05 epicuro lucrécio cícero sêneca e marco aurélio coleção os pensadores 1985

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  • Epicuro Lucrcio Ccero Sneca

    Marco Aurlio

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  • CONTRA-CAPA Neste volume

    EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS (sc. IV/lII a.C.) Pensamentos sobre a filosofia, a teoria do conhecimento, a fsica e a tica de um dos maiores filsofos da Antigidade. LUCRCIO DA NATUREZA (sc. I a.C.) Num longo e belo poema, Lucrcio expe a doutrina atomista criada por Leucipo e Demcrito e desenvolvida por Epicuro. CCERO DA REPBLICA (51 a.C.) As vrias formas de governo so analisadas luz do ecletismo filosfico de um dos maiores nomes do pensamento romano. SNECA CONSOLAO A MINHA ME HLVIA (sc. I a.C.) DA TRANQILIDADE DA ALMA (sc. I a.C.) MEDIA (sc. l a.C.) APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLAUDIO (sc. I a.C.) Obras representativas de um dos mais importantes filsofos esticos da Roma Antiga, no tempo de Calgula e Nero. MARCO AURLIO MEDITAES (sc. II) Reflexes morais do imperador-filsofo, adepto do estoicismo. Seleo de textos: Jos Amrico Motta Pessanha Tradues e notas: Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide

    Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios: E. Joyau (Epicuro) e C. Ribbeck (Lucrcio) Consultor da Introduo Geral: Jos Amrico Motta Pessanha

  • ORELHAS

    Os Pensadores Epicuro Lucrcio Ccero Sneca

    Marco Aurlio

    "Nunca se protele o filosofar quando se jovem, nem canse o faz-lo quando se velho, pois que ningum jamais

    pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a sade da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda no chegou

    ou j passou assemelha-se ao que diz que ainda no chegou ou j passou a hora de ser feliz." EPICURO: A Filosofia e o seu

    Objetivo " indubitvel que a matria no forma um todo compacto, visto vermos que tudo se gasta e por assim dizer se

    desfaz ao longo dos tempos e se oculta na velhice aos nossos olhos; o conjunto, no entanto, parece permanecer intato, pois o

    que se retira de qualquer corpo, e por a o diminui, vai aumentar aquele a que se junta: obrigam uns a envelhecer, outros a

    prosperar; e no param nesse ponto. Assim continuamente se renova o Universo e vivem os mortais de trocas mtuas.

    Aumentam umas espcies, diminuem outras, e em breve espao se substituem as geraes de seres vivos e, como os

    corredores, passam uns aos outros o facho da vida." LUCRCIO: Da Natureza "No procedas como se houvesses de durar dez milnios; o fim inevitvel pende sobre ti; enquanto vives, enquanto

    podes, torna-te um bom."

    MARCO AURLIO: Meditaes

    FAZEM PARTE DESTA SRIE:

    VOLTAIRE MARX ARISTTELES SARTRE ROUSSEAU NIETZSCHE KEYNES ADORNO SAUSSURE - PR-

    SOCRTICOS GALILEU PIAGET KANT BACHELARD - DURKHEIM LOCKE PLATO DESCARTES - MERLEAU-PONTY

    WITTGENSTEIN HEIDEGGER BERGSON - STO TOMS DE AQUINO HOBBES ESPINOSA - ADAM SMITH SCHOPENHAUER

    VICO KIERKEGAARD PASCAL MAQUIAVEL HEGEL E OUTROS

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-Publicao Cmara Brasileira do Livro, SP

    Epicuro, 342 ou 1-271 ou 70A.C.

    E54a Antologia de textos / Epicuro. Da natureza / Tito Lucrcio Caro. 3.ed. Da repblica / Marco Tlio Ccero. Consolao a minha me Hlvia ;

    Da tranqilidade da alma ; Media ; Apocoloquintose do divino Cludio / Lcio Aneu Sneca. Meditaes / Marco Aurlio ; tradues e notas de Agostinho da Silva ... [et al.] ; estudos introdutrios de E. Joyau e G. Ribbeck. 3. ed. So Paulo : Abril Cultural, 1985.

    (Os pensadores)

    Contm vida e obra de Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca e Marco Aurlio.

    Bibliografia.

    1. Epicuristas 2. Esticos 3. Filosofia antiga I. Lucrcio, 98?-55?A.C. II. Ccero, 106-43A.C. III. Sneca, 4?-65 ou 6. IV. Marco Aurlio, 121-180. V. Silva, Agostinho da, 1906- VI. Joyau, Emmanuel, 1850-1924. VII. Ribbeck, G. VIII. Ttulo. IX. Ttulo: Da natureza. X. Ttulo: Da repblica. XI. Ttulo: Consolao a minha me Hlvia. XII. Ttulo: Da tranqilidade da alma. XIII. Ttulo: Media. XIV. Ttulo: Apocoloquintose do divino Cludio. XV. Ttulo: Meditaes. XVI. Srie.

    CDD- 180

    -187 84-1228 -188

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Epicurismo : Filosofia antiga 187 2. Estoicismo : Filosofia antiga 188 3. Filosofia antiga 180 4. Filsofos antigos 180

  • EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS

    TITO LUCRCIO CARO

    DA NATUREZA

    MARCO TLIO CCERO DA REPBLICA

    LCIO ANEU SNECA

    CONSOLAO A MINHA ME HLVIA *

    DA TRANQILIDADE DA ALMA *

    MEDIA *

    APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLUDIO

    MARCO AURLIO

    MEDITAES

    Tradues e notas de Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios de E. Joyau e G. Ribbeck

    1985 EDITOR: VICTOR CIVITA

    Ttulos originais: Texto de Lucrcio: De Rerum Natura Textos de Sneca:

    Ad Helviam Matrem de Consolatione Ad Serenum de Tranquillitate Animi

    Medea Divi Claudi Apokolokintosis Texto de Marco Aurlio: T (Meditaes)

    Copyright desta edio, Abril S.A. Cultural, So Paulo, 1973 2. edio, 1980 3. edio, 1985. Tradues publicadas sob licena de Editora Globo S.A.,

    Porto Alegre (Antologia de Textos de Epicuro; Da Natureza); D. Giosa Indstrias Grficas S.A., So Paulo (Da Repblica;

    Consolao a Minha Me Hlvia; Da Tranqilidade da Alma; Media; Apocoloquintose do Divino Cludio); Editora Cultrix Ltda., So Paulo (Meditaes).

    Direitos exclusivos sobre "Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca, Marco Aurlio Vida e Obra", Abril S.A. Cultural, So Paulo.

  • EPICURO

    LUCRECIO CCERO SNECA

    MARCO AURLIO VIDA E OBRA

    Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha

    A perda da liberdade poltica primeiro dominada pelos macednios,

    depois pelos romanos alterou profundamente os quadros dentro dos quais a

    Grcia Antiga vinha desenvolvendo sua experincia cultural e, em particular, sua

    criao mais arrojada: a especulao filosfica. Tornando-se parte do imprio

    fundado por Filipe da Macednia e ampliado por seu filho Alexandre, o pas passa

    a integrar vasto organismo poltico, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se

    diluir as distines entre gregos e orientais, distines que, ento, os primeiros

    orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar.

    O historiador Herdoto (c.480-c.425 a.C.) mostrara que a raiz dessas

    distines estava no senso de liberdade poltica que um grego possua por pertencer

    a uma cidade-Estado, cnscia de sua autonomia e de suas tradies, e onde, ao

    usufruir os direitos de cidadania, ele no estava submetido a nenhum senhor. O

    abismo entre os gregos do perodo helnico e os "brbaros" orientais provinha,

    segundo Herdoto, da conscincia de liberdade que os gregos desenvolveram a

    partir da peculiaridade de sua organizao social e poltica. Essa conscincia de

    liberdade est ilustrada, pelo historiador, no episdio dos dois espartanos que, por

    ocasio das Guerras Mdicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem

    sacrificados como expiao pelo assassnio dos embaixadores de Xerxes. Indagados

    sobre por que Esparta insistia em resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da

    rendio e da submisso, os dois gregos respondem, altaneiros, ao persa que os

  • conduzia ao sacrifcio: "Tu no podes compreender. Conheces apenas a vida de

    servido. Jamais experimentaste a liberdade, para saber se ela doce ou no. Do

    contrrio, tu nos aconselharias a combater por ela no somente com a lana mas

    tambm com o machado".

    Depois da batalha de Queronia (338 a.C), que marca a derrota dos gregos

    frente Macednia, a situao muda completamente. O desaparecimento da

    autonomia da cidade-Estado torna sem sentido qualquer sentimento isolacionista.

    Mas, pelo fato mesmo de inserir-se no grande organismo poltico dos macednios,

    a cultura grega se difunde, tornando-se patrimnio comum a todos os pases

    mediterrneos. Comea o chamado perodo helenstico, no qual, desde a morte de

    Alexandre at a conquista romana, a cultura grega vai progressivamente se

    impondo do Egito e da Sria at Roma e Espanha. E se Atenas inicialmente

    permanece como centro da investigao cientfica e filosfica, outros focos de

    atividade intelectual passaro depois a se afirmar, particularmente Alexandria.

    No perodo helenstico as cincias particulares comeam a ter

    desenvolvimento autnomo, despregadas do tronco original da antiga sabedoria

    filosfica. O sculo III a.C. o sculo de Euclides, de Arquimedes (287-212 a.C.) e

    de Apolnio de Perga (c.262-c.180 a.C), um esplndido sculo, portanto, para as

    matemticas e a astronomia. Mas tambm o sculo em que, no museu de

    Alexandria cujo bibliotecrio o gegrafo Eratstenes (275-194 a.C.) , ocorre

    grande desenvolvimento da crtica filosfica e das cincias baseadas na observao.

    Surge um novo tipo de intelectual, inexistente na fase helnica: o especialista

    erudito. E se isso representa um impulso s especializaes cientficas, manifesta

    tambm o novo rumo que tomara o conhecimento, desde que sua meta deixara de

    ser o universo poltico: o da realizao subjetiva e pessoal, que acompanha o ideal

    de cincia pela cincia.

