animal no enche o mundo! A quais projetosgigantescos no se entrega, esquecendo sua condio! 5. Imortalidade, eternidade,eis com o que sonha; ele formula planos para o tempo de seus netos e de seusbisnetos e, enquanto constri assim o futuro, a morte cai sobre ele: mesmo aquiloque chamamos velhice somente um ciclo de anos muito curto.

    XII. 1. Sua dor, se raciocinar, ter por objeto seu prprio prejuzo ou ode um defunto? O que a afeta na morte de seu filho? no ter de forma algumadesfrutado esta criana? Ou o pensamento de que poderia ter desfrutado maisse sua vida fosse um pouco mais longa? Se voc responder que de forma algumadesfrutou dele, voc tornar a sua perda mais suportvel, pois se lamenta menosaquilo que nunca nos causou nem alegria nem prazer. 2. Se voc reconhecer quevoc lhe deveu grandes alegrias, no preciso se queixar do golpe que recebeu,mas sim felicitar-se pela ventura que teve. A educao dele por si s recompensouamplamente suas dores: pois a quem faremos crer que as pessoas que criam com

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    a mais zelosa solicitude cezinhos, pssaros e outros objetos com um apego tofrvolo tenham tanto prazer ao olh-los, ao toc-los, a receber as carcias destesanimais estpidos, e que, quando se trata de nossos filhos, a recompensa denossos cuidados de educadores no esteja em sua prpria educao? Mesmo quejamais lhe tenha servido por sua atividade, que jamais tenha veladoconscienciosamente por seus interesses, que seus conselhos jamais o tenhamajudado, voc o teve, o amou: isso no significa algo?

    3. Mas uma felicidade mais longa teria sido maior. Voc sempre estevemais bem servida do que se no tivesse tido nada: se pudssemos escolher serfelizes por pouco tempo ou jamais o ser, melhor seria ainda uma ventura efmerado que a ausncia total da felicidade. O que voc preferiria, um ser degeneradoque apenas preencheria o espao e que seria seu filho apenas pelo nome, ou umfilho dotado como o que voc teve, to precoce nos sentimentos quanto nainteligncia, to cedo casado, to cedo pai, to impaciente de realizar todos osseus deveres de homem, to cedo sacerdote, e que dissemos urgir viver? muitoraro que um grande bem seja ao mesmo tempo um bem durvel. Apenas asfelicidades pouco sensveis se prolongam e vo at o final. Os deuses imortais,que no deviam deixar-lhe seu filho que por pouco tempo, ter-lho-ia dado toperfeito, no sendo possvel melhorar durante uma longa existncia.

    4. Voc tambm no pode dizer que os deuses tenham-na escolhido es-pecialmente para impedir de desfrutar seu filho. Percorra com os olhos a multi-do de seus semelhantes, conhecidos e desconhecidos: voc descobrir em todosos lugares misrias maiores que as suas. Grandes generais sofreram esta prova-o, prncipes a ela foram submetidos; a fbula no isenta nem mesmo os deu-ses, sem dvida para que encontremos um alvio para nossas feridas nopensamento de que seres divinos sucumbem tambm eles morte. Olhe, repito,ao redor de voc: voc no me nomear uma famlia, por mais infeliz que seja,cujo espetculo de uma famlia mais infeliz ainda no possa consolar. 5. Eu notenho, oh deuses!, uma opinio a seu respeito suficientemente desagradvel paraacreditar que eu suavizaria sua dor com o desfile diante de seus olhos de uma in-terminvel srie de aflitos: necessrio ter um corao bem invejoso para encon-trar conforto no grande nmero de infelizes. Trarei, no entanto, alguns exemplos,no para lhe demonstrar que seu infortnio comum ao gnero humano (seriaridculo multiplicar as provas de nossa mortalidade), mas para faz-la ver que nofaltam homens que tenham suavizado os rigores da sorte por sua constncia emsuport-las. 6. Comecemos pelo mais feliz de todos. Sila perdeu seu filho: esteacontecimento no amorteceu em nada sua maldade, nem diminuiu a energia fu-riosa com a qual perseguia inimigos e cidados, e tambm no fez pensar quetomou erroneamente o sobrenome que se atribuiu aps a morte deste filho, semtemer nem o dio dos homens, cujos sofrimentos causavam sua excessiva feli-

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    cidade, nem a clera dos deuses, contra quem advogava to vigorosamente aprosperidade de um Sila. Mas deixemos de lado, como um destes problemas quea histria ainda no resolveu, a questo de saber como se deve julgar Sila (seusprprios inimigos confessaro que ele tomou da espada e a deps intencionalmen-te), o ponto que nos interessa no ser menos claro: um mal que no poupa nemmesmo os mais afortunados dos homens no um mal to temvel.

    XIII. 1. Que a Grcia no fique to orgulhosa deste pai que, sabendo commuito sacrifcio da morte de seu filho, limitou-se a fazer com que o flautista secalasse e tirou a coroa de sua cabea, terminando a cerimnia: temos o pontficePulvillo, que procedia, com a mo sobre o batente da porta, a dedicatria doCapitlio, quando foi anunciado que seu filho morrera. Ele fez como se notivesse escutado: recitou as frmulas do ritual sem que o menor gemidointerrompesse suas oraes e, apesar de lhe falarem sobre seu filho, continuavaa invocar a proteo de Jpiter. 2. Poderamos crer que ele tivesse que refrearsua dor, este pai que a violncia da primeira emoo no desviara dos altares emque realizava seu ministrio e no sendo impedido de pronunciar as palavraspropiciatrias? No era ele digno, oh deuses!, da dedicatria memorvel de queera encarregado e de seu alto sacerdote, este homem que a prpria clera dosdeuses no desencorajou de ador-los? E, no entanto, quando voltou para casa,seus olhos transbordaram de lgrimas: algumas palavras queixosas lhe escaparam,depois, tendo-se desvencilhado dos deveres ordinrios relativos aos mortos,retomou sua expresso do Capitlio. 3. Para a poca do famoso triunfo em querecebeu a glria de levar Perseu acorrentado diante de seu carro, Paulo Emlio,que vinha dar em adoo dois de seus filhos, levou ao tmulo aqueles a quem haviamantido. Como eram os filhos que ele havia se reservado, quando entre aquelesque havia cedido figurava Cipio! No foi sem uma viva compaixo que o povoromano viu passar vazio o carro de Paulo Emlio. Ele, no entanto, discursou paraa multido e rendeu graas aos deuses por suas oraes terem sido atendidas: nohavia ele pedido que, se sua magnfica vitria tivesse um preo, fosse antes suacusta do que em detrimento da repblica? 4. Dimensione sua fora de alma: elese felicitava de sua infelicidade. E quem mais alm dele teria o direito de estarperturbado por tal catstrofe? Ele perdia ao mesmo tempo os apoios e asconsolaes de sua vida. Perseu, no entanto, no sentiu a alegria ao ver PauloEmlio aflito.

