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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito OS PARADIGMAS NO DIREITO E SUAS ANOMALIAS: hermenêutica dialética e o justo atual segundo uma consciência paradigmática Danilo Ribeiro Peixoto Belo Horizonte - MG 2019

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE DIREITO

    Programa de Pós-Graduação em Direito

    OS PARADIGMAS NO DIREITO E SUAS ANOMALIAS: hermenêutica dialética e o

    justo atual segundo uma consciência paradigmática

    Danilo Ribeiro Peixoto

    Belo Horizonte - MG

    2019

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE DIREITO

    Programa de Pós-Graduação em Direito

    OS PARADIGMAS NO DIREITO E SUAS ANOMALIAS: hermenêutica dialética e o justo

    atual segundo uma consciência paradigmática

    Tese de doutorado apresentada à banca examinadora como

    exigência para a obtenção do título de doutor em Direito

    junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de

    Direito da Universidade Federal de Minas Gerais pelo

    doutorando e bolsista pela CAPES Danilo Ribeiro Peixoto,

    sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho

    Salgado, no interior da linha de pesquisa “Estado, Razão e

    História” e do projeto estruturante “Justiça: teoria e

    realidade”.

    Belo Horizonte - MG

    2019

  • 3

    Peixoto, Danilo Ribeiro P379p Os paradigmas no direito e suas anomalias: hermenêutica dialética e o

    justo atual segundo uma consciência paradigmática / Danilo Ribeiro

    Peixoto. – 2019.

    Orientador: Ricardo Henrique Carvalho Salgado.

    Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,

    Faculdade de Direito. 1. Direito - Filosofia – Teses 2. Justiça – Teses 3. Dialética – Teses

    4. Hermenêutica (Direito) – Teses I.Título

    CDU 340.12

    Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.

  • 4

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE DIREITO

    Programa de Pós-Graduação em Direito

    A presente tese de doutoramento, intitulada “Os paradigmas no Direito e suas

    anomalias: hermenêutica dialética e o justo atual segundo uma consciência paradigmática”, de

    autoria de Danilo Ribeiro Peixoto, sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho

    Salgado, foi considerada _____________________________ pela banca examinadora,

    composta pelos seguintes membros:

    ______________________________________________________

    Professor Doutor Ricardo Henrique Carvalho Salgado

    Orientador

    ______________________________________________________

    Professora Doutora Karine Salgado

    ______________________________________________________

    Professor Doutor Paulo César Pinto de Oliveira

    ______________________________________________________

    Professor Doutor Renato César Cardoso

    ______________________________________________________

    Professor Doutor Roberto Vasconcelos Novaes

    ______________________________________________________

    Professor Doutor Gustavo Felipe Melo da Silva (suplente)

    Belo Horizonte, ___ de __________________ de 2018.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A formação acadêmica é influenciada pelo convívio com inúmeras pessoas diferentes, entre

    familiares, professores, amigos, colegas, funcionários da faculdade e tantos conhecidos.

    Primeiramente, faço um agradecimento geral a todos aqueles com quem convivi durante todos

    esses anos de faculdade, que de alguma maneira participaram em maior ou menor grau de

    minha formação como profissional e como pessoa. Peço desculpas caso eu tenha deixado de

    mencionar nominalmente alguém nesta singela e apenas representativa página.

    Primeiramente, agradeço aos meus pais e aos meus avós por todo o suporte oferecido durante

    esta trajetória, sem os quais nada teria sido possível. Agradeço aos meus pais por terem

    bancado minha educação e oferecido toda a estrutura para que eu tivesse a oportunidade de

    acesso a instituições educacionais de qualidade. Agradeço também aos meus tios, com

    lembrança especial dos tios Marco Aurélio e Marco Túlio, que tiveram importância especial

    em momentos decisivos de minha trajetória; bem como aos primos e demais familiares.

    Agradecimentos especiais aos mestres, pelo ensino, pelos debates e por todos os aprendizados

    durante a formação profissional. Em primeiro lugar, agradeço ao caro professor e amigo

    Ricardo Salgado, orientador desde o mestrado, por todo o convívio, pela orientação, pelos

    ensinamentos, incentivos e pela paciência durante todos esses anos. Ao prof. Marcelo Cattoni,

    meu primeiro orientador à época da graduação, por influência importante nos estudos

    acadêmicos, contemplados até mesmo nesta tese de doutorado. Agradeço também em especial

    aos professores Renato Cardoso, Paulo César Oliveira, Joaquim Salgado, José Luiz Horta,

    Bruno Wanderley, Felipe Martins, Mônica Sette, Bernardo Gonçalves, Thomas Bustamante,

    Miracy Gustin, Márcio Luís, por influência importante na formação acadêmica. Também a

    todos os antigos parceiros, amigos e colegas da Pós e da linha, como Daniel e Dr. Robô.

    Aos amigos, gostaria de poder compartilhar mais espaço, mas de todo modo tenho todos em

    consideração e lhes agradeço pela amizade e por toda a convivência. Agradeço em especial ao

    Diego, por auxílio importante à época da tese e pelos debates; à Adriana, pelos auxílios,

    debates, incentivos; à Paula, por toda a amizade e parceria desde o vestibular; à Joanna, Pablo,

    Chris, Igor, Santos, Ana Luísa, Franklin e Aline, por toda a parceria e influência decisiva ao

    ingresso na pós; Gerson, Lucas e Paulo, grandes parceiros em estudos durante a graduação;

    também a outros grandes amigos de faculdade, como Pitchon, Luísa, Iano, Emmanuel,

    Isabella, Adriana, Carol, Guilherme, Cristiane, Fernanda, Marcela, André, Claudinha...

    Agradeço também especialmente à DAJ e a todos aqueles com quem convivi, desde os mais

    próximos amigos até os inúmeros colegas nestes anos todos, lembrando também dos

    professores e servidores. Fica uma lembrança especial ao prof. Paulo Edson, que influenciou

    decisivamente toda a minha trajetória no dia em que o conheci, à Euza e ao prof. Humberto

    Barbi, com quem muito aprendi e muito contribuiu em minha formação profissional na

    elaboração de peças judicias e na prática jurídica. Agradeço também a todos os membros do

    grupo de segunda, com quem tanto compartilhei: Christine, Ana Cláudia, Ana Luiza, Aline,

    Alexandre, Lucas, Caroline, Luiza, Isadora, Flávio, Caio e Janaína.

    Agradeço especialmente ao Wellerson e também a todos os membros da secretaria da pós-

    graduação, como Ana Paula, Priscila, Saul, Cinthia, Sara, pelo importante trabalho e por todo

    o auxílio prestado perante a Pós-graduação.

    Por fim, sincero agradecimento institucional à UFMG, à Faculdade de Direito, à Pós-

    Graduação e à CAPES por toda a minha formação universitária no âmbito do ensino, pesquisa

    e extensão, bem como pelo financiamento por meio de bolsas extensão, mestrado e doutorado.

  • 6

    RESUMO

    Procurar sentidos contemporâneos ao justo implica enxergá-lo como um problema dado

    internamente à história por uma racionalidade condicionada, consciente de sua precariedade, e

    que forma os seus juízos a partir das compreensões possibilitadas e limitadas por um

    horizonte histórico de sentido. A concepção de justo forma-se pela experiência e retrata uma

    vontade que nega a própria experiência vivenciada pela consciência. Apesar da comum

    pretensão de objetividade para os significados do mundo, o subjetivo é sempre inerente à

    constituição de sentido, sobretudo no âmbito da razão prática.

    Em um contexto no qual a Constituição compõe o cerne dos sistemas jurídicos e o Direto

    Constitucional ocupa o centro dos debates hodiernos; é relevante contemporaneamente no

    Direito reconhecer a existência de uma racionalidade paradigmática; tendo esta influência nas

    significações jurídicas atuais. A ideia de paradigma é compreendida no Direito a partir de

    acepções distintas àquelas às da Filosofia da Ciência e em contextos que não remontam à

    teoria original de Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas, no entanto é

    possível retratar analogicamente algumas noções presentes na teoria kuhniana dos paradigmas.

    Entende-se necessário resgatar ao Direito o conceito de anomalia, inspirado em Kuhn, mas

    que viria a compreender significações específicas no âmbito jurídico.

    A partir de uma perspectiva hermenêutica e dialética, entende-se que o paradigma deve

    reconhecer a precedência de um horizonte histórico de sentido que coloca as possibilidades da

    compreensão, além de uma tradição ético-jurídica; bem como deve ser visto também a partir

    das suas negações. O conceito de anomalia pode oferecer noções específicas de um negativo

    paradigmático e permite também enxergar a possibilidade de se aprimorar o paradigma a

    partir da contradição.

    Dessa forma, entende-se que a ideia de paradigma no Direito deve vir associada a outro

    conceito que retrata as suas insuficiências e as suas negações: a anomalia propriamente

    jurídica. A reconstrução de um paradigma jurídico e a consciência de suas anomalias são

    capazes de retratar um caminho atual para os sentidos do justo, bem como direcionar

    qualitativamente a aplicação do Direito no rumo de sua efetivação. Enxergando a questão

    dialeticamente, a identificação de anomalias jurídicas e em momento posterior a sua negação

    efetiva é capaz de retratar um caminho possível à efetivação do justo atual. Representaria

    também uma maior concretização da vontade segundo sua manifestação contemporânea, o

    que faz resultar ainda em uma transformação positiva do próprio paradigma.

