epicuro, lucrécio, cícero, sêneca, marco aurélio - coleção os pensadores

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Epicuro Lucrcio Ccero Sneca Marco Aurlio0H

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CONTRA-CAPA Neste volumeEPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS (sc. IV/lII a.C.) Pensamentos sobre a filosofia, a teoria do conhecimento, a fsica e a tica de um dos maiores filsofos da Antigidade. LUCRCIO DA NATUREZA (sc. I a.C.) Num longo e belo poema, Lucrcio expe a doutrina atomista criada por Leucipo e Demcrito e desenvolvida por Epicuro. CCERO DA REPBLICA (51 a.C.) As vrias formas de governo so analisadas luz do ecletismo filosfico de um dos maiores nomes do pensamento romano. SNECA CONSOLAO A MINHA ME HLVIA (sc. I a.C.) DA TRANQILIDADE DA ALMA (sc. I a.C.) MEDIA (sc. l a.C.) APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLAUDIO (sc. I a.C.) Obras representativas de um dos mais importantes filsofos esticos da Roma Antiga, no tempo de Calgula e Nero. MARCO AURLIO MEDITAES (sc. II) Reflexes morais do imperador-filsofo, adepto do estoicismo. Seleo de textos: Jos Amrico Motta Pessanha Tradues e notas: Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios: E. Joyau (Epicuro) e C. Ribbeck (Lucrcio) Consultor da Introduo Geral: Jos Amrico Motta Pessanha

ORELHASOs Pensadores Epicuro Lucrcio Ccero Sneca Marco Aurlio"Nunca se protele o filosofar quando se jovem, nem canse o faz-lo quando se velho, pois que ningum jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a sade da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda no chegou ou j passou assemelha-se ao que diz que ainda no chegou ou j passou a hora de ser feliz." EPICURO: A Filosofia e o seu Objetivo " indubitvel que a matria no forma um todo compacto, visto vermos que tudo se gasta e por assim dizer se desfaz ao longo dos tempos e se oculta na velhice aos nossos olhos; o conjunto, no entanto, parece permanecer intato, pois o que se retira de qualquer corpo, e por a o diminui, vai aumentar aquele a que se junta: obrigam uns a envelhecer, outros a prosperar; e no param nesse ponto. Assim continuamente se renova o Universo e vivem os mortais de trocas mtuas. Aumentam umas espcies, diminuem outras, e em breve espao se substituem as geraes de seres vivos e, como os corredores, passam uns aos outros o facho da vida." LUCRCIO: Da Natureza "No procedas como se houvesses de durar dez milnios; o fim inevitvel pende sobre ti; enquanto vives, enquanto podes, torna-te um bom." MARCO AURLIO: Meditaes

FAZEM PARTE DESTA SRIE:VOLTAIRE MARX ARISTTELES SARTRE ROUSSEAU NIETZSCHE KEYNES ADORNO SAUSSURE - PRSOCRTICOS GALILEU PIAGET KANT BACHELARD DURKHEIM LOCKE PLATO DESCARTES - MERLEAU-PONTY WITTGENSTEIN HEIDEGGER BERGSON - STO TOMS DE AQUINO HOBBES ESPINOSA - ADAM SMITH SCHOPENHAUER VICO KIERKEGAARD PASCAL MAQUIAVEL HEGEL E OUTROS

CIP-Brasil. Catalogao-na-Publicao Cmara Brasileira do Livro, SP E54a 3.ed. Epicuro, 342 ou 1-271 ou 70A.C. Antologia de textos / Epicuro. Da natureza / Tito Lucrcio Caro. Da repblica / Marco Tlio Ccero. Consolao a minha me Hlvia ; Da tranqilidade da alma ; Media ; Apocoloquintose do divino Cludio / Lcio Aneu Sneca. Meditaes / Marco Aurlio ; tradues e notas de Agostinho da Silva ... [et al.] ; estudos in trodutrios de E. Joyau e G. Ribbeck. 3. ed. So Paulo : Abril Cultural, 1985. (Os pensadores) Contm vida e obra de Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca e Marco Aurlio. Bibliografia. 1. Epicuristas 2. Esticos 3. Filosofia antiga I. Lucrcio, 98?-55?A.C. II. Ccero, 10643A.C. III. Sneca, 4?-65 ou 6. IV. Marco Aurlio, 121-180. V. Silva, Agostinho da, 1906- VI. Joyau, Emmanuel, 1850-1924. VII. Ribbeck, G. VIII. Ttulo. IX. Ttulo: Da natureza. X. Ttulo: Da repblica. XI. Ttulo: Consolao a minha me Hlvia. XII. Ttulo: Da tranqilidade da alma. XIII. Ttulo: Media. XIV. Ttulo: Apocoloquintose do divino Cludio. XV. Ttulo: Meditaes. XVI. Srie. CDD- 180-187

84-1228 ndices para catlogo sistemtico: 1. Epicurismo : Filosofia antiga 187 2. Estoicismo : Filosofia antiga 188 3. Filosofia antiga 180 4. Filsofos antigos 180

-188

EPICURO

ANTOLOGIA DE TEXTOSTITO LUCRCIO CARO

DA NATUREZAMARCO TLIO CCERO

DA REPBLICALCIO ANEU SNECA

CONSOLAO A MINHA ME HLVIA DA TRANQILIDADE DA ALMA MEDIA APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLUDIOMARCO AURLIO* * *

MEDITAESTradues e notas de Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios de E. Joyau e G. Ribbeck

1985 EDITOR: VICTOR CIVITATtulos originais: Texto de Lucrcio: De Rerum Natura Textos de Sneca: Ad Helviam Matrem de Consolatione Ad Serenum de Tranquillitate Animi Medea Divi Claudi Apokolokintosis Texto de Marco Aurlio: T (Meditaes)

Copyright desta edio, Abril S.A. Cultural, So Paulo, 1973 2. edio, 1980 3. edio, 1985. Tradues publicadas sob licena de Editora Globo S.A., Porto Alegre (Antologia de Textos de Epicuro; Da Natureza); D. Giosa Indstrias Grficas S.A., So Paulo (Da Repblica; Consolao a Minha Me Hlvia; Da Tranqilidade da Alma; Media; Apocoloquintose do Divino Cludio); Editora Cultrix Ltda., So Paulo (Meditaes). Direitos exclusivos sobre "Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca, Marco Aurlio Vida e Obra", Abril S.A. Cultural, So Paulo.

EPICURO LUCRECIO CCERO SNECA MARCO AURLIOVIDA E OBRAConsultoria: Jos Amrico Motta Pessanha

A perda da liberdade poltica primeiro dominada pelos macednios, depois pelos romanos alterou profundamente os quadros dentro dos quais a Grcia Antiga vinha desenvolvendo sua experincia cultural e, em particular, sua criao mais arrojada: a especulao filosfica. Tornando-se parte do imprio fundado por Filipe da Macednia e ampliado por seu filho Alexandre, o pas passa a integrar vasto organismo poltico, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se diluir as distines entre gregos e orientais, distines que, ento, os primeiros orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar. O historiador Herdoto (c.480-c.425 a.C.) mostrara que a raiz dessas distines estava no senso de liberdade poltica que um grego possua por pertencer a uma cidade-Estado, cnscia de sua autonomia e de suas tradies, e onde, ao usufruir os direitos de cidadania, ele no estava submetido a nenhum senhor. O abismo entre os gregos do perodo helnico e os "brbaros" orientais provinha, segundo Herdoto, da conscincia de liberdade que os gregos desenvolveram a partir da peculiaridade de sua organizao social e poltica. Essa conscincia de liberdade est ilustrada, pelo historiador, no episdio dos dois espartanos que, por ocasio das Guerras Mdicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem sacrificados como expiao pelo assassnio dos embaixadores de Xerxes. Indagados sobre por que Esparta insistia em resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da rendio e da submisso, os dois gregos respondem, altaneiros, ao persa que os

conduzia ao sacrifcio: "Tu no podes compreender. Conheces apenas a vida de servido. Jamais experimentaste a liberdade, para saber se ela doce ou no. Do contrrio, tu nos aconselharias a combater por ela no somente com a lana mas tambm com o machado". Depois da batalha de Queronia (338 a.C), que marca a derrota dos gregos frente Macednia, a situao muda completamente. O desaparecimento da autonomia da cidade-Estado torna sem sentido qualquer sentimento isolacionista. Mas, pelo fato mesmo de inserir-se no grande organismo poltico dos macednios, a cultura grega se difunde, tornando-se patrimnio comum a todos os pases mediterrneos. Comea o chamado perodo helenstico, no qual, desde a morte de Alexandre at a conquista romana, a cultura grega vai progressivamente se impondo do Egito e da Sria at Roma e Espanha. E se Atenas inicialmente permanece como centro da investigao cientfica e filosfica, outros focos de atividade intelectual passaro depois a se afirmar, particularmente Alexandria. No perodo helenstico as cincias particulares comeam a ter desenvolvimento autnomo, despregadas do tronco original da antiga sabedoria filosfica. O sculo III a.C. o sculo de Euclides, de Arquimedes (287-212 a.C.) e de Apolnio de Perga (c.262-c.180 a.C), um esplndido sculo, portanto, para as matemticas e a astronomia. Mas tambm o sculo em que, no museu de Alexandria cujo bibliotecrio o gegrafo Eratstenes (275-194 a.C.) , ocorre grande desenvolvimento da crtica filosfica e das cincias baseadas na observao. Surge um novo tipo de intelectual, inexistente na fase helnica: o especialista erudito. E se isso representa um impulso s especializaes cientficas, manifesta tambm o novo rumo que tomara o conhecimento, desde que sua meta deixara de ser o universo poltico: o da realizao subjetiva e pessoal, que acompanha o ideal de cincia pela cincia.