    XIV. 1. Citarei sucessivamente inumerveis exemplos de grandes homense procurarei em todos os lugares os infelizes, como se no fossem mais difceisde descobrir do que os felizes? Quantas famlias vemos conservar at o fim todosos seus membros ou no atravessar alguma provao grave? Escolha o ano que

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    quiser e evoque os magistrados encarregados: Lcio Bbulo, por exemplo, e Csar.Entre estes dois colegas inimigos, voc constatar um perfeito acordo de fortuna.2. Bbulo, alma mais virtuosa que corajosa, teve dois filhos mortos ao mesmotempo; como eles foram humilhados pela soldadesca egpcia, havia uma coisa todolorosa quanto sua perda, era a indignidade de seus carrascos. E, no entanto,este Bbulo, que durante todo o ano de seu consulado, ficou escondido em casapara evitar os ataques de seu colega, saiu no dia seguinte quele em que a novadesta dupla morte lhe chegou para cumprir como sempre as obrigaes de seucargo. Como dedicar aos dois filhos menos do que um dia? Isto foi tudo o queeste homem que guardara um ano de luto de seu consulado se permitiu para chorarseus filhos. 3. Csar estava percorrendo a Bretanha, e o Oceano no era mais umbarreira para sua feliz fortuna, quando soube da morte de sua filha, que levavacom ela a repblica para o tmulo: j era visvel que Pompeu no toleraria emRoma nenhuma outra grandeza que a sua e que deteria os progressos que lheparecessem ameaadores, ainda que tivessem o interesse de Estado como objeto.E, no entanto, trs dias ainda no haviam se passado quando Csar retomou oexerccio de seu comando: ele empregou para vencer sua dor a mesma rapidezque em suas outras vitrias.

    XV. 1. Lembra-la-ei dos lutos de outros Csares? Parece-me que a Fortunaataca-os expressamente de tempos em tempos para que o gnero humano lhesdeva uma graa a mais: a de saber que os prprios personagens que passam porser filhos dos deuses e por dar luz deuses no dispem de seu destino nem dodestino do universo. 2. O divino Augusto perdeu seus filhos, seus netos, viudesaparecer at o ltimo Csar e teve de recorrer adoo para manter sua casadevastada: ele empregou, no entanto, para suportar sua sorte, toda a coragem deum homem que j, ele mesmo, se sentia pessoalmente envolvido e que tinha omais alto interesse em que ningum se queixasse dos deuses. 3. Tibrio perdeusucessivamente seu filho verdadeiro e seu filho adotivo. Foi visto, no entanto,pronunciar em pessoa do alto dos Rostros o elogio a este ltimo, de p junto aocorpo, com um simples vu a separ-los, de modo a evitar aos olhares dopontfice a viso de um cadver e, enquanto o povo inteiro chorava, manter umrosto impassvel. Fez com que Sejano, que se mantinha ao seu lado, sentisse comque constncia ele era capaz de suportar a morte dos seus. 4. Voc v o nmeroconsidervel de homens ilustres este flagelo que nada poupa atingiu: e eramhomens cumulados de todos os dons da alma, glorificados na vida pblica eprivada com todas as distines imaginveis! Mas diramos ser uma tormenta quedestri indistintamente tudo sobre o seu caminho e vitima tudo o que encontra.Solicita a cada ser humano repassar diante de voc suas contas: nenhum nasceuimpunemente.

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    XVI. 1. Eu sei o que voc vai me dizer: eu esqueo que consolo umamulher e somente dou homens como exemplo. Mas quem, pois, ousar dizer quea natureza tenha menos generosamente dotado as mulheres e que ela tenhadiminudo o campo de suas virtudes? Elas tm, voc pode me acreditar, tantafora quanto os homens; elas encontram em si, posto que lhes agrade encontr-los, os mesmos recursos morais; elas suportam com tanta coragem o sofrimentoe a dor, tanto que a isto esto afeitas. 2. Em que cidade, oh deuses!, temos estalinguagem? Em uma cidade em que Lucrcia e Bruto abateram o tirano cujo jugoesmagava nossas cabeas: a Bruto devemos nossa liberdade; a Lucrcia devemosBruto; em uma cidade em que quase se fez de Cllia um homem, por sua insigneaudcia em bravatear o inimigo e as vagas: do alto de sua esttua eqestre, quese posta sobre a via Sagrada, um dos mais freqentados lugares de Roma, Clliaenvergonha os pretensiosos que passam enlameados em suas liteiras ao ousarementrar com semelhante aparelhagem em uma cidade em que as prprias mulheresse vem honradas por um cavalo. 3. Se voc insistir em que eu cite exemplos demulheres que suportaram a morte dos seus com bravura, no terei dificuldade paraencontr-los: a mesma famlia me fornecer as duas Cornlias. A primeira, filhade Cipio e me de Graco, teve 12 filhos; ela os perdeu a todos os 12: e nadapodemos dizer dos outros, cujos nascimentos e desaparecimentos no foram deforma alguma sensveis cidade; mas ela viu Tibrio e Caio, cuja virtude, sequisermos, contestamos, mas dos quais no podemos negar terem sido grandeshomens, massacrados e privados de sepultura. No entanto, como se queriaconsol-la e que se lamentava sua infelicidade: Jamais, disse ela, me faro dizerque no sou feliz, quando dei luz os Gracos. 4. A outra Cornlia, esposa deLvio Druso, perdeu um filho do mais brilhante mrito, dotado de uma inteligncianotvel e que caminhava sobre as pegadas dos Gracos: este jovem, cuja mortedeixava tantos projetos de lei inconclusos, fora assassinado em sua casa por umassassino desconhecido. Ele empregou, pois, para suportar esta morte prematura,que permaneceu impune, tanta coragem quanto empregou o seu filho paradefender suas leis. 5. Voc perdoar, Mrcia, fortuna, se as setas com que elaacertou os Cipies, as mes e as filhas dos Cipies, e as que ela fez chover sobreos Csares, tambm no a pouparam. A vida repleta de ameaas e de perigosde toda a sorte que jamais nos deixam por muito tempo em paz, e que no nosconcede nem mesmo a treva. 6. Voc ps no mundo quatro filhos, Mrcia. Diz-se que uma lana atirada sobre uma tropa cerrada nunca perdida: seriasurpreendente que uma famlia to numerosa no tenha podido se desviar dosgolpes de uma sorte invejosa? 7. Mas o que agrava a iniqidade da Fortuna que ela no se contentou em me tirar os filhos, ela os escolheu entre outros. Voc, no entanto, no poderia dizer que houve iniqidade quando se partilha empores iguais com algum mais poderoso que si: a Fortuna lhe deixou duas filhas,

