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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA GISLAINE GONÇALVES DIAS PINTO PERSEGUIÇÃO, NOBILITAÇÃO E A MÁCULA DE SANGUE CRISTÃO-NOVO: a trajetória da família Pessoa Tavares (1706-1816) Belo Horizonte 2016

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS...Foi uma experiência feliz ao seu lado. À minha companheira canina, Ofélia! Por ter, literalmente falando, ficado no meu colo em todas as horas

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-

GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

GISLAINE GONÇALVES DIAS PINTO

PERSEGUIÇÃO, NOBILITAÇÃO E A MÁCULA DE SANGUE

CRISTÃO-NOVO:

a trajetória da família Pessoa Tavares (1706-1816)

Belo Horizonte

2016

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GISLAINE GONÇALVES DIAS PINTO

PERSEGUIÇÃO, NOBILITAÇÃO E A MÁCULA DE SANGUE

CRISTÃO-NOVO:

a trajetória da família Pessoa Tavares (1706-1816)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em História da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Federal de Minas Gerais, como requisito para

obtenção do grau de Mestre em História.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Júnia Ferreira Furtado

Belo Horizonte

2016

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907.2

P659p

2016

Pinto, Gislaine Gonçalves Dias

Perseguição, nobilitação e a mácula de sangue cristão-

novo [manuscrito] : a trajetória da família Pessoa Tavares

(1706-1816) / Gislaine Gonçalves Dias Pinto. - 2016.

162 f. : il.

Orientadora: Júnia Ferreira Furtado.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas

Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Inclui bibliografia

1.História – Teses. 2. Convertidos ao cristianismo do

judaísmo - Teses. 3.Inquisição - Teses. I. Furtado, Júnia

Ferreira . II. Universidade Federal de Minas Gerais.

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

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À Maria e José Geraldo, por todo amor e dedicação,

por serem tão fortes, por terem lutado tanto, por me

darem a oportunidade que nunca tiveram.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente ao Departamento de História da UFMG, tanto aos professores

quanto aos funcionários, pelos anos de aprendizagem. À CAPES, por ter proporcionado a

bolsa, sem a qual meu estudo seria inviabilizado.

À minha orientadora, Profa. Dra. Júnia Ferreira Furtado, que com tanto respeito e

dedicação auxiliou-me durante o processo de pesquisa e escrita. Que nas reuniões chamou

minha atenção para meus equívocos e também elogiou meus acertos.

Aos colegas de curso, de graduação e pós-graduação, que tanto contribuíram para

minha trajetória acadêmica. Não conseguirei lembrar o nome de todos, mas saibam, que de

uma forma ou de outra vocês fazem parte deste caminho que estou trilhando. Em especial,

gostaria de agradecer ao pessoal da Oficina de Paleografia, pelos dois anos de aprendizagem e

realizações: Fabiana Léo, Mateus Frizzone, Igor Nefer, Ludmila Torres, Douglas Lima,

Leandro Gonçalves, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli, Maria Clara, Gabriel Afonso. Todos

contribuíram de maneira especial para minha vida.

Aos amigos do Grupo NINFA, que me abraçaram nesse projeto tão lindo e frutífero,

sem o qual eu não teria elaborado meu projeto de doutorado. Um muitíssimo obrigado por

todo apoio e divertimento que encontrei em vocês: Kellen Silva (minha Musa), Denise

Aparecida (Denão do meu coração), Weslley Fernandes (meu muso), Marcus Ítalo (meu

fiote), Luísa Rabello (linda ninfa, mulher forte), Gabriela Castro (doce ninfa), Clara Abrahão

(ninfa dedicadíssima), Mônica Lage (ninfa maravilhosa). Vocês reafirmam minha fala de que

o mundo acadêmico pode ser muito generoso e nada solitário!

Aos meus amigos Rafael, Raquel e Michel, que me proporcionaram horas de bate-

papos divertidos, sérios e instrutivos.

Ao Bruno Duarte (meu Bruno), por ter divido comigo os receios de ministrar uma

disciplina na graduação. Foi uma experiência feliz ao seu lado.

À minha companheira canina, Ofélia! Por ter, literalmente falando, ficado no meu colo

em todas as horas de escrita. Por me fazer sair da frente do computador quando eu já estava

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para surtar. Por me fazer caminhar no parque. Por me acompanhar até mesmo nos bares!

Espero que eu proporcione tanta alegria à sua vida, quanto você proporciona à minha.

Aos meus amigos Tatiana Corrêa e Gilson Ribeiro, e suas duas princesas Bia e Sofia!

Vocês quatro são minha família de coração. Amo muito vocês!

Aos meus avós José Epaminondas e Ana Dias. O que dizer de vocês? O que dizer da

força de ambos? O que dizer de um senhor que aos 86 anos é griô, tem uma memória

fantástica, uma disposição física impressionante e um caráter tão bom? O que dizer de uma

senhora com 85 anos que esbanja bom humor, disposição – apesar das agruras – e dedicação

aos seus? Eu não poderia ter nascido no seio de uma família melhor. Eu não poderia ter avós

melhores.

Aos meus tios, irmãos de meu pai: Bárbara, Afonso, Nilson, Tião, Dilton, Aparecida,

Josefina. Os Pinto! Obrigada por me ensinarem que na vida, o que não pode deixar é faltar é

honestidade e caráter. Por me ensinarem que ter uma origem menos favorecida deve ser mais

um motivo para lutar por nós e pelos outros.

Aos meus tios Nair Gonçalves, Terezinha Gonçalves e José Luziano. Vocês me

ajudaram a ser uma pessoa honesta, lutadora, persistente e muitas vezes teimosa! Sempre

dispostos a me ajudar, me dar apoio e também broncas. Minha índole foi formada, também,

pelos ensinamentos de vocês. Ao meu tio Dinho, que não está mais entre nós, com quem eu

convivi pouco, mas que nunca saiu de minha memória.

Aos meus irmãos de coração, Ludmila Gonçalves e Fábio Gonçalves. Você, Lu,

sempre despertou minha admiração, seja pela sua dedicação à sua profissão, seja pela

dedicação e amor à família. Você é uma das pessoas com o caráter mais lindo que eu conheço.

Fabinho, agradeço imensamente sua disposição em me ajudar sempre que peço socorro, sua

força de vontade me inspira. Além disso, vocês deram a mim o maior presente da vida, o

Gabriel. Esse guri que chegou em minha vida para deixá-la de ponta cabeça! Se hoje desejo

ser um ser humano melhor é por causa dele! Se hoje, mais do que nunca, quero lutar por um

mundo mais justo, é por causa dele.

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À minha irmã Gisele Gonçalves, que me compreende como poucos. Que mesmo com

seu jeito meio turrão, meio mal humorado, está sempre disposta a ajudar. Sua contribuição

para minha vida é imensurável. Tenho imenso orgulho de ser sangue do seu sangue.

Agradeço ao meu companheiro – de vida, de gole, de sufoco – Cristiano Elias de

Paulo. Muito obrigada por me ensinar tanto! Minha admiração por você não cessa nem nos

momentos de atrito. Esses seis anos – eu acho – de convívio foram intensos, cheios de

mudanças, apertos, sem fantasias nem ilusões, sem superestimação, sem cobranças

desnecessárias, extremamente reais e sólidos.

Por fim, agradeço aos meus pais Maria Gonçalves e José Geraldo. Pela dedicação,

força, compreensão, apoio e amor incondicional. Por serem capazes de me amar mesmo nos

momentos em que sou insuportável. Por apoiarem meus planos malucos. Por me incentivarem

a nunca desistir. Por terem dedicado seu tempo trabalhando para que eu pudesse estudar e

conquistar aquilo que foi negado a vocês. Por, inclusive, me fazerem ver os privilégios que eu

tive e tenho em comparação à realidade que vocês tiveram. Por me incentivarem a conquistar

mais, a me empenhar mais, a não abaixar a cabeça e nem me humilhar perante aqueles que

querem nos menosprezar, nos explorar. Vocês nunca esmoreceram perante a violência

simbólica de alguns, nem diante do preconceito de outros. O que eu sou hoje é fruto da luta de

vocês.

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Aproveitemos enquanto é tempo. Representar

dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que

estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel.

Samuel Beckett

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RESUMO

Esta dissertação trata da trajetória de uma família de mercadores cristãos-novos que foi

perseguida pelo Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, ao longo dos séculos XVI, XVII e

XVIII. Alguns membros desta família conquistaram grande poder econômico em finais do

século XVIII e início do XIX. Este poder econômico proporcionou-lhes uma substancial

mudança de status social, pois diversos de seus membros receberam títulos honoríficos, por

meio de mercês régias, em troca de serviços prestados à Coroa.

Tendo esta família como objeto de pesquisa, nossa dissertação abordará diversas

questões, sendo que uma delas concerne ao modo como a perseguição aos cristãos-novos se

reproduziu tanto nas instituições quanto na sociedade civil – principalmente entre a nobreza –

de modo a dificultar a integração dos descendentes de cristãos-novos nos quadros deste estado

num período em que a própria distinção entre conversos e cristãos-velhos já estava extinta.

Nosso objetivo é analisar a trajetória desta família para que possamos discutir sua

ascensão social e problematizar acerca dos processos de nobilitação de seus membros. Desta

forma, analisaremos a inserção dos judeus e cristãos-novos na sociedade portuguesa, na

Época Moderna, e debater sobre a criação e consolidação do Tribunal do Santo Ofício –

principalmente no que se refere à perseguição aos cristãos-novos. Para tal, apresentaremos os

processos inquisitoriais (provenientes do fundo “Tribunal do Santo Ofício”, do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo) movidos contra os membros da família Pessoa Tavares. Nosso

marco temporal tem como início o ano de 1706 – quando do processo de Sancho Pessoa.

Discutiremos, também, a questão da mobilidade social e a integração dos descentes de

cristãos-novos na nobreza. Para isso analisaremos os processos de Habilitação na Ordem de

Cristo (1775) e o Auto de Justificação de Nobreza (1792) (ambos resguardados no fundo

“Registro Geral de Mercês”, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo) de Gaspar Pessoa

Tavares imiscuindo tal análise à legislação vigente e às questões sociais que envolviam esses

tipos de processos. Chegaremos, por fim, até o ano de 1716, quando analisaremos um

processo difamatório pelo qual passou Gaspar Pessoa, quando ele pretendeu casar sua filha

com um rapaz de nobreza mais antiga.

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Os pontos centrais da dissertação são os seguintes: a disputa ideológica acerca dos

elementos que caracterizavam um indivíduo como nobre – ou que o descaracterizam; quais os

elementos filosóficos e culturais orbitavam a questão da mobilidade social no Antigo Regime;

a trajetória de Gaspar Pessoa Tavares; a necessidade de busca de uma origem nobre em

tempos que as inquirições de genere não poderiam impedir o acesso de um descendente de

cristão-novo à nobreza; a não identificação social entre os nobres de linhagem e os

nobilitados. Tais pontos serão fundamentais para a apresentação de nossa tese, qual seja: a

perpetuação do preconceito de sangue contra os descendentes de cristãos-novos na sociedade

portuguesa após Leis de 1773 e 1774.

Palavras-chave: cristãos-novos; Inquisição; nobilitação

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ABSTRACT

This dissertation is about a trajectory of a family of Christian-New merchants that was

persecuted by the Holy Office in Portugal, during the sixteenth, seventeenth and eighteenth

centuries. Some members of this family conquered mighty power in the late eighteenth and

early nineteenth centuries. This economic power provided a substantial change in social status

so that they would receive honorific titles through royal favors in exchange for services

rendered to Crown.

With this family as the object of our research, our dissertation will have a several

questions, one of which is related to the way a persecution of the New Christians has been

reproduced as much in relations as in civil society - especially among the nobility - in order to

Integration of the Descendants of New Christians into the cadres of this state in the period

when the very distinction between converts and Old Christians was already extinct.

Our objective is to analyze the trajectory of this family so that we can discuss their

trajectory of social ascension and to problematize your processes of nobilitation. In this way,

we will analyze the insertion of Jews and New Christians in Portuguese society in the Modern

Era, and discuss the creation and consolidation of the Court of the Office - especially with

regard to the persecution of New Christians. For the investigation processes (of the archival

fund “Tribunal do Santo Ofício”, of the Arquivo Nacional da Torre do Tombo) filed against

the members of the Tavares family. Our timeframe as beginning and year 1706 - when the

process of Sancho Pessoa.

We will also discuss the issue of social mobility and the integration of the descendants

of New Christians into the nobility. For this purpose, we will analyze the processes of

habilitation in the Order of Christ (1775) and the Auto de Justification de Nobreza (1792)

(both kept in the archival fund Registro Geral de Mercês, do Arquivo Nacional da Torre do

Tombo) by Gaspar Pessoa Tavares interconnect such analysis to the current legislation and to

the social issues that involved these types of processes. We will finally reach the year 1716,

when we will analyze a slanderous process through which Gaspar Pessoa passed, when he

intended to marry his daughter with an older boy of nobility.

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The central points of the dissertation are: the ideological dispute about the elements

that characterized an individual as noble - or that de-characterize it; Which philosophical and

cultural elements orbited the question of social mobility in the Old Regime; The trajectory of

Gaspar Pessoa Tavares; The need to search for a noble origin in times that the inquiries of

genere could not prevent the access of a descendant of new-christian to the nobility; The non-

social identification between noblemen of lineage and the noble ones. These points will be

fundamental for the presentation of our thesis: the perpetuation of blood prejudice against the

descendants of new-christians, in Portuguese society, after Laws of 1773 and 1774.

Keywords: New Christians; Inquisition; nobilitation

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LISTA DE ABREVIATURAS

ADB – Arquivo Distrital de Braga

AHM – Arquivo Histórico Militar

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Doc – Documento

Mç – Maço

Proc – processo

TSO – Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Coimbra

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LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS

FIGURAS

Fig. 1. Comunas e Judiarias da Beira interior ..................................................................... p.47

Fig.2 Árvore genealógica de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim...................................... p.51

Fig.3 Localidades visitadas por Sancho Pessoa da Cunha em suas viagens de negócio .... p.54

Fig. 4 – Assinatura de Sancho Pessoa da Cunha ................................................................ p.60

Fig. 5 – Localidades visitadas por Gabriel Tavares Pessoa em suas viagens de negócio ... p.65

Fig. 6 Genealogia apresentada por Gaspar Pessoa Tavares no Auto de Justificação de Nobreza

............................................................................................................................................. p.123

GRÁFICOS

Gráfico 1 – Número de cristãos-novos naturais e/ou moradores do Fundão presos pelo Santo

Ofício.................................................................................................................................... p.49

Gráfico 2 – Número de denúncias por judaísmo contra Gabriel Tavares Pessoa ................ p.69

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. p.15

1. A INQUISIÇÃO E OS CRISTÃOS-NOVOS: OS CASOS DA FAMÍLIA PESSOA

TAVARES .......................................................................................................................... p.29

1.1 Da chegada dos Seferadim à Sefarad ao estabelecimento da Inquisição Moderna ........ p.30

1.2 O estabelecimento e a consolidação da Inquisição Moderna em Portugal: uma teia de

forças e motivações ........................................................................................................ p.39

1.3 Os Pessoa Tavares e o Fundão: os personagens e o cenário .......................................... p.45

1.4 Pelos caminhos de Sancho Pessoa ................................................................................. p.52

1.5 Os processos de Gabriel Tavares Pessoa: um mercador do Fundão na Praça de Lisboa p.62

2. A POLÍTICA POMBALINA: MUDANÇAS NO ESTATUTO SOCIAL DOS

HOMENS DE NEGÓCIO E DOS CRISTÃOS-NOVOS ............................................... p.74

2.1 A ascensão social como problema na ordem hierárquica: a questão da nobilitação....... p.76

2.2 A política econômica de Pombal e os “homens de negócio” ......................................... p.87

2.3 O estatuto social dos homens de negócio e o fim da distinção entre cristãos-novos e

cristãos-velhos ...................................................................................................................... p.93

3 QUANDO A HONRA E O VIVER À “LEI DA NOBREZA” NÃO APAGAM A

MÁCULA DE SANGUE: O CASO DE GASPAR PESSOA TAVARES ................... p.100

3.1 A Ordem de Cristo e o estatuto de “limpeza de sangue” ............................................. p.101

3.2 A trajetória de Gaspar Pessoa Tavares: de negociante de grosso trato a Cavaleiro da

Ordem de Cristo ................................................................................................................. p.105

3.3 Viver à “Lei da Nobreza”: a justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares ........ p.116

3.4 O Fidalgo Cavaleiro da Casa Real e a mácula de sangue ............................................ p.124

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... p.139

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... p.142

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INTRODUÇÃO

O texto que aqui apresentamos é fruto de uma pesquisa iniciada em 2013, quando, ao

analisar estudos acerca da presença dos cristãos-novos em Portugal, na Época Moderna,

surgiu a indagação acerca do processo de Justificação de Nobreza de um descendente de

cristãos-novos, cuja família havia sido presa nos cárceres do Santo Ofício na primeira metade

do século XVIII por crimes de criptojudaísmo. Este indivíduo, bastante referenciado em obras

de historiadores portugueses1 por ser negociante de grosso trato da Praça de Lisboa, chamava-

se Gaspar Pessoa Tavares. Os investimentos comerciais e apoio dado por ele aos

empreendimentos da Coroa permitiram-lhe conseguir foro de fidalgo cavaleiro da Casa Real,

Carta de Armas, senhorio honorífico, além de outras honrarias.

Deparamos com este nome quando, por curiosidade, analisávamos a genealogia de

Fernando Antônio Nogueira de Seabra Pessoa, o poeta português de heteronímia ímpar.

Gaspar Pessoa Tavares era neto de Sancho Pessoa, indivíduo muito citado nas obras

biográficas de Fernando Pessoa. João Gaspar Simões2, assim como outros biógrafos do poeta,

buscou em Sancho Pessoa a origem do desassossego, das mil faces de Pessoa (o poeta)

ligando-as a uma personalidade que o biógrafo acreditava ser típica dos cristãos-novos. A

professora Anita Novinsky3 também associou a obra do poeta à identidade marrana,

remetendo-se ao caso de Sancho Pessoa e de um sobrinho deste, Martinho da Cunha de

Oliveira – outro cristão-novo referenciado em estudos no Brasil devido à sua atividade no

mercado de diamantes nas Minas Gerais. Ao buscar por mais informações genealógicas

acerca desta família, encontramos diversos sujeitos envolvidos em crimes de criptojudaísmo e

que, por este motivo, sofreram perseguição por parte do Tribunal do Santo Ofício. Aqui, o

método onomástico, sugerido por Carlo Ginzburg, foi fundamental para o desenvolvimento da

pesquisa, pois tomamos como premissa que o nome pode ser entendido como “bússola para o

caminhar do indivíduo por entre múltiplos campos, sistemas e configurações sociais”4.

1 Ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o patrimônio da Aristocracia em

Portugal (1750-1832). Lisboa: Temas Portugueses, 2003. p. 426-427. 2 SIMOES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. Lisboa: Bonecos Rebeldes, 2011. 3 NOVINSKY, Anita. Fernando Pessoa: o poeta marrano. In: CORNELSEN, Elcio; NASCIMENTO, Lyslei

Nascimento (Orgs.). Estudos Judaicos: ensaios sobre literatura e cinema. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005. 4 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História: possibilidades, limites e tensões. In:

Dimensões, vol. 24, 2010, p.166. Cf. GINZBURG, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL,

1991, p. 169-178.

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Quando nosso interesse voltou-se para o processo de Sancho Pessoa, devido às questões

acima referidas, buscamos por informações sobre seus filhos, pois nosso interesse era saber se

os mesmos haviam sido presos pelo mesmo crime, hipótese que se confirmou quando

encontramos os processos inquisitoriais destes através do sistema de busca do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo. Assim, chegamos ao nome de Gabriel Tavares, conhecido

negociante da Praça de Lisboa5, e ao procurarmos pelos nomes dos seus filhos notamos que os

mesmos haviam conseguido o Hábito na Ordem de Cristo e a Justificação de Nobreza, após

edição das Cartas de Lei de 1773 e de 17746.

No caso da família Pessoa Tavares, um dos primeiros de seus membros a conseguir tais

honras foi Gaspar Pessoa Tavares. Desta forma surgiu nosso interesse em analisar o percurso

de tais indivíduos e discutir a transformação social desta família, antes perseguida por sua

origem judaica e/ou cristã-nova, mas que posteriormente adquiriu status de nobreza e

estabeleceu uma forte relação social com os membros mais destacados da sociedade

portuguesa à época. Buscaremos compreender quais as “estratégias” utilizadas por estes

indivíduos para que tal processo fosse possível. Chamamos a atenção para o fato de que ao

utilizamos o termo estratégia não estamos afirmando que esses atores possuíam a capacidade

de governar plenamente sua trajetória, mas assim

como nós mesmos hoje, os atores do passado dispunham de certo número de

recursos, cuja natureza e volume variavam e eram submetidos a pressões

igualmente desiguais no seio de uma configuração social dada. A partir

destes, eles deviam orientar-se no mundo social, em primeiro lugar para

sobreviver, eventualmente para reforçar sua situação, seu estatuto, seus

valores, suas crenças etc7.

Um fator interessante que se apresentou ao longo da leitura da Justificação de Nobreza

de Gaspar Pessoa Tavares foi a incongruência nominal de sua genealogia anexada por ele ao

processo, posto que o nome apresentado como sendo de seu bisavô diferenciava-se do

encontrado nos processos inquisitoriais de seu pai e avô. A partir do nome deste bisavô a

genealogia era extremamente diferente daquela verificada nos processos inquisitoriais desta

5 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo

(1755-1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, 1995. Tese (Doutorado em

Sociologia) - Universidade Nova de Lisboa. 6 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor. Desde 31 de julho de 1779 até 7 de abril de 1775. Lisboa: Régia Officina Typografica, 1775. 7 REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo

globalizado. In: Revista Brasileira de Educação, v. 15 n. 45 set./dez. 2010. p.440.

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família. As manipulações da genealogia para esconder máculas de ascendência cristã-nova,

como analisou Evaldo Cabral de Mello, em O nome e o sangue, ou negra, como o fez Júnia

Furtado, em Chica da Silva e o contratador dos Diamantes, não eram novidades8.

A partir dessas verificações surgiram-nos outras questões, tais como: qual o motivo para

esta manipulação genealógica, hipoteticamente desnecessária num período em que ser

descendente de cristãos-novos não era mais verificável em processos de Justificação de

Nobreza? As Leis de 1773 e 1774 foram suficientes para “apagar” a mácula de sangue cristão-

novo de seus descendentes? Estes indivíduos tinham aceitação plena no círculo da nobreza

quando eram nobilitados? Quais os recursos poderiam ser mobilizados por estes indivíduos

para alcançar a ascensão social? São estes pontos que pretendemos abordar aqui.

Faz-se crucial ressaltar que neste período a trajetória pessoal era fundamental para

ascensão social, entretanto, a origem dos sujeitos ainda era considerada como elemento chave

devido ao discurso de “qualidade de nascimento”, por isso as inquirições de genere eram

processos essenciais para a aquisição de títulos de nobreza, mesmo numa época em que os

estatutos de “limpeza de sangue” deixaram de vigorar. A “qualidade de nascimento” dizia

respeito ao estatuto que cada um possuía mesmo antes de seu nascimento. Esta noção era

utilizada por aqueles que se denominavam “Puritanos” com o objetivo de distinguir-se

daqueles que eram de nobreza adquirida9.

Importante elucidarmos, neste momento, o que compreendemos por trajetória, tendo em

vista que este será um dos conceitos trabalhados ao longo do texto. Assim como afirma

Bourdieu, entendemos trajetória como

séries de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou

mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a

incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como uma série

única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo

que não a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é senão

aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a

8 FURTADO, Júnia Ferreira. O cristão e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de Pernambuco. In:

SCHWARTZ, Lilia Moritz. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. São Paulo/Belo Horizonte:

Ed. Fundação Perseu Abramo/ Ed.UFMG, 2008, p.57-85. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador

dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 9 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e

imaginário social. In: Almanack Braziliense nº2, novembro de 2005, p.6.

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razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a

matriz das relações objetivas entre as diferentes estações10.

Nesse texto, Bourdieu chama atenção para um elemento que deve ser pensando quando

utilizamos a noção de trajetória, qual seja a concepção de “projeto de vida”. Para este autor,

projeto de vida caracteriza-se pelo modo como o indivíduo orienta suas ações num todo

coerente, usando as condições sociais para alcançar seus objetivos individuais. Esta seria uma

concepção construída tanto pelo sujeito que vive a vida quanto pelo próprio historiador, que

busca “reconstruí-la” por meio da narrativa com base na documentação que encontra e

justapõe uma a outra. Para o autor, os sujeitos aceitam o postulado do sentido da vida,

buscando elencar, de modo linear e coerente, determinadas ações que configurarem um fim,

um objetivo de vida. Contudo, esta seria uma construção que não condiz com a realidade

fragmentada e heterogênea pela qual a vida transcorre11. A vida assemelhar-se-ia à concepção

que Macbeth chega ao final de sua trama, após fazer uma reflexão acerca de tudo por que

passou - desde a profecia das bruxas até a notícia do falecimento da rainha:

A vida não é mais que uma sombra errante, um pobre ator que se pavoneia e

se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais

sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e vazia

de significado12.

Discutir estas concepções é fundamental para não cairmos no erro de analisar a

trajetória de Gaspar Pessoa Tavares como um todo coerente, pois “o enredo de uma vida não é

uma trajetória retilínea em direção a um fim determinado que já se manifestava desde os

momentos mais remotos da infância do personagem”13. O modo como ordenamos a

documentação é que produz este caráter de linearidade conferida a uma realidade que é

fragmentada, demasiadamente opaca, e qualquer afirmação extremamente categórica sobre ela

é perigosa. O nosso acesso a esta realidade se dá por meio de uma documentação que é

melhor caracterizada como rastro (spur). Spur, costuma ser traduzido como “rastro”,

“vestígio”, “marca”. Walter Benjamin o interpreta como “a aparição de uma proximidade, por

10 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos

e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.189. 11 Na literatura a questão da fragmentação do contexto, dos sujeitos e da narrativa estava posta desde o princípios

do século XX. A busca por um modo de narrar que partisse do fragmento, do fluxo de consciência, das imagens

efêmeras já estava presente nas obras Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust e posteriormente tornando-

se mais forte nas obras O Som e a Fúria, de Willian Faulkner e 1919, de John dos Passos, por exemplo. 12 SHAKESPEARE, William. Macbeth. Trad. Betriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2006, p.126. 13 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História: possibilidades, limites e tensões. In:

Dimensões, vol. 24, 2010, p.163.

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19

mais longínquo esteja daquilo que o deixou”14. Ele seria o fragmento de algo que existiu, algo

que é pertencente ao passado e que se exibe no presente, devendo ser notado e analisado para

que aquilo que ele carrega do passado não se apague. Para Benjamin, o ser humano produz

rastros por onde quer que passe, “habitar significa deixar rastros”15, disse o filósofo. É através

do rastro que a escrita da história trabalha a rememoração e a transformação de presente16. O

rastro é algo passível de compreensão, contudo, por ser fragmento, não possui o todo do que

foi. Assim, a análise que dele se pode fazer é uma interpretação, ou seja, não é visto como

uma verdade sobre passado.

Se Ronaldo Vainfas17 vê a documentação como uma janela na qual seria possível, ao

historiador, debruçar-se e observar a vida sexual dos inquiridos, nós a vemos como um rastro,

fragmentado e demasiadamente opaco. Parte das fontes por nós utilizada nessa dissertação,

qual seja os processos inquisitoriais contra cristãos-novos, por exemplo, deve ser

compreendida como um rastro, como algo bastante opaco, pois

se não tivermos um cuidado extremo, estas apenas irão confirmar os nossos

pressupostos, demonstrando, conforme os casos, quer que a maioria dos

cristãos-novos acusados perante a Inquisição se tratava, na realidade, de

criptojudeus empenhados na manutenção de tradições ancestrais, quer, pelo

contrário, que eram vítimas inocentes do preconceito antijudaico, de

acusações falsas e da perversidade dos procedimentos da Inquisição18.

A própria instituição onde a documentação é depositada – o arquivo –, é permeada de

intenções. Esta, também, não pode ser vista como repositório da verdade material de um

passado, pois o que nela se guarda advém de um processo de seleção e classificação que

implicaria um “agenciamento realizado pelo poder propriamente dito”19. O próprio termo

escolhido para nomear esta instituição relaciona-se ao poder, posto que remete a um elemento

topo-nomológico, cujo significado advém de arkheion (domicílio, sentido topológico) e arkhê

(comando, sentido nomológico). Tais termos referem-se aos arcontes gregos, homens do

14 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São

Paulo, 2006, p.490 15 BENJAMIN, Walter. Passagens, p.46. 16 BUSSOLETTI, Denise. Representações da Memória: A Escrita da História para Além do Princípio do Prazer.

In: História e-história, 10 de agosto de 2010 17 VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas. In: SOUZA, Laura de Mello e. (Org.) História da Vida Privada

no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 228. 18 ROWLAND, Robert. Cristãos-novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição. In: Topoi, v. 11, n. 20, jan.-

jun. 2010, p. 172-188, p.173. 19 BIRMAN, Joel. Arquivo e Mal de Arquivo: Uma leitura de Derrida sobre Freud. In: Natureza Humana 10(1):

105-128, jan.-jun. 2008, p.110.

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comando, que mantinham a documentação referente ao poder em suas residências, e que

possuíam sobre ela o direito hermenêutico, organizacional e classificador20.

Ao caracterizar a documentação como rastro, partilhamos da concepção de Carlo

Ginzburg quanto à necessidade da coleta e organização destes sinais/ fragmentos. Para este

autor é fundamental que o pesquisador tenha um saber de tipo venatório, ou seja, um saber

que lhe permita analisar dados aparentemente irrelevantes, para descrever uma “realidade”

não cientificamente experimentável – pois, nosso objeto está distante de nós, seja no tempo

e/ou no espaço –, conjugando-os numa narrativa. Para Ginzburg, esta seria a premissa do

paradigma indiciário21.

A documentação pode ser analisada de modo cronológico – afinal, os Registros de

Mercês que atestam os ofícios assumidos por Gaspar Pessoa são anteriores à sua Justificação

de Nobreza e ao Foro de Cavaleiro Fidalgo –, mas não podemos atribuir-lhe um sentido

único. Se assim fosse, sugestionaríamos que nosso personagem tinha um projeto de vida

muito bem definido e que foi concretizado, qual seja, alcançar o status de nobre. Não se pode

fazer tal afirmativa sem risco de erro, haja vista que compreendemos que as ações dos atores

sociais não podem ser entendidas como estratégias milimetricamente calculadas,

racionalizadas, mas como resultantes de ações sociais permeadas de incertezas, dúvidas e

acaso. Assim, compreendemos que o sentido da ação dos personagens é, em grande medida,

atribuídos por nós, pois o formulamos a posteriori dos fatos. Com base na concepção

weberiana, entendemos sentido como algo subjetivamente visado, ou seja, aquilo que “se

manifesta em ações concretas e que envolve um motivo, o qual é sustentado pelo agente como

fundamento da sua ação” 22.

Importante ressaltar que não pretendemos utilizar a análise de trajetórias de nossos

personagens como casos representativos, ou seja, como síntese do grupo social ao qual

pertenciam, de modo a “servir de passagem para a apreensão de marcos mais amplos”23.

Também não pretendemos fazer um estudo de caso, no qual esta família fosse considerada um

caso excepcional. Nosso intuito é problematizar o contexto no qual a vida desses personagens

20 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p.12-

13. 21 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais – morfologia e

história. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 22 COHN, Gabriel (org.). Introdução. In: Max Weber. São Paulo: Editor Ática, 2003, p.27. 23 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História, p.159.

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se inscrevia, desnaturalizando-o, deixando de vê-lo como algo fixo, como uma estrutura onde

os atores buscam agir à margem dos sistemas normativos, sendo estes constituídos por um

grupo de normas instituídas socialmente. Corroboramos com a ideia que afirma que estes

sistemas não são “suficientemente estruturado[s] para eliminar qualquer possibilidade de

escolha consciente, de manipulação, ou de interpretação das regras, de negociação (...)”24.

Acreditamos que os indivíduos operam dentro destes sistemas, que por sua vez são

demasiadamente complexos e repletos de brechas pelas quais os atores conseguem agir de

modo a alcançar seus objetivos, mesmo que estes sejam contrários às normas.

Desta forma, a opção por uma análise que trate sobre as trajetórias de membros de uma

família – ou seja, de um pequeno grupo – num determinado espaço de tempo, foi aqui

adotada, pois acreditamos que este tipo de observação nos permite

uma descrição das normas e de seu funcionamento efetivo, sendo este

considerado não mais o resultado exclusivo de um desacordo entre regras e

práticas, mas também de incoerências estruturais e inevitáveis entre as

próprias normas, incoerências que autorizam a multiplicação e a

diversificação das práticas25.

Por muito tempo, os historiadores voltaram-se para a análise das estruturas, para a longa

duração, deixando o particular, o indivíduo em segundo plano. A História Social emergiu no

princípio de século XX inicialmente preocupada, sobretudo, em estabelecer hierarquias e

construir coletivos – como classes, grupos, etc. –, de modo que a individualidade não fosse

considerada por si só. Tais elementos são perceptíveis nas obras O Problema da

Incredulidade no Século XVI - a Religião de Rabelais, de Lucien Febvre, e Os reis

taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra, de Marc Bloch –

além de outros trabalhos produzidos pelos historiadores ligados à École des Annales. Nestas,

a longa duração e a imersão dos indivíduos na coletividade são tão fortes que quase não há

espaço para rupturas e individualidades. Este tipo de análise resultara numa homogeneização

do contexto e das classes, visão posteriormente questionada e revista por uma historiografia

mais recente que optou pela redução da escala de observação – como a micro-história que será

discutida a seguir.

24 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Usos e abusos da

história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.179. 25 LEVI, Giovanni. Usos da biografia, p.179-180.

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22

Após a crise dos paradigmas estruturalistas nas Ciências Sociais, no século XX, o

indivíduo – o particular – volta ao palco histórico. Entretanto, este indivíduo a ser considerado

não era mais o “grande homem”, o rei, o governante poderoso, e sim o sujeito comum – um

moleiro26, por exemplo. A história a ser contada não era mais a dos vencedores e sim a dos

vencidos, pois se tornou premente “escovar a história a contrapelo”. 27

Neste contexto de revisão epistemológica, entra novamente em discussão a questão da

narrativa, posto que a historiografia de viés estruturalista houvesse optado por uma análise

quantitativa, serial, numa posição crítica à história “acontecimental” (événementielle) que se

importava fortemente com a construção da narrativa. O modelo historiográfico resultante

desta concepção promoveu, de forma ambígua, a aproximação e o afastamento da História

com a Literatura. Aproximação visto que houve um “ressurgimento” da narrativa, e

afastamento posto que a segunda era vista como arte e não como uma Ciência – status que os

positivistas buscavam alcançar para a História28.

Entre os que afirmavam o caráter intrinsecamente narrativo da história, Paul Ricoeur,

por exemplo, alegou que quando a historiografia rompeu seu laço com a narrativa ela perdeu

seu caráter histórico, afastando-se daquilo que Husserl caracterizou como “Mundo da vida”

(Lebenswelt), ou seja, do “mundo histórico-cultural concreto, sedimentado

intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a

imagem do mundo elaborada pelas ciências”29. Husserl afirmou que as ciências sociais

estavam demasiadamente afastadas do “mundo da vida” devido à matematização, que,

consequentemente, construía uma visão idealizada da natureza. O motivo para tal afastamento

era atribuído ao fato de que as ciências haviam esquecido de que sua origem e fundamento,

que era o “mundo da vida” e não o contrário.

Neste ínterim, retornaram os debates acerca das aproximações entre História e

Literatura. Dentre os principais estudos que se preocuparam com tal discussão encontramos as

26 Refiro-me a Menocchio, personagem da obra de Ginzburg que se tornou célebre na historiografia. Ver:

GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.

Trad. Maria Bethânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 27 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura

e história da cultura. Obras escolhidas. V.1. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Ed: Brasiliense, 1987, p.225. 28 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.

7, n. 13, 1994, p. 97-113. 29 ZILLES, Urbano. Introdução. In: HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.32.

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análises de Hayden White30. Este autor afirmou que o historiador ao elaborar sua narrativa por

meio de uma operação mental alicerçada em teorias, metodologias e fontes, lança mão,

também, de uma série de procedimentos estéticos. Desta forma o modo como determinada

situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a

estrutura específica de enredo com o conjunto dos acontecimentos históricos aos quais deseja

conferir um sentido particular. Trata-se, essencialmente, de uma operação literária criadora de

ficção31.

A narrativa para Paul Ricoeur, não era um complexo meramente subjetivo, ele

acreditava numa capacidade objetiva do pesquisador diante seu objeto e na tessitura da

intriga. Inserido na corrente fenomenológica husserliana, Paul Ricoeur acreditava, ao

contrário de Hayden White, que seria possível ao historiador chegar à “coisa em si”, à alguma

objetividade dos fatos – à ontologia dos fenômenos –, partindo de um método que tivesse

ciência de que nosso acesso ao mundo empírico é dificultado pela confusão que nossos

sentidos geram em relação às coisas32. Compreendemos que essa visão é fundamental para

nosso trabalho, pois por mais que saibamos que nossa narrativa é permeada de subjetividade,

buscamos nos ancorar em algo objetivo, qual seja a própria documentação, que por mais que

esta seja um constructo cheio de intenção possui uma realidade física, ontológica – apesar de

não ser encarada como o repositório da verdade material de um passado, como já nos

referimos anteriormente.

A concepção de uma narrativa – cujo elemento nuclear seja o rastro –, tecida a partir de

determinados padrões estéticos e culturais, consciente de seu caráter lacunar, nos é cara aqui,

posto que nos permita conceber que a análise do historiador parte do esforço de juntar os

fragmentos “para elaborar um passado que nunca poderá ser configurado como uma unidade

perfeita”33. Ter em mente que o passado chega até nós a partir dos rastros “permitirá lembrar

o ausente, não de qualquer trivial modo, mas de uma maneira que define o que nele foi mais

significativo, de modo que possa identifica-lo”34. Assim, partilhamos da noção de que tanto

30 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994. 31 Não estamos afirmando que a narrativa historiográfica seja igual à literária. Sabemos que existem diferenças

de intenção e até mesmo de forma. Isto ficou ainda mais marcado quando do surgimento de uma literatura

moderna, posto que nesta a narrativa passa a ser cada vez mais fragmentária, como dito em nota acima. 32 RICOEUR, Paul. A intencionalidade histórica. In: Tempo e Narrativa, vol. 1, São Paulo: Martins Fontes,

2010. 33 GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: GINZBURG, Jaime e SELDMAYER,

Sabrina. Walter Benjamin: Rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p.126. 34 GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin, p.126.

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sujeitos, quanto contextos são fragmentados e que é por meio da narrativa historiográfica que

ambos adquirem coesão, mesmo que esta seja permeada de lacunas e de perguntas sem

resposta. A narrativa não dá conta do todo vivido, mas é ainda um elemento fundamental pelo

qual os historiadores dão sentido às ações do homem no tempo e no espaço.

Partimos da concepção da hermenêutica ricoeuriana de que “o tempo torna-se tempo

humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é

significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”.35 Dito de outra

forma, é na narrativa que o mundo pré-figurado (Mimese I, composta por conjuntos

simbólicos passíveis de interpretação) é configurado (Mimese II, ou seja, a tessitura da

intriga) e chega ao “mundo da vida”, ao leitor, que por sua vez apropriar-se-á dela e

transformará sua realidade (Mimese III). Este mundo transformado passa a ser novamente a

realidade ainda não narrada, que será analisada por um autor que a configurará, dando

continuidade ao processo, que adquire uma forma espiralada36.

Ainda dentro deste contexto de revisão dos paradigmas históricos, surgiu na Itália um

novo campo, o da micro-história, que também partilha da concepção de que os indivíduos não

são “entidades fechadas e com destinos marcados”37, e que afirmava que as ditas classes eram

demasiadamente heterogêneas para serem tratadas de modo tão monolítico. Tendo em mente

as questões teóricas e metodológicas acima apresentadas, observamos que a prática da micro-

história é uma base frutífera sob a qual podemos nos apoiar nesta dissertação. Chamamos a

atenção para o termo prática, posto que, embasados em textos teóricos acerca da micro-

história observamos que esta é demasiadamente heterogênea para ser chamada de corrente ou

metodologia, tornando-se um campo mais aberto para análise, mas nem por isso menos

sólido. Uma ideia recorrente entre os historiadores que adotam tal prática é a premissa de que

para analisar de modo aprofundado um tema/ contexto é necessário reduzir e alternar a escala

de observação, ou seja, proceder a uma microanálise sem, contudo, apartar-se das

macroanálises.

35 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol. 1, p.14-15. 36 RICOEUR, Paul. A Tríplice Mimese. In: Tempo e Narrativa, vol. 1. 37 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História, p.165.

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Para Ginzburg, a micro-história “permite em muitos casos uma reconstituição do vivido

impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas

invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula”38.

Neste tipo de investigação, o historiador não está simplesmente preocupado

com a interpretação dos significados, mas antes em definir as ambiguidades

do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações desse mundo

e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos

materiais39.