    Em busca da serenidade As novas condies impostas ao mundo grego tornam impossvel a

    participao do indivduo no governo da polis, que o cidado helnico conhecera

  • sobretudo na fase democrtica. O conhecimento deixa de ser preparao para a

    atividade poltica (como fora em Plato), passando a se ocupar do aprimoramento

    interior do homem. Distanciada das preocupaes polticas, a filosofia aspira ao

    estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se prope a dirigir

    as conscincias: o problema tico torna-se o centro da especulao de diferentes,

    correntes filosficas.

    As ticas helensticas partem procura do bem individual, de uma sabedoria

    que represente a plenitude da realizao subjetiva: o alcance da perfeita serenidade

    interior, independente das circunstncias. O bem no mais ter o sentido metafsico

    do Bem de Plato, fundamento das idias, dos modelos do mundo corpreo, e,

    conseqentemente, sustentao tanto do sujeito do conhecimento e da ao quanto

    da prpria realidade objetiva. O bem das ticas helensticas ter acepo

    estritamente existencial: o bem como sinnimo do que bom para o indivduo,

    para a vida de cada homem.

    Para traar o caminho que conduz serenidade interior, algumas ticas

    helensticas o epicurismo e o estoicismo partem de uma concepo do

    universo fundamentada racionalmente. Ao contrrio do que propunha o

    socratismo, epicuristas e esticos fazem da cincia sobre a natureza das coisas a

    base para suas construes morais. Bem diverso ser o itinerrio prescrito pelo

    ceticismo, fundado por Pirro de lis (360-270 a.C): imperturbabilidade de esprito

    s se chegaria partindo-se da suspenso de qualquer julgamento, renunciando-se a

    qualquer explicao cientfica, abandonando-se toda pretenso de alcanar certezas

    inatingveis.

    Outra corrente de pensamento que se manifesta no perodo helenstico o

    ecletismo. Procurando um critrio para a ao que escapasse s disputas das

    diferentes escolas, essa filosofia pretender estabelecer, para alm das divergncias,

    um "sentido comum", um consenso universal. Tal forma de pensar teve larga

    aceitao na fase romana e Ccero foi seu mais eminente representante.

  • O carter de religiosidade, que se tornar evidente no pensamento ocidental

    a partir do sculo I d.C, afirma-se antes em centros orientais da cultura helenstica,

    como Alexandria. Manifesta-se ento acentuada tendncia fuso ou ao

    sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradies: a

    greco-romana, formulada atravs de filosofias dotadas de alto ndice de

    racionalizao, e a da religiosidade oriental, fundada como no judasmo e no

    cristianismo na noo de "verdade revelada". Os primeiros efeitos da

    repercusso do esprito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeus-

    alexandrinos (do sculo II a.C. ao I d.C), nos neopitagricos e platnicos

    pitagorizantes (entre os sculos I a.C. e III d.C.) e nos ltimos defensores do

    pensamento e da religio do politesmo: os neoplatnicos do sculo II ao sculo VI

    d.C.

    O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestao de sincretismo

    religioso dessa poca e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para

    o neoplatonismo canto de cisne do pensamento da Grcia Antiga , todos os

    seres resultariam de sucessivas emanaes do Um, divino, transcendente e inefvel.

    Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um ltimo tema: o silncio do Ser.

    O jardim da amizade e do prazer Nascido em 341 a.C, em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado,

    dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do acadmico Pnfilo. E, atravs de

    Nausfanes de Teo, discpulo de Demcrito (c.460-370 a.C), teria conhecido as

    doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como

    professor de gramtica. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lmpsaco,

    depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306

    a.C, onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficar

    conhecida como o Jardim de Epicuro.

    Os alunos no tm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade,

    formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influncia, no

    s pelo ensino direto como pela extraordinria personalidade. um homem

  • bondoso, de natureza terna e amvel, que, apesar dos sofrimentos fsicos impostos

    pela doena que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os

    irmos e trata delicadamente os escravos. Por essa razo todos os que o conhecem

    dificilmente deixam seu convvio.

    Epicuro foi intensamente venerado por seus primeiros discpulos, grandes

    admiradores seus. E cerca de dois sculos depois de sua morte ocorrida em 270

    a.C. ainda ser assim exaltado pelo. poeta romano Lucrcio, seguidor e expositor

    de suas idias: "Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu essa

    maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez

    escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada

    to calma e to luminosa".

    As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrcio significam os

    temores e as perturbaes que agitam o esprito humano e que Epicuro teria

    ensinado como vencer. "A morada to calma e to luminosa" seria a meta proposta

    pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a tica de

    Epicuro representa um esforo para libertar a alma humana de equvocos ou de

    infundadas crenas aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao

    homem como instrumento de libertao e como via de acesso verdadeira

    felicidade. Esta consistiria na serenidade de esprito que advm da conscincia de

    que ao homem que compete conseguir o domnio de si mesmo.

    O autodomnio objetivo de toda reflexo filosfica exige a libertao

    do jugo das falsas opinies e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da

    realidade e da posio do homem dentro dela. Conseqentemente, a filosofia pode

    ser dividida em trs partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lgica, que

    permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas.

    Em segundo lugar com base nas solues indicadas pela lgica , uma fsica

    que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A

    lgica e a fsica constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a

  • descoberta dos fundamentos da tica. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu

    objetivo ltimo, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade.

    A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de cannica)

    empirista, isto , reduz toda a origem do conhecimento experincia sensvel. As

    repetidas experincias dos sentidos, preservadas pela memria, dariam nascimento

    antecipao (em grego: prolepsis), equivalente noo geral ou conceito. Quando

    se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presena real e efetiva de um

    homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos

    sentidos. A prolepsis teria a funo de classificar as experincias e fixar seus limites

    de variao. Seria em si mesma verdadeira, pois simplesmente registra e preserva as

    diferenas e semelhanas encontradas na experincia sensvel.

    A fonte da verdade. Depois que se possui um nmero suficientemente grande de prolepsis,

    podem-se formar juzos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juzo pode ser

    provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juzo diz respeito a

    algo observvel pelos sentidos, o critrio pura e simplesmente a concordncia

    entre o juzo e os fenmenos sensveis correspondentes. O segundo critrio de

    verificao da verdade de uma proposio refere-se aos juzos sobre fenmenos

    no passveis de observao atravs dos sentidos. Nesse caso diz-se que certa

    proposio verdadeira se no entrar em contradio com outros dados fornecidos

    pela experincia (critrios da no-infirmao). Os fenmenos adotados como prova

    so apenas signos de uma realidade invisvel. Por exemplo, segundo a doutrina

    atomista, adotada por Epicuro, "todos os corpos, por mais compactos que sejam,

    possuem interstcios vazios dentro deles". Esse juzo no atestado diretamente

    pelos sentidos; mas, se no for admitido como verdadeiro, tambm no seria

    verdade que "a gua destila atravs das rochas", ou que "o calor e o frio passam

    atravs das paredes".

  • A conjugao do conhecimento sensvel e do conhecimento racional permite

    a Epicuro justificar sua adeso ao atomismo criado por Leucipo (meados do sculo

    V a.C.) e Demcrito (c.470-c.370 a.C).

    Com efeito, se os sentidos atestam o movimento como uma evidncia, seria

    verdadeira, graas ao critrio da no-infirmao, a teoria atomista, que apresenta

    uma explicao racional para o movimento, afirmando que tudo constitudo de

    tomos (invisveis) que se movem no vazio.

    Como os anteriores atomistas, Epicuro considera os tomos como infinitos

    em nmero, indivisveis fisicamente (insecveis) e imensamente pequenos (sua

    variao de tamanho estaria situada aqum do limiar de percepo); alm disso,

    seriam mveis por si mesmos, pois o vazio no ofereceria qualquer resistncia

    locomoo. Leucipo e Demcrito haviam afirmado que os tomos, materialmente

    idnticos, diferiam uns dos outros apenas pela forma, pelo tamanho, pela posio

    ou, quando constituam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro, porm, introduz uma

    nova distino: os tomos seriam diferentes tambm quanto ao peso. Os primeiros

    atomistas consideravam o peso uma resultante do tamanho dos tomos: os

    maiores, mais sujeitos aos impactos dos outros, locomovem-se com mais

    dificuldade e tendem a ocupar o centro dos agrupamentos de tomos,

    comportando-se como mais pesados. Ao contrrio, Epicuro considera o peso um

    atributo inerente aos tomos, concebendo, portanto, um peso absoluto e no

    relativo. E devido ao peso que os tomos, num momento inicial, so imaginados

    por Epicuro como "caindo"; mas, situados dentro do vazio, teriam que

    desenvolver, nessa "queda", trajetrias necessariamente paralelas. Isso significa que

    os tomos jamais se chocariam dando origem aos engates e aos torvelinhos

    indispensveis constituio das coisas e dos mundos se algum fator no viesse

    interferir naquele paralelismo das trajetrias. Afastando-se do rgido mecanismo da

    fsica dos primeiros atomistas, Epicuro introduz ento a noo de "desvio"

    (clinamen): sem nenhuma razo mecnica, os tomos, em qualquer momento de suas

    trajetrias verticais, podem se desviar e se chocar. O clinamen aparece, assim, como

  • a introduo do arbtrio e do impondervel num jogo de foras estritamente

    mecnico: a ruptura da necessidade, no plano da fsica, para acolher a

    contingncia.

    A justificativa do clinamen est garantida pela cannica de Epicuro: a

    evidncia imediata revela que existe um ser o homem que, embora

    constitudo de tomos (como todos os seres do universo), manifesta a possibilidade

    de arbtrio, pelo qual altera os rumos de sua vida ou, pelo menos, pode modificar

    sua atitude interior diante dos acontecimentos. A existncia da vontade livre seria,

    portanto, o fato experimentado que, atravs do critrio da no-infirmao,

    encontraria explicao no desvio que deve tambm ocorrer nas trajetrias atmicas.

    Inconcebvel seria admitir que um composto (o homem) apresentasse atributos

    inexistentes em seus componentes (os tomos). A doutrina do clinamen serve, assim,

    para fundamentar, dentro de um universo de coisas regido pelo fatalismo e pela

    necessidade mecnica, a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a

    liberdade humana. Na fsica Epicuro situa as premissas de sua tica.