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    e destas filhas, netos; e o prprio filho que voc chora to vivamente, a pontode no mais pensar no primeiro, ela no lho tirou completamente: voc tem deleduas filhas, pesado fardo se voc fraquejar, poderosa consolao se for corajosa.Obtenha de si que sua viso a lembre de seu filho e no de sua dor. 8. Quandoele v, abatidas sobre o solo, rvores que o vento acaba de desenraizar e que umviolento ciclone derrubou, o agricultor prodigaliza seus cuidados aos brotos querestam delas e, sem perda de tempo, distribui aqui e ali plantas e mudas novas,e logo (pois o tempo, to rpido e pronto para destruir, tambm o pararestaurar) jovens brotos comeam a crescer, mais belos do que as rvoresperdidas. 9. Substitua Mitlio por suas filhas, faa-as preencher o vazio que eledeixou e d sua dor nica esta dupla consolao. Esta a natureza dos mortais,que nada mais caro a seu corao do que aquilo que os alegrou: o lamento doque perdemos nos torna injustos em relao ao que nos resta. Mas, se voc quiserdevidamente apreciar a que ponto, maltratando-a, a Fortuna mexeu com voc,voc ver que possui mais do que consolaes: o que significam para voc todosestes netos, estas duas filhas? 10. Diga ainda isto, Mrcia: Eu protestaria se asorte de cada um correspondesse sua conduta e se o mal no tocasse nuncaos bons; mas constato que, sem distino alguma, os maus e os bons so joguetesdas mesmas tribulaes.

    XVII. 1. cruel, no entanto, perder o filho que se criou quando elechega idade de homem, quando ele j para sua me, para seu pai, um apoioe uma felicidade. cruel: quem o contesta? Mas uma coisa humana: vocnasceu somente para perder, para morrer, para esperar, para temer, para atormen-tar os outros e a si mesmo, temer a morte e a desejar e, o que pior, jamais saberao que se ater em relao s verdadeiras condies de sua existncia. 2. Se dis-sssemos a um viajante pronto a partir para Siracusa: Fique sabendo, antes detudo, quais so os inconvenientes e as vantagens da expedio que voc projeta,aps o que voc embarcar. Eis o que voc poder admirar: voc primeiramentever a prpria ilha, separada da Itlia por um estreito canal, e que antigamente semdvida fora ligado ao continente; um belo dia o mar irrompeu e,

    Dos flancos da Itlia, tirou a Siclia.

    Voc, em seguida, ver (pois nada a impedir de navegar sobre umredemoinho formidvel) o lendrio Caribde, tranqilo enquanto no visitado pelosiroco, e que, a partir do momento em que este vento se levanta com algumaviolncia, engole os navios em seu insondvel abismo. 3. Voc ver a fonte deAretusa, cantada por todos os poetas, com sua bacia lmpida e transparente e asguas glaciais que dela saem, ou porque de l nascem, ou porque provm de umrio distante que se insinuou sob a terra e que reparava neste lugar sua pureza

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    primitiva, tendo passado sob vastos mares sem se misturar s suas ondascorrompidas. 4. Voc ver o porto mais bem protegido de todos os que a naturezacavou para nossas frotas ou que a mo do homem conseguiu, porto to seguroque jamais as mais fortes tempestades fizeram sentir seu furor. Voc ver o lugarem que, quando a poderosa Atenas foi vencida, milhares de cativos foram presosem uma fossa com paredes gigantescas, verdadeira priso natural. Voc ver,enfim, esta imensa cidade, cuja extenso maior do que o territrio de muitascidades, lugar com inverno de extrema doura, em que os dias sem sol so coisaincomum. 5. Mas, quando voc tiver assim apreciado todos os encantos do lugar,o vero penoso e malso lhe tirar as vantagens do cu de inverno; vocencontrar a o tirano Dnis, flagelo da liberdade, da justia e das leis, vido pordespotismo mesmo depois da visita de Plato, vido por viver mesmo uma vezbanido: ele far queimar uns, chicotear os outros, a decapitar pela mais leveofensa, recrutar machos e fmeas para obter sua lubricidade e, entre as ignbeisequipes dedicadas s fantasias reais, ser pouco participar de dois acoplamentossimultneos. Ei-la a par do que pode atra-la e do que pode ret-la: e agora partaou fique. 6. Se nosso homem, aps tais advertncias, persistisse em querer ir aSiracusa, do que estaria ele no direito de se queixar, seno de si mesmo, j queno se encontrava l por acaso, mas tendo vindo de bom grado, em plenoconhecimento de causa? 7. A Natureza nos diz a todos: No quero enganarningum. Se voc d luz filhos, voc poder t-los belos, voc poder tambmt-los feios; talvez lhe nasam doentes. Um dentre eles poder salvar a ptria, umdentre eles poder tra-la. Voc tem o direito de esperar que a considerao de quedesfrutam ser de natureza a preserv-la contra todos os ataques da maledicncia;pense, no entanto, que eles podem tambm se cobrir de infmia e se tornarem umvivo oprbrio. 8. Nada impede que seus filhos lhe rendam as ltimas homenagense que sejam eles a pronunciarem seu panegrico; mas esteja pronta a coloc-los vocmesma na pira, seja em sua juventude, seja em sua idade madura, seja na velhice:pois os anos nada tm com isso, e os funerais aos quais os pais assistem so sempreprematuros. Se, conhecendo estas condies, voc coloca filhos no mundo, vocperde o direito de incriminar os deuses: eles no tm nenhum compromissocom voc.