Desta forma, a redução da escala de observação permeará grande parte do nosso

trabalho, sem que seja ignorado, porém, os processos denominados macro-históricos. Para

tanto, pretende-se utilizar tanto a documentação acerca da trajetória de nosso personagem e de

alguns de seus familiares, quanto articulá-la com outras que informam sobre as mudanças e

permanências operadas na sociedade da segunda metade do século XVIII. A documentação

utilizada provém de diversos fundos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, tais como

Registros de Mercês, Processos Inquisitoriais, Autos de Justificação de Nobreza, Processo de

Habilitação na Ordem de Cristo e Correspondências. Outros documentos importantes para a

análise dizem respeito à legislação portuguesa, tais como Collecção das leys, decretos, e

alvarás que comprehende o feliz reinado del rey fidelíssimo D. José I. Nosso senhor. Desde

31 de julho de 1779 até 7 de abril de 1775, as Ordenações Filipinas, além dos Regimentos do

Tribunal do Santo Ofício. Acreditamos que com este grupo de documentos poderemos

discutir acerca da sociedade de Antigo Regime, na qual os personagens analisados estavam

inseridos, e debater os mecanismos utilizados por tais sujeitos para alcançar a ascensão

social40. Assim, pretendemos analisar a trajetória da família Pessoa “não por el[a] mesm[a],

mas para lançar luz ao funcionamento interno de uma cultura e uma sociedade do passado”41.

Apesar de este trabalho ter como objetos de análise personagens inseridos numa elite

econômica não queremos tratá-los como

38 GINZBURG, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991, p.177-178. 39 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da história – Novas Perspectivas. São

Paulo: Editora UNESP, p.135-163, 2011, p.136. 40 Apesar de estudar um caso ocorrido com um senhor de engenho brasileiro, e num contexto cronológico

anterior, o estudo O nome e o sangue, de Evaldo Cabral de Mello, permite que se reflita sobre o significado que

alcançar os primeiros patamares de nobreza podia significar para um descendente de cristão-novo. Analisando

esse livro, Júnia Furtado discute os significados de nobreza e honra nessa sociedade. Ver: MELLO, Evaldo

Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Cf. FURTADO, Júnia Ferreira. O

cristão e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de Pernambuco, p.57-85. 41 STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma Nova velha história. In: Past and

Present, no 85. nov. 1979. pp. 3-24. Tradução de Denise Bottmann, p.20.

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homo oeconomicus e de estudá-los primariamente à luz de seus interesses e

comportamentos financeiros, pois é isso que os registros iluminam com

enormes claridade e detalhe. Mas os interesses econômicos podem entrar em

conflito e, mesmo quando o interesse é claro, é impossível estar-se seguro de

que ele é a consideração dominante.42

O que queremos dizer é que, envolvidos numa sociedade que prezava os valores da

nobreza, acreditamos que os membros desta família tinham o desejo e/ou necessidade de

ascender a tal grupo, mas é claro que, para tanto, antes tiveram que alcançar os mais altos

patamares econômicos daquela sociedade. Para discutirmos esses problemas lançaremos mão

da documentação referida e de uma bibliografia que verse sobre a sociedade de Antigo

Regime em seus diversos aspectos – econômicos, sociais e culturais.

Reafirmamos nossa preocupação acerca de questões teóricas que envolvem o ofício do

historiador, sabendo que este tem a “intenção de construção de um discurso próximo da

verdade”, que segundo Alexandre de Sá Avelar pode “ser percebida desde o momento da

pesquisa documental, passando pela elaboração explicativa até se consolidar na construção

textual”43. Esta paráfrase de Ricoeur nos é fundamental, posto que por mais que ela represente

nosso esforço de discutir um problema com base em documentação, temos em mente que seu

produto final inscreve-se dentro de um modelo narrativo que condiz com a cultura na qual

estamos inseridos, mas está longe de ser encarado como a verdade. Como afirma Hayden

White44, cada cultura possui uma série de modelos disponíveis para a composição da intriga,

desta forma, o historiador de modo inconsciente utiliza-se destes arquétipos para compor sua

narrativa levado por uma imposição ideológica e ética, muito mais do que por escolhas

estéticas. Versaremos sobre questões complexas – como preconceito, perseguições religiosas,

construção de discursos detratores – e por isso devemos ter em mente estes problemas.

O objetivo aqui é analisar um período bastante denso, com seu próprio “regime de

verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela escolhe[u] e f[e]z

funcionar como verdadeiros”45. Por mais que este período tenha sido repleto de peculiaridades

que fogem à nossa realidade, ao nosso tempo, ele pode ser retomado através de uma

42 STONE, Lawrence. Prosopografia. In: Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 39, p. 115-137, jun. 2011, p.124. 43 AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História, p.160. 44 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso, 1994. 45 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011,

p.12.

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representação/ apresentação ciente das deficiências inerentes ao ofício do historiador. Bem

como afirma Evaldo Cabral de Mello,

a tarefa deve ser levada a cabo não com a ira dos justos, não contra a história

ou com o historiador assepticamente colocado fora dela, mas com a dose de

empatia que lhe permita calçar os sapatos alheios, tentando compreendê-la de

dentro, não pela graça de uma iluminação súbita, que frequentemente não

resistirá à prova documental, mas através do convívio aturado com os

vestígios do passado46.

Desta forma, a dissertação foi organizada em três capítulos, que analisados em conjunto

corroboram com a metodologia por nós utilizada, qual seja a alternância da escala de

observação que preza pela estreita ligação entre o macro e o micro. No primeiro capítulo,

intitulado A Inquisição e os cristãos-novos: os casos da família Pessoa Tavares, delinearemos

um panorama acerca da presença dos judeus na Península Ibérica bem como da criação do

Tribunal do Santo Ofício e a relação deste com a perseguição empreendida aos cristãos-

novos. Analisaremos as prisões de cristãos-novos efetuadas no Distrito de Castelo Branco,

dando foco aos casos que envolviam os membros de uma mesma família. Analisaremos mais

detidamente os processos de Sancho Pessoa (iniciado em 1706) e Gabriel Tavares (iniciado

em 1746), respectivamente avô e pai de Gaspar Pessoa Tavares – sujeito sob o qual

dedicaremos o terceiro capítulo.

No segundo capítulo, intitulado A política pombalina: mudanças no estatuto social dos

homens de negócio e dos cristãos-novos, trataremos das questões concernentes à disputa

ideológica dos elementos que caracterizavam um indivíduo como nobre – ou que o

descaracterizam. Discutiremos também os elementos filosóficos e culturais que orbitavam a

questão da mobilidade social no Antigo Regime bem como as consequências do mesmo sobre

a vida daqueles que pretendiam nobilitar-se. Analisaremos alguns pontos da Legislação

pombalina que são fundamentais para o desenvolvimento do terceiro capítulo de nossa

dissertação, quais sejam a mudança do estatuto social dos homens de negócio e o fim legal da

distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

No terceiro capítulo, Quando a honra e o viver à “lei da nobreza” não apagam a

mácula de sangue: o caso de Gaspar Pessoa Tavares, analisaremos os processos de

46 MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue, p. 16-17.

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Habilitação na Ordem de Cristo (1775) e o Auto de Justificação de Nobreza (1792) de Gaspar

Pessoa Tavares – além das demais mercês por ele recebidas – imiscuindo tal análise à

legislação vigente e às questões sociais que envolviam esses tipos de processos. Aqui

problematizaremos os seguintes pontos: a trajetória social de Gaspar Pessoa Tavares; a

necessidade de busca de uma origem nobre em tempos que as inquirições de genere não

poderiam impedir o acesso de um descendente de cristão-novo à nobreza; a não identificação

social entre os nobres de linhagem e os nobilitados. Nosso marco temporal, então, será de

1706 – quando do processo de Sancho Pessoa – a 1817 – quando Gaspar Pessoa Tavares

intenta uma última mercê antes do fim de sua vida.

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1. A INQUISIÇÃO E OS CRISTÃOS-NOVOS: OS CASOS DA FAMÍLIA

PESSOA TAVARES

“Sou eterno imigrante; parto de mim para mim mesmo,

de meu corpo para meu corpo, mutável”.

(Samuel Rawet).

A criação do Tribunal do Santo Ofício em Espanha, estabelecido no âmbito das guerras

de Reconquista do território Ibérico, acarretou uma migração intensa de judeus para os

domínios portugueses na Península. Diversos judeus estabeleceram-se em solo português e lá

viveram alguns anos de relativa tranquilidade. Entretanto, com o decreto de expulsão desse

povo do reino português, com a conversão forçada em cristãos e com o estabelecimento da

Inquisição em Portugal, os sefaradim47 foram perseguidos e sua religião proibida.

A região de fronteira entre os dois Estados Nacionais recebeu grande atenção do

Tribunal do Santo Ofício português, devido ao fato de que as comunidades cristãs-novas ali

estabelecidas serem avultosas. Dali partia muitas denúncias contra cristãos-novos acusados de

manterem práticas judaicas de modo secreto – ou criptojudaísmo. É nesta região que

nasceram e/ou viveram os personagens que serão apresentados nessas linhas: os membros da

família Pessoa Tavares.

Antes de voltamos nossa atenção à trajetória dos membros da família aqui estudada,

analisaremos a presença dos judeus no território supradito, para posteriormente discutirmos

sobre as comunidades cristãs-novas estabelecidas numa região específica da fronteira entre

Portugal e Espanha, qual seja a Beira Interior. Sobre essa região, nos deteremos mais

especificamente no Distrito de Castelo Branco, haja vista que os processos a serem analisados

são de indivíduos advindos de vilas pertencentes a este Distrito, tais como Covilhã, Fundão,

Penamacor e Idanha-a- Nova.

47 Respeitando a morfologia hebraica, Sefaradim é o plural de Sefaradi, termo relativo aos judeus de Portugal e

Espanha. “O termo sefaradi também se utiliza com frequência em oposição ao termo askenazi, este em alusão a

Askenazi, outro tronco étnico-cultural do judaísmo: o franco-germânico-eslavo.”. MÍGUEZ, Antón Castro. O

judeu-espanhol na comunidade sefaradi de São Paulo. In: Cadernos do CNLF (Congresso Nacional de

Lingüística e Filologia), Volume IX, no.14, Rio de Janeiro, 2005, p.1.

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Discutiremos também sobre a expulsão dos judeus dos territórios portugueses e da

perseguição empreendida tanto pela Inquisição quanto pela comunidade leiga aos cristãos-

novos. Na sequência, analisaremos os processos inquisitoriais sofridos pelos membros da

família Pessoa, cujo foco será dado a alguns personagens específicos, quais sejam, Sancho

Pessoa da Cunha48 e Gabriel Tavares Pessoa49. Priorizaremos os processos desses sujeitos

pela importância que os mesmos terão para a discussão que se apresentará no terceiro capítulo

dessa dissertação, que tratará da nobilitação de Gaspar Pessoa Tavares, neto de Sancho Pessoa

e filho de Gabriel Tavares. Ao longo da análise dos processos supraditos referir-nos-emos a

outros membros dessa família, posto que vários deles passaram pelo Tribunal do Santo

Ofício, acusados de práticas judaizantes, onde foram citados por seus parentes.

1.1 Da chegada dos Seferadim à Sefarad ao estabelecimento da Inquisição Moderna

A data do estabelecimento dos judeus na Sefarad – termo em hebraico usado para

designar a Península Ibérica – não é precisa. Alguns estudos arqueológicos afirmam que os

primeiros judeus chegaram ao dito território nos séculos I e II depois de Cristo. Segundo o

cronista judeu Yosef Ha Cohen, que viveu no século XVI, os judeus que viviam nesta região

haviam fugido de Jerusalém em decorrência da dominação romana pelo Imperador Adriano

em 132 d.C, período em que houve intenso massacre na região impulsionando-os à diáspora50.

Entretanto, outros estudos afirmam que a presença da comunidade judaica na Península

Ibérica data de um período bastante anterior ao referido século I, tendo-se iniciado após a

destruição do templo hebraico em Jerusalém, no ano de 587 a.C., durante a tomada da cidade

por Nabucodonosor. Esta data também não é consensual, pois outros estudiosos afirmam que

a ocupação se deu após a destruição do segundo templo de Jerusalém pelo imperador romano

Tito, em 70 a.C..51

48 Doravante, grafaremos seu nome como Sancho Pessoa, ou apenas Sancho, para que não fique demasiadamente

longa e repetitiva a citação de seu nome. 49 Referenciar-nos-emos a este personagem somente como Gabriel Tavares, pois é o uso corrente em seu

processo inquisitorial. Seu nome apresenta-se como Gabriel Tavares Pessoa somente na documentação referente

ao processo de Justificação de Nobreza de seu filho, Gaspar Pessoa Tavares. 50 TAVARES, Maria José Ferro. O difícil diálogo entre judaísmo e cristianismo. In: C.M. Azevedo (Ed.).

História Religiosa de Portugal – Vol. 1. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000, p.53. 51 CORRÊA, Emílio Manuel da Silva. Judaísmo e judeus na legislação portuguesa: da Medievalidade à

Contemporaneidade. 2012. 148 f. (Dissertação). Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras. Lisboa. 2012,

p.8.

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Ao fixarem-se em território ibérico, os judeus se depararam com outros povos que já

estavam ali situados. A princípio eles não estabeleceram laços de matrimônio com os goim –

termo em hebraico, que designa os não-judeus. Porém, com o tempo, essa característica de

“proteção” de sua etnia foi se dissipando e o casamento entre judeus e cristãos passou a ser

comum52.

Após longo tempo sob domínio romano a Península Ibérica adentrou o período que se

convencionou chamar de “invasões bárbaras”53, culminando no fim do domínio romano sobre

a região, em 476 d.C.. O poder foi conquistado pelos Visigodos que haviam sido precedidos

por diversos outros povos – nomeadamente os Suevos, Alamanos e Vândalos – com quem

travaram combates. Quando da conversão do rei visigótico, Recaredo, ao cristianismo em 589

d.C., os judeus foram duramente perseguidos.

Posteriormente, os mulçumanos, saídos de África, conquistaram a porção centro-sul da

Península Ibérica em 713, forçando o deslocamento dos outros povos para região norte.

Historiadores, como Henry Kamen, afirmaram que durante boa parte do governo árabe os três

maiores grupos que ocupavam a região – judeus, cristãos e mulçumanos – coexistiram sem

grandes conflitos até a dita Reconquista da Península, culminada no ano de 1492 pelos Reis

de Castela e Aragão54. Os Califados Omíada e de Córdoba, que dominaram a região entre os

séculos VIII e XI, permitiam aos judeus e aos cristãos viverem sob suas próprias leis,

protegidos pelo governo árabe. Esses povos possuíam autonomia política, viviam em

comunidades prósperas e compunham os quadros do governo, ocupando cargos de confiança

na corte.

Los musulmanes consideraban que los cristianos y los judíos eran, como

ellos, ‘gentes del Libro’, es decir, lectores de la Biblia; por su condición de

hijos de Abraham y monoteístas, cristianos y judíos merecían, pues, un trato

especial, el que venía definido en la dhimma55.

52 TAVARES, Maria José Ferro. Verbetes: Judaísmo, Judeus. In: AZEVEDO, Carlos Moreira. Dicionário de

História Religiosa de Portugal. Vol. III. Rio de Mouro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História

Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2001, p. 31. 53 Há que se ressaltar que novas análises estão sendo feitas pela historiografia no intuito de discutir questões

sobre as incursões dos povos germânicos e da atribuição do termo “bárbaro” para designá-los. Além disto,

estudos acerca do fim do Império Romano do Ocidente colocam em questão o ocaso de tal império e sua relação

com as ditas invasões. Ver: POHL, Walter. “Telling the difference. Signs of ethnic identity”. In: T. F. X. Noble

(org), From Roman Provinces to Medieval Kingdoms. Londres/ Nova Iorque: Routledge, 2006. 54 KAMEN, Henry. A Inquisição na Espanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 55 PÉREZ, J. Los judíos de España. Madrid: Marcial Pons, 2005, p.31.

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Entretanto, essa convivência, dita pacífica, era alcançada mediante pagamento de

tributos por parte dos judeus e cristãos ao governante árabe. Tal elemento é fundamental para

se compreender que a relação estabelecida entre esses povos alicerçava-se num limiar muito

tênue entre a paz e o conflito, além de servir-nos de argumentação contestatória sobre a visão

de tolerância atribuída a este período.

Com o fim da dominação mulçumana, após as conquistas perpetradas pelos cristãos na

região onde se estabeleceu o Estado Português, a situação jurídica e social da comunidade

judaica não se alterou de forma substancial, posto que os judeus auxiliassem o rei português

em sua guerra contra a ocupação moura de diversas formas:

Se não foram utilizados na Reconquista, foram-no no povoamento dos

territórios volvidos à posse dos cristãos, ou porque já lá estivessem ou

porque fossem atraídos pelas oportunidades económicas dos recém-criados

concelhos. De facto, a sua presença nestes espaços urbanos é comprovada

pela referência a judei nas primeiras cartas de foral, aparecendo estes como

habitantes do espaço municipal ao lado dos cristãos e dos mouros ou em

trânsito quando mercadores. O seu número devia ser reduzido, encontrando-

se os indivíduos da minoria espalhados entre os cristãos ou a residir no

arrabalde judaico da ex-cidade muçulmana, o qual viria a ser o embrião da

rua da judiaria do concelho cristão56.

Assim, as liberdades e prerrogativas da comunidade judaica não foram extintas. De

certa maneira houve uma intensificação dos privilégios cedidos pelo rei cristão aos seus

vassalos judeus. Por mais que vivessem nos espaços circunscritos da judiaria – dentro dos

muros da cidade, como em Lisboa, ou fora deles, como ocorreu em determinado período em

Porto – este grupo participava ativamente da vida política, econômica e social no Reino.

Segundo Maria Ferro Tavares57, o rei costumava tratar os judeus do reino como “meus

judeus” e buscava protegê-los quando os cristãos contestavam a autonomia das Comunas

judaicas em relação aos Concelhos Municipais e agiam de modo agressivo contra aqueles.

As Comunas judaicas funcionavam de modo paralelo aos Concelhos das cidades e

possuíam administração, bens próprios, justiça e policiamento cuja intendência ficava por

conta de autoridades autônomas aos Concelhos. As primeiras cartas de privilégios cedidas a

estas unidades datam do século XIII, quando do reinado de Dom Dinis. Não é escusado dizer

que a relativa autonomia que os judeus possuíam em Portugal era garantida mediante

56 TAVARES, Maria José Ferro. Verbetes: Judaísmo, Judeus, p. 37. 57 TAVARES, Maria. Ferro. O difícil diálogo entre judaísmo e cristianismo, p.53.

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pagamento de impostos anuais e quando esses sofriam aumentos exorbitantes –

principalmente no período de guerra de independência contra Castela – geravam conflitos nas

Comunas. Toda essa estrutura era administrada na Corte pelo rabi-mor nomeado pelo rei, cujo

enlace de poderes era representado por meio selo que o primeiro carregava consigo, no qual

constava o escudo de Portugal e com as seguintes inscrições: “Scello do Arraby Moor de

Portugal”58.

No século XIV houve a separação física entre judeus e cristãos com o estabelecimento

de judiarias apartadas dos centros urbanos e com a imposição de símbolos de diferenciação,

os quais os judeus eram obrigados a utilizar. O matrimônio entre a “gente da nação” e os

cristãos também passou a ser impedido nessa época. Não havia, ainda, uma manifestação

antijudaica intensa por parte da comunidade cristã de modo geral, mas sim “nos capítulos das

cortes, por razões económicas mais do que religiosas e mentais”59. Seria inclusive a rivalidade

econômica, cuja crítica primordial referia-se à prática da usura judaica, o elemento utilizado

pelos mercadores cristãos contra os de origem hebraica. Aqueles exigiram, então, o

confinamento dos mercadores e artesões hebreus na circunscrição da judiaria, em finais deste

mesmo século.

Apesar de todos os eventos acima referidos, a convivência entre judeus e cristãos era tão

estreita que no século XV um bispo levou a público sua preocupação acerca da intensa

presença de judeus em bodas e festas cristãs. A situação era ainda mais delicada quando o que

estava em questão era o tratamento dos doentes cristãos, posto que a maioria dos médicos

fosse de origem judia e a legislação canônica não permitia o contato entre tais grupos. No

Livro II, das Ordenações Afonsinas – o primeiro conjunto de leis portuguesas, publicado em

1446 –, foram estabelecidas normas de convivência entre os povos do reino, de modo a

demarcar mais intensamente a diferença entre eles. Nessas Ordenações foram estabelecidos os

locais nos quais judeus e mouros poderiam circular, se estabelecer, comercializar; quais

impostos deveriam pagar; como deveriam agir com os cristãos nos negócios e nas demais

questões cotidianas. Entretanto, ainda nesse momento, a conversão forçada de judeus – e

mouros – era proibida por lei, tal como podemos ver nos Títulos 94 e 118, respectivamente,

da mesma Ordenação60.

58 KAYSERLING, Meyer. História dos Judeus em Portugal. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 2009, p.45. 59 TAVARES, Maria. Ferro. Verbetes: Judaísmo, Judeus, p.41. 60 Ordenações Afonsinas, Livro II, títulos LXXXXIIII e CXVIII. Disponível em:

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Na outra porção da Sefarad, à medida que o território que hoje conhecemos como

Espanha passava para o domínio dos Reis Católicos – Fernando de Aragão e Isabel de Castela

– os conflitos entre as três religiões intensificavam-se. A monarquia via no mosaico de raças,

religiões e costumes um perigo à unidade do reino61. Assim, no intuito de unificar os súditos e

estabelecer uma religião que seria a base do Estado que então estava se consolidando, os Reis

Católicos empenharam-se em estabelecer o Tribunal da Santa Inquisição. Este foi fundado por

meio de bula papal no dia 01 de novembro de 1478, cujo objetivo era perseguir aqueles que

pecassem contra a fé cristã, mas os alvos principais foram os cristãos-novos judaizantes62. Os

monarcas buscavam legitimar a criação de tal Tribunal alegando que seus súditos conversos

eram desobedientes e não abandonavam a fé mosaica. Concomitantemente, parte do Clero

utilizava os sermões para detratar a imagem dos judeus e conversos, colocando o povo contra

eles. O acirramento do conflito deveu-se tanto ao elemento religioso como ao ressentimento

que os nobres possuíam em relação ao poder econômico e social conquistado pelos judeus.

Diversas leis foram criadas contra judeus e conversos no intuito de afastá-los dos cargos

públicos de maior importância. Eles eram acusados de se protegerem e formarem uma

sociedade à parte, que se enriquecia cada vez mais e perturbava o status quo de cristãos-

velhos que viam seu prestígio social em declínio. Neste âmbito, a Coroa espanhola criou

várias políticas contra esses grupos, tais como o Decreto de Alhambra, que ordenava a

expulsão ou a conversão destes povos, em 1492, após a conquista de Granada – último reduto

do poder mulçumano na Península Ibérica. Concomitante a tais estatutos, os súditos

promoviam massacres à comunidade judaica, causando a fuga em massa de seus componentes

para o reino de Portugal.

Cabe ressaltar, também, a importância dos estatutos de “limpeza de sangue” como

elemento fomentador do preconceito direcionado aos grupos de ascendência judaica, negra ou

moura. Esses eram caracterizados como “infectos”, de sangue sujo, em oposição aos cristãos-

velhos. Os estatutos tiveram origem em Toledo, no ano de 1449, e foram estabelecidos no

intuito de afastar os conversos dos cargos municipais. A princípio seu caráter era meramente

http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l2ind.htm 61 RIBEIRO, Benair Alcaraz Fernandes. Símbolos de um poder. Arte e Inquisição na Península Ibérica. São

Paulo: Annablume, 2010, p.32. 62 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Círculo de Leitores e

Autor, 1994, p.297.

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local e não possuía sanção régia. Entretanto, o ideal da “limpeza de sangue” ganhou força e

terreno em Espanha e Portugal até o século XIX, perdurando até mesmo no período em que

essa diferenciação passou a ser proibida – como veremos no terceiro capítulo desta

dissertação. Os estatutos foram amplamente utilizados como critério para aquisição de hábitos

nas Ordens Militares, ocupação de ofícios públicos e habilitação de familiar do Santo

Ofício63. De acordo com a historiadora Fernanda Olival,

em bom rigor, é difícil saber com grande precisão desde quando os estatutos

de limpeza de sangue foram estabelecidos em Portugal, pois não se tratou

nunca de uma lei geral, embora a certa altura o pudesse parecer64.

Ao instituir o Tribunal do Santo Ofício em Espanha os Reis Católicos viram a “gente da

nação” intentar fuga de seus reinos, sendo que uma parte buscou refúgio em Portugal, onde

poderiam instalar-se após pagarem um pesado tributo65. Dom Manuel, rei de Portugal,

pressionado pelo acordo de casamento estabelecido entre ele e Dona Isabel de Aragão – filha

dos Reis Católicos –, expediu o édito de expulsão dos judeus e mulçumanos em dezembro de

1496, dando-lhes o prazo de 10 meses para saírem do Reino, sob pena de confisco de bens e

condenação à morte em caso de não respeito a tal ordem. Contudo, devido ao receio de

provocar uma crise financeira em seus domínios, já que grande parte da economia portuguesa

mantinha-se por meio do comércio dos judeus, o rei permitiu que continuassem em Portugal

todos aqueles que se convertessem ao cristianismo.

Em 31 de dezembro, um novo édito foi expedido condicionando a saída dos judeus à

autorização régia. Assim, restringia-se o transporte dos mesmos somente aos navios

licenciados pela Coroa. No ano posterior, na época da Quaresma, o rei decretou que os filhos

dos judeus fossem entregues às famílias cristãs para serem educados e para evitar esta

situação os pais deveriam converter-se ao cristianismo. Ao mesmo tempo, houve a tentativa

de integrar, forçosamente, a comunidade cristã-nova. Para tal, os portões das judiarias foram

destruídos bem como diversas sinagogas. Além disso, ocorreu o impedimento de matrimônios

intergrupo. Para convencer os judeus de que a conversão seria o melhor caminho – para

63 Cf. RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os familiares do Santo Ofício

(1711-1808). 2007. 229f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 64 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. In: Cadernos de

Estudos Sefarditas, (4), 2004, p. 151-152. 65 RIBEIRO, Benair Alcaraz Fernandes. Símbolos de um poder, p.38.

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alguns o único – D. Manuel decretou, em maio de 1497, que por um período de vinte anos

não haveria devassas para avaliar o comportamento religioso dos recém-convertidos.

Entretanto, após a assinatura do acordo de casamento entre D. Manuel e D. Isabel, em

11 de agosto do mesmo ano, a situação dos judeus tornou-se ainda mais complicada, pois os

reis de Espanha condicionaram a concretização do casamento à expulsão definitiva dos judeus

do reino de Portugal. Com o aumento da pressão exercida pelos Reis Católicos, D. Manuel

fechou o cerco sobre a comunidade hebraica, restringindo sua saída a apenas um porto – o de

Lisboa –, reduzindo à condição de escravos aqueles que fossem resistentes à conversão e

promovendo novo sequestro de crianças judias. Tais medidas ocorreram à época do prazo

final estabelecido pelo édito de expulsão, o que gerou grande pânico na comunidade judaica

forçando diversas pessoas à conversão ao cristianismo.

O sofrimento da comunidade judaica durante cerca de um ano (falamos

apenas do processo de expulsão, não da perseguição que se desenvolveu

durante mais de dois séculos e meio contra os descendentes) é tanto mais

duro quanto os primeiros sinais do reinado de D. Manuel iam no sentido da

protecção da comunidade: logo a seguir à sua aclamação em 1495 o rei tinha

assinado numerosas cartas de nomeação e confirmação de cargos que

envolviam judeus e tinha liberto os milhares de judeus cativos nos últimos

anos do reinado de D. João II por não terem satisfeito as condições impostas

à sua entrada no reino66.

A conversão forçada dos judeus foi amplamente debatida na Corte. Enquanto alguns a

apoiavam, havia aqueles que asseguravam a impossibilidade de uma aceitação plena do

cristianismo por parte dos conversos, afirmando que a maioria deles simularia a aceitação e

manteria a prática dos ritos judaicos de modo secreto. Para esses críticos, o batismo forçado

não faria dos cristãos-novos verdadeiros cristãos, o que poderia gerar também o olhar

suspeitoso da comunidade cristã-velha.

Embora não possamos falar de um “bloco de anticonvertidos”,67 no século XVI, grande

parte da população cristã-velha desconfiava dos conversos de tal modo que até mesmo os

utilizavam como bode expiatório quando a situação econômico-social complicava-se.

66 BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas. In: GOUVEIA, António Camões, MARQUES, João

Francisco, (Coord.). História Religiosa de Portugal – Vol. 2. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000, p.50. 67 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: GOUVEIA, António Camões, MARQUES, João Francisco,

(Coord.). História Religiosa de Portugal – Vol. 2. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000, p.97. 67 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição, p.99.

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Exemplo de tal afirmativa é o massacre de cristãos-novos ocorrido em 1506, em Lisboa. À

época, a população lisboeta convivia com uma grande epidemia de peste, o que levou parte

dos cristãos a promover novenas e procissões nas quais oravam pela intervenção divina. Os

ânimos estavam extremamente alterados, qualquer manifestação de descrença poderia aflorar

a violência daquele que se encontrasse em desespero. Foi nesse contexto que durante a missa

um converso apresentou uma análise lógica sobre algo que os demais fiéis atribuíam a um

milagre. Devido às afirmações proferidas, o cristão-novo foi considerado descrente e

assassinado em frente à Igreja de São Domingos, local do suposto milagre. Incentivados por

frades dominicanos, os cristãos-velhos perseguiram os demais cristãos-novos da cidade. O

conflito durou uma semana, diversos conversos foram mortos e tiveram seus corpos

queimados à frente da Igreja de São Domingos, próximo ao Rossio, onde hoje há um

monumento pelas vítimas desse massacre. Houve processo contra os cristãos-velhos

envolvidos e as sentenças variaram entre o confisco de bens e pena de morte.

Em grande medida, a imposição do estatuto de limpeza de sangue e a segregação da

comunidade cristã-nova foram iniciadas pela sociedade civil e posteriormente legitimada e

legislada pela Coroa portuguesa. Os motins e conflitos abertos entre os cristãos-velhos e

cristãos-novos foram os impulsionadores das mudanças promovidas em relação à segregação

política e social imposta aos conversos pelas leis do reino, ou seja, a segregação iniciou-se,

em Portugal, de baixo para cima, ao contrário da Espanha. Em Espanha, a “limpeza de

sangue” iniciou-se devido à inserção cada vez maior de cristãos-novos nos cargos políticos de

importância, gerando a rivalidade entre eles e os cristãos-velhos da elite. Já em Portugal, os

conversos

não tiveram tempo para conseguir uma inserção tão importante [...] nas

oligarquias urbanas, nos cargos públicos ou nas ordens superiores da

sociedade. [...] A inserção social dos cristãos-novos é feita, no caso

português, sobretudo ao nível dos mesteres, embora a parte mais ‘visível’ da

comunidade, naturalmente uma ínfima minoria, obtenha contratos de

arrendamento da Coroa, da Igreja e da nobreza, estruture redes de

mercadores que se espalham pelo império68.

Como afirma Francisco Bethencourt, o fato desses primeiros conversos terem sido

retirados dos guetos, em que viviam separados da comunidade cristã, não significou, para

68 BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas, p.54.

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grande parte desse grupo, o fim da segregação, muito pelo contrário. O que se pode notar,

tanto pelos processos inquisitoriais quanto pelos relatos dos levantes contra cristãos-novos, é

que esses não foram completamente integrados na sociedade portuguesa, nem mesmo

doutrinados em sua nova fé. Segundo Bethencourt, “a quebra de fronteira física com a

comunidade cristã acaba por se revelar perversa, pois o inimigo passa a estar no seio da

própria comunidade de convertidos” 69, gerando, assim, uma grande suspeição dos cristãos-

velhos para com os cristãos-novos. E ainda, mesmo os membros deste último grupo

suspeitavam uns dos outros no que se refere às práticas judaicas, havendo assim um grande

volume de denúncias entre eles. Explicitar tal noção é fundamental para não afirmarmos o

engodo de que todo cristão-novo era judaizante, ou o contrário, negar sua existência

classificando a Inquisição como uma “fábrica de judeus”70, mas ratificar a diversidade desse

grupo, que de modo nenhum pode ser visto como homogêneo.

Apesar da criação de diversas leis régias e papais que consagravam uma segregação

entre os cristãos do reino português, havia estratégias que permitiam a ação dos sujeitos para

minimizar sua posição neste sistema de exclusão: era comum que o próprio rei agisse de

modo contrário às leis por ele criadas, quando essa ação implicava algum benefício para seu

governo; como por exemplo, quando nomeava conversos para cargos públicos, e /ou dava

títulos de nobreza em troca de serviços à Coroa.

Com a instituição do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, a segregação e a

perseguição empreendida aos cristãos-novos acarretou ainda mais mudanças na sociedade de

então. Leis proibitivas e punitivas tornaram a existência dos conversos, e sua relação com os

demais componentes da sociedade, ainda mais complicada mesmo após o fim da distinção

entre esses grupos, em 1773. É sobre a formação da Inquisição, e das implicações da ação da

mesma sobre a sociedade, que versaremos agora.

69 BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas, p.56. 70 SARAIVA, José António. Inquisição e cristãos-novos. 5. Ed. Lisboa: Editorial Estampa 1985, p.21-127.

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1.2 O estabelecimento e a consolidação da Inquisição Moderna em Portugal: uma teia de

forças e motivações

A criação do Tribunal do Santo Ofício está associada às questões de caráter religioso,

político, econômico e social. Sabemos que tais questões não podem ser vistas de modo

isolado, posto que se imiscuíssem de tal modo que a fronteira entre elas era muito tênue e os

limites de atuação das instituições tornaram-se “objeto de disputa e concorrência, eriçadas de

mútuas dependências”71. Além disso, entendemos que “a diferenciação e a definição das

autonomias relativas aos espaços de atuação do que hoje distinguimos como ‘político’ e

‘religioso’, é consequência da disputa histórica entre esses espaços”72. Assim, por mais que

pontuemos as motivações supraditas de modo separado não queremos dizer que elas

estivessem isoladas, mas apenas utilizaremos esse modo de análise para sistematizar a

discussão.

No que se refere à questão religiosa, o Santo Ofício foi estabelecido para fiscalizar,

reprimir e perseguir heresias e outros desvios morais – seja no comportamento, seja no

discurso. Assim, havia “perseguição a quaisquer indícios de religiosidade que pudessem

atacar a pureza do cristianismo buscada pela Igreja”73. O Tribunal exercia, também, a função

de regulador social, limitando a ação de determinados atores sociais leigos – como os cristãos-

novos, que considerados de “sangue impuro” eram proibidos de ocupar determinados cargos –

e ampliando a ação de outros – como os Familiares do Tribunal74.

É preciso salientar que o Tribunal da Inquisição não possuía jurisdição sobre os judeus,

pois esta só podia ser exercida sobre os cristãos. Quando o Tribunal foi estabelecido em

Portugal, os primeiros judeus já estavam proibidos de ali viver, e os remanescentes haviam

passado pelo processo de conversão ao cristianismo, estando, estes sim, sob a jurisdição do

Santo Ofício, que atuava perseguindo os conversos suspeitos de continuarem a praticar os

71 TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância

legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.40, 1994,

p.110. 72 TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social, p.110. 73 ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Inquisição como espelho da intolerância: cristãos-novos e criptojudeus na

mesa do Santo Ofício. In: V Encontro Nordestino de História, 2004, Recife. Anais Eletrônicos, p.2. 74 “De acordo com os regimentos inquisitoriais, os Familiares exerciam um papel auxiliar nas atividades da

Inquisição, atuando principalmente nos confiscos de bens, notificações, prisões e condução dos réus”.

RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os familiares do Santo Ofício (1711-

1808). 2007. 229f. Dissertação (Mestrado em História), p.63.

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ritos judaicos. A intolerância em relação à fé judaica, contudo, é bem anterior ao

estabelecimento da Inquisição, como já citamos anteriormente. Segundo Jean Delumeau,

desde o começo da Idade Moderna a população cristã já manifestava temor em relação aos

judeus, medo que foi alimentado pelos poderes políticos e religiosos.

Delumeau – sem querer simplificar demasiadamente a questão que é deveras complexa,

mas ao mesmo tempo querendo pontuar alguns elementos fundamentais – afirmou que a

manifestação antijudaica da população europeia, de modo geral, advinha de dois componentes

que se somavam:

De um lado, a hostilidade experimentada por uma coletividade – ou por uma

parte desta – em relação a uma minoria empreendedora, considerada

inassimilável e capaz de ultrapassar um limiar tolerável no plano do número

ou do êxito, ou nos dois ao mesmo tempo; e, de outro, o medo sentido por

doutrinários que identificam o judeu como o mal absoluto e o perseguem

com seu ódio implacável mesmo quando ele foi repelido para fora das

fronteiras.75

Segundo o autor, criou-se, desde a Idade Média, a imagem dos judeus como se fossem

os próprios agentes do Demônio, responsáveis por pestes e outras pragas que assolavam a

Europa à época. Eram considerados vis e usurários que deixavam os pobres em situação de

miséria e acabavam com o comércio dos pequenos. “Eles [eram] a própria imagem do ‘outro’,

do estrangeiro incompreensível e obstinado em uma religião, dos comportamentos, de um

estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe”76. Esse receio em relação à

religião e aos costumes dos judeus não deixou de existir quando a categoria social foi extinta,

a partir de então os conversos passariam a ser o alvo do preconceito.

Delumeau ainda salienta que seria um erro afirmar que o discurso ideológico era apenas

uma expressão dos sentimentos de parte da população e da realidade econômica e social,

afinal motivações políticas estavam também em jogo.

No que se refere à motivação política, um dos principais atores envolvidos é o próprio

monarca português, que desejava estabelecer um Tribunal em seus domínios aos moldes do

75 DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009, p.414. 76 DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800, p.415.

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espanhol – ou seja, ter o controle do mesmo, ligar diretamente a jurisdição eclesiástica à

civil77 –, posto que para ele fosse fundamental ter sob sua jurisdição uma instituição que

tradicionalmente era de controle papal. Assim,

sem menosprezar as causas específicas, religiosas e sociais, do pedido de

estabelecimento da Inquisição, decorrentes de pulsões arcaicas de tipo

étnico, não podemos deixar de sublinhar que o pedido se insere numa

estratégia de ‘naturalização’ e ‘estatização’ da Igreja, caracterizada pela

intervenção crescente do poder régio na organização da hierarquia

eclesiástica78.

O processo de estabelecimento do Tribunal foi longo, teve seu início no ano de 1516, e

foi o resultado de uma negociação intensa entre Coroa e a Cúria romana. A Inquisição

portuguesa, já em 1531 possuía um inquisidor-geral – Frei Diogo da Silva –, entretanto,

somente em 1536 foram definidos os contornos da instituição, bem como a regularização de

sua atividade. Sua definição estatutária só foi concretizada com a publicação dos Regimentos,

cujo primeiro data de 1552. Para seu pleno estabelecimento, foi providenciado um rito em

Évora no qual estavam presentes o rei Dom João III e o inquisidor-geral, Frei Diogo da Silva.

A bula papal que oficializou o Tribunal permitia ao mesmo grande autonomia em relação a

Roma, articulando-o com o aparelho do Estado, permitindo a criação de uma legislação

própria e uma definição do que seria considerado ou não como heresia79.

A demora da instauração do Tribunal do Santo Ofício em Portugal deve-se, também, à

atuação de judeus e cristãos-novos junto à cúria romana. As idas e vindas do processo foram,

também, motivadas pelos acordos estabelecidos entre o Papa e os representantes dos cristãos-

novos em Roma. Exemplo desse jogo de forças é a bula papal, expedida em 1535, foi no qual

o sumo pontífice deu o perdão aos cristãos-novos, acusados de judaísmo e também que

anulou os processos movidos contra eles até então. Entretanto, com a movimentação política

entre a Coroa portuguesa e o papado, a mesma bula foi revogada. O jogo político estabelecido

entre o Papa, o Rei e seus agentes e os agentes dos cristãos-novos foi intenso e perdurou por

anos.

Dessa forma, podemos observar que a questão do estabelecimento do Tribunal,

juntamente com a perseguição aos cristãos-novos não podem ser lidas somente pela ótica

77 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições, p.17. 78 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição, p.99. 79 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições, p.356.

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religiosa. Devemos lê-las também à luz dos conflitos e dos acordos político-econômicos que

se entrelaçavam uns aos outros. Ao mesmo tempo, não podemos afirmar que, para o papado, o

poder de negociação dos agentes dos cristãos-novos fosse igual ao do monarca português;

ambos negociavam com os mesmos mecanismos – remuneração –, mas de modo algum

possuíam a mesma força, posto que o Tribunal fosse instituído demarcando o triunfo da

Coroa. Dentro desse jogo, também é preciso levar em conta o contexto europeu e o debate

religioso que o permeou. Estamos analisando um período de Reforma Protestante e de

Contrarreforma, conjuntura na qual o Papa necessitava de apoio dos Estados católicos frente a

uma Europa que se separava política e religiosamente da Cúria romana. Portanto, ceder aos

anseios de um rei católico que almejava estabelecer um tribunal religioso, tornava-se uma

necessidade para o Papa, por mais que este soubesse que havia problemas em deixar tal

Tribunal sob controle régio.

O estabelecimento do Santo Ofício, também deve ser lido pela ótica do conflito

econômico e social dentro do reino português, pois, parte da decisão do rei de criá-lo

relacionava-se “ao domínio na corte do grupo contrário aos cristãos-novos”80. Assim, os

cristãos-novos não eram perseguidos somente pelos grupos menos favorecidos da sociedade

portuguesa, mas também pelos agentes políticos de poder na corte.

