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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM SHEILA CRISTIANE DE CARVALHO SINHAZINHA BRASILINA VERSUS DONA MANUELA: O DISCURSO DE MONTEIRO LOBATO SOBRE A LÍNGUA DO BRASIL CUIABÁ-MT 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

SHEILA CRISTIANE DE CARVALHO

SINHAZINHA BRASILINA VERSUS DONA MANUELA: O DISCURSO DE

MONTEIRO LOBATO SOBRE A LÍNGUA DO BRASIL

CUIABÁ-MT

2013

SHEILA CRISTIANE DE CARVALHO

SINHAZINHA BRASILINA VERSUS DONA MANUELA: O DISCURSO DE

MONTEIRO LOBATO SOBRE A LÍNGUA DO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Estudos de Linguagem da

Universidade Federal de Mato Grosso, como

requisito parcial para obtenção do título de

Mestre, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria

Inês Pagliarini Cox.

CUIABÁ-MT

FICHA CATALOGRÁFICA

C331s Carvalho, Sheila Cristiane de.

Sinhazinha Brasilina versus Manuela : o discurso de Monteiro Lobato sobre

a língua do Brasil / Sheila Cristiane de Carvalho. – 2013.

vii, 134 f. ; il. color.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto

de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2013.

Bibliografia: f. 131-134.

1. Análise do discurso francesa. 2. Lobato, Monteiro, 1882-1948 – Crítica e

interpretação. 3. Língua portuguesa - Brasil. I. Título.

CDU – 81’42

Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

À minha família e ao meu amado.

Agradecimentos

A Deus, pelo dom da vida e pelos detalhes de cada dia preparados por Ele.

A toda a minha família pela dedicação e amor incondicional sempre, especialmente aos meus

pais, Maria de Lourdes de Freitas Carvalho e Nivaldo de Carvalho, por me guiarem os passos

até, que eu pudesse vislumbrar o caminho por mim mesma, e por me abrirem os olhos com tanto

carinho sempre que necessário; à minha irmã, Raquel, pela amizade incomparável; aos

sobrinhos Felipe e Jéssica, pela infância felizmente partilhada; ao meu cunhado Daniel, pelos

cuidados dispensados, e aos meus avós (in memoriam) por serem a base forte que eu conheci

dessa família.

Ao meu amado, João Victor Gomes de Siqueira, por me apoiar neste trabalho com tudo o que

pôde, por me compreender e por ser a metade de mim e me completar em todos os aspectos da

vida.

À família de João Victor, que me acolhe como parte dela e que torceu pelo sucesso deste

trabalho, em especial aos meus sogros Divino e Delba pelo carinho de sempre; e à Dona Tereza

e Sr. João que se tornaram verdadeiros avós para mim.

À professora Maria Inês Pagliarini Cox, por acreditar no meu potencial, pela orientação sempre

tão competente e paciente.

À Universidade Federal de Mato Grosso, pela oportunidade de realizar esta pesquisa e o sonho

do Mestrado.

Ao programa CAPES/REUNI de bolsas de estudos, por colaborar financeiramente para a

realização desta pesquisa.

A todos os professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade

Federal do Mato Grosso, que foram essenciais para o meu amadurecimento como pesquisadora,

especialmente à Maria Rosa Petroni, Cláudia Paes de Barros e Roberto Leiser Baronas, pelo

tratamento sempre afetuoso.

Aos professores Judite Gonçalves de Albuquerque e Elias Alves de Andrade, pela leitura

atenciosa da primeira versão desta dissertação e suas valiosas colaborações para o

aperfeiçoamento dela.

A todos os professores que participaram da construção de minha história, desde os primeiros

rabiscos até a pós-graduação.

Aos meus amigos de perto e de longe, pelo incentivo, torcida e carinho em todos os momentos.

Verdade

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a

verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais

bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drummond de Andrade, 1984).