    XVIII. 1. Apliquemos agora nossa comparao entrada do homem navida. Quando voc se perguntava se iria ver Siracusa, eu lhe mostrei tudo o quepoderia agrad-la e tudo o que poderia desgost-la nesta viagem; imagine que nomomento de seu nascimento eu venha lhe dar este aviso: Voc faz sua entradana cidade comum dos deuses e dos homens, cidade que compreende todo ouniverso, que obedece a leis constantes e eternas, em que os corpos celestesrealizam suas incansveis revolues. 2. A voc ver mirades de estrelas

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    brilharem de todos os lados, um astro nico encher com seus raios todo o espao.Voc ver este sol, cujo curso cotidiano traa os limites do dia e da noite, e cujocurso anual regula o retorno peridico dos veres e dos invernos. Voc ver a luasubstitu-lo durante a noite e receber de seu lar fraterno sua doce e suave luz, querescondida, quer cobrindo a terra com sua face cheia, crescente e minguante acada vez, e cada vez diferente do que foi na vspera. 3. Voc ver os cincoplanetas seguirem um rota oposta de outros astros e progredir em sentidoinverso do movimento geral do cu: de suas mnimas variaes dependem osdestinos dos povos, e as maiores assim, como as menores coisas sodiferentemente influenciadas quer um astro propcio ou funesto domine quandoela se produzir. Voc admirar as nuvens que se aglomeram, as chuvas que caem,o ziguezague dos raios e o barulho do trovo. 4. Quando, saciada dos espetculoscelestes, seu olhar descer sobre a terra, outros objetos a esperaro, com igualmaravilha: aqui vastos planos se desenrolam e se estendem ao infinito, almcadeias de montanhas elevando ao mais alto dos ares seus cumes coroados deneve; rios que precipitam suas guas, crregos que, vindos de um mesmo ponto,se espalham na nascente e na vazante; bosques que se balanam sobre os maisaltos cimos, e estas mil florestas que povoam animais to diversos, que alegramos cantos de tantos pssaros. 5. Cidades em posies variadas, naes separadaspor fronteiras insuperveis, umas defendidas por montanhas, outras passivamenteenvolvidas por rios com leitos profundos; colheitas dobrando-se sob os espinhos,rvores frutificando sem cultura; corredeiras que serpenteiam suavemente entreos prados, golfos com curvas graciosas, rios que se cruzam em forma de portos;inumerveis ilhas semeadas aqui e ali sobre a imensido das vagas, cuja monotoniarompem. 6. O que dizer das pedras preciosas, do esplendor das prolas, do ouroefervescente que os impetuosos cursos de gua carregam com suas areias, dascolunas de fogo que se lanam do seio da terra e por vezes do meio dos mares,e deste Oceano, envolvendo a terra, cujos trs golfos separam as partes do mundoumas das outras e cujas ondas se levantam com um borbulhar formidvel? 7. Voca ver, nadando sob as ondas sempre agitadas, mesmo quando o vento no sopra,animais muito maiores do que os animais terrestres, uns to pesados que se fazemrebocar para avanar, outros to geis que se afastam dos melhores remadores;alguns absorvem enormes quantidades de gua e a jogam com violncia, paragrande risco dos barcos que passam. Voc ver navios indo procura de terrasque no conhecem. Voc ver que nada desconcerta a audcia humana;testemunha de suas empresas, voc mesma ter nela um papel ativo: vocaprender e ensinar artes, das quais umas servem como entretenimento, outraspara embelezar, outras para conduzir a vida. 8. Mas voc encontrar tambmsobre a terra mil pragas, tanto do corpo quanto da alma: guerras, assassinatos,venenos, naufrgios, intempries, doenas, lutos prematuros e a morte, da qual

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    no podemos saber se ser doce ou precedida de terrveis torturas. Consulte,reflita e decida: se voc quer desfrutar de tantas maravilhas, eis por onde vocter de passar. Voc responder que quer viver. Como seria diferente? Voc vairecusar uma coisa da qual no se pode retirar a menor parcela sem faz-la sofrer?Viva, pois, segundo a lei que voc aceitou. Mas, dir voc, no fui consultada. Nossos pais so consultados em nosso lugar: eles conhecem as condies davida no momento em que no-la deram.

    XIX. 1. Mas, para conseguir os meios de consolao, vejamos inicialmentequais males se trata de curar, e em seguida como so curados. Aquilo que provocanossa dor o lamento de no termos junto a ns um ser que nos era caro. Emsi, esta privao seria evidentemente tolervel: pois no choramos os ausentes queemigraram para outros lugares por toda a vida, apesar de termos perdido, coma possibilidade de os ver, todos os prazeres que nos davam. , pois, de uma idiaque somos vtimas, e nossa infelicidade apenas aquilo que queremos que seja.O remdio est em nossas mos: digamos que os mortos so ausentes e nosiludamos voluntariamente. Ns nos separamos deles como para uma viagem: quedigo eu? Ns vamos nos reunir a eles, eles apenas partiram na frente. 2. Umaoutra causa de nossa dor este pensamento: No terei mais ningum para meproteger, para me resguardar do desprezo. A isto respondo por uma consolaopouco importante sem dvida, mas positiva: em uma cidade como a nossa, ganha-se em ver morrer seus filhos mais considerao do que se perde; e fato que esteisolamento, que antes era a perda de um homem, d hoje velhice crdito, vemostantas pessoas que fingem odiar seus filhos, renegam sua progenitura e criam parasi uma solido artificial. 3. Eu sei o que voc vai me dizer: Se eu sofro, opreconceito no me atinge. Com efeito, uma pessoa que se aflige com a mortede um filho como faria com a de um escravo e que encontra meio de ver em seufilho algo alm deste prprio filho no merece ser consolada. Com o que, pois,voc sofre, Mrcia? com seu filho morto ou com o pouco tempo que ele viveu?Se for porque ele morreu, voc teria de sempre ter sofrido: pois voc sempresoube que ele morreria. 4. Pense que os mortos no experimentam nenhuma pena,que aquilo que torna os infernos temveis para ns apenas lenda, que no htrevas envolvendo as mortes, nem priso alm tmulo, nem rios de fogo, nem riode esquecimento, nem tribunais, nem acusados e que no se alcana esta liberdadesem igual para nela reencontrar novos tiranos: estes so jogos de poetas, fatosque nos agitam com vos terrores. 5. Com a morte se acabam todos ossofrimentos; um termo alm do qual nossas infelicidades no passam: ela nosrecoloca na tranqilidade em que estvamos mergulhados antes de nascer. Se,ento, voc lamenta os mortos, lamente tambm aqueles que ainda no nasceram.A morte no nem um bem nem um mal: pois, para ser um bem ou um mal,