Esse jogo de forças não existiu somente na instauração do Tribunal, mas também

posteriormente, sendo que a relação entre o monarca e os convertidos também interferia na

relação entre estes e o Santo Ofício. Em determinados momentos, o poder real impunha-se

com mais intensidade e se flexibilizava em outros, ao sabor das demais forças existentes. Os

decretos de isenção de confisco de bens dos cristãos-novos – por D. Catarina, em 1558 – e da

revogação dessa mesma isenção – executada por D. Henrique, em 1563 – são exemplos desse

movimento de coerção e flexibilização. Questões econômicas nem sempre eram o pano de

fundo da dinâmica, mas em vários momentos podemos destacá-la como motivação, tal como

o acordo estabelecido entre D. Sebastião e os convertidos, no qual o primeiro prometia a

isenção de confisco de bens por dez anos em troca de pagamento de uma derrama no valor

250.000 cruzados.

80 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição, p.97.

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Mesmo no século XVII observam-se vários outros momentos de flexibilização do poder

real sobre os cristãos-novos, cujo cerne era a necessidade econômica da coroa:

É assim que os cristãos-novos obtêm a autorização de saída do reino em

1601 contra um serviço de 170 000 cruzados, o perdão geral de 1605 contra

um donativo de 1,7 milhões de cruzados, novo perdão geral de 1627

disfarçado em édito de graça, isenção do confisco de bens em 1649 contra o

investimento na criação da Companhia do Brasil, apoio régio à proposta de

perdão geral ao papa e ao pedido de reforma da Inquisição em 1671. Estas

posições régias contrárias ao Santo Ofício foram geralmente temporárias,

seguindo-se o natural recuo ou revogação ao fim de alguns anos. 81

Vale ressaltar que a movimentação que implicou perdas e ganhos para a comunidade

conversa - no que se refere ao poder real –, nessa época, relacionou-se, particularmente, ao

período da União Ibérica (1580-1640) e, posteriormente, à Restauração do trono português

pela dinastia dos Bragança. Na primeira metade do século XVII, a Coroa espanhola concedeu

mercês aos conversos em troca de apoio financeiro, essencial para os investimentos de

expansão e proteção de seu Império, sob inspiração da política encetada pelo duque de

Olivares; na segunda metade deste século, com a guerra de Restauração, D. João IV, sob a

batuta do padre Vieira, buscou beneficiar seus apoiadores conversos,82 sendo um dos

exemplos dessa política a proteção que a eles dispensou contra a Inquisição, em troca do

capital que disponibilizaram para a criação da Companhia de Comércio do Brasil.83 De tal

forma, buscamos frisar que, por mais que as questões religiosas fossem extremamente

relevantes na criação do Tribunal do Santo Ofício e na perseguição aos judaizantes, as

questões políticas e econômicas também ganharam grande relevância nesse cenário.

Durante o século XVII, o Tribunal foi suspenso entre 1674 e 1681, por ordem do Papa,

após receber uma petição elaborada por cristãos-novos que denunciavam as iniquidades do

Santo Ofício. Os peticionários criticaram a arbitrariedade dos julgamentos promovidos, posto

que, quando denunciados e inquiridos, os réus não podiam saber quem eram seus

denunciantes e as testemunhas de acusação, nem mesmo “as circunstâncias de tempo e lugar

dos crimes imputados”84. A petição aludia, também, acerca do confisco de bens dos cristãos-

novos que levavam diversas famílias à total ruína econômica, além das consequências

prejudiciais aos descendentes dos condenados que ficavam inabilitados a diversos cargos.

81 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição, p.100. 82 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010, p. 315-318. 83 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês, p.318-335. 84 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições, p.298.

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Outros argumentos foram levantados pelos conversos para deslegitimarem a atuação do

Tribunal como instrumento de controle de heresias. Eles insistiam na afirmação de que o

Santo Ofício havia criado o crime de judaísmo na maioria dos casos, dado ao fato de que

aqueles que iam presos eram torturados até confessarem crimes que jamais haviam cometido.

Tal questão, não se restringiu a esse tempo, mas avançou ao longo da história e da

historiografia, de modo que até hoje debate-se acerca da quantidade de judaizantes existente

no grupo de conversos processados.

Escusado será dizer que no século XVIII esses jogos de interesses e poderes, que

interferiam de modo direto na vida dos cristãos-novos, continuaram e intensificaram-se até a

extinção do Tribunal, em 1821, em decorrência de sua desvalorização cada vez maior e do fim

das relações de poder anteriores à Revolução Liberal. Francisco Bethencourt destaca que,

tanto em Portugal, quanto em Espanha, a extinção do Tribunal não se deu de modo rápido

como na Península Itálica, mas foi resultante do esvaziamento paulatino da ação e do poder da

Inquisição em favor de outras formas de controle social. Com os conflitos decorrentes da

Revolução Francesa, novos projetos políticos, alicerçados numa concepção de sociedade

formada de indivíduos, surgiram e tornaram obsoletos antigos sistemas e instituições, tal

como a Inquisição85.

O período de existência do Santo Ofício foi longo, permeado de conflitos e

perseguições político-sociais que afetaram de modo intenso a vida dos cristãos-novos. Várias

pessoas pertencentes a esse grupo foram denunciadas ao Tribunal e condenadas por delito de

judaísmo.

Milhares de cristãos-novos foram levados aos autos-de-fé, cerimônias nas quais o réu

deveria renunciar a seus pecados perante a Igreja – ou seja, pela Instituição composta pelos

clérigos e por toda a sociedade, – e ouvir sua sentença, que variava de acordo com o suposto

crime cometido: podia-lhe ser imposto o uso do hábito perpétuo; o confisco dos bens ou o

relaxamento à justiça secular, ou seja, a condenação à morte86.

85 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições, p.299. 86 GIMÉNEZ, María del Camino Fernández. La sentencia Inquisitorial. Madrid: Editora Complutense, 2000, p.

72-73. Cf. GORENSTEIN, Lina. Cristãos-novos, identidade e Inquisição - Rio de Janeiro, século XVIII. In:

Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, 4 (1), 2012, p. 48.

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No discurso inquisitorial, o suplício do corpo era o modo de purificar a alma, sendo que,

em casos mais extremos, a purificação era alcançada através da fogueira. O suplício, técnica

punitiva que, segundo Foucault, não deve ser equiparada à raiva, a um mero expressar de

sentimento, tinha por objetivo punir de modo exemplar e não permitir que o determinado

crime cometido pelo supliciado fosse esquecido pelos demais87. Neste contexto, o fogo era

visto como o elemento purificador, tão/ou mais forte do que o batismo e a base para esse

discurso era o texto bíblico:

Respondeu João a todos, dizendo: Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas

eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de

desatar a correia das alparcas; esse vos batizará com o Espírito Santo e com

fogo. (Lucas 3:16)

Entre os anos de 1536 e 1767, 31.349 pessoas foram sentenciadas nos 760 autos-de-fé

realizados pelos tribunais de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa, desse montante, contam-se mais

de 20.000 acusados de judaísmo88. Observa-se, então, que a denúncia por crime de judaísmo

foi o principal motivo que levou os réus a serem processados e sentenciados nos autos de fé

desse período. Esse foi o caso de um grupo de moradores do distrito de Castelo Branco, no

século XVIII. Tal distrito situa-se em uma região limítrofe à Espanha e, desde o século XV,

recebeu grande contingente de judeus que fugiram do reino espanhol. Entre os diversos

processos movidos contra judaizantes que viviam nessa região, encontram-se o de Gabriel

Tavares Pessoa e de seu pai, Sancho Pessoa da Cunha, personagens que agora deterão nossa

atenção.

1.4 Os Pessoa Tavares e o Fundão: os personagens e o cenário

A família Pessoa Tavares era muito extensa, podemos encontrar seus integrantes nas

diversas regiões de Portugal, havendo uma concentração importante no Fundão, aldeia que até

o século XVI, quando se tornou vila, era Termo da Vila de Covilhã, localizada no distrito de

Castelo Branco. Eles formavam uma rede tão complexa e entrelaçada de parentescos que esta

se refletiu na repetição de nomes e sobrenomes de modo tal que os Pessoa de Castelo Branco

87 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2010, p.35. 88 RIBEIRO, Benair Alcaraz Fernandes. Símbolos de um poder, p.41. BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e

polêmicas, p.59-60.

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nos lembram dos Buendía de Macondo, retratados por Gabriel Garcia Marquez em Cem Anos

de Solidão89. A endogamia era uma das características fortes entres os cristãos-novos e isso se

dava por diversos motivos, tanto pelo fato de que algumas famílias queriam manter suas

tradições judaicas, como pelas interdições ao casamento entre cristãos-novos e cristãos-

velhos. Este último ponto será de grande importância para nossa discussão, pois até o século

XIX havia famílias da nobreza cristã-velha que se recusavam a aceitar o casamento entre seus

membros e cristãos-novos, mesmo depois que essa diferenciação passou a ser proibida.

Trataremos dessa questão no terceiro capítulo – quando analisaremos o enlace matrimonial de

uma descendente dos Pessoa Tavares com um membro de uma família da nobreza –, por ora,

situaremos nossos dois personagens principais no espaço geográfico, o distrito de Castelo

Branco, no qual viviam e percorriam seus caminhos.

Castelo Branco é um distrito que pertence à região da Beira Interior – a antiga província

da Beira Baixa. É um dos maiores distritos portugueses, cujos limites, na porção Leste, fazem

fronteira com a Espanha e, a Oeste, com o distrito de Coimbra. Os limites, na porção Norte,

abraçam a Serra da Estrela e chegam até o distrito da Guarda. Aos pés da Serra, corre o Rio

Tejo, o que cria um grande vale que separa as terras portuguesas das espanholas. Em sua

geografia predominam as serras e os vales dos rios afluentes do Tejo, entre os quais, o não

menos importante, rio Zêzere, que nasce na Estrela e corta grande parte desse distrito.

Nessa região, fez-se forte a presença dos seguidores da Lei de Moisés, cujo aumento

populacional intensificou-se nos séculos XIV e XV, devido à migração de judeus castelhanos,

que fugiam dos “motins de Barcelona, Sevilha, Toledo, Valência e Córdova, que se cifraram

em judiarias incendiadas e milhares de vítimas”90. Contudo, os registros oficiais mais antigos

que atestam tal ocupação são as “minutas de cartas de confirmação de privilégio a comunas de

judeus”91, do tempo de Dom Dinis (séculos XIII – XIV). Os judeus ocuparam as principais

vilas e aldeias do distrito, tais como Covilhã, Belmonte, Pinhel e Fundão, imprimindo uma

dinâmica comercial importante, caracterizada pela diversidade de atividades que a

comunidade ali desenvolvia e pelo intenso trânsito de mercadores que, por mais que tivessem

loja fixa em suas vilas, percorriam várias outras para estabelecer negócios e vender seus

89 MARQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. São Paulo: Record, 1998. 90 GARCIA, Maria Antonieta. Um motim no Fundão em 1580. In: Actas das Primeiras Jornadas do Património

Judaico da Beira Interior. Trancoso - Belmonte, 2008, p. 171. 91 TAVARES, Maria José Ferro. Os judeus da Beira interior: a comuna de Trancoso e a entrada da Inquisição.

In: Sefarad (Sef ) Vol. 68:2, págs. 369-411, 2008, p.371.

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produtos nas feiras existentes. Por mais que a presença judaica na região fosse expressiva,

esse grupo ainda constituía a minoria da população.

Ainda que presentes em muitas das urbes da região, apenas em algumas vilas e/ou

aldeias havia comunas administradas pelos judeus. Nas demais, existiam somente pequenas

judiarias, ou seja, “uma simples rua ou travessa satélite de comunas, integradas em concelhos

mais importantes, onde se encontravam as infraestruturas comunais”92, compostas pelos

seguintes elementos: os magistrados, a sinagoga, a câmara de vereação, a escola, o tribunal e

o cemitério ou o adro dos judeus.

Fig. 1. Comunas e Judiarias da Beira interior

Fonte: TAVARES, Maria José Ferro. Os judeus da Beira interior, p.373.

92 TAVARES, Maria José Ferro. Os judeus da Beira interior, p.373.

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No Fundão, até o final do século XV não havia uma comuna, dado que o lugar era

apenas uma aldeia e não uma vila, ainda que os oficiais locais quisessem elevá-la a tal

condição. Para tanto, justificavam a emancipação em relação à Covilhã, por ser o Fundão

“mui grande de mais de 500 vizinhos e muito grande trato e a mais honrada aldeia que no

reino há, aonde há dois juízes e um tabelião das notas que há mais de 80 anos, que está

separado da dita vila por autoridade dos reis passados”93.

Quando foi promulgado o édito de expulsão dos judeus e mouros dos territórios

portugueses, em 1496, os oficiais reais percorreram as vilas da Beira Interior para anunciá-lo

nas praças dos concelhos e nas sinagogas, perante as autoridades locais e a população judaica,

que teve que optar por partir ou converter-se. Muitos judeus se converteram depois que seus

filhos foram tirados de suas famílias e levados às casas de cristãos-velhos que seriam, a partir

de então, seus tutores, a não ser que os pais dessas crianças aceitassem a conversão. Algumas

pessoas converteram-se voluntariamente, mas essas faziam parte de uma minoria que,

“pertencente à elite judaica, obteria uma carta de limpeza de sangue e, por privilégio real,

entraria na pequena nobreza”94.

Com a criação do Tribunal do Santo Ofício, a região recebeu grande atenção por parte

dos Inquisidores. No ano em que se tornou vila, 1580, o lugar foi palco de um motim

promovido por uma parcela da população contra o Santo Ofício, quando um meirinho do dito

Tribunal chegou ao local para fazer uma diligência. Os principais do local foram informados

que no domingo pela manhã haveria a prisão de diversas pessoas após a missa, que ocorreria

no Mosteiro de Nossa Senhora do Seixo. Assim, para evitar a fuga daqueles que receberiam

voz de prisão, os oficiais deveriam comparecer ao Mosteiro para guardar suas portas. Estêvão

de Sampaio – cuja mãe era cristã-nova –, capitão de uma companhia e morador do lugar,

avisou aos cristãos-novos da vila que todos seriam presos no Mosteiro e que, por isso, não

deveriam comparecer à missa. Houve vários conflitos encabeçados por Estevão de Sampaio,

que após a confusão foi preso e, posteriormente, liberado pelo juiz local, que também era

cristão-novo. O motim, segundo Maria Antonieta Garcia, adquiriu fundo mais político do que

religioso, pois dos autos constam querelas políticas intensas entre as autoridades do Fundão e

de Covilhã, relacionadas à recente independência da Vila95.

93 GARCIA, Maria Antonieta. Um motim no Fundão em 1580, p. 179. 94 TAVARES, Maria José Ferro. Os judeus da Beira interior, p.391. 95 GARCIA, Maria Antonieta. Um motim no Fundão em 1580, p. 171-197.

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Nos anos que se seguiram, diversos moradores do Fundão foram perseguidos por serem

considerados “falsos cristãos”, acusados de praticarem secretamente o judaísmo. Segundo

Dom Luís da Cunha, a intensa perseguição aos cristãos-novos fundenenses prejudicou

intensamente o desenvolvimento econômico desta e de outras vilas. Assim ele escreve em seu

Testamento Político:

Da mesma sorte dissera que V. A. acharia certas boas povoações quase

desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilhã,

Fundão e cidade da Guarda e de Lamego; em Trás-os-Montes a cidade de

Bragança, e destruídas as suas manufaturas. E se V. A. perguntar a causa

desta dissolução, não sei se alguma pessoa se atreverá a dizer-lha com a

liberdade que eu terei a honra de fazê-lo; e vem a ser que a inquisição

prendendo uns por crime de judaísmo e fazendo fugir outros para fora do

reino com os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossem

presos, foi preciso que as tais manufaturas caíssem, porque os chamados

cristãos-novos os sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam,

eram em grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver

em outras partes e tomassem outros ofícios para ganhares o seu pão, porque

ninguém se quis deixar morrer de fome.96.

Gráfico 1 – Número de cristãos-novos naturais e/ou moradores do Fundão presos pelo Santo Ofício

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Fundo: Tribunal do Santo Ofício.

No intuito de quantificar os processos por crimes de judaísmo movidos contra os

naturais e/ou moradores no Fundão, fizemos uma pesquisa nos fundos Inquisição de Lisboa e

Coimbra, presentes na base de dados on line do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tal

pesquisa nos revelou a existência de 33 processos no século XVI, 87 no século XVII e 176 no

XVIII. Não é possível saber se se trata da totalidade de processos movidos contra os

96 CUNHA, Dom Luís da. Testamento político, ou Carta escrita pelo Grande Dom Luís da Cunha ao Senhor

Dom Jose I. Lisboa: Impressão Régia, 1820, p.37.

0

20

40

0 0 17 8

2

17

2 1 0 0 1

32

0 1 2 0 2 4

15161112

0 2 1 0 1 0 0 1 06

19

1 06

2 2 1

Núm

ero

de

pri

sões

Ano

Cristãos-novos naturais e/ou moradores da Vila do Fundão

presos pelo Santo Ofício

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judaizantes do Fundão, posto que a pesquisa se restringiu aos processos que foram

encontrados pela plataforma de pesquisa online do Arquivo. Contudo, os dados coletados no

portal são importantes para termos, pelo menos, uma estimativa aproximada dos que caíram

nas malhas do Santo Ofício nessa comunidade de cristãos-novos. Esses dados tornam-se ainda

mais interessantes quando coletamos informações para cada ano. O Gráfico 1 se refere aos

números anuais de prisões de cristãos-novos na vila durante o século XVIII, nosso recorte

temporal.

Podemos observar que houve uma concentração no número de processos em

determinados anos, enquanto em outros não encontramos nenhum. Os dados para Covilhã são

bastante semelhantes no que se refere aos mesmos anos, o que acreditamos ser um reflexo da

convivência intensa entre os moradores das duas vilas, pois nos processos dos residentes de

Covilhã várias pessoas do Fundão foram denunciadas e vice-versa. Muitos moradores da vila

se apresentaram ao Tribunal após a prisão de conhecidos que residiam tanto no mesmo local,

quanto nas vilas próximas. Possivelmente, eles agiram assim por receio, temendo que seus

nomes já tivessem sido citados por algum conhecido. Acreditamos que esta foi a forma de

agir de vários membros da família Pessoa, pois depois que Sancho Pessoa foi preso, em 1704,

seus irmãos e primos se apresentaram ao Santo Ofício, entre os anos de 1705 e 1706. Alguns

mercadores citados por Sancho também o fizeram. Sancho, por sua vez, não se apresentou ao

Tribunal, mas foi preso devido à denúncias de outros cristãos-novos de Covilhã. Como as

denúncias eram secretas não era possível saber ao certo quem os presos denunciavam e

apresentar-se espontaneamente era forma de defesa, pois atenuava a pena e permitia preservar

os bens do confisco pela Inquisição.

As datas nas quais observamos um número elevado de processos (1706, 1712, 1726,

1727 e 1746) coincidem com o período de prisões/apresentações de grande parte da família

Pessoa e de seus parentes colaterais97, os Cunha, também residentes na região. Os integrantes

desse tronco familiar eram muito próximos aos Pessoa e por isso aparecem constantemente

nas confissões de seus membros. Devido a essa proximidade acreditamos ser fundamental

explicarmos mais detidamente como ambas as famílias se ramificaram.

97 Refere-se àqueles que tem um ancestral comum, mas que não são descendentes, nem ascendentes entre si, tais

como os irmãos, os tios, os sobrinhos, os primos-irmãos, os tios-avós e os sobrinhos netos.

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Ao construir o quadro genealógico (Figura 2), cujo ponto de partida foi Gaspar Pessoa

Tavares e Amorim – em sua pessoa nos deteremos no terceiro capítulo –, chegamos ao nome

de Custódio da Cunha, seu bisavô paterno, que era filho de Martinho de Oliveira e Juliana da

Cunha. Custódio era parte cristão-novo98 e casou-se com uma cristã-velha, Madalena Pessoa.

O casal teve três filhos homens, Sancho Pessoa da Cunha (1662)99 – avô paterno de Gaspar

Pessoa Tavares e Amorim –, Manuel da Cunha (1669)100 e Luís da Cunha (1671)101; e duas

filhas, Baptista da Cunha (1668)102 e Francisca da Cunha (1675)103. Tanto Custódio da Cunha,

quanto seus filhos sofreram processos no Santo Ofício por crimes de judaísmo, mas somente

Sancho e Luís foram presos pelo Tribunal.

Fig. 2 – Árvore genealógica de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim*

Fig. 2. Árvore genealógica de Gaspar Pessoa Tavares*

Fontes: ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos 9478 e 4612. ANTT, Habilitações

para a Ordem de Cristo, Letra G, mç. 5, doc. 9.

* Só incluí na figura os ascendentes diretos de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim. Branca Nunes foi a 3a. esposa

de Sancho Pessoa da Cunha. Não foram representados, então, seus tios-avós paternos e seus meio-irmãos, nem a

linhagem materna, restringindo-se esta a seus avós.

98 ANTT. Processo de Custódio da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc. 6946. 99 ANTT. Processo de Sancho Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc. 9478. 100 ANTT. Processo de Manuel da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2109. 101 ANTT. Processo de Luís da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 3037. 102 ANTT. Processo de Baptista da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9035. 103 ANTT. Processo de Francisca da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2347.

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É de Madalena Pessoa e de Manuel Mendes Tavares, respectivamente mãe e sogro de

Sancho, que advêm os sobrenomes com os quais serão batizados seus netos, filhos de Gabriel

Tavares, que se tornaram grandes negociantes e conseguiram justificação de nobreza com os

sobrenomes Pessoa Tavares e Amorim. Analisaremos, posteriormente, a adoção do

sobrenome Amorim pelos netos de Sancho, mas para chegarmos lá ainda há vários pontos a

serem abordados.

Não foi possível analisar a trajetória dos Pessoa partindo do processo de Custódio da

Cunha, pois o mesmo não se encontra disponível para consulta online no site da Torre do

Tombo e não foi tratado arquivisticamente pelo Arquivo. O processo de Sancho Pessoa

também se encontra nesta mesma condição, entretanto uma cópia digitalizada foi adquirida

quando o consultamos in loco, no ano de 2013. Assim, começaremos por analisar a trajetória

dessa família e a mudança de seu status social partindo do processo de Sancho, finalizando

com as análises de documentos diversos sobre Gaspar Pessoa Tavares.

1.4 Pelos caminhos de Sancho Pessoa

Sancho Pessoa da Cunha nasceu em 1662, na vila de Montemor-o-Velho. Seu pai,

Custódio da Cunha, era seareiro – pequeno lavrador – que viveu grande parte da vida em

Montemor-o-Velho, onde conheceu sua esposa Madalena Pessoa. Custódio foi preso pelo

Santo Ofício, em 1669, por crimes de judaísmo, quando Sancho tinha apenas sete anos. Até o

ano de 1671 a família viveu em Montemor-o-Velho, mudando-se para o Fundão,

provavelmente, após o auto-de-fé no qual Custódio ouviu sua sentença. Com o avançar dos

anos a família foi se dispersando, os pais faleceram e os filhos estabeleceram seus próprios

negócios em algumas das vilas do distrito.

Depois da morte dos pais, sua irmã, Batista da Cunha, que era solteira, passou a morar

com ele no Fundão; já seus demais irmãos e sua outra irmã, ainda que residissem em outras

vilas, estavam em contato constante. Sancho sempre se encontrava com Luís, Francisca e

Manuel, quando viajava a trabalho. Todos foram processados pelo Santo Ofício e, em suas

audiências, denunciaram uns aos outros. Confessaram, também, que sabiam de vários parentes

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que haviam sido presos pelo Tribunal e que alguns se reconciliaram, mas que foram presos

uma segunda vez pelo mesmo crime. Ainda que nos possa parecer estranho que pessoas

unidas por laços e parentesco e amizade denunciassem umas às outras ao Santo Ofício, a

situação dos cristãos-novos impelia-os a agir desta maneira, pois tal atitude era vista Tribunal

como parte do arrependimento do processado e servia como atenuante da pena a ser recebida.

Sancho casou-se três vezes, primeiro com Maria Henriques, filha de José da Cruz e

Isabel Henriques, ambos mercadores, cristãos-novos, também presos pelo Santo Ofício. Com

ela, Sancho teve dois filhos, Madalena Henriques104 e Pedro Henriques105. Posteriormente,

casou-se com Beatriz Roiz (Rodrigues), filha de Gabriel Nunes e Isabel Henriques – também

mercadores e cristãos-novos presos por judaísmo –, com quem teve uma filha, Isabel

Henriques106. Por último, casou-se com Branca Nunes107, filha de Manuel Mendes Tavares e

Branca Nunes, que como os demais também foram presos pelo Tribunal. De acordo com o

processo de Branca, ela tinha apenas 17 anos quando Sancho foi preso e eles ainda não tinham

filhos. Gabriel Tavares é fruto deste último enlace.

A perseguição empreendida pelo Santo Ofício aos moradores da região inquietou

Sancho e sua última esposa, Branca Nunes. Segundo ela, em 1704, ano em que as prisões de

cristãos-novos do Fundão voltaram a crescer:

Estando ambos sós por ocasião de falarem nas prisões do Santo Oficio, se

declararam e deram conta, como criam, e viviam na Lei de Moisés para

salvação de suas almas. Depois do que se ficaram tratando e conhecendo por

crentes e subservientes da Lei de Moisés até haverá quatro meses que

prenderam seu marido pelo Santo Oficio108.

Por essa época, Sancho Pessoa mantinha uma pequena loja de panos na vila, onde a

produção de manufatura têxtil prosperava de tal modo que o material lá fabricado era vendido

até fora do reino109. Apesar de manter loja aberta, ele não era somente um comerciante fixo,

pois viajava por várias vilas do distrito de Castelo Branco e também fora dele vendendo seus

produtos, conforme pode ser visualizado na Figura 3. À medida que andava diversas léguas,

104 ANTT. Processo de Madalena Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 6510. 105 ANTT. Processo de Pedro Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 11496. 106 ANTT. Processo de Isabel Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 8146. 107 ANTT. Processo de Branca Nunes. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9028. 108 ANTT. Processo de Branca Nunes. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9028, fl.4-4v. 109 CUNHA, Dom Luís da. Testamento político, p .37.

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estabelecia laços comerciais e de amizade com vários negociantes cristãos-novos e com

parentes próximos ou distantes – seja pelo parentesco sanguíneo, seja pela geografia. Fazia

negócios nas feiras de Golegã, Guarda, São João de Évora (na Lagoa), Covilhã, Orca, Castelo

Branco, Penamacor, Alpedrinhas e várias outras.

Fig. 3. Localidades visitadas por Sancho Pessoa da Cunha em suas viagens de negócio

Fonte: ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra,

proc. 9478.

Enquanto percorria o reino, os filhos de seu primeiro casamento revezavam na

administração da loja. Esta era dinâmica fundamental para os negócios desses comerciantes

cristãos-novos, pois

a família é um auxiliador importante na transação de produtos. Os

mercadores fazem-se muitas vezes acompanhar ou substituir pelos filhos,

mulheres, genros ou outros. Os filhos e as mulheres dão continuidade às

tarefas do mercador e permitem a constituição de uma tradição familiar que

se vai sustentando por um comércio mais ou menos rentável. [...] a família é

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uma unidade de produção, como tal todos participam na actividade familiar,

a mulher e os filhos estão perfeitamente integrados110.

O caminhar de Sancho foi interrompido no mês de outubro de 1704, quando os

inquisidores emitiram um mandado de prisão contra ele, que à época contava 42 anos de

idade. Seu nome havia sido citado por quatro cristãos-novos processados por judaísmo nos

anos de 1704 e 1705. Não demorou nem um mês para que o familiar Nuno Freire de Britto o

levasse à Inquisição de Coimbra, no dia 02 de novembro de 1704. Ao chegar ao Tribunal, foi

ordenado ao alcaide Amaro da Costa que pusesse o réu “na primeira da inferno”111, uma cela

isolada, demasiadamente pequena e escura112, onde a partir de então, Sancho passaria vários

dias até que fosse chamado pelos inquisidores para as audiências. A primeira delas ocorreu no

dia 14 de novembro, para que fosse realizado o inventário de seus bens. Estes não eram

muitos. Segundo ele, não possuía outros bens de raiz a não ser sua loja de panos e baetas do

Fundão, que poderia valer a “importância de duzentos e trinta, ou duzentos e quarenta mil

reis”113. Informou que sua mãe havia lhe deixado algumas casas na vila de Montemor-o-

Velho, mas, por alguma razão não explicada no processo, não se encontrava na posse das

mesmas. Disse ainda que o Doutor Pedro da Cunha, morador do Fundão, lhe devia quarenta e

dois ou quarenta e três mil réis que ele o havia emprestado por partes, sobre penhores de

talheres de prata. Seu sogro, Manoel Mendes Tavares, também lhe devia dinheiro, cento e

vinte mil réis. Somando todos os seus bens arrolados no inventário nos deparamos com um

soma pequena, um conto de réis (1:002$000 réis), mas não sabemos se esse era de fato seu

patrimônio total.

Sancho ficou preso por vários dias até que começou a se confessar a 23 de janeiro de

1705, quando denunciou diversas pessoas, dentre elas Diogo Nunes114, de alcunha o velho,

cristão-novo, mercador, casado com Guiomar Henriques, ambos já presos pela Inquisição de

110 FREITAS, Isabel Vaz de Freitas. Mercadores que cruzam fronteiras. In: Estudos em homenagem ao Professor

Doutor José Marques. Porto: Faculdade de Letras. Vol. 2, 292-300, p.293. 111 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.5. 112 ANDRADE, António J., GUIMARÃES, Maria Fernanda Guimarães. Isabel Luís, La Bonita: puesta en la casa

del infierno por volverse loca. In: Maguén – Escudo. Revista Trimestral de la Asociación Israelita de Venezuela

y del Centro de Estudios Sefaradíes de Caracas. Disponível online: https://goo.gl/F4FF5A 113 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.20v. 114 ANTT. Processo de Diogo Nunes. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4443.

Naturalidade: Proença-a-Velha. Morada: Fundão. Pai: Antão Vaz. Mãe: Guiomar Henriques, cristã-nova. Estado

civil: casado. Data da prisão: 10/07/1674. Sentença: auto-da-fé de 28/07/1674. Abjuração em forma, penitências

espirituais, pagamento de custas.

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Lisboa. Disse Sancho que estava a sós com Diogo, no quintal da casa deste, no Fundão, por

volta do ano de 1685, quando ele lhe disse

que se queria salvar sua alma, cresse e vivesse na Lei de Moisés, em que só

havia salvação; e não na de Cristo Senhor Nosso; e lhe ensinou que por

observância da Lei de Moisés jejuasse e guardasse o dia grande, que vem no

mês de Setembro115, estando em todo o dia sem trabalho, com os melhores

vestidos, e camisa lavada, e sem comer, nem beber senão a noite, em que

havia de cear ervas, e peixe, e coisas que não fossem de carne, em louça

nova principiando o dito jejum, e guardar depois de se lavar o corpo todo: e

que nas quintas-feiras de todas as semanas jejuasse judaicamente estando

sem comer, nem beber senão a noite; e que não comesse carne de porco,

lebre, coelho, e peixe de pele [...]116.

A descrição dos ritos do Jejum do Dia Grande, ou Yom Kippur,117 seguia o padrão das

confissões feitas por vários outros cristãos-novos presos pelo Santo Ofício. José Antônio

Saraiva118 frisou que essas pessoas, na verdade, apenas repetiam as práticas judaicas elencadas

nos monitórios119 publicados pelo Tribunal. Essa questão, de fato, não pode ser negligenciada,

pois sabemos que os inquisidores elaboraram uma estratégia clara de interrogatório onde as

perguntas direcionavam as respostas dos réus, sendo necessário de nossa parte

proceder a uma crítica das fontes e de não as aceitar passivamente, pois todo o

processo estava condicionado à partida. O ambiente do cárcere constitui

apenas a fase final, que não exclui truques120.

Apesar disso, não podemos negar o fato de que algumas pessoas realmente praticavam

ritos judaicos, mesmo que estes não fossem seguidos do modo estrito. Como revela Ronaldo

Vainfas, na falta de sinagogas, de rabinos e mesmo da literatura judaica, que foi

abundantemente sequestrada e queimada pela Inquisição nos séculos que se seguiram à

expulsão dos judeus, os cristãos-novos, à medida que o tempo avançava, conseguiam manter

apenas alguns símbolos exteriores do judaísmo – o criptojudaísmo –, especialmente os cultos

115 “Também conhecido como o Jejum do Dia Grande, o Yom Kippur é o Dia do Perdão, ou o Dia da Expiação,

que no calendário judaico é anual, o décimo sétimo dia do mês [Tishri] do ano. Representa o dia do ano em que

o homem tenta servir a Deus, como o Anjo. Assim, não pode comer nem beber, apenas se dedicar às orações”.

FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no Século XVIII. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2000. 116 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.31 e 31v. 117 Para significado e calendário das festas judaicas ver VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus

portugueses no Brasil holandês, p.177-180. 118 SARAIVA, José António. Inquisição e cristãos-novos, p.124. 119 BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas, p.59-60. 120 BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas, p.60.

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domésticos, cada vez mais estereotipados de sua matriz original, o que se revela claramente

nos testemunhos inquisitoriais121.

Além disso, alguns elementos particulares podem aparecer nessas confissões, como um

ritual que não se repete em outros processos, ou orações que também não são tão recorrentes,

revelando que ao se tornar uma religião secreta e praticada essencialmente no âmbito

doméstico, os ritos e práticas criptojudaicas se individualizaram ao longo dos séculos de

perseguição inquisitorial e mesmo se imiscuíram aos católicos, pois esta comunidade “trazia o

catolicismo do berço”122. Ronaldo Vainfas denomina de judaísmo barroco as poucas práticas

religiosas que os cristãos-novos conseguiram repetir ao longo dos séculos, onde observa

elementos oriundos tanto da tradição judaica quanto da cristã. Como exemplo, citamos um

trecho da confissão de nosso personagem, no qual ele dita duas orações que afirma ter

aprendido com Diogo Nunes e que, segundo este, deveriam ser feitas no Dia Grande do mês

de setembro. Não as encontramos em outros processos pesquisados, nem em pesquisa

bibliográfica. As orações são as que se seguem:

Florença composta, claridade limpa, Adonai Sael, livra Deus desse mundo a

um meu defunto com Arão com Arão, e com todos os serafins lhe

acompanhem a sua alma, que diante do Senhor está.

[...] O Anjo de Deus presente, eu te peço Anjo meu que me leves a minha

alma ao Senhor, que ma criou, eu te peço Anjo meu, que me livres de má

morte, que [ilegível]123

Ambas as orações se referem ao desejo do fiel de que sua alma ascenda aos céus quando

de sua morte. O que chama a atenção é a utilização do nome hebraico de Deus (Adonai) e do

nome de Aarão (Arão), irmão mais velho de Moisés e profeta de Israel124, recorrentes em

muitas preces judaicas; e o que acreditamos ser uma corruptela do nome de Samael (Sael),

121 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês, p.164-183, 221-307. Ao

analisar os processos de cristãos-novos reconvertidos ao judaísmo, ou judeus novos como ele intitula, no

contexto da invasão holandesa no nordeste brasileiro, o autor constata quão pouco os inquisidores conheciam da

religião e ritos judaicos. 122 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês, p.307. O autor dá o

exemplo de Isaac de Castro que optou por ser martirizado pelo Tribunal, ao não renunciar à fé judaica, sendo o

martírio um valor apregoado muito mais pela religião católica, do que a máxima judaica de que para preservar a

vida o judeu pode temporariamente, ou externamente, renegar sua fé. 123 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl. 31v. 124 Êxodo (Shemot) 4:14. TORÁ. A Torá Viva - O Pentateuco e as Haftarot. São Paulo: Mayanot, 2013, p.274.

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que na tradição judaico-cristã era o príncipe dos ares e anjo do julgamento125. Enquanto o

Catolicismo postula claramente a existência de uma vida após a morte e tem como referência

a ressurreição de Jesus e a ascensão de Maria aos céus; o judaísmo, ainda que creia na

imortalidade da alma, não apresenta um retrato claro do que acontece com a mesma após a

morte – segundo algumas interpretações talmúdicas Deus não achou apropriado dizer a seu

povo algo sobre a vida após a morte. Contudo, há a crença de que ao morrer a alma do judeu

ascende aos céus, para o tribunal celeste, no qual dois anjos (um acusador e outro defensor)

colocam numa balança os seus pecados e as miztov (os 613 mandamentos) para decidir o

destino de sua alma126. No cristianismo há uma crença semelhante, a alma do crente é elevada

aos céus, no que é guiada por anjos (especialmente São Miguel) e santos em sua passagem

pelo Purgatório. Assim, a reza proferida por Sancho Pessoa revela claramente a mistura de

elementos das duas religiões nos ritos criptojudaicos encenados por cristãos-novos luso-

brasileiros, em que um anjo é invocado para levar a alma aos céus.

Sancho afirmou que depois do referido encontro seguiu as cerimônias ensinadas por

Diogo Nunes até o momento de sua confissão, quando o Espírito Santo o iluminou e ele

resolveu abandoná-la. Continuando a confissão, acabou por denunciar seus irmãos e vários

outros cristãos-novos mercadores. Entre os denunciados estava seu primo Miguel da Cunha

Falcão, natural do Fundão, filho de Miguel da Cunha Falcão e Guiomar Henriques. Sancho

havia aproveitado sua passagem por Lisboa, por volta de 1700, para ir ao armazém do primo,

ocasião na qual conversaram sobre suas práticas judaicas. Ao ser perguntado pelos

inquisidores se ele sabia que Miguel havia sido preso pelo Santo Ofício, Sancho respondeu

que não sabia. Mas, Miguel se encontrava preso nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa, onde

recebeu, em 1705, a sentença de excomunhão maior, confisco de bens, foi relaxado à justiça

secular127, o que significava, na prática, a pena de morte. Miguel foi um dos poucos da família

a receber sentença tão dura. Muitos anos depois, em 1747, Martinho da Cunha128, sobrinho de

Sancho, filho de Manuel da Cunha, também receberia a mesma condenação.

125 QUÍRICO, Tamara. A iconografia do Inferno na tradição artística medieval. In: ZIERER, Adriana (coord.).

Mirabilia 12. Paraíso, Purgatório e Inferno: a Religiosidade na Idade Média. Jan-Jun 2011, p.14. 126 ASHERI, Michael. O Judaísmo Vivo. As tradições e as Leis dos Judeus Praticantes. Rio de Janeiro: IMAGO,

1987, p.255. 127 ANTT. Processo de Miguel da Cunha Falcão. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

3407 128 ANTT. Processo de Martinho da Cunha de Oliveira. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 8106-1.

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Sancho foi admoestado diversas vezes, mas sempre repetia que não tinha mais culpas a

confessar. Os inquisidores lhe disseram que suas confissões possuíam ainda grandes falhas e

diminuições, que eram “não dizer de todas as pessoas que sabe andar apartadas de nossa Santa

Fé Católica, [ilegível] de todas as cerimônias que fez por guarda e observância da dita Lei”129.

Apesar de citar vários nomes, Sancho apenas denunciava pessoas que ele sabia que já haviam

sido presas pelo Tribunal130 e descrevia ocasiões cujas datas eram anteriores às prisões das

mesmas.

Os inquisidores eram imperativos, mandavam que ele confessasse toda a verdade, que

declarasse todas as pessoas com quem falou sobre sua fé e que, como ele, andavam apartadas

da Fé Católica; que falasse de todas as cerimônias a que compareceu, pois a misericórdia que

ele desejava da mesa seria tanto maior quanto mais cedo acabasse sua confissão. Os

inquisidores forçavam confissões que eles queriam ouvir. Eles sabiam quem havia denunciado

Sancho, sabiam que ele tivera conversas sobre judaísmo com Brites da Cunha, Pedro Lopes

Henriques, Manoel Mendes Pinto, pessoas que ele ainda não havia citado. Sancho retornou

para sua cela com a advertência de que quando se lembrasse de mais pessoas com quem

tivesse praticado judaísmo pedisse nova audiência.

A última audiência na qual Sancho foi ouvido, no ano de 1705, ocorreu no dia 17 de

fevereiro. Depois o réu foi ouvido novamente somente a 24 de março de 1706. Durante esse

tempo ele não foi “mandado para fora”, permaneceu preso nos cárceres durante todo o

processo. Provavelmente isso se deveu ao fato de que enquanto seu processo corria ele

continuou sendo denunciado por diversas pessoas, as quais ele ainda não havia citado nomes e

ocasiões de encontro.

Quando nova audiência foi convocada, a 24 de março de 1706, mais pressão foi feita

sobre o réu. Como os inquisidores possuíam em mãos as confissões de outras pessoas que

denunciaram Sancho, e ele não pronunciava seus nomes, foi-lhe perguntado de modo mais

direto com quem estivera em determinada ocasião e local, no intuito de que ele se referisse

129 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.43v. 130 Essa mesma estratégia pode ser vista no processo de outro Diogo Nunes, cuja “análise da confissão evidencia

a estratégia de relatar aos inquisidores apenas o que já era de seu conhecimento, mantendo a aparência de

colaboração de forma a minimizar a pena”, mas não colocar em risco outros conhecidos. FURTADO, Júnia F.

Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos sertões das Gerais aos cárceres da Inquisição:

o caso dos irmãos Nunes. In: FURTADO, Júnia F. e RESENDE, Maria Leônia Chaves de. (orgs.) Travessias

inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-

brasileiro (sécs. XVI – XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p.228-229.

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aos denunciantes. Ele acabou por mencionar outras pessoas e, ao que tudo indica, não aquelas

esperadas pelos Inquisidores. Esses tentaram pressioná-lo ainda mais, dizendo que tinham em

mãos informações sobre o réu, fatos que ele estava tentando esconder. Informaram-no que

aquela seria sua última admoestação antes do libelo, que seria iniciado porque os inquisidores

concordavam que sua confissão não estava completa e acreditavam que ele estava escondendo

algo.