    A verdadeira sabedoria Com sua concepo materialista da realidade, Epicuro pretende libertar o

    homem dos dois temores que o impediriam de encontrar a felicidade: o medo dos

    deuses e o temor da morte. Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres

    perfeitos que no se misturam s imperfeies e s vicissitudes da vida humana. Os

    deuses viveriam em perfeita serenidade nos espaos que separam os mundos. Sua

    perfeio suprema constitui o ideal a que aspiram os sbios e deve ser objeto de

    culto desinteressado; no teria sentido ador-los de maneira servil, temerosa e

    interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo

    algum atuam sobre ele. Quanto morte, no h tambm por que tem-la. Ela no

    seria mais que a dissoluo do aglomerado de tomos que constitui o corpo e a

    alma. A morte, portanto, no existe enquanto o homem vive e este no existe mais

    quando ela sobrevm.

  • A libertao do temor dos deuses e da morte no basta para conduzir o

    homem verdadeira felicidade. necessrio ainda que ele se liberte da nsia

    incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores.

    A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar

    os sombrios temores que lhe intranqilizavam a alma, bem como reconhecer-se

    como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural,

    o homem como os animais pauta sua vida, espontaneamente, pela procura

    do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria est alm desse

    comportamento natural e espontneo: sbio reconhecer que h diferentes tipos de

    prazer, para saber selecion-los e dos-los. O hedonismo epicurista reconhece que

    o ponto de partida para a felicidade est na satisfao dos desejos fsicos, naturais.

    Mas essa satisfao, para no acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se

    ao estritamente necessrio: sbio aquele que "com um pouco de po e de gua

    rivaliza com Jpiter em felicidade".

    Epicuro considera que todo prazer basicamente um prazer corpreo. Mas,

    ao contrrio dos cirenaicos corrente hedonista que se pretendia herdeira de

    Scrates , Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar no o da

    pura satisfao fsica imediata e mutvel, o "prazer do movimento". Para Epicuro,

    o prazer que deve nortear a conduta humana o prazer com dimenso tica e no

    apenas natural o "prazer do repouso", constitudo pela ataraxia (ausncia de

    perturbao) e pela aponia (ausncia de dor). Ambas podem ser alcanadas na

    medida em que o homem, atravs do autodomnio, busque a auto-suficincia que o

    torne um ser que tem em si mesmo sua prpria lei, um ser autrquico, capaz de ser

    feliz e sereno independentemente das circunstncias. Para tanto, deve renunciar aos

    prazeres que possam ser fontes de aflio e aceitar a dor quando ela portadora de

    um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da

    morte). necessrio, portanto, fazer um clculo utilitrio dos prazeres e das dores

    possveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porm,

    reconhece que as circunstncias podem impor a dor como um fato inelutvel.

  • Sabedoria ser ento utilizar a liberdade interior e, atravs do artifcio que essa

    liberdade permite, permanecer sereno e feliz. dor presente, ensina Epicuro, pode-

    se escapar por meio da lembrana dos prazeres passados ou pela expectativa de

    prazeres futuros. Interiormente, o homem livre para jogar, vontade, com as

    imagens (eidola) que seriam resqucios corpreos (formados de tomos mais tnues)

    de suas sensaes. Epicuro ele prprio um homem doente e vtima de terrveis

    sofrimentos fsicos, ele prprio um grego sem liberdade poltica teria dado a

    demonstrao dessa tcnica interior de evaso, capaz de permitir ao homem

    enfrentar serenamente as mais adversas circunstncias. Seu hedonismo altamente

    espiritualizado, que fazia da contemplao intelectual e das delcias da amizade os

    mais elevados prazeres, legou s ticas posteriores uma lio que nunca mais ser

    esquecida: a de que o homem tambm pode se sustentar de recordaes e de

    esperanas.

    A poesia do materialismo Na prpria Antigidade o epicurismo no sofreu reformulaes. Os

    seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memria do mestre e a

    preservar e propagar suas idias.

    Segundo Digenes Larcio, a obra de Epicuro compreendia cerca de

    trezentos ttulos, dentre os quais s Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa

    grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o prprio Digenes

    Larcio conservou uma Carta a Herdoto (que trata da fsica), uma Carta a Ptocles (de

    "autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre

    moral); Digenes Larcio faz seguir essas cartas de quarenta sentenas atribudas a

    Epicuro e conhecidas sob a denominao de Mximas Principais. Em 1888, K.

    Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 mximas de

    Epicuro, algumas j inseridas nas Mximas Principais. Por outro lado, as escavaes

    realizadas em Herculanum trouxeram luz uma biblioteca epicurista, contendo

    inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro.

  • Mas, se os escritos de Epicuro s so conhecidos de forma fragmentria,

    existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza

    das Coisas, de seu seguidor Lucrcio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C.

    Pouco se sabe da vida de Tito Lucrcio Caro. Nasceu provavelmente em

    Roma, onde foi educado.

    Quando conheceu a doutrina de Epicuro "honra da raa grega" ,

    Lucrcio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para

    desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana.

    Seguindo as pegadas do mestre, Lucrcio prope-se tarefa de libertar os romanos

    da religio que os oprimia e que sobre eles pesava com mais fora do que outrora

    pesara sobre os gregos.

    Alm de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema

    de Lucrcio tem imensa importncia literria: atravs dele Lucrcio se revela um

    dos maiores poetas da lngua latina.

    Lucrcio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques

    de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicao,

    segundo algumas fontes, por um irmo de Ccero chamado Quinto. Segundo outras

    fontes, aquele trabalho foi feito pelo prprio Ccero, que tinha pelo poeta do

    materialismo profunda admirao.

    O ecletismo de Ccero Em janeiro de 49 a.C, o trinviro romano Jlio Csar atravessou o Rubico e

    desencadeou a guerra civil que o levaria a dominar todo o imprio. Venceu Pompeu

    em Farsala, instalou Clepatra no trono do Egito, reorganizou o Oriente e derrotou

    os ltimos adeptos do segundo trinviro da frica, em 46 a.C, e na Espanha, um

    ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., comeou a governar como dspota

    absoluto e tratou de eliminar os ltimos adversrios.

    Entre os adversrios perseguidos estava Marco Tlio Ccero (106-43 a.C),

    senador e figura proeminente da poltica romana nos anos anteriores. Obrigado a

    deixar os negcios pblicos, Ccero recolheu-se vida privada e retomou a

  • meditao filosfica, de que j se ocupara num primeiro exlio, por volta de 51 a.C.

    O resultado foi um conjunto de obras, escritas em aproximadamente dois anos e

    que versavam sobre os mais variados assuntos: Sobre os Fins, Controvrsias Tusculanas

    e Sobre os Deveres tratam de problemas ticos; Os Tpicos e Os Acadmicos abordam

    questes lgicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatria e Sobre o Destino so

    dedicados a temas da fsica.

    Do ponto de vista da filosofia, essas so as principais obras escritas por

    Ccero no retiro forado por Csar e vinham juntar-se a Sobre o Orador, escrito em

    55 a.C., A Repblica, redigida em 51 a.C, e Sobre as Leis, provavelmente da mesma

    poca.

    Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na histria

    do pensamento porque fazia do latim um idioma filosfico. Pouco antes, Lucrcio

    tinha escrito o poema Sobre a Natureza, mas a obra no foi publicada seno aps a

    morte do poeta e, ao que tudo indica, sob os cuidados de Ccero.

    Apesar desse valor histrico, as obras de Ccero no contm um pensamento

    original, limitando-se a amalgamar diferentes teorias filosficas gregas. Ccero foi

    um tipo ecltico, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas

    correntes na poca, sem vincular-se inteiramente a nenhuma.

    Essas correntes ele tinha conhecido quando, na juventude, estudou em

    Atenas, antes de tornar-se famoso advogado e homem pblico. Foi discpulo e

    amigo de epicuristas, esticos, peripatticos e acadmicos. De todos eles Ccero

    retirou algumas idias e comps uma sntese que, alm da importncia pela criao

    de um vocabulrio filosfico latino, constitui fonte de estudo de boa parte do

    pensamento clssico.

    No que diz respeito a suas prprias posies doutrinrias, Ccero, em teoria

    do conhecimento, ops-se tanto ao ceticismo radical de Pirro de Elis (360-270 a.C.)

    quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critrio de verdade o

    probabilismo do consenso universal, isto , aquela posio que acha possvel ao

    homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem no entanto atingir a verdade

  • absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razes dessa

    posio so colocadas menos num plano puramente lgico do que no terreno das

    necessidades prticas do homem. Para Ccero, o problema do conhecimento no

    pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita,

    todavia, de admitir como verdadeiras algumas noes sem as quais no possvel

    manter a coeso da sociedade.

    Em moral, Ccero adere s doutrinas esticas sem, entretanto, aceitar todo o

    rigor da concepo segundo a qual o exerccio da virtude basta-se a si mesmo e

    consiste na conformidade da conduta humana s leis racionais da natureza.

    Aceita essas idias, mas exige que tais normas sejam vlidas pelo consenso

    universal.

    Esse consenso universal articula-se em torno de algumas idias que do

    fundamento vida moral e social, principalmente a da existncia de Deus e sua

    providncia. Tais noes seriam comprovadas pela conscincia natural dos homens

    e pela constatao de que na natureza os fenmenos organizam-se em torno de

    fins, os quais supem a existncia de um fim ltimo de todas as coisas. Outra idia

    com a mesma funo de fundamentar a vida social e moral a da essncia espiritual

    e divina da alma e sua imortalidade. Essa idia encontrar-se-ia confirmada na

    preocupao do homem com sua vida futura.

    Os esticos Depois de Ccero ter iniciado a histria da filosofia em lngua latina,

    formulando sua sntese ecltica, o movimento de idias mais importante dentro do

    pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas esticas, tambm

    originrias da Grcia, como o epicurismo e o ecletismo.

    A escola estica foi fundada por Zeno de Ccio (334-264 a.C.) e continuada

    por Cleanto de Assos (331-232 a.C) e Crisipo de Solis (280-210 a.C.).

    Posteriormente, a escola transformou-se, tendendo para uma posio ecltica, com

    Pancio de Rodes (185-112 a.C.) e Possidnio de Apamia (135-51 a.C).

  • O estoicismo grego prope uma imagem do universo segundo a qual tudo o

    que corpreo semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital

    (pneuma), cuja tenso explicaria a juno e interdependncia das partes. Em seu

    conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro gneo

    (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coeso do todo. Essa alma

    identificada, por Zeno, razo, e assim o mundo seria inteiramente racional. A

    Razo Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de

    irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, no havendo lugar

    no universo para o acaso ou a desordem.