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    preciso ser algo. Mas aquilo que no nada em si mesmo e pelo qual tudo voltaao nada no tem nenhuma conseqncia para ns: no poderia haver a nem malesnem bens sem uma matria qualquer sobre a qual exercer-se. A Fortuna no temalcance sobre aqueles que a natureza coloca em descanso definitivo e no se podeser infeliz quando no se mais. 6. Seu filho ultrapassou os limites do domnioda servido; ele est no seio de uma paz profunda e eterna. Nem o medo dapobreza, nem o amor s riquezas, nem os aguilhes da paixo, que colhe a almapelo apetite do prazer, o atingem; ele no experimenta nenhum cime da felicidadede outrem, a sua no igualmente no o atrai; jamais insolncia alguma fere seuscastos ouvidos. Seus olhos jamais observam nem desastres pblicos nemcalamidades privadas. Ele no escravo inquieto de um futuro cujas promessasso cada vez mais duvidosas. Ele est, enfim, em uma temporada da qual nadapode mais o banir, na qual nada pode mais aterroriz-lo.

    XX. 1. Oh! Como desconhecem suas misrias, aqueles que no celebrama morte como a mais bela inveno da natureza e que no a aguardam comesperana! Coroe ela uma vida feliz, ou afaste de ns o infortnio, ou finde asaciedade e a fadiga do ancio, ou leve o jovem na aurora, na idade em queestamos limitados a esperar melhor, ou reclame criana o tempo dasexperincias, para todos ela o fim, para muitos a cura, para alguns a realizaodo desejo supremo, e os que tm mais obrigaes so aqueles que a recebem antesde ter implorado sua vinda. 2. A morte liberta o escravo malgrado seu senhor; amorte alivia os cativos de suas correntes; a morte abre a priso daqueles que erammantidos despoticamente por um poder inflexvel; a morte mostra aos exilados,cujo pensamento e o olhar se voltavam incessantemente para a ptria, que serepousa igualmente bem sob uma terra quanto sob a outra; se a Fortuna repartiumal bens que de direito so comuns a todos; se, de dois seres nascidos iguais,ela deixou que um fosse propriedade do outro, a morte restabelece entre eles aigualdade. Apenas a morte nada faz segundo o capricho de outrem: no se sentea baixeza de seu estado, no se tem de forma alguma senhor a servir. Oh, Mrcia!ela foi o desejo de seu pai. Graas a ela, no mais um suplcio ter nascido; graasa ela, as ameaas da sorte no me abatero mais, e minha alma, livre de seusataques, permanecer senhora de si mesma; eu tenho um porto onde me refugiar.3. Vejo nos tiranos cruzes de mais de uma espcie, variadas em sua fantasia: umsuspende suas vtimas de cabea para baixo; o outro atravessa o corpo com umaestaca que vai do tronco boca, outros lhes estende os braos a uma forca; euvejo suas cordas, suas varas sangrentas, seus instrumentos de tortura para meusmembros, para cada uma das articulaes de meu corpo; mas tambm a eu vejoa morte. Adiante, so os inimigos cobertos de sangue, cidados impiedosos; masao lado deles eu vejo a morte. A servido deixa de ser dura, quando o escravo,

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    desgostoso com o senhor, tem apenas um passo a dar para se ver livre. Contraas misrias da vida, eu tenho a morte como recurso. 4. Pense como bom morrerquando se deseja, e a quantos homens custou ter vivido demais! Se o CnsulPompeu, honra e sustentculo do estado, tivesse sido levado do mundo quandode sua doena em Npoles, teria morrido certamente o primeiro cidado darepblica. De qual cmulo de glria o precipitaram alguns anos a mais! Ele viudesfazerem-se suas legies, das quais o senado formava a primeira linha, e cujosrestos tiveram a infelicidade de ver seu chefe lhes sobreviver. Ele viu o verdugoegpcio; ele apresentou ao vil satlite uma cabea sagrada at para o prpriovencedor. Ao final, ele teve a vida salva, como se arrependeu de t-la aceito: quevergonha para Pompeu, dever a vida generosidade de um rei! 5. E Ccero,quando soube se desviar do punhal de Catilina dirigidos ao mesmo tempo sobreele e sobre a repblica; se a esta hora ele estivesse morto, seria salvador elibertador de Roma; se tivesse seguido sua filha ao tmulo, poderia ter morridofeliz. Ele no veria levantada a espada sobre a cabea dos cidados, os carrascosdividirem entre si os bens das vtimas que pagaram elas mesmas os gastos de suamorte, os despojos de tantos cnsules vendidos em leilo, o massacre e a pilhagemcontratada com verbas pblicas, tantas guerras, tantas rapinas, tantas Catilinas.6. Se, em seu retorno de Chipre, onde ele havia regrado a sucesso do rei destailha, Cato tivesse sido engolido pelo mar com os tesouros que trazia e que irianutrir a guerra civil, no teria sido uma felicidade para ele? Ele morreria com opensamento de que ningum ousaria cometer o crime na presena de Cato. Hlas!Alguns anos a mais obrigaram este grande homem, nascido para a liberdade detodos os outros mais do para a sua, a fugir de Csar e seguir Pompeu. Digamos:no uma infelicidade para seu filho ter morrido jovem; a morte fez-lhe mesmolibertar-se de todos os males futuros.