Em busca da serenidadeAs novas condies impostas ao mundo grego tornam impossvel a participao do indivduo no governo da polis, que o cidado helnico conhecera

sobretudo na fase democrtica. O conhecimento deixa de ser preparao para a atividade poltica (como fora em Plato), passando a se ocupar do aprimoramento interior do homem. Distanciada das preocupaes polticas, a filosofia aspira ao estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se prope a dirigir as conscincias: o problema tico torna-se o centro da especulao de diferentes, correntes filosficas. As ticas helensticas partem procura do bem individual, de uma sabedoria que represente a plenitude da realizao subjetiva: o alcance da perfeita serenidade interior, independente das circunstncias. O bem no mais ter o sentido metafsico do Bem de Plato, fundamento das idias, dos modelos do mundo corpreo, e, conseqentemente, sustentao tanto do sujeito do conhecimento e da ao quanto da prpria realidade objetiva. O bem das ticas helensticas ter acepo estritamente existencial: o bem como sinnimo do que bom para o indivduo, para a vida de cada homem. Para traar o caminho que conduz serenidade interior, algumas ticas helensticas o epicurismo e o estoicismo partem de uma concepo do universo fundamentada racionalmente. Ao contrrio do que propunha o socratismo, epicuristas e esticos fazem da cincia sobre a natureza das coisas a base para suas construes morais. Bem diverso ser o itinerrio prescrito pelo ceticismo, fundado por Pirro de lis (360-270 a.C): imperturbabilidade de esprito s se chegaria partindo-se da suspenso de qualquer julgamento, renunciando-se a qualquer explicao cientfica, abandonando-se toda pretenso de alcanar certezas inatingveis. Outra corrente de pensamento que se manifesta no perodo helenstico o ecletismo. Procurando um critrio para a ao que escapasse s disputas das diferentes escolas, essa filosofia pretender estabelecer, para alm das divergncias, um "sentido comum", um consenso universal. Tal forma de pensar teve larga aceitao na fase romana e Ccero foi seu mais eminente representante.

O carter de religiosidade, que se tornar evidente no pensamento ocidental a partir do sculo I d.C, afirma-se antes em centros orientais da cultura helenstica, como Alexandria. Manifesta-se ento acentuada tendncia fuso ou ao sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradies: a greco-romana, formulada atravs de filosofias dotadas de alto ndice de racionalizao, e a da religiosidade oriental, fundada como no judasmo e no cristianismo na noo de "verdade revelada". Os primeiros efeitos da repercusso do esprito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeusalexandrinos (do sculo II a.C. ao I d.C), nos neopitagricos e platnicos pitagorizantes (entre os sculos I a.C. e III d.C.) e nos ltimos defensores do pensamento e da religio do politesmo: os neoplatnicos do sculo II ao sculo VI d.C. O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestao de sincretismo religioso dessa poca e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para o neoplatonismo canto de cisne do pensamento da Grcia Antiga , todos os seres resultariam de sucessivas emanaes do Um, divino, transcendente e inefvel. Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um ltimo tema: o silncio do Ser.

O jardim da amizade e do prazerNascido em 341 a.C, em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado, dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do acadmico Pnfilo. E, atravs de Nausfanes de Teo, discpulo de Demcrito (c.460-370 a.C), teria conhecido as doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como professor de gramtica. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306 a.C, onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficar conhecida como o Jardim de Epicuro. Os alunos no tm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade, formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influncia, no s pelo ensino direto como pela extraordinria personalidade. um homem

bondoso, de natureza terna e amvel, que, apesar dos sofrimentos fsicos impostos pela doena que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os irmos e trata delicadamente os escravos. Por essa razo todos os que o conhecem dificilmente deixam seu convvio. Epicuro foi intensamente venerado por seus primeiros discpulos, grandes admiradores seus. E cerca de dois sculos depois de sua morte ocorrida em 270 a.C. ainda ser assim exaltado pelo. poeta romano Lucrcio, seguidor e expositor de suas idias: "Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu essa maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada to calma e to luminosa". As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrcio significam os temores e as perturbaes que agitam o esprito humano e que Epicuro teria ensinado como vencer. "A morada to calma e to luminosa" seria a meta proposta pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a tica de Epicuro representa um esforo para libertar a alma humana de equvocos ou de infundadas crenas aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao homem como instrumento de libertao e como via de acesso verdadeira felicidade. Esta consistiria na serenidade de esprito que advm da conscincia de que ao homem que compete conseguir o domnio de si mesmo. O autodomnio objetivo de toda reflexo filosfica exige a libertao do jugo das falsas opinies e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da realidade e da posio do homem dentro dela. Conseqentemente, a filosofia pode ser dividida em trs partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lgica, que permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas. Em segundo lugar com base nas solues indicadas pela lgica , uma fsica que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A lgica e a fsica constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a

descoberta dos fundamentos da tica. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu objetivo ltimo, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade. A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de cannica) empirista, isto , reduz toda a origem do conhecimento experincia sensvel. As repetidas experincias dos sentidos, preservadas pela memria, dariam nascimento antecipao (em grego: prolepsis), equivalente noo geral ou conceito. Quando se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presena real e efetiva de um homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos sentidos. A prolepsis teria a funo de classificar as experincias e fixar seus limites de variao. Seria em si mesma verdadeira, pois simplesmente registra e preserva as diferenas e semelhanas encontradas na experincia sensvel.

A fonte da verdade.Depois que se possui um nmero suficientemente grande de prolepsis, podem-se formar juzos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juzo pode ser provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juzo diz respeito a algo observvel pelos sentidos, o critrio pura e simplesmente a concordncia entre o juzo e os fenmenos sensveis correspondentes. O segundo critrio de verificao da verdade de uma proposio refere-se aos juzos sobre fenmenos no passveis de observao atravs dos sentidos. Nesse caso diz-se que certa proposio verdadeira se no entrar em contradio com outros dados fornecidos pela experincia (critrios da no-infirmao). Os fenmenos adotados como prova so apenas signos de uma realidade invisvel. Por exemplo, segundo a doutrina atomista, adotada por Epicuro, "todos os corpos, por mais compactos que sejam, possuem interstcios vazios dentro deles". Esse juzo no atestado diretamente pelos sentidos; mas, se no for admitido como verdadeiro, tambm no seria verdade que "a gua destila atravs das rochas", ou que "o calor e o frio passam atravs das paredes".

A conjugao do conhecimento sensvel e do conhecimento racional permite a Epicuro justificar sua adeso ao atomismo criado por Leucipo (meados do sculo V a.C.) e Demcrito (c.470-c.370 a.C). Com efeito, se os sentidos atestam o movimento como uma evidncia, seria verdadeira, graas ao critrio da no-infirmao, a teoria atomista, que apresenta uma explicao racional para o movimento, afirmando que tudo constitudo de tomos (invisveis) que se movem no vazio. Como os anteriores atomistas, Epicuro considera os tomos como infinitos em nmero, indivisveis fisicamente (insecveis) e imensamente pequenos (sua variao de tamanho estaria situada aqum do limiar de percepo); alm disso, seriam mveis por si mesmos, pois o vazio no ofereceria qualquer resistncia locomoo. Leucipo e Demcrito haviam afirmado que os tomos, materialmente idnticos, diferiam uns dos outros apenas pela forma, pelo tamanho, pela posio ou, quando constituam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro, porm, introduz uma nova distino: os tomos seriam diferentes tambm quanto ao peso. Os primeiros atomistas consideravam o peso uma resultante do tamanho dos tomos: os maiores, mais sujeitos aos impactos dos outros, locomovem-se com mais dificuldade e tendem a ocupar o centro dos agrupamentos de tomos, comportando-se como mais pesados. Ao contrrio, Epicuro considera o peso um atributo inerente aos tomos, concebendo, portanto, um peso absoluto e no relativo. E devido ao peso que os tomos, num momento inicial, so imaginados por Epicuro como "caindo"; mas, situados dentro do vazio, teriam que desenvolver, nessa "queda", trajetrias necessariamente paralelas. Isso significa que os tomos jamais se chocariam dando origem aos engates e aos torvelinhos indispensveis constituio das coisas e dos mundos se algum fator no viesse interferir naquele paralelismo das trajetrias. Afastando-se do rgido mecanismo da fsica dos primeiros atomistas, Epicuro introduz ento a noo de "desvio" (clinamen): sem nenhuma razo mecnica, os tomos, em qualquer momento de suas trajetrias verticais, podem se desviar e se chocar. O clinamen aparece, assim, como

a introduo do arbtrio e do impondervel num jogo de foras estritamente mecnico: a ruptura da necessidade, no plano da fsica, para acolher a contingncia. A justificativa do clinamen est garantida pela cannica de Epicuro: a evidncia imediata revela que existe um ser o homem que, embora constitudo de tomos (como todos os seres do universo), manifesta a possibilidade de arbtrio, pelo qual altera os rumos de sua vida ou, pelo menos, pode modificar sua atitude interior diante dos acontecimentos. A existncia da vontade livre seria, portanto, o fato experimentado que, atravs do critrio da no-infirmao, encontraria explicao no desvio que deve tambm ocorrer nas trajetrias atmicas. Inconcebvel seria admitir que um composto (o homem) apresentasse atributos inexistentes em seus componentes (os tomos). A doutrina do clinamen serve, assim, para fundamentar, dentro de um universo de coisas regido pelo fatalismo e pela necessidade mecnica, a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a liberdade humana. Na fsica Epicuro situa as premissas de sua tica.

A verdadeira sabedoriaCom sua concepo materialista da realidade, Epicuro pretende libertar o homem dos dois temores que o impediriam de encontrar a felicidade: o medo dos deuses e o temor da morte. Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres perfeitos que no se misturam s imperfeies e s vicissitudes da vida humana. Os deuses viveriam em perfeita serenidade nos espaos que separam os mundos. Sua perfeio suprema constitui o ideal a que aspiram os sbios e deve ser objeto de culto desinteressado; no teria sentido ador-los de maneira servil, temerosa e interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo algum atuam sobre ele. Quanto morte, no h tambm por que tem-la. Ela no seria mais que a dissoluo do aglomerado de tomos que constitui o corpo e a alma. A morte, portanto, no existe enquanto o homem vive e este no existe mais quando ela sobrevm.

A libertao do temor dos deuses e da morte no basta para conduzir o homem verdadeira felicidade. necessrio ainda que ele se liberte da nsia incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores. A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar os sombrios temores que lhe intranqilizavam a alma, bem como reconhecer-se como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural, o homem como os animais pauta sua vida, espontaneamente, pela procura do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria est alm desse comportamento natural e espontneo: sbio reconhecer que h diferentes tipos de prazer, para saber selecion-los e dos-los. O hedonismo epicurista reconhece que o ponto de partida para a felicidade est na satisfao dos desejos fsicos, naturais. Mas essa satisfao, para no acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se ao estritamente necessrio: sbio aquele que "com um pouco de po e de gua rivaliza com Jpiter em felicidade". Epicuro considera que todo prazer basicamente um prazer corpreo. Mas, ao contrrio dos cirenaicos corrente hedonista que se pretendia herdeira de Scrates , Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar no o da pura satisfao fsica imediata e mutvel, o "prazer do movimento". Para Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana o prazer com dimenso tica e no apenas natural o "prazer do repouso", constitudo pela ataraxia (ausncia de perturbao) e pela aponia (ausncia de dor). Ambas podem ser alcanadas na medida em que o homem, atravs do autodomnio, busque a auto-suficincia que o torne um ser que tem em si mesmo sua prpria lei, um ser autrquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente das circunstncias. Para tanto, deve renunciar aos prazeres que possam ser fontes de aflio e aceitar a dor quando ela portadora de um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da morte). necessrio, portanto, fazer um clculo utilitrio dos prazeres e das dores possveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porm, reconhece que as circunstncias podem impor a dor como um fato inelutvel.