    A racionalidade do processo csmico manifesta-se na idia de ciclo, que os

    esticos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Herclito de

    feso (sc. VI a.C), os esticos concebem a histria do mundo como feita por

    sucesso peridica de fases, culminando na absoro de todas as coisas pelo Logos,

    que Fogo e Zeus. Completado um ciclo, comea tudo de novo: aps a

    conflagrao universal, o eterno retorno.

    Tudo o que existe corpreo e a prpria razo identifica-se com algo

    material, o fogo. O incorpreo reduz-se a meios inativos e impassveis, como o

    espao vazio; ou ento quilo que se pode pensar sobre as coisas, mas no s

    prprias coisas.

    Nesse universo corpreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre

    idnticos, tudo existe e acontece segundo predeterminao rigorosa porque

    racional. Governada pelo Logos, a natureza por isso justa e divina e os esticos

    identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e,

    atravs disso, com a prpria natureza, que intrinsecamente razo. Esse acordo

    consigo mesmo o que Zeno chama "prudncia" e dela decorrem todas as demais

    virtudes, como simples aspectos ou modalidades.

    As paixes so consideradas pelos esticos como desobedincia razo e

    podem ser explicadas como resultantes de causas externas s razes do prprio

    indivduo; seriam, como j haviam mostrado os cnicos, devidas a hbitos de pensar

  • adquiridos pela influncia do meio e da educao. necessrio ao homem

    desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e Razo

    Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer

    circunstncia, mesmo na dor e na adversidade.

    Uma nova lgica Os esticos gregos no se limitaram a formular uma fsica e uma tica.

    Elaboraram tambm uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As

    trs formariam um conjunto sistemtico que expressaria, no plano do

    conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza.

    A teoria do conhecimento consiste, para os esticos, em vincular

    estreitamente a certeza e a cincia ao plano do conhecimento sensvel. A base de

    qualquer conhecimento seriam as impresses recebidas pelos sentidos; mas j o

    nvel do sensvel estaria penetrado pela razo, sendo portanto predisposto

    sistematizao pela inteligncia.

    Ao lado das coisas sensveis, os esticos distinguem os "exprimveis", isto ,

    aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os "exprimveis" seriam objeto

    da dialtica, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a

    respeito das coisas, e no das prprias coisas.

    Os mais simples enunciados, segundo os esticos, so compostos por um

    sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por

    um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposies da lgica

    aristotlica, que estabelecem relaes entre conceitos (por exemplo: "O homem

    um animal racional"). Na lgica estica, o sujeito sempre singular (algum, Pedro

    etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligaes entre os

    enunciados, portanto, nunca assumem o carter de juzo categrico, permanecendo

    como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposio

    simples (por exemplo: "Est claro, dia").

    Os esticos distinguem cinco tipos de juzos compostos que renem os

    enunciados simples. O juzo hipottico exprime relao entre antecedente e

  • conseqente ("Se h fumaa, h fogo"). O juzo conjuntivo simplesmente justape

    fatos (" dia, est claro"). O juzo disjuntivo separa os enunciados, de modo que s

    um deles pode ser verdadeiro ("Ou dia, ou noite"). Finalmente, o quinto tipo de

    juzo expressa a idia de mais e menos ("Fica menos claro quando mais noite").

    A medicina da alma No foi a lgica dos esticos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo

    fsico, que sobretudo atraiu o interesse dos esticos romanos. Foi antes sua moral

    da resignao, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.

    O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idias

    esticas que se encontram no ecletismo de Ccero, foi Lucius Annaeus Sneca,

    nascido em Crdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era crist.

    Era filho de Annaeus Sneca (55 a.C-39 d.C.) conhecido como Sneca, o Velho

    , que teve renome como retrico e do qual restou uma obra escrita (Declamaes).

    O futuro filsofo Sneca foi educado em Roma, onde estudou a retrica ligada

    filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu

    politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado

    questor.

    O triunfo poltico, no entanto, no se fazia sem conflitos e o renome de

    Sneca suscitou a inveja do imperador Calgula, que pretendeu desfazer-se dele pelo

    assassinato. Sneca, contudo, foi salvo por sua frgil sade; julgava-se que ele

    morreria muito cedo, de morte natural. O prprio Calgula que faleceria logo

    depois e Sneca pde continuar vivendo em relativa tranqilidade. No duraria esse

    perodo muito tempo. Em 41 d.C. foi desterrado para a Crsega, sob acusao de

    adultrio, supostamente praticado com Jlia Livila, sobrinha do novo imperador

    Cludio Csar Germnico. Na Crsega, Sneca passaria quase dez anos em grande

    privao material.

    Em 49 d.C, Messalina, primeira esposa do imperador Cludio e responsvel

    pelo exlio de Sneca, caiu em desgraa e foi condenada morte. O imperador

    Cludio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sneca para educar seu filho

  • Nero. Em 54 d.C, quando Nero se torna imperador, Sneca passa a ser seu

    principal conselheiro. Esse perodo estende-se at 62 d.C, ano em que sua estrela

    comea a perder o brilho junto ao desptico soberano. Sneca deixa a vida pblica

    e sofre a perseguio de Nero, que acaba por conden-lo ao suicdio, em 65 d.C.

    As Cartas Morais de Sneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a

    Luclio, misturam elementos epicuristas com idias esticas e contm observaes

    pessoais, reflexes sobre a literatura e crtica satrica dos vcios comuns na poca.

    Entre seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemncia, cautelosa advertncia

    a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, anlise das frivolidades nas

    sociedades corruptas, e Sobre a Tranqilidade da Alma, que tem como assunto o

    problema da participao na vida pblica. As Questes Naturais expem a fsica

    estica enquanto vinculada aos problemas ticos.

    Alm dessas obras propriamente filosficas, Sneca escreveu ainda nove

    tragdias e uma obra-prima da stira latina, Apokolokintosis, que ridiculariza Cludio

    e suas pretenses divindade.

    Todas essas obras revelam que Sneca foi, sobretudo, um moralista. A

    filosofia para ele uma arte da ao humana, uma medicina dos males da alma e

    uma pedagogia que forma os homens para o exerccio da virtude. O centro da

    reflexo filosfica deve ser, portanto, a tica; e a fsica e a lgica devem ser

    consideradas como seus preldios.

    Sua concepo do mundo repete as idias dos esticos gregos sobre a

    estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razo universal dos gregos

    Cleanto e Zeno transforma-se em Sneca num deus pessoal, que sabedoria,

    previso e vigilncia, sempre em ao para governar o mundo e realizar uma ordem

    maravilhosa.

    O imperador filsofo Cronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano

    foi Epicteto (c.50-130), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor

    de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discpulo Ariano de Nicomia, em oito

  • livros. Chegaram at a atualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos

    dos restantes.

    Grande admirador de Epicteto foi o imperador Marco Aurlio Antonino,

    que, nas pausas tranqilas de seu conturbado governo, se dedicou reflexo

    filosfica e com isso tornou-se o terceiro e ltimo grande expoente do estoicismo

    romano.

    Marco Aurlio nasceu em 121, no seio de uma famlia aristocrtica, e muito

    cedo perdeu os pais. Foi ento adotado pelo tio, Aurlio Antonino. O tio tornar-se-

    ia imperador e nomearia Marco Aurlio seu sucessor, em 161.

    Aos onze anos de idade, Marco Aurlio conheceu o estoicismo e adotou

    hbitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosfica. Depois dos

    anos de formao passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai

    adotivo, ocupando o cargo de cnsul por trs vezes. Em 161, Aurlio Antonino

    faleceu e Marco Aurlio tornou-se imperador.

    O governo de Marco Aurlio que se estendeu por quase vinte anos, at

    sua morte em 180 foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as

    conseqentes dificuldades internas. Alm disso, Roma foi vtima de inundaes,

    tremores de terra e incndios. Marco Aurlio conseguiu enfrentar todas as

    dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo,

    humanizando profundamente o exerccio do poder. Nos poucos momentos que os

    encargos de governo permitiam, recolhia-se meditao filosfica e escrevia seus

    pensamentos em lngua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietaes

    intelectuais e morais profundas. As Meditaes (como posteriormente ficaram

    conhecidos aqueles pensamentos) so simples notas, apenas esboadas.

    O contedo das Meditaes a filosofia estica, mas de um estoicismo

    bastante distante das doutrinas de Zeno, Cleanto e Crisipo. As especulaes fsicas

    e lgicas cedem lugar ao carter prtico dos romanos e ao aconselhamento moral.

    Em Marco Aurlio como tambm nas Mximas de Epicteto a questo central

    da filosofia o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver

  • bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupao com o estado de sua

    prpria alma, em virtude da natureza delicada e sensvel do autor das Meditaes,

    homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigao cientfica. Por essa

    razo o estoicismo de Marco Aurlio freqentemente apresenta discrepncias em

    relao a suas origens gregas. Marco Aurlio no chegou a ser um pensador original

    e no procurou resolver as inconsistncias de sua prpria posio. Enquanto a

    ortodoxia estica levava-o na direo de um credo materialista, seu sentimento

    religioso impelia-o no sentido da fora moral e da benevolncia. Por isso, as

    Meditaes de Marco Aurlio expressam-se atravs de uma linguagem que, por um

    lado, parece pressupor a aceitao de um pantesmo puramente fsico; por outro,

    abandona os dogmas da escola estica para seguir os ditames do corao.

    Por certo a verdadeira chave para compreenso das oscilaes de Marco

    Aurlio deve ser procurada menos em suas caractersticas psicolgicas do que nas

    circunstncias histricas em que viveu. O imprio romano estava perdendo o

    antigo esplendor e a cultura clssica greco-latina mostrava os ltimos sinais de

    vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepo do mundo: o

    cristianismo.

    Marco Aurlio expressa claramente essa etapa de transio. Nele a auto-

    suficincia do antigo estoicismo grego cede lugar falta de confiana em si mesmo

    e conscincia das prprias imperfeies. Com isso antecipa a virtude crist da

    humildade e mais um passo apenas poderia lev-lo concepo de um Deus nico

    e pessoal.

    Cronologia

    470 a.C. Nasce Scrates.

    460 a.C. Nasce Demcrito.

    428 a.C. Nascimento de Plato.

    399 a.C. Processo e morte de Scrates.

    359 a.C. Ascenso de Filipe ao trono da Macednia.