SINHAZINHA BRASILINA VERSUS DONA MANUELA: O DISCURSO DE

MONTEIRO LOBATO SOBRE A LÍNGUA DO BRASIL

RESUMO: Este estudo objetivou analisar os enunciados de Monteiro Lobato sobre a

língua brasileira com base na análise de discurso francesa, tendo como pano de fundo a

polêmica entre separatistas e legitimistas. Entre os escritos que compõem a volumosa

obra de Lobato, são abundantes os comentários sobre a questão linguística que

atormentava a intelligentsia brasileira no início do século XX, justificando uma

investigação sistemática de seu pensamento. Buscou-se abeirar os sentidos atribuídos

pelo escritor à diferenciação linguística em curso no Brasil, o diálogo com o movimento

modernista, a polêmica com os conservadores. Buscou-se, ainda, compreender

o ethos do enunciador ao se envolver na batalha para significar a alteridade da língua

brasileira em relação à lusitana e para constituir uma identidade nacional. Como suporte

central para a leitura dos enunciados, recorreu-se à abordagem proposta por Dominique

Maingueneau (2008), particularmente à primeira e à segunda hipótese, que afirmam,

respectivamente, o primado do interdiscurso sobre o discurso e a polêmica como

interincompreensão. Também o conceito de ethos discursivo, tal como discutido por

Maingueneau (1997; 2004; 2008; 2011), Ruth Amossy (2011) e Salgado e Motta (2008)

integrou o dispositivo de análise a ser mobilizado na leitura do corpus. Por se tratar de

uma pesquisa de arquivo, o corpus foi constituído com sequências discursivas (SDs)

extraídas da obra de Monteiro Lobato, com base no princípio do trajeto temático. A

análise do corpus mostrou que o lugar de que Lobato fala é o do separatista, porém esse

lugar, longe de ser um território conquistado em definitivo, é um território sob litígio,

disputado com o legitimista, que defende a manutenção do domínio linguístico

português, mesmo quando os outros laços coloniais foram rompidos. Defendendo a

emancipação linguística do Brasil, Monteiro Lobato foi derrisório, irônico, agressivo,

irreverente, obstinado, contumaz, e, raramente, ponderado. Enunciou no tom que

convém a um separatista genuíno, que professa um nacionalismo crítico em pé de guerra

com os legitimistas/conservadores que defendiam a manutenção das peias que ainda

prendiam o Brasil a Portugal.

PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; português brasileiro; análise de discurso

francesa; interdiscurso e ethos

SINHAZINHA BRASILINA VERSUS DONA MANUELA: MONTEIRO

LOBATO’s DISCOURSE ABOUT THE BRAZILIAN LANGUAGE

ABSTRACT: This study aimed at analyzing Monteiro Lobato’s enunciations about the

Brazilian language based on the French discourse analysis, having as background the

controversy between separatists and legitimists. Among the writings that compose

Lobato’s large work, the comments about the linguistic theme that plagued the Brazilian

intelligentsia in the early twentieth century are abundant, thus justifying systematic

investigation of his thought. One sought to come near the feelings attributed by the

writer to the linguistic differentiation ongoing in Brazil, the dialogue with the modernist

movement, the controversy with the conservatives. One also sought to understand the

ethos of the enunciator in his battle to mean the alterity of the Brazilian Language in

relation to the European Portuguese and to form a national identity. The approach

proposed by Dominique Mainguenean (2008) was used as central support for the

reading of the enunciations, in particular the first and the second hypothesis that state

respectively, the primacy of the inter-discourse over the discourse and the controversy

as inter-incomprehension. The concept of discursive ethos, such as that discussed by

Maingueneau (1997; 2004; 2008; 2011), Ruth Amossy (2011) and Salgado and Motta

(2008) also integrated the device of analysis to be mobilized in the reading of the

corpus. As it is an archive research, the corpus was formed with discursive sequences

(SDs) extracted from Monteiro Lobato’s work, based on the principle of the thematic

trajectory. The analysis of the corpus showed that the place of which Lobato speaks is

that of the separatist’s, however, this place, far from being a territory totally conquered,

is a territory under litigation, disputed with the legitimist that advocates the maintenance

of the Portuguese linguistic domain, even when the other colonial ties were broken.