Sancho ouviu toda a confissão e assinou-a, mas não do modo como fazia anteriormente,

pois seu desgaste físico e psicológico parece evidente quando comparamos essa assinatura

com a do dia de sua prisão. Como se observa na Figura 4, sua caligrafia está menos

trabalhada, o sinal público que ele costumava desenhar tão perfeitamente está mal feito e

segue assim até a abjuração.

Fig. 4 – Assinatura de Sancho Pessoa da Cunha

Fonte: ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra,

proc. 9478.

Dois dias depois Sancho pediu nova audiência e o número de denunciados cresceu

expressivamente. Parece que seu temor aumentou e não hesitou em citar todos os nomes

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possíveis, mesmo assim os inquisidores classificaram sua confissão como diminuta e o libelo

foi aberto.

O procurador acusou-o de ser herege e apóstata, afirmou que sua sentença deveria ser a

de excomunhão maior, com confisco de seus bens e que ainda fosse relaxado à justiça secular

Cum expensis (despesas), o que correspondia à sentença de morte. Em decorrência da leitura

do libelo, Sancho pediu nova audiência em 15 de abril de 1706, dessa vez foram doze páginas

consecutivas de denúncias, uma grande quantidade de parentes foi citada, vários deles sendo

presos em seguida. Passados cinco dias, os inquisidores emitiram um despacho no qual

afirmaram que o réu deveria ser levado em auto de fé público, onde ouviria sua sentença, pela

qual escapou da condenação à morte. Foi arbitrado “cárcere e hábito penitencial perpétuo, e

que fizesse abjuração de seus erros em forma e que incorra em sentença de excomunhão

maior, confisco de todos os bens”131.

Em maio de 1706, o réu pediu nova audiência e denunciou mais pessoas, isso fez com

que os inquisidores emitissem novo despacho no qual afirmavam que anteriormente eles

haviam decidido pela excomunhão maior do réu, mas “visto, porém, como usando o réu de

saudável conselho confessou suas culpas na Mesa do Santo Ofício como demonstrou sinais de

arrependimento pedindo delas perdão e misericórdia[...]”132, sua sentença foi amenizada.

Sancho deveria ainda sair em auto-de-fé público, onde abjuraria de seus erros. Os inquisidores

sentenciaram-no também à:

cárcere, e hábito penitencial perpétuo e será instruído nas coisas da fé

necessárias para salvação de sua alma, e cumprirá as mais penas, e

penitências espirituais que lhe forem impostas e mandam que da

excomunhão maior em que incorreu seja absoluto in forma eccleziae [ou

seja, absolvido] 133

Sancho foi reconciliado em auto de fé público em 25 de julho, mas em 07 de agosto de

1706 pediu audiência com inquisidor para confessar mais culpas e denunciar mais pessoas:

Jorge Roiz Morão (casado com Brites Roiz), Manoel Roiz Morão (irmão daquele, casado com

131 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.78-79. 132 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.84v.- 85. 133 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, fl.87.

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Maria Vargas), Leonor Mendes (irmã dos dois anteriores). Manoel Roiz e Leonor Mendes

foram presos logo após a denúncia. Jorge Roiz já havia se apresentado meses antes. No

mesmo ano vários moradores do Fundão foram presos por judaísmo, 17 processos foram

encontrados no site da Torre do Tombo, o número mais expressivo em relação aos anos

anteriores ao século XVIII.

Após um período preso nos cárceres do Santo Ofício, Sancho Pessoa foi solto e retornou

para o Fundão. Não temos mais notícias dele, mas sabemos que um ano depois teria seu

primeiro filho com Branca Nunes, chamado Gabriel Tavares Pessoa134. Posteriormente o casal

teve ainda mais três filhos: João Pessoa135, Rosa Maria Pessoa136, Miguel Pessoa da Cunha137.

Todos foram processados pelo Santo Oficio por crimes de judaísmo. Gabriel tornou-se um

grande mercador da Praça de Lisboa, mas antes de lá se instalar passou por dois processos

Inquisitoriais. É sobre sua trajetória que trataremos agora.

1.5 Os processos de Gabriel Tavares Pessoa: um mercador do Fundão na Praça de

Lisboa.

Quando Gabriel Tavares Pessoa nasceu, em 1707138, havia mais ou menos um ano que

seu pai deixara os cárceres do Santo Ofício. Sua mãe, Branca Nunes, tinha apenas 19 anos.

Gabriel nasceu no Fundão e lá viveu grande parte de sua vida.

No mesmo ano em que completou 5 anos de idade, 1712, o Fundão passava por uma

grande agitação, pois 32 pessoas que lá nasceram ou viviam foram processadas pelo Santo

Ofício por crimes de judaísmo, dentre essas encontramos vários membros da família Tavares

Pessoa. Seu avô materno, Manuel Mendes Tavares, que residia em Lisboa, havia sido preso a

23 de abril desse ano139. Pelo que consta no site do Arquivo da Torre do Tombo, o processo

134 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612 135 ANTT. Processo de João Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 3785. 136 ANTT. Processo de Rosa Maria Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 11431. 137 ANTT. Processo de Miguel Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

11285. 138 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612. 139 ANTT. Processo de Manuel Mendes Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

11790. Outra forma do nome: Manuel Rodrigues Tavares. Sentença: auto-de-fé privado de 14/03/1714. Cárcere

penitencial a arbítrio dos inquisidores, penas e penitências espirituais.

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de Manuel foi um dos primeiros a ser aberto contra pessoas do Fundão após um longo período

sem que alguém dessa localidade fosse processado pelo Tribunal. Antes de Manuel somente

um processo foi aberto em 1711, o de Beatriz Mendes e outro em fevereiro de 1712, o de

Manuel Rodrigues Preto. Após tais pessoas serem ouvidas várias outras se apresentaram ou

foram presas, inclusive os três meio-irmãos de Gabriel, mais velhos que ele, frutos dos dois

outros casamentos de seu pai: Madalena Henriques, Pedro Henriques e Isabel Henriques.

Todos se apresentaram ao Santo Ofício na mesma semana, Pedro no dia 29 de outubro,

Madalena e Isabel no dia 31. Martinho da Cunha de Oliveira140, primo de Gabriel, negociante

muito conhecido pelos historiadores brasileiros141 por ter se envolvido no comércio de

diamantes das Minas Gerais, também se apresentou nesse ano. Martinho viria a ser preso

novamente, em 1747 e, depois de um longo processo, seria relaxado à justiça secular.

Sancho Pessoa ainda estava vivo em 1712, e ao ver algumas prisões voltarem a

acontecer no Fundão é possível que tenha orientado os filhos mais velhos a se apresentarem,

repetindo, de forma mais célere, a estratégia que lhe poupara a vida e os bens. José Antônio

Saraiva afirma que esta era ação comum entre os cristãos-novos que pertenciam às famílias

cujos membros passaram por processos inquisitoriais. Utilizando-se de um texto de Antônio

Ribeiro Sanches sobre o proceder de alguns cristãos-novos frente à Inquisição, Saraiva

acreditava que “se um parente é preso – ensinam os pais aos filhos – o cristão-novo que ficou

em liberdade deve imediatamente ‘apresentar-se’ na Inquisição, isto é, comunicar

espontaneamente que tem culpas a confessar [...]”142. O autor utiliza tal argumento para

afirmar que a Inquisição, no intuito de colocar toda a sociedade vigilante em relação aos

judaizantes, difundia demasiadamente os ritos judaicos e com isso acabava por criar “judeus”,

no sentido de que todos que caíssem nas malhas do Santo Ofício, acusados de serem

seguidores da Lei de Moisés, conseguiriam descrever tais ritos mesmo que não os praticassem

efetivamente. Não partilhamos da mesma concepção, pois se trata de uma generalização

afirmar que todos os cristãos-novos confessavam determinadas práticas sem de fato serem

criptojudeus, o mais provável é que sabiam que se apresentar era estratégia para salvar a vida

e os bens. Contudo, concordamos com a possibilidade de que, ao nascer no seio de uma

140 ANTT. Processo de Martinho da Cunha de Oliveira. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 8106. 141 Ver FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo

Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). NOVINSKY, Anita.

“Fernando Pessoa – o poeta marrano”. In: CORNELSEN, Élcio; NASCIMENTO, Lyslei. (orgs.). Estudos

Judaicos. Ensaio sobre Literatura e Cinema. Belo Horizonte: Faculdade de Letras UFMG, 2005. 142 SARAIVA, José António. Inquisição e cristãos-novos, p.125.

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família cujos parentes passaram por processos, uma pessoa poderia ser instruída desde a mais

tenra idade sobre o modo como deveria proceder em relação ao Tribunal.

Nos anos que se seguiram o número de prisões de pessoas do Fundão decresceu. Entre

os anos de 1716 a 1723 não encontramos nenhum processo. Nesse meio tempo, Gabriel

completou treze anos de idade143, quando, na tradição judaica, o menino alcança sua

maturidade religiosa. De acordo com sua confissão, essa foi a época na qual ele foi iniciado,

por Guiomar Nunes, na Lei de Moisés. Segundo Gabriel, ele

se achou com ela estando ambos sós, por ocasião dele confitente estar

rezando pelas suas contas e a dita Guiomar Nunes lhe perguntou o que

rezava e ele confitente lhe dizer que o Rosário de Nossa Senhora, a dita

Guiomar Nunes lhe disse que se queria ele salvar sua alma não rezasse na

Lei de Cristo, mas na Lei de Moisés em que havia salvação para as almas, e

que para sua observância jejuasse e guardasse um dia no mês de Setembro

qual quisesse, estando desde um dia à noite até o outro às mesmas horas,

sem comer nem beber coisa alguma [...].144

Mais tarde, ao ser processado pela Inquisição, o jovem mercador confessou que, desde

esse encontro com Guiomar, passara a seguir os ritos por ela ensinados e a conversar sobre os

mesmos com várias pessoas com as quais se encontrava em suas viagens de negócio. O fato

de ter sido iniciado por uma mulher, cujo papel nos ritos praticados na sinagoga era quase

irrelevante, revela características que o criptojudaísmo adquiriu, pois, para sobreviver, passou

a ser circunscrito ao âmbito doméstico, “e nele as mulheres assumiam papel central”.145

Apesar de Gabriel auxiliar seu pai na administração da loja que possuíam em Ponte

Pedrinha (lugarejo que dista 12 quilômetros de Fundão), ele também não era um negociante

sedentário. Assim como seu pai, caminhava por várias terras, ia de feira em feira vender seus

panos e baetas, como se observa nas localidades que visitou, representadas na Figura 5,

referenciadas em seus depoimentos inquisitoriais. Ele andou por, pelo menos, 29 vilas,

percorrendo serras, vales, atravessando rios, cruzando distritos, firmando negócios e contatos

143ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, fl.

26v. 144 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, fl.62-

62v. 145 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês, p.166. Cf. também:

MONTEIRO, Alex Silva. “Conventículo Herético”. Cristãs-novas, criptojudaísmo e Inquisição na Leiria

Seiscentista. 2011. 317 f. Tese. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro.

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com vários negociantes. Nas viagens que fazia encontrava-se constantemente com parentes

colaterais – também comerciantes e cristãos-novos – que mais tarde o denunciaram ao Santo

Ofício.

Fig. 5 – Localidades visitadas por Gabriel Tavares Pessoa em suas viagens de negócio

Fonte: ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612.

Numa dessas viagens, realizada no ano de 1723, Gabriel esteve acompanhado de seu

primo em segundo grau, Francisco Mendes Veiga. Eles iam do Fundão à feira de Alcains,

quando pararam perto de uma fonte para comer. Quando

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deram graças a Deus, e ele confitente [Gabriel] a fazer com as mãos

levantadas cruzando os dedos polegares, e o mesmo [Francisco] lhe

perguntou por que razão os encruzava, ele [Francisco] perguntou em que lei

vivia, ele [Gabriel] respondeu que na Lei de Moisés146.

O fato de haver Francisco Mendes ter citado uma fonte chamou-nos a atenção, posto

que a tradição judaica postule a necessidade de lavar as mãos antes das refeições e levantá-las,

como gesto de agradecimento a Deus – e também como modo de remover delas a água, de

modo que não se utilize nenhum objeto para secá-las147. Não sabemos se foi esse o ritual

seguido por Gabriel, mas de fato ele assemelha-se muito à esta pratica judaica. Esse encontro

seria lembrado por Francisco quando ele se apresentou ao Santo Ofício, a 08 de novembro de

1726148, data na qual denunciou Gabriel Tavares.

Por essa época, o número de processos movidos contra cristãos-novos do Fundão voltou

a crescer paulatinamente: em 1725 encontramos 4 processos, em 1726 esse número sobe para

15 e em 1727 para 16. Novamente várias pessoas se apresentaram espontaneamente ao

Tribunal e algumas outras foram presas. Nos anos de 1726 a 1727, Gabriel foi denunciado por

7 pessoas, dentre elas estava Manuel Pereira Mendes. Manuel disse que esteve na loja de

Sancho, em Ponte Pedrinha, no ano de 1723, ocasião na qual se encontrou com Gabriel e,

estando ambos sós,

se declararam por crentes, e observantes da Lei de Moises, para salvação da

suas almas, e por sua observância disseram que faziam jejum do dia grande,

que era no mês de setembro [...] ceando então coisas, que não fossem de

carne, e o do Capitão149 na mesma forma, que vem no mesmo tempo, e o da

Rainha Ester que vem no mês de Março, e mais alguns jejuns pelo discurso

[sic] do ano, e faziam a Páscoa do pão ázimo150 por sete dias.151

146 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, Fl.

64v. 147 ASHERI, Michael. O Judaísmo Vivo, p.156. 148 ANTT. Processo de Francisco Mendes Veiga. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

2907. 149 “O Jejum do Capitão, que se realiza oito dias antes do Dia Grande, e é integrante dessa cerimônia”.

FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no Século XVIII, p.156. “o período de penitência

inaugurado no Roshashaná culmina no Yom Kippur. (...) O Roshashaná é uma festa de regozijo no qual os

judeus vestem roupa nova, de preferencia branca – e não apenas lavada, como no sábado – e fazem ceia com as

frutas da estação”. VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês, p.177. 150 Pão sem fermento, também chamado matsá, que os judeus comem no período do Pessach para lembrar do

Êxodo do Egito. O modo como essa efeméride deveria ser celebrada foi dito por Deus à Moisés antes da Praga

Final. “Comam matsá por sete dias. Mas o primeiro dia vocês devem ter suas casas livres de todo o fermento.

Todo aquele que comer fermento desde o primeiro dia até o sétimo dia, terá sua alma extirpada de Israel” Êxodo

12: 15. Torá. A Torá Viva - O Pentateuco e as Haftarot, p.312. 151 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, fl.7-

7v.

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Como nos processos análogos, sua confissão “revela não apenas que seu judaísmo

estava circunscrito a práticas fragmentadas da religião que abraçavam, como eram esses

mesmos indícios que utilizavam para identificar seus semelhantes”152.

Seu primo, Diogo Nunes da Cunha, cujo pai tinha mesmo nome, também o denunciou,

em 18 de junho de 1727. Disse que, em 1723, caminhava com Gabriel por alguns olivais que

ficavam um pouco afastados do Fundão, quando este confessou ser seguidor da Lei de Moisés

e contou sobre os ritos que praticava, mas os inquisidores haviam, até então, dado crédito

diminuto à confissão de Diogo, posto que para eles nela havia “inverossimilidades [sic],

estreiteza de confissão”153. De acordo com o Regimento do Santo Ofício, de 1640, todas as

denúncias deveriam passar por um

rigoroso exame do crédito, probidade, e integridade das testemunhas; e

achando pelo dito exame que elas tem defeitos, que ou lhes aniquilam, ou

debitam, o crédito; e que final (quando não há outra prova qualificada) não

bastam para condenação, não pronunciam nem obrigam os réus pelas ditas

denúncias154.

Outras pessoas que denunciaram Gabriel também tiveram suas confissões creditadas

como diminutas, mesmo assim elas foram utilizadas contra o réu.

Aos 20 dias do mês de junho de 1727, como seus meio-irmãos mais velhos haviam

feito, Gabriel Tavares Pessoa se apresentou espontaneamente ao Santo Ofício, em Lisboa,

acompanhado de um curador – posto que ele tivesse menos de 25 anos de idade155. Ao

confessar suas primeiras culpas e denunciar vários conhecidos, pelos inquisidores “foi-lhe

dito que tomou muito bom conselho em se apresentar nesta Mesa das Culpas que tem

152 FURTADO, Júnia F. Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos sertões das Gerais

aos cárceres da Inquisição: o caso dos irmãos Nunes, p.193. 153 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, fl.10. 154 Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos reinos de

Portugal. Lisboa: Oficina de Miguel Menescal da Costa, 1774. Título II, p.22. 155 “Por quanto, conforme a Direito, se deve dar Curador ao menor de vinte e cinco anos: Na primeira audiência,

que com ele se tiver, fará o Notário Termo de Curador separado da sessão, o qual será assinado pelo Curador;

tendo sempre cuidado de lembrar se observe esta substancial formalidade, antes de se fazer com os menores acto

algum Judicial; como também, que o Curador venha estar presente a todas as sessões; que as assine depois de

lidas; e que no Termo se faça menção, que assisto, e assinou”. Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de

Portugal. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos reinos de Portugal, Título V, p.30.

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confessado”156. Gabriel não ficou preso nos cárceres, foi liberado após a confissão com a

advertência de que não saísse da cidade sem pedir licença ao tribunal, além disso, deveria

comparecer ao mesmo sempre que fosse chamado. Depois que Gabriel foi liberado e levado

para fora do Tribunal, o notário perguntou aos inquisidores se eles acreditavam que Gabriel

havia dito toda a verdade. Esses responderam que não acreditavam que sua confissão fosse

completamente verdadeira, pois ele não havia dito tudo, nem apontado todos os nomes de

pessoas com as quais ele tratara sobre sua fé dos quais já tinham conhecimento a partir de

outras confissões.

Gabriel foi chamado mais duas vezes para confessar, em ambas as ocasiões afirmou que

não se lembrava de mais nada e que não tinha mais nomes a citar. Quando foi perguntado

sobre sua genealogia não informou se seus pais ainda estavam vivos, mas que seus avós

paternos já haviam falecido. Provavelmente o falecimento de seus avós ocorrera antes dele

nascer, ou quando era ainda muito novo, pois ele não sabia o nome deles. Sobre os avós

maternos, disse que sabia seus nomes, local de nascimento, e informou que ambos viveram no

Fundão até falecerem. Chegou a citar vários tios, tias, primos e primas que ele conhecia os

nomes e apontou aqueles que passaram por processo no Santo Ofício. Lembrou-se também de

seu primo, Martinho da Cunha, já aqui citado, dizendo que ele e seus dois irmãos haviam

partido para o Brasil.

Após ser ouvido pela terceira vez, a 09 de julho de 1727, foi advertido pelos

inquisidores que sua confissão era falsa e incompleta e que, por este motivo, estava proibido

de sair de Lisboa. Contudo, Gabriel precisava retornar ao Fundão para cuidar de sua loja e

continuar seus negócios. Assim, nesse mesmo dia em que foi admoestado sobre sua crença,

pediu licença à Mesa para viajar para o Fundão, pelo que foi autorizado.

Ao que parece, depois desse seu primeiro processo, Gabriel mudou-se para a vila de

Penamacor, onde conheceu aquela que seria sua única esposa, Leonor Pereira da Silva, natural

daquele lugar. Manteve sua loja em Ponte Pedrinha e suas viagens por várias outras vilas. Em

Penamacor, estabeleceu um contato bastante estreito com os irmãos de sua esposa: Gaspar

Pereira da Silva, Ana Pereira e Duarte Pereira.

156 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612,

fl.66v.

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Nesse ínterim o número de processos por judaísmo abertos contra pessoas do Fundão

caiu novamente. Mas, tempos mais complicados estavam por vir. Em 1746, esse número

voltou a aumentar e 19 indivíduos foram processados. Dentre eles, encontramos Gabriel

Tavares Pessoa, sua irmã, Rosa Maria Pessoa157 – que foi presa e mantida nos cárceres do

Santo Ofício até outubro de 1747 – e outros parentes colaterais pertencentes à família Cunha.

De 1728 a 1746, Gabriel foi denunciado por 58 pessoas, entre as quais se encontravam

seus cunhados e irmãos, mas a grande maioria de denunciantes era de pessoas com as quais

estabelecera contato durante suas viagens de negócio. A quantidade de denúncias é bastante

expressiva e reflete o quão conhecido Gabriel era – resultado de suas andanças por várias

vilas do reino.

Gráfico 2 – Número de denúncias por judaísmo contra Gabriel Tavares Pessoa

Fonte: ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612.

Apesar da grande quantidade de denúncias envolvendo o nome de nosso personagem, o

Santo Ofício não chegou a emitir termo de prisão. Gabriel se apresentou mais uma vez à

Mesa, na cidade de Lisboa, no dia 22 de novembro 1745, no intuito de confessar suas culpas.

Nessa confissão denunciou diversos parentes – grande parte deles pertencentes à família

Cunha – e também sua esposa, afirmando que a mesma havia confessado a ele, em 1734, ser

seguidora da Lei de Moisés.

157 ANTT. Processo de Rosa Maria Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 11431.

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Ano

Denúncias contra Gabriel Tavares

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Depois de ser ouvido, o réu foi liberado pelo Tribunal. Contudo, após outras duas

audiências, ocorridas nos dia 29 de novembro e 2 de dezembro de 1745 respectivamente, o

deputado do Conselho Geral, Francisco Mendo Trigoso – o mesmo que ouvira seu primo,

Martinho da Cunha, quando este passou por seu segundo processo inquisitorial, em 1746, no

qual foi relaxado à justiça secular – emitiu um parecer afirmando que a confissão de Gabriel

se assemelhava muito às das primeira apresentação do réu, realizada no ano de 1727. Disse

que, como ele apontou poucos nomes, nada muito diferente da primeira apresentação, sua

confissão era vaga e, por isso, deveria continuar preso nos cárceres do Santo Ofício. Assim

ocorreu, Gabriel foi preso pela primeira vez e ficou um longo tempo nos cárceres até que

fosse novamente chamado para continuar sua confissão.

Após a prisão – cuja data não conseguimos encontrar, mas supomos que tenha sido no

mês de dezembro de 1745, quando de sua última apresentação – Gabriel foi chamado para

nova audiência a 01 de setembro de 1746. Nessa altura, disse que não tinha mais culpas a

confessar. Nesta fase do processo, podemos notar que a pressão sobre o réu aumentara. Os

inquisidores exigiam que examinasse bem sua consciência e que confessasse mais culpas para

que fosse tratado com misericórdia pelos inquisidores. Como ele se negou a dizer mais nomes

e cerimônias, citava ocasiões muito remotas, foi enviado novamente ao cárcere.

Certamente compreendeu que seu retorno ao cárcere significava que denúncias mais

recentes sobre sua adesão ao judaísmo deveriam ter chegado à Mesa e era necessário mudar

sua tática, reconhecer sua pertinácia na fé de Moisés e realizar novas confissões. A 08 de

outubro de 1746, Gabriel disse que, desde o ano anterior, quando se apresentara novamente ao

Santo Ofício, não havia mais se apartado da Lei de Moisés. Afirmou que, somente depois de

sua prisão nos cárceres do Santo Ofício, decidira deixar finalmente o judaísmo e a abraçar a

Lei de Jesus Cristo, “porque então lhe abriu Deus os olhos para conhecer que padeceu por

cargo das culpas de judaísmo com que tinha ofendido”158. Disse ainda que suas apresentações

anteriores ao Santo Ofício não haviam sido verdadeiras, “mas sim simuladas e fingidas para o

fim de escapar da pressão do Santo Ofício e das penas que por elas merecia”159. Os

inquisidores questionaram, então, se na confissão de agora, não estaria ele novamente

mentindo para a Mesa? Afinal, ele havia sido tantas vezes dissimulado. Ele respondeu,

158 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612,

fl.112. 159 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612,

fl.112.

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ardilosamente, que agora falava de fato a verdade, que não havia agido assim antes porque

desde sua segunda apresentação os inquisidores não haviam perguntado “especialmente pelo

tempo verdadeiro em que deixou a Lei de Moisés depois de preso, senão agora, e não por falta

de arrependimento das culpas que cometeu”160. Os inquisidores insistiram para que

examinasse mais sua consciência e o mandaram de volta, mais uma vez, ao cárcere.

No dia 10 de outubro de 1746, nova audiência ocorreu. Nela, o réu confessou mais, e

passou a denunciar outras pessoas que ainda não havia citado e ocasiões mais recentes onde

professara o judaísmo. Denunciou não apenas mercadores, mas advogados, como Pedro

Furtado Ferro e Duarte Navarro; médicos, como Gaspar Ribeiro de Paiva; e boticários, como

Antônio Ribeiro de Paiva. Gaspar Ribeiro de Paiva e Antônio Ribeiro de Paiva pertenciam à

uma família que tradicionalmente atuava no campo da Medicina. Os Paiva também

entroncavam com os Cunhas, os Mendes, os Henriques e, por isso, teriam um grau de

parentesco com os Pessoa. Todas elas advinham do Bispado da Guarda e residiam na região

de Penamacor, Alpedrinha, Covilhã, Fundão, Castelo Branco e arredores. Foi no seio desta

família que nasceu o médico Antônio Ribeiro Sanches – tio por via materna de Antônio

Ribeiro Paiva – natural de Penamacor161.

Depois de denunciar inúmeros membros de sua família, Gabriel foi então levado de

volta ao cárcere e foi perguntado aos inquisidores se eles achavam que tinha dito a verdade e

se merecia crédito, ao que eles responderam positivamente. Francisco Mendo Trigoso emitiu

seu parecer final no qual informava que Gabriel não havia sido plenamente sincero em suas

primeiras confissões, tendo abandonado a Lei de Moisés somente depois de permanecer nos

cárceres, por isso ele deveria ir a auto-de-fé com hábito penitencial e sofrer confisco de todos

os seus bens.

Ao final do processo os inquisidores emitiram o acordão no qual salientavam que a

prisão de Gabriel foi necessária porque ele não havia dito toda a verdade, mesmo tendo sido

admoestado inúmeras vezes. Também revela que a pena de excomunhão acabou sendo

extinta, visto que ele colaborou com a instituição. Assim o sentenciaram:

160 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612,

fl.112v. 161 HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira: (1500-1850). São Paulo:

EDUSP, 2003, p.177-181.

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O réu foi herege apostata de nossa Santa Fé Católica e que incorreu em

sentença de excomunhão maior, e confiscação de todos os seus bens para o

Fisco e câmara real, e nas mais penas em direito contra semelhantes

estabelecidas. Visto, porém que como usando o réu de bom e saudável

conselho acabou de confessar suas culpas com mostras e sinais de

arrependimento pedindo delas perdão e misericórdia com os mais que dos

autos resulta. Recebem o réu Gabriel Tavares o grêmio e união da Santa

Madre Igreja como pede: e mandam que em pena, e penitência das ditas

culpas vá ao Auto público de fé na forma costumada, nele ouça sua sentença

e abjure seus heréticos erros em forma: terá cárcere a arbítrio dos

Inquisidores, e hábito penitencial que lhe será tirado depois de lida e

publicada a sua sentença. [...] e mandam que a excomunhão maior em que

incorreu, seja absoluto in forma ecclesia [ou seja, absolvido]162.

O auto foi celebrado na Igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa, no dia 16 de

outubro de 1746 – mesmo local do massacre de 1506, aqui referenciado –, onde esteve

presente o rei, os inquisidores, os ministros, os nobres e o povo. Gabriel assinou o termo de

Abjuração em Forma e o Termo de Segredo, ambos em outubro do mesmo ano. Os

inquisidores o chamaram e o orientaram a não cometer mais suas culpas confessadas no

Tribunal, nem outras semelhantes sob a pena de ser castigado com todo o rigor. Após essa

advertência, Gabriel ainda confessou mais, denunciou pessoas que já haviam se reconciliado

com o Santo Ofício, como é o caso de Simão Mendes163 – cujo nome correto era Simão Nunes

–, filho da Álvaro Mendes, do Fundão. Depois de lida sua última confissão, foi liberado pelo

Tribunal.

A estratégia de Gabriel Tavares Pessoa ainda que dolorosa parece ter sido bem

sucedida. Se a pena de excomunhão foi levantada, ele viu seus bens patrimoniais serem

sequestrados. A humilhação de sair em auto-de-fé foi compensada pelo fato de ter sido

obrigado a vestir o hábito penitencial apenas até a leitura da sentença. Depois disso, pôde

voltar ao convívio da sociedade e refazer sua vida, no que parece ter tido sucesso. Sabemos

que, anos depois, se tornou um grande negociante da Praça de Lisboa, mas não deixou grande

fortuna para seus herdeiros. Seus filhos foram negociantes de imensa importância e

conseguiram Hábitos na Ordem de Cristo e Justificação de Nobreza. Contudo, todas as

conquistas por eles logradas não eram reflexos, apenas, do esforço pessoal de cada um, mas

também da conjuntura política, econômica, social e cultural de Portugal. Com o ministério de

162 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612, fl.

fl.128 e 128v. 163 ANTT. Processo de Simão Nunes. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 5312.

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Pombal, os negociantes de grosso trato e os cristãos-novos viram suas situações sociais

alterarem-se de modo substancial. Assim, antes de nos voltarmos para a trajetória de Gaspar

Pessoa Tavares e Amorim – filho de Gabriel –, que é o personagem principal dessa trama,

analisaremos as consequências da política pombalina sobre a vida dos cristãos-novos e de

seus descentes.

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2 A POLÍTICA POMBALINA: MUDANÇAS NO ESTATUTO SOCIAL DOS

HOMENS DE NEGÓCIO E DOS CRISTÃOS-NOVOS

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior

dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria,

foi a idade da insensatez, foi a época da

crença, foi a época da descrença, foi a

estação da Luz, a estação das Trevas, a

primavera da esperança, o inverno do

desespero...” (Charles Dickens)

O Tribunal da Inquisição permaneceu ativo em Portugal até o século XIX, mas sofreu

mudanças no escopo das heresias que perseguia, especialmente após o reinado de D. José I,

no contexto das reformas pombalinas. Das amplas reformas então empreendidas, duas

interessam ao tema dessa dissertação, a que proibiu a distinção entre cristãos-novos e cristãos-

velhos e as que serviram para reestruturar as hierarquias no interior da própria nobreza,

permitindo a entrada de indivíduos que anteriormente estavam impedidos de fazer parte desse

estado164. Estes eram, em alguma medida, negociantes de origem judaica, que não possuíam

linhagem nobre, mas almejavam nobilitação. Este foi o caso de vários membros da família

Pessoa Tavares, que em meados do século XVIII foram agraciados com títulos honoríficos e

mercês régias devido ao poder econômico e social que eles possuíam.

Desde o século XVII, o crescente número de mercês e títulos concedidos aos não nobres

de nascimento havia gerado incômodo aos membros pertencentes à nobreza, pois para eles

este estado deveria estar diretamente relacionado ao sangue e à linhagem e não deveria ser

alcançado por intermédio de títulos cedidos pela Coroa em retribuição aos serviços prestados.

É sobre a produção do discurso construído em torno da concepção do que é ser nobre

que trataremos a seguir, buscando problematizar esse termo e o modo como foi apropriado

por determinados grupos para deslegitimar outros e/ou para legitimar a si. Adotaremos aqui a

concepção foucaultiana de discurso, definido como uma construção permeada de

intencionalidade, que possui força criadora e materializadora de ideias, utilizado como meio

164 O termo estado é aqui utilizado, baseado na denominação utilizada na literatura jurídica e de teoria social do

período, para se referir ao grupo de pessoas que tivessem sob o mesmo estatuto. Ver: HESPANHA, António

Manuel. Às Vésperas do Leviathan – Instituições e Poder Político em Portugal – Séc. XVII. Lisboa: Almedina,

1994, p.308.

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de legitimar estratificações sociais a serviço dos interesses de determinados grupos. O

discurso, segundo Foucault, está relacionado diretamente ao desejo e ao poder, sendo que o

enunciador de um discurso caracterizado como verdadeiro – socialmente legitimado pelo

poder simbólico165 – faz uso da linguagem para dominar os demais. Nas palavras do filósofo:

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos

que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade166.

Esse discurso – qual seja aquele que qualificava um sujeito como nobre ou não –, tal

como os demais tipos de discursos, era composto por princípios excludentes, arbitrários e que

se construíam a partir de contingências históricas, ou seja, condições modificáveis,

sustentadas por um sistema de instituições. Nele, a vontade de verdade – ou seja, aquilo que o

discurso chama de verdade, sendo ele de tal modo tecido que o componente discursivo se

torna a verdade propriamente dita – se alicerçava em instituições, como a Igreja e a

Monarquia e era reforçada por um conjunto de ideias e práticas, tais como os escritos de

jurisprudência167 que lhe conferiam legitimação e poder.

Analisaremos, então, neste capítulo, esse discurso e as consequências do mesmo sobre a

vida daqueles que pretendiam nobilitar-se. Para isso abordaremos o tema da mobilidade social

no Antigo Regime de modo a problematizar a aceitação de novas correntes de pensamento

que propugnavam tais mudanças na sociedade portuguesa. A análise desses elementos será

fundamental para as questões que se seguirão neste capítulo e para a discussão dos

documentos analisados no terceiro capítulo dessa dissertação, intitulado Quando a honra e o

viver à “lei da nobreza” não apagam a mácula de sangue: o caso de Gaspar Pessoa Tavares,

que tratará do processo de nobilitação deste sujeito.

165 Poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer, de afirmar ou transformar a visão do mundo e,

deste modo, ação sobre o mundo; o poder simbólico somente é exercido quando reconhecido, aceito e quando

não é considerado arbitrário. Tal fato significa e expressa que o poder simbólico não reside nos “sistemas

simbólicos”, em forma de uma “força ilocucionária”, mas se define numa relação determinada entre os que

exercem poder e os que lhe estão sujeitos, ou seja, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz

a crença. O que faz o poder das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subverter, é a crença na

legitimidade das palavras e daquele que pronuncia. BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989,

p.14. 166FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de

dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p.8-9. 167 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p.15-17.

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Posteriormente abordaremos o conjunto de práticas econômicas que se convencionou

chamar de Mercantilismo, imiscuindo a esta análise questões relativas às ações político-

econômicas adotadas por Pombal e as consequências que elas tiveram na vida dos negociantes

e cristãos-novos portugueses, principalmente no que se refere ao status social por eles

alcançado.

2.1 A ascensão social como problema na ordem hierárquica: a questão da nobilitação

Durante a Idade Moderna consolidou-se uma ordem hierárquica que se relacionava à

nova forma política, econômica e social surgida após a formação dos Estados Nacionais, que

por sua vez solidificou-se com o fortalecimento do poder monárquico e o esfacelamento dos

poderes feudais. Este processo permitiu a centralização do poder na figura do monarca, mas

tal processo necessitou de diversos fatores, dentre eles a associação entre concepções políticas

e religiosas que concederiam ao poder monárquico um caráter sacralizado. A esta nova forma

de governo designou-se Absolutismo. A difusão do termo, contudo, é mais tardia, tendo-se

propagado no vocabulário político francês ao final do século XVIII, num contexto em que a

noção de soberania já havia se alterado – soberano não era mais o monarca, mas sim o

povo168.

No que se refere ao Absolutismo português, tornou-se corrente na atual historiografia as

análises que apontam para uma descentralização do poder monárquico durante o Antigo

Regime. António Manuel Hespanha, que volta sua análise para o século XII, questiona a

centralidade do poder, afirmando que

a centralidade ‘do Império’ dissolvia-se num emaranhado de relações

contraditórias entre uma multiplicidade de pólos, nos quais a coroa ocupava

lugares e hierarquias diversas, frequentemente insignificantes, por vezes

escandalosamente rebaixadas; e em que, em contrapartida, tanto se

alevantavam poderes locais altaneiros, como as tais sombras dos

‘funcionários’ régios se alongavam em dimensões autónomas, cobrindo e

dando legitimidade prática a toda a sorte de iniciativas e ousadias, que os

regimentos rejeitavam e as cartas régias mal podiam contestar169.

168 VIANNA, Alexandre Martins. “Absolutismo”: os limites de uso de um conceito liberal. In: Revista Urutágua

- Revista Acadêmica Multidisciplinar, n.14. Maringá (PR), dez de 2007/jan-mar de2008, p.1. 169 HESPANHA, António Manuel. Depois do Leviathan. In: Almanack Braziliense, n°05, maio 2007, p. 58.

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Para Hespanha esse sistema mantinha-se por meio de elementos como dom, contra-

dom, graça e punição, que perpassavam todo o corpo político e constituíam-se de

compromissos hierarquicamente definidos sem os quais seria impossível ao monarca

governar. Contudo, contradizendo tais afirmações deste autor, Alexandre Vianna Martins

afirma que esses mesmos elementos são aqueles que, justamente, fortalecem o poder régio,

pois

se tal lógica não fosse comum a todo o corpo político, não haveria efeitos

agregadores e a possibilidade de centralização política. Nesse sentido, a

centralização política é o resultado da acomodação relativa de uma tensa

concorrência de tipo senhorial-clientelar entre diferentes graus de forças

centrípetas e centrífugas. Ocorre a acomodação entre as partes quando uma

delas emerge com mais poder (militar e financeiro) e configura para si um

território por onde estende sua preeminência política (auctoritas). No

entanto, uma vez definido um centro, os seus meios de manter a auctoritas

sobre um território continuam operando sob a forma patrimonial-estamental,

ou seja, a centralização política não pressupõe a destruição dos corpos de

privilégios ou a despatrimonialização do poder político. Portanto, não se

pode confundir a noção de centralização política na Europa Moderna com a

noção de soberania da forma burocrático-liberal de Estado, pois esta última

pressupõe um nivelamento político-jurídico da sociedade.170

O fato da “Razão de Estado”171 ter como prática a concessão de mercês àqueles que

auxiliassem nas questões político-econômicas do Estado, alterou substancialmente a

constituição hierárquica da sociedade de Antigo Regime. Esta era configurada de modo

estamental, na qual um conjunto de questões econômicas, políticas e sociais – categorias

como linhagem, prestígio e honra – eram os principais elementos que refletiam nas relações

de poder nela estabelecidas172. Sua conformação

se efetiva pelos grupos de status, os quais são determinados por uma

estimativa específica da honra e se estratificam pela usurpação dessa

honraria, ditando regras quanto ao estilo/tom de vida aos pertencentes de um

mesmo círculo [...]. O conjunto de direitos e deveres, inerente aos

estamentos, fundamenta hierarquias. As distinções são mantidas por

170 VIANNA, Alexandre Martins. “Absolutismo”, p.1. 171 Esta diz respeito às decisões políticas do monarca, que não mais seriam subordinadas à religião, assim o que

tal ideia promove é “a autonomia do político e o fechamento da sua racionalidade numa arquitectura que tem por

chave o novo conceito de soberania”. Observamos, então que “aquilo que o discurso da razão de estado consagra

é tão só a emergência da política face a outras instâncias de que anteriormente se tinha por subordinada”.

AURELIO, Diogo Pires. Antinomias da razão de estado. 2012. Disponível online:

http://ifilnova.pt/file/uploads/26e91beed8cc1cf36bf35b3c26992f8a.pdf, p.4-5. 172 WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: Impr. Oficial; Brasília, Ed. Unb, 2004.

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convenções ou leis que garantem aos grupos de status privilégios e

monopólios173.

Em Portugal, o vocabulário social que dava os contornos desta sociedade era, em grande

medida, configurado pelos grupos que detinham o poder político e econômico, e que por este

motivo impunham-no aos demais. Tal vocabulário dividia a sociedade numa ordem

hierárquica fundada na tradição e legitimada “pelo tempo e pela história, uma história com

origens medievais incontornáveis. Com efeito, tinha como referente remoto a representação

trinitária da sociedade, comum a todo o Ocidente”174.

Se ao analisarmos essa sociedade nos prendêssemos unicamente em seu vocabulário

social hierarquizante a interpretaríamos como demasiadamente rígida e pouco propensa à

mobilidade social. A existência deste vocabulário, no entanto, não pressupõe que a

representação sugerida pelo mesmo seja “imediatamente visível, nem nos assegura que exista

uma correspondência linear entre os corpos sociais definidos pelo direito e as hierarquias

sociais”.175 A historiografia contemporânea já demonstrou como essa hierarquia social era

permeável e como os sistemas normativos que a compunham – e que por ela eram compostos

– estavam repletos de “brechas” que tornavam possíveis a atuação dos sujeitos sociais por

seus meandros176. A situação dos cristãos-novos no reino português torna-se exemplo desta

afirmativa, pois, até o período pombalino, como nos apresentou Júnia Ferreira Furtado:

A legislação portuguesa, seguindo os mesmos passos que a Inquisição, era

severamente excludente e segregacionista em relação aos cristãos-novos. Em

uma sociedade regida pelas regras de nascimento, a necessidade de provas

de limpeza de sangue impedia qualquer forma de concessão de honrarias, e,

consequentemente, de ascensão social, a seus membros. Entretanto, a

realidade não seguiu a estreiteza da lei. Como os cristãos-novos eram

predominantes no comércio, nas profissões intelectuais, liberais e também

em funções administrativas relativas ao controle das rendas, tão importantes

para o Reino, foi necessário criar mecanismos que burlassem as próprias

regras estabelecidas177.

173 LEMOS, Marcelo Rodrigues. Estratificação social na teoria de Max Weber: Considerações em torno do tema.

In: Revista Iluminart, Ano IV, nº9, 5 Nov/2012. p. 118-119. 174 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico no final do Antigo Regime, p.5. 175 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José.