    341 a.C. Nasce Epicuro.

  • 338 a.C. Batalha de Queronia: Filipe derrota os gregos.

    336 a.C. Morte de Filipe. Ascenso de Alexandre.

    334 a.C. Nasce Zeno de Ccio, fundador da escola estica. Aristteles funda o

    Liceu. 331 a.C. fundada a cidade de Alexandria. 323 a.C. Morre

    Alexandre. 306 a.C. Epicuro abre sua escola em Atenas. 287 a.C. Nasce

    Arquimedes. 270 a.C. Morre Epicuro.

    148 a.C. Os romanos reduzem a Macednia a provncia. 106 a.C. Nasce Ccero.

    98(?) a.C. Nasce Lucrcio. 55(?) a.C. Morre Lucrcio.

    51 a.C. No exlio, Ccero redige suas primeiras obras filosficas. 46 a.C. Jlio Csar

    derrota foras de Pompeu na frica. 45-44 a.C. Ccero redige suas obras mais

    importantes. 44 a.C. Assassnio de Jlio Csar. 43 a.C. Ccero assassinado.

    29-19 a.C. Virglio compe a Eneida. 4(?) a.C. Nasce Sneca.

    41 d.C. Sneca banido para a Crsega.

    49 d.C. Torna-se preceptor do jovem Nero.

    50 d.C-130 d.C. Vida de Epicteto.

    54 d.C. Nero torna-se imperador. Sneca feito seu conselheiro.

    65 d.C. Nero condena Sneca ao suicdio.

    68 d.C. Morte de Nero.

    121 d.C. Nasce Marco Aurlio.

    161 d.C. Torna-se imperador.

    180 d.C. Morte de Marco Aurlio.

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  • EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS

    Traduo e notas de Agostinho da Silva Estudo introdutrio de E. Joyau

    EPICURO (por E. Joyau)

    Epicuro era de Atenas. Sua famlia pertencia ao demo de Gargetos; era

    nobre, ao que parece, mas reduzida a grande pobreza; segundo certas tradies,

    remontava a Fileu, neto de Ajax. O pai do nosso filsofo, Nocles, fez parte dos

    colonos que os atenienses enviaram a Samos em 352 a.C. e entre os quais se

    realizou uma partilha de terras. Foi a que nasceu Epicuro, no ano terceiro da 109.a

    Olimpada (341 a.C.) no ms de Gamelion. Certos historiadores, entre outros

    Digenes Larcio, dizem que nasceu em Gargetos; parece, porm, que se trata de

    um erro. Mas se veio luz em Samos era incontestavelmente de pais atenienses e

    no tinham razo nenhuma os seus adversrios quando pretendiam que no era um

    verdadeiro cidado. Por outro lado, foi completamente por acaso que Epicuro

    nasceu em Samos, como Pitgoras, e no h razo alguma para que se procurem no

    seu sistema vestgios de influncia pitagrica. Nocles exercia o mister de mestre-

    escola; sua mulher, Querstrata, adivinhava o futuro; ia s casas dos pobres

    conjurar o mau-olhado e atalhar as doenas; o filho acompanhava-a e recitava as

    frmulas propiciatrias. Foi isso, sem dvida, o que lhe deu oportunidade de

    conhecer de perto as supersties populares e os males que causa a credulidade dos

    homens.

    Manifestou muito cedo a curiosidade do seu esprito. No tinha mais de

    catorze anos, alguns dizem mesmo doze, quando o professor de gramtica citou

    diante dele o verso de Hesodo No princpio todas as coisas vieram do caos. "E o caos",

  • perguntou Epicuro, "donde veio ele?" O professor ficou atnito; disse que no lhe

    competia resolver a questo e que era necessrio formul-la aos filsofos. Os

    estudos do moo foram, pois, orientados nessa direo; compreendeu a

    importncia e o interesse dos estudos filosficos e foi escutar as lies das

    diferentes escolas. Foi ento que conheceu Nausifanes, discpulo de Demcrito, de

    quem se devia inspirar em muitos pontos da doutrina. Ouviu um grande nmero de

    outros mestres sem se ligar a nenhum. Conheceu, pois, as filosofias anteriores, mas

    no se deu ao trabalho de as estudar, de as discutir a fundo. Seria, segundo nos

    parece, perder tempo investigar sobre o que ele deve ou sobre o que ele critica de

    cada uma delas. Os dois grandes sistemas de Plato e de Aristteles teriam exigido,

    para serem bem conhecidos e compreendidos, um exame longo e paciente; teriam

    merecido ser discutidos ponto por ponto; Epicuro no se demorou nesse trabalho;

    talvez no fosse muito capaz de o executar; em todo caso, no sofreu a influncia

    destas duas doutrinas e no se inspirou nelas.

    Aos dezoito anos de idade veio pela primeira vez a Atenas, mas no

    permaneceu na cidade durante muito tempo. Foi ento que travou relaes com

    Menandro, que era da sua idade. Este ltimo, num epigrama que nos chegou em

    parte, aproxima Epicuro de Temstocles: o pai de um, exatamente como o do

    outro, chamava-se Nocles; e, quanto aos dois filhos, "um de vs salvou a ptria da

    escravido, o outro da irreflexo". Epicuro no pde nesta poca ouvir Aristteles,

    que j se tinha retirado para Clcis. Exerceu primeiramente, como seu pai, o ofcio

    de mestre de letras e de gramtica; s mais tarde abriu escola de filosofia, primeiro

    em Lmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte, por fim em Atenas, em 306 a.C,

    com a idade de trinta e seis anos.

    Talvez tivesse vindo a esta cidade um pouco mais cedo e tivesse sido forado

    a abandon-la bruscamente. Depois da tomada de Atenas por Demtrio Poliorceto,

    Sfocles, filho de Anticlides, fez votar uma lei pela qual era proibido, sob pena de

    morte, abrir uma escola sem autorizao do Senado e do povo; todos os filsofos

    tiveram que abandonar a cidade. A lei foi promulgada logo depois de derrubado

  • Demtrio de Falero e de ter sido restabelecida a liberdade; da mesma maneira tinha

    sido Scrates condenado pelo tribunal dos Heliastas depois da expulso dos Trinta

    Tiranos. curioso notar como era fcil aos demagogos excitar a desconfiana do

    povo ateniense contra os filsofos. Mas logo no ano seguinte, graas interveno

    do peripattico Flon, o decreto foi revogado e Sfocles, convencido de ter violado

    as leis, foi condenado a uma penalidade de 5 talentos. Os filsofos puderam ento

    reentrar em Atenas e no foram inquietados mais. No temos os elementos

    necessrios para saber ao certo se Epicuro se contou entre aqueles a quem se imps

    o xodo; neste como noutros pontos, a nossa curiosidade fica excitada no mais alto

    grau e no encontra com que se satisfazer.

    Comprou pelo preo de 80 minas (6 000 ou 7 000 francos) um jardim, isto ,

    uma pequena casa com um jardim, e foi a que estabeleceu a sua escola. Que idia

    deveremos fazer desses jardins de Epicuro de que nos falam todos os escritores

    antigos e que lhes pareciam constituir notvel inovao? No era um parque:

    Ccero emprega muitas vezes, para os designar, o diminutivo hortuli: era uma

    propriedade para renda mais do que uma propriedade de recreio, porque Epicuro

    no seu testamento fala dos rendimentos que dela recebia. E provvel que as casas

    com jardim no fossem raras em Atenas, porque a cidade no era muito povoada e

    as habitaes no estavam amontoadas umas sobre as outras; mas Epicuro, em

    lugar de reunir os seus auditores numa sala, num ginsio ou num prtico, dava-lhes

    lies ao ar livre; no fazia os seus cursos a certas horas, mas passava todo o dia no

    jardim, falando familiarmente com uns e com outros, de modo que se no via nele

    um mestre rodeado de discpulos, mas um grupo de amigos que filosofavam juntos.

    A influncia extraordinria que exerceu sobre os seus discpulos foi devida ao

    ascendente da sua personalidade mais que s suas doutrinas; como o disse Sneca,

    Metrodoro, Hermarco, Polieno devem mais a terem freqentado Epicuro do que a

    seu ensino. com efeito um dos caracteres mais notveis da escola epicurista esta

    amizade que no cessou de nela reinar, unindo por um lado os professores e os

    alunos, por outro lado os alunos entre si. Todos os escritores da Antigidade esto

  • de acordo sobre este ponto; os adversrios mais odientos nunca nos falam de

    dissenses, de rivalidades que tivessem dividido os epicuristas: "Foi ele prprio um

    homem bom, e houve muitos epicuristas, e ainda hoje existem, fiis na amizade e

    em toda a sua vida graves e constantes".0F1 Era de natureza terna, como o atestam a

    sua piedade com os pais, a sua bondade, com os irmos, a sua delicadeza com os

    escravos e em geral a sua humanidade com todos. Parece, por outro lado, ter sido

    muito amvel. Metrodoro de Lmpsaco, desde o dia em que conheceu Epicuro,

    nunca mais o deixou, exceto para uma viagem que fez sua ptria. Na carta a

    Idomeneu, escrita mesmo no dia da morte, dizia ele: "Em nome da amizade que

    sempre me testemunhaste, toma conta dos filhos de Metrodoro".

    Segundo certos comentadores, Epicuro, alm do seu jardim de Atenas, teria

    ainda possudo uma casa de campo em Melite e t-la-ia legado tambm sua escola.

    Mas se examinarmos os planos de Atenas e da tica que foram reconstitudos pelos

    arquelogos, vemos que o nome Melite designa no uma localidade distinta mas

    um bairro da cidade perto da porta ocidental. Achamos, pois, que Epicuro no

    tinha duas propriedades, uma dentro, outra fora das muralhas, mas uma s,

    compreendendo jardim e casa de habitao, situada em Atenas, muito perto da

    extremidade do subrbio.

    Apesar das perturbaes que afligiram a Grcia, Epicuro passou em Atenas

    toda a segunda parte da sua vida, exceto duas ou trs viagens que fez aos confins da

    Jnia, para visitar amigos. No se meteu em assuntos pblicos, no desempenhou

    nenhum papel nas sucessivas revolues da sua ptria, no atraiu sobre ele prprio

    nem sobre os seus amigos o dio de nenhum partido. A sua carreira no foi,

    portanto, assinalada por nenhum acontecimento importante e os historiadores

    antigos no nos contam a seu respeito nenhuma anedota interessante. Durante um

    cerco da cidade, quando os habitantes sofriam cruelmente de fome, alimentou os

    seus discpulos partilhando com eles as provises de favas que tinha tido a

    1 Ccero, De Finibus, II, XXV, 80, 81.

  • precauo de pr de reserva e dando aos outros exatamente o mesmo que guardava

    para si prprio.