Sabedoria ser ento utilizar a liberdade interior e, atravs do artifcio que essa liberdade permite, permanecer sereno e feliz. dor presente, ensina Epicuro, podese escapar por meio da lembrana dos prazeres passados ou pela expectativa de prazeres futuros. Interiormente, o homem livre para jogar, vontade, com as imagens (eidola) que seriam resqucios corpreos (formados de tomos mais tnues) de suas sensaes. Epicuro ele prprio um homem doente e vtima de terrveis sofrimentos fsicos, ele prprio um grego sem liberdade poltica teria dado a demonstrao dessa tcnica interior de evaso, capaz de permitir ao homem enfrentar serenamente as mais adversas circunstncias. Seu hedonismo altamente espiritualizado, que fazia da contemplao intelectual e das delcias da amizade os mais elevados prazeres, legou s ticas posteriores uma lio que nunca mais ser esquecida: a de que o homem tambm pode se sustentar de recordaes e de esperanas.

A poesia do materialismoNa prpria Antigidade o epicurismo no sofreu reformulaes. Os seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memria do mestre e a preservar e propagar suas idias. Segundo Digenes Larcio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos ttulos, dentre os quais s Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o prprio Digenes Larcio conservou uma Carta a Herdoto (que trata da fsica), uma Carta a Ptocles (de "autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre moral); Digenes Larcio faz seguir essas cartas de quarenta sentenas atribudas a Epicuro e conhecidas sob a denominao de Mximas Principais. Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 mximas de Epicuro, algumas j inseridas nas Mximas Principais. Por outro lado, as escavaes realizadas em Herculanum trouxeram luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro.

Mas, se os escritos de Epicuro s so conhecidos de forma fragmentria, existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza das Coisas, de seu seguidor Lucrcio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C. Pouco se sabe da vida de Tito Lucrcio Caro. Nasceu provavelmente em Roma, onde foi educado. Quando conheceu a doutrina de Epicuro "honra da raa grega" , Lucrcio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana. Seguindo as pegadas do mestre, Lucrcio prope-se tarefa de libertar os romanos da religio que os oprimia e que sobre eles pesava com mais fora do que outrora pesara sobre os gregos. Alm de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema de Lucrcio tem imensa importncia literria: atravs dele Lucrcio se revela um dos maiores poetas da lngua latina. Lucrcio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicao, segundo algumas fontes, por um irmo de Ccero chamado Quinto. Segundo outras fontes, aquele trabalho foi feito pelo prprio Ccero, que tinha pelo poeta do materialismo profunda admirao.

O ecletismo de CceroEm janeiro de 49 a.C, o trinviro romano Jlio Csar atravessou o Rubico e desencadeou a guerra civil que o levaria a dominar todo o imprio. Venceu Pompeu em Farsala, instalou Clepatra no trono do Egito, reorganizou o Oriente e derrotou os ltimos adeptos do segundo trinviro da frica, em 46 a.C, e na Espanha, um ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., comeou a governar como dspota absoluto e tratou de eliminar os ltimos adversrios. Entre os adversrios perseguidos estava Marco Tlio Ccero (106-43 a.C), senador e figura proeminente da poltica romana nos anos anteriores. Obrigado a deixar os negcios pblicos, Ccero recolheu-se vida privada e retomou a

meditao filosfica, de que j se ocupara num primeiro exlio, por volta de 51 a.C. O resultado foi um conjunto de obras, escritas em aproximadamente dois anos e que versavam sobre os mais variados assuntos: Sobre os Fins, Controvrsias Tusculanas e Sobre os Deveres tratam de problemas ticos; Os Tpicos e Os Acadmicos abordam questes lgicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatria e Sobre o Destino so dedicados a temas da fsica. Do ponto de vista da filosofia, essas so as principais obras escritas por Ccero no retiro forado por Csar e vinham juntar-se a Sobre o Orador, escrito em 55 a.C., A Repblica, redigida em 51 a.C, e Sobre as Leis, provavelmente da mesma poca. Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na histria do pensamento porque fazia do latim um idioma filosfico. Pouco antes, Lucrcio tinha escrito o poema Sobre a Natureza, mas a obra no foi publicada seno aps a morte do poeta e, ao que tudo indica, sob os cuidados de Ccero. Apesar desse valor histrico, as obras de Ccero no contm um pensamento original, limitando-se a amalgamar diferentes teorias filosficas gregas. Ccero foi um tipo ecltico, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas correntes na poca, sem vincular-se inteiramente a nenhuma. Essas correntes ele tinha conhecido quando, na juventude, estudou em Atenas, antes de tornar-se famoso advogado e homem pblico. Foi discpulo e amigo de epicuristas, esticos, peripatticos e acadmicos. De todos eles Ccero retirou algumas idias e comps uma sntese que, alm da importncia pela criao de um vocabulrio filosfico latino, constitui fonte de estudo de boa parte do pensamento clssico. No que diz respeito a suas prprias posies doutrinrias, Ccero, em teoria do conhecimento, ops-se tanto ao ceticismo radical de Pirro de Elis (360-270 a.C.) quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critrio de verdade o probabilismo do consenso universal, isto , aquela posio que acha possvel ao homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem no entanto atingir a verdade

absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razes dessa posio so colocadas menos num plano puramente lgico do que no terreno das necessidades prticas do homem. Para Ccero, o problema do conhecimento no pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita, todavia, de admitir como verdadeiras algumas noes sem as quais no possvel manter a coeso da sociedade. Em moral, Ccero adere s doutrinas esticas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepo segundo a qual o exerccio da virtude basta-se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana s leis racionais da natureza. Aceita essas idias, mas exige que tais normas sejam vlidas pelo consenso universal. Esse consenso universal articula-se em torno de algumas idias que do fundamento vida moral e social, principalmente a da existncia de Deus e sua providncia. Tais noes seriam comprovadas pela conscincia natural dos homens e pela constatao de que na natureza os fenmenos organizam-se em torno de fins, os quais supem a existncia de um fim ltimo de todas as coisas. Outra idia com a mesma funo de fundamentar a vida social e moral a da essncia espiritual e divina da alma e sua imortalidade. Essa idia encontrar-se-ia confirmada na preocupao do homem com sua vida futura.

Os esticosDepois de Ccero ter iniciado a histria da filosofia em lngua latina, formulando sua sntese ecltica, o movimento de idias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas esticas, tambm originrias da Grcia, como o epicurismo e o ecletismo. A escola estica foi fundada por Zeno de Ccio (334-264 a.C.) e continuada por Cleanto de Assos (331-232 a.C) e Crisipo de Solis (280-210 a.C.). Posteriormente, a escola transformou-se, tendendo para uma posio ecltica, com Pancio de Rodes (185-112 a.C.) e Possidnio de Apamia (135-51 a.C).

O estoicismo grego prope uma imagem do universo segundo a qual tudo o que corpreo semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital (pneuma), cuja tenso explicaria a juno e interdependncia das partes. Em seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro gneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coeso do todo. Essa alma identificada, por Zeno, razo, e assim o mundo seria inteiramente racional. A Razo Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, no havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem. A racionalidade do processo csmico manifesta-se na idia de ciclo, que os esticos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Herclito de feso (sc. VI a.C), os esticos concebem a histria do mundo como feita por sucesso peridica de fases, culminando na absoro de todas as coisas pelo Logos, que Fogo e Zeus. Completado um ciclo, comea tudo de novo: aps a conflagrao universal, o eterno retorno. Tudo o que existe corpreo e a prpria razo identifica-se com algo material, o fogo. O incorpreo reduz-se a meios inativos e impassveis, como o espao vazio; ou ento quilo que se pode pensar sobre as coisas, mas no s prprias coisas. Nesse universo corpreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idnticos, tudo existe e acontece segundo predeterminao rigorosa porque racional. Governada pelo Logos, a natureza por isso justa e divina e os esticos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, atravs disso, com a prpria natureza, que intrinsecamente razo. Esse acordo consigo mesmo o que Zeno chama "prudncia" e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades. As paixes so consideradas pelos esticos como desobedincia razo e podem ser explicadas como resultantes de causas externas s razes do prprio indivduo; seriam, como j haviam mostrado os cnicos, devidas a hbitos de pensar

adquiridos pela influncia do meio e da educao. necessrio ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e Razo Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstncia, mesmo na dor e na adversidade.

Uma nova lgicaOs esticos gregos no se limitaram a formular uma fsica e uma tica. Elaboraram tambm uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As trs formariam um conjunto sistemtico que expressaria, no plano do conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza. A teoria do conhecimento consiste, para os esticos, em vincular estreitamente a certeza e a cincia ao plano do conhecimento sensvel. A base de qualquer conhecimento seriam as impresses recebidas pelos sentidos; mas j o nvel do sensvel estaria penetrado pela razo, sendo portanto predisposto sistematizao pela inteligncia. Ao lado das coisas sensveis, os esticos distinguem os "exprimveis", isto , aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os "exprimveis" seriam objeto da dialtica, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a respeito das coisas, e no das prprias coisas. Os mais simples enunciados, segundo os esticos, so compostos por um sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposies da lgica aristotlica, que estabelecem relaes entre conceitos (por exemplo: "O homem um animal racional"). Na lgica estica, o sujeito sempre singular (algum, Pedro etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligaes entre os enunciados, portanto, nunca assumem o carter de juzo categrico, permanecendo como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposio simples (por exemplo: "Est claro, dia"). Os esticos distinguem cinco tipos de juzos compostos que renem os enunciados simples. O juzo hipottico exprime relao entre antecedente e

conseqente ("Se h fumaa, h fogo"). O juzo conjuntivo simplesmente justape fatos (" dia, est claro"). O juzo disjuntivo separa os enunciados, de modo que s um deles pode ser verdadeiro ("Ou dia, ou noite"). Finalmente, o quinto tipo de juzo expressa a idia de mais e menos ("Fica menos claro quando mais noite").