História de Portugal. Volume 4 – O Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1997, p.297. 176 Cf. OLIVAL, Fernanda. O acesso de uma família de cristãos-novos portugueses a Ordem de Cristo. In: Ler

História, 33. Évora: Departamento de História da Universidade de Évora, 1997. FURTADO, Júnia Ferreira.

Chica da Silva e o contratador dos diamantes. MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue. GINZBURG,

Carlo. O Queijo e Os Vermes. 177 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: interiorização da metrópole e do comércio nas Minas

setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p.33.

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As mudanças ocorridas na hierarquia social eram vistas, pelos homens deste período,

como uma perturbação da ordem política e social, mesmo que esta fosse possibilitada pela

mercê régia. Aliás, a nobilitação por meio desse processo era, comumente, mal vista pelo fato

de ser encarada como algo não natural, e que se tivesse de ocorrer que fosse de modo

paulatino, a ponto de ganhar contornos de naturalidade. Como afirmou António Manuel

Hespanha:

A mudança de situação na sociedade é, antes de tudo, um processo natural,

como a mobilidade das estações do ano, a gestação dos seres vivos, a

corrupção ou a revolução das coisas. Por isso, tem os seus processos e

trâmites devidos, produz efeitos também devidos e esperados, tem os seus

tempos e ritmos, sobretudo, exige uma duração que lhe permita “ganhar

naturalidade”178.

Nesta taxionomia que hierarquizava a sociedade, a nobreza era classificada como

detentora do poder político, e a forma como ela se caracterizava tornara-se fundamental para

sua afirmação e legitimação no poder, afinal, nobreza não significava apenas uma dignidade,

“mas uma dignidade à qual correspondiam privilégios. [...] Desde os finais da Idade Média

que esses privilégios foram sendo progressivamente institucionalizados, ou seja, consagrados

e inscritos no direito, na ordem jurídica”179. Por este motivo, criar uma taxionomia que

determinasse quem deveria inserir-se neste estado – ou não – era primordial. Contudo, este

grupo não era monolítico, mas sim caracterizava-se por uma intensa complexidade que torna

difícil a delimitação de seu contorno.

A complexidade deste grupo relaciona-se aos elementos responsáveis por qualificar –

ou desqualificar – um sujeito como nobre, e tais características foram construídas ao longo

dos séculos e de modo conflituoso. De acordo com Nuno Gonçalo Monteiro, antes do século

XV os nobres eram identificados, geralmente, pelas funções militares que exerciam. Já no

alvorecer da modernidade, surge outra concepção na qual o fator determinante era a

“qualidade” do indivíduo. Este termo refere-se à “qualidade de nascimento”, ou seja, um

estatuto que cada um possuía mesmo antes de nascer. O próprio termo utilizado neste período,

fidalgo (hijo de algo), acentuava a questão da hereditariedade, apesar de manter-se atrelado ao

178 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. In: Tempo, v.1, n.2,

p.121-143, 2007, p.125. 179 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico..., 2005, p.5.

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referencial fundador, em grande medida associado às funções militares180, no entanto, uma

concepção não desapareceu com o surgimento da outra.

A nobreza portuguesa era composta também por aqueles que recebiam títulos

honoríficos da Coroa. Ao longo dos séculos XVI a XVIII, a Coroa passou cada vez mais, a

dispor dos mecanismos para regular o espaço social da nobreza, distribuindo mercês aos que

se empenhassem em custear e apoiar seus empreendimentos e o ato de negar uma mercê podia

ser visto, inclusive, ou como uma ofensa ou como falta de grandeza por parte do rei181.

As monarquias instituíram, com efeito, sistemas de remuneração de serviços.

Em muitos casos, recorreram também à venda de ofícios nobilitantes, o que,

no entanto, não se verificou em Portugal a não ser numa escala reduzida.

Através destes processos podiam conceder aos seus súbditos, não apenas

benefícios materiais vários, mas ainda as tão procuradas honras e

distinções182.

A venalidade de títulos e honras não pode ser entendida apenas como um “intercâmbio

mercantil” – no qual um sujeito concedia um recurso esperando um retorno material –, mas

também como um “intercâmbio aristocrático” – um mecanismo de empréstimo à Coroa no

qual não haveria interesse de um retorno monetário por parte de financiador, mas sim de um

benefício social. Desta forma, a venalidade seria uma estratégia de fortalecimento do poder

monárquico, pois teria como consequência o fortalecimento da relação entre a Coroa e seus

súditos fiéis183.

Diversos tratadistas debateram sobre o controle que a monarquia deveria ou não exercer

sobre o vocabulário social oficial. Havia aqueles que defendiam a prerrogativa da monarquia

em definir o estatuto social dos membros que compunham a nobreza, cabendo a ela classificar

seu vassalo como Conde, Fidalgo, Marquês, etc. Álvaro Ferreira de Vera, em seu tratado

publicado em 1631, intitulado: Origem da nobreza politica, blasoes de armas, appellidos,

cargos & titullos nobres, defendia uma nobreza atribuída pela Coroa, como mercê por

180 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico..., 2005, p.5-6. 181 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, mercê e venalidade em Portugal

(1641-1789). Lisboa: ESTRAR, 2001, p.39. 182 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico..., 2005, p.6. 183 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista. In: Revista de História, São

Paulo, nº 169, p. 83-110, julho / dezembro 2013, p.99.

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serviços prestados a ela, salientando, porém, que a linhagem também era fator importante

enquanto critério de nobreza. Com relação a isso afirmava que

não porque a linhagem seja causa eficiente, como o é a virtude remunerada

pelo Príncipe, se não porque já o Príncipe enobreceu aquela geração em

cabeça do primeiro e lhe deu a eles a mesma nobreza. E assim estes, que são

nobres por linhagem, não têm mais privilégios que o primeiro daquela sua

linhagem. Porém, tem uma estima maior por se haver aquele seu princípio

dilatado e continuado nos descendentes com a propagação natural e

antiguidade no tempo. De tal maneira que quanto mais se dilatar e mais

antiguidade tiver, tanto de mais estima irão cobrando os descendentes deste

primeiro autor da tal nobreza184.

A ampliação do conceito de nobreza, que incorporava aqueles que conseguiram inserir-

se neste estado por meio das mercês, passou a ser vista por parte de membros deste grupo

como banalização e descaracterização de seu status. Desta forma, para atribuir um caráter

diferenciador entre os membros que a compunham, a doutrina jurídica passa, já no século

XVII, a utilizar o conceito de “nobreza civil ou política” para diferenciá-la da nobreza

“natural”, de sangue – a fidalguia. Esta nobreza “natural” correspondia ao topo da pirâmide

social, enquanto a “política” referia-se à baixa nobreza, aos nobilitados. Tal diferenciação era

essencial para evitar maiores conflitos entre o monarca e os componentes da alta nobreza, que

pleiteavam diferenciação entre eles e os nobilitados. Um fator de distinção dentro da própria

nobreza era fundamental, pois “detentores do monopólio da honra, os reis e a alta nobreza

eram honrados, puros de sangue e reuniam, portanto, as melhores qualidades. Assim, atuavam

como modelos e mantinham-se superiores aos plebeus endinheirados”185. Faz-se necessário

chamar a atenção para um detalhe, várias dessas mesmas famílias da alta nobreza, que tanto

criticavam os nobilitados, somente alcançaram o topo da hierarquia social por meio de títulos

conferidos pelo rei Dom João IV, em retribuição ao apoio durante a guerra de Restauração, no

século XVII186.

Em outros textos, não jurídicos, também se encontra a diferenciação entre nobreza

“natural” e “civil”, tal como podemos observar no trabalho genealógico escrito por Manuel

184 VERA, Álvaro Ferreira de. Origem da nobreza politica, blasoes de armas, appellidos, cargos & titullos

nobres. Lisboa: Livro Aberto, 2005 apud XAVIER, Ângela Barreto. “O lustre do seu sangue” Bramanismo e

tópicas de distinção no contexto português. In: Tempo, v.15, n.30, p.71-99, 2011, p.92-93. 185 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.90. 186 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo regime e o Liberalismo. Lisboa: Imprensa de

Ciências Sociais, 2012, p.83-103.

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José da Costa Felgueiras Gaio, produzido no século XVIII, intitulado Nobiliário de famílias

de Portugal:

A nobreza divide-se em hereditária, e Política, ou Civil. A hereditária é uma

antiga sucessão de sangue de uma Antiga Família que teve Pessoas Ilustres e

Famosas em Armas ou Letras, ou outro exercício honesto. A nobreza

Política, ou Civil é aquela que algum logra, não pela sucessão o sangue; mas

por respeito do posto ou cargo que ocupa.

A nobreza hereditária se conhece pelos brasões de armas adquiridos pelos

fatos heroicos, e nobre dos antepassados, e pelos apelidos Nobre, e

antigos.187

Paulatinamente, essa diferenciação extinguiu-se dos textos jurídicos – fato favorecido,

como veremos, por uma legislação monárquica que buscou alargar o limiar deste estado e

consagrar definitivamente a compatibilidade entre nobreza e comerciantes de grosso trato –,

mas não deixou de ser utilizada pelos nobres de linhagem para se diferenciarem dos demais. É

preciso ressaltar que, apesar da lei e da doutrina jurídica determinarem quem era nobre ou

não, a prática, os usos e os costumes eram fundamentais para definir, rearranjar e legitimar os

contornos desse grupo em relação aos não nobres de nascimento188.

O discurso de manutenção hierárquica do corpo social estava ancorado na perspectiva

neotomista da Segunda Escolástica, que defendia a ordem natural das coisas – voltada ao bem

comum189 – no intuito de harmonizar a sociedade e pôr fim aos conflitos oriundos do desejo

de ascensão social de determinados grupos. Apropriando-se das leituras que São Tomás de

Aquino fez da concepção de Cosmos de Aristóteles, os neotomistas portugueses

preconizavam uma noção corporativista do poder e da sociedade, afirmando que Deus havia

atribuído funções específicas a cada um de seus membros, cuja organização se dava da

seguinte forma: a cabeça era o rei, que deveria governar pelo bem comum, buscando a

manutenção da ordem social e atribuindo a cada um aquilo que lhe era próprio; os braços, a

nobreza, responsável pela defesa do reino; o coração, o clero, responsável pelo culto, pela

religião; e os pés, os camponeses, provedores do sustento material190. Esse modelo era

simbólico, posto que as transformações sociais ocorridas desde fins da Idade Média já não

187 GAIO, Manuel José da Costa Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal. Tomos I-II. Braga: Pax, 1938-

1939, p.19. 188 SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-

1808). São Paulo: Hucitec, 1997, p.175. 189 ATALLAH, Claudia Cristina Azeredo. Neotomismo e Antigo Regime em Portugal: uma discussão sobre a

atuação da justiça. In: Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008, p.3-4. 190 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan, p.297-306.

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mais correspondiam a esse esquema triádico: afinal, os nobres eram cada vez menos apenas os

defensores do Estado; conselheiros plebeus eram cada vez mais nobilitados; e o grupo

envolvido com a economia mercantil crescia quantitativamente e aspirava igualar-se aos

nobres de nascimento. Assim, essa classificação societária era uma construção eminentemente

discursiva e com base nela a elite letrada defendia “que a conservação da harmonia desse

corpo-social era de importância primacial para que o conjunto orgânico decorrente pudesse

cumprir o seu destino metafísico perante a Deus”191. Para que esse destino fosse cumprido o

rei – principal membro do corpo social – deveria possuir diversas virtudes, dentre elas a

prudência:

Ser prudente significava, seguindo-se as formas mais arraigadas do

pensamento escolástico, agir em prol da manutenção da ordem, respeitando-

se as hierarquias, os costumes, os privilégios e os poderes estabelecidos. A

prudência implicava aceitar que o monarca, embora fosse absoluto por

posicionar-se como fonte da lei comum, achava-se, ele mesmo, submetido às

leis naturais resultantes da vontade divina.192

Ao destacarmos o caráter discursivo deste modelo não estamos afirmando que não

houvesse uma hierarquia real, muito pelo contrário, discutiremos justamente um problema

advindo desta hierarquização. Entretanto, por mais que o modelo não correspondesse

“plenamente à realidade social, de alguma forma suas categorias de nomeação, classificação e

hierarquização dos indivíduos mantiveram seu vigor, pois era a matriz da configuração social

então existente” 193.

Desta forma, o que se pode observar é que para alguns homens deste período as

mudanças eram indesejáveis, principalmente aquelas que ocorressem por meio da sorte e que

alterassem de modo imprevisível a conformação dos estados194. Tornar-se nobre por meio de

191 LOUREIRO, Marcello José Gomes. Poderes e governabilidade régia na monarquia Pluricontinental (1640 -

1648). In: Anais do II Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais: Nossas Letras na História

da Educação. Ouro Preto Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 2009, p. 3. 192 SILVEIRA, Marco Antônio. Entre a ordem e a guerra: política e razão de Estado no governo do conde de

Assumar. In: BARRAL, María Elena & SILVEIRA, Marco Antonio (Coords.). Historia, poder e instituciones.

Diálogos entre Brasil y Argentina. Rosario: Prohistoria, 2015, p.51. 193 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes nas Minas

setecentistas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014, p.32. 194 LOUREIRO, Marcello José Gomes. Segunda Escolástica e a Legitimação do Poder no Portugal Restaurado

(1640-1650). In: Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 123-130, 2011, p. 126.

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mercê régia era visto como um evento promovido pela sorte195. Como já nos referimos

anteriormente, mesmo que a ascensão de um indivíduo se desse por meio de uma mercê régia,

havia aqueles que defendiam que o rei, antes de beneficiar alguém pelos serviços prestados à

Coroa, deveria levar em conta a qualidade de nascimento. Assim afirmou o genealogista

Antônio de Vilas Boas e Sampaio, no século XVII:

A verdadeira nobreza há de ser herdada, e derivada dos Pais aos filhos [...] E

se algumas pessoas de nascimento humilde chegam nos povos a ser

avaliados por nobres por ações valorosas, que obraram, por cargos honrados,

que tiveram, ou por alguma preeminência, ou grau, que os acrescente, não é

esta nobreza verdadeira derivada pelo sangue, e herdada dos avós, mas

pertence à classe da nobreza Civil, e Política, que se adquire pelos cargos, e

postos da república, e servir-lhe-ão estes, e os feitos gloriosamente obrados

de os constituir nos princípios da nobreza de sorte que verdadeiramente

se não pode dizer deles que são nobres, se não que o começam de ser [...] a

verdadeira nobreza não pode dá-la o Príncipe por mais amplo que seja o seu

poder.196

Neste sentido, faz-se necessário problematizar a noção de mobilidade social. António

Manuel Hespanha197, afirma que tal termo não foi encontrado na documentação do período

aqui estudado; assim, é um termo da contemporaneidade ao qual nos apropriamos para

analisar as mudanças sociais ocorridas à época. Com isso, o autor não quer dizer que as

pessoas não pudessem ascender socialmente, afinal isto ocorria, no entanto, num ritmo que

dependia muito pouco da vontade do indivíduo, posto que carecia de um legitimação social.

Dessa forma, de nada resultava um indivíduo querer ser nobre ou ter título de nobreza, era

preciso viver como nobre e ser visto como tal por aqueles que estavam no topo da hierarquia

social. Além disso, o desejo de ascender socialmente não era algo que refletia somente na

realidade individual do sujeito “como também tinha a função de tornar público e perenizar o

lugar social de sua família”198.

195 Essa era a visão de algumas famílias nobres que defendiam a linhagem como fator determinante de

pertencimento a este estado, apesar delas mesmas terem alcançado tal status por mercê régia como agraciamento

pelo apoio dado durante as guerras de Restauração. 196 SAMPAIO, António de Villas Boas e. Nobiliarchia portuguesa. Tratado da nobreza hereditária e política (1ª

ed., 1676), 3ª ed., Lisboa, 1725, p. 28-29, apud MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto

nobiliárquico e aristocracia, p.299. (Grifo nosso) 197 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime, p.122. 198 FURTADO, Júnia Ferreira. O cristão-novo e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de

Pernambuco. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.69.

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Tais elementos são perceptíveis quando nos confrontamos com a documentação que

será aqui analisada, pois no processo de Habilitação na Ordem de Cristo de Gaspar Pessoa

Tavares, as testemunhas afirmavam que tanto o justificante quanto sua família se tratavam à

“Lei da Nobreza”, o que era possível por serem ricos e possuírem muitos cabedais, além do

fato de que não tinham ouvido que “sua opinião [estivesse] abatida entre os homens-bons”199.

A própria escolha das testemunhas reflete a preocupação com a legitimação dentro de um

grupo que se encontrava no topo da hierarquia social, haja vista que as pessoas convocadas a

deporem eram homens de prestígio social, tais como clérigos, capitães-mores, cavaleiros da

Ordem de Cristo, alferes, etc.

António Manuel Hespanha ressalta também que a ascensão social não necessariamente

deveria estar atrelada a uma ascensão econômica, pois pelos códigos morais da cultura da

época200, riqueza e prestígio social seriam polos quase opostos. Para este autor a riqueza era

vista como “cheia de perigos, ao criar o risco contínuo de esquecimento da ordem natural e

das suas exigências. Assim, suscita a glória vã, i.e., uma glória não justificada, artificial, não

natural. Cria o amor perverso (desordenado) pela própria riqueza”201. Ela seria carente de

legitimação, pois, em alguns casos, sua imagem estava atrelada a algum tipo de exploração.

Concordamos que esta é, por exemplo, a visão que boa parte da sociedade tinha em relação

aos judeus e, posteriormente aos cristãos-novos, posto que eles eram vistos como gananciosos

e que se enriqueciam em detrimento de outros, já que desde a época medieval eram os

principais envolvidos em empréstimo de dinheiro em Portugal, além de serem nomeados

como arrecadadores de impostos202. Entretanto, há que se ressaltar que, na ordem prática, a

grande maioria dos sujeitos não-nobres que conseguiriam ascender socialmente estavam

também ascendendo economicamente. Como afirma Ronald Raminelli, “a riqueza tornou-se

um potente motor para o enobrecimento de plebeus nas sociedades do Antigo Regime

setecentistas”203. Além disso, os nobres

199 ANTT. Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares – Cota: Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a

Ordem de Cristo, Letra G, mç. 5, doc. 9, [fl. 2]. 200 Hespanha, no texto supracitado, usa o termo “quadros mentais”, que nos pareceu aproximar da concepção de

mentalidade e longa duração – ou seja, estruturas de modos de pensar e agir –, de Fernand Braudel (BRAUDEL,

Fernand. Escritos Sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978, p.50.). Assim, preferimos utilizar o termo

cultura, entendida – por meio da concepção geertziana –, como uma teia de signos e significados construída pelo

homem e passível de interpretação (GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da

cultura. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978, p. 13-41.). 201 HESPANHA, António Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime, p.128. 202 Cf. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio, p.29. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito

racial em Portugal e Brasil Colônia. 203 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.83.

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sabiam que a falência econômica tornava impossível a sua sobrevivência

enquanto grupo privilegiado. Assim, as mercês régias e o patrimônio

deveriam gerar rendas capazes de financiar o cotidiano de luxo: festas,

casamentos e funerais204.

É importante frisar que, nesse sistema simbólico, a riqueza também possuía um outro

significado, pois podia ser vista como benção divina, além de ser fator de estabilidade, pois

livraria os homens dos “apuros” materiais, afastando-os da corrupção. Dessa forma, os nobres

ricos seriam preferidos para ocuparem os cargos públicos de maior importância, pois teriam

maior retidão e honra em suas ações. O que se pode observar é que, nesse discurso, a riqueza

era valorizada e legitimada apenas quando quem a possuísse viesse de uma linhagem nobre;

em contrapartida, os que através dela se nobilitavam eram vistos como possuindo pouca

honradez.

Grande parte das concepções já referidas ia de encontro ao projeto “modernizador” que

o Marquês de Pombal procurava acelerar. Para este, a Segunda Escolástica era uma criação

jesuítica prejudicial, um verdadeiro atraso aos avanços necessários para a modernização do

reino. Como decorrência dessas premissas, o seu ministério foi marcado, também, pela

intensificação do embate entre o poder temporal e o espiritual, de modo que os filósofos de

vertente regalista defendiam cada vez mais a secularização da sociedade civil e do Estado.

Para estes, ambos não poderiam mais ser representados como reflexos da sociedade

eclesiástica, sendo que a própria formação do Estado deveria ser compreendida pela ótica do

direito de conquista,

legitimado pela concepção de guerra justa que gerava o direito de

propriedade e transmissibilidade por sucessão dinástica. Sobre o poder real

passou-se a atribuir-lhe o caráter absoluto e irrevogável embaso em um pacto

originalmente estabelecido entre o rei e os povos, cujas prerrogativas de

governo foram estabelecidas pelas vontades dos pactuantes e não mais por

uma ordem cósmica205.

204 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.92. 205 HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do Poder. In:

MATTOSO, José. História de Portugal. Volume 4 – O Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1997, p.127.

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O acirramento do embate entre poder secular e eclesiástico era tamanho que até mesmo

o Compromisso206 redigido pelos “Puritanos” teve sua autoria atribuída aos jesuítas. Para

Pombal, o intuito desses religiosos era “perturbar a harmonia do Estado da Nobreza”207. Para

o Marquês, articular uma reforma que promovesse a secularização era fundamental para a

modernização do Estado e para pôr fim a algumas noções que atravancavam o

desenvolvimento mercantil. Assim, sua legislação embasou-se em várias ideias do

pensamento Ilustrado e versou, dentre outros aspectos, sobre a proteção dos empreendimentos

econômicos da Coroa, e por consequência, sobre a proteção dos mercadores cristãos-novos,

que eram importantes patrocinadores. Sobre esses aspectos nos deteremos a seguir.

2.2 A política econômica de Pombal e os “homens de negócio”

Para discutirmos as mudanças ocorridas durante a governança pombalina que

propiciaram benefícios econômicos e sociais aos negociantes e cristãos-novos portugueses,

faz-se necessário apresentar alguns aspectos do pensamento econômico então vigente. Desta

forma, deter-nos-emos, em poucas linhas, acerca do Mercantilismo no intuito de elucidar seus

pontos fundamentais e sua relação com as práticas econômicas do Marquês de Pombal.

Francisco Falcon definiu o Mercantilismo como uma articulação entre as condições

político-ideológicas e as práticas econômicas que visava um determinado fim, qual seja obter

poder e riqueza para o Estado. Essa política econômica não era homogênea, mas possuía

elementos comuns “perceptíveis nas práticas econômicas das modernas nações da Europa”208.

Tais práticas eram “de certo modo, corroboradas por diversos pensadores da época, a quem os

estudiosos chamam de ‘escritores mercantilistas’, uma designação que abarca um grande

número de indivíduos e uma igual diversidade de ideias”209.

206 Sobre este Compromisso nos deteremos no terceiro tópico dessa dissertação, cujo título é: A política

econômica de Pombal: o estatuto social dos homens de negócio e a questão dos cristãos-novos. 207 SILVA, Antonio Delgado da. Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza. Anno de 1763 a 1790,

Lisboa: Typ: de Luiz Correa da Cunha, 1841, 182. 208 SANTOS, Antônio Cesar de Almeida. Pombal e a Política Econômica Portuguesa na Segunda Metade do

Setecentos. In: V Congresso Internacional de História; 21 a 23 de setembro de 2011; Universidade Estadual de

Maringá; Maringá; 2011; p. 2797- 2805; p.2798. Disponível em:

http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/26.pdf 209 SANTOS, Antônio Cesar de Almeida. Pombal e a Política Econômica Portuguesa na Segunda Metade do

Setecentos, p.2798.

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Não há limites tão bem delimitados para o que se convencionou chamar de época

mercantilista, pois há que se considerar “a existência de diferentes sociedades ou formações

sociais, cada uma delas composta de um mosaico de elementos próprios estruturais e

conjunturais, sincrônicos e diacrônicos”210. Segundo Francisco Falcon o Mercantilismo foi

um processo longo: teve seu início no século XV, alcançou o apogeu em finais do século XVI

e início do XVII, sofreu um declínio em meados do XVII, sem, contudo se extinguir aí, indo

até parte do século XIX. Esse autor enfatiza que as mudanças das concepções políticas e

filosóficas foram fundamentais para a consolidação de um pensamento econômico que

atrelasse o poder do Estado à economia. Segundo ele, a noção de economia na Idade Média

relacionava-se à ideia de oikos, ou seja, à administração doméstica e ao controle dos negócios

privados. Desta forma, a instância econômica não estava associada à política, aos Estados,

mas aos negócios privados que por muito tempo foram executados sem normas restritivas e

comuns. Somente com o fortalecimento do poder real e com a consolidação dos Estados

Nacionais leis, regimentos e alvarás foram criados de modo a fundamentar uma “economia

política” sob o discurso de proteção dos interesses nacionais.

No plano político o Mercantilismo seria, então, um instrumento de centralização da

riqueza produzida em determinado Estado e que visava, além de outros fatores, o aumento de

seu poderio. Já no plano econômico, ele estaria

associado às práticas, em geral ancoradas no intervencionismo estatal, nas

quais é possível distinguir duas situações históricas básicas: uma que

poderíamos chamar de “clássica”, na qual a política mercantilista é

unicamente a forma pela qual se articulam, no nível do Estado, os interesses

e as perspectivas das diversas camadas sociais; e outra em que, além disso,

se verifica todo um esforço de aceleração e mudança do próprio

desenvolvimento do país, a fim de possibilitar a redução ou superação da

distância existente em relação a outras sociedades, tida como avançadas ou

mais ricas.211

É fundamental salientar que este sistema era marcado por disputas de interesses de

grupos antagônicos, que almejavam o acesso aos negócios do Estado e à riqueza que deles

poderiam decorrer. Neste ponto destaca-se a atuação do grupo mercantil em Portugal que

financiava grande parte dos empreendimentos da Coroa no além-mar e nos negócios internos.

210 FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina, p.24. 211 FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina, p.86.

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Já a nobreza senhorial, que no decorrer dos séculos diminuiu a participação direta na atividade

comercial do Estado, matinha seu ethos nobiliárquico por meio das rendas geradas pelo

comércio e indústria mercantil e pelo fiscalismo que pesava sobre toda população. Nesse

conflito, a posição do poder monárquico era fundamental, pois se de um lado desejava manter

seus domínios, conquistar outros e ainda manter os privilégios da nobreza, do outro deveria

agir em favor dos interesses do grupo mercantil, sem os quais não poderia sustentar-se

economicamente. A configuração dessa sociedade era, então, marcadamente contraditória,

pois “resulta[va] de uma ‘ordem nobiliárquico-eclesiástica’ alicerçada numa economia

profundamente mercantilizada”212. A política econômica adotada pelo Estado Absolutista

incentivou o comércio e o desenvolvimento dos setores produtivos, fornecendo um cenário

político-econômico favorável ao grupo mercantil.

Em Portugal este grupo era marcado pela heterogeneidade, fato que alimentava a

competição de interesses entre seus membros. A despeito de que fosse formado por uma

parcela expressiva de cristãos-velhos, a presença de cristãos-novos era preponderante. Esses,

por sua vez, pertenciam às camadas sociais baixas e apenas “uma pequena minoria constituiu-

se como grupo de elite mercantil destacando-se tanto na área económico-financeira como na

do conhecimento”213. A atuação de tais mercadores na economia-mundo214 permitiu-lhes,

também, obter poder de negociação acerca dos privilégios que almejavam conquistar. Florbela

Veiga Frade, articulando o conceito de poder de Norberto Bobbio – qual seja, a “faculdade ou

potência atribuída, assim como a possibilidade e capacidade de fazer, designado pelo termo

latino potestas” 215 – afirmou que

[os] mercadores cristãos-novos tinham capacidade para fazer e construir e,

até certa altura, tiveram permissão por parte do poder régio para o fazer. Isso

implicou por parte daqueles o reconhecimento do poder do rei português e a

sua submissão e fidelidade vassálica. Por outro lado coloca os mercadores

numa posição de prestígio formando um grupo de elite com apropriação de

símbolos e ostentação de poder através do seu poder de compra.216

212 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, 1995. Tese

(Doutorado em Sociologia) - Universidade Nova de Lisboa, p.8. 213 FRADE, Florbela Veiga. As relações económicas e sociais das comunidades sefarditas portuguesas, p.97. 214 “A economia-mundo envolve apenas um fragmento do universo, um pedaço do planeta economicamente

autônomo, capaz, no essencial, de bastar a si próprio e ao qual suas ligações e trocas internas conferem certa

unidade orgânica”. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII.

Volume 3 – O Tempo e o Mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 215 FRADE, Florbela Veiga. As relações económicas e sociais das comunidades sefarditas portuguesas, p.22. 216 FRADE, Florbela Veiga. As relações económicas e sociais das comunidades sefarditas portuguesas, p.23.

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O poder que este grupo passou a ter é um elemento importantíssimo quando tratamos

de sua realidade social no século XVIII, pois é neste período que a valorização dos

negociantes de grosso trato torna-se lei e a perseguição aos cristãos-novos deixa de ser legal.

Tal poder advinha, em grande medida, da formação de redes entre esses negociantes, ligados

tanto pelas relações comerciais – estabelecidas no nível nacional quanto no internacional –

quanto pelos laços de parentesco. É fato que grande parte dos cristãos-novos mercadores

dedicava-se ao comércio local e/ou regional, cujas atividades estavam relacionadas aos ofícios

de alfaiate, sapateiro, ferreiro, ourives e até mesmo de venda de tecidos, sendo que um

número expressivo de mercadores não possuía loja e vendia seus produtos de feira em feira.

Contudo, uma parcela significativa envolvia-se em negócios internacionais e mantinha

contatos com outros cristãos-novos que viviam fora de Portugal, nos principais entrepostos

comerciais da Europa. As relações estabelecidas entre esses mercadores proporcionavam a

algumas famílias uma base financeira sólida, que auxiliaria sua ascensão econômica e social.

A trajetória familiar e as estratégias de casamento eram fatores importantes para que

alguns indivíduos alcançassem patamares sociais elevados. Em alguns casos, a família exercia

uma atividade mais voltada ao comércio local, conseguia aumentar sua renda e reinvesti-la

gerando lucros cada vez maiores, de tal modo que as próximas gerações pudessem alcançar

status econômico-social bastante elevado. A endogamia, aqui, seria um elemento importante,

posto que a riqueza acumulada pela família não sofreria grande dispersão com a repartição

dos bens. Assim,

o mercador que [se] beneficiou desta estratégia pessoal ou familiar, de forma

consciente ou não, conseguiu pelas suas actividades mercantis atingir uma

grande capacidade de investimento e financiamento. Está ligado ao comércio

internacional e ao negócio de dinheiro e outras mercadorias de grande

rendimento mas que precisam por isso de grande capacidade de crédito e

investimento implicando grande risco.217

Como vimos no primeiro capítulo dessa dissertação, Sancho Pessoa e Gabriel Tavares

empenharam-se no comércio local e regional, comercializando tanto de feira em feira quanto

em suas lojas estabelecidas em vilas próximas ao Fundão. Apesar de tamanho empenho nos

negócios pode-se observar, de acordo com os processos inquisitoriais de ambos, que seus

cabedais não foram tão avultosos. Contudo, o fato de terem estabelecido casamentos

endogâmicos – dentro do grupo cristão-novo – e com famílias de outros mercadores pode ter

217 FRADE, Florbela Veiga. As relações económicas e sociais das comunidades sefarditas portuguesas, p.96.

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facilitado a concentração de renda do grupo, o que por sua vez possibilitou o enriquecimento

de seus descendentes. Estes se sedentarizaram ainda jovens, não andavam mais por terras para

vender seus produtos, se tornaram financistas alcançando a dignidade de negociantes de

grosso trato. Com as rendas que conseguiam por meio dos negócios mercantis investiram em

arrendamento de várias terras, o que permitiu que conquistassem grandes fortunas.

Discutiremos mais profundamente os pontos acima elencados quando analisarmos a trajetória

de um dos descendentes da família Pessoa Tavares, qual seja Gaspar Pessoa Tavares e

Amorim.

Foi sob o ministério de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que

o contexto político-econômico tornou-se favorável – legalmente falando – à ascensão social

dos mercadores de grosso trato. Pombal governou de 1750 a 1777 como ministro de D. José I.

Após o terremoto ocorrido em 1755, na cidade de Lisboa, o rei deu autoridade plena ao

Marquês que passou, então, a promover uma série de reformas com base no discurso de que

essas eram necessárias para a recuperação da economia portuguesa.

Pombal intentou administrar todas as riquezas de Portugal advindas dos domínios

ultramarinos e fomentar a indústria manufatureira portuguesa, o que refletiu no fortalecimento

do grupo mercantil português. Na década de 1760, consolidou e ampliou diversas reformas de

caráter econômico, político e social tais como: criação de um novo sistema de educação

pública; afirmação da autoridade nacional na administração religiosa e eclesiástica; estímulo

aos industriais e atividades empresariais; reformulação das capacidades militares e da

estrutura de segurança do estado. Fundamental para os negociantes portugueses foi a criação

de novas companhias de comércio do Brasil e do Reino, que visavam controlar o comércio

dos produtos. Em 1761 criou o Erário Régio, no qual toda a renda da Coroa deveria ser

concentrada e registrada218.

Os benefícios que os grandes negociantes adquiriam por meio de seus

empreendimentos não eram apenas no nível econômico, mas também no social. Numa

sociedade marcada pela estratificação social esse grupo, ainda no século XVIII, era visto

como uma categoria social bastante inferior à nobreza, devido à associação de sua imagem ao

218 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal.

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do trabalho mecânico219 e à ascendência judaica. Tal caracterização relacionava-se à noção de

que era indigno o trabalho mecânico, pois os estatutos de limpeza postulavam que “quem

trabalhava com as mãos para sobreviver não era considerado limpo de ofícios”220. A questão

da dignificação do comércio e da atuação da nobreza nessa atividade foi debatida de modo

intenso ao longo dos séculos, sendo que “a questão não era apenas saber se o comércio, na sua

totalidade ou em parte, era ou não uma actividade digna de ser exercida pelos nobres, estava

também em causa o próprio fundamento da nobreza”221. Antônio de Villas Boas e Sampaio –

poeta, genealogista e historiador português que viveu entre os séculos XVII e XVIII –, por

exemplo, defendia que as atividades mercantis não eram vistas como algo detrator quando

quem se envolvia com elas pertencesse à nobreza:

A mercância não tira a nobreza nas terras, em que ela se costuma usar pelos

nobres [...]. Porém os mercadores de tenda aberta, a que vulgarmente

chamamos de retalho, ou trapeiros, não gozam de nobreza alguma [...]222.

Pode-se observar por esse excerto que a diferenciação social demarcada pela noção de

trabalho mecânico não existia somente para distinguir nobres e negociantes, mas também para

assinalar as diferenças entre aqueles que pesavam e mediam e aqueles que se envolviam em

negócios avultosos e não exerciam trabalho manual.

A questão da associação do comércio com o trabalho mecânico era tamanha que a

legislação portuguesa determinava quem poderia ou não envolver-se nas atividades mercantis.

O trecho a seguir, extraído das Ordenações Filipinas, denota como havia, em certa medida,

uma baixa consideração social sobre o comércio até mesmo por parte da ordem jurídica223:

Os Clérigos de Ordens Sacras, ou Beneficiados, e os Fidalgos e os

Cavaleiros, que estiverem em acto militar, não comprarão cousa alguma para

revender, nem usarão publicamente de regalaria, porque não convém a suas

dignidades e estado militar entremeterem-se em acto mercadejar, antes lhes é

219 Termo que adquiriu caráter pejorativo, posto que referia-se às “artes mecânicas, ou servis, são as que são

opostas às artes liberais, porque aquelas não só se ocupam na fábrica de máquinas matemáticas, mas também em

todo o gênero de obras manuais, e ofícios necessários para a vida humana, como são os de carpinteiro, pedreiro,

alfaiate, sapateiro, etc. [...]. Mecânico. Baixo, humilde. Sordidus, a, um humilis [...]. Excogitou o sábio todas

estas coisas, mas parecendo-lhe indignas dele, entregou-as a homens mecânicos”. BLUTEAU, Raphael.

Vocabulario portuguez & latino, p.379.380. 220 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal, p.156. 221 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e Economia. As ideias econômicas no discurso da Ilustração

Portuguesa (1746-1820). Lisboa: Edições Colibri, 2002. p.29. 222 SAMPAIO, António de Villas Boas e. Nobiliarchia portuguesa. Tratado da nobreza hereditária e política (1ª

ed., 1676), 3ª ed., Lisboa, 1725, p.179-180. 223 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.82.

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per Direito defeso. E portanto mandamos às nossas Justiças, que lhes não

consintam negociar em semelhantes negócios. E aos ditos Clérigos e

Beneficiários sequestrarão as mesmas mercadorias, e farão autos, que

remeterão com as mercadorias aos Juízes Eclesiásticos, seus Ordinários.224

Desta forma, a imagem do homem de negócio não era prejudicada apenas pela

associação entre esses e os cristãos-novos, mas também pela diferenciação interna do grupo.

Por não haver uma diferenciação consolidada juridicamente entre os mercadores de grosso

trato e os de retalho, persistia a confusão que ligava aqueles aos ofícios mecânicos. Até esse

período o acesso às Ordens Militares era dificultado aos que exerciam atividades mercantis,

pois elas eram vistas como oposta à nobreza, ideia essa que Pombal empenhou em colocar fim

quando criou as Companhias de comércio e determinou que homens de negócio as

administrassem juntamente com homens da nobreza. Para ele havia dois elementos que

tornavam essa medida importante: os nobres, ao trabalharem em conjunto com os mercadores,

obteriam conhecimento acerca das ciências comerciais; ao mesmo tempo o trabalho em

conjunto faria com que os nobres abandonassem “a noção prejudicial de que o comércio era

uma arte mecânica”. 225

Vejamos, agora, como as Leis elaboradas por Pombal foram estabelecidas de modo a

modificar o status social dos negociantes e como, posteriormente, o status dos cristãos-novos

também se alterou substancialmente sob seu governo. Essas questões também nos servirão de

base para o capítulo que se seguirá, no qual discutiremos a trajetória de Gaspar Pessoa

Tavares e Amorim.

2.3 O estatuto social dos homens de negócio e o fim da distinção entre cristãos-novos e

cristãos-velhos

Mesmo com todas as mudanças propostas, o preconceito que a nobreza tinha em

relação aos negociantes não se extinguiu. Para alguns nobres era uma afronta que sua imagem

fosse associada a outro grupo que não tivesse em seu sangue a nobreza de várias gerações.

Essa noção perpassa o Compromisso da Confraria da Nobreza, redigido em 1663 – mas que

foi encontrado apenas em 1768 na Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia –

224 Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XVI, p.796. 225 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.86.

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pelos “Puritanos”, nobres que assim se intitulavam para diferenciarem-se daqueles que

possuíam sangue judeu e/ou mouro226. Nesse Compromisso, os “Puritanos” determinavam

que o termo nobre deveria ser empregado apenas para quem fosse “Fidalgo e Cristão velho de

tempo imemorial, sem rumor, ou fama em contrário, verdadeira ou falsa”227. Além disso,

elencaram os nomes de famílias que afirmavam ser de origem judaica ou mourisca,

classificando-as como “Infectas”. Ao monarca o texto era uma afronta ao seu próprio status

de protetor da nobreza e à sua prerrogativa de ser a “única fonte da qual somente é que podem

emanar as honras, as graduações, e as qualificações civis dos [seus] vassalos”.228 Como

resposta ao Compromisso, o rei criou o Alvará de Lei Secretíssimo.

O texto do Alvará criticava abertamente a postura dos nobres “Puritanos”, afirmando

que ao invés desses escreverem um compromisso no qual deveriam ser pautadas as atividades

benéficas e religiosas da Confraria, fizeram dele um instrumento de discórdia. Um dos

elementos mais ultrajantes do Compromisso, na visão do monarca, era o fato de que os

responsáveis pela sua elaboração elencaram pouquíssimas famílias como nobres de sangue,

colocando como infectas outras várias que não se enquadravam em tal categoria. O Alvará

afirmava que o número de famílias classificadas como nobre pelos Puritanos era tão pequeno

e a endogamia entre elas era tão intensa que, se a realidade fosse aquela descrita no

Compromisso, a nobreza deixaria de existir em pouco tempo no reino português. Desta forma,

vários pontos da lei versavam sobre o impedimento de práticas endogâmicas entre os jovens

das famílias ditas “Puritanas”. Além disso, estabelecia que ficava extinta, doravante, a

Confraria da Nobreza, fato visto por Francisco Bethencourt como um dos fatores que

contribuíram para o processo que levaria à extinção da distinção entre cristãos-velhos e

cristãos-novos. 229

Para consolidar a dignidade dos mercadores de grosso trato, pôr fim à associação entre

suas atividades mercantis e os ofícios mecânicos e associá-los a uma nobreza civil, Pombal

criou uma lei, em 30 de Agosto de 1770, que visava restringir o uso da designação homem de

negócio. Nela as atividades desses homens foram comparadas às das artes liberais e das

226 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia. São Paulo: Perspectiva,

2005, p.178. 227 SILVA, Antonio Delgado da. Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza, p.182. 228 SILVA, Antonio Delgado da. Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza, p.183. 229 “A acção política do tempo de Pombal acaba por fazer mais para terminar com essa distinção do que dois

séculos de debate: em 1768 é extinta a confraria da nobreza, criada em 1663 por um pequeno grupo de famílias

tituladas que pretendia distinguir-se da sua ordem, tida como infamada pelo sangue judaico que corria nas veias

de diversas famílias [...]”. BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polêmicas, p.64.