Advocating the linguistic emancipation of Brazil, Monteiro Lobato was mocking,

ironic, aggressive, irreverent, obstinate, stubborn, and, seldom thoughtful. He spoke in a

tone of a genuine separatist that declares a critical nationalist fighting with the

legitimists/conservatives that defended the maintenance of the chains that still linked

Brazil to Portugal.

KEYWORDS: Monteiro Lobato; Brazilian Portuguese; French discourse analysis;

inter-discourse and ethos

SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................................01

Capítulo I

Monteiro Lobato: Um sujeito insurreto ..........................................................................07

Capítulo II

Notas sobre a constituição do arquivo de Monteiro Lobato e a constituição

do corpus........................................................................................................................21

2.1. Do arquivo............................................................................................21

2.2. Dos objetivos........................................................................................25

2.3. Da constituição do corpus....................................................................26

Capítulo III

Balizas teóricas...............................................................................................................37

3.1.Da formação discursiva ao interdiscurso...............................................37

3.2. Do primado do interdiscurso................................................................39

3.3. Da polêmica como interincompreensão...............................................41

3.4. O Ethos: da retórica aristotélica à análise do discurso.........................45

Capítulo IV

O Dialeto Caipira: “Falamos à moda de Brasilina, mas escrevemos à moda de

Dona Manuela”..............................................................................................................53

Capítulo V

O Dicionário Brasileiro: “Um camponês do Minho não compreende nem

é compreendido por um Jeca de São Paulo”..................................................................90

5.1. Da polêmica acerca da identidade linguística e cultural brasileira........94

5.2. Do ethos lobateano.............................................................................111

Considerações finais...................................................................................................123

Referências Bibliográficas do Corpus.........................................................................130

Referências Bibliográficas da Pesquisa.......................................................................131

1

INTRODUÇÃO

Esta dissertação dedica-se ao estudo do discurso de Monteiro Lobato acerca da

língua do Brasil no alvorecer do século XX. Os gestos de definição de uma identidade

nacional, que, entre outros aspectos, realçaram a questão linguística, começaram a ser

esboçados no século XIX, com a Independência política do Brasil, em 1822. Os

primeiros tempos da polêmica em torno da língua brasileira foram urdidos

principalmente pelos escritores românticos que reivindicavam a emancipação da

literatura feita no país em relação aos modelos portugueses e europeus de um modo

geral. Não bastava nacionalizar os temas tratados pela literatura brasileira em processo

de constituição; era preciso nacionalizar também a língua do fazer literário.

Obviamente, a campanha romântica pela nacionalização da literatura, que alojava, em

seu centro, a bandeira da nacionalização da língua, não se fez sem a resistência dos

conservadores. Como bem afirma Bosi (1992, p. 177), se, por um lado, o Brasil se

emancipava, levantava a cabeça e dizia seu próprio nome, por outro, Portugal “resistia à

perda de seu melhor quinhão”.

Pinto (1978, 1981), reunindo um vasto arquivo de textos sobre a questão da

língua brasileira, produzidos por escritores, gramáticos e intelectuais dos mais variados

campos desde o século XIX, vislumbra duas posições discursivas na interpretação do

fenômeno patente da diferenciação do português falado no Brasil em relação à escrita

literária e às normas gramaticais lusitanas. A autora refere-se a elas como posição

separatista, marcada pela defesa aguerrida do cisma gramatical entre a ex-colônia e a

metrópole, e legitimista, marcada pelo radicalismo purista, reconhecendo, contudo,

haver entre elas posições conciliatórias. Enquanto os separatistas, imbuídos do espírito

libertário que levara à independência política, interpretavam a diferenciação linguística

como a formação de uma nova língua, os legitimistas lutavam para salvaguardar o

português clássico da ameaça dos estrangeirismos, dos brasileirismos, dos neologismos

e dos barbarismos. Num debate fortemente polarizado, os separatistas defendiam a

construção de uma identidade cultural apartada da portuguesa, com suas criações

artísticas, estéticas e, sobretudo, com uma língua própria, ao passo que os legitimistas

continuavam a defender como legítimo apenas o modelo literário e o padrão linguístico