    XXI. 1. Voc diz: Ele faleceu cedo demais, e antes da idade! Massuponhamos que tivesse vivido mais; imagine a que se reduz a mais longa vidadada ao homem? Nascido para um momento, -lhe necessrio rapidamente cedera outros, vindos pela mesma razo, uma morada que apenas pode entrever depassagem. Falo da vida humana, esta torrente que, como se sabe, anda com umaincrvel celeridade; mas veja estas cidades que contam sculos, e calcule comosubsistiram pouco aquelas que cantam mais sua antigidade. Tudo o que vem dohomem breve e perecvel, e no ocupa lugar nenhum na infinidade das eras. 2.Este globo, com todos os seus povos, suas cidades, seus rios e o Oceano comocinturo apenas nos parece um ponto comparado ao universo. Bem! comparado eternidade, nossa existncia menos do que um ponto no tempo, pois aeternidade mais ampla do que este universo, que, sem esgotar o espao, retornato freqentemente sobre si mesmo. Que importa, pois, estender um espao cujo

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    desenvolvimento, por mais longe que v, est to perto de nada? A vida longa aquela que cumpriu sua tarefa. 3. Voc teria o prazer de me citar os homens cujavelhice histrica, estes homens que viveram at os cento e dez anos; se vocabraar a eternidade pelo pensamento, da mais longa mais breve existncia, adiferena ser nula quando comparar o tempo que viveram estes homens comaquele que eles no puderam viver.

    4. Ademais, seu filho realmente no morreu cedo demais; viveu o que de-via viver; ele no tinha direito a nada mais. A velhice no mais uniforme paraos homens do que para os animais. Vemos alguns animais se esgotarem em umespao de quatorze anos, apesar de tocarem a senilidade quando o homem aindaquase no saiu da infncia. Cada indivduo recebe em partilha uma durao devida que lhe prpria. 5. Ningum morre cedo demais, j que ningum deveriaviver mais tempo do que viveu. Cada um tem seu limite fixado: impossvel queele saia do ponto estabelecido, no h cuidados nem favores que a faam recuar.Persuada-se de que, se voc perdeu seu filho, em virtude de um desenho eter-no da vontade divina: ele teve sua parte, ele atingiu o limite do tempo que lhe eradevido.

    6. Rejeite, pois, o terrvel pensamento de que ele poderia ter vivido mais. Suavida no foi interrompida, e nunca o acidente intervm na seqncia de nossosanos. Cada um v se realizar o que lhe foi prometido; os destinos seguem reto oseu caminho, sem jamais tirar nem acrescentar algo ao programa que elestraaram. Nossos desejos, nossas dores so inteis: cada um ter apenas o quelhe foi designado no primeiro dia de sua existncia. Desde o instante em que sev a luz, toma-se o caminho da morte, vai-se rumo ao termo fatal, e os anos queprolongam a juventude abreviam a vida. 7. nosso erro universal crer que hapenas ancies j alquebrados e decrpitos que pendem para o tmulo: a infncia,a juventude e todas as idades para a nos levam. Os destinos realizam sua obra:eles nos impedem de perceber que morremos e, para melhor perturbar suamarcha, a morte se dissimula em ns sob a prpria aparncia da vida: por umainsensvel metamorfose, o beb mergulha na infncia, a infncia na puberdade,a velhice absorve a idade madura. Cada ganho, ao final das contas, uma perda.

    XXII. 1. Voc se queixa, Mrcia, de que seu filho no viveu tanto quantopoderia. Como voc sabe se ele teria aproveitado viver mais tempo, e que estamorte no foi um benefcio para ele? Encontre-me hoje em dia uma nica pessoacuja condio seja to segura e to solidamente estabelecida que nada tenha atemer do futuro. As coisas humanas so oscilantes e fugidias e o que h em nossavida de mais precrio e mais frgil justamente o que nos atinge mais no corao;tambm, no cmulo da felicidade, dever-se-ia desejar a morte: pois a instabilidadee a confuso de todas as coisas so tais que no podemos, excetuando-se o

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    passado, contar com nada. 2. Quem lhe garante que o corpo encantador de seufilho, que ficou sob os olhares sem pudor de uma cidade dissoluta, teria escapadode todas as doenas e conservado at a velhice sua beleza inalterada? Pense nasmil mculas que espreitam a alma: os melhores espritos no mantm aoenvelhecerem as esperanas que fizera nascer sua juventude; com muitafreqncia eles se corrompem no caminho: ou um gosto tardio e ainda maisvergonhoso da derrocada os invade, ou os vemos soobrar na gula e no ter outrainquietude seno saber o que comero ou bebero. 3. Acrescente os incndios,o desabamento dos edifcios, os naufrgios e as torturas que lhes infligem osmdicos quando o rasgam vivos para procurar em seus ossos, mergulhando suasmos em suas carnes palpitantes, ou cuidam de suas partes vergonhosas, aopreo de sofrimentos sem conta. E depois h o exlio: seu filho no era maisntegro que Rutlio; a priso: ele no era mais sbio que Scrates; o suicdio: eleno era mais virtuoso que Cato. Considere todas estas eventualidades e convirque os privilegiados da natureza so os que ela coloca cedo em lugar seguro, paralhes poupar o resgate que a vida lhes exigiu. Nada mais falacioso, mais prfidodo que a vida humana; ningum, oh deuses! aceitaria se no a recebssemos semconhecimento. Se, pois, a felicidade suprema no nascer, aquela que dela maisse aproxima, imagino, desaparecer o mais cedo e retornar rapidamente ao nadaoriginal. 4. Pense no tempo terrvel em que Sejano dava seu pai como pasto a seucliente Strio Secundo. Ele o odiava por uma ou duas palavras demasiadamenteatrevidas, Cordo no podendo suportar em silncio que pusessem um Sejanosobre nossas cabeas ou, melhor dizendo, que ele prprio sobre elas se subisse.Acaba-se de votar a ereo de uma esttua de Sejano no teatro de Pompeu, queTibrio reconstrua aps o incndio: Desta vez, gritava Cordo, ser mesmo ofim deste teatro!. 5. Poderia ele no ter estourado vendo um Sejano se erguerdas cinzas de Pompeu, um soldado desleal deificado no monumento que perpetuaa memria de um dos nossos maiores generais? O ato de acusao est assinado;a corja furiosa, que Sejano, para a ela se ligar e torn-la feroz para qualquer outro,alimentava de sangue humano, se pe a uivar em torno deste grande homem quetambm no conserva seu sangue frio. 6. O que fazer? Para viver, era precisosuplicar a Sejano, para morrer curvar-se sua filha, todos os dois inabalveis. Eleresolveu enganar sua filha. Ele tomou um banho para diminuir suas foras, e seretirou para seu quarto dizendo que iria a fazer uma refeio; l ele dispensou seusescravos e jogou pela janela uma parte dos alimentos, para fazer com quepensassem que ele havia comido; depois disso, ele no jantou, sob pretexto de quehavia comido suficientemente em seu aposento. No dia seguinte, a mesma coisa.No quarto dia, sua fraqueza no lhe permitiu mais dissimular. Ela a tomou, ento,em seus braos: Minha querida filha, diz ele, saiba da nica coisa que j lheescondi: tomei o caminho da morte e j percorri quase a metade do trajeto; voc