A medicina da almaNo foi a lgica dos esticos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo fsico, que sobretudo atraiu o interesse dos esticos romanos. Foi antes sua moral da resignao, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver. O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idias esticas que se encontram no ecletismo de Ccero, foi Lucius Annaeus Sneca, nascido em Crdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era crist. Era filho de Annaeus Sneca (55 a.C-39 d.C.) conhecido como Sneca, o Velho , que teve renome como retrico e do qual restou uma obra escrita (Declamaes). O futuro filsofo Sneca foi educado em Roma, onde estudou a retrica ligada filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor. O triunfo poltico, no entanto, no se fazia sem conflitos e o renome de Sneca suscitou a inveja do imperador Calgula, que pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Sneca, contudo, foi salvo por sua frgil sade; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O prprio Calgula que faleceria logo depois e Sneca pde continuar vivendo em relativa tranqilidade. No duraria esse perodo muito tempo. Em 41 d.C. foi desterrado para a Crsega, sob acusao de adultrio, supostamente praticado com Jlia Livila, sobrinha do novo imperador Cludio Csar Germnico. Na Crsega, Sneca passaria quase dez anos em grande privao material. Em 49 d.C, Messalina, primeira esposa do imperador Cludio e responsvel pelo exlio de Sneca, caiu em desgraa e foi condenada morte. O imperador Cludio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sneca para educar seu filho

Nero. Em 54 d.C, quando Nero se torna imperador, Sneca passa a ser seu principal conselheiro. Esse perodo estende-se at 62 d.C, ano em que sua estrela comea a perder o brilho junto ao desptico soberano. Sneca deixa a vida pblica e sofre a perseguio de Nero, que acaba por conden-lo ao suicdio, em 65 d.C. As Cartas Morais de Sneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Luclio, misturam elementos epicuristas com idias esticas e contm observaes pessoais, reflexes sobre a literatura e crtica satrica dos vcios comuns na poca. Entre seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemncia, cautelosa advertncia a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, anlise das frivolidades nas sociedades corruptas, e Sobre a Tranqilidade da Alma, que tem como assunto o problema da participao na vida pblica. As Questes Naturais expem a fsica estica enquanto vinculada aos problemas ticos. Alm dessas obras propriamente filosficas, Sneca escreveu ainda nove tragdias e uma obra-prima da stira latina, Apokolokintosis, que ridiculariza Cludio e suas pretenses divindade. Todas essas obras revelam que Sneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia para ele uma arte da ao humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exerccio da virtude. O centro da reflexo filosfica deve ser, portanto, a tica; e a fsica e a lgica devem ser consideradas como seus preldios. Sua concepo do mundo repete as idias dos esticos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razo universal dos gregos Cleanto e Zeno transforma-se em Sneca num deus pessoal, que sabedoria, previso e vigilncia, sempre em ao para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.

O imperador filsofoCronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano foi Epicteto (c.50-130), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discpulo Ariano de Nicomia, em oito

livros. Chegaram at a atualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos dos restantes. Grande admirador de Epicteto foi o imperador Marco Aurlio Antonino, que, nas pausas tranqilas de seu conturbado governo, se dedicou reflexo filosfica e com isso tornou-se o terceiro e ltimo grande expoente do estoicismo romano. Marco Aurlio nasceu em 121, no seio de uma famlia aristocrtica, e muito cedo perdeu os pais. Foi ento adotado pelo tio, Aurlio Antonino. O tio tornar-seia imperador e nomearia Marco Aurlio seu sucessor, em 161. Aos onze anos de idade, Marco Aurlio conheceu o estoicismo e adotou hbitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosfica. Depois dos anos de formao passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adotivo, ocupando o cargo de cnsul por trs vezes. Em 161, Aurlio Antonino faleceu e Marco Aurlio tornou-se imperador. O governo de Marco Aurlio que se estendeu por quase vinte anos, at sua morte em 180 foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as conseqentes dificuldades internas. Alm disso, Roma foi vtima de inundaes, tremores de terra e incndios. Marco Aurlio conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exerccio do poder. Nos poucos momentos que os encargos de governo permitiam, recolhia-se meditao filosfica e escrevia seus pensamentos em lngua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietaes intelectuais e morais profundas. As Meditaes (como posteriormente ficaram conhecidos aqueles pensamentos) so simples notas, apenas esboadas. O contedo das Meditaes a filosofia estica, mas de um estoicismo bastante distante das doutrinas de Zeno, Cleanto e Crisipo. As especulaes fsicas e lgicas cedem lugar ao carter prtico dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurlio como tambm nas Mximas de Epicteto a questo central da filosofia o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver

bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupao com o estado de sua prpria alma, em virtude da natureza delicada e sensvel do autor das Meditaes, homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigao cientfica. Por essa razo o estoicismo de Marco Aurlio freqentemente apresenta discrepncias em relao a suas origens gregas. Marco Aurlio no chegou a ser um pensador original e no procurou resolver as inconsistncias de sua prpria posio. Enquanto a ortodoxia estica levava-o na direo de um credo materialista, seu sentimento religioso impelia-o no sentido da fora moral e da benevolncia. Por isso, as Meditaes de Marco Aurlio expressam-se atravs de uma linguagem que, por um lado, parece pressupor a aceitao de um pantesmo puramente fsico; por outro, abandona os dogmas da escola estica para seguir os ditames do corao. Por certo a verdadeira chave para compreenso das oscilaes de Marco Aurlio deve ser procurada menos em suas caractersticas psicolgicas do que nas circunstncias histricas em que viveu. O imprio romano estava perdendo o antigo esplendor e a cultura clssica greco-latina mostrava os ltimos sinais de vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepo do mundo: o cristianismo. Marco Aurlio expressa claramente essa etapa de transio. Nele a autosuficincia do antigo estoicismo grego cede lugar falta de confiana em si mesmo e conscincia das prprias imperfeies. Com isso antecipa a virtude crist da humildade e mais um passo apenas poderia lev-lo concepo de um Deus nico e pessoal.

Cronologia470 a.C. Nasce Scrates. 460 a.C. Nasce Demcrito. 428 a.C. Nascimento de Plato. 399 a.C. Processo e morte de Scrates. 359 a.C. Ascenso de Filipe ao trono da Macednia. 341 a.C. Nasce Epicuro.

338 a.C. Batalha de Queronia: Filipe derrota os gregos. 336 a.C. Morte de Filipe. Ascenso de Alexandre. 334 a.C. Nasce Zeno de Ccio, fundador da escola estica. Aristteles funda o Liceu. 331 a.C. fundada a cidade de Alexandria. 323 a.C. Morre Alexandre. 306 a.C. Epicuro abre sua escola em Atenas. 287 a.C. Nasce Arquimedes. 270 a.C. Morre Epicuro. 148 a.C. Os romanos reduzem a Macednia a provncia. 106 a.C. Nasce Ccero. 98(?) a.C. Nasce Lucrcio. 55(?) a.C. Morre Lucrcio. 51 a.C. No exlio, Ccero redige suas primeiras obras filosficas. 46 a.C. Jlio Csar derrota foras de Pompeu na frica. 45-44 a.C. Ccero redige suas obras mais importantes. 44 a.C. Assassnio de Jlio Csar. 43 a.C. Ccero assassinado. 29-19 a.C. Virglio compe a Eneida. 4(?) a.C. Nasce Sneca. 41 d.C. Sneca banido para a Crsega. 49 d.C. Torna-se preceptor do jovem Nero. 50 d.C-130 d.C. Vida de Epicteto. 54 d.C. Nero torna-se imperador. Sneca feito seu conselheiro. 65 d.C. Nero condena Sneca ao suicdio. 68 d.C. Morte de Nero. 121 d.C. Nasce Marco Aurlio. 161 d.C. Torna-se imperador. 180 d.C. Morte de Marco Aurlio.

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EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOSTraduo e notas de Agostinho da Silva Estudo introdutrio de E. Joyau

EPICURO(por E. Joyau) Epicuro era de Atenas. Sua famlia pertencia ao demo de Gargetos; era nobre, ao que parece, mas reduzida a grande pobreza; segundo certas tradies, remontava a Fileu, neto de Ajax. O pai do nosso filsofo, Nocles, fez parte dos colonos que os atenienses enviaram a Samos em 352 a.C. e entre os quais se realizou uma partilha de terras. Foi a que nasceu Epicuro, no ano terceiro da 109.a Olimpada (341 a.C.) no ms de Gamelion. Certos historiadores, entre outros Digenes Larcio, dizem que nasceu em Gargetos; parece, porm, que se trata de um erro. Mas se veio luz em Samos era incontestavelmente de pais atenienses e no tinham razo nenhuma os seus adversrios quando pretendiam que no era um verdadeiro cidado. Por outro lado, foi completamente por acaso que Epicuro nasceu em Samos, como Pitgoras, e no h razo alguma para que se procurem no seu sistema vestgios de influncia pitagrica. Nocles exercia o mister de mestreescola; sua mulher, Querstrata, adivinhava o futuro; ia s casas dos pobres conjurar o mau-olhado e atalhar as doenas; o filho acompanhava-a e recitava as frmulas propiciatrias. Foi isso, sem dvida, o que lhe deu oportunidade d e conhecer de perto as supersties populares e os males que causa a credulidade dos homens. Manifestou muito cedo a curiosidade do seu esprito. No tinha mais de catorze anos, alguns dizem mesmo doze, quando o professor de gramtica citou diante dele o verso de Hesodo No princpio todas as coisas vieram do caos. "E o caos",

perguntou Epicuro, "donde veio ele?" O professor ficou atnito; disse que no lhe competia resolver a questo e que era necessrio formul-la aos filsofos. Os estudos do moo foram, pois, orientados nessa direo; compreendeu a importncia e o interesse dos estudos filosficos e foi escutar as lies das diferentes escolas. Foi ento que conheceu Nausifanes, discpulo de Demcrito, de quem se devia inspirar em muitos pontos da doutrina. Ouviu um grande nmero de outros mestres sem se ligar a nenhum. Conheceu, pois, as filosofias anteriores, mas no se deu ao trabalho de as estudar, de as discutir a fundo. Seria, segundo nos parece, perder tempo investigar sobre o que ele deve ou sobre o que ele critica de cada uma delas. Os dois grandes sistemas de Plato e de Aristteles teriam exigido, para serem bem conhecidos e compreendidos, um exame longo e paciente; teriam merecido ser discutidos ponto por ponto; Epicuro no se demorou nesse trabalho; talvez no fosse muito capaz de o executar; em todo caso, no sofreu a influncia destas duas doutrinas e no se inspirou nelas. Aos dezoito anos de idade veio pela primeira vez a Atenas, mas no permaneceu na cidade durante muito tempo. Foi ento que travou relaes com Menandro, que era da sua idade. Este ltimo, num epigrama que nos chegou em parte, aproxima Epicuro de Temstocles: o pai de um, exatamente como o do outro, chamava-se Nocles; e, quanto aos dois filhos, "um de vs salvou a ptria da escravido, o outro da irreflexo". Epicuro no pde nesta poca ouvir Aristteles, que j se tinha retirado para Clcis. Exerceu primeiramente, como seu pai, o ofcio de mestre de letras e de gramtica; s mais tarde abriu escola de filosofia, primeiro em Lmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte, por fim em Atenas, em 306 a.C, com a idade de trinta e seis anos. Talvez tivesse vindo a esta cidade um pouco mais cedo e tivesse sido forado a abandon-la bruscamente. Depois da tomada de Atenas por Demtrio Poliorceto, Sfocles, filho de Anticlides, fez votar uma lei pela qual era proibido, sob pena de morte, abrir uma escola sem autorizao do Senado e do povo; todos os filsofos tiveram que abandonar a cidade. A lei foi promulgada logo depois de derrubado