    Palavras-chave: Justiça; vontade; experiência; dialética; contradição; negação; hermenêutica;

    horizonte; paradigma; anomalia; justo atual.

  • 7

    ABSTRACT

    A view that seeks contemporary meanings of Justice implies seeing it as a matter given

    internally to History from a conditioned rationality that is conscious of its own precariousness.

    Their judgements are formed from an understanding activity that is simultaneously made

    possible and limited by a historical horizon. A conception of Justice is formed through

    experience and depicts a Will that negates experience itself, as experimented by

    Consciousness. Despite the common pretension to see reality as only objectivity, subjectivity

    Is always inherent to constitution of meanings, especially in practical reasons’ sphere.

    Law is seen today in a context which the Constitution and Constitutional Law integrate the

    core of juridical systems and juridical debates. It is relevant nowadays a perspective that sees

    Law from a paradigmactical rationality, which has influence to actual juridical meanings. The

    concept of paradigm is treated rather differently in Law Theory and Philosophy of Law

    comparatively to its original context, in Thomas Kuhn’s The Structure of Scientific

    Revolutions; although it is possible to understand some of its original concepts as analogies.

    One of these concepts is the anomaly, which could be seen in Law as inspired by Kuhn’s

    theory, but would need to acquire specific juridical treatment.

    From a hermeneutical and dialectical perspective, it is understood that the idea of paradigm in

    Law must recognize the precedence of a historical horizon, that allow the possibilities of

    understanding, and it also needs a fundament in an ethical-juridical tradition. Furthermore,

    paradigm must be seen in parallel with its insufficiencies and specific negations. The concept

    of anomaly in Law contemplates specific notions of a paradigmatic negation, also permitting

    possibilities of paradigm enhancement through negation.

    A paradigmatic reconstruction based in Law as a specific juridical order, associated with the

    awareness of its anomalies is capable to retrieve a path to conceive actual meanings of Justice.

    This way, it could also qualitatively affect judicial application and contribute to Justice

    effectiveness. The awareness of anomalies, then, is seen as a requisite to paradigm

    improvement and a viable requisite to actual Justice effectiveness from a paradigmatic

    perspective. It could also represent a first step towards a better materialization of the actual

    Will that Law manifests in the present.

    Keywords: Justice; Will; experience; Dialectics; contradiction; negation; Hermeneutics;

    historical horizon; paradigm; anomaly.

  • 8

    SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10

    2. KANT, RAZÃO E EXPERIÊNCIA ................................................................................. 17

    2.1. Considerações preliminares ........................................................................................... 17

    2.2. O ser humano enquanto pertencente ao mundo sensível e ao mundo inteligível; a

    necessidade de depuração da experiência para os princípios do agir ................................... 21

    2.3. Kant e o problema da experiência na Crítica da Razão Pura; a experiência como

    condição do conhecimento; a possibilidade de um conhecimento independente da

    experiência; dialética, ideia e o uso normativo da razão ...................................................... 25

    2.4. A razão prática, a vontade, a liberdade e o uso normativo da razão às ações humanas 33

    2.4.1. A determinação da vontade pela razão; a razão pura e a razão empiricamente

    condicionada; vontade e capacidade de escolha; leis da vontade ..................................... 33

    2.4.2. Os objetos da razão prática; o bem e o mal; ............................................................ 38

    2.4.3. Os princípios da razão pura prática, universalidade e a rejeição da experiência

    como fundamento do agir; o afastamento da matéria e a busca pela forma; .................... 44

    2.5. A autonomia da vontade e a razão (auto)legisladora; imperativo categórico; a

    moralidade – Sittlichkeit - como fundamento do agir em Kant ............................................ 49

    2.6. Conclusão parcial do capítulo ........................................................................................ 65

    3. A DIALÉTICA EM HEGEL............................................................................................. 67

    3.1. Considerações gerais sobre a dialética na filosofia........................................................ 67

    3.2. Hegel e o pensar como objeto do próprio pensar .......................................................... 72

    3.3. A ideia e a lógica dialética ............................................................................................. 77

    3.4. Breves considerações sobre a experiência da consciência ............................................. 89

    4. GADAMER. HERMENÊUTICA, HISTORICIDADE E EXPERIÊNCIA...................... 95

    4.1. Traços gerais da problemática enfrentada por Gadamer na Hermenêutica Filosófica .. 95

    4.2. Dialética na Hermenêutica de Gadamer ...................................................................... 106

    4.3. Gadamer x Habermas ................................................................................................... 112

    5. PARADIGMAS DA CIÊNCIA E ANOMALIAS – KUHN E A ESTRUTURA DAS

    REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS ............................................................................................ 115

    5.1. Considerações preliminares ......................................................................................... 115

    5.2. Thomas Kuhn e a Estrutura das Revoluções Científicas ............................................. 117

    5.2.1 A importância da história ....................................................................................... 117

    5.2.2. A comunidade científica, a ciência normal, a tradição e os paradigmas ............... 119

    5.2.3. As anomalias e as crises ........................................................................................ 131

    5.2.4. A pesquisa extraordinária e a revolução paradigmática ........................................ 139

    5.2.5. Ciência e Progresso ............................................................................................... 151

    5.3. Anomalia e falseabilidade ............................................................................................ 153

    6. A IDEIA DE PARADIGMA NO DIREITO E TRAÇOS DE UMA CONSCIÊNCIA

    PARADIGMÁTICA ............................................................................................................... 159

  • 9

    6.1. Considerações preliminares: ........................................................................................ 159

    6.2. Paradigmas no Direito ................................................................................................. 160

    6.3. Friedrich Müller, superação do paradigma positivista e teoria estruturante do Direito

    ............................................................................................................................................ 168

    6.4. Ronald Dworkin, o Direito como conceito interpretativo, paradigmas e integridade . 182

    6.5. Dworkin e o Estado Democrático de Direito como paradigma ................................... 191

    6.6. O uso aplicado da ideia de paradigma na práxis jurídica brasileira ............................. 196

    6.7. Conclusão parcial do capítulo: síntese sobre as principais concepções de paradigma no

    Direito e a necessidade de se contemplar a contradição ..................................................... 202

    7. CRÍTICA DA CONSCIÊNCIA PARADIGMÁTICA. HORIZONTE, PARADIGMA E

    ANOMALIA NO DIREITO ................................................................................................... 204

    7.1. Considerações preliminares –o justo como concepção dialética intra-histórica .......... 204

    7.2. Paradigma na ciência, críticas e limitações filosóficas. Dualidade e contradição.

    Dialeticidade possível. ........................................................................................................ 209

    7.3. Distinções da ideia de paradigma no Direito relativamente ao paradigma na ciência. 215

    7.4. A Experiência e a consciência paradigmática no Direito. Horizonte, paradigma e Razão

    prática .................................................................................................................................. 221

    7.5. Elementos de dogmática jurídica. Pressupostos de completude, coerência e integração

    do sistema. Lógica de não-contradição. Norma, paradigma, expectativas de comportamento

    e operação ........................................................................................................................... 234

    7.6. A anomalia e outras analogias à teoria da ciência de Kuhn. O paradigma jurídico

    enquanto alicerce da dogmática jurídica. ............................................................................ 237

    7.7. Anomalias, paradoxos e contradições no Direito. A coerência como fim. O negativo e o

    justo atual. ........................................................................................................................... 240

    7.8. O caminho do negativo a partir da racionalidade paradigmática. A anomalia jurídica.

    Paradigma jurídico, anomalia jurídica, vontade e justo atual ............................................. 245

    7.9. A reconstrução do paradigma jurídico e sua articulação. A consciência da anomalia

    jurídica, a revisão de pré-conceitos e o justo atual. ............................................................ 249

    7.10. Anomalias jurídicas e Estado Democrático de Direito .............................................. 256

    7.11. Exemplos de anomalias jurídicas ............................................................................... 259

    7.12. Conclusão do capítulo - Direito, sistematicidade e paradoxos. Horizonte jurídico, a

    anomalia jurídica e o justo atual ......................................................................................... 263

    8. CONCLUSÃO ................................................................................................................ 270

    9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 273

  • 10

    1. INTRODUÇÃO

    Múltiplas as sociedades humanas no decorrer da história, igualmente múltiplos os

    sistemas normativos que as disciplinam. A cada coletividade humana corresponde um sistema

    normativo a ela particular, adaptado às suas características próprias, as quais se manifestam

    historicamente. Para todos os efeitos, é uma conclusão pacífica que a sociedade humana

    necessariamente demanda um conjunto de normas que sejam aptas a regular o convívio social.

    A justiça desponta no entendimento humano como um dos valores e ideais da mais

    alta estirpe. Aristóteles, por exemplo, a considera como a mais elevada das virtudes. Embora a

    justiça esteja sempre alçada aos mais elevados patamares a que se deve almejar, a conclusão

    sobre aquilo o que efetivamente é justo, no entanto, é fundamentalmente histórica.