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    no deve me reter e voc no mais poderia faz-lo. Estas palavras pronunciadas,fez com que fossem fechados todos os acessos luz e se sepultou nas trevas.7. Quando se soube a posio que adotara, foi uma alegria universal, na viso deque estes lobos viam sua presa ser-lhe arrancada da goela. Sob a instigao deSejano, os acusadores se apresentaram no tribunal dos cnsules; eles sequeixavam de que Cordo se suicidava para os impedir de realizar sua obra: de talforma era o sentimento deles de que Cordo lhes escapava! A questo que secolocava era sria: ser que lhes deixariam perder a morte de seu acusado?Enquanto se deliberava, que os acusadores renovavam seus argumentos, Cordoabsolveu-se. 8 Veja, Mrcia, que calamidades imprevistas fundam sobre nsquando os tempos se tornam difceis. Voc chora porque um dos seus foiobrigado a morrer: ao outro foi permitido o mesmo.

    XXIII. 1. Alm de o futuro ser sempre incerto e comportar mais msoportunidades do que boas, o caminho do cu infinitamente mais fcil para asalmas que deixam em boa hora o comrcio dos humanos: elas ficam mais levescom menos lodo. Libertadas antes de se misturarem com matria demais eimpregnarem-se com demasiados elementos terrestres, elas retomam um vo maisleve rumo sua ptria e se desligam mais facilmente de tudo o que as macula eas altera. 2. Nunca, alis, as almas superiores se satisfazem nesta estada docorpo: elas anseiam escapar, evadir-se, elas suportam impacientemente sua priso,acostumadas que esto a errar livremente nos espaos celestes e contemplar demuito alto a miservel humanidade. Eis por que Plato grita que a alma do sbiopende completamente para a morte, e que este seu desejo, sua meditao, apaixo constante que o leva do mundo.

    Ento! Mrcia, quando voc via neste jovem uma prudncia de ancio, umaalma vitoriosa de todas as volpias, perfeitamente pura, isenta de vcios,procurando a riqueza sem cupidez, as honras sem ambio, os prazeres semintemperana, voc pensava que poderia conserv-lo por muito tempo? Aquele queatinge a perfeio est sempre perto de desaparecer. A virtude realizada se desfaze se subtrai aos olhos, e, quando uma coisa logo amadurece, ela no espera ooutono. 4. Mais o fogo brilha, mais rpido se apaga; ele dura mais quando vemde uma madeira resistente e mal combustvel e que sua chama atravessa comdificuldade as ondas de uma espessa fumaa: ele se prolonga em virtude domesmo motivo que faz com que tenha tanta dificuldade em pegar. O mesmoacontece com nossos espritos: mais lanam brilho, menos duram; pois, quandouma coisa no tem como crescer, ela no est distante de seu declnio. 5 Fabianoconta, e nossos pais o viram, que havia em Roma uma criana de um tamanhogigantesco, esplendoroso em fora e sade; mas esta criana viveu muito pouco,e todas as pessoas prevenidas haviam previsto sua rpida morte: como poderia

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    ela chegar a uma idade que por antecipao j tinha? Repito: uma precocidadeexcessiva anuncia um desaparecimento iminente; o fim se aproxima, quando oprogresso chega a seu termo.

    XXIV. 1. Decida-se a fazer as contas das virtudes, e no dos anos deseu filho: voc ver que ele viveu o bastante. Privado de seu pai, ele ficou at osquatorze anos sob os cuidados de seus tutores, e durante toda a sua vida sob atutela de sua me. Apesar de ter seu prprio lar, recusou-se a deixar o de sua mee, na idade em que os jovens suportam mal a sociedade de um pai, ele permaneceusob o teto materno. Seu porte, sua beleza, seu vigor o designavam para o ofciodas armas: ele renunciou vida militar para no se afastar de voc. 2. Calcule,Mrcia, quantas mes que moram separadas de seus filhos os vem poucofreqentemente; conte os anos que perdem e que passam na angstia aquelas cujosfilhos dedicam-se s armas: voc confessar que o perodo em que vocdesfrutou to completamente foi fortemente ampliado. Jamais saiu de suas vistas:foi sob seus olhos que o estudo formou este esprito superior e que se igualou aseu av, se a modstia, que infla tantos talentos, a isto no se tivesse oposto. 3.Adolescente de uma beleza pouco comum, no meio de todas estas mulheres queapenas pensam em corromper nosso sexo, no se prestava s esperanas denenhuma delas, e, com a perversidade de algumas chegando a realizar avanos,ele enrubescia somente por haver agradado. Ele ainda era apenas uma crianaquando esta pureza de costumes o fez se julgar digno de um sacerdcio; o apoiode sua me contribuiu para isso sem dvida alguma, mas esta prpria me nadateria obtido para um candidato sem mrito. 4. Como a contemplao destasvirtudes recoloca, por assim dizer, seu filho entre seus braos! neste momentoque ele completamente seu; agora nada pode distra-lo, nunca mais ele lhe darpreocupaes, jamais lhe causar dor. Voc experimentou a nica dor que poderiavir-lhe de um filho to perfeito; a seqncia, no comportando mais nenhum risco,apenas pode lhe oferecer prazeres, condio de que voc saiba desfrutar de seufilho e que voc tenha uma idia justa daquilo que de verdadeiramente preciosohavia nele. 5. somente a imagem de seu filho que morreu, apenas suarepresentao bem imperfeita; ele eterno, e seu estado presente vale muito mais,j que despojado dos vnculos que o assoberbavam e completamente voltado parasi mesmo. Esta matria de que somos revestidos, estes ossos, estes msculos,esta pele que os recobre, este rosto, estas mos complacentes, e todo esteinvlucro humano no so para a alma seno entraves e trevas. Por ela a alma esmagada, sufocada, corrompida; afastada da verdade, para a qual feita, eaprisionada no erro. A alma no deixa de lutar contra esta carne grosseira, cujopeso a arrasta e a oprime; ela se esfora para voltar aos lugares de onde veio: aa esperam uma paz eterna e o espetculo da pura luz, na sada do caos e da noite.