Demtrio de Falero e de ter sido restabelecida a liberdade; da mesma maneira tinha sido Scrates condenado pelo tribunal dos Heliastas depois da expulso dos Trinta Tiranos. curioso notar como era fcil aos demagogos excitar a desconfiana do povo ateniense contra os filsofos. Mas logo no ano seguinte, graas interveno do peripattico Flon, o decreto foi revogado e Sfocles, convencido de ter violado as leis, foi condenado a uma penalidade de 5 talentos. Os filsofos puderam ento reentrar em Atenas e no foram inquietados mais. No temos os elementos necessrios para saber ao certo se Epicuro se contou entre aqueles a quem se imps o xodo; neste como noutros pontos, a nossa curiosidade fica excitada no mais alto grau e no encontra com que se satisfazer. Comprou pelo preo de 80 minas (6 000 ou 7 000 francos) um jardim, isto , uma pequena casa com um jardim, e foi a que estabeleceu a sua escola. Que idia deveremos fazer desses jardins de Epicuro de que nos falam todos os escritores antigos e que lhes pareciam constituir notvel inovao? No era um parque: Ccero emprega muitas vezes, para os designar, o diminutivo hortuli: era uma propriedade para renda mais do que uma propriedade de recreio, porque Epicuro no seu testamento fala dos rendimentos que dela recebia. E provvel que as casas com jardim no fossem raras em Atenas, porque a cidade no era muito povoada e as habitaes no estavam amontoadas umas sobre as outras; mas Epicuro, em lugar de reunir os seus auditores numa sala, num ginsio ou num prtico, dava-lhes lies ao ar livre; no fazia os seus cursos a certas horas, mas passava todo o dia no jardim, falando familiarmente com uns e com outros, de modo que se no via nele um mestre rodeado de discpulos, mas um grupo de amigos que filosofavam juntos. A influncia extraordinria que exerceu sobre os seus discpulos foi devida ao ascendente da sua personalidade mais que s suas doutrinas; como o disse Sneca, Metrodoro, Hermarco, Polieno devem mais a terem freqentado Epicuro do que a seu ensino. com efeito um dos caracteres mais notveis da escola epicurista esta amizade que no cessou de nela reinar, unindo por um lado os professores e os alunos, por outro lado os alunos entre si. Todos os escritores da Antigidade esto

de acordo sobre este ponto; os adversrios mais odientos nunca nos falam de dissenses, de rivalidades que tivessem dividido os epicuristas: "Foi ele prprio um homem bom, e houve muitos epicuristas, e ainda hoje existem, fiis na amizade e em toda a sua vida graves e constantes". 1 Era de natureza terna, como o atestam a0F

sua piedade com os pais, a sua bondade, com os irmos, a sua delicadeza com os escravos e em geral a sua humanidade com todos. Parece, por outro lado, ter sido muito amvel. Metrodoro de Lmpsaco, desde o dia em que conheceu Epicuro, nunca mais o deixou, exceto para uma viagem que fez sua ptria. Na carta a Idomeneu, escrita mesmo no dia da morte, dizia ele: "Em nome da amizade que sempre me testemunhaste, toma conta dos filhos de Metrodoro". Segundo certos comentadores, Epicuro, alm do seu jardim de Atenas, teria ainda possudo uma casa de campo em Melite e t-la-ia legado tambm sua escola. Mas se examinarmos os planos de Atenas e da tica que foram reconstitudos pelos arquelogos, vemos que o nome Melite designa no uma localidade distinta mas um bairro da cidade perto da porta ocidental. Achamos, pois, que Epicuro no tinha duas propriedades, uma dentro, outra fora das muralhas, mas uma s, compreendendo jardim e casa de habitao, situada em Atenas, muito perto da extremidade do subrbio. Apesar das perturbaes que afligiram a Grcia, Epicuro passou em Atenas toda a segunda parte da sua vida, exceto duas ou trs viagens que fez aos confins da Jnia, para visitar amigos. No se meteu em assuntos pblicos, no desempenhou nenhum papel nas sucessivas revolues da sua ptria, no atraiu sobre ele prprio nem sobre os seus amigos o dio de nenhum partido. A sua carreira no foi, portanto, assinalada por nenhum acontecimento importante e os historiadores antigos no nos contam a seu respeito nenhuma anedota interessante. Durante um cerco da cidade, quando os habitantes sofriam cruelmente de fome, alimentou os seus discpulos partilhando com eles as provises de favas que tinha tido a

1

Ccero, De Finibus, II, XXV, 80, 81.

precauo de pr de reserva e dando aos outros exatamente o mesmo que guardava para si prprio. O xito que obteve no foi efmero; prolongou-se sem interrupo durante trinta e seis anos; consolou Epicuro dos cruis ataques de uma terrvel doena, a pedra; suportou-a com uma grande firmeza e morreu em 270 a.C, no segundo ano da 127.a Olimpada, com a idade de setenta e dois anos. Dava desta firmeza sinais bem engenhosos e bem delicados. "Durante as minhas doenas", escreve ele, "no falava a ningum do que sofria no meu miservel corpo; no tinha essa espcie de conversao com aqueles que me vinham visitar: no falava com eles seno daquilo que desempenha na natureza o primeiro papel. Procurava sobretudo fazer-lhes ver que a nossa alma, sem ser insensvel s perturbaes da carne, podia no entanto manter-se isenta de cuidados e no gozo pacfico dos bens que lhe so prprios. Ao chamar os mdicos, no contribua com a minha fraqueza para lhes fazer tomar ares importantes, como se a vida que eles procuravam conservar-me fosse para mim um grande bem. Mesmo nesse tempo vivia eu tranqilo e feliz." A sua constncia no se desmentiu mesmo no momento da morte; eis aqui a sua ltima carta a Idomeneu: "Este dia em que te escrevo o ltimo da minha vida e tambm um dia feliz. Sinto tais dores de bexiga e de entranhas que nem se poderia imaginar dores mais violentas; mas estes sofrimentos so compensados pela alegria que traz minha alma a recordao das nossas conversaes". Nos ltimos tempos da sua vida, no podia nem sequer suportar os vesturios, nem descer da cama, nem consentir luz, nem ver lume. Conta Hermarco que, depois de ter sido atormentado por dores incessantes durante catorze dias, pediu que o metessem numa bacia de bronze cheia de gua quente para dar alguma trgua ao mal; em seguida bebeu um pouco de vinho, exortou os amigos a lembrarem-se dos seus preceitos e nesta conversao terminou a vida. Guyau compara a serenidade da morte de Epicuro de Scrates. Outros historiadores, pelo contrrio, foram at o ponto de dizerem que estas prticas constituam um verdadeiro suicdio. No somos desta opinio: o recurso a uma morte voluntria em tais circunstncias no

teria estado de acordo com os ensinamentos de Epicuro e nada na sua atitude, no decurso dos ltimos tempos, nos autoriza a crer que ele queria ter dado a si prprio um desmentido to formal. Se tivesse tomado tal caminho, ter-se-ia desacreditado aos olhos dos discpulos; a prova de que esta suspeita no penetrou nos seus espritos ou no encontrou a nenhuma aceitao a prpria persistncia da escola e da venerao pela pessoa do mestre. Epicuro tinha trs irmos, que morreram antes dele: Nocles, Caridemo, Aristbulo; Plutarco cita-os como modelo de amizade fraternal. No seu testamento preocupa-se com assegurar a perpetuidade da sua escola: os seus executores testamentrios devero velar por que os jardins fiquem propriedade da seita epicurista; sero, pois, ocupados por Hermarco (Epicuro tinha primeiro designado como sucessor o seu amigo Metrodoro, mas, como este morrera sete anos antes do mestre, este substituiu-o por Hermarco, que tinha adotado todas as suas doutrinas); depois dele, passaro quele que lhe suceder como chefe de escola: alm disso, todos os epicuristas se reuniro l periodicamente para tomar parte em refeies em comum e para celebrar o aniversrio da morte do seu chefe, de maneira a alimentarem a amizade que os une. Esta amizade, como o faz notar Dugas, 2 tem caracteres muito especiais: "Nesta1F

amizade entra o esprito de seita; os amigos devem ter a mesma f filosfica... Pe por condio sua amizade que lhe abracem a doutrina; cumula de benefcios os filhos de Metrodoro e de Polieno, mas exige deles que obedeam ao seu sucessor Hermarco, que vivam e filosofem com ele; quanto filha de Metrodoro, estar tambm submetida a Hermarco; aceitar o marido que ele escolher e esse marido ser epicurista". Esta clusula foi observada durante muito tempo. No entanto, na poca de Ccero os jardins, que estavam ento em muito mau estado, tinham-se tornado propriedade de um romano, C. Memmius. Ccero escreveu-lhe para lhe pedir que os restitusse seita epicurista; no sabemos qual foi o resultado desta diligncia.

2

Dugas, L 'Amiti Antique, 1.I, ch. II, p. 33.