    Nesse intrínseco vínculo do justo com o histórico, aquilo o que é justo assume uma

    feição de contraponto desejável a um injusto claramente manifesto na realidade ou na

    potência de se realizar externamente. Além desse contraponto ao negativo que se busca

    transformar, pode-se dizer que também se liga à noção de justo a garantia que deseja a

    vontade soberana que o instaura de se fazer concretizar na realidade aquilo o que ela

    considera mais importante.

    De todo modo, mesmo em uma noção ordinária de justo como essa descrita, a noção

    de justiça revela repetidamente na história, com relativa transparência, três elementos centrais:

    o caráter de um ideal que deve ou deveria se concretizar na realidade, seja afirmado por ele

    próprio, seja por negação a um elemento visto como negativo que se procura equanimizar;

    uma vontade humana apta a traçar os caminhos por onde esse ideal de justiça deve percorrer;

    e o elemento histórico, porquanto o conteúdo do justo se determina no tempo e no espaço em

    dado contexto.

    Percebe-se na ideia do justo uma necessária tensão entre um real e um ideal. A noção

    de justiça parece sempre aparecer como um ideal que guia a confecção de um real mais

    aprimorado. Uma vez que esse real foi construído a partir de uma racionalidade erigida pelo

    pensamento, pode-se dizer que a ideia de justiça é elemento nobre de modificação da

    realidade. O real se tornou (mais) racional nesse movimento em que o pensamento se põe

  • 11

    sobre a realidade. Real e ideal, aqui, aparecem reconciliados. Reconciliação que será seguida

    de novas cisões e novas reconciliações, identificadas ambas pela própria razão humana.

    A ideia de Justiça, com efeito, não é meramente abstrata. Aparece como abstrata em

    um primeiro momento, mas se torna concreta em um momento posterior. Ordinariamente, a

    Justiça é vista e compreendida apenas a partir dessa primeira perspectiva, de modo que

    aparece como um ideal imaginado, desejado e distante em oposição a um real palpável e tido

    como injusto. Nesse sentido, o qualificativo “justo” é atribuído como qualidade de algo que

    corresponde a esse ideal abstrato e “injusto” o contrário.

    Essa noção de justiça abstrata é pertinente a um raciocínio simplista e também apenas

    ao plano do entendimento. Entende-se que a Justiça não termina apenas nesse primeiro

    momento abstrato, mas se desenvolve em momentos dialéticos. Dessa forma, a noção abstrata

    do justo é negada pelo injusto concreto, provocando da vontade efetiva um posicionamento

    ulterior. Acontecendo este, o injusto é negado a partir dessa noção primeira de justo, tornando

    este, antes ideal, em justo concreto; uma realidade (Wirklichkeit) transformada a partir da

    produção de efeitos concretos pela razão.

    Defende-se, assim, um conceito de Justiça que não assume a identidade de um mero

    ideal, mas que, ao contrário, tem a aptidão de modificar a realidade, concretizando-se e

    gerando efeitos a partir de sua racionalidade. O instrumento racional por excelência voltado à

    modificação da realidade para ditá-la aos conformes da Razão, no entendimento aqui

    esposado, é o próprio Direito. Nesse sentido, retomando parcialmente o conceito de justo do

    direito romano, o justo seria dar a cada um o que é devido conforme o direito. Na condição de

    qualificativo, a justo permanece numa acepção abstrata, embora vincule diretamente a justiça

    ao jurídico.

    Mais do que um movimento de transformação de uma realidade particular, Salgado

    nos ensina que o justo se reporta a um elemento ético do próprio Espírito que se movimenta e

    se expressa na História. Nesse sentido, a Justiça se expressa como o próprio Direito posto

    pelo homem em sua manifestação histórica, de modo que em sua processualidade histórica é

    movimento do posto como dever ser e ser por ele negado, movimento do justo e do injusto1.

    1 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.

    10 e 12.

  • 12

    Recobrando o início desse raciocínio, a ideia de justiça desponta ordinariamente no

    pensamento jurídico numa noção abstrata. Assume a feição de mero ideal a ser alcançado, na

    forma de um valor que deve orientar a atuação do jurista no exercício de suas atividades. No

    caso do ofício judicante, tais considerações ganham ainda mais relevância, porquanto se

    enxerga na decisão judicial um protagonismo na consecução do justo. Caso a decisão

    terminativa do conflito tenha obedecido a determinados parâmetros cuja observância se

    consideram necessários a uma decisão justa, destacando-se principalmente a “correta”

    aplicação da lei, considera-se que foi exercida a justiça no caso concreto.

    No entanto, a realidade apresenta elementos complicadores que tensionam

    sobremaneira tal cenário abstrato. Tendo a perspectiva do juiz como exemplo, destaquem-se

    dois. Em primeiro lugar, a decisão judicial é exercida a partir de uma atividade interpretativa

    por parte do magistrado – um ser humano, ser histórico localizado no espaço e no tempo, ente

    racional e também emocional provido de uma moralidade própria, valores próprios,

    entendimentos próprios e sujeito a erros. Segundo, o magistrado não possui acesso à verdade

    real dos fatos, mas apenas à reprodução daqueles trazidos e comprovados nos autos na fase de

    instrução processual; portanto, é capaz de decidir apenas a partir de uma verdade processual.

    Enfim, o juiz real não é juiz Hércules e o caso concreto não é uma metáfora2. Por mais

    que se considere existir uma aplicação “correta” da lei no caso concreto, múltiplas serão as

    decisões judiciais, porquanto múltiplas as legislações, múltiplos os juízes e múltiplos os casos,

    sobretudo nos sistemas jurídicos desenvolvidos na tradição do Civil Law. A coerência se

    apresenta apenas como um ideal; nalguns casos, como no brasileiro, talvez como uma ficção.

    A lei em grande parte dos casos se torna até mesmo um mero argumento para fundamentação

    de decisões judiciais já pré-julgadas por parte do magistrado a partir de convicções políticas e

    morais próprias. Tais convicções atuam na formação de uma noção particular de justiça que

    muitas vezes não dialoga com os sentidos de justo cultivados pela sociedade em que se vê

    inserido. Sem embargo de todas essas apreciações, a própria lei delega à decisão judicial o

    caráter de prevalência, ainda que possa supostamente se revelar em contrariedade com um

    sentido de justiça mais coerente com aquele preconizado por uma dada comunidade jurídica.

    2 Referência indireta a DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São

    Paulo: Martins Fontes, 2007.

  • 13

    Na perspectiva de uma consciência individual situada historicamente que deseja a

    realização do Justo na sociedade em que vive, pode ser um tanto perturbadora a falta de

    universalização de uma única fórmula para a Justiça. Não é outra a realidade senão a

    multiplicidade de entendimentos acerca do justo e a incerteza sobre quais desses

    entendimentos deveria servir como base para as soluções judiciais. A pluralidade de situações

    fáticas e normativas que se lhe apresentam defronte possibilita a existência de atos normativos

    e decisões judiciais contraditórios entre si, soluções jurídicas distintas para hipóteses fáticas

    semelhantes, falta de segurança jurídica e possível fragilidade das instituições em dado

    sistema jurídico.

    Enfim, a solução jurídica efetivada em observância aos procedimentos impostos pela

    lei para que tivesse a condição de se transformar em solução justa é capaz de gerar injustiças

    em concreto e também em abstrato. Em verdade, o próprio ordenamento jurídico contém

    disposições que negam umas às outras, muitas vezes envolvendo as próprias instituições do

    Estado, e nem sempre os critérios para as soluções de antinomias são capazes de oferecer uma

    saída justa, adequada e legítima. Em suma, o próprio “justo” é capaz de gerar o injusto.

    Na perspectiva da Razão que se movimenta na história, mais especificamente em

    relação aos desdobramentos do Espírito quanto à ideia de justiça em sentido hegeliano, é

    possível identificar o caráter de síntese do Direito numa totalidade que reconcilia o justo e o

    injusto em movimento dialético; de modo que o injusto se apresenta como momento de uma

    posterior reconciliação em que se vê suprassumido no justo como conceito.

    Ao contrário dessa perspectiva lógico-dialética em sentido macro, que retrata o Direito

    como efetividade no curso da História; a perspectiva da consciência individual do operador do

    Direito, ente interpretativo situado em um dado contexto histórico espaço-temporal, é

    suscetível à angústia de efetivar a justiça no caso concreto, apesar das contradições que se lhe

    apresentam estáticas e da multiplicidade de soluções, correndo o risco de negar o justo e

    efetivar o injusto na situação em que o Direito lhe incumbe realizar a justiça.

    Nessa sequência de raciocínio, como compreender, num contexto histórico temporal e

    espacialmente localizado, o justo que efetiva o injusto? Em face de tantas negações ao que se

    concebe como justiça, como essa consciência interpretativa historicamente situada é capaz de

    significar o justo e encontrar os parâmetros corretos para a sua realização?