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militares, frisando que da mesma forma que essas exigiam determinados registros e diplomas,

assim também deveria ser com o comércio. Além disso, ao negociante que quisesse se

matricular, era obrigatório a apresentação de cartas de aprovação nas Aulas de Comércio,

curso que tinha duração de três anos e cujo acesso era bastante restrito e dispendioso230.

Além disso, a carta critica aqueles que se matriculavam como homens de negócio, mas

não possuíam dignidades para assim se denominarem. No intuito de colocar fim a esta prática,

a lei estabeleceu diversos pontos que deveriam ser considerados para que um sujeito pudesse

receber tal designação. Era obrigatório o assento no livro de matrícula dos mercadores da

Praça de Lisboa – no qual poderiam se matricular também negociantes de outras praças do

Reino –, o que só seria feito por aqueles que provassem probidade, boa fama e não tivessem

vícios considerados indecentes. Somente os negociantes então matriculados poderiam usar a

denominação homens de negócio e gozar de privilégios e isenções inerentes à categoria.

Aqueles que não fossem matriculados ficaram proibidos de assumir ofícios públicos, tal como

podermos observar neste excerto:

E que por ser o Comércio muito digno da atenção, e do cuidado do Governo

Supremo, do que os pleitos judiciais, e as Fábricas Civis, e Mecânicas; fora

já disposto pelo Capítulo trinta do Regimento do Consulado da Casa da India

e Mina [...] que todos os Mercadores, para gozarem das liberdades, e

privilégios, que como tais lhe competiam, fossem assentados, e matriculados

em um Livro grande, formado para os ditos assentos, e matricula; fora tal a

desordem, que as injúrias dos calamitosos tempos, que depois decorreram,

causaram ao dito respeito, que (contra toda a força da Razão Natural, e das

Leis, e louváveis costumes destes Reinos) se viu neles muitos anos a esta

parte o absurdo de se atrever qualquer indivíduo ignorante, e abjeto a

denominar-se a si Homem de Negócio, não só sem ter aprendido os

princípios da probidade, da boa fé, e do cálculo Mercantil, mas muitas vezes

até sem saber nem ler, nem escrever, ignorando assim ignomínia, e prejuízo

a tão proveitosa, necessária, e nobre profissão.231

Pertencer a essa categoria era fundamental para alcançar benefícios sociais antes

vetados, tais como pedir habilitação na Ordem de Cristo. Somente um negociante que fosse

matriculado e possuísse dez ações de uma das companhias Reais poderia entrar com o pedido

de Habilitação. O comprovante de posse das dez ações geralmente era apresentado pelos

230 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor, p.103-107 pdf. 231 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor. Desde 31 de julho de 1779 até 7 de abril de 1775. Lisboa: Régia Officina Typografica, 1775, p.103-105

pdf.

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negociantes como uma estratégia para afastar a imagem de oficiais mecânicos que carregavam

e ainda comprovar que possuíam um patrimônio que era controlado por uma minoria232.

Assim,

aprofundando uma prática anterior, nos finais do século XVIII o

desempenho de funções comerciais de grosso trato constituía prova de

nobreza, por exemplo, nas habilitações da Ordem de Cristo. Era normal que

uma testemunha aduzisse que “o pretendente é homem de negócio de

avultados cabedais, porque além do interesse que tem em alguns navios tem

uma fábrica de solas [...] pelo que foi é e tido por um dos negociantes

Nobres desta Praça”233.

O que se nota, então, é que as ações político-econômicas de Pombal visaram fomentar

o comércio e a produção manufatureira portuguesa, utilizando para isso o capital econômico

que os mercadores de grosso trato possuíam. Em troca, foi dado a eles o capital simbólico que

tanto almejavam, posto que ele fosse a distinção, o elemento fundamental numa sociedade

marcada por uma ordem hierárquica234. A conversão do capital econômico em capital

simbólico foi possibilitada pelo triunfo do mercantilismo, pela “prosperidade da economia

imperial luso-brasileira no último quartel do século XVIII e as urgentes necessidades de

financiamento do Erário que então se fizeram sentir”235.

Na altura da promulgação da Lei de 1770, Gabriel Tavares completara 63 anos.

Haviam se passado 24 anos desde que sua sentença fora lida em auto-de-fé, e ele encontrava-

se instalado em Lisboa onde se matriculara como negociante. Nesse período envolveu-se com

a exploração das marinhas do Sado do Marquês de Tancos e interessava-se na arrecadação

dos rendimentos do almoxarifado de Ourém236. Tornou-se um importante negociante do

Reino, assim como vários de seus familiares. Seu filho, Gaspar Pessoa Tavares, tinha 30 anos

nessa ocasião e ainda percorreria um longo caminho para ascender à nobreza. O grupo ao qual

pertenciam, os cristãos-novos, ainda era perseguido pelo Santo Ofício. A sociedade, de um

232 No que se referem às Companhias, aqueles que nela investissem uma determinada quantia poderia pedir

dispensa de mecânica, facilitando assim o acesso dos mercadores aos postos desejados – como na Ordem de

Cristo. Cf. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.202-206. 233 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia, p.299. 234 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico, p.145. 235 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.103. 236 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.224.

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modo geral, e a nobreza, em específico, ainda os via com maus olhos, não importava o quão

abastados fossem.

A despeito da valorização da categoria homens de negócio por meio da legislação, a

imagem de alguns deles não deixaria de ser associada ao sangue judeu. Se legalmente “a

questão da nobreza dos negociantes estava então resolvida”237, assim não era com a dos

cristãos-novos, que ainda eram alvos de preconceitos e impedimentos de ascensão. Haveria,

então, a necessidade de elaboração de novas leis que colocassem fim à este problema.

Em 25 de Maio de 1773, após séculos de debates, extinguiu-se legalmente a

designação cristão-novo. A partir desse ano o estatuto de limpeza de sangue não mais poderia

ser aventado para impedir que um indivíduo assumisse ofícios públicos, se habilitasse à

Ordem de Cristo, entrasse para ordens religiosas e ascendesse à nobreza. O texto da Lei

condena o fato dessa distinção existir há séculos, tendo causado danos àqueles que se

converteram verdadeiramente ao cristianismo e abandonaram a fé mosaica. De acordo com os

argumentos apresentados na Lei a terminologia era usada não para revelar esse fato, mas para

inabilitar os conversos. O massacre ocorrido em Lisboa contra os cristãos-novos, no ano de

1506, foi citado como um elemento que provava o malefício que tal distinção promovia à paz

e à prosperidade do reino238.

Seu texto afirmava que a distinção era controversa e servia apenas para reforçar o

caráter retrógrado das políticas que a permitiram. Afirmava também que a distinção era

maquinalmente utilizada – juntamente com os estatutos de limpeza de sangue – para afastar

pessoas de grande categoria de cargos públicos de suma importância. Para exemplificar essa

afirmativa cita o caso de Dom Antônio I de Portugal, Prior do Crato (1531-1595), cuja mãe

era apontada como sendo de origem cristã-nova. Dona Violante era de fato cristã-nova, mas

na Lei afirmava-se que era uma invenção criada pelos inimigos políticos do D. António I

quando este intentou assumir o trono português durante o conflito sucessório que culminou na

vitória de Felipe II, de Espanha239:

237 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.96. 238 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor, p.422-424 pdf. 239 HERMAN, Jacqueline. Um rei indesejado: notas sobre a trajetória política de D. Antônio, Prior do Crato. In:

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 59, 2010, p. 141-166.

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Já indo excogitar no então novo Estatuto da Sé de Toledo (que nela fora

poucos anos antes sugerido, e introduzido com os semelhantes fins

particulares, e carnais, que causaram em Espanha as controvérsias mais

ardentes) um pretexto para autorizarem, e introduzirem nestes Reinos aquela

reprovada distinção; já inventando, que Violante Gomes, mãe o sobredito

Dom Antonio, tinha sangue dos ditos Novos Convertidos, para inabilitá-lo

por Cristão-Novo240.

De acordo com a Lei os descendentes de cristãos-novos não poderiam ser

considerados inábeis e infames, bem como seus antepassados. Somente os que incorressem

“nos crimes de Lesa Majestade, Divina, ou Humana; e por eles [fossem] sentenciados, e

condenados nas penas estabelecidas pelas Ordenações do Livro Quinto, Título Primeiro, e

Título Sexto, e com filhos, e netos, que deles procederem”241 – ou seja, aqueles que fossem

presos por heresia e apostasia242 – poderiam ser assim classificados. Esse ponto gerou intensa

controvérsia, pois deu margem para que diversas pessoas ainda fossem caracterizados como

inábeis e infames, por se encaixavam na situação descrita. Por este motivo alguns sujeitos

passaram por situações vexatórias, tais como serem impedidos de assumir determinados

cargos públicos sob o pretexto de serem descendentes de inábeis e infames.

No intuito de acabar com a controvérsia, uma nova Lei foi promulgada em 11 de

Março de 1774. De acordo com seu preâmbulo ao rei havia chegado a notícia de que

depois da Santa, Saudável, e Reliogíssima Lei de 25 de Maio do ano

próximo passado [1773] tem havido nas Confrarias, Irmandades, e outras

semelhantes Corporações, Câmaras das Vilas, e moradores delas homens tão

cegos, e de tão corrompidos corações, e pensamentos tão bárbaros, que

rebelando-se contra todos os princípios da racionalidade, da Caridade Cristã,

e do inviolável respeito que devem às Leis, para conservarem a discórdia

contrária à Sociedade Civil, e à união Cristã, que a mesma Lei reprovou, já

pondo por despachos das antes bárbaras e irreligiosamente chamados

cristãos-novos [...], já excluindo-os nas eleições dos cargos públicos por um

modo tácito e negativo.243

Para Pombal, alguns homens estavam se aproveitando de uma suposta confusão

interpretativa da Lei de 25 de Maio para impedir o acesso dos descendentes de cristãos-novos

240 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor, p.425 pdf. 241 Collecção das leys, decretos, e alvarás que comprehende o feliz reinando del rey fidelíssimo D. José I. Nosso

senhor, p.430 pdf 242 Ordenações Filipinas, Livro V, título I, p. 1147-1149. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ 243 SILVA, Antônio Delgado da. Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza, p.381.

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aos cargos públicos. No intuito de pôr fim às interpretações errôneas sobre este ponto da Lei

de 1773, Pombal estabeleceu que só poderiam ser considerados infames e inábeis aqueles que

tivessem sido sentenciados à pena capital. Ou seja, aqueles indivíduos cujos pais e avós foram

sentenciados pelo Santo Ofício não poderiam ser maculados pelos crimes de heresia e

apostasia, caso seus ascendentes tivessem abjurado em auto-de-fé e se reconciliado com a

Igreja. Essa medida permitiu que o termo cristão-novo desaparecesse da sociedade

portuguesa, mas somente no plano jurídico. Quando analisamos o micro, os documentos sobre

os sujeitos daquela sociedade, vemos que o preconceito não foi extinto com o termo. Mesmo

aqueles que possuíam grande capital econômico e social ainda eram difamados por terem

ascendência cristã-nova. Assim ocorreu com membros da família Pessoa Tavares.

Vejamos, agora, como as mudanças políticas e sociais ocorridas no século XVIII podem

ser lidas e questionadas a partir da documentação por nós elencada. O intuito é problematizar

o processo de nobilitação pelo qual a família Pessoa Tavares passou, tendo como foco de

análise um indivíduo em específico, o negociante Gaspar Pessoa Tavares. Pretendemos

discutir o alcance das leis acima referidas na realidade social à qual Gaspar Pessoa Tavares e

Amorim estava inserido, com o propósito de problematizar acerca do preconceito de sangue

que ainda existia numa conjuntura em que a nobreza não deveria mais estar atrelada à

linhagem.

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3 QUANDO A HONRA E O VIVER À “LEI DA NOBREZA” NÃO APAGAM A

MÁCULA DE SANGUE: O CASO DE GASPAR PESSOA TAVARES

Analisar os elementos que caracterizam ou descaracterizam um indivíduo como um

nobre é de fundamental importância quando discorremos sobre os processos de nobilitação,

que se multiplicaram em Portugal, nos séculos XVIII e XIX. A historiografia244 portuguesa

recente tem se debruçado sobre esses processos, analisando o “mercado” de mercês245 que os

envolviam, particularmente durante o período pombalino, quando as regras de acesso aos

estratos iniciais da nobreza sofreram importantes modificações. A noção de mercê estava

ligada à concepção de liberalidade (liberitas) régia, ou seja, o gesto de dar, virtude que

deveria ser própria dos reis. De acordo com vários tratadistas dos séculos XVI e XVIII, o rei

deveria ter a virtude de fazer mercê a seus súditos para a manutenção do Estado. Caso

contrário, se o rei fosse avarento, correria o risco de suscitar o ódio de seus súditos. Esses, por

sua vez, estavam subordinados à gratidão, devendo auxiliar o monarca quando ele

necessitasse. A lógica do “mercado de mercês” estruturava as relações políticas no Antigo

Regime, não estando restrita ao vínculo entre rei e súditos, mas também entre os próprios

súditos. Assim, a

disponibilidade para o serviço, pedir, dar, receber e manifestar

agradecimento, num verdadeiro círculo vicioso, eram realidades a que

grande parte da sociedade deste período se sentia profundamente vinculada,

cada um segundo a sua condição e interesse. Eis o que designamos por

economia da mercê246.

Essa concepção estava também ancorada na vastidão do conceito de amizade, que

trataremos adiante.

Por muito tempo, ser cristão-velho era fator condicional – mas não o único – para que

um indivíduo pudesse vir a ser considerado nobre no Antigo Regime. Esta premissa estava

244 Ver: OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Ver também: MONTEIRO, Nuno

Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o patrimônio da Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa:

Temas Portugueses, 2003. 245 “[...] recompensa que se dá ao merecimento de alguém e nesse sentido entendem essas palavras do evangelho,

Merces vestra copisa est in calo. [...] Mas na língua portuguesa não se costuma nesta significação de salário,

prêmio, remuneração, senão de graça, ou benefício, como os que Deus faz às suas criaturas” (BLUTEAU,

Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da

Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8v., p.430-431. 246 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.18.

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arraigada na cultura ibérica há tanto tempo, e de tal forma, que por mais que as leis relativas à

distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos vigorassem, a mácula de sangue judeu – e/ou

cristão-novo – persistia nos discursos contra os nobilitados. A herança deste sangue judeu era

um dos principais elementos utilizados por aqueles que se intitulavam “Puritanos” para

dificultar ou mesmo impedir o acesso a muitos dos que postulavam a nobilitação.

Pombal, almejando o apoio dos mercadores de grosso trato de origem judaica, apoiou-se

na legislação para eliminar o preconceito de sangue contra os cristãos-novos247. Assim, os

estatutos de limpeza de sangue não poderiam mais ser utilizados como empecilho à ascensão

deste grupo aos cargos públicos de importância, às Ordens Militares e à nobreza.

Para procedermos com a apreciação do discurso em torno da mácula de sangue e as

consequências práticas que dele decorriam, analisaremos os processos de Habilitação na

Ordem de Cristo e o Auto de Justificação de Nobreza de Gaspar Pessoa Tavares248, além das

mercês régias recebidas por ele; tais elementos foram fundamentais para que este recebesse o

Foro de Fidalgo Cavaleiro, mas não foram suficientemente fortes para apagar sua ascendência

judaica. A partir da exposição e análise dessa documentação, discutiremos a trajetória deste

personagem, sua relevância econômica na Praça de Lisboa, tal como as relações sociais249 por

ele estabelecidas e os problemas pelos quais passou, em função de descender de cristãos-

novos, mesmo num período em que sua nobreza já havia sido justificada.

3.1 A Ordem de Cristo e o estatuto de “limpeza de sangue”

Antes de analisarmos as questões em torno dos processos de nobilitação da família

Pessoa, faz-se necessária uma explanação acerca da criação e estabelecimento da Ordem de

Cristo, especialmente no tocante à importância simbólica dada às suas insígnias. Será

247 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia, p. 181. 248 Gaspar Pessoa Tavares adotou o sobrenome Amorim quando elaborou sua justificação de nobreza. Contudo,

referir-nos-emos a ele pelo nome Gaspar Pessoa, ou Gaspar Pessoa Tavares para que a citação de seu nome não

fique demasiadamente extensa. Quando citarmos seu filho, que levava seu primeiro nome, o faremos de como

completo, qual seja Gaspar Pessoa de Amorim da Vargem, de modo a diferenciá-los. 249 De acordo com a concepção weberiana, relação social é a “situação em que duas ou mais pessoas estão

empenhadas numa conduta onde cada qual leva em conta o comportamento da outra de uma maneira

significativa, estando, portanto, orientada nestes termos”. WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. São

Paulo: Centauro, 2002, p. 45. As relações sociais são compreendidas aqui não somente como elementos

fundamentais para a manutenção do poder monárquico, mas também para as relações que os súditos estabelecem

entre si.

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fundamental, para a discussão que se seguirá, problematizar a respeito dos estatutos de

“limpeza de sangue” e das implicações das leis pombalinas que visavam por fim aos mesmos.

Deter-nos-emos em poucas linhas sobre a formação da Ordem e as questões que envolviam as

honras do hábito, não cabendo aqui explanar acerca das modificações estruturais da Ordem

através de uma análise dos Regimentos.

A Ordem de Cristo foi criada por meio da bula Ad ea ex quibus a 14 de março de 1319,

num esforço do rei Dom Dinis em manter o patrimônio dos Templários – cuja Ordem foi

extinta por édito papal250 – sob custódia da Coroa. Após a extinção da Ordem do Templo

houve uma reorganização da estrutura hierárquica das ordens militares, em cujo topo,

doravante se apresentava a figura do monarca, na qualidade de Grão-Mestre, ao qual o Mestre

e os Comendadores deveriam render homenagens. Era ao rei que estes, supostamente, teriam

que se dirigir antes de tomarem quaisquer decisões, mesmo sobre os mais simples atos de

gestão. Entretanto, não estamos afirmando uma ausência de conflito entre o rei e os demais

membros da Ordem, afinal o rei não governava de modo absoluto nem as Ordens, nem o

Estado. Além disso todas as suas determinações deveriam ser remetidas a Roma, estando o rei

em condição, nesse aspecto, de subalterno do Papa251.

Com o tempo, seus quadros passaram a ser cada vez mais aristocratizados, visto que os

monarcas eram os responsáveis pela nomeação dos Mestres e Comendadores e utilizavam-se

dessa prerrogativa para inserirem seus familiares e apoiadores em tais postos. A imagem do

monge guerreiro, armado para enfrentar o “infiel”, escondia-se cada vez mais sob as vestes

ricas e ornadas da aristocracia252.

As questões administrativas referentes às Ordens Militares ficaram sob responsabilidade

da Mesa de Consciência, criada em 1532, e que devido a essas novas funções passou a ser

chamada de Mesa de Consciência e Ordens. Seu primeiro regimento foi escrito em 1558. Esse

órgão, responsável por questões pias da realeza e de outros problemas relacionados à

consciência do monarca, atuou até o ano de 1833. A documentação referente à Mesa está

250 No ano de 1308 houve o sequestro dos bens dos Templários, que entre os ano de 1309-1310 passou a ser

incorporado aos da Coroa portuguesa. Todo esse processo levou à extinção dos Templários em Portugal e à

instauração da Ordem de Cristo. OLIVAL, Fernanda; OLIVEIRA, Luis Felipe. Ordem de Cristo. In: FRANCO,

José Eduardo (org.). Dicionário Históricos das Ordens institutos religiosos e outras formas de vida consagrada

católica em Portugal. Portugal: Gradiva, 2010, p.564. 251 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.40. 252 OLIVAL, Fernanda; OLIVEIRA, Luis Felipe. Ordem de Cristo, p.564-574.

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organizada no fundo intitulado Mesa de Consciência e Ordens, sob a tutela do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo, onde encontra-se a documentação referente à Habilitação de

Gaspar Pessoa.

Desde que a administração da Ordem ficou a cargo do rei o mesmo passou a agraciar

aqueles que se dispunham a lutar em territórios cujo domínio português estava ameaçado.

Para receber o hábito da Ordem, no entanto, o habilitando deveria, ainda, provar que não

possuía sangue judeu, mouro, negro ou “defeito de mecânica”. Os processos de averiguação

de genere poderiam gerar problemas àqueles que incorressem nesses defeitos, impedindo-lhes

o acesso ao hábito da Ordem. A averiguação levava em conta aquilo “que fosse ‘público e

notório’, ao que ‘se ouvia dizer’, ou seja, à imagem que a comunidade fazia do candidato e de

seus antepassados”253.

O “defeito de mecânica” era mais facilmente contornável, sendo possível que o rei

dispensasse a provança por meio de um decreto. A questão em torno dessa prerrogativa

perdurou por longos anos antes que se tornasse algo respaldado pela lei. Para tanto a Mesa de

Consciência exigiu diploma pontífice para que os ditames do rei fossem seguidos. Somente no

final do reinado de Dom João V (1707-1750) foram esporadicamente introduzidas as

dispensas de provanças254.

No que concerne à limpeza de sangue, a carta de dispensa somente poderia ser dada

pelo Papa. Apesar dessa condição, Felipe IV de Espanha dispensou as provas de sangue do

cristão-novo Pedro de Baeça, por este ter sido financiador da conjuração contra Dom João IV

de Portugal, quando do período de Restauração255. Júnia Ferreira Furtado nos chamou a

atenção para o aumento de acesso de cristãos-novos às Ordens Militares por meio de

concessão real, já desde o século XVI. Este aumento não deixou de ser criticado pela Mesa de

Consciência e Ordens, pois para esta o ato de dispensar as provas de “sangue limpo",

profanava as Ordens ao dar insígnias a “gente defeituosa” 256.

253 FURTADO, Júnia Ferreira. O cristão-novo e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de

Pernambuco, p.74. 254 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.206. Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O

nome e o sangue, p.25. 255 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes Clientelares, p. 341. 256 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio, p.37. Cf. OLIVAL, Fernanda. O acesso de uma família de

cristãos-novos portugueses a Ordem de Cristo.

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Ainda segundo esta autora, a Coroa empenhou-se em conceder títulos, honrarias e

dispensa de comprovação de limpeza de sangue aos grandes homens de negócio no intuito de

obter apoio destes. Ao passo que os pequenos comerciantes, por não possuírem grandes

rendas, não conseguiam obter tais prerrogativas e estavam “mais facilmente sujeitos ao

arbítrio da lei” 257. Dessa forma,

a possibilidade de acesso de grandes homens de negócio, banqueiros e

letrados aos diversos graus de nobreza, alicerçado por essa política real de

concessão de títulos provocou o abaixamento do limiar da nobreza e

desencadeou em Portugal uma reação da alta nobreza de sangue para se

distinguir desses intrusos258.

Apesar da legislação, desde os tempos mais remotos do estabelecimento da Ordem de

Cristo, esporadicamente, descendentes de judeus alcançaram a honra do hábito, seja através

da dispensa das provanças ou da manipulação genealógica. A genealogia era “um saber vital,

pois classificava ou desclassificava o indivíduo e sua parentela aos olhos dos seus iguais e dos

seus desiguais, contribuindo assim para a reprodução dos sistemas de dominação”259. Esse

saber era fundamental devido ao vigor dos estatutos de “limpeza de sangue”.

É importante salientar que, com tais estatutos, “não se visava a pureza biológica da raça

pelas suas qualidades genéticas; tratava-se, ao invés, de um problema de natureza ideológico-

religiosa, com forte impacto na estruturação social e política”260. Além disso, eles não se

limitavam a segregar apenas indivíduos de origem judaica; sendo necessário, de nossa parte,

discutir cada categoria de modo particular, pois os mesmos estatutos levantavam pontos

diferentes acerca dos judeus, dos mouros e dos negros.

No que se refere à questão matrimonial, nos anos imediatamente posteriores ao édito

real de 1496 – que obrigava os mouros e judeus a se converterem ao cristianismo em Portugal

–, outorgaram-se leis que incentivavam o enlace entre eles e os cristãos-velhos, dada a crença

de que os últimos ajudariam os primeiros a seguirem de modo reto o catolicismo romano.

Houve leis, inclusive, que proibiam o casamento de cristãos-novos entre si, forçando-os a

escolherem cônjuges cristãos-velhos. Contudo, quando o ideal de “limpeza de sangue”

257 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio, p.35. 258 FURTADO, Júnia Ferreira. O cristão-novo e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de

Pernambuco, p.70. 259 MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue, p.13. 260 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal, p.152.

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atravessou a fronteira da Espanha, rompeu-se essa lógica matrimonial e o casamento entre

membros desses diferentes grupos passou a ser proibido.

Mesmo após a outorga das Leis de 1773 e 1774, algumas famílias se recusavam a

autorizar o casamento de seus filhos com indivíduos com a mais remota ascendência judaica.

Tais famílias buscavam aventar outros motivos, que não remetessem à questão da ascendência

judaica, para impedir os enlaces matrimoniais entre seus descendentes e os de origem judaica

e/ou cristã-nova, haja vista que a lei proibia esse tipo de interdição. Isso é o que poderemos

observar quando analisarmos, mais adiante, o requerimento de Antônio Lobo da Gama

Saraiva de Amaral para se casar com D. Maria Henriqueta Francisca Pessoa de Amorim, filha

de Gaspar Pessoa Tavares.

Apresente-se agora nosso personagem – nos limites que nos impõe a documentação –

inserindo-o no complexo palco da sociedade do Antigo Regime português, buscando analisar

sua trajetória à luz dos conceitos e problemas até agora discutidos.

3.2 A trajetória de Gaspar Pessoa Tavares: de negociante de grosso trato a Cavaleiro da

Ordem de Cristo

Corria o ano de 1746, no Fundão, termo da Vila de Covilhã, quando intensa perseguição

aos cristãos-novos levou – novamente – diversas pessoas aos autos de fé promovidos pelos

tribunais da Inquisição de Coimbra e de Lisboa. Gaspar Pessoa Tavares, nascido seis anos

antes, no dia 20 de janeiro261, viu sua família ser levada aos cárceres do Santo Ofício. Naquele

ano, seu pai foi preso pela segunda vez por crime de criptojudaísmo. Gaspar Pessoa era o

segundo filho do casal Gabriel Tavares e Leonor Pereira da Silva. Ao que parece, possuía

mais seis irmãos262, mas tivemos acesso à documentação de apenas dois deles, José Pessoa

Tavares de Amorim e Gregório Tavares Pessoa de Amorim.

261 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim. Cota: Feitos Findos,

Justificações de Nobreza, mç. 12, n.º 7. 1792, fl. 4 v. 262 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.224.

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Desde jovem, Gaspar Pessoa atuou como mercador, assim como o pai e os avós –

paternos e maternos –, em loja aberta de panos e baetas de propriedade da família, na Vila do

Fundão. Posteriormente, foi para Lisboa estabelecer seus negócios, onde se tornou um rico

negociante matriculado na praça daquela cidade263. Dentre todos os filhos de Gabriel Tavares

e Leonor Pereira da Silva, Gaspar Pessoa foi o que ficou responsável pela tutela dos pais,

quando esses já estavam velhos e doentes - talvez por isso tenha sido preferido no testamento

do pai264. Levou-os para Lisboa para morarem consigo numa das ruas mais ricas e luxuosas da

capital, a Rua Augusta, no número 57, em frente à Praça do Rossio, lugar onde tantos parentes

seus tiveram suas sentenças lidas pelo Tribunal do Santo Ofício nos anos anteriores265.

Casou-se com Ana Joaquina Guerra e Souza – filha de Simplício da Guerra e Sousa,

comerciante de grosso trato da Praça de Lisboa266, e de sua mulher Maria Joaquina Teles –,

com quem teve três filhos: Gaspar Pessoa de Amorim da Vargem, 1º visconde da Vargem da

Ordem, Gabriel Tavares Pessoa de Amorim e Dona Maria Henriqueta Francisca Pessoa

Amorim267. Tomamos conhecimento de outros três filhos que Gaspar Pessoa teve fora de seu

casamento: Joaquim José Pessoa, Leonor Pessoa de Amorim e Dona Maria Christiane Pessoa,

ainda que não tenha sido encontrada mais documentação a respeito deles268.

Gaspar Pessoa Tavares era homem de negócio matriculado na Praça de Lisboa, assim

como seu pai Gabriel Tavares Pessoa. Este, apesar de ter investido em vários

empreendimentos econômicos deixou, segundo Jorge Pedreira269, uma herança assinalável,

porém não demasiadamente suntuosa, para Gaspar Pessoa, cujo montante foi de cerca de 20

263 ANTT. Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares, [fl.5v]. ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar

Pessoa Tavares e Amorim, fl.8-8v. 264 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo, p.224. 265 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl.12. 266 BAENA, Augusto Romano Sanches de; SOUSA, Farinha de Almeida Portugal da Silva e. Archivo heraldico-

genealogico contendo noticias historicoheraldicas. Lisboa: Typographia universal de T.Q. Antunes, 1872,

p.377. 267 Nos autos consta que do casamento com Ana Joaquina, Gaspar Pessoa Tavares de Amorim teve dois filhos.

Entretanto, num requerimento de mercê régia o nome de Gabriel Tavares Pessoa de Amorim, cadete de

regimento, é citado como sendo de um dos filhos de Gaspar Pessoa Tavares. (ANTT, Arquivo do Desembargo

do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1596, nº33, fl.9). Há, também, uma carta de foro de fidalgo cavaleiro de

Gabriel Tavares Pessoa na qual este é apontado como filho de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim e neto de

Gabriel Tavares. Este foro é de mesma data do registro de fidalguia de Gaspar Pessoa de Amorim – filho de

Gaspar Pessoa Tavares de Amorim (ANTT. Foro de Fidalgo Cavaleiro Gabriel Tavares Pessoa. Cota: Registro

Geral de Mercês de D. Maria I, livro18, fl. 361v e 362. Data: 06 de julho de 1797). 268 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl. 16. 269 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo, p.224.

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contos de réis referente à dívidas ativas e annuities do Banco da Inglaterra270. Dessa forma, o

que podemos inferir é que a fortuna que Gaspar Pessoa Tavares construiu e consolidou por

meio do estabelecimento de seu Morgado271, cujo capital somara sessenta contos de réis

(60.000$000 rs)272, advém não somente de herança paterna, mas principalmente de seus

próprios empreendimentos, tais como: rendas da alcaidaria-mor de Tomar; terças do

patriarcado do arcebispado de Évora, dos bispados de Beja, Guarda e Castelo Branco;

administração de contrato de tabaco de Castelo Branco e cobrança de direitos aos

almoxarifados de Torres Novas, em associação com seus irmão273; e mais tardiamente

investimento na Real Companhia do Novo Estabelecimento Para a Fiação e Torcidos de Seda

de Trás-os-Montes, promovida por Rodrigo de Sousa Coutinho (Conde de Linhares), em

1802274.

Apesar da Carta de Lei de 30 de Agosto de 1770 permitir que os mercadores de grosso

trato fossem considerados como membros de uma aristocracia, e cada vez menos como

pertencentes a um estado do meio pela taxionomia social, isso não significava que seriam

recebidos como iguais pelos membros que compunham o primeiro estado. Estes frequentavam

assiduamente a casa daqueles, participavam dos suntuosos banquetes por eles promovidos,

mas mantinham certo distanciamento no que se refere aos enlaces matrimoniais, como

discutiremos mais detidamente a seguir.

Como já foi dito, alguns negociantes eram agraciados com títulos honoríficos pelos

investimentos feitos nos negócios da Coroa. Desde o século XVII, esses negociantes recebiam

dignidades de cavaleiros das ordens militares mesmo que tivessem sangue de cristão-novo. A

concessão de hábitos das ordens militares foi uma das estratégias utilizadas pelo monarca para

270 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo, p.224. 271 “Bens vinculados de sorte que sem se poderem alienar, nem dividir, o sucessor justamente os possua na

mesma foram e ordem que o Instituidor tem declarado” (BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino:

aulico, anatomico, architectonico ... p.580.). Os antecedentes deste tipo de vínculo datam do século XIV, sendo

uma instituição tipicamente ibérica que se conformou de modo estável já no século XV perdurando até a dita

Revolução Liberal. “Durante os séculos XVI, XVII e XVIII o modelo de sucessão do morgadio, praticado pelos

grupos aristocráticos, se institui em referente de comportamento ideal para quase todos os que se encontravam

em processo de mobilidade social ascendente”. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Morgado. In: MADUREIRA,

Nuno Luís (org.). História do Trabalho e das Ocupações – Vol. III – A agricultura. Oeiras: Celta Editora, 2002,

p.76. Há que se frisar que o primogênito, varão, era priorizado na transmissão do morgado. 272 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl.30. 273 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo, p.224-225. 274 SOUSA, Fernando. A Indústria das sedas em Trás-os-Montes (1790-1820). Disponível em:

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4848.pdf, p.76.

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estabelecer uma relação, por vezes chamada pelos historiadores de “clientelar”275, com a

aristocracia e com homens de vultosas fortunas, com vistas a fortalecer seu poder político.

Entretanto, a “grande abertura no acesso aos hábitos das ordens militares, patente ao longo do

século XVII, foi muitas vezes ironizada no século seguinte”276, desvalorizando

simbolicamente, em grande medida, o título de Cavaleiro da Ordem.

No século XVIII, não faltavam aqueles que questionassem a prática de concessão de

títulos, afirmando que tais condecorações estavam sendo banalizadas, principalmente, aquelas

que se referiam aos hábitos da Ordem de Cristo. Segundo Jorge Miguel de Melo Viana

Pedreira, essa distinção representava uma notoriedade eminentemente simbólica, pois as

tenças277 atribuídas aos que o recebiam eram de apenas doze mil réis (12$000) réis, enquanto

os gastos com o processo ficavam por volta de cinquenta mil réis (50$000). Entretanto, por

mais que os gastos com os processos de habilitação fossem grandes, aqueles que se

encontravam no limiar das categorias definidas pela taxionomia oficial eram ávidos por

reconhecimento, e ter o hábito da Ordem de Cristo ainda era uma distinção fundamental278.

Ser professo nas ordens militares não significava mais um afastamento do mundo, como

preconizava a postura dos monges cavaleiros, não significava mais os laços militares que

existam na época das Cruzadas, mas o “corroborar de uma trajectória ascendente e honrosa, a

aposta na ascensão, ou o consolidar de um estatuto social”279. Gaspar Pessoa possuía a

distinção econômica, seus empreendimentos rendiam-lhe riqueza, mas, ao que parece, ele

ainda ansiava pelo reconhecimento social que o hábito da Ordem de Cristo poderia lhe

propiciar.

275 De acordo com Ângela Barreto Xavier e Antônio Manuel Hespanha as “relações que obedeciam a uma lógica

clientelar, como a obrigatoriedade de conceder mercês aos ‘mais amigos’, eram situações sociais quotidianas e

corporizavam a natureza mesma das estruturas sociais, sendo, portanto, vistas como a ‘norma’. A verdade é que

estas atitudes foram sendo progressivamente marginalizadas (no sentido inverso ao do progresso do aparelho de

‘Estado’), até adquirirem o epíteto de corruptas, e são actualmente conotadas como situações de ‘anormalidade’

institucional”. XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes Clientelares, p. 339. 276 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia, p.299. 277 De acordo com o dicionário de Rafael Bluteau, tença é uma “renda de certa forma de dinheiro, que uma

pessoa se faz a si mesmo, quando faz renuncia dos mais bens, que possui, ou que o Príncipe, ou outra pessoa

assinala a alguém, em uma, ou mais vidas, em premio de algum serviço, ou qualquer outro motivo”. BLUTEAU,

Raphael. Vocabulario portuguez & latino, p.92. 278 PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822), p.88. 279 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.3.

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Como vimos no segundo capítulo dessa dissertação, aos homens de negócio que

possuíssem dez ações nas companhias Reais era permitido pedir habilitação na Ordem de

Cristo. Esta era uma das vias possíveis, a outra poderia ser através renúncia de outros a seu

favor. Gaspar Pessoa possuía dez ações na Companhia Geral das Pescarias Reais do

Algarve280, dessa forma, poderia ter pedido o hábito antes de 1775, mas por algum motivo

acreditou ser melhor esperar. Sua origem cristã-nova ainda poderia ser reavivada de modo a

difamá-lo, já que havia ainda aqueles que, mesmo após a Lei de 1773, buscavam imputar

infâmia aos descendentes de cristãos-novos condenados pela Inquisição. Tal era a ignomínia à

qual esses indivíduos se viam submetidos que foi preciso uma nova Lei, criada em 15 de

dezembro de 1774, para colocar fim à murmuração pública contra os mesmos.

Os casos de prisões por criptojudaísmo de membros da família Pessoa eram conhecidos

pelos indivíduos que frequentavam o mesmo círculo social de Gaspar Pessoa e,

provavelmente, ele devia ouvir murmurações negativas a esse respeito. Novamente a lacuna

documental não nos permite inferir que ele soubesse quais rumos a política pombalina

seguiria, entretanto sendo ele um homem que convivia com membros do poder, é possível que

ele notasse as mudanças e aproveitar-se delas281.

Em 20 de março de 1775, nosso personagem recebeu o hábito por renúncia de Manoel

Godinho, homem de importância militar,

obrador da Infantaria desta Corte, e na províncias de Estremadura, e

Alentejo, por espaço de 27 anos, oito meses, e 11 dias e na Praça de Soldado,

Cabo de Esquadra, Sargento Supra, e no Posto de Alferes, e de Ajudante

contador entrepolladamente de 27 de Abril de 1733 em que assentou praça

de Soldado, até 7 de Julho de 1761, em que ficava continuando no dito Posto

de Ajudante, tendo mandado com o seu Regimento de socorro para esta

Corte.282

280 ANTT. Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares, [fl.7 e 7v]. 281 Carlo Ginzburg, em seu texto sobre a obra de Natalie Zenon Davis, afirma que a lacuna documental não

necessariamente precisa ser vista como um problema ao ofício do historiador, pois o mesmo pode aventar as

possibilidades a partir de um conhecimentos aprofundado do contexto e da ligação deste com o personagem

analisado. Estamos aventando esta possibilidade porque não encontramos documentação que nos permita afirmar

tal análise, mas ela – para nós – faz sentido tendo em vista o círculo social, político e econômico do qual Gaspar

Pessoa fazia parte. Cf. GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre”,

de Natalie Zemon Davis. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Editora Bertrand

Brasil, 1991. 282 ANTT. Carta de Padrão. Tença de 12$000 réis a título do Hábito pela renúncia de Manuel Godinho. Cota:

Registro Geral de Mercês de D. Jose I, livro 28, fl. 109. Data: 20 de março de 1775.

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O desejo por honras era um elemento comum entre os portugueses dos séculos XVII e

XVIII, e muitas relações cotidianas eram estabelecidas devido a essa aspiração283. Dessa

forma acreditamos que a relação estabelecida entre Manoel Godinho e Gaspar Pessoa tivesse

como alicerce o anseio por honras. Podemos ler essa relação à luz da noção de amizade

presente na ética aristotélica284. Para Aristóteles, a amizade seria um laço de afeto entre duas

ou mais pessoas, cujas atitudes seriam concordantes e voltadas para o bem. Esse bem seria

tudo “aquilo a que todas as coisas tendem” 285, em outras palavras, é o fim que desejamos por

ele mesmo e para o qual direcionamos nossas ações. Para Alexandre Mendes Cunha, essa

concepção de amizade permeava as relações políticas da sociedade portuguesa de Antigo

Regime, sendo que ela,

constituiria, neste sentido, o suporte de fortes laços políticos e fonte de

deveres duráveis. A amizade na concepção de Aristóteles comporta assim

tanto o sentido do amor recíproco entre iguais como também da relação entre

desiguais, o que caracterizaria a relação, por exemplo, entre governante e

governados, pai e filho ou patrão e cliente286.

A amizade – que pode ser relacionada ao conceito de clientelismo287 – que estamos

atribuindo à relação entre Gaspar Pessoa e Manoel Godinho é compreendida aqui como

relação entre desiguais, posto que para cada parte envolvida o sentido – ou o fim – que se

desejava alcançar com a relação era diferente. Aqui, não estamos nos utilizando o termo como

a expressão de um sentimento, mas de utilidade prática, tal como definida por Aristóteles, em

Ética a Nicômaco:

Há, assim, três espécies de amizade, iguais em número às coisas que são

estimáveis; pois com respeito a cada uma delas existe um amor mútuo e

conhecido, e os que se amam desejam-se bem a respeito daquilo por que se

amam. Ora, os que se amam por causa de sua utilidade não se amam por si

mesmos, mas em virtude de algum bem que recebem um do outro. Idêntica

coisa se pode dizer dos que se amam por causa do prazer; não é devido ao

caráter que os homens amam as pessoas espirituosas, mas porque as acham

agradáveis. Logo, os que amam por causa da utilidade, amam pelo que é

283 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno, p.4. 284 Aristóteles foi amplamente retomado pela Segunda Escolástica, desta forma, diversas concepções presentes

nas obras deste filósofo foram utilizadas pelos tratadistas da Época Moderna. Por este motivo a própria noção de

amizade é utilizada para analisar as relações políticas do Antigo Regime português. Cf. XAVIER, Ângela

Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes Clientelares, p.340-342. OLIVAL, Fernanda. As Ordens

Militares e o Estado Moderno, p.16. 285 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Poética – Coleção Os Pensadores, V.2. São Paulo: Nova Cultural, 1991,

p.3. 286 CUNHA, Alexandre Mendes Cunha. Patronagem, Clientelismo e Redes Clientelares: a aparente duração

alargada de um mesmo conceito na história política brasileira. In: História, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 226-247,

2006, p.241. 287 HESPANHA, Antônio Manuel. Introdução. In: MATTOSO, José. História de Portugal, p.12.

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bom para eles mesmos, e os que amam por causa do prazer, amam em

virtude do que é agradável a eles, e não na medida em que o outro é a pessoa

amada, mas na medida em que é útil ou agradável.