H mais ainda: Epicuro, que durante a sua vida tinha tomado a seu cargo os filhos do seu amigo Metrodoro, recomenda-os aos seus executores testamentrios, a fim de que lhes no falte nada. Finalmente, d a liberdade a quatro dos seus escravos, trs homens e uma mulher. Este testamento faz grande honra a Epicuro, porque est de acordo com toda a sua vida; no podemos ver nele uma pea de efeito destinada a tomar de surpresa a admirao, e a perturbar o juzo da posteridade. Se Epicuro reuniu sua volta um grande nmero de amigos que lhe ficaram fiis, porque de tal foi digno, porque era na verdade um homem excelente e os seus inimigos no puderam recusar-lhe este testemunho: "Quem nega que ele foi um homem bom, agradvel e humano?" 32F

No princpio da edio das Animadversiones in librum Diogenis Laertii, de Gassendi, publicado em Lio, por Guill. Barbier, em 1649, encontramos um retrato de Epicuro segundo um original conservado na coleo du Puy. Usener, no frontispcio do seu volume, reproduziu, segundo uma fotografia, um busto em bronze de Herculanum, publicado tambm por Comparetti e Petra. Em uma destas imagens o filsofo representado de perfil, na outra, de frente. "A cabea", diz Chaignet, " forte; as feies, sobretudo o nariz, acentuadas; os lbios espessos; a expresso calma, benevolente mais que severa, sincera e simples, mas sem esprito, sem graa e sem sorriso; no de admirar que, quando desejava ser amvel e gracejar, os seus cumprimentos, como lho censuravam, trassem o esforo e fossem um pouco pesados." * Epicuro tinha agrupado uma multido de discpulos e depois da sua morte a prosperidade da escola manteve-se at os ltimos dias do paganismo, embora haja sem dvida muito exagero nas frases de Ccero e de Sneca: "Realmente Epicuro, numa s casa e esta mesmo pequena, reuniu, pelo consentimento de uma grande conspirao de amor, um elevadssimo nmero de amigos; e isto o que mesmo

3

Ccero, o. c, 1. c.

agora acontece com os epicuristas". O nmero de epicuristas despertava provavelmente a inveja dos esticos, cujos preceitos austeros no podiam ser postos em prtica seno por um raro escol. Segundo parece, Epicuro abriu a sua escola alguns anos depois de Zeno. Em todo caso, era sensivelmente mais novo do que este ltimo, e morreu muito antes dele, porque no viveu seno setenta e dois anos, ao passo que Zeno atingiu a idade de oitenta e oito anos. No entanto, o epicurismo no foi uma reao contra a severidade dos esticos e nenhum dos dois sistemas exerceu qualquer influncia sobre a constituio do outro; provvel que mais tarde no tenha acontecido o mesmo, a luta entre as duas escolas rivais tornou-se cada vez mais spera e mais encarniada, muitos homens, no se sentindo com foras de aderir ao estoicismo, lanaram-se na doutrina oposta; mas no a um sentimento desta natureza que se deve atribuir o aparecimento do epicurismo. O que nos impressiona primeiro a docilidade com que os discpulos aceitaram as doutrinas do mestre e as conservaram sem alterao. O epicurismo no tem histria: est todo ele nos ensinamentos de Epicuro e o tempo no lhes trouxe nenhuma modificao; nenhum dos epicuristas foi um filsofo original, nenhum procurou ganhar qualquer nomeada. No entanto, parece-nos justo mencionar alguns dos discpulos imediatos de Epicuro. Metrodoro de Lmpsaco, a quem Ccero chama "quase um outro Epicuro" e a quem o prprio mestre tinha conferido o ttulo de Sbio. So algumas vezes apresentados como sendo dele os fragmentos de um tratado Acerca das Sensaes publicados no tomo sexto dos papiros de Herculano, mas a atribuio duvidosa. Metrodoro morreu sete anos antes de Epicuro, que no deixou de lhe cuidar dos filhos. Existe no Louvre um busto de Epicuro com duplo rosto, representando de um lado o mestre, do outro o discpulo inseparvel. Polieno, que morreu tambm antes do seu mestre, era um distinto matemtico. Hermarco de Mitilene muitas vezes designado pelo nome de Hermarco; mas, segundo Zeller, no devem subsistir dvidas sobre o seu nome

verdadeiro; foi a ele que coube a direo da escola depois da morte do fundador. Ao mesmo grupo pertencia ainda Colotes, contra quem Plutarco devia escrever um livro quatrocentos anos mais tarde. A admirao pelo gnio do mestre que Lucrcio exprime em tantos passos, a adeso sem reservas sua doutrina, so sentimentos comuns a toda a escola. Ficavam encantados pelos ensinamentos de Epicuro como se fosse pelo canto das sereias; recebiam como verdades incontestveis os princpios formulados pelo mestre; a convico que tinham era profunda, o dogmatismo intransigente; aprendiam de cor as frmulas do sistema e tinham um grande cuidado em no deixar perder nada daquilo que o mestre tinha dito ou escrito; tocar num s ponto da doutrina era a seus olhos um verdadeiro sacrilgio. "Epicuro", diz Crousl, "foi o fundador e o deus de uma espcie de religio nova... os discpulos de Epicuro formavam na realidade uma pequena igreja." Esta docilidade muito nova entre os gregos, cujo esprito era audacioso e independente. "A apario e o xito do epicurismo atestam", segundo Croiset, "um enfraquecimento notvel do pensamento especulativo da Grcia." A extrema docilidade dos epicuristas deu motivo a uma singular acusao: censuraram-nos de terem considerado Epicuro como um deus e de o terem adorado. Sem dvida praticavam-se nessa pequena sociedade certos ritos, realizavam-se reunies para festas, para repastos em comum, celebravam-se aniversrios, rodeava-se de um verdadeiro culto a memria do mestre, elevavam-se esttuas, os discpulos entusiastas traziam sempre sobre eles a sua imagem, ou ento um anel, como os escravos forros; diziam que era bem digno do seu nome de "auxiliador" (epi-kourios). Alguns evidentemente no souberam parar a tempo em tal caminho; nos espritos medocres a superstio depressa se vinga da abolio das crenas religiosas. Assim Nocles, irmo de Epicuro, escreveu, segundo se diz, que a me tinha sido bem feliz por ter juntado no seu seio os tomos que tinham formado um tal sbio. Quanto aos versos de Lucrcio, que iguala Epicuro aos deuses e o pe acima de Hrcules ou de Ceres, no podemos ver nisso outra coisa

que no seja um brilhante desenvolvimento potico; o que o resto do poema nos faz conhecer do carter e dos sentimentos do autor no nos permite ter dvidas sobre o sentido destas expresses. Mas, segundo se afirma, um dia Colotes lanou-se aos ps do mestre e adorou-o; Epicuro teve o maior cuidado em no o desenganar. Responderemos primeiro que esta anedota, embora seja contada por Digenes Larcio, no talvez muito autntica; pode ser que tenha sido completamente inventada ou que ao menos o aspecto lhe tenha sido singularmente alterado pelos seus adversrios. Em todo caso. nica e necessrio que no tiremos dela concluses exageradas. Que Colotes. que era do nmero dos pequenos espritos de que falvamos h pouco, se tivesse deixado levar por um entusiasmo irrefletido, que o prprio Epicuro tenha ficado um momento embriagado pelo prestgio que lhe reconheciam os seus amigos eis a alguma coisa de muito humano e esta fraqueza passageira no nos parece manchar seriamente o valor do sistema. Tem havido grande indignao pelo fato de a escola estar aberta s mulheres e por vrias terem nela desempenhado um papel importante. Parece desconhecer-se a liberdade de que gozavam as mulheres na sociedade ateniense e o gosto que manifestaram algumas pela cultura intelectual; parece esquecer-se sobretudo que Scrates tinha prazer em conversar com mulheres, mesmo com cortess, e especialmente com Aspsia. Havia um grande nmero de mulheres nas escolas de Pitgoras e de Plato. Os costumes dos epicuristas no parecem ter sido diferentes dos dos seus compatriotas e dos seus contemporneos; seria muitssimo injusto acus-los de um crime de prticas que a nossa moral condena, mas que no tinham sido eles a introduzir na Grcia. Nada mais falso do que o quadro delineado por vrios escritores que representam o jardim de Epicuro como uma espcie de local mal freqentado, como o teatro de encontros obscenos. Comparam-nos s cavalarias de Augias, a um chiqueiro de porcos; do pormenores precisos que fazem honra sua imaginao, mas no ao seu sentido crtico.

Acusam-se ainda os epicuristas de se terem entregue aos prazeres da mesa, de terem sido familiares com todos os excessos do comer e do beber. fcil dizlo, mas difcil apresentar uma prova. Diz-se que gostavam de se reunir para refeies em comum; mas qual era o cardpio destas refeies? Eram festins, banquetes, cujo calor comunicativo provoca toda espcie de desvarios de linguagem e de comportamento? No eram, antes, reunies cujo principal encanto residia no prazer de se tornar a encontrar, de estarem juntos pela comunidade das idias e dos sentimentos? Da sobriedade do prprio Epicuro temos ns provas irrecusveis: gastava pouqussimo na sua alimentao diria: "Hermarco", escreveu ele, "gaba-se de gastar s um asse por dia na sua alimentao; mas eu nem mesmo um asse gasto". Contentava-se muito bem com po e gua; pede a um dos seus amigos que lhe envie um queijo para os dias em que se quiser ofertar um mimo especial. No pelo atrativo da boa comida que ele pretendia atrair os seus discpulos; era nestes termos que ele resumia o programa da sua escola: "Estrangeiro, aqui te encontrars bem: aqui reside o prazer, o bem supremo. Encontrars nesta casa um mestre hospitaleiro, humano e gracioso, que te receber com po branco e te servir abundantemente gua clara, dizendo-te: No foste bem tratado? Estes jardins no foram feitos para irritar a fome, mas para a apaziguar, no foram feitos para aumentar a sede com a prpria bebida, mas para a curar por um remdio natural e que nada custa. Eis aqui a espcie de prazer em que eu tenho vivido e em que envelheci". certo que se no poderia dizer o mesmo de todos os epicuristas; houve muitos cujas desordens explicam e justificam a m reputao da escola. Mas, como Sneca nota muito judiciosa-mente, no foi por uma fiel aplicao dos princpios de Epicuro que eles se abandonaram s suas paixes; procuram, pelo contrrio, colorir as suas paixes com o nome de epicurismo que eles usurparam. Seria injusto tornar o mestre responsvel pelo procedimento destes pretensos discpulos, tanto mais que os adversrios do epicurismo abusaram estranhamente desta palavra: afetaram confundir com os epicuristas personagens cujo procedimento e cujo carter nada