  • 14

    Nessa inquirição sobre os “parâmetros corretos”, deduz-se logicamente que a

    caracterização de tais parâmetros se faz com base em determinados referenciais normativos. A

    óbvia conclusão seria a de que esse referencial seria dado pela Lei; contudo, a problemática

    aqui apresentada coloca em cheque a própria Lei como critério para realização da Justiça,

    porquanto múltiplos os entendimentos aptos a aplicá-la e numerosas as situações em que a

    legislação produz anacronismos dentro do próprio ordenamento jurídico, de sorte que a

    suposta fonte para a elaboração de soluções “justas” e conformes ao Direito pode também

    instaurar injustiças. Por outro lado, verifica-se que o Direito não se resume somente à lei, que

    isoladamente não retrata o fenômeno jurídico em sua completude. A norma jurídica posta sob

    a forma da Lei é como a ponta do iceberg da normatividade, que parece se ver sustentada em

    uma estrutura que lhe é anterior e que lhe fornece fundamento e legitimidade. Portanto,

    demanda-se aqui a noção de uma estrutura racional abstrata que preceda a lei e lhe estabeleça

    substrato quanto às noções do justo em dado contexto histórico.

    Em um primeiro momento, encontrou-se na ideia de paradigma uma referência e uma

    hipótese racional para a solução desse problema. Na verdade, entende-se que o pensamento

    jurídico atual intuiu a ideia de paradigma como substrato de critérios para a produção de

    soluções normativas e fáticas “corretas” no Direito em dada conjuntura normativa. Nesse

    sentido, entende-se que os critérios para tais soluções “corretas”, seriam critérios para

    soluções “justas” nesse mesmo contexto. No entanto, o uso comum do termo não parece

    retratar uma plena consciência disso.

    Vê-se em geral a palavra paradigma utilizada de forma aparentemente intuitiva e com

    poucas apreciações de ordem técnica em trabalhos acadêmicos ou em peças jurídicas. Com

    uma maior apreciação técnica, mas num sentido distinto daquele em que aparece

    originalmente em Kuhn, seu uso é visto com maior frequência em estudos de Direito

    Constitucional, Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional; com inspiração

    sobretudo em Habermas, que retomou o conceito de paradigma da Filosofia da Ciência e

    procurou contextualizá-lo no âmbito social e jurídico, ampliando-o e contemplando nova

    perspectiva3.

    3 HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler.

    Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

  • 15

    Muito embora o paradigma enquanto conceito da Filosofia da Ciência aparente ser

    pouco apreciável às ciências sociais aplicadas, a ideia de paradigma é correntemente utilizada

    no Direito e parece capaz, até certa medida, de congregar noções jurídicas e hermenêuticas

    complexas para o fenômeno jurídico. Contudo, a “transposição” desse conceito nem sempre

    retrata exatamente a ideia que o uso do termo paradigma reproduz nos estudos relacionados

    ao Direito, apontando-se para um uso distinto.

    Talvez o paradigma em um sentido mais próximo ao do científico possa identificar as

    metodologias “aceitáveis” para a produção do conhecimento jurídico na Ciência do Direito,

    ou os parâmetros para determinada produção teórica ser reconhecida pela comunidade

    científica do Direito; no entanto, a noção de “paradigma jurídico” retrata um conceito

    específico o qual admite a normatividade jurídica em seu seio. Em um primeiro momento,

    desdobra-se naturalmente uma hipótese simplificada de que o conceito de paradigma, nesse

    sentido intuído, mas tecnicamente conceituado no Direito, seria capaz de retratar os critérios

    “corretos”, ou melhor, “justos”, para a produção de soluções jurídicas em dado contexto

    societário. Nesse sentido, as soluções conformes ao paradigma seriam “justas” e aquelas que

    contrariam seus critérios “injustas”, e anômalas ao paradigma. Com efeito, o paradigmático

    seria correspondente ao justo. Essa hipótese não se corroborou suficientemente ao longo do

    desenvolvimento do trabalho.

    A pesquisa reportada neste relatório procurou testar dita hipótese em vertente teórico-

    filosófica. A primeira metodologia confeccionada, correspondente à tentativa de se

    fundamentar tecnicamente o conceito de paradigma jurídico a partir do estudo confrontante

    entre a concepção de paradigma na Filosofia da Ciência e a Teoria do Direito se revelou,

    contudo, inadequada. Mostrou-se assaz analítica e imprópria para retratar a inerente

    historicidade do justo e os seus movimentos dialéticos no curso de sua processualidade

    histórica. Mais do que isso, revelou a ausência de um adequado tratamento hermenêutico ao

    estudo de tais conceitos. Ainda assim, apesar dos ditos problemas, o termo paradigma ainda

    conseguia invocar racionalmente no direito, de modo no mínimo intuitivo, a ideia da

    existência de parâmetros fundamentais, abstratos e nem sempre claramente identificáveis,

    anteriores às normas postas, que viriam a direcionar os padrões de aceitabilidade e o modo

    como são produzidos os conhecimentos e as soluções jurídicas nessa mesma sociedade em

    que se situa, considerada a dimensão jurídica enquanto dimensão especializada do

    conhecimento.

  • 16

    No entanto, a análise e o desenvolvimento do tema sob a forma de um caminho da

    experiência evocando caminhos de uma dialética compreensiva na finitude se tornou

    oportunamente capaz de suprir tais demandas conceituais, ao recolocar a hipótese aventada

    em bases distintas e corroborá-la. Ao invés de se reconhecer o conceito de paradigma como

    adequado para fornecer os critérios do justo e avalizar a viabilidade de transposição do

    conceito de paradigma da Filosofia da Ciência com as adaptações necessárias ao Direito, o

    pressuposto foi de ordem inversa: A racionalidade pertinente ao Direito e à Justiça, no seu

    devir, ou melhor, em sua processualidade histórica, é que veio a se enxergar de modo

    paradigmático. A partir disso, se faz necessária a sua crítica.

    A segunda tentativa empreendida, com o fim de retratar esse substrato do justo que

    precede a lei e que sofre cambiações ao longo da história em cada contexto societário,

    recobrou no horizonte histórico de sentido, nos rumos de uma hermenêutica ontológica, um

    ponto fulcral para a fundamentação do paradigma; não em uma perspectiva analítica

    convergente à filosofia da ciência, mas materializado num conceito adaptado que contenha a

    historicidade em seu eixo. Por conseguinte, não se reconhece o paradigma como “conceito

    aplicável”, mas a própria Justiça é enxergada como paradigmática em um momento espaço-

    temporalmente identificável. O paradigma passa a ser visto analogicamente e constituinte de

    um conceito próprio e específico no Direito. Mais do que isso, o paradigma se resguarda em

    um horizonte histórico de sentido que fornece as condições de possibilidade para a

    compreensão racional dos objetos concebidos pelo paradigmático em seu âmbito.

    Dessa forma, o justo, histórico e hermeneuticamente situado, se vincula ao

    paradigmático e a identificação do paradigma jurídico a cuja tradição o intérprete-jurista é

    pertencente seria capaz de retratar os elementos para a efetivação do justo em dado contexto

    histórico-temporal. O paradigma se vê como capaz de retratar o justo atual por via

    hermenêutica, quando incorpora uma tradição ético-jurídica que lhe seria precedente. Dessa

    forma, fornece o substrato do jurídico e condiciona a fundamentação normativa do justo.

    Considerando que o “método” escolhido é um caminho ou um percurso, no sentido

    antigo da palavra; que esse caminho é dialético, mas que seu ponto de chegada não é

    especulativo; qual a melhor perspectiva para retratar o caminho do justo em suas negações e

    sua chegada num horizonte jurídico e que na contemporaneidade se enxerga em paradigmas?

    Entende-se que o conceito filosófico mais apropriado seja o da experiência, que guia o

    experimentar-se relativo à justiça em sua processualidade histórica e que, em suas cambiações

  • 17

    conceituais segundo os distintos referenciais teóricos a que remonta, retrata apropriadamente

    os momentos desse caminho. O caminho do justo, nesse sentido, é visto como um conjunto de

    experiências que se desenvolvem na História em sua finitude a partir de sucessivas negações

    dialéticas e pela mediação de significados históricos produzidos no processo de seu

    compreender.

    Elegeu-se Kant como ponto inicial da trajetória, considerando-se que é interlocutor

    necessário nas reflexões filosóficas relativas ao Direito e o principal interlocutor de Hegel, na

    tradição do idealismo alemão. Dessa forma, o capítulo 2 retrata Kant e seu trato sobre a

    experiência, com ênfase no âmbito da Razão Prática. O capítulo 3 retrata o pensamento

    hegeliano, destacando-se noções elementares da dialética. O capítulo 4 resgata brevemente a

    Hermenêutica Filosófica de Gadamer e a experiência situada no campo da compreensão. No

    capítulo 5, empreende-se um estudo do pensamento de Thomas Kuhn, procurando-se os

    sentidos originais da ideia de paradigma e resgatar o conceito de anomalia. No capítulo 6,

    procurou-se identificar a ideia de paradigma no Direito, segundo racionalidade presente no

    contexto teórico e no contexto do Direito aplicado. No capítulo 7, procurou-se delinear os

    traços de uma consciência paradigmática no Direito e sua crítica; procurando-se ainda

    desenvolver a ideia de anomalia jurídica como conceito que deve vir paralelamente ao de

    paradigma no Direito, devendo o paradigma ser enxergado juntamente a suas negações. E,

    por fim, sucede a conclusão do trabalho.