De forma que essas amizades são apenas acidentais, pois a pessoa amada não

é amada por ser o homem que é, mas porque proporciona algum bem ou

prazer.288

De acordo com António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier289, estas relações

não se baseavam em contrapartidas expressas e/ou imediatas, ou seja, não significava que o

credor (dominante) exigiria um retorno imediato do benefício por ele cedido ao devedor

(dominado). Desta forma, acreditamos que Manoel Godinho ansiava por apoio financeiro,

enquanto Gaspar Pessoa desejava distinção, o capital simbólico que a posse do hábito lhe

proporcionaria.

Mesmo que o hábito tenha perdido um pouco desse capital simbólico após a Lei de

1773 e devido à intensificação do mercado de hábitos – que passaram até mesmo a ser

vendidos através de anúncios em periódicos impressos –, para aqueles que descendiam de

cristãos-novos de conhecida fama criptojudaica, a honra de ser Cavaleiro da Ordem não

deixava de ser desejada290.

Torna-se fundamental discutir a questão jurídica que envolve o termo renúncia, posto

que ele pode ser encarado como uma camuflagem linguística nas cessões de mercês que

analisaremos. No vocabulário do Antigo Regime renúncia significava favorecimento a

terceiros, a “pessoas idôneas, e dignas de sucessão”291. Uma análise literal do termo

desconsideraria sua “capacidade para abranger e camuflar um conjunto vasto de realidades,

que estava não só muito divulgada nos séculos XVII e XVIII, como era amplamente aceite e

tinha vasta cobertura por parte do centro político292”. Para Fernanda Olival, era comum que

um particular, somente renunciasse ao hábito, em benefício de alguém com quem não tivesse

laços de parentesco, em troca de pagamento, apesar da venda ser juridicamente proibida entre

particulares. Entretanto, essa prática era recorrente e até mesmo defendida por alguns juristas,

288 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Poética – Coleção Os Pensadores, V.2. São Paulo: Nova Cultural, 1991,

p.172. 289 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes Clientelares, p. 340. 290 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.748 e p.758. 291 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino, p. 249. 292 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal (séculos XVII-XVIII). In: Análise Social,

vol. XXXVIII (168), 2003, 743-769, p. 752.

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e após 1755, quando uma crise econômica abalou o Estado português, tornou-se cada vez

mais frequente.

Segundo se dizia num texto judicial de 1771, o negócio ‘não éra illicito, ou

Reprovado, aSim como não hé, o dos papeis de Serviços, que sem

prohibição alguma, se vendem, e Comprão; e tornão a vender’; atitude

justificada nos seguintes termos: ‘Sem que desta Subregação, se seguise

perjuizo á fazenda de S. Mag.de, e muito menos aos vendedores, porque

Com os preços, que Recebião. dos Compradores, Se davão. por satisfeitos da

mercé, que por ellas, lhe quize-se fazer o mesmo senhor’ 293.

O que se pode notar é que os particulares envolvidos nesse mercado de hábitos faziam

uso dos termos jurídicos para camuflar as vendas, agindo nas brechas dos sistemas

normativos. É possível que esse tenha sido o modo pelo qual Gaspar Pessoa recebeu o hábito

de Manoel Godinho, apesar de não termos nenhum recibo que confirme a compra e venda do

mesmo. A própria Coroa sabia desse tipo de mecanismo, mas o aceitava. Como afirmou Júnia

Furtado, “os dispositivos da legislação acabavam sendo invocados de forma discricionária e à

sua rigidez contrapunha-se uma política flexível da Coroa em relação aos grandes, quando se

tratava de questões de seu interesse”. 294

De acordo com a lei, a renúncia ao hábito em favor de outrem não poderia ser firmada

somente entre os dois envolvidos, pois era necessário uma autorização Real que tornasse

válida a ação. Além disso era preciso, ainda, entrar com um processo de Habilitação no qual

eram feitas as provanças, senão o agraciado poderia somente usufruir da tença recebida,

ficando-lhe vedado a possibilidade de ostentar as insígnias295. Por este motivo, temos na

segunda folha do processo de Gaspar Pessoa a seguinte informação:

Diz Gaspar Pessoa Tavares, que

V. Magestade lhe fez mercê de lhe mandar lançar o Hábito da

Ordem de Cristo; e para haver de o receber se lhe devem

fazer as suas provanças296.

De acordo com Ronald Raminelli, os negociantes, após conseguirem o hábito da

Ordem, entravam com o processo de provanças na Mesa de Consciência e Ordens para

293 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.749. 294 FURTADO, Júnia Ferreira. O cristão-novo e o converso ou uma parábola genealógica no sertão de

Pernambuco, p.72. 295 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.747. 296 ANTT. Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares, [fl. 2].

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conseguirem a habilitação e permissão para utilizar as insígnias297. Entretanto, Gaspar Pessoa

não seguiu esta ordem, pois quando recebeu o hábito pela renúncia de Manoel Godinho, ele já

havia dado entrada no processo de Habilitação. Este foi iniciado em 22 de fevereiro de 1775 e

finalizado em 04 de maio do mesmo ano, resultando no título de Cavaleiro da Ordem.

As averiguações acerca da vida e da ascendência do habilitando iniciaram-se em 25 de

março de 1775, na Vila do Fundão, passando depois as diligências para outras vilas da Região

de Castelo Branco e posteriormente para Lisboa. No total foram ouvidas trinta testemunhas;

dentre estas, encontramos capitães de regimentos, clérigos, Cavaleiros da Ordem de Cristo,

médicos e outros que não disseram suas ocupações ou cargos. Todas foram unânimes em

afirmar que Gaspar Pessoa era um bom cristão, que não tinham tido notícia de que ele nem

seus pais e avós fossem acusados de heresia, fato que sabemos ser falso. Aqueles que

conheciam seus avós relataram a atuação destes como mercadores estabelecidos em lojas, mas

informando aos diligentes que todos eram ricos e que se tratavam à “Lei da Nobreza”,

frisando a posição econômica e social destes. Quando perguntados se sabiam “se o

pretendente é filho, e neto de pais, ou de avô paterno, que cometessem crime de Lesa

Majestade Divina, ou Humana, e que por eles fossem sentenciados, e condenados nas penas

estabelecidas nas Leis do Reino”298, todos negaram. Evidentemente nenhuma das testemunhas

falaria sobre os casos de prisão da família Pessoa, a não ser que fossem inimigos ou

quisessem prejudicar Gaspar Pessoa.

A maior parte das testemunhas conhecia os avós paternos do habilitando, Sancho Pessoa

e Branca Nunes; os maternos eram conhecidos por poucos, pois viviam em Penamacor, vila

também pertencente ao Distrito de Castelo Branco, a trinta e seis quilômetros de distância do

Fundão. Mesmo os que não possuíam contato com Gaspar Mendes e Filipa Nunes sabiam

que, na vila, estes viviam da atividade comercial. Ambos também haviam sido acusados de

criptojudaísmo; ele havia sido sentenciado à abjuração em forma, às penitências espirituais e a

pagamento de custas em 16 de dezembro de 1712299; ela, a 09 de julho de 1713, sentenciada

ao confisco de bens, à abjuração em forma, às penitências espirituais e ainda ao cárcere e ao

297 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.104. 298 ANTT. Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares, [fl. 13v]. 299 ANTT. Processo de Gabriel Mendes. Cota atual: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 1185.

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uso do hábito penitencial300. A condenação devia ser de conhecimento das testemunhas

ouvidas pelo Comissário, apesar disso, elas não se pronunciaram a respeito.

O que se pode observar no processo de habilitação de Gaspar Pessoa é um silêncio em

torno das prisões sofridas por seus familiares. Não houve quem questionasse a nobreza no

trato do habilitando, nem de seus pais e avós. Além disso, as datas do recebimento do hábito

da Ordem e do início do processo nos fazem aventar a possibilidade de que ele acreditava ser

melhor pedir tais mercês quando a legislação desse suporte e impedisse vexações. Antes das

Leis de 1773, era sabido que a demora na conclusão de um processo de Habilitação poderia

ser sinal de que algo estava errado, de que o habilitando carregava mácula de sangue judaico

ou mouro que o impedisse de receber tal mercê301. Provavelmente, mesmo sendo um

negociante influente, com a cota necessária de ações em Companhias Reais para entrar com

pedido de habilitação, Gaspar Pessoa, ao dar entrada nas provanças, poderia sofrer algum tipo

de constrangimento.

Nosso negociante cavaleiro não poupou esforços para ser aceito no círculo dos

“grandes” de Portugal. Promovia banquetes nos quais eram contratadas orquestras que

executavam peças sacras – como a Stabat Mater, de Pergolesi302 – e que encantavam os

ouvintes. Nesses banquetes compareciam as figuras políticas mais importantes do Estado,

dentre elas o próprio Marquês de Pombal. Em um desses jantares, ali esteve Marc Marie de

Bombelles, o Marquês de Bombelles, embaixador da França à época, que deixou um relato de

tal festividade, permeado de admiração e elogios:

Nous avons été finir la journée chez un négociant portugais, M. Pessoa, où

nous attendaient le marquis de Pombal et la morgada d'Oliveira. Dès que

nous avons été assis, on a commencé le plus beau concert qui ait été donné à

Lisbonne depuis que j'y suis. Le Stabat Mater de Pergolèse a été rendu tant

par les voix que par les instruments avec une perfection rare; une demoiselle

brésilienne a joué un concert de flûte avec une justesse aussi surprenante que

son goût est sûr et bon. D'autres femmes de la société de la maîtresse de la

maison ont chanté des airs italiens et m'ont fait beaucoup plus de plaisir que

je n'en ai à entendre les chanteuses de profession de la cour ou de la

patriarcale. Mais les meilleures choses doivent avoir leur terme et si ce

300 ANTT. Processo de Filipa Nunes. Cota atual: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 948. 301 Em O nome e o sangue, Evaldo Cabral nos mostra como repercutia de modo negativo a demora em um

processo de Habilitação na Ordem de Cristo e como tal demora estava intimamente ligada à desconfiança

relacionada ao processo de genere. Felipe Pais Barreto, personagem central da obra, é apontado como tendo uma

avó de sangue judeu, o que gerou um atraso maior do que o normal na conclusão de seu pedido de Habilitação e

promoveu um grande murmúrio na região onde ele vivia. MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue. 302 SILVA, Vanda de Sá M. Circuitos de Produção e Circulação da Música Instrumental em Portugal entre

1750-1820. 2008. 412f. Tese. Departamento de Música, Universidade de Évora. Évora, p.199.

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concert n'avait duré que la moitié du temps qu'on y a donné, il eut été

ravissant (Bombelles 1788: 100. 1787/02/21. Neryve)303.

Observa-se com a promoção desses eventos a preocupação de Gaspar Pessoa com a

comprovação de seu poder, tanto econômico – com a contratação de uma orquestra, algo

restrito somente àqueles com grande poder aquisitivo –, quanto social, revelado nos convivas

que o circundavam. O embaixador da França ressalta o dom musical das damas de companhia

das anfitriãs, que entoavam árias, evidenciando “que as senhoras do círculo da dona da casa

demonstram recursos artísticos de grande nível, comparando-as com os músicos

profissionais”304

A busca por honras e reconhecimento social de Gaspar Pessoa não findou com sua

inserção na Ordem de Cristo. Após ser nomeado para alguns ofícios de relativa importância e

instituir um morgado, nosso personagem entrou com um processo para justificar sua nobreza.

Nos autos deste processo reside um aspecto interessante, ao que parece, houve uma

manipulação genealógica, cujo intuito acreditamos ser a tentativa de atrelar sua ascendência a

uma família de antiga nobreza. Antes de analisarmos este processo e a manipulação

genealógica, continuaremos com a discussão acerca dos ofícios ocupados por nosso

personagem e sobre a instituição de seu morgadio. Todos esses elementos serão fundamentais

para a discussão acerca do status social que ele conseguiu adquirir para sua família, e que,

contudo não foram suficientemente fortes para apagar a mácula de sangue cristão-novo.

3.3 Viver à “Lei da Nobreza”: a justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares

303 “Nós terminamos o dia na casa de comerciante Português, Sr. Pessoa, onde nós esperamos o Marquês de

Pombal e o morgado d’Oliveira. Uma vez que nós estávamos sentados, começou o mais belo concerto que foi

dado em Lisboa desde que aqui estou. Do Stabat Mater de Pergolesi foi executado tanto pela voz quanto pelos

instrumentos com uma rara perfeição; uma dama brasileira desempenhou um concerto de flauta com tal precisão

surpreendente e de bom gosto. As outras damas de companhia do círculo da anfitriã cantaram árias italianas que

me fizeram muito mais prazer do que eu tenho ouvido dos cantores profissionais da corte ou patriarcado. Mas as

melhores coisas devem ter um fim e por isso este se concerto durasse metade do tempo que deveria, ele seria

agradável”. Apud SILVA, Vanda de Sá M. Circuitos de Produção e Circulação da Música Instrumental em

Portugal, p.199. (Tradução nossa) 304 SILVA, Vanda de Sá M. Circuitos de Produção e Circulação da Música Instrumental em Portugal..., p.199.

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Após receber as insígnias da Ordem de Cristo nosso personagem consegue, pelo menos,

mais dois ofícios por meio do mesmo sistema de aquisição do hábito: por renúncia de outrem,

que assim como na questão do hábito da Ordem, podemos discutir se houve um sistema de

compra e venda. Não podemos afirmar que Gaspar Pessoa tenha conseguido tais cargos

através de compra, uma vez que esta era, de modo geral, como já foi dito, proibida pela

legislação, exceto em alguns casos305:

No respeitante aos ofícios, em Portugal, a teoria mostrava-se unânime num

ponto: os particulares não podiam vendê-los; apenas a Coroa o podia fazer,

de acordo, aliás, com as Ordenações. Isto é, o donatário, por reconhecer um

mando superior, não era considerado apto a alienar o que apenas usufruía ou

administrava. Em paralelo, dava-se aos monarcas esse poder, quanto mais

não fosse da venda em certas circunstâncias; faria parte das regalias

menores, apesar de as Ordenações não o explicitarem. Em 1673, no dizer de

Domingos Antunes Portugal, o que podia tornar lícita essa venda seria a

grande necessidade pública e desde que o ofício não envolvesse aspectos

espirituais e a compra fosse feita por pessoa idónea e a preço moderado.

(Ordenações Filipinas, liv. I, tít. XCVI, liv. II, tít. XLVI - § 52. Por esta

razão, os ofícios não podiam ser hereditários em Portugal em pleno direito

(sobre o assunto, id., ibid., §§ 51-52), embora na prática se tivesse

introduzido esse costume, ao qual procurou pôr cobro a carta de lei de 23 de

Novembro de 1770).306

Somente a Coroa possuía, juridicamente falando, a prerrogativa de vender ofícios.

Ainda assim, em relação aos cargos mais altos ela o fazia de modo cauteloso e prezando pela

não publicitação, posto que era um ato imensamente criticado pela sociedade. Durante o

reinado de D. João IV, por exemplo, foros da casa real, hábitos nas ordens militares, ofícios e

outras honras foram vendidos devido à necessidade financeira gerada pela guerra contra a

Espanha. Entretanto, a Coroa não agia desta forma constantemente, mas como recurso último,

pois o receio de murmúrios advindos de tais vendas era sua grande preocupação. Existia uma

“multiplicidade de textos da época, incluindo na literatura política, [que] insistia muito na

ideia de que a possibilidade de comprar a honra destruía o esforço dos vassalos para servirem

com valor a res publica”307. Para os tratadistas “um rei mercador que premiava os homens

cuja riqueza era o principal, senão o único, atributo qualificador, não condizia com a imagem

305 O Regimento das Mercês, de 1671, que já levava em conta a venda de hábitos e serviços, insistiu em alguns

pontos que visavam restringir a transferência de títulos entre particulares, sendo eles: a “necessidade de quem

requeria a remuneração dos mesmos à Coroa ter previamente serviços próprios e ser parente ‘em gráo conhecido

da pessoa, que lhe renunciou em vida, ou testou por morte taes serviços’ (cap. XI) 40. As únicas excepções

consistiam em permitir que os pais pudessem requerer usando apenas os serviços militares dos filhos falecidos e

sem quaisquer serviços próprios [...]”. OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.753. 306 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.744. 307 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.746.

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de um monarca justo, que agraciava com cargos e honras os homens beneméritos de elevada

condição social.”308 Desta forma, a Coroa portuguesa era muito mais comedida do que a

espanhola no que se refere à venda de ofícios, para aquela não bastava ao interessado pagar

grandes somas em dinheiro à Fazenda Real para conquistar determinados ofícios, mas,

também ser um indivíduo reconhecidamente valoroso, de elevada condição social e

merecedor de tal mercê309.

Apesar do controle exercido pela Coroa sobre a venda de ofícios, havia um outro

mecanismo pelo qual indivíduos adquiriam postos nestes, qual seja por meio de compra de

particulares que detinham o direito sobre tais cargos. De acordo com Fernanda Olival, “pela

letra dos juristas portugueses, quem renunciava a um ofício não podia receber dinheiro em

troca. Esta última faculdade não era considerada equivalente a venda”310. Entretanto, assim

como se dava a camuflagem linguística por meio do termo renúncia nos processos de

transmissão de hábitos, este mesmo termo poderia ser utilizado para mascarar transações de

compra e venda de ofícios. É necessário ressaltarmos que, a transmissão de ofícios entre

particulares só poderia ser feita a “pessoas que portassem as virtudes morais associadas à

ideia de nobreza e também a de bom servidor”311, ou seja, levava em conta os mesmos

critérios de nomeações feitas pela Coroa.

Da mesma forma que havia uma regulamentação acerca da remuneração de ofícios,

existiam também regras de transmissibilidade sobre os mesmos – cuja base era o Regimento

de Mercês de 1671. Destacamos que há uma diferença fundamental entre a renúncia e a

nomeação de um serventuário para determinado ofício. A renúncia implica que aquele a quem

foi cedido o ofício passe a ser o titular proprietário do mesmo – podendo mais tarde renunciá-

lo e/ou nomear outrem para seu lugar. No caso de nomeação, o proprietário cedia a outrem

apenas o direito de servir o ofício por um tempo determinado, sendo que neste caso era

cobrada a terça parte dos rendimentos anuais advindos do mesmo312.

308 STUMPF, Roberta Giannubilo. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII.

In: STUMPF, Roberta Giannubilo, CHATURVEDULA, Nandini (orgs). Cargos e ofícios nas monarquias

ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa, CHAM, 2012, pp. 279-298, p.284. 309 STUMPF, Roberta Giannubilo. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII,

p.284. 310 OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal, p.751. 311 STUMPF, Roberta Giannubilo. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII,

p.286. 312 STUMPF, Roberta Giannubilo. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII,

p.286.

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Para que um indivíduo pudesse renunciar e transferir seu cargo a outrem era necessária

autorização régia e assentamento de tal processo nos livros de Registro Geral de Mercês.

Assim procedeu, em 26 de outubro de 1787, Nicolau Xavier de Figueiredo Melo de Bulhões

Lemos, que foi autorizado pela rainha Dona Maria I a renunciar ao ofício de Apontador da

Ribeira das Naus313, cargo administrativo de relativa importância e que se assemelharia a de

um gestor dos recursos humanos, responsável por fiscalizar os demais oficiais que trabalham

na ribeira das naus, tanto em terra quando nos navios314. Abaixo do registro de sua renúncia

há o assentamento da transmissão do ofício à pessoa de Gaspar Pessoa Tavares.

Por meio de alvará datado de 8 de Agosto de 1788, foi transmitido a Gaspar Pessoa o

ofício de Escrivão do Cível315, por renúncia de José Teixeira Pillão – que por sua vez, recebeu

o cargo de porteiro do Conselho da Real Fazenda316. Não temos mais informações sobre

outros ofícios assumidos por Gaspar Pessoa, mas sabemos que durante o período das invasões

napoleônicas em território Português, ele ficou responsável por atividades de manutenção das

pontes de Abrantes e Punhete317.

Como dito, a riqueza de Gaspar Pessoa era pública e notória, as testemunhas de seus

processos de Habilitação e Justificação de Nobreza foram unânimes em afirmar tal fato. Com

tamanha fortuna adquirida ao longo de anos, nosso cavaleiro se viu preocupado em proteger

seu patrimônio de uma possível dissolução gerada pela partilha de seus herdeiros. Para tal,

empenhou-se em instituir um Morgado318 com padrão de juro real, autorizado por alvará régio

em 9 de novembro de 1790, bem como podemos ler neste excerto:

Que conservando ardentes desejos de estabelecer um Morgado para com os

seus rendimentos se sustentar com decência um seu descendente, ou em sua

falta outro que seja do seu sangue assim depender decorosamente servir ao

Estado, o suplicando a sua majestade a graça de lhe permitir a instituição do

313 ANTT. Carta. Apontador da Ribeira. Cota: Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv.22, fl. 112. 314 SOUSA, José Roberto Monteiro de Campos Coelho e (org.). Systema, ou collecção dos regimentos reaes,

contém os regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real (Tomo 6). Lisboa: Officina de Francisco

Borges de Sousa, p.104-106. 315 ANTT. Carta de Propriedade de Ofício. Escrivão (Gaspar Pessoa Tavares). Cota: Registro Geral de Mercês de

D. Maria I, livro 4, fl. 271. Data: 08 de agosto 1788. 316 ANTT. Carta. Ofício de Escrivão do Cívil da Cidade (Gaspar Pessoa Tavares). Cota: Registro Geral de

Mercês de D. Maria I, livro 4(2), fl. 259. Data: 08 de agosto 1788. 317 AHM. Correspondência de Gaspar Pessoa Tavares para o Visconde de Anadia. Código de referência:

PT/AHM/DIV/1/13/19/24. Datas: 1804, março, 13. 318 ANTT. Alvará para poder Vincular em Morgado um Padrão de Foro Real (Gaspar Pessoa Tavares). Cota:

Registro Geral de Mercês de D. Maria I, livro 25, fl. 343. Data: 9 de novembro de 1790.

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dito morgado foi a mesma senhora servida tomar a sua real consideração que

ele instituidor tenha por meio de sua indústria e comercio adquirido os

fundos e credito, que o constituem nos termos do paragrafo dezessete da lei

de três de agosto de mil setecentos e setenta e nove assim por bem conceder

ao seu régio beneplácito por alvará de nove de novembro de mil sete centos

e noventa para ele instituidor puder vincular em Morgado hum padrão de

juro real da importância de sessenta contos de réis a juros de três e meio por

cento cada ano rendendo-lhe juntamente as suas casas em que presentemente

assiste situadas nas mesma praça do Rocio e com frente também para a Rua

Augusta319.

Posteriormente, as casas da Rua Augusta foram libertadas do vínculo, sendo colocadas

em seu lugar “sua Herdade da Vargem, cita no termo da Vila de Alcácer do Sal, que valia

mais e ficava por isso mais rendoso, e melhorando o mesmo morgado”320. Após a autorização

para assim proceder, seu vínculo ficaria nomeado como Morgado da Vargem.

De acordo com Júnia Ferreira Furtado, a instauração de um morgado era uma mercê

régia, uma “retribuição aos súditos leais e honrados”321. A intenção do instituidor não se

ligava apenas à preservação de seu patrimônio econômico, mas ao desejo de distinção social,

pois por meio deste mecanismo conservavam a “memória de seu nome e acrescentamento de

seus estados, casas e nobreza”322. Na obra Chica da Silva e o contratador de diamantes, a

autora supradita nos apresenta um caso semelhante ao de Gaspar Pessoa Tavares – no que se

refere a um anseio de distinção social. João Fernandes – o contratador de diamantes que

envolveu-se com Chica da Silva – também empenhou-se em instituir um morgado para se

nobilitar. Os casos de João Fernandes e Gaspar Pessoa podem ser elencados como

exemplificação de um desejo nutrido por grandes negociantes, principalmente daqueles que

viveram durante o período pombalino, de distinguirem-se socialmente dos demais

negociantes.

319 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl.13. 320 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1596, nº33, fl.2. 321 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes, p. 232. 322 Ordenações Filipinas. Livro IV, tít. 100, § 5 apud FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador

dos diamantes, p.233. Esta preocupação tornar-se clara também no testamento de Martim Afonso de Sousa,

primeiro capitão donatário do Brasil, no qual ele apresenta uma série de restrições que deveriam ser seguidas por

seus sucessores para que o morgado ficasse para sempre na memória e que nunca diminuísse. FURTADO, Júnia

Ferreira (org.). O Testamento de Martim Afonso de Sousa e de Dona Ana Pimentel no Acervo do Setor de Obras

Raras da UFMG. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 308. Importante salientar que anteriormente o

morgado estava associado – também – a uma prática de sucessão vincular característica de grupos domésticos de

lavradores. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Morgado, p.76.

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O processo de instauração do morgado foi trasladado e anexado ao Auto de Justificação

de Nobreza. Neste, Gaspar Pessoa afirma que, por mais que quisesse beneficiar seu

primogênito e seus descendentes ele não queria prejudicar os demais filhos, ainda assim, se

preocupou em instituí-lo em favor daquele para conservar os bens e o nome da família.

Afirmou também, que ele instituía o morgado somente a partir da terça parte livre que lhe

cabia. Ratifica que se seu primogênito não prezasse pela manutenção do morgado o mesmo

seria passado para o próximo filho da lista.

Além das instruções acima, ele ainda pede a seus sucessores que,

por esmola e não por obrigação que em cada um dos anos que possuírem

este morgado, mandar dizer pela alma dele instituidor, e da dita sua mulher

uma missa em dia de Nossa Senhora da Conceição pela grande devoção que

sempre Instituidor e suma mulher tiveram com a mesma senhora que é o

orago do oratório desta casa323.

No processo de Justificação de Nobreza foram ouvidas testemunhas, as quais seriam

apresentadas pelo próprio justificante ao inquiridor Francisco Xavier Figueira. Dentre elas

estava Joaquim Alexandre de Souza Fragoso, fidalgo capelão da casa de S. Majestade, vigário

colado na matriz de São Julião da Villa de Punhete – a mesma vila por onde seu pai, Gabriel

Tavares, havia passado em 1738, com o mercador Duarte Pereira, a quem havia confessado

sobre suas práticas judaicas324 –, de idade de 60 anos, que afirmou conhecer o justificante há

alguns anos e que sabia de sua nobre descendência e dos avultados cabedais que possuía.

Frei Antônio Carrilho, religioso eremita de Santo Agostinho, professor régio de filosofia

do convento de Castelo Branco, 49 anos, afirmou:

Como o suplicante se trata, conforme à Lei da Nobreza com criados, amas, e

cavalos: sendo legítimos descendentes dos Amorins e Pessoas de

Coimbra; sendo certo que com estes apelidos de Pessoas e Amorins institui

o Suplicante um Morgado de duzentos mil cruzados. 325

323 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl.16. 324 ANTT. Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4612,

[fl.116v]. 325 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fls.27-29. (Grifo nosso)

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As demais testemunhas, Gaspar Pereira da Silva e Navarro, juiz de fora, natural de

Abrantes, 30 anos e João Xavier Taborda Pimentel Ferreira de Aguiar, fidalgo de solar,

alferes, 35 anos, também confirmaram a riqueza e nobreza de Gaspar Pessoa dizendo que ele

descendia dos Pessoas e Amorim, de Coimbra.

Contudo, por meio de cruzamento de dados coletados nos processos inquisitoriais de

demais membros da família Pessoa, não encontramos uma relação direta entre os pais e avós

de Gaspar Pessoa com os Pessoa e Amorim, da Vila do Rabaçal, no Distrito de Coimbra. As

testemunhas declararam que as duas famílias eram uma só com base em documentação

apresentada a elas, provavelmente pelo justificante, bem como afirmou o inquiridor sobre o

testemunho de Joaquim Alexandre de Souza Fragoso: “O que tudo ele testemunha sabe, não

só por íntimo e antigo conhecimento que tem destas famílias, mas também pelos documentos

que tem visto”326.

Anexa aos Autos está a árvore genealógica elaborada a pedido do justificante, no ano de

1792. No cabeçalho da mesma, encontramos a seguinte informação: “Pessoas, e Amorins da

Vila do Rabaçal, e agora em Lisboa, 1792”. Nesse cabeçalho nota-se a busca do justificante

em estabelecer uma ligação com o sobrenome Amorim, que não aparece em nenhum de seus

ascendentes, a não ser nesse Auto de Justificação. Seus pais e avós foram sempre nomeados

como Pessoa Tavares, tanto nos processos inquisitoriais, quanto na Habilitação da Ordem de

Cristo de nosso personagem.

Os nomes apontados como sendo de seus pais, nessa genealogia então apresentada por

Gaspar Pessoa, são Gabriel Tavares Pessoa e Amorim e Leonor Pereira da Silva. Informação

esta, que vai ao encontro daquelas exibidas nos demais documentos aqui analisados. A

referência sobre seus avós também está correta, Dona Branca Nunes e Sancho Pessoa, sendo

que abaixo do nome deste aparece a seguinte informação: “natural de Montemor o Velho,

serviu com distinção no Regimento de Aveiro, por mão de Luiz Pessoa de Amorim, Cavaleiro

da Ordem de Cristo, capitão mór do Rabaçal e familiar do Santo Ofício”327. Aqui, notamos

que o genealogista fez questão de frisar a função militar desenvolvida por Sancho Pessoa, fato

326 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fls.27v. 327 ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fls.25.

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que deve ser levado em consideração, tendo em conta que tal ofício ainda era um elemento

distintivo do “viver nobremente”328.

A incongruência nominal na árvore genealógica presente nos autos inicia-se na

ascendência de Sancho Pessoa, pois os nomes apresentados como sendo de seus pais são:

Gaspar Pessoa de Eça e Amorim e Dona Elena de Brito Moniz, mas de acordo com o

processo inquisitorial de Sancho Pessoa, seus pais se chamavam Custódio da Cunha de

Oliveira e Madalena Pessoa329.

De acordo com o Nobiliário de famílias de Portugal, Gaspar Pessoa de Eça e Amorim

era: “Filho de João de Amorim Pessoa, casou[-se] com Dona Maria Gouveia Vellozo

Cabral”330, de cujo casamento nasceu Luiz Pessoa de Amorim de Gouveia, o capitão do

regimento no qual Sancho Pessoa era cadete. Desta forma, este Luiz Pessoa de Amorim seria,

pela genealogia apresentada na Justificação de Nobreza, irmão de Sancho Pessoa, o que não

confere com as informações dos processos inquisitoriais. Comparando a genealogia anexa nos

autos e o supradito nobiliário, as informações sobre os pais e avós de Gaspar Pessoa Eça estão

corretas.

De acordo com um artigo de Manuel da Silva Castelo Branco331, Gaspar Pessoa Tavares

e Amorim descendia dos Pessoa e Amorim, pois, segundo ele, Madalena Pessoa, bisavó do

justificante, pertencia a esta família cristã-velha, que vivia na vila de Montemor-o-Velho.

Nesta vila os Pessoa e Amorim possuíam um solar conhecido, cuja edificação existe até os

dias de hoje, além de outras casas que acreditamos ser as que Sancho Pessoa alegou ter

herdado de sua mãe. Pela genealogia que Manuel da Silva Castelo Branco fez de Madalena

Pessoa, não encontramos o nome de Gaspar Pessoa de Eça e Amorim, ou seja, este não era

nem pai nem avô de Madalena. Assim, por mais que nosso personagem descendesse dos

Pessoa e Amorim elencados na genealogia anexa à Justificação de Nobreza, a ascendência

não se dava pela ordem descrita na documentação apresentada. O que gerou esse conflito de

informações? Equívoco ou uma manipulação genealógica?

328 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia, p.299. 329 ANTT. Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc.

9478, [fl.32v.] 330 GAIO, Manuel José da Costa Felgueiras. Nobiliário de famílias de Portugal. Tomos I-II e XIII. Braga: Pax,

1938-1939, p.182. 331 BRANCO, Manuel da Silva Castelo. A comuna judaica da vila de Castelo Branco [1381-1496] (laços

ancestrais de Fernando Pessoa à Beira Baixa). In: Actas das Primeiras Jornadas do Património Judaico da Beira

Interior. Belmonte, 2008, p.21.

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Fig. 6 Genealogia apresentada por Gaspar Pessoa Tavares no Auto de Justificação de Nobreza

Fonte: ANTT. Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim, fl.25.

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Quando o processo de justificação do negociante foi aberto, a infâmia que recaía sobre

os filhos e netos de indivíduos que houvessem incorrido em crime de lesa majestade divina ou

humana, já havia sido extinta pela Lei de 1774. Entretanto, como os crimes cometidos por

seus pais e avós eram de conhecimento público, para que sua nobreza fosse justificada era

necessário apagar tal mácula por meio da associação com uma linhagem reconhecidamente

nobre. Desta forma, acreditamos que houve uma manipulação genealógica – e não um erro –

que buscava uma nobreza ancestral não tão distante, como parecia ser a ligação de Gaspar

com esses Pessoa e Amorim332, o que revela que, a despeito da legislação pombalina em favor

dos cristãos-novos, esses ainda eram mal vistos e a concessão de nobreza não devia ser

acompanhada de má fama pública, daí a necessidade de manipulação da sua ascendência.

Devido à apresentação desta genealogia e dos testemunhos que afirmavam que tanto

Gaspar Pessoa quanto seus ascendentes viviam à “Lei da Nobreza”, em 6 de março de 1792

sua nobreza foi considerada justificada. Posteriormente ele conseguiu carta de brasão de

armas e foro de fidalguia. Apesar de todas as provas de sua nobreza, ele passou por um

processo difamatório, por parte da mãe de Antônio Lobo da Gama Saraiva de Almada,

quando concedeu a esse a mão de sua única filha legítima, D. Maria Henriqueta Francisca

Pessoa Amorim. São sobre esses eventos que trataremos a seguir.

3.4 O Fidalgo Cavaleiro da Casa Real e a mácula de sangue

Ao contrário da França, a partir de fins do século XVIII, em Portugal, ao lado da

nobreza foram os negociantes de grosso trato os principais apoiadores da monarquia no

embate contra as forças revolucionárias que, após os desdobramentos da Revolução de 1789,

avançaram para outros territórios com objetivo de conquistá-los. Em troca do apoio financeiro

dado pelos grandes negociantes à Coroa, esta retribuiu com honrarias que diminuíram ainda

mais a fronteira entre esses e a Nobreza. Alguns deles ofereceram somas em dinheiro, outros

embarcações e até mesmo homens para se alistarem sem que houvesse necessidade de

332 Jorge Miguel Pedreira cita laços de parentesco dos Pessoa Tavares com os Pessoa de Amorim de Covilhã,

afirmando que estes últimos sofreram duramente com os levantes populares ocorridos na vila em 1826 e 1828,

quando foram acusados de serem pedreiros-livres e judeus. PEDREIRA, Jorge Miguel de Melo Viana. Os

Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822), p.226.

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recrutamento. Assim procedeu Gaspar Pessoa, que, devido à oferta de doações destinadas ao

Erário Régio, foi referenciado com honrarias na Gazeta de Lisboa, a 12 de março de 1793:

A conjuntura atual tem dado a conhecer que nos ânimos dos portugueses

existe ainda a mesma lealdade para com os seus soberanos, e o mesmo zelo

pela gloria da nação, que em tantas outras ocasiões se fizeram admirar em

todas as partes do mundo, ornando a nossa historia com os mais brilhantes

frutos. A incansável vigilância com que o príncipe N. S. ordena, e vê

executar as medidas militares, que a sua prudência lhe sugere, é imitada por

toda a classe de pessoas: nos armamentos dos navios de guerra é notável o

ardor que anima a todos os que se empregam naqueles trabalhos, sendo

excitados pelo exemplo dos mais distintos oficiais. De várias partes do reino

tem vindo numerosos corpos de homens bem constituídos, oferecer-se

voluntariamente para o serviço da marinha, montando já a perto de quatro

mil os que aqui tem chegado, e que encontrarão em S. A. a mais benigna

recepção. Gaspar Pessoa Tavares, distinto negociante da nossa praça, com

leal e patriótico zelo ofereceu para o real serviço e para o do estado todos os

seus cabedais sem reserva; oferta que S. A. não julgou a propósito aceitar,

mas que da sua parte lhe foi honrosamente agradecida pelo excelentíssimo

marquês de Ponte de Lima, ministro da fazenda. Várias outras pessoas sem

duvida seguiriam tal exemplo, se a resolução de S. A. não fizesse por hora

intempestivas tais ofertas333.

Devido a tantas mostras de auxílio financeiro ao Estado, a 27 de junho de 1795, recebeu

mais uma mercê, a carta de brasão e armas dos Pessoa e Amorim, concedida por Dona Maria

I. Nessa reafirmava-se que

seus pais e avós, que foram pessoas muito nobres das famílias dos apelidos

de Pessoas e Amorins, que neste reino são fidalgos de linhagem e cota de

armas e de solar conhecido, e como tais se tratavam com cavalos criados e

toda a mais ostentação própria da Nobreza, sem que em tempo algum

cometessem crime de Lesa Majestade divina ou humana.334

De posse da documentação que comprovava sua nobreza e da carta de armas, a 05 de

junho de 1797, Gaspar Pessoa recebeu o foro de Fidalgo Cavaleiro335, tornando-se, doravante

parte da nobreza política336. Nesse alvará, os investimentos feitos nos negócios da Coroa, os

ofícios por ele ocupados e os diversos préstimos concedidos ao Estado foram os argumentos

333 SOARES, Joaquim Pedro Celestino. Additamentos aos quadros navaes e epopoea naval portugueza. Lisboa:

Imprensa Nacional, 1869, p.81. (grifo nosso) 334 FERREIRA, Delfim Bismarck. A inédita Carta de Brasão de Armas de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim,

p.70. 335 ANTT. Alvará de Foro de Fidalgo Cavaleiro de Gaspar Pessoa Tavares. Cota: Registro Geral de Mercês de D.

Maria I, livro 28, fl. 292v e 293. Data: 05 de junho de 1797. 336 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.90.

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utilizados para comprovar que era digno de receber tal mercê. Destaca-se, porém, a referência

às povoações por ele erigidas, com autorização real, em Tolões (Toulões), na vila de Idanha-

a-Nova, Distrito de Castelo Branco, local de nascimento de seu tio Martinho da Cunha e

ponto constante de passagem de seus pais e avós, que para lá iam realizar seus negócios. Por

ter cultivado as terras, antes incultas, e povoado a região recebeu o título de Senhor de Tolões.

Mesmo de posse de tantas honrarias os préstimos de Gaspar Pessoa à monarquia não

cessaram, ele se envolveu estreitamente com os conflitos entre Portugal e França, vendendo

panos para o exército a baixo custo337, trabalhando nas pontes da cidade de Abrantes338 e

oferecendo somas em dinheiro para cobrir os custos da guerra. Devido a tais feitos, foi

novamente referenciado, juntamente com seu irmão José Pessoa Tavares, na Gazeta de

Lisboa, de 13 de outubro de 1809:

Relação das pessoas que tem concorrido com Donativos Voluntários

manifestados na Mesa da Comissão para eles estabelecida no Erário Régio

pelo Real Decreto de 15 de Novembro de 1808.

José Pessoa Tavares da Cidade de Castelo Branco ofereceu para as despesas

da guerra na Restauração do Reino 1:600$000 réis na forma da Lei, e 400

alqueires de centeio, e ofereceu mais para o Exercito de entre Tejo e

Mondego na Villa de Thomar 600 côvados de pano azul ferrete.

Gaspar Pessoa Tavares ofereceu mais para o serviço do Exercito três

machos339.

Nem todas as honrarias alcançadas e os protestos de estima nas Gazetas impediram

Gaspar Pessoa passar por uma situação vexatória. No ano de 1815, foi acusado por Dona

Matilde Joanna Saraiva de Mello e Sampaio – viúva de Miguel Diogo da Gama Lobo de

Almada – de aliciar o filho dela, Antônio Lobo da Gama Saraiva de Amaral, jovem de vinte e

um anos de idade, incentivando-o a se casar com Maria Henriqueta Francisca Pessoa de

Amorim340, sua filha. De acordo com Nuno Gonçalo Monteiro, a família de Antônio Lobo

337 AHM. Relação da conta dos cobertores e mantas que o príncipe regente mandou comprar a Gaspar Pessoa

Tavares para fornecimento do exército auxiliar britânico. Código: PT/AHM/DIV/1/14/006/29. Datas: S.d. [ca.

1808]. 338 AHM. Correspondência de Gaspar Pessoa Tavares para o Visconde de Anadia. Código de referência:

PT/AHM/DIV/1/13/19/24. Datas: 1804, março, 13. Correspondência de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim, para

D. Miguel pereira Forjaz, ministro e secretário de estado dos negócios da guerra, sobre embarcações e pontes.

Código: PT/AHM/DIV/1/14/169/094. Datas: 1808, Setembro, 19 - Abrantes - 1809, Abril, 7 – Lisboa. 339 GAZETA DE LISBOA. Lisboa, vol.8, n.115, 13 out. 1809, p.363. Coleção organizada por Paulo Groussac. 340 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8. Requerimento de

Antônio Lobo da Gama Saraiva de Amaral, pedindo o suprimento do consentimento materno, para casar com D.

Maria Henriqueta Francisca Pessoa Amorim, 1815. Como as folhas desse processo – cuja cópia nos foi cedida

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nem mesmo pertencia à primeira nobreza, o que aumentava ainda mais o caráter vexatório do

episódio341.