tinham de filosfico, revestindo com o nome homens que no cuidavam de nenhum sistema nem de nenhuma doutrina. No nos venham, portanto, falar mais dos porcos do rebanho de Epicuro: estes porcos, porque muitos no mereciam outro nome, no eram epicuristas. Para bem se compreender o carter do epicurismo, para lhe explicar o xito maravilhoso e duradouro, preciso considerar as circunstncias em que foi concebido e ensinado. Era alguns anos depois das prodigiosas conquistas e da morte sbita de Alexandre, enquanto os generais disputavam entre si e partilhavam a sua herana. As repblicas gregas tinham perecido uma aps outra; j no havia em parte nenhuma nem liberdade nem vida poltica. A antiga religio j no tinha crentes e no podia satisfazer aos espritos. Tambm tinha passado o tempo das grandes construes especulativas. Plato tinha morrido em 347 a.C, sete anos antes do nascimento de Epicuro, Aristteles em 322 a.C; nenhum metafsico original lhes tinha sucedido. O pensamento grego manifestava numerosos sinais de lassido. Os filsofos que continuavam a ensinar na Academia e no Liceu no tinham iniciativa e cada vez amesquinhavam mais as doutrinas de seus mestres. J no havia interesse seno pelas questes que diretamente dizem respeito vida prtica; e, como h duas espcies de esprito, duas maneiras de encarar a natureza do homem e as suas relaes com o conjunto das coisas, surgiram dois sistemas opostos que foram acolhidos com entusiasmo por um grande nmero de adeptos, o epicurismo e o estoicismo: a origem e o desenvolvimento destes dois sistemas so exatamente contemporneos e paralelos. Ainda mais: o epicurismo e o estoicismo so de todos os tempos; as duas doutrinas contam ainda nos tempos modernos um grande nmero de partidrios. A. Croiset, na sua Histria da Literatura Grega, diz que o princpio da moral epicurista era fundamentalmente perigoso e que fez ao mundo antigo muito mal. Pensamos, pelo contrrio, que a voga do epicurismo e, no hesitamos em diz-lo, a transformao que ele sofreu so o efeito e no a causa da decadncia dos costumes. Eis o que sobre o assunto escreveu Curtius: "Todos os nobres

sentimentos que tinham florescido na Grcia tinham a sua razo de ser na idia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que j no tinha ptria e que a prpria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multido se ps a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia". Droysen traa um quadro mais sombrio ainda do estado da Grcia no comeo do sculo IV: "As massas empobrecidas, imorais; uma juventude asselvajada pelo mister de mercenrios, estragada pelas cortess, desequilibrada pelas filosofias em moda; uma dissoluo universal, uma ruidosa agitao, uma febril exaltao a que sucedem a distenso e uma estpida inrcia, tal o quadro deplorvel da vida grega nessa altura... (Em especial em Atenas) estas duas coisas, a leviandade mais frvola e de maior abandono, e a cultura delicada, amvel e espirituosa que se designou depois com o nome de aticismo, so os traos caractersticos da vida de Atenas durante o domnio de Demtrio de Falero. uma questo de bom-tom visitar as escolas dos filsofos; o homem da moda Teofrasto, o mais hbil dos discpulos de Aristteles, que sabe tornar popular a doutrina de seu ilustre mestre, rene mil ou dois mil alunos sua volta e que mais admirado e mais feliz do que nunca o foi seu mestre. No entanto, este Teofrasto e uma quantidade de outros professores de filosofia eram eclipsados por Stilpon de Megara. Quando Stilpon vinha a Atenas, os artfices deixavam as suas oficinas para v-lo e todos os que podiam acorriam para o ouvir; as heteras afluam s suas lies para o ver e para serem vistas em sua casa, para exercerem na sua escola o vivo esprito que fazia o seu encanto na mesma medida dos vesturios sedutores e da arte de reservar os seus ltimos favores. Estas cortess gozavam da companhia habitual dos artistas da cidade, pintores e escultores, msicos e poetas; os dois autores cmicos mais clebres do tempo, Filmon e Menandro, louvavam publicamente nas suas comdias os encantos de Glicera e disputavam-se publicamente os seus favores, prontos a esquec-la por outras cortess no dia em

que ela encontrava amigos mais ricos do que eles. Da vida de famlia, da castidade, do pudor j se no fala em Atenas; talvez se mencionem; toda a vida se passa em frases e em ditos graciosos, em ostentao e em agitada atividade. Atenas lana aos ps dos poderosos a homenagem dos seus louvores e do seu esprito e aceita como recompensa os seus dons e as suas liberalidades... Apenas se temia o tdio ou o ridculo e tinham-se os dois at saciedade. A religio tinha desaparecido e o indiferentismo do livre-pensamento no tinha feito seno desenvolver ainda mais a superstio, o gosto da magia, das evocaes e da astrologia; o fundo srio e moral da vida, expulso dos hbitos, dos costumes e das leis, pelo raciocnio, era estudado teoricamente nas escolas dos filsofos e tornava-se objeto de discusses e de querelas literrias". 4 "O epicurismo", diz por seu lado Denis. "no corrompeu nada3F

e no matou nada na Grcia porque j no havia mais nada para corromper e para matar." 54F

O mrito de Epicuro est em ter compreendido que havia alguma coisa que reclamava um grande nmero de espritos e em ter-lhes dado satisfao de uma forma admirvel. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser felizes; a felicidade o ltimo termo das suas aspiraes; mas, como so inteligentes, no podem recusar o terem em conta as exigncias do seu esprito; no poderiam ser completamente felizes se no dessem uma razo plausvel da sua regra de procedimento; sentem a necessidade de conceber uma explicao do espetculo que apresentam os seres e os fenmenos do mundo, mas no apresentam muitas dificuldades, no so muito exigentes em matria de explicao; contentam-se de boa vontade com a primeira teoria que lhes propem, que julgam compreender e que aceitam com confiana; no se do ao trabalho de a complicar, de a aprofundar; se as suas doutrinas apresentam algumas contradies, no do por isso ou no se inquietam com a sua resoluo. O epicurismo trazia-lhes precisamente aquilo que eles pediam: " aberta e simples e direta via", diz Ccero.65F

Na luta contra o estoicismo, os epicuristas conservaram uma atitude mais defensiva4 5 6

Droysen, Histoire de l'Hellnisme. Trad. Bouch -Leclerc, t. II, I. III, ch. III. J. Denis, Histoire des Ides Morales dans s 'Antiquit, l'Antiquit, I, p. 298. Ccero, De Finibus, I, XVIII, 57.

que ofensiva; respondiam s acusaes dos seus adversrios, mas de modo algum empreendiam a crtica dos dogmas sobre os quais estes fundavam o seu sistema. Tais homens, considerando a imensidade do universo e o pequeno lugar que ns temos dentro dele, a impossibilidade em que ns estamos de triunfar sobre as foras e as leis da natureza, no empreendem a luta; facilmente se acomodam com a nossa fraqueza, procuram adaptar-se o melhor possvel s condies que nos foram determinadas e fazem o possvel por passar agradavelmente o pouco tempo que ns temos para viver. Alguns dentre eles so homens de um esprito muito fino e muito delicado; o que lhes falta a energia da vontade. Muitas vezes se lhes tm acusado de covardia: proferir uma palavra bastante violenta que no parece justificada. O epicurista no um covarde: primeiro, trabalha por se libertar dos temores que tornam to infelizes a maior parte dos homens; depois, se acontece ser atingido por algum infortnio, procura consolar-se sem fazer esforos sobrehumanos e sem se enganar a si prprio com frases ambiciosas. Compreende-se, pois, a averso que inspira tal sistema queles cujo carter feito sobretudo de altivez e coragem, que tm uma idia mais alta da dignidade do homem, que no se propem outro objetivo seno o de ser fortes, e queles tambm que, convencidos de que o nico objeto digno de ns o conhecimento da verdade, pem as investigaes cientficas acima da busca da felicidade. Epicuro um dos escritores mais fecundos da Antigidade: tinha composto mais de trezentos tratados e estas obras eram realmente dele, no as aumentava por meio de citaes tiradas aos seus antecessores. Tambm Crisipo escreveu muito, porque no queria parecer inferior em nada aos seus adversrios; mas seus livros eram antes rplicas, polmicas, do que exposies sistemticas; alm disso, a sua abundncia era mais aparente que real, porque muitas pginas estavam cheias de citaes tomadas aqui ou alm. Digenes Larcio transmitiu-nos os ttulos dum certo nmero de obras de Epicuro: um Tratado da Natureza, em trinta e sete livros, sobre os tomos e o vcuo, resumo do que se escreveu contra os fsicos; objees dos megarenses; dos deuses,

da santidade, dos fins, das maneiras de viver (quatro livros), da justia e das outras virtudes, dos dons do reconhecimento, da msica; depois, livros intitulados Queredemo, Hegesianax, Nocles, Eurloco, Aristbulo, Timcrates (trs livros), Metrodoro (cinco livros), Andidoro (dois livros), Anaxmenes: impossvel arriscar a menor conjetura sobre qual fosse o objeto de cada uma destas obras. Alm disso, o mesmo historiador reproduz textualmente, como j o dissemos, uma carta a Herdoto, uma a Ptocles, uma a Meneceu, uma coletnea de mximas principais e o testamento do filsofo. Mas, ao passo que os epicuristas estudavam religiosamente todos os escritos do seu mestre e no liam outros, todos os outros filsofos professavam o mais profundo desdm pelos livros de Epicuro e de seus discpulos. Os admiradores fanticos de Epicuro dizem que ele arruinou a sade fora de trabalhar; provavelmente um erro; mas no menos falsa a lenda segundo a qual as suas doenas tiveram por causa a sua devassido e o seu amor imoderado pelos prazeres da mesa. Epicuro no deve ser contado entre os bons autores: desprezava a glria literria e no se dava ao cuidado de apurar o seu estilo: "No me dou ao trabalho de escrever", dizia ele; "no havia necessidade nenhuma de ter educao literria aquele que pretendia ser filsofo". 7 Improvisava e no fazia correes. Fazia pouco6F

caso das artes, o que se lhe censurou muitas vezes e o que nos pode admirar da parte de um grego. No esqueamos que, se Epicuro ensinava em Atenas, no tinha nascido na cidade e no tinha passado nela a sua mocidade; a sua primeira educao tinha sido muito sumria; talvez por isso que o seu estilo e o seu gosto deixavam a desejar. Acusam-no de escrever mal, de empregar termos baixos, locues incorretas; outras vezes censuram-no por ter introduzido vrios neologismos: esta uma crtica que se no pensaria em dirigir hoje a um filsofo ou a um sbio. A maior parte dos antigos est de acordo em reconhecer-lhe o mrito da clareza; Ccero contesta-lho muitas vezes, mas no sempre: "Exprime nas suas palavras o que deseja e diz claramente o que hei de entender". 8 Parece, com efeito, que, dado7F

7 8

Ccero, De Finibus, II, IV, 12. Ccero, op.cit.,I,V, 15.