    2. KANT, RAZÃO E EXPERIÊNCIA

    2.1. Considerações preliminares

    Kant denomina como filosofia transcendental a sua “ciência fundamental filosófica”.

    Pode-se identificá-la como crítica, para diferenciá-la da filosofia transcendental medieval,

    conforme explica Höffe. Seu primeiro desenvolvimento se dá pela identificação da razão

    como faculdade de conhecimento, também chamada de razão teórica ou especulativa, distinta

    da razão prática, que pode ser associada à faculdade de desejar. Nesse sentido, a Crítica da

  • 18

    Razão Pura pode também ser designada como “crítica da razão especulativa pura”4. A razão

    humana demanda a própria crítica e, a partir desta, o “desenlace” de sua situação é feita pelo o

    que Kant designa como dialética5. Dialética, em Kant, assume um sentido específico em sua

    própria filosofia, conforme será apresentado em momento ulterior.

    Kant tem como primeiro grande objeto para conduzir as suas investigações a

    metafísica, que é vista em uma situação “precária”, porquanto ao mesmo tempo necessária e

    tida como impossível: há questões fundamentais que se impõem à razão humana e não podem

    ser rejeitadas, mas também não são passíveis de resposta. A razão almeja princípios gerais

    que sejam capazes de dar sentido, com coesão e estrutura racional, a tudo o que se observa e

    se experimenta. Por outro lado, enquanto a ciência busca a atribuição de sentido a partir de

    uma busca finita e que possui como esteio a experiência; a metafísica permanece em seu

    questionamento incessante e busca pelo incondicionado, procurando o fundamento da própria

    experiência para além da experiência. Sua busca se volta para além (meta) da física e da

    natureza6.

    Essa tentativa de se obter conhecimento para além da experiência conduz a razão à

    “escuridão” e a contradições. Esse transcender da experiência, ou o conhecimento puro da

    razão, impedem, para Kant, a metafísica de se constituir como um conhecer científico 7 .

    Reconhece a temática da metafísica na filosofia como um “campo primordial de disputas

    intermináveis”. Em primeiro lugar, opõe-se à metafísica racionalista, representada na época

    moderna, dentre outros autores, por Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz. A oposição

    kantiana se dirige primeiro a Wolff, cujo pensamento à época prevalecia nas universidades. A

    experiência é tratada por Wolff como fonte genuína de conhecimento; por outro lado,

    também admite a possibilidade de conhecer um objeto da realidade a partir da razão pura,

    pelo mero pensar. Kant acusa os racionalistas de “dogmáticos” e “despóticos”, porque tomam

    certas suposições básicas como pertinentes ao homem, como a imortalidade da alma, a

    existência de Deus e o “fato” de que o mundo possui um começo, contudo sem antes uma

    crítica prévia da razão8.

    4 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, Trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,

    2005, p. 33. 5 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 34. 6 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 34. 7 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35. 8 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35.

  • 19

    As controvérsias entre os dogmáticos fazem surgir uma situação de “anarquia”, da

    qual emergem os céticos, os quais negam sumariamente toda a metafísica e, nos dizeres de

    Kant, “minam os fundamentos de todo o conhecimento em uma ignorância artificial.”9. Em

    terceiro lugar, os empiristas, representados por Locke e Hume, que fundamentam todo o

    conhecimento em alguma experiência interna ou externa, negando como possível uma espécie

    de conhecimento extra-empírico10.

    Kant não adere a nenhum de tais posicionamentos e segue uma via própria. Nesta,

    estabelece-se um “tribunal” que examina imparcialmente as possibilidades de um

    conhecimento puro da razão. Dito exame demanda discernimento e justificação, ou “crítica”,

    no sentido original do termo. Por meio dessa crítica, a própria razão julga a si própria – numa

    autocrítica. Representa uma investigação sobre a possibilidade de um conhecimento puro da

    razão pela própria razão, uma vez que um conhecimento independente da experiência não

    pode ter o fundamento na experiência, segundo tais pressupostos11. Em sua (auto) crítica, a

    razão recusa tanto o empirismo quanto o racionalismo. Por um lado, o pensamento puro não é

    capaz de conhecer a realidade. Por outro, Kant reconhece que todo experimento começa pela

    experiência, mas não resulta dela e nem mesmo o conhecimento empírico é possível sem

    fontes independentes da experiência. Sendo assim, são possíveis ideias puras da razão, mas

    apenas como “princípios regulativos a serviço da experiência”12.

    Kant procura conduzir a filosofia ao caminho de uma ciência. A partir da crítica da

    metafísica, ela começa como teoria da filosofia, na forma de uma “filosofia científica

    autônoma”. Ela perquire sobre as possibilidades do próprio conhecimento e busca colocar a

    filosofia sobre um “fundamento seguro”13. Partindo deste e de uma teoria sistemática do

    conhecimento, Kant busca respostas aos problemas fundamentais do homem, representados

    em três interrogações primordiais: a) “que posso saber?”; “que devo fazer?”; e c) que me é

    permitido esperar?1415.

    Segundo Höffe, Kant, inserido no contexto do iluminismo europeu, se manteve

    equidistante de um iluminismo ingênuo e de uma atitude contra-iluminista, para a qual tudo o

    9 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 35-36 10 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 36. 11 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 38. 12 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit. p. 39. 13 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit., Introdução, p. XVIII- XXIV. 14 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit., Introdução, p. XXIV. 15 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.

    Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 651.

  • 20

    que há é bom e belo. Kant representa o apogeu do iluminismo, a sua transformação e a busca

    de uma “razão humana universal”. Essa mesma ideia, em Kant, resulta na crítica da filosofia

    dogmática e na descoberta do fundamento último da razão, cujo princípio derradeiro é a

    autonomia da vontade, a liberdade enquanto autolegislação16.

    Todo o pensamento kantiano, em todas as suas perspectivas e desde as origens de suas

    investigações até as suas conclusões, é permeado em seu cerne pela reflexão sobre a

    experiência. Por um lado, sobre a participação da experiência no conhecimento e sobre a

    possibilidade de um conhecimento puro, para além da experiência. Por outro, sobre a

    participação da experiência na vontade e no agir, bem como a possibilidade e o dever de se

    agir a partir de princípios que estejam além da experiência. Examina, ainda, a experiência

    estética e investiga as possibilidades de uma estética que tenha como fundamentos critérios de

    validade universal e independentes da experiência.

    Kant é o grande filósofo dos dualismos. Toda a sua filosofia pressupõe conceitos e

    categorizações dicotômicas, como sujeito e objeto, forma e conteúdo. Kant inaugurou o que

    se chama amiúde de “revolução copernicana na filosofia”, ao deslocar o problema da filosofia

    para o sujeito e para as próprias possibilidades de pensar e conhecer. No entanto, nos

    momentos em que seu pensamento ostenta viés normativo, toma uma nítida opção pela busca

    de uma objetividade na feição de uma universalização formal; a qual, para ser alcançada,

    requer a rejeição de tudo o quanto é subjetivo. Tal busca implica o afastamento daquela que

    tipicamente representa a relação subjetiva com o mundo: a experiência. A experiência está

    diretamente ligada ao material, à concessão de conteúdo para os significados. A

    universalidade, para Kant, não poderá ser encontrada na matéria, sendo necessário antes a

    abstração desta. A forma afastada do conteúdo emerge como capaz de se chegar nessa

    universalização plena. Há, portanto, um formalismo inequívoco que percorre todo o

    pensamento kantiano.

    O Direito se volta por excelência ao campo do agir. É o âmbito primordial em que se

    investiga a razão prática. Como um dos filósofos mais importantes na história do pensamento

    ocidental e um dos principais pensadores sobre o agir humano, naturalmente Kant é

    identificado como um dos grandes influenciadores do pensamento jurídico. Talvez consista

    até hoje no grande interlocutor indireto de todo o pensamento na Filosofia e na Teoria do

    16 HÖFFE, Otfried, Immanuel Kant, cit, Introdução, p. XXIV.

  • 21

    Direito contemporaneamente. Seja para reafirmar, seja para especializar qualquer de suas

    posições, seja para refutá-las, toma-se Kant como ponto de partida de alguma forma, direta ou

    indiretamente. O pensamento jurídico em grande parte retrata um excesso pelo formalismo e

    pela pretensão de um objetivismo formal. Não é diferente que, em nível metodológico, seja

    marcante a pretensão, assumida ou não, da procura pela pureza do fenômeno jurídico.

    Entende-se que é possível resgatar em grande parte as origens desse apanágio formalista no

    pensamento kantiano. Desse modo, reproblematizar algumas das premissas kantianas é

    pressuposto para repensar as estruturas do pensamento existente hoje.

    O grande objeto de investigação da Filosofia do Direito, em especial da Linha de

    Pesquisa em que este trabalho se encontra inserido17, é a Justiça. As teorias sobre o Direito de

    inspiração kantiana resguardam premissas excessivamente formais no trato com o problema

    do justo. Entende-se que um dos cernes de tais premissas da investigação kantiana sobre o

    agir se encontram no modo de abordar a questão da experiência. Ela se denota mais

    especificamente quando Kant, ao investigar o objeto, o conteúdo do agir moral, conclui

    resolutamente pela rejeição da experiência naqueles que devem ser os fundamentos do agir e

    da vontade. O agir deve, segundo prescreve, se afastar de sua matéria e purificar-se em

    direção à forma para que possa encontrar os fundamentos universais para a ação devida – e,

    por que não dizer, da ação justa.