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    XXV. 1. No se precipite, pois, sobre a tumba de seu filho: voc apenasencontrar um vil e repugnante despojo, ossos, cinzas, que no mais eram eletanto quanto suas vestes e tudo com o que cobrimos seu corpo. Ele se foicompletamente, ele partiu sem nada deixar sobre esta terra, aps uma curta estadasobre nossas cabeas, o tempo de se purificar e de livrar de todas as taras, detodas as manchas da vida mortal, ele se lanou ao mais alto dos cus, e agora seregozija livremente entre as almas dos bem-aventurados. 2. Ele foi acolhido nasanta sociedade dos Cipies e dos Cates. Entre os que desprezaram a vida epartiram espontaneamente, ele encontrou, Mrcia, seu prprio pai. Este (apesarde todos l em cima formarem uma nica famlia) toma junto a si o neto,encantado com esta luz nova; ele lhe explica a marcha dos astros que se avizinhame o inicia com alegria, no sobre conjecturas, mas graas experincia direta quetem da verdade, a todos os mistrios da natureza; e o reconhecimento queexperimenta o estrangeiro pelo guia que lhe mostra uma cidade desconhecida, seufilho experimenta por este parente que, respondendo sua curiosidade, lhe revelaas causas dos fenmenos celestes. Ele tambm faz mergulharem seus olhos bemno fundo do espao, at na terra: pois doce rever de cima as regies quedeixamos. 3. Diga, conseqentemente, Mrcia, que sua conduta tem comotestemunhas seu pai e seu filho, no como voc os conheceu, mas infinitamenteengrandecidos e dominando do mais alto o universo: enrubesa com toda a aobaixa ou vulgar, e enrubesa de chorar os seus, objetos de uma to belametamorfose. No seio do espao eterno e das livres extenses, eles nada mais tmque os separe, nem os vastos mares, nem as altas montanhas, nem ravinasimpraticveis, nem Syrtos com areias movedias; para eles todo o caminhoconverge; eles se movem com uma agilidade ideal, se penetram reciprocamente,e se misturam substncia das estrelas.

    XXVI. 1. Imagine, ento, que do mais alto dos cus, este pai, Mrcia,que teve sobre voc a mesma autoridade que voc sobre seu filho, lhe fala nocom o tom magnfico com o qual deplorava as guerras civis e proscrevia para aeternidade os condenadores, mas com um tom mais sublime ainda, em harmoniacom as regies etreas que ele habita. 2. Por que, minha filha, este longo imprioda dor apossou-se de voc? Por que razo voc se mantm to fechada para averdade para poder olhar seu filho como uma vtima, desde o instante em que,sem ter sofrido o menor ataque nem em sua famlia, nem em sua pessoa, ele foiencontrar seus ancestrais? Ignora voc de que tempestades a Fortuna varre omundo? E que ela no indulgente e fcil seno para aqueles que evitamcuidadosamente mexer com ela? Dever-lhe-ei citar estes reis cuja felicidade teriasido sem igual se fossem mais cedo tirados dos males que ameaavam suascabeas? Estes generais romanos, a cuja grandeza nada faltaria se retirasse algoa seus dias? Estes grandes homens, estes heris ilustres, que no foram poupados

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    seno para se oferecer espada de um mercenrio? 3. Olhe seu pai e seu av:seu av se tornou um joguete de um assassino; eu no dei direito a ningumsobre mim mesmo, eu me privei de alimentos, e mostrei que tinha a alma toelevada em minha vida quanto em meus escritos. Por que aquele que teve a mortemais feliz , em nossa famlia, o mais longamente pranteado? 4. Estamos agorareunidos e livres da espessa obscuridade que a rodeia, ns descobrimos que nadatem em sua existncia terrestre de desejvel, como voc imagina, nada de elevado,nada de surpreendente, sendo tudo seno abjeo, pesadez e tormenta, e que atvoc no chega seno um plido reflexo de nossa luz! Eu acrescentaria que jamaisvemos aqui exrcitos que atacam com furor uns aos outros, nem frotas que sedestroam, que jamais parricdios foram urdidos nem premeditados, que no seconhecem fruns em atividade da manh noite no tumulto do processo, que tudoacontece a descoberto, que o pensamento a surge sem vu e o corao semdisfarce, que a vivemos vista e disposio de todos, que a contemplamostoda a seqncia das idades, passadas e futuras? 5. Estava orgulhoso de escrevera histria de um sculo, de traar os acontecimentos realizados no menor cantodo universo por um pequeno punhado de homens: quantos sculos agora, queencadeamento de idades sucessivas, de anos sem nmero me foi dado a observar!Eu contemplo de bom grado os nascimentos e as quedas dos futuros imprios,a destruio das cidades mais poderosas e as novas invases dos mares. 6. Pois,se voc pode encontrar no pensamento do destino comum um consolo para seuluto, no h nada que possa ficar em seu lugar, nada que o tempo no possareverter e colocar cedo ou tarde em seu curso, e no somente dos homens quetratar (que so os homens no infinito domnio em que a Fortuna exerce seupoder?), mas lugares, regies, diferentes partes do universo. Ele aplainarmontanhas e far surgir alm novos cumes escarpados; ele secar os mares,desviar os rios e, suprimindo as comunicaes entre os povos, abolir asociedade e a unio do gnero humano; alm, ele abrir fendas formidveis queengoliro as cidades, ou as agitar com tremores de terra; ele far nascer o soldos vapores pestilentos; ele cobrir com inundao a superfcie do mundo habitadoe far perecer sob as vagas todas as espcies animais, ele espalhar chamasdevastadoras que consumiro e devoraro tudo o que respira. E, quando forchegada a hora em que o mundo deve ser aniquilado para se renovar totalmente,toda substncia se destruir, os astros se chocaro contra os astros, o fogoqueimar o universo, e todos estes corpos luminosos, que brilham em uma ordemto bela hoje, no formaro seno a chama de um vasto e nico incndio. 7. Nsmesmos, almas afortunadas, que temos a eternidade como herana, no dia em quedeus julgar bom reconstituir o universo, ns no seremos, no meio do caos geral,seno um detalhe a mais na grande catstrofe, e voltaremos a nos perder no seiodos elementos primeiros.

    Feliz de seu filho, Mrcia!, ele sabe doravante tudo isso.