    O xito que obteve no foi efmero; prolongou-se sem interrupo durante

    trinta e seis anos; consolou Epicuro dos cruis ataques de uma terrvel doena, a

    pedra; suportou-a com uma grande firmeza e morreu em 270 a.C, no segundo ano

    da 127.a Olimpada, com a idade de setenta e dois anos. Dava desta firmeza sinais

    bem engenhosos e bem delicados. "Durante as minhas doenas", escreve ele, "no

    falava a ningum do que sofria no meu miservel corpo; no tinha essa espcie de

    conversao com aqueles que me vinham visitar: no falava com eles seno daquilo

    que desempenha na natureza o primeiro papel. Procurava sobretudo fazer-lhes ver

    que a nossa alma, sem ser insensvel s perturbaes da carne, podia no entanto

    manter-se isenta de cuidados e no gozo pacfico dos bens que lhe so prprios. Ao

    chamar os mdicos, no contribua com a minha fraqueza para lhes fazer tomar

    ares importantes, como se a vida que eles procuravam conservar-me fosse para

    mim um grande bem. Mesmo nesse tempo vivia eu tranqilo e feliz."

    A sua constncia no se desmentiu mesmo no momento da morte; eis aqui a

    sua ltima carta a Idomeneu: "Este dia em que te escrevo o ltimo da minha vida

    e tambm um dia feliz. Sinto tais dores de bexiga e de entranhas que nem se

    poderia imaginar dores mais violentas; mas estes sofrimentos so compensados

    pela alegria que traz minha alma a recordao das nossas conversaes". Nos

    ltimos tempos da sua vida, no podia nem sequer suportar os vesturios, nem

    descer da cama, nem consentir luz, nem ver lume. Conta Hermarco que, depois de

    ter sido atormentado por dores incessantes durante catorze dias, pediu que o

    metessem numa bacia de bronze cheia de gua quente para dar alguma trgua ao

    mal; em seguida bebeu um pouco de vinho, exortou os amigos a lembrarem-se dos

    seus preceitos e nesta conversao terminou a vida. Guyau compara a serenidade

    da morte de Epicuro de Scrates. Outros historiadores, pelo contrrio, foram at

    o ponto de dizerem que estas prticas constituam um verdadeiro suicdio. No

    somos desta opinio: o recurso a uma morte voluntria em tais circunstncias no

  • teria estado de acordo com os ensinamentos de Epicuro e nada na sua atitude, no

    decurso dos ltimos tempos, nos autoriza a crer que ele queria ter dado a si prprio

    um desmentido to formal. Se tivesse tomado tal caminho, ter-se-ia desacreditado

    aos olhos dos discpulos; a prova de que esta suspeita no penetrou nos seus

    espritos ou no encontrou a nenhuma aceitao a prpria persistncia da escola

    e da venerao pela pessoa do mestre.

    Epicuro tinha trs irmos, que morreram antes dele: Nocles, Caridemo,

    Aristbulo; Plutarco cita-os como modelo de amizade fraternal.

    No seu testamento preocupa-se com assegurar a perpetuidade da sua escola:

    os seus executores testamentrios devero velar por que os jardins fiquem

    propriedade da seita epicurista; sero, pois, ocupados por Hermarco (Epicuro tinha

    primeiro designado como sucessor o seu amigo Metrodoro, mas, como este

    morrera sete anos antes do mestre, este substituiu-o por Hermarco, que tinha

    adotado todas as suas doutrinas); depois dele, passaro quele que lhe suceder

    como chefe de escola: alm disso, todos os epicuristas se reuniro l

    periodicamente para tomar parte em refeies em comum e para celebrar o

    aniversrio da morte do seu chefe, de maneira a alimentarem a amizade que os une.

    Esta amizade, como o faz notar Dugas,1F2 tem caracteres muito especiais: "Nesta

    amizade entra o esprito de seita; os amigos devem ter a mesma f filosfica... Pe

    por condio sua amizade que lhe abracem a doutrina; cumula de benefcios os

    filhos de Metrodoro e de Polieno, mas exige deles que obedeam ao seu sucessor

    Hermarco, que vivam e filosofem com ele; quanto filha de Metrodoro, estar

    tambm submetida a Hermarco; aceitar o marido que ele escolher e esse marido

    ser epicurista". Esta clusula foi observada durante muito tempo. No entanto, na

    poca de Ccero os jardins, que estavam ento em muito mau estado, tinham-se

    tornado propriedade de um romano, C. Memmius. Ccero escreveu-lhe para lhe

    pedir que os restitusse seita epicurista; no sabemos qual foi o resultado desta

    diligncia.

    2 Dugas, L 'Amiti Antique, 1.I, ch. II, p. 33.

  • H mais ainda: Epicuro, que durante a sua vida tinha tomado a seu cargo os

    filhos do seu amigo Metrodoro, recomenda-os aos seus executores testamentrios,

    a fim de que lhes no falte nada. Finalmente, d a liberdade a quatro dos seus

    escravos, trs homens e uma mulher.

    Este testamento faz grande honra a Epicuro, porque est de acordo com

    toda a sua vida; no podemos ver nele uma pea de efeito destinada a tomar de

    surpresa a admirao, e a perturbar o juzo da posteridade. Se Epicuro reuniu sua

    volta um grande nmero de amigos que lhe ficaram fiis, porque de tal foi digno,

    porque era na verdade um homem excelente e os seus inimigos no puderam

    recusar-lhe este testemunho: "Quem nega que ele foi um homem bom, agradvel e

    humano?" 2F3

    No princpio da edio das Animadversiones in librum Diogenis Laertii, de

    Gassendi, publicado em Lio, por Guill. Barbier, em 1649, encontramos um retrato

    de Epicuro segundo um original conservado na coleo du Puy. Usener, no

    frontispcio do seu volume, reproduziu, segundo uma fotografia, um busto em

    bronze de Herculanum, publicado tambm por Comparetti e Petra. Em uma destas

    imagens o filsofo representado de perfil, na outra, de frente. "A cabea", diz

    Chaignet, " forte; as feies, sobretudo o nariz, acentuadas; os lbios espessos; a

    expresso calma, benevolente mais que severa, sincera e simples, mas sem esprito,

    sem graa e sem sorriso; no de admirar que, quando desejava ser amvel e

    gracejar, os seus cumprimentos, como lho censuravam, trassem o esforo e fossem

    um pouco pesados."

    *

    Epicuro tinha agrupado uma multido de discpulos e depois da sua morte a

    prosperidade da escola manteve-se at os ltimos dias do paganismo, embora haja

    sem dvida muito exagero nas frases de Ccero e de Sneca: "Realmente Epicuro,

    numa s casa e esta mesmo pequena, reuniu, pelo consentimento de uma grande

    conspirao de amor, um elevadssimo nmero de amigos; e isto o que mesmo

    3 Ccero, o. c, 1. c.

  • agora acontece com os epicuristas". O nmero de epicuristas despertava

    provavelmente a inveja dos esticos, cujos preceitos austeros no podiam ser

    postos em prtica seno por um raro escol.

    Segundo parece, Epicuro abriu a sua escola alguns anos depois de Zeno.

    Em todo caso, era sensivelmente mais novo do que este ltimo, e morreu muito

    antes dele, porque no viveu seno setenta e dois anos, ao passo que Zeno atingiu

    a idade de oitenta e oito anos. No entanto, o epicurismo no foi uma reao contra

    a severidade dos esticos e nenhum dos dois sistemas exerceu qualquer influncia

    sobre a constituio do outro; provvel que mais tarde no tenha acontecido o

    mesmo, a luta entre as duas escolas rivais tornou-se cada vez mais spera e mais

    encarniada, muitos homens, no se sentindo com foras de aderir ao estoicismo,

    lanaram-se na doutrina oposta; mas no a um sentimento desta natureza que se

    deve atribuir o aparecimento do epicurismo.

    O que nos impressiona primeiro a docilidade com que os discpulos

    aceitaram as doutrinas do mestre e as conservaram sem alterao. O epicurismo

    no tem histria: est todo ele nos ensinamentos de Epicuro e o tempo no lhes

    trouxe nenhuma modificao; nenhum dos epicuristas foi um filsofo original,

    nenhum procurou ganhar qualquer nomeada. No entanto, parece-nos justo

    mencionar alguns dos discpulos imediatos de Epicuro.

    Metrodoro de Lmpsaco, a quem Ccero chama "quase um outro Epicuro" e

    a quem o prprio mestre tinha conferido o ttulo de Sbio. So algumas vezes

    apresentados como sendo dele os fragmentos de um tratado Acerca das Sensaes

    publicados no tomo sexto dos papiros de Herculano, mas a atribuio duvidosa.

    Metrodoro morreu sete anos antes de Epicuro, que no deixou de lhe cuidar dos

    filhos. Existe no Louvre um busto de Epicuro com duplo rosto, representando de

    um lado o mestre, do outro o discpulo inseparvel.

    Polieno, que morreu tambm antes do seu mestre, era um distinto

    matemtico. Hermarco de Mitilene muitas vezes designado pelo nome de

    Hermarco; mas, segundo Zeller, no devem subsistir dvidas sobre o seu nome

  • verdadeiro; foi a ele que coube a direo da escola depois da morte do fundador.

    Ao mesmo grupo pertencia ainda Colotes, contra quem Plutarco devia escrever um

    livro quatrocentos anos mais tarde.

    A admirao pelo gnio do mestre que Lucrcio exprime em tantos passos, a

    adeso sem reservas sua doutrina, so sentimentos comuns a toda a escola.