    Neste trabalho, procura-se resgatar a questão da experiência em sua relação com o

    justo. Embora seja obviamente necessário investigar os conceitos principais que perpassam

    toda a filosofia kantiana, reconhece-se como necessário um enfoque neste capítulo ao trato

    dado por Kant ao agir; consequentemente, um enfoque à razão prática.

    2.2. O ser humano enquanto pertencente ao mundo sensível e ao mundo inteligível; a

    necessidade de depuração da experiência para os princípios do agir

    A problemática tratada no capítulo tem como pano de fundo o direcionamento dado

    por Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e, por tal motivo, entende-se

    oportuno iniciar o seu conteúdo a partir de considerações presentes na obra de 1785,

    17 Linha de Pesquisa 4 (quatro) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG: Estado, Razão e História.

    O trabalho está ainda inserido no âmbito do projeto estruturante Teoria da Justiça.

  • 22

    normalmente estudada a partir de sua segunda edição, de 1786; não obstante o início “natural”

    seja pela via da Crítica da Razão Pura.

    Kant divide o conhecimento racional em formal e material. O material considera o

    objeto e as leis aos quais estão submetidos; o formal se ocupa da forma do entendimento e da

    razão em si consideradas, bem como as regras do pensar em geral, sem a distinção dos objetos.

    Partindo da tripartição da antiga filosofia grega entre Física, Ética e Lógica, Kant define a

    Lógica como a designação da filosofia formal; sobre a filosofia material, caso os seus objetos

    estejam relacionados às leis da natureza, sua ciência será a Física ou a Teoria da Natureza; se

    os objetos estiverem relacionados às leis da liberdade, a Ética, ou a Teoria dos Costumes18.

    A Lógica é considerada como puramente formal e por isso não pode ter princípios

    derivados da experiência. Portanto, em momento algum poderá ser empírica. Constitui leis

    universais e cujos cânones são necessários para todo o pensar e sua validade precisa ser

    demonstrada. Tanto a Filosofia da natureza quanto a filosofia moral podem ter cada qual parte

    empírica. Aquela determina as leis da natureza como objeto de experiência; esta determina as

    leis da vontade humana enquanto afetada pela natureza19.

    Para Kant, é empírica toda filosofia que se baseie em princípios da experiência. Pura é

    a filosofia que se apoia em princípios a priori, que antecede a experiência, podendo

    corresponder à Lógica ou à Metafísica. A Lógica constitui aquela que é simplesmente formal.

    A Metafísica a que se limita a determinados objetos do conhecimento, existindo uma dupla

    metafísica: uma Metafísica da Natureza e Metafísica dos Costumes, de modo que tanto a

    Física quanto a Ética possuem uma parte empírica. A parte empírica da ética é chamada de

    Antropologia prática e a racional seria a Moral propriamente dita20. Segundo Kant, aquela que

    “mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de filosofia”; pior:

    “(...)merece ainda muito menos o nome de Filosofia moral, porque, exatamente por este

    amálgama de princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria

    finalidade”21.

    Caygill explica que, em Kant, a experiência aparece com uma faceta distante da

    humildade e do senso comum. Kant identifica a experiência como um conhecimento reflexivo 18 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,

    2007, p. 13. 19 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 14. 20 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 14. 21 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 17.

  • 23

    “que surge quando numerosas aparências são comparadas pelo entendimento”, de modo que o

    uso lógico do entendimento possibilita uma reflexão sobre a aparência e a própria reflexão é

    pressuposta pelo uso lógico do entendimento. Nesse sentido, a experiência é produto dos

    sentidos e do entendimento. Configura uma “conexão sintética de aparências”, sendo esta uma

    conexão necessária que se manifesta na forma de percepções. Pressupõe em sua base a

    intuição de que estamos conscientes, percepção esta que se forma com base nos sentidos22.

    Na Crítica da Razão Pura, explica Caygill que a experiência representa uma síntese

    que não unifica somente um múltiplo intuído, mas aparece na base de uma adaptação mútua

    de conceito e intuição. A experiência implica um conhecimento mediante percepções ligadas

    entre si e, considerando que para Kant toda síntese pela qual se torna possível a percepção se

    submete a categorias, as categorias aparecem como condição de possibilidade da experiência

    e possuem validade a priori em relação aos objetos da experiência. A experiência possui

    condições de possibilidade na mútua adaptação entre experiência exterior, correspondente à

    receptividade da sensibilidade, e a experiência interior, que corresponde à espontaneidade do

    entendimento. Espaço e tempo, como formas a priori da intuição, estabelecem condições da

    experiência possível que determinam os limites do conhecimento. O conhecimento aparece

    aqui limitado a objetos da experiência possível23.

    No que tange à filosofia moral, Kant identifica uma “extrema necessidade” de que sua

    fundamentação fosse “completamente depurada de tudo o que possa ser somente empírico e

    pertença à Antropologia”, de modo que as noções de dever e de leis morais atestem dita

    necessidade. É preciso que uma lei a qual constitui fundamento de uma obrigação valha

    moralmente como uma necessidade absoluta e de modo universal, de sorte que apoie

    exclusivamente a priori e nos conceitos da razão pura, sem a intervenção de qualquer preceito

    baseado em princípios da experiência. Qualquer preceito que se baseie na experiência não

    poderá jamais constituir uma lei moral em conformidade com o pensamento kantiano, embora

    possa valer como uma regra prática. Nesse sentido, a lei moral e seus princípios se distinguem

    de tudo o mais que se constitua como empírico24.

    O homem é naturalmente afetado por muitas inclinações e, embora possa conceber a

    ideia de uma razão pura prática e de poder apurar a faculdade de julgar para distinguir em que

    22 CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 138. 23 CAYGILL, Howard. Dicionário Kant, cit, p. 138. 24 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 15-16.

  • 24

    casos da experiência suas leis possuem aplicação, não é dotado da força para torná-las

    eficazes no próprio comportamento. Nesse sentido, Kant reconhece a necessidade de uma

    Metafísica dos Costumes para investigar a fonte dos princípios práticos a priori da razão e

    preservar os costumes de “toda a sorte de perversão”, que acontece “enquanto lhes faltar

    aquele fio conductor e norma suprema do seu exacto julgamento”25.

    Kant identifica como inclinação a “dependência em que a faculdade de desejar está

    em face das sensações”, provando uma necessidade. Denomina como interesse a

    “dependência em que uma vontade contingentemente determinável se encontra em face dos

    princípios da razão”, no caso de uma vontade dependente que não é sempre por si mesma

    conforme a razão (portanto, jamais identificável com uma possível vontade divina). Distingue

    também agir por interesse e tomar interesse por algo, significando este o interesse “prático”

    na ação e o outro o interesse “patológico” no objeto da ação, de modo que se age com

    proveito da inclinação, agindo-se enquanto esse mesmo objeto for “agradável”26.

    Para Kant, tudo o que é empírico é “não só inútil mas também altamente prejudicial à

    própria pureza dos costumes”. O que constitui o valor de uma vontade absolutamente boa é

    que o princípio seja livre de “todas as influências de motivos contingentes que só a

    experiência pode fornecer”27. Princípios empíricos nunca serão aptos a fundamentar uma lei

    moral, porquanto reportam particularidades e contingências, não sendo possível por meio

    deles se abstrair e alcançar a universalidade, de modo que possam valer para todos os seres

    racionais sem distinção28.

    O homem encontra em si uma faculdade que o distingue de todas as outras coisas, a

    razão (Vernunft). Distingue inclusive a si próprio, enquanto “afetado” por objetos. Kant

    distingue razão e entendimento; de modo que a razão está acima do entendimento (Verstand)

    enquanto pura atividade própria. Este também é atividade própria, no entanto contém

    representações que se originam quando somos afetados por coisas, portanto retratando uma

    relação passiva. O sentido compreende somente essas representações, o entendimento não

    somente. Compreende outros conceitos que servem para submeter a regras as representações

    25 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 16. 26 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 49. 27 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 65. 28 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 87.

  • 25

    sensíveis e reuni-las por meio da consciência, sem a qual o uso da sensibilidade seria incapaz

    de pensar qualquer coisa29.

    A razão mostra uma espontaneidade pura sob o nome das ideias e dessa forma

    ultrapassa o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento. A razão reconhece a

    existência de um mundo sensível e um mundo inteligível, de modo que a distinção entre

    ambos revela os limites do próprio entendimento. O ser racional deve se considerar como

    inteligência, como pertencente ao mundo inteligível, não ao sensível, prossegue Kant. Nessa

    condição, deve reconhecer leis no uso de suas ações: enquanto pertence ao mundo sensível,

    está sob o influxo de leis naturais (heteronomia); e enquanto pertencente ao mundo inteligível,

    sob leis fundadas somente na razão, não empíricas.30

    Porquanto pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar a causalidade

    da própria vontade senão sob a ideia de liberdade. A própria independência de causas

    determinantes no mundo sensível é liberdade. A liberdade está inseparavelmente ligada ao

    conceito de autonomia, que consiste no princípio universal da moralidade e que está na base

    das ações de todas ações dos seres racionais na ideia31.