Ao planejar seu casamento com Maria Henriqueta e ver sua mãe negar-lhe

consentimento para o enlace, Antônio Lobo entrou com um requerimento de emancipação por

suprimento de idade342. O pedido, enviado ao Desembargo do Paço, tornou-se um processo

extenso, sendo iniciado em setembro de 1815 e concluído em janeiro de 1816. Em seu

conteúdo o suplicante rogava à Coroa interseção em seu auxilio, pedindo que lhe fosse

concedido o direito de se casar com sua pretendida e que o rei exigisse que sua mãe expusesse

as dúvidas que a faziam denegar seu consentimento ao enlace. Ao longo do requerimento

observamos o esforço de Antônio Lobo em salientar a importância social de Gaspar Pessoa,

pois o jovem não se fartou em elencar os seus títulos nobiliárquicos.

Dona Matilde respondeu ao requerimento com uma carta na qual fez acusações ao pai

da pretendente de seu filho. Em resposta ela afirmou que seu filho tinha menos de vinte e um

anos – ao contrário do que diz o traslado do assento de batismo de Antônio Lobo, datado de

08 de agosto de 1794 – e que por isso não tinha “boa capacidade e juízo para governar-se”343.

Afirmou ainda que o rapaz estava desobedecendo a ordem paterna ao agir contra a vontade

dela, insistindo num casamento que ela não concedera licença. Segundo ela, Antônio Lobo

perturbava o sossego do lar e ficava muito tempo em casa de Gaspar Pessoa, “aonde come, e

lhe prestam dinheiros para seus divertimentos, somente [vinha] à casa da suplicada para fazer

desordens, e cometer desobediências, dando mau exemplo às suas irmãs donzelas”344. As duas

famílias se frequentavam há anos. Antônio Lobo era amigo íntimo de Gaspar Pessoa e

costumava ir à sua casa assiduamente, em diversas horas do dia – até mesmo durante a

madrugada. A mãe do jovem afirmou que por meio de tais encontros seu filho foi aliciado

pelo negociante e convencido a se casar com Maria Henriqueta345.

por Nuno Gonçalo Monteiro – estão numa ordem que não sabemos se é a mesma do original, não enumeramos

as páginas, mas colocaremos entre colchetes a data de produção do documento utilizado. 341 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes, p.426. 342 Para que alguém fosse considerado maior de idade, deveria ter mais de vinte e cinco anos, caso o jovem fosse

órfão e quisesse emancipar-se deveria impetrar “graça d’El Rey para ser havido por maior”. Ordenações

Filipinas, Livro III, Tit.42, fl.625-626. 343 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8. [carta de setembro de

1816, fl.1]. 344 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8. [carta de setembro de

1816, fl.2]. 345 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [carta remetida em 07

de novembro de 1815].

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A preocupação maior de D. Matilde não se relacionava à questão econômica, mas sim

ao sangue, ao status social. Ela se remetia à linhagem de Gaspar Pessoa para diminuir a

nobreza deste, afirmando que o processo de nobilitação por meio de serviços era algo menor.

Insistia no fato de que sua família advinha de uma linhagem antiga, enquanto a de Gaspar

Pessoa ser recente, ou seja, teria iniciado em sua geração. Tais proposições vão ao encontro

das análises de historiadores346 que afirmam que nem a pequena riqueza adquirida ao longo de

várias gerações, tampouco a riqueza suntuosa adquirida em apenas uma geração, fazia com

que os homens pertencentes à nobreza política – ou seja, aquela gerada por mercê régia –

fossem considerados nobres pelos demais membros deste estado.

Já haviam se passado quarenta e dois anos desde que a Lei que colocou fim à distinção

entre cristãos-novos e cristãos-velhos fora promulgada, mesmo assim o sangue ainda era

elemento de diferenciação entre esses grupos. A mácula de sangue e a infâmia ainda recaíam

sobre aqueles que haviam tido familiares presos pelo Santo Ofício. Quando o requerimento de

Antônio Lobo foi aberto completar-se-iam sessenta e nove anos desde a sentença de Gabriel

Tavares e cento e nove anos desde a de Sancho Pessoa da Cunha – respectivamente pai e avô

de Gaspar Pessoa Tavares. Mesmo que tanto tempo houvesse se passado, Dona Matilde ainda

apresentou tais fatos para diminuir a nobreza do pretendido sogro de seu filho, afirmando:

E pode haver entre a família da suplicante e da pretendida noiva? Aquela

conta com inúmeros avós e parentes todos fidalgos, esta só pode contá-los

como criminosos, infamados, vistos em todos os tempos e por todos os

lados. Como poderão os parentes da suplicante a ter sem pejo e horror para o

seu casamento? E como poderá a suplicada, que tem ainda duas filhas

donzelas negociar os seus casamentos com pessoas dignas?347

Para fortalecer seus argumentos, D. Matilde anexou um documento referente ao

morgado cujo herdeiro era seu filho. Tratava-se de um traslado do testamento de Luiz Pereira

de Melo – datado de 28 de dezembro de 1730 –, cônego da Sé de Coimbra, o primeiro senhor

do dito morgado, o qual determinara que este deveria ser passado a seus sobrinhos, haja vista

que ele não havia deixado filhos. Sua mãe anexou o traslado de modo a demonstrar como o

rapaz, de acordo com ela, não estava cumprindo as exigências do testamento, pois nele o

346 RAMINELLI, Ronald. Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico Setecentista, p.102. 347 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [carta de setembro de

1815, fl.2].

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cônego ditou o seguinte: “Excluo deste Morgado, e da sucessão dele, os que forem de

qualquer infecta Nação de Judeu, Mouro, Herege e Infiel e de todo aquele que cometer

crime de Lesa Majestade Divina ou Humana [...]”348. Para a senhora, os filhos que nasceriam

do casamento de Antônio Lobo com Maria Henriqueta seriam descendentes de judeus e

hereges, teriam o sangue maculado por tal origem, e isso para ela era inadmissível, pois

quebraria ainda a cláusula de transmissão do morgado.

Após o recebimento desta carta, Antônio Lobo remeteu ao Desembargo do Paço, em

28 de setembro de 1815, um pedido para ter acesso à cópia da mesma. Depois de proceder

com a leitura e análise das justificações feitas por sua mãe, ele emitiu seu contra-argumento,

em 02 de outubro de 1815, no qual contestou todas as alegações de D. Matilde, afirmando que

Gaspar Pessoa era tão nobre quanto os pais de Miguel Diogo da Gama Lobo de Almada – seu

pai. Afirmou, também, que o fato da nobreza daquele ter sido adquirida em troca de serviços

prestados à Coroa não era motivo para diminuir a honradez de sua família. Contradizendo o

receio de sua mãe no que se refere à sucessão de seus vínculos ele afirmou que, assim como

constava na lei, esses seriam administrados por pessoas puras e livres de nota, posto que os

filhos que nascessem de seu casamento seriam descendentes de pessoas idôneas, pois o pai de

sua noiva era tão cavaleiro fidalgo quanto seu próprio. Ainda sobre seu vínculo, Antônio

Lobo desmente D. Matilde no que se refere às rendas, pois ela havia afirmado que o montante

era de doze mil cruzados, quando na verdade era bem inferior a isso. Ao longo de todo

documento, o jovem rapaz empenhou-se em elencar as honras que Gaspar Pessoa recebeu

durante sua vida, de modo a frisar ainda mais a relevância política, econômica e social de seu

pretendido sogro.

Na continuidade do documento observam-se diversos pontos interessantes, dentre eles

as inovações literárias e jurídicas que buscavam afirmar que a nobreza de Gaspar Pessoa não

era menor por ter sido conquistada por si ao invés de tê-la recebido por herança. Em

determinado trecho vemos a seguinte proposição:

Ociosidade e orgulho tem feito escrever muito sobre o merecimento das

nobrezas herdada e adquirida, mas sendo esta uma qualidade, que se começa

a ter pelo soberano, e pelas suas Leis, é manifesto que sempre tem de

começar em um primeiro adquirente. Seria atentatório ao Poder Real

348 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [traslado de testamento

de 28 de dezembro de 1730, fl.3v.]. Grifo nosso.

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vilipendia-la no primeiro, a quem a concedesse o soberano, e em quanto à

sua instituição é necessário confessar que não poder haver diferença.349

Este excerto remete à discussão apresentada no segundo capítulo dessa dissertação,

quando foi analisado o problema da mobilidade social e apresentou-se a questão levantada por

Álvaro Ferreira de Vera, em seu tratado publicado em 1631, no qual afirmou que o primeiro

de uma linhagem a receber título de nobreza não era menos nobre do que seus sucessores.350

Outro ponto fundamental do documento é a articulação acerca da ascendência de Gaspar

Pessoa. Antônio Lobo negou as acusações de sua mãe, afirmando que os pais e avós de seu

pretendido sogro não haviam sofrido penas de infâmia. Assim ele descreve tal denúncia:

O libelo infamatório que se toma por 2º pretexto, é certamente obra de

espírito turbulento, e indigno, que aproveitando-se do ressentimento de

minha mãe a arrastou a tão profundo precipício. E nem mesmo poderiam

entender-se, se suas conversações, suas queixas públicas nas sociedades,

suas repreensões particulares, lhes não servissem de chave os termos sempre

vagos, com que a resposta se explica, pois que nem se nomeiam os avós,

nem assinalam os crimes, nem se classifica a infâmia.351

Há, após este trecho, um equívoco em relação ao nome que Antônio Lobo afirma ser o

do avô paterno de Gaspar Pessoa, pois ele alegou que o mesmo chamava-se Nuno Pessoa da

Cunha e Amorim, cadete do Regimento de Dragões de Aveiro e por ter tal ofício seria,

necessariamente, nobre, afinal “como podia ser que a um criminoso, e descendente de

criminosos, infame de fato, ou Direito, Vossa Alteza Real fizesse tantas e tão assinaladas

graças e o deixasse infame?”.352 Sabemos que, na verdade, o nome do avô de Gaspar Pessoa

era Sancho Pessoa da Cunha, sobre quem nos detivemos no primeiro capítulo. Em nossa

pesquisa genealógica, não encontramos o nome de Nuno Pessoa da Cunha e Amorim em

nenhum ramo, se de fato era pertencente à família de Gaspar Pessoa, não era em linhagem

direta. Contudo, a alusão ao ofício militar do avô de Gaspar Pessoa vai ao encontro da

349 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.2]. 350 VERA, Álvaro Ferreira de. Origem da nobreza politica, blasoes de armas, appellidos, cargos & titullos

nobres apud XAVIER, Ângela Barreto. “O lustre do seu sangue” Bramanismo e tópicas de distinção no contexto

português. In: Tempo, v.15, n.30, p.71-99, 2011, p.92-93.. 351 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.3]. 352 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.3].

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informação apresentada por este em sua Justificação de Nobreza. Em tal documento

observamos que abaixo do nome de Sancho Pessoa da Cunha há uma nota afirmando que ele

era cadete do Regimento de Dragões de Aveiro. Não temos nenhum documento que nos

permita afirmar se essa informação é correta, além disso, não há referência a este cargo no

processo inquisitorial de Sancho Pessoa, neste consta apenas que ele era mercador.

Até essa altura do documento se pode inferir que Antônio Lobo não soubesse dos

crimes pelos quais aos ascendentes de Gaspar Pessoa haviam sido presos, mas os argumentos

que se seguem fazem questionar esse suposto desconhecimento. O jovem rapaz cita as Leis de

1773 e 1774 que visavam pôr fim à macula de sangue e ao preconceito contra descendentes

dos cristãos-novos que fossem sentenciados pelo Santo Ofício. Ele afirmou que mesmo que

algum dos antecessores, ou parentes de Gaspar Pessoa fosse delatado, ou

penitenciado por este princípio, certamente [sua] mãe ignorava que além das

Leis do Senhor Rei D. Manuel de 1º de março de 1507, e do Senhor Rei D.

João 3º, de 16 de Dezembro de 1524, as do Senhor Rei D. José o 1º, de 25 de

Maio de 1773, e 15 de Dezembro de 1774, não só aboliram e extinguiram,

como se nunca tivessem existido, tudo o que em Portugal se havia

maquinado, obrado, e processado a este respeito, e ordenado que fossem

trancados, cancelados, e riscado em modo que não pudessem mais ler-se, os

seus registros, porque assim ficasse inteiramente suprimida a memória de um

tão atroz atentado [...].353

Antônio Lobo tentou, a todo custo, desvincular a imagem de Gaspar Pessoa à nota de

infâmia. É provável que soubesse o que se passou com os antepassados de sua pretendida

esposa, mas empenhou-se em demonstrar como essa infâmia que lhe recaía era fruto de

mentiras contadas e articuladas por homens que, provavelmente, eram desafetos de seu sogro

e que inspiraram sua mãe a espalhar pela sociedade a mentira de que aquele “era descendente

de judeus e que seus antepassados tinham sido penitenciados”354. Para provar a nobreza de

Gaspar Pessoa, foi anexado ao documento o traslado do decreto real, datado de 14 de março

de 1813, no qual o príncipe regente dava mercê de mais uma vida ao senhorio de Toulões

353 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.3v.-4]. 354 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.3v.].

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(Tolões) em nome de Gabriel Tavares Pessoa de Amorim, filho de Gaspar Pessoa, posto que

este continuava a dar provas de ser um bom e fiel vassalo355.

Para reforçar a ideia de que difamações desse tipo eram articuladas por homens de

interesses escusos, que levavam às situações extremamente prejudiciais e que visavam afetar,

principalmente, grandes homens, Antônio Lobo cita o caso de D. Antônio, Prior do Crato.

Esse, durante a guerra sucessória ao trono português em 1580, foi acusado de ter ascendência

judaica por via materna. De acordo com o jovem rapaz, essa intriga foi elaborada por aqueles

que “estavam comprados, ou tinham interesse em que a Coroa destes Reinos passasse, como

desgraçadamente passou, a domínio estranho”356. Por mais este excerto, pode-se notar que

António Lobo, ou seu procurador, conheciam bem as Leis que determinavam o fim da

distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, pois como visto no segundo capítulo dessa

dissertação, D. Antônio foi citado na Leis de 1774, como exemplo dos malefícios gerados por

tal distinção.

Pode-se observar na carta que o rapaz estava demasiadamente insatisfeito com a

postura de sua mãe, por isso elencou uma série de duras punições destinadas àqueles que

proferissem injúrias como as que ela havia tecido contra seu pretendido sogro. Ele para por aí,

afirmando que não mais queria tratar sobre as acusações de sua mãe e deixou como pedido

final que o rei lhe concedesse a licença para casar-se com Maria Henriqueta Francisca Pessoa

de Amorim, pois assim “promoverá a conservação, e a paz, ao mesmo tempo de duas famílias,

que por uma união conveniente, e digna, trabalham por serem, por si, e pelos seus

descendentes, vassalos úteis ao Estado”357.

D. Matilde empenhou-se em pintar a imagem de seu filho como um sujeito

irresponsável o suficiente para não receber autorização para emancipar-se, pois anexo ao

processo encontram-se atestados e requerimentos judiciais de negociantes de Lisboa nos quais

informavam que Antônio Lobo era devedor em suas lojas. Em tais requerimentos, datados de

outubro de 1815, os negociantes afirmam que o jovem lhes deviam pagamentos referentes às

compras de fatos e outros produtos têxteis de somas avultosas. Provar que o filho não tinha

355 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [traslado de documento

elaborado em 14 de março de 1813, fl.1.]. 356 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.3v.]. 357 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 02 de

outubro de 1815, fl.4v.-5].

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responsabilidade com suas próprias dívidas evidenciaria as acusações que ela tecera por toda

sua carta: o jovem era incapaz de se reger, administrar seus bens e, consequentemente, de

escolher um bom casamento.

A maquinação de D. Matilde teve êxito, após a Mesa do Desembargo do Paço tê-la

ouvido, o pedido de Antônio Lobo foi indeferido em 30 de outubro de 1815358. Mas o jovem

não desistiu, entrou com recurso, em 04 de novembro de 1815, no qual seu procurador teceu

novos argumentos contra as acusações de D. Matilde. Segundo o procurador, de acordo com

as Ordenações Filipinas (Livro IV, Título 42), aquele que tivesse menos de vinte e cinco anos

de idade, que tivesse a capacidade de se reger e de administrar seus bens seria digno de

receber a graça da emancipação por suplemento de idade.

Portanto a razão porque se lhe negou este geral beneficio de comum direito,

e do Direito positivo, e Público particular do Reino, não pôde o suplicante na

confusão, e opróbrio, a que se acha reduzido, ainda bem alcançar. [...] o

suplicante serve a Vossa Alteza Real no Posto de Capitão da Primeira

Companhia do Regimento de Voluntários Reais de Milícias a pé de Lisboa

Oriental, e quem foi julgado capaz de reger tantos, e tão discordes e vontades

de subalternos, e obedecer resignado, e obediente a tantos diversos

superiores, parece não merecer a nota que não sabe reger, e administrar seus

mesquinhos bens.359

“Mesquinhos bens”, assim o procurador classificou a suposta fortuna a qual D. Matilde

atribuiu ao vínculo deixado por seu tio. De acordo com o procurador o vínculo estava

imensamente desfalcado e seus rendimentos eram insignificantes. O próprio Antônio Lobo já

havia dito que a quantia que sua mãe informara, em carta enviada ao Desembargo do Paço,

em nada se aproximava do valor real. Por mais que sua família estivesse em apuros

financeiros e pudesse se reerguer por meio da união com a família de abastado negociante, a

questão do sangue pesava mais para D. Matilde. Ela continuaria se recusando a estabelecer

laços com alguém, que segundo ela, tinha nobreza tão moderna, por mais que ela estivesse

travestida de imensas honrarias.

O procurador de Antônio Lobo afirmou que, além de D. Matilde equivocar-se ao tentar

provar que seu filho não era maduro o suficiente, ela ainda ofendia a honra de Gaspar Pessoa

358 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [despacho de 30 de

outubro 1815, fl.1]. 359 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 03 de

novembro de 1815, fl.1].

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alegando que os descendentes desse incorressem em crimes infamantes. O dito procurador

condenou o imenso alarde que ela promovia ao tecer em público suas acusações, manchando a

honra de seu próprio filho:

Em toda a cidade e talvez que fora dela não haverá pessoa condecorada a

que não tenha estremecido os ouvidos com os azedos e afrontosos

queixumes de sua mãe contra o suplicante. Ora o propõem mentecapto,

outrora desobediente, já aliciado, já finalmente vil; Quid femina furens!360

Sobre as alegações dela acerca dos crimes dos antepassados de Gaspar Pessoa, o

procurador os rebateu de modo categórico, afirmando que tal proposição seria um crime, ou

pelo menos um delírio, pois colocava em questão a sabedoria do rei, uma vez que este não

conferiria tantas honras a quem fosse indigno delas. Ele reafirmou que os antepassados de

Gaspar Pessoa eram nobres, mas que ao longo de suas vidas tiveram um patrimônio pequeno,

sendo que a conquista de grande fortuna ficara a cargo do negociante supracitado. Para o

procurador esse elemento fortalecia ainda mais a ideia de que a nobreza de Gaspar Pessoa não

era menor por ser recente, porém ainda mais considerável por ser fruto de conquista própria e

não de herança.361

O procurador ainda chamou a atenção para o fato de que D. Matilde também era

frequentadora assídua da casa de Gaspar Pessoa, sendo provavelmente presença constante nos

suntuosos banquetes promovidos pelo rico negociante. Ela era apenas mais uma das convivas

advindas da nobreza, talvez uma não tão importante, pois políticos e “personagens de maior

graduação o visitavam igualmente mantendo o mesmo trato de amizade”362.

As intenções de Antônio Lobo acerca do enlace nos parece ter um fundo econômico,

uma vez que ele afirma que a riqueza de sua família estava reduzida e que acreditava que a

união com uma família de patrimônio maior e consolidado lhe seria favorável. Essa hipótese é

reforçada pelos argumentos levantados pelo seu procurador, quando este afirmou que:

360 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 03 de

novembro de 1815, fl.2]. 361 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 03 de

novembro de 1815, fl.1.v.]. 362 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 03 de

novembro de 1815, fl.3].

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Na evidência pois da nobreza atitulada, e da riqueza constante pretendeu o

suplicante o consórcio, e apenas este ser ou logo o suplicante achou quem

lhe confiasse carruagem, roupas, e os mais conveniente para a sua decência

pessoal, assim como agora, logo que a fama veloz publicou a denegação, foi

citado judicial e vergonhosamente para pagar como mostra pelas certidões

abaixo do no 2 [refere-se aos requerimentos dos negociantes que já citamos

acima].363

Mas, para D. Matilde não importava a posição econômica do pretendido sogro de seu

filho, mas sim a origem dele. Ela prosseguiu com novas acusações – anexadas em 07 de

novembro de 1815 – afirmando que o rapaz era menor de idade e que por este motivo Gaspar

Pessoa deveria ser punido de acordo com as leis do reino que versavam sobre o aliciamento

de menores364. Para ela, Antônio se deixara convencer pelo enlace porque “é fácil atrair a

inclinação de um rapaz iniciante, e inconsiderado, quando se lhe facilitam os meios de

nutrir”365. Ou seja, para ela, o único motivo pelo qual seu filho aceitara o casamento com

Maria Henriqueta era porque o pai dela lhe dava fundos para manter seus luxos. Em parte essa

afirmativa parece ser verdade, pois o próprio procurador do jovem informou que Gaspar

Pessoa lhe cedia roupas, carruagem e outros meios. D. Matilde ainda fez questão de frisar que

não sentia inveja da fortuna e da opulência de Gaspar Pessoa, afinal, segundo ela sua nobreza

mais antiga era o que importava.

De acordo com um novo pedido de Antônio Lobo, emitido em 15 de novembro de 1815,

D. Matilde teria juntado testemunhas para provar as acusações que fazia. Sobre tais acusações

o jovem não teve acesso para que procedesse sua leitura e tecesse sua defesa, por este motivo

emitiu um novo pedido para tanto. Seu procurador alegou que tal impedimento era contra o

Direito Natural, que prezava pela defesa daqueles que fossem acusados de algo –

principalmente de algo que não era verdade. De modo a reforçar que não haveria

constrangimento no enlace, o procurador pediu que o Desembargo do Paço averiguasse a

363 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 03 de

novembro de 1815, fl.3.v]. 364 Ordenações Filipinas, Livro IV, Lei de 19 de junho de 1775, fl.1050-1051. Nesta lei o rei estabeleceu que

aliciar os filhos – menores de idade – de outras famílias a se casarem com suas filhas era crime passível de duras

punições. O simples fato de permitir que jovens rapazes frequentassem a casa e estabelecessem o contato com as

filhas do proprietário era visto como uma forma de aliciamento, pois tal ato serviria para pressionar um enlace

matrimonial. De acordo com o texto da lei a elaboração dela foi necessária porque as demais versaram apenas

sobre rapto e estupro de menores advindos da plebe, não havendo citação sobre os filhos da nobreza, que

geralmente não acusavam criminalmente tais acontecimentos optando por estabelecerem casamento de modo a

“apagar” tal desonra. Como punição em caso de se provar o aliciamento, o acusado poderia ser condenado a

cumprir degredo de dez anos nas galés destinadas à Angola. 365 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 07 de

novembro de 1815, fl.1].

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qualidade de ambas as famílias, para provar que a de Gaspar Pessoa era de fato nobre e

possuidora de grandes cabedais. Ele sabia que as testemunhas deveriam ter repetido o que D.

Matilde não cansava de falar em público, que Gaspar Pessoa não tinha sangue nobre. Sobre

isso o procurador afirmou:

Dirão que os maiores do seu futuro sogro não foram nobres, mas também o

não foram os primeiros fundadores da Casa da antiga nobreza, a não se

mostrar que algum começou nobre desde a criação do Universo, e se poderá

dizer sem absurdo, que o primeiro nobre de uma família o não era por não

descender de outro [...]. A Nobreza, Senhor, é uma prerrogativa Política

dado ao vassalo a qual se separa dos outros, e é forçado que seja

compreendido em alguma destas três qualidades, ou do físico, ou da Moral,

ou do Político: não pode fugir-se daqui. Não é qualidade física, porquê há

nobres que são pusilânimes e outros enfermos: Não é moral, porquê há

nobres destituídos de virtudes: logo é qualidade Política, que o Soberano

(que é autor das Leis) pode dar ou tirar segundo for seu supremo e livre

arbítrio [...]366

Apesar de todas as tentativas e requerimentos enviados ao Regente, a mãe de Antônio

Lobo da Gama não conseguiu impedir o enlace matrimonial, o príncipe regente concedeu o

alvará para o mesmo fosse estabelecido367. Não encontramos informações sobre os filhos que

vieram desse casamento, contudo, de acordo com o texto do genealogista Diogo de Paiva e

Pona, Antônio Lobo e Maria Henriqueta teriam uma filha perfilhada nascida em Pena, no ano

de 1820, chamada Maria Guilhermina da Gama Lobo Saraiva de Almada368. Não

conseguimos encontrar documentação que comprovasse tal referência, mas o que nos importa

aqui é destacar que o casamento ocorreu devido ao alvará real favorável a Gaspar Pessoa,

mesmo com todos os argumentos lançados pela mãe do noivo.

Embora o casamento tivesse ocorrido demarcando uma suposta vitória dos argumentos

de Antônio Lobo sobre as acusações feitas por Dona Matilde, esta levou tão intensamente a

público suas queixas que é provável que tivesse causado imenso constrangimento a Gaspar

Pessoa e sua família. Assim, a análise desse documento se fez importante para discutir o fato

de que por mais honras e mercês que Gaspar Pessoa tivesse recebido, por mais que

366 ANTT. Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8, [documento de 11 de

novembro de 1815, fl.1-1v.]. 367 ADB. Carta de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim ao Conde da Barca. Cota: B-5(17, 1). Na documentação

referente ao requerimento de Antônio Lobo não encontramos o alvará de concessão, mas tivemos a confirmação

dele na carta supradita. 368 PONA, Diogo de Paiva e. BANDEIRAS, de Lisboa. In: http://genealogias.info/.

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conseguisse atrelar seu nome aos nobres, sua ascendência e os crimes cometidos por seus

pais, avós, tios, primos e bisavós não haviam caído no esquecimento e, a despeito da

legislação pombalina, ainda serviam para desonrá-lo frente à sociedade local. A mácula de

sangue e a infâmia de cristão-novo continuavam a ser associadas à sua imagem e a de sua

família. Isto se refletiu na recusa de Dona Matilde em aceitar sua filha como nora. Por mais

que os Saraiva, e outros nobres da Corte, frequentassem os banquetes e as festividades

promovidas por Gaspar Pessoa não significava que partilhassem com ele de uma identidade

social comum369.

No final de sua vida, Gaspar Pessoa já havia alcançado várias honrarias, mas ainda

desejava mais uma, queria ser titulado como Barão de Toulões – cuja povoação ele era

senhorio – em reconhecimento aos serviços prestados à Coroa. Assim ele enviou uma carta, a

14 de março de 1817, ao Conde da Barca, Ministro da Marinha e do Ultramar e Conselheiro

de Estado no Brasil, para que este intercedesse junto ao príncipe regente para lhe conceder tal

graça. Na carta, afirmou que já estava “velho, e um pouco abatido, mas grato, e reconhecido

mais que tudo, Português, amante do Rei, e da Pátria, e desta mesma servidor eficaz em todo

o tempo” 370. Arrolou, também, os auxílios que prestara à Coroa, indicando que por isso

acreditava ser digno de receber tal honraria. Gaspar Pessoa, para frisar o respeito que o rei

tinha por si, citou o alvará no qual o monarca havia concedido a ele a autorização do

casamento de sua filha com o jovem António Lobo.

Apesar dos esforços, Gaspar Pessoa não conseguiu a mercê pretendida. Faleceu sem ter

alcançado tal título nobiliárquico. Seu primogênito, herdeiro do morgadio da Vargem,

chamado Gaspar Pessoa de Amorim da Vargem, requereu a D. Maria II o título de Barão da

Vargem da Ordem, o qual conseguiu no ano de 1840. De acordo com a carta de concessão, ao

pedir tal título, Gaspar Pessoa de Amorim da Vargem

expôs os valiosos serviços que seu falecido pai, o conselheiro Gaspar Pessoa

Tavares de Amorim, prestava ao Estado fazendo avultosos donativos para as

despesas públicas e dando assim evidentes provas de ardente patriotismo, e

nobre generosidade.371

369 “É legítimo falar-se da ‘ilusão dos salões’. Em larga medida, todas as elites urbanas mais ricas ou ilustradas

compartilhavam as novas formas de sociabilidade. Mas daí não resultava uma identidade social comum: a

ausência de casamentos mistos aí está.” MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes, p.427. 370 ADB. Carta de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Cota: B-5(17, 1). Data: 14/03/1817. 371 Carta. Barão da Vargem da Ordem. Filiação: Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Cota: Registo Geral de

Mercês, D.Maria II, liv.11, fl.187-188. Data: 1840, fl.1-1v.

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Desta forma, pode-se observar como a trajetória do pai foi de fundamental importância

para que o filho alcançasse as honrarias que aquele não conseguiu. Além de ser nomeado

Barão, Gaspar Pessoa de Amorim da Vargem, foi condecorado com altas patentes no exército

português, alcançando outros títulos honoríficos – como o de Visconde da Vargem. Assim,

como afirmamos em vários pontos dessa dissertação, a trajetória familiar foi fundamental para

que os descendentes dos Pessoa Tavares adquirissem o status social cada vez mais elevado e

cada vez menos tortuoso de se alcançar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa dissertação pretendeu analisar a trajetória de uma família de negociantes cristãos-

novos de modo a problematizar o processo de mudança social pelo qual ela passou ao longo

do século XVIII até o início século XIX. Um dos principais pontos discutidos referia-se à

categoria social cristão-novo. Teria tal categoria desaparecido, de fato, após a lei de 1773 que

pôs fim à distinção entre ela e os cristãos-velhos? A extinção legal realmente pôs fim ao

preconceito que se tinha sobre os sujeitos categorizados como cristãos-novos? E os

descendentes deste grupo, quando se nobilitavam, mesmo após a distinção, foram recebidos

como iguais no seio da nobreza? Para tratarmos sobre todos estes pontos analisamos a

trajetória de três gerações da família Pessoa Tavares, três gerações de mercadores, três

gerações que alcançaram status sociais bastantes diferentes. Se o primeiro sujeito a ser

analisado faleceu sem alcançar status de negociante de grosso trato, o segundo alcançou tal

patamar e o terceiro nobilitou-se, mesmo assim, a mácula de sangue, a infâmia, não se apagou

na terceira geração.

Discutir a trajetória de um sujeito já se apresenta como um grande desafio. Intentar tal

jornada sobre membros de uma família, por mais sejam apenas três indivíduos, não é menos

complicado. A documentação por nós analisada era demasiadamente lacunar, o que poderia

gerar interpretações equivocadas. Desta forma, para amenizar tal problema fez-se necessário a

discussão verticalizada acerca do contexto, no intuito de alcançarmos alguma solidez. Apesar

disso, sabemos que estivemos longe de alcançar a realidade na qual nossos personagens

viveram. Este problema, porém, não nos impediu de, de alguma maneira, dar voz àqueles que

não mais podem falar sobre suas vidas, sobre suas trajetórias, sobre as perseguições que

sofreram.

Nosso intuito, aqui, foi dar voz aos membros da família Pessoa Tavares, perseguidos

por serem – ou descenderem de – cristãos-novos. Perseguição essa que ultrapassava o próprio

contexto em que esses personagens viveram e que tinha raízes seculares. Por este motivo,

fizemos ao longo do primeiro capítulo uma discussão sobre como se deu a perseguição aos

judeus e cristãos-novos desde o período que antecedeu a criação do Tribunal do Santo Ofício

na Península Ibérica. Nosso objetivo foi analisar como ela se reproduziu na sociedade

portuguesa como um todo, principalmente entre a nobreza, de modo que a inserção dos

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descendentes de cristãos-novos nos quadros deste estado fosse dificultada, mesmo num

período em que a própria distinção entre conversos e cristãos-velhos já estava extinta.

Apresentamos os casos de membros da família Pessoa Tavares no intuito de discutir tal

perseguição por meio de micro realidades, problematizado alguns pontos acerca das práticas

criptojudaicas tão debatidas pela historiografia atual. Observamos como alguns elementos

presentes nos processos tornam-se interessante objeto de debate acerca dessas mesmas

práticas e como os sujeitos agiam de modo a preservar suas vidas e bens. Para tal, analisamos

os processos de Sancho Pessoa e de seu filho, Gabriel Tavares pelos os quais pudemos

discutir o modo como o Tribunal Inquisitorial articulava a acusação no intuito de pressionar

os réus a confessarem suas práticas e a denunciarem o maior número de pessoas possível.

Aqui, destacamos como em ambos os casos alguns ritos e orações detiveram nossa atenção

por não serem elementos recorrentes em outros processos sobre o mesmo delito. Mesmo

destacando tais elementos, não afirmamos categoricamente que ambos sujeitos fossem

conhecedores da Lei de Moisés, mas sim como articulavam elementos da tradição judaica e

cristã.

Se em grande parte do primeiro capítulo nos voltamos para a análise de microcosmos,

no segundo capítulo nos voltamos para discussões do macro, no intuito de preparar o terreno

para um retorno ao micro no terceiro capítulo. Assim, nessa altura discutimos a produção do

discurso que categorizava um sujeito como nobre, analisando como tal discurso foi apropriado

por determinados grupos para deslegitimar outros e apresentamos as consequências de sua

elaboração na vida daqueles que pretendiam nobilitar-se. Pudemos observar que um dos

critérios de qualificação de nobreza mais preponderantes era a linhagem, o sangue. Tal modo

de classificar um sujeito como nobre – ou não nobre – foi debatido ao longo de anos e em

consonância com os estatutos de limpeza de sangue foram determinantes para que cristãos-

novos fossem impedidos de ascender ao estado da nobreza. Contudo, observamos que apesar

de tal impedimento existir por lei, diversos sujeitos que não possuíam linhagem nobre

ascenderam à nobreza por meio de mercês régias adquiridas em troca de serviços à Coroa.

Neste capítulo discutimos, também, alguns pontos acerca das práticas político-

econômicas do Marquês de Pombal que foram fundamentais para que os homens de negócio

alcançassem um patamar na sociedade no qual pudessem ser equiparados a nobres. Além

disso, analisamos outras reformas pombalinas que diziam respeito mais diretamente aos

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cristãos-novos, ou seja, as Leis de 1773 e 1774, que depois de longos anos pôs fim à distinção

entre estes e os cristãos-velhos.

Nosso terceiro capítulo foi, como dissemos, um retorno ao micro. Analisamos a

trajetória da terceira geração da família sob a pessoa de Gaspar Pessoa Tavares. Pudemos

acompanhar como a trajetória de seu avô e de seu pai foram fundamentais para que ele se

tornasse um dos mais importantes negociantes na Praça de Lisboa. Vimos que, por meio de

sua fortuna, Gaspar Pessoa apoiou financeiramente os empreendimentos da Coroa, como

auxiliou esta quando da invasão dos franceses ao reino e como todas essas ações renderam-lhe

mercês que lhe permitiram adquirir Habilitação na Ordem de Cristo, Nobilitação e Foro de

Fidalguia.

Os pontos que pudemos analisar sobre sua vida, permitiram-nos questionar a aplicação

prática das Leis de 1773 e 1774, pois se na letra da lei a distinção entre cristãos-velhos e

cristãos-novos estava imposta, na sociedade o preconceito não se apagou. Vimos como

Gaspar Pessoa passou por um processo extremamente vexatório ao intentar casar sua filha

com um jovem de família de linhagem nobre. Seu sangue de origem cristã-nova e os

processos pelos quais seus ascendentes passaram foram apontados como uma mácula, como

elementos infamantes pela mãe do jovem rapaz com quem a filha de Gaspar se casou.

Não importava o quão importante negociante Gaspar Pessoa fosse, o quão pessoas de

grande relevância política, econômica e social frequentassem sua residência, mesmo após

quarenta e três anos da criação das leis que criminalizavam quem classificasse outrem de ser

cristão-novo, o sangue deste grupo ainda era considerado infecto. A mácula de sangue não se

apagou com a nobilitação.

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REFERÊNCIAS

1 . Fontes manuscritas, impressas, digitalizadas:

1.1 Fontes manuscritas

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT):

Fundo: Tribunal do Santo Ofício (TSO)

Processo de Baptista da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 9035.

Processo de Branca Nunes. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

9028.

Processo de Filipa Nunes. Cota atual: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 948.

Processo de Francisca da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 2347.

Processo de Francisco Mendes Veiga. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de

Lisboa, proc. 2907.

Processo de Gabriel Mendes. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

1185.

Processo de Gabriel Tavares. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

4612.

Processo de Isabel Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

8146.

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143

Processo de João Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

3785.

Processo de Luís da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

3037.

Processo de Madalena Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 6510.

Processo de Manuel da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 2109.

Processo de Martinho da Cunha de Oliveira. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição

de Lisboa, proc. 8106.

Processo de Martinho da Cunha de Oliveira. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição

de Lisboa, proc. 8106-1.

Processo de Miguel Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de

Lisboa, proc. 11285.

Processo de Pedro Henriques. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.

11496.

Processo de Rosa Maria Pessoa. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,

proc. 11431.

Processo de Sancho Pessoa da Cunha. Cota: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de

Coimbra, proc. 9478.

Fundo: Registro Geral de Mercês (RGM):

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Carta de Padrão. Tença de 12$000 rs a título do Hábito pela renúncia de Manuel Godinho.

Cota: Registro Geral de Mercês de D. Jose I, livro 28, fl. 109. Data: 20 de março de 1775.

Carta. Apontador da Ribeira. Cota: Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv.22, fl. 112.

Data: 26 de outubro de 1787.

Carta de Propriedade de Ofício. Escrivão (Gaspar Pessoa Tavares). Cota: Registro Geral

de Mercês de D. Maria I, livro 4, fl. 271. Data: 08 de agosto 1788.

Carta. Ofício de Escrivão do Cívil da Cidade (Gaspar Pessoa Tavares). Cota: Registro

Geral de Mercês de D. Maria I, livro 4(2), fl. 259. Data: 08 de agosto 1788.

Alvará para poder Vincular em Morgado um Padrão de Foro Real (Gaspar Pessoa

Tavares). Cota: Registro Geral de Mercês de D. Maria I, livro 25, fl. 343. Data: 9 de

novembro de 1790.

Arquivo do Ministério do Reino, Decretos, Mç 46, nº132. Decreto que concede a

instituição do morgado dos bens de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Data: 1790.

Autos de justificação de nobreza de Gaspar Pessoa Tavares e Amorim. Cota: Feitos

Findos, Justificações de Nobreza, mç. 12, n.º 7. Data: 1792.

Arquivo do Ministério do Reino, Mç 341. Decreto acerca do morgado de Gaspar Pessoa

Tavares de Amorim pedindo a mercê régia. Data: 1796.

Autos de justificação de nobreza de José Pessoa Tavares de Amorim- Cota: Feitos Findos,

Justificações de Nobreza, mç. 21, n.º 43. Data: 1796.

Alvará de Foro de Fidalgo Cavaleiro de Gaspar Pessoa Tavares. Cota: Registro Geral de

Mercês de D. Maria I, livro 28, fl. 292v e 293. Data: 05 de junho de 1797.

Foro de Fidalgo Cavaleiro (Gaspar Pessoa de Amorim – filho de Gaspar Pessoa Tavares).

Cota: Registro Geral de Mercês de D. Maria I, livro18, fl. 361v e 362. Data: 06 de julho

de 1797.

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Autos de justificação de nobreza de Leonor Violante Rosa Pessoa – Cota: Feitos Findos,

Justificações de Nobreza, mç. 23, n.º 9. Data: 1799.

Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1596, nº33.

Requerimento de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim pedindo a mercê régia. Data: 1806.

Registro Geral de Mercês - Registro de Certidões, livro 1. Data: 1812.

Arquivo do Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç 1497, nº8.

Requerimento de António Lobo da Gama Saraiva de Almada, pedindo o suprimento do

consentimento materno, para casar com D. Maria Henriqueta Francisca Pessoa Amorim.

Data: 1815.

Carta. Barão da Vargem da Ordem. Filiação: Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Cota:

Registo Geral de Mercês, D.Maria II, liv.11, fl.187-188. Data: 1840.

Fundo: Mesa de Consciência e Ordens (MCO):

Habilitação de Gaspar Pessoa Tavares – Cota: Mesa da Consciência e Ordens,

Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra G, mç. 5, doc. 9. Data: 1775.

Arquivo Histórico Militar (AHM)

Correspondência de Gaspar Pessoa Tavares para o Visconde de Anadia, secretário de

estado dos negócios da guerra, apresentando despesas efectuadas com as pontes de Vila

Velha e Abrantes. Código de referência: PT/AHM/DIV/1/13/19/24. Datas: 1804, março,

13.

Correspondência de Gaspar pessoa Tavares de amorim, encarregado das pontes de

Abrantes e Punhete, para D. Miguel pereira Forjaz, ministro e secretário de estado dos

negócios da guerra, sobre embarcações e pontes. Código de referência:

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146

PT/AHM/DIV/1/14/169/094. Datas:1808, Setembro, 19 - Abrantes - 1809, Abril, 7 –

Lisboa.

Relação da conta dos cobertores e mantas que o príncipe regente mandou comprar a

Gaspar Pessoa Tavares para fornecimento do exército auxiliar britânico. Código de

referência: PT/AHM/DIV/1/14/006/29. Datas: S.d. [ca. 1808]

Arquivo Distrital de Braga (ADB)

Carta de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Cota: B-5(17, 1). Data: 14/03/1817.

Carta de Gaspar Pessoa Tavares de Amorim. Cota: B-5(17, 2). Data: 21/03/1817.

1.2. Fontes impressas digitalizadas

BAENA, Augusto Romano Sanches de; SOUSA, Farinha de Almeida Portugal da Silva e.

Archivo heraldico-genealogico contendo noticias historicoheraldicas.

Lisboa: Typographia universal de T.Q. Antunes, 1872. Disponível em:

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