o carter que procurou imprimir ao seu sistema e espcie de discpulos a que faz apelo, o que ele pretende, acima de tudo, a clareza. "Tem nervo e energia", diz Croiset, "mas, de nenhum modo, emoo ou imaginao." As suas graas so raras e pesadas, e nada h nele que lembre a ironia socrtica. Que h na aparncia de mais claro e de mais simples do que o epicurismo? Ao se refletir melhor apresentam-se muitas dificuldades e formulam-se perguntas s quais o mestre no d seno uma resposta evasiva: as explicaes parecem-nos muitas vezes insuficientes, mas ele no se detm por to pouco. Certos autores, entre outros Plutarco, censuram-no por se no ter dado ao trabalho de estudar e de refutar as teorias dos seus antecessores, sobretudo de Plato e de Aristteles; uma crtica qual no teria sido sensvel, porque no fazia caso da erudio e declarava intil a investigao curiosa da histria. No tinha estudado as matemticas que so, segundo Plato, o vestbulo da filosofia. Alguns comentadores, interpretando certos textos de Ccero, pensam que Epicuro tinha um ensino exotrico e um ensino esotrico. Clemente de Alexandria diz que os epicuristas tinham doutrinas secretas que no revelavam ao vulgo e tomavam o maior cuidado em no escrever; no nos parece que isto seja verossmil. Epicuro no um filsofo original: nenhuma das suas teorias deixou de ser bem antes dele ensinada por algum outro; e, no entanto, se no imaginou uma teoria prpria sobre os princpios das coisas, no nos apressemos a concluir que o seu gnio no era bastante poderoso para que o fizesse; no dava, conforme dissemos, grande importncia ao estudo das cincias naturais e no lhes reconhecia valor seno na medida em que elas trazem moral um auxlio necessrio. Ocupouse, pois, longamente das questes de fsica; o seu tratado Da Natureza no tinha menos de trinta e sete livros. Todos os historiadores esto de acordo sobre um ponto, o de que ele no fez progredir nem a cincia nem a filosofia; mas tambm no manifestou nunca tais ambies. Gabava-se, segundo se diz, de no dever nada a ningum, de ser o nico autor do seu sistema e no se cansava de troar, mais ou menos espirituosamente, de todos os filsofos anteriores: no h nisto uma

contradio que no precisamente em seu abono? Dizia que Nausfanes no era mais do que um pulmo, sem dvida por causa da fora e da beleza da voz; Plato, um homem de ouro, amigo do fausto; Aristteles, um devasso, que tinha devorado todo o seu patrimnio; Protgoras, um moo de fretes; Herclito, um trapalho; os Cnicos, os inimigos da Grcia; os Dialetas, uns corruptores; Pirro, um ignorante e um homem mal educado; Demcrito, um mestre de primeiras letras. Em primeiro lugar, seria necessrio saber o que se no pode conseguir a que se reduzem ao certo estas graas de que tanto se fala. Deveremos ver nelas afirmaes que lhe eram habituais ou ditos lanados no decurso de uma conversao familiar e que foram repetidos por auditores divertidos, depois habilmente explorados pela malignidade dos seus adversrios? Tomemos cuidado, no sejamos induzidos em erro pelo aoristo de hbito: pode apresentar-nos como uma linguagem habitual de Epicuro o que na realidade no disse seno uma vez; e ainda nos seria necessrio saber em que circunstncias. Com efeito, numerosos testemunhos nos atestam que Epicuro fazia um grande elogio de Demcrito e declarava que muitas vezes se tinha inspirado nele; quanto a Nausfanes, tinha talvez razes pessoais para lhe querer mal. muito verossmil que perdesse a pacincia ante os mesquinhos ataques de seus adversrios, que se no cansavam de lhe repetir o nome dos antigos filsofos, pretendendo que os tinha pilhado sem misericrdia e que, passando da defensiva ofensiva, troasse deles para separar a sua causa da dos outros. provvel que os discpulos tenham exagerado esta tendncia do mestre e que se tenham divertido com pilhrias ainda mais irreverentes contra homens pelos quais a maior parte dos seus contemporneos professava um profundo respeito; mas trata-se de uma falta de gosto de que no devemos acusar o prprio Epicuro. Pode-se tambm tomar num sentido favorvel a frase de que nada tinha aprendido com mestre algum: dizia e acreditava provavelmente que, se sustentava tal ou tal teoria, no era porque Demcrito ou Aristipo lha tinham ensinado, mas porque ele prprio a tinha reconhecido como verdadeira; mas nisto se iludia, porque no teria encontrado

todas estas idias se outros antes dele as no tivessem tido e lhe no tivessem indicado o caminho. Quando sustentamos que Epicuro foi um grande homem, no deixamos de reconhecer que foi um homem e que, embriagado pelo xito da sua doutrina, pelos aplausos dos seus alvios, fez do seu mrito uma idia demasiado alta, assim como do seu papel e do valor do seu sistema. Longe de ns o pensamento de pr de lado todos os ditos que lhe atribuem; traem uma vaidade excessiva e sobretudo deslocada; mas parece-nos que esta vaidade , se no desculpvel, pelo menos explicvel. Na sua admirao exclusiva por Epicuro, Lucrcio exagera ainda esta reivindicao de originalidade e desconhece todos os antigos filsofos. esta uma censura que teremos de fazer vrias vezes a Epicuro: no se deteve a tempo; talvez julgasse que exagerando-o dava mais fora ao seu pensamento. Condenou, assim, em termos formais o estudo de todas as cincias e foi a instncias suas que um dos seus amigos, Polieno, renunciou a cultivar as matemticas. Na verdade, no fazia mais do que retomar a opinio de Scrates; ensinava este que os homens fazem mal em perder tempo com buscas s determinadas pela curiosidade sobre assuntos que lhes importam pouco ou mesmo nada, quando deveriam concentrar todos os seus cuidados sobre as coisas que dizem respeito sua felicidade. "Os filsofos ps-aristotlicos". diz Brandis, "fizeram como Scrates: tornaram a trazer a filosofia do cu terra." impossvel ir mais longe sem se contradizer abertamente; no se poderia formular uma teoria moral seno apoiando-se numa filosofia e, por seu turno, a filosofia no sabe seno o que a cincia lhe ensinou. Epicuro reconhece-o, visto que se deu ao trabalho de edificar um sistema completo; v como exigente a curiosidade do esprito, mas imagina que se pode contentar com uma satisfao qualquer e no acredita que a fraqueza da sua fsica possa comprometer a solidez da sua moral. Pensa mesmo que a investigao profunda das dificuldades cientficas pode prejudicar a retido natural do esprito e que os que mostram mais bom senso so aqueles que menos se

importam com cincia. O tom de Epicuro sempre muito afirmativo; tem horror do ceticismo. Esta teoria, diz ele, contraditria: como que um homem pode saber que no sabe nada? O que ele principalmente censura no ceticismo o no poder fundamentar uma regra de procedimento, porque sempre procedemos segundo aquilo que acreditamos; a tica deve, portanto, ter por base um conjunto de convices bem firmes. Os seus discpulos so ainda mais dogmticos do que ele; Lucrcio considera este sistema como a expresso da verdade absoluta. Aristteles tinha proclamado a independncia e a legitimidade dos estudos especulativos; tinha posto a necessidade de saber num lugar principal entre os apetites naturais do homem, e tinha sustentado que o esforo que despendemos em content-lo o mais nobre emprego que podemos dar nossa atividade, que as cincias devem ser mais estimadas quanto mais inteis so, e, por fim, que as virtudes tericas so mais perfeitas do que as virtudes prticas. A doutrina de Epicuro muito menos ambiciosa; a vida prtica deve ser no somente a nossa principal mas tambm a nossa nica preocupao. A filosofia no uma cincia, uma regra de procedimento: "Epicuro dizia que a filosofia era uma atividade destinada a estabelecer, por meio de raciocnios e de discusses, uma vida feliz". 9 Devemos filosofar no em palavras mas em atos; a filosofia no deve ser8F

uma cincia de que se ande fazendo gala. Epicuro escrevia a Ptocles: "Meu caro, foge a todo pano da cincia". Proscrevia tambm rigorosamente e pelos mesmos motivos a cultura das artes. Eis o que ele dizia no somente da geometria, da aritmtica e da astronomia, mas tambm da msica e da poesia: "De falsas bases nada pode vir que seja verdadeiro e, se alguma coisa houvesse de verdadeiro, nada poderia trazer para vivermos com mais prazer, isto , melhor... Nos poetas no h nenhuma slida utilidade e todo o seu deleite pueril". 10 Professava tambm um9F

profundo desprezo pela investigao curiosa da histria: visto que o passado passado, por que motivo nos temos ns de inquietar com ele?

9

10

Sexto Emprico, Adv. Math. (Ethicos).Xl, 169 Ccero, op. cit., I, XXI.

No estudaremos, portanto, os fenmenos fsicos seno porque nos impossvel no darmos por eles, no lhes procurar explicao, e somente na medida em que deles pudermos tirar qualquer indicao til para o nosso procedimento. Epicuro sentiu, e isto nos mostra que era um esprito verdadeiramente filosfico, a sede de unidade que atormenta a inteligncia humana, a necessidade de pr de acordo as nossas crenas tericas e os nossos princpios prticos, de alicerar as regras da nossa moral sobre uma concepo da nossa natureza e do universo em que estamos colocados. Todo o sistema no na realidade seno moral, teoria da felicidade; ora, no h felicidade possvel para o homem enquanto est atormentado pelo medo da morte e pelo temor dos deuses; preciso, portanto, libert-lo desse medo, fazendo-lhe conhecer as leis e os princpios da natureza; por fim, para fazer compreender a solidez das explicaes que lhe fornecem e para o garantir contra as sedues do erro, preciso determinar os meios que temos de conhecer a verdade e de a discernir do que falso. A cannica e a fsica so necessrias; mas, ainda mais uma vez, no as devemos estudar seno pelos servios que prestam moral, e no devemos de modo algum inquietar-nos com os problemas que no tm relaes com a vida prtica. O que faz o valor da cannica que ela fundamenta em ns a certeza; ora, a certeza um dos contrafortes da felicidade, visto que s ela d a segurana e a ataraxia. A cannica, na realidade, no mais do que uma parte da fsica. A fsica liberta o homem dos preconceitos e dos terrores que o impedem de ser feliz; a moral ensina-lhe de forma positiva os meios de chegar felicidade. Epicuro determinava assim o objeto das trs partes da cincia: a cannica estuda "o juzo, os fundamentos e os elementos da lgica"; a fsica, "a gnese, a destruio e a natureza"; a moral, "o que se tem de adotar e o que se tem de evitar, a maneira de viver e os fins do homem". No atribui s outras partes da filosofia seno uma importncia secundria; no temos, pois, que nos admirar se as suas teorias nos parecem fracas e facilmente criticveis. Limita-se a afirmar que no discute; acha que no va