    2.3. Kant e o problema da experiência na Crítica da Razão Pura; a experiência como

    condição do conhecimento; a possibilidade de um conhecimento independente da

    experiência; dialética, ideia e o uso normativo da razão32

    Kant tem como problema fundamental de sua filosofia o questionamento de como são

    possíveis os juízos sintéticos a priori, que constituem as leis da física, e na Crítica da Razão

    Pura busca explicar como são formados tais juízos. Nesse intento, divide o estudo das

    faculdades do conhecer em: Estética Transcendental, Analítica Transcendental e Dialética

    Transcendental, cujos respectivos objetos são a sensibilidade, o entendimento e a razão3334.

    29 KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 101. 30 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 102. 31 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, cit, p. 102. 32 Este tópico foi baseado em trecho da dissertação de mestrado correspondente ao tópico 2.7, em razão da

    coincidência de conteúdo. PEIXOTO, Danilo Ribeiro. Hermenêutica e Dialética no Direito. 2014. 123 f.

    Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo

    Horizonte, 2014. 33 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

  • 26

    Kant inaugura uma filosofia do sujeito, preocupando-se não com a explicação do objeto de

    conhecimento, como nos gregos, mas sim com a interiorização da realidade. Para Kant, é o eu

    transcendental que alcança a verdade e está ele no sujeito35.

    O conhecimento da natureza se provém a partir da sensibilidade. Para explicar como

    ela aparece no sujeito cognoscente, Kant introduz nesse contexto o dualismo noumenon, a

    coisa em si, e fenomenon, o modo como a realidade modifica o homem. Com a interiorização

    do fenomenon pela sensibilidade, dá-se o conhecimento e sua organização ocorre pelas formas

    a priori da sensibilidade, que originam as intuições. Estas advêm puramente da sensibilidade,

    e, portanto, não podem ser considerados pensamentos ou juízos36. Com efeito, o pensar se

    inicia na sensibilidade, na captação dos fenômenos pelo sujeito. Para a formação dos juízos, é

    necessária a passagem das intuições para o entendimento, de modo que se tornem elas

    pensadas por formas a priori do entendimento, as categorias. Nessa apreensão das intuições

    pelo entendimento por meio das categorias, os fenômenos captados formam uma síntese com

    um juízo sintético experimental 37 . O conhecimento para Kant se mostra limitado ao

    fenomenon, o objeto enquanto dado na sensibilidade. Seria impossível ao homem conhecer o

    noumenon¸ tendo a capacidade para no máximo pensá-lo38. Portanto, a experiência aparece

    como condição para o conhecimento.

    De acordo com a teoria kantiana, há conhecimento apenas com o encontro entre

    entendimento e sensibilidade. Ao homem seria possível pensar fora da experiência,

    unicamente pela razão, mas não será formado o conhecimento. Formar-se-ia no caso a ideia,

    que para Kant são conceitos puros da razão. Possui a ideia uma lógica precisa, todavia cria

    teses e antíteses e estão relacionadas à dialética transcendental39. A ideia se dirige para a

    esfera do agir e ostenta uso normativo. Sendo assim, a razão humana se apresenta como

    teórica, mas também preocupada com o agir prático40. A razão para Kant, como em Descartes,

    não é apta a sozinha a alcançar a realidade. Seria então incapaz de encontrar verdades,

    34 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant. Belo

    Horizonte: Decálogo, 2008, p. 18-19. 35 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 30. 36 Juízo para Kant é o “ato pelo qual uma intuição (fato) é subsumida a uma categoria (direito)”. Salgado afirma

    que Kant, ao estudar os juízos, procura defini-los de modo transcendental e não somente pela lógica formal,

    abstraída de todo conteúdo. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na

    liberdade e na igualdade. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 39. 37 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant, cit, p. 19-20. 38 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 3.ed.

    Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 40. 39 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 20. 40 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 20.

  • 27

    originando teses e antíteses41. As ideias são objeto de estudo da Dialética Transcendental

    kantiana.

    Explica Salgado que, no pensamento de Kant, o termo transcendental se refere à

    possibilidade ou uso a priori do conhecimento. Dessa forma, é transcendental o

    “conhecimento pelo qual nós conhecemos serem certas representações (intuições ou

    conceitos) aplicadas as priori ou pelo qual conhecemos como são possíveis a priori”. Lógica

    Transcendental é “a ciência que determina a origem, a extensão e o valor dos conhecimentos

    a priori” e se divide em Analítica Transcendental e Dialética Transcendental42. A primeira se

    ocupa dos elementos do conhecimento puro do entendimento e dos princípios sem os quais

    nenhum objeto pode ser pensado, enquanto a segunda, constitui uma crítica ao uso ilimitado e

    fora do sensível dos princípios puros do entendimento43.

    A sensibilidade reúne o múltiplo das sensações e o prepara como intuição por meio de

    suas formas puras – o espaço e o tempo. O entendimento se encarrega de organizar esses

    dados pela aplicação de suas próprias formas puras, que são as categorias. A razão é a

    faculdade superior que tem por única função no conhecimento sistematizá-lo, função esta

    meramente regulativa44. Seu interesse, entretanto, se superpõe a essa função reguladora, e lhe

    compele a medir as próprias forças, não se contentando somente em regular conhecimentos

    oferecidos pelo entendimento e pela sensibilidade – fundados numa experiência possível.

    Ao não se contentar apenas com o conhecimento limitado à experiência, busca um

    conhecimento absoluto, um conhecimento do incondicionado. Porquanto aspira por natureza

    ao incondicionado, é metafísica por excelência, aponta Salgado45. Entretanto, a razão cai em

    antinomia quando intenta pensar o incondicionado. A razão trabalha de modo especulativo ao

    deslocar para a metafísica a indagação sobre a seriação das causas e também ao se voltar para

    um suposto conhecimento das coisas como são em si e não como aparecem através dos

    sentidos. A metafísica abandona o fenômeno e, por conseguinte, se desliga da experiência e

    da sensibilidade, almejando especulativamente ultrapassar o limite traçado pela experiência

    para o conhecimento e procurando um objeto a que se possam aplicar fora do sensível as

    categorias. Essa busca da razão especulativa origina as ideias, conceitos que não

    41 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A fundamentação da ciência hermenêutica em Kant,cit, p. 30. 42 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 29. 43 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 29-30. 44 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 44. 45 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 44.

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    correspondem a um objeto dado pelos sentidos. Enquanto as categorias se voltam para o

    fenômeno, as ideias procuram a coisa em si, o noumenon46. Kant sintetiza o conceito de ideia

    na seguinte passagem da Crítica da Razão Pura, no Livro Primeiro da Dialética

    Transcendental:

    Entendo por idéia um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos

    sentidos um objeto que lhe corresponda. Os conceitos puros da razão, que agora

    estamos a considerar, são, pois, idéias transcendentais. São conceitos da razão pura,

    porque consideram todo o conhecimento de experiência determinado por uma

    totalidade absoluta de condições. Não são forjados arbitrariamente, são dados pela

    própria natureza da razão, pelo que se relacionam, necessariamente, com o uso total

    do entendimento. Por último, são transcendentes e ultrapassam os limites de toda a

    experiência, na qual, por conseguinte, nunca pode surgir um objeto adequado à idéia

    transcendental. Quando se nomeia uma idéia, diz-se muito quanto ao objeto (como

    objeto do entendimento puro), mas, por isso mesmo, se diz muito pouco quanto ao

    sujeito (isto é, quanto à sua realidade sob uma condição empírica), porque como

    conceito de um maximum nunca pode ser dado in concreto de uma maneira

    adequada. Como no uso meramente especulativo da razão é este propriamente o seu

    objetivo, e aproximar-se de um conceito, que nunca é atingido na prática, equivale,

    nessa aproximação, a falhar inteiramente esse conceito, diz-se de tal conceito que é

    apenas uma idéia47.

    Contudo, conforme expõe Kant, a razão seria incapaz, pelo seu modo de operação pela

    simples coerência lógica, de revelar a essência das coisas e satisfazer essa sua intenção

    transcendental. Dado que por meio desse comportamento especulativo a razão prescinde da

    experiência, não será possível o uso da intuição – para Kant é impossível uma intuição

    intelectual – e, com efeito, o discurso racional nesse tocante nada mais seria que um proceder

    analítico o qual mostra a “identidade do sujeito e do predicado”. No entanto, considera que a

    existência não é predicado e, por conseguinte, o pensar algo como existente não significa

    conhecer algo como existente, aduz Salgado citando Maréchal48. A partir do descompasso

    entre a intenção especulativa e o verdadeiro papel da razão no conhecer, emerge a necessidade

    da crítica para rebater a “arrogância da razão” de modo a mostrar que a metafísica

    especulativa não é conhecimento e que possível seria apenas uma metafísica imanente, uma

    exposição sistemática “dos princípios a priori da experiência e das ideias reguladoras”49.