    Ficavam encantados pelos ensinamentos de Epicuro como se fosse pelo canto das

    sereias; recebiam como verdades incontestveis os princpios formulados pelo

    mestre; a convico que tinham era profunda, o dogmatismo intransigente;

    aprendiam de cor as frmulas do sistema e tinham um grande cuidado em no

    deixar perder nada daquilo que o mestre tinha dito ou escrito; tocar num s ponto

    da doutrina era a seus olhos um verdadeiro sacrilgio. "Epicuro", diz Crousl, "foi

    o fundador e o deus de uma espcie de religio nova... os discpulos de Epicuro

    formavam na realidade uma pequena igreja." Esta docilidade muito nova entre os

    gregos, cujo esprito era audacioso e independente. "A apario e o xito do

    epicurismo atestam", segundo Croiset, "um enfraquecimento notvel do

    pensamento especulativo da Grcia."

    A extrema docilidade dos epicuristas deu motivo a uma singular acusao:

    censuraram-nos de terem considerado Epicuro como um deus e de o terem

    adorado. Sem dvida praticavam-se nessa pequena sociedade certos ritos,

    realizavam-se reunies para festas, para repastos em comum, celebravam-se

    aniversrios, rodeava-se de um verdadeiro culto a memria do mestre, elevavam-se

    esttuas, os discpulos entusiastas traziam sempre sobre eles a sua imagem, ou

    ento um anel, como os escravos forros; diziam que era bem digno do seu nome de

    "auxiliador" (epi-kourios). Alguns evidentemente no souberam parar a tempo em tal

    caminho; nos espritos medocres a superstio depressa se vinga da abolio das

    crenas religiosas. Assim Nocles, irmo de Epicuro, escreveu, segundo se diz, que

    a me tinha sido bem feliz por ter juntado no seu seio os tomos que tinham

    formado um tal sbio. Quanto aos versos de Lucrcio, que iguala Epicuro aos

    deuses e o pe acima de Hrcules ou de Ceres, no podemos ver nisso outra coisa

  • que no seja um brilhante desenvolvimento potico; o que o resto do poema nos

    faz conhecer do carter e dos sentimentos do autor no nos permite ter dvidas

    sobre o sentido destas expresses.

    Mas, segundo se afirma, um dia Colotes lanou-se aos ps do mestre e

    adorou-o; Epicuro teve o maior cuidado em no o desenganar. Responderemos

    primeiro que esta anedota, embora seja contada por Digenes Larcio, no talvez

    muito autntica; pode ser que tenha sido completamente inventada ou que ao

    menos o aspecto lhe tenha sido singularmente alterado pelos seus adversrios. Em

    todo caso. nica e necessrio que no tiremos dela concluses exageradas. Que

    Colotes. que era do nmero dos pequenos espritos de que falvamos h pouco, se

    tivesse deixado levar por um entusiasmo irrefletido, que o prprio Epicuro tenha

    ficado um momento embriagado pelo prestgio que lhe reconheciam os seus

    amigos eis a alguma coisa de muito humano e esta fraqueza passageira no nos

    parece manchar seriamente o valor do sistema.

    Tem havido grande indignao pelo fato de a escola estar aberta s mulheres

    e por vrias terem nela desempenhado um papel importante. Parece desconhecer-se

    a liberdade de que gozavam as mulheres na sociedade ateniense e o gosto que

    manifestaram algumas pela cultura intelectual; parece esquecer-se sobretudo que

    Scrates tinha prazer em conversar com mulheres, mesmo com cortess, e

    especialmente com Aspsia. Havia um grande nmero de mulheres nas escolas de

    Pitgoras e de Plato. Os costumes dos epicuristas no parecem ter sido diferentes

    dos dos seus compatriotas e dos seus contemporneos; seria muitssimo injusto

    acus-los de um crime de prticas que a nossa moral condena, mas que no tinham

    sido eles a introduzir na Grcia. Nada mais falso do que o quadro delineado por

    vrios escritores que representam o jardim de Epicuro como uma espcie de local

    mal freqentado, como o teatro de encontros obscenos. Comparam-nos s

    cavalarias de Augias, a um chiqueiro de porcos; do pormenores precisos que

    fazem honra sua imaginao, mas no ao seu sentido crtico.

  • Acusam-se ainda os epicuristas de se terem entregue aos prazeres da mesa,

    de terem sido familiares com todos os excessos do comer e do beber. fcil diz-

    lo, mas difcil apresentar uma prova. Diz-se que gostavam de se reunir para

    refeies em comum; mas qual era o cardpio destas refeies? Eram festins,

    banquetes, cujo calor comunicativo provoca toda espcie de desvarios de

    linguagem e de comportamento? No eram, antes, reunies cujo principal encanto

    residia no prazer de se tornar a encontrar, de estarem juntos pela comunidade das

    idias e dos sentimentos? Da sobriedade do prprio Epicuro temos ns provas

    irrecusveis: gastava pouqussimo na sua alimentao diria: "Hermarco", escreveu

    ele, "gaba-se de gastar s um asse por dia na sua alimentao; mas eu nem mesmo

    um asse gasto". Contentava-se muito bem com po e gua; pede a um dos seus

    amigos que lhe envie um queijo para os dias em que se quiser ofertar um mimo

    especial. No pelo atrativo da boa comida que ele pretendia atrair os seus

    discpulos; era nestes termos que ele resumia o programa da sua escola:

    "Estrangeiro, aqui te encontrars bem: aqui reside o prazer, o bem supremo.

    Encontrars nesta casa um mestre hospitaleiro, humano e gracioso, que te receber

    com po branco e te servir abundantemente gua clara, dizendo-te: No foste bem

    tratado? Estes jardins no foram feitos para irritar a fome, mas para a apaziguar,

    no foram feitos para aumentar a sede com a prpria bebida, mas para a curar por

    um remdio natural e que nada custa. Eis aqui a espcie de prazer em que eu tenho

    vivido e em que envelheci".

    certo que se no poderia dizer o mesmo de todos os epicuristas; houve

    muitos cujas desordens explicam e justificam a m reputao da escola. Mas, como

    Sneca nota muito judiciosa-mente, no foi por uma fiel aplicao dos princpios de

    Epicuro que eles se abandonaram s suas paixes; procuram, pelo contrrio, colorir

    as suas paixes com o nome de epicurismo que eles usurparam. Seria injusto tornar

    o mestre responsvel pelo procedimento destes pretensos discpulos, tanto mais

    que os adversrios do epicurismo abusaram estranhamente desta palavra: afetaram

    confundir com os epicuristas personagens cujo procedimento e cujo carter nada

  • tinham de filosfico, revestindo com o nome homens que no cuidavam de

    nenhum sistema nem de nenhuma doutrina. No nos venham, portanto, falar mais

    dos porcos do rebanho de Epicuro: estes porcos, porque muitos no mereciam

    outro nome, no eram epicuristas.

    Para bem se compreender o carter do epicurismo, para lhe explicar o xito

    maravilhoso e duradouro, preciso considerar as circunstncias em que foi

    concebido e ensinado. Era alguns anos depois das prodigiosas conquistas e da

    morte sbita de Alexandre, enquanto os generais disputavam entre si e partilhavam

    a sua herana. As repblicas gregas tinham perecido uma aps outra; j no havia

    em parte nenhuma nem liberdade nem vida poltica. A antiga religio j no tinha

    crentes e no podia satisfazer aos espritos. Tambm tinha passado o tempo das

    grandes construes especulativas. Plato tinha morrido em 347 a.C, sete anos

    antes do nascimento de Epicuro, Aristteles em 322 a.C; nenhum metafsico

    original lhes tinha sucedido. O pensamento grego manifestava numerosos sinais de

    lassido. Os filsofos que continuavam a ensinar na Academia e no Liceu no

    tinham iniciativa e cada vez amesquinhavam mais as doutrinas de seus mestres. J

    no havia interesse seno pelas questes que diretamente dizem respeito vida

    prtica; e, como h duas espcies de esprito, duas maneiras de encarar a natureza

    do homem e as suas relaes com o conjunto das coisas, surgiram dois sistemas

    opostos que foram acolhidos com entusiasmo por um grande nmero de adeptos,

    o epicurismo e o estoicismo: a origem e o desenvolvimento destes dois sistemas so

    exatamente contemporneos e paralelos. Ainda mais: o epicurismo e o estoicismo

    so de todos os tempos; as duas doutrinas contam ainda nos tempos modernos um

    grande nmero de partidrios.

    A. Croiset, na sua Histria da Literatura Grega, diz que o princpio da moral

    epicurista era fundamentalmente perigoso e que fez ao mundo antigo muito mal.

    Pensamos, pelo contrrio, que a voga do epicurismo e, no hesitamos em diz-lo, a

    transformao que ele sofreu so o efeito e no a causa da decadncia dos

    costumes. Eis o que sobre o assunto escreveu Curtius: "Todos os nobres

  • sentimentos que tinham florescido na Grcia tinham a sua razo de ser na idia de

    Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que

    viu que j no tinha ptria e que a prpria vida municipal estava decaindo, perdeu

    todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto

    da vida de pequena cidade, eis o que a multido se ps a procurar. Todos os nobres

    instintos se foram enfraquecendo de dia para dia".