    Conforme exposto, a busca por um conhecimento independente da experiência produz

    a ideia, que se mostra à razão como coisa em si, mas seria uma realidade aparente (Schein).

    Kant denominava “dialéticos” os raciocínios ilusórios fundados sobre uma aparência, sendo a

    46 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 50-51. 47 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.

    Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 343. 48 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51. 49 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51.

  • 29

    dialética, dessa forma, uma lógica da aparência. A sua função seria a de evitar que o espírito

    confundisse o real com o aparente. Enquanto a dialética lógica se encarregaria de identificar

    os sofismas, caberia à dialética transcendental revelar as ilusões transcendentais resultantes da

    razão 50 . Dessa forma, no livro sobre a Dialética Transcendental, Kant designa como

    dialética 51 , em geral, uma lógica da aparência, procurando diferenciá-la conhecimento

    verdadeiro52. O seguinte trecho sintetiza em grande parte o assunto ora tratado:

    (...)Os princípios do entendimento puro, que anteriormente apresentamos, deverão

    ter apenas uso empírico, e não transcendental, isto é, não devem transpor a fronteira

    da experiência. Mas um princípio, que suprima estes limites ou até nos imponha a

    sua ultrapassagem, denomina-se transcendente. Se a nossa crítica conseguir

    desmascarar a aparência destes ambiciosos princípios, poderão os princípios de uso

    simplesmente empírico denominar-se, em oposição a estes, princípios imanentes do

    entendimento puro.

    A aparência lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão (a aparência

    dos paralogismos), provém unicamente de uma falta de atenção à regra lógica.

    Desaparece por completo logo que esta regra for justamente aplicada ao caso em

    questão. Em contrapartida, a aparência transcendental não cessa, ainda mesmo

    depois de descoberta e claramente reconhecida a sua

    nulidade pela crítica transcendental (por exemplo, a aparência na proposição

    seguinte: O mundo tem de ter um começo no tempo). E isto, porque na nossa razão

    (considerada subjetivamente como uma faculdade humana de conhecimento) há

    regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o

    aspecto de princípios objetivos, pelo que sucede a necessidade subjetiva de uma

    certa ligação dos nossos conceitos, em favor do entendimento, passar por uma

    necessidade objetiva da determinação das coisas em si. Ilusão esta que é inevitável,

    assim como não podemos evitar

    que o mar nos pareça mais alto ao longe do que junto à costa, porque, no primeiro

    caso, o vemos por meio de raios mais elevados; ou ainda, como o próprio astrônomo

    não pode evitar que a lua, ao nascer, lhe pareça maior, embora não se deixe enganar

    por essa aparência.

    A dialética transcendental deverá pois contentar-se com descobrir a aparência de

    juízos transcendentes, evitando ao mesmo tempo que essa aparência nos engane;

    mas nunca alcançará que essa aparência desapareça (como a aparência lógica) e

    deixe de ser aparência." Pois trata-se de uma ilusão natural e inevitável, assente,

    aliás, em princípios subjetivos, que apresenta como objetivos, enquanto a dialética

    lógica, para resolver os paralogismos, apenas tem de descobrir um erro na aplicação

    dos princípios, ou uma aparência artificial na sua imitação. Há, pois, uma dialética

    da razão pura natural e inevitável; não me refiro à dialética em que um principiante

    se enreda por falta de conhecimentos, ou àquela que qualquer sofista

    engenhosamente imaginou para confundir gente sensata, mas à que está

    inseparavelmente ligada à razão humana e que, descoberta embora a ilusão, não

    deixará de lhe apresentar miragens e lançá-la !"incessantemente em erros

    momentâneos, que terão de ser constantemente eliminados.53

    50 FOULQUIÉ, Paul. A dialéctica.Trad. Luís A. Caeiro. Lisboa: Publicações Europa-América, 1966,p. 32. 51 Não obstante o uso do vocábulo dialética por Kant, a dialética transcendental não assume propriamente a

    configuração de uma teoria dialética no sentido clássico ou no sentido moderno pós-hegeliano. É identificada a

    partir de contornos próprios da obra kantiana. 52 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, cit, p. 321. 53 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, cit, p. 323-324.

  • 30

    Enfim, na dialética da razão pura, Kant demonstra o insucesso da razão ao tentar um

    “vôo tão alto” e com isso prepara o uso “correto” da razão, seja na forma meramente

    regulativa – razão teorética, seja na forma inteiramente constitutiva – razão prática. Ensina

    Salgado que na filosofia kantiana a ideia representa o ponto de passagem da filosofia teórica

    para a prática. Ao demonstrar pela dialética da razão pura a impossibilidade de ela própria

    alcançar um conhecimento por ideias puras, Kant mostra na esfera do agir o caminho certo

    para a razão, em que opera um retorno sobre si mesma não como intelecto que se volta para o

    sensível para conhecer, mas como “vontade que se desdobra sobre si mesma para agir”,

    percebendo que “ela mesma é o seu objeto e seu único interesse”54. A ideia, que na razão

    teorética é o “resultado do processo de conhecimento no uso dialético da faculdade de pensar,

    em busca do incondicionado”, passa a ser na razão prática um princípio de ação55. Conquanto

    mantenha a característica fundamental de regra que se dirige ao sujeito, a ideia na razão

    prática assume a natureza de lei moral que orienta o agir, tendo como característica a

    universalidade como exigência absoluta da razão. Consoante diz Salgado, “a razão legisla

    tanto para a natureza quanto para a liberdade”56. A dialética transcendental, primeiro, assumiu

    um sentido negativo ao procurar mostrar a “falsidade de seus objetos”, no entanto, considera

    Salgado, a mesma ideia que se apresentou falsamente como objeto assume então uma direção

    positiva57.

    Aponta Salgado que com Kant o mundo sensível deixou de ser um problema à maneira

    platônica e se deslocou para a razão de ser de todo conhecimento. Nessa recuperação do

    sensível, Kant opera uma revolução ao centrar o pensamento filosófico no eu, interiorizando a

    filosofia58 . As categorias não são mais identificadas como ontológicas e pertencentes ao

    objeto, mas se situam ao lado do ser, que, agora com Kant, se provém da substância e da

    causalidade figurando como o criador da ordem natural do universo, criador da legalidade da

    natureza, de sorte que a possibilidade do ente se encontra condicionada pelo eu, prossegue

    Salgado, citando Kroner59. Kant, o filósofo dos dualismos, opera cisão entre o eu e o mundo,

    o pensar e o ser, que Parmênides havia unido na ontologia. Com base nisso, Hegel denomina

    54 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 51. 55 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 63. 56 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 63. 57 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 62-63. 58 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 47. 59 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 48.

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    a filosofia kantiana como filosofia da reflexão, em comparação com a sua própria, que intenta

    recuperar a ontologia e a identificação entre ser e pensar60.

    Salgado destaca que a razão no sentido prático é o suporte de todo o sistema moral

    kantiano. O autor enfatiza, no entanto, que o conceito kantiano de razão difere sobremaneira

    daquele cunhado desde a antiga Grécia. A razão é tida tradicionalmente como a mais alta

    faculdade do conhecimento, oposta à imaginação e à percepção sensível, e pode ser tomada

    nessa perspectiva em dois sentidos: um em sentido amplo, que abrange todas as faculdades

    superiores do conhecimento; e outro em sentido estrito, que se refere à “faculdade de tirar

    conclusões por silogismos ou outros tipos de raciocínio”61.

    Prossegue Salgado explicando que enquanto a clássica acepção de razão ou

    entendimento se identifica com a faculdade de criar conceitos, sendo ela empírica

    (Aristóteles) ou não empírica (Platão); Kant traz ao termo uma nova acepção ao admitir que a

    razão envolva também o entendimento somente quando este cria conceitos a priori – que se

    originam dele próprio e não da experiência. Dessa forma, a razão pura é aquela que produz

    conceitos a priori, alheios em sua origem à experiência e também aquela que se identifica

    como a faculdade do conhecimento a partir de princípios – cognitio ex principiis, não de fatos

    empíricos – cognitio ex datis. Em sentido estrito, a razão pura significa a razão que cria ideias,

    “conceitos puros considerados em si mesmos objetos”. Tais ideias são alcançadas pela razão

    quando esta indaga pela origem das premissas de seus silogismos, quando perquire a causa

    das causas62, procurando chegar à causa incondicionada capaz de explicar a totalidade das

    causas 63 . Salgado sublinha que “uma causa não causada e que se traduz numa ação

    absolutamente espontânea, incondicionada, dará a Kant o conceito ou a ideia de liberdade; e

    que o “refletir sobre uma ação que age”, uma ideia de razão prática, possui compromisso

    inquebrantável com a ideia de liberdade.”64

    A razão prática, desse modo, ocupa-se não com a simples atividade de traduzir as leis

    que determinam os fenômenos naturais, mas sim em representar as leis que orientam o agir de

    um “ser racional ou dotado de liberdade”. Constitui-se, assim, na faculdade do homem em

    agir por princípios ou máximas, as quais tornam possível uma ação, entendida nessa

    60 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 48. 61 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant, cit, p. 49. 62 O incentivo à busca da causa pela causa é identificado como uso puramente negativo. 63 SALGADO,