    Droysen traa um quadro mais sombrio ainda do estado da Grcia no

    comeo do sculo IV: "As massas empobrecidas, imorais; uma juventude

    asselvajada pelo mister de mercenrios, estragada pelas cortess, desequilibrada

    pelas filosofias em moda; uma dissoluo universal, uma ruidosa agitao, uma

    febril exaltao a que sucedem a distenso e uma estpida inrcia, tal o quadro

    deplorvel da vida grega nessa altura... (Em especial em Atenas) estas duas coisas, a

    leviandade mais frvola e de maior abandono, e a cultura delicada, amvel e

    espirituosa que se designou depois com o nome de aticismo, so os traos

    caractersticos da vida de Atenas durante o domnio de Demtrio de Falero. uma

    questo de bom-tom visitar as escolas dos filsofos; o homem da moda

    Teofrasto, o mais hbil dos discpulos de Aristteles, que sabe tornar popular a

    doutrina de seu ilustre mestre, rene mil ou dois mil alunos sua volta e que mais

    admirado e mais feliz do que nunca o foi seu mestre. No entanto, este Teofrasto e

    uma quantidade de outros professores de filosofia eram eclipsados por Stilpon de

    Megara. Quando Stilpon vinha a Atenas, os artfices deixavam as suas oficinas para

    v-lo e todos os que podiam acorriam para o ouvir; as heteras afluam s suas lies

    para o ver e para serem vistas em sua casa, para exercerem na sua escola o vivo

    esprito que fazia o seu encanto na mesma medida dos vesturios sedutores e da

    arte de reservar os seus ltimos favores. Estas cortess gozavam da companhia

    habitual dos artistas da cidade, pintores e escultores, msicos e poetas; os dois

    autores cmicos mais clebres do tempo, Filmon e Menandro, louvavam

    publicamente nas suas comdias os encantos de Glicera e disputavam-se

    publicamente os seus favores, prontos a esquec-la por outras cortess no dia em

  • que ela encontrava amigos mais ricos do que eles. Da vida de famlia, da castidade,

    do pudor j se no fala em Atenas; talvez se mencionem; toda a vida se passa em

    frases e em ditos graciosos, em ostentao e em agitada atividade. Atenas lana aos

    ps dos poderosos a homenagem dos seus louvores e do seu esprito e aceita como

    recompensa os seus dons e as suas liberalidades... Apenas se temia o tdio ou o

    ridculo e tinham-se os dois at saciedade. A religio tinha desaparecido e o

    indiferentismo do livre-pensamento no tinha feito seno desenvolver ainda mais a

    superstio, o gosto da magia, das evocaes e da astrologia; o fundo srio e moral

    da vida, expulso dos hbitos, dos costumes e das leis, pelo raciocnio, era estudado

    teoricamente nas escolas dos filsofos e tornava-se objeto de discusses e de

    querelas literrias".3F4 "O epicurismo", diz por seu lado Denis. "no corrompeu nada

    e no matou nada na Grcia porque j no havia mais nada para corromper e para

    matar."4F5

    O mrito de Epicuro est em ter compreendido que havia alguma coisa que

    reclamava um grande nmero de espritos e em ter-lhes dado satisfao de uma

    forma admirvel. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser

    felizes; a felicidade o ltimo termo das suas aspiraes; mas, como so

    inteligentes, no podem recusar o terem em conta as exigncias do seu esprito; no

    poderiam ser completamente felizes se no dessem uma razo plausvel da sua regra

    de procedimento; sentem a necessidade de conceber uma explicao do espetculo

    que apresentam os seres e os fenmenos do mundo, mas no apresentam muitas

    dificuldades, no so muito exigentes em matria de explicao; contentam-se de

    boa vontade com a primeira teoria que lhes propem, que julgam compreender e

    que aceitam com confiana; no se do ao trabalho de a complicar, de a

    aprofundar; se as suas doutrinas apresentam algumas contradies, no do por

    isso ou no se inquietam com a sua resoluo. O epicurismo trazia-lhes

    precisamente aquilo que eles pediam: " aberta e simples e direta via", diz Ccero.5F6

    Na luta contra o estoicismo, os epicuristas conservaram uma atitude mais defensiva 4 Droysen, Histoire de l'Hellnisme. Trad. Bouch-Leclerc, t. II, I. III, ch. III. 5 J. Denis, Histoire des Ides Morales dans s 'Antiquit, l'Antiquit, I, p. 298. 6 Ccero, De Finibus, I, XVIII, 57.

  • que ofensiva; respondiam s acusaes dos seus adversrios, mas de modo algum

    empreendiam a crtica dos dogmas sobre os quais estes fundavam o seu sistema.

    Tais homens, considerando a imensidade do universo e o pequeno lugar que ns

    temos dentro dele, a impossibilidade em que ns estamos de triunfar sobre as

    foras e as leis da natureza, no empreendem a luta; facilmente se acomodam com a

    nossa fraqueza, procuram adaptar-se o melhor possvel s condies que nos foram

    determinadas e fazem o possvel por passar agradavelmente o pouco tempo que

    ns temos para viver. Alguns dentre eles so homens de um esprito muito fino e

    muito delicado; o que lhes falta a energia da vontade. Muitas vezes se lhes tm

    acusado de covardia: proferir uma palavra bastante violenta que no parece

    justificada. O epicurista no um covarde: primeiro, trabalha por se libertar dos

    temores que tornam to infelizes a maior parte dos homens; depois, se acontece ser

    atingido por algum infortnio, procura consolar-se sem fazer esforos sobre-

    humanos e sem se enganar a si prprio com frases ambiciosas. Compreende-se,

    pois, a averso que inspira tal sistema queles cujo carter feito sobretudo de

    altivez e coragem, que tm uma idia mais alta da dignidade do homem, que no se

    propem outro objetivo seno o de ser fortes, e queles tambm que, convencidos

    de que o nico objeto digno de ns o conhecimento da verdade, pem as

    investigaes cientficas acima da busca da felicidade.

    Epicuro um dos escritores mais fecundos da Antigidade: tinha composto

    mais de trezentos tratados e estas obras eram realmente dele, no as aumentava por

    meio de citaes tiradas aos seus antecessores. Tambm Crisipo escreveu muito,

    porque no queria parecer inferior em nada aos seus adversrios; mas seus livros

    eram antes rplicas, polmicas, do que exposies sistemticas; alm disso, a sua

    abundncia era mais aparente que real, porque muitas pginas estavam cheias de

    citaes tomadas aqui ou alm.

    Digenes Larcio transmitiu-nos os ttulos dum certo nmero de obras de

    Epicuro: um Tratado da Natureza, em trinta e sete livros, sobre os tomos e o vcuo,

    resumo do que se escreveu contra os fsicos; objees dos megarenses; dos deuses,

  • da santidade, dos fins, das maneiras de viver (quatro livros), da justia e das outras

    virtudes, dos dons do reconhecimento, da msica; depois, livros intitulados

    Queredemo, Hegesianax, Nocles, Eurloco, Aristbulo, Timcrates (trs livros),

    Metrodoro (cinco livros), Andidoro (dois livros), Anaxmenes: impossvel arriscar

    a menor conjetura sobre qual fosse o objeto de cada uma destas obras. Alm disso,

    o mesmo historiador reproduz textualmente, como j o dissemos, uma carta a

    Herdoto, uma a Ptocles, uma a Meneceu, uma coletnea de mximas principais e

    o testamento do filsofo. Mas, ao passo que os epicuristas estudavam

    religiosamente todos os escritos do seu mestre e no liam outros, todos os outros

    filsofos professavam o mais profundo desdm pelos livros de Epicuro e de seus

    discpulos. Os admiradores fanticos de Epicuro dizem que ele arruinou a sade

    fora de trabalhar; provavelmente um erro; mas no menos falsa a lenda

    segundo a qual as suas doenas tiveram por causa a sua devassido e o seu amor

    imoderado pelos prazeres da mesa.

    Epicuro no deve ser contado entre os bons autores: desprezava a glria

    literria e no se dava ao cuidado de apurar o seu estilo: "No me dou ao trabalho

    de escrever", dizia ele; "no havia necessidade nenhuma de ter educao literria

    aquele que pretendia ser filsofo".6F7 Improvisava e no fazia correes. Fazia pouco

    caso das artes, o que se lhe censurou muitas vezes e o que nos pode admirar da

    parte de um grego. No esqueamos que, se Epicuro ensinava em Atenas, no tinha

    nascido na cidade e no tinha passado nela a sua mocidade; a sua primeira educao

    tinha sido muito sumria; talvez por isso que o seu estilo e o seu gosto deixavam a

    desejar. Acusam-no de escrever mal, de empregar termos baixos, locues

    incorretas; outras vezes censuram-no por ter introduzido vrios neologismos: esta

    uma crtica que se no pensaria em dirigir hoje a um filsofo ou a um sbio. A

    maior parte dos antigos est de acordo em reconhecer-lhe o mrito da clareza;

    Ccero contesta-lho muitas vezes, mas no sempre: "Exprime nas suas palavras o

    que deseja e diz claramente o que hei de entender".7F8 Parece, com efeito, que, dado

    7 Ccero, De Finibus, II, IV, 12. 8 Ccero, op.cit.,I,V, 15.

  • o carter que procurou imprimir ao seu sistema e espcie de discpulos a que faz

    apelo, o que ele pretende, acima de tudo, a clareza. "Tem nervo e energia", diz

    Croiset, "mas, de nenhum modo, emoo ou imaginao."

    As suas graas so raras e pesadas, e nada h nele que lembre a ironia

    socrtica. Que h na aparncia de mais claro e de mais simples do que o

    epicurismo? Ao se refletir melhor apresentam-se muitas dificuldades e formulam-se

    perguntas s quais o mestre no d seno uma resposta evasiva: as explicaes

    parecem-nos muitas vezes insuficientes, mas ele no se detm por to pouco.

    Certos autores, entre outros Plutarco, censuram-no por se no ter dado ao trabalho

    de estudar e de refutar as teorias dos seus antecessores, sobretudo de Plato e de

    Aristteles; uma crtica qual no teria sido sensvel, porque no fazia caso da

    erudio e declarava intil a investigao curiosa da histria. No tinha estudado as

    matemticas que so, segundo Plato, o vestbulo da filosofia. Alguns

    comentadores, interpretando certos textos de Ccero, pensam que Epicuro tinha

    um ensino exotrico e um ensino esotrico. Clemente de Alexandria diz que os

    epicuristas tinham doutrinas secretas que no revelavam ao vulgo e tomavam o

    maior cuidado em no escrever; no nos parece que isto seja verossmil.

    Epicuro no um filsofo original: nenhuma das suas teorias deixou de ser

    bem antes dele ensinada por algum outro; e, no entanto, se no imaginou uma

    teoria prpria sobre os princpios das coisas, no nos apressemos a concluir que o

    seu gnio no era bastante poderoso para que o fizesse; no dava, conforme

    dissemos, grande importncia ao estudo das cincias naturais e no lhes reconhecia

    valor seno na medida em que elas trazem moral um auxlio necessrio. Ocupou-

    se, pois, longamente das questes de fsica; o seu tratado Da Natureza no tinha

    menos de trinta e sete livros. Todos os historiadores esto de acordo sobre um

    ponto, o de que ele no fez progredir nem a cincia nem a filosofia; mas tambm

    no manifestou nunca tais ambies. Gabava-se, segundo se diz, de no dever nada

    a ningum, de ser o nico autor do seu sistema e no se cansava de troar, mais ou

    menos espirituosamente, de todos os filsofos anteriores: no h nisto uma

  • contradio que no precisamente em seu abono? Dizia que Nausfanes no era

    mais do que um pulmo, sem dvida por causa da fora e da beleza da voz; Plato,

    um homem de ouro, amigo do fausto; Aristteles, um devasso, que tinha devorado

    todo o seu patrimnio; Pro