2

lusitano, avaliando toda sorte de variação e mudança, observada do lado de cá do

Atlântico, como corrupção da língua original.

Albuquerque e Cox (1997, p. 45), em estudo sobre os discursos acerca da língua

brasileira, com base num arquivo de textos constituído por enunciados

reconhecidamente separatistas, produzidos entre os anos de 1860 a 1891 por José de

Alencar, Macedo Soares e Salomé Queiroga, observa que, entre eles, a mudança

linguística que se operava no Brasil era significada como “progresso”, “evolução”,

“florescência”, “melhoramento”, “aperfeiçoamento”, “enriquecimento”, “formação de

uma nova língua”. Tais sentidos contrastavam com aqueles que os legitimistas

atribuíam à variação e à mudança do português na ex-colônia: “aniquilamento”,

“retrocesso”, “desvio”, “barbárie”, “deturpação”, “abastardamento”, “decadência”,

“corrupção”, “empobrecimento”, “deformação”, “crime contra o português”. Conforme

Albuquerque e Cox (1997, p. 54 e 55), os enunciados prototípicos do discurso

separatista praticado pelos românticos eram: 1) o português falado no Brasil é diferente

do falado em Portugal; 2) essa diferença é ou da ordem do dialeto ou da ordem da

língua; 3) o português se transforma pela ação providencial da lei do progresso que

atinge todos os produtos do espírito ou pela ação de determinantes do novo contexto

que impõe a adaptação, à semelhança do processo de seleção natural darwinista; 4) a

diferença do português brasileiro é positiva, necessária, inevitável e irreversível; 5) essa

diferenciação linguística entre Brasil e Portugal é condição indispensável para

consolidar a identidade da nação brasileira, como nação independente do império

lusitano em todos os sentidos e não apenas no plano político.

Vigoroso entre os românticos, o discurso separatista experimentou certo declínio

com a ascensão parnasiana, cujos princípios de perfeição formal, não raro, derivaram

para a correção gramatical. Contudo, a sanha parnasiana acabou produzindo efeito

inverso: a explosão do discurso separatista entre os chamados modernistas. Mário de

Andrade (1928), considerado um dos precursores do modernismo no Brasil, nunca

perdeu de vista seu projeto de realizar, por meio da literatura, uma estilização culta da

fala brasileira, de produzir uma “gramatiquinha da fala brasileira”. Graça Aranha (1924)

convocava todos os brasileiros a sacudirem os jugos portugueses e a declararem sua

efetiva independência cultural, literária e linguística. Oswald de Andrade (1928)

incitava ao uso da “[...] língua sem arcaísmo, se erudição. Natural e neológica. A

contribuição milionária de todos os erros”. Contemporâneo do modernismo, ainda que

dele não participasse oficialmente, José Bento Monteiro Lobato (1882 - 1948) foi

3

militante persistente da causa separatista e enunciou diversas e intensas vezes sobre a

urgência da emancipação linguística e literária do Brasil. Criticou o plágio que o

brasileiro fazia dos europeus nas artes em geral, na maneira de se comportar e

principalmente no idioma que usava para fazer literatura. A seu ver, os brasileiros pouco

liam porque não se identificavam com e não entendiam o que liam, dado o

distanciamento entre a língua que falavam e aquela com se que se deparavam nas obras

que lhes eram dadas a ler. Estava convencido de que não era o domínio da gramática

que fazia um bom escritor, como comentou na carta seguinte endereçada a Godofredo

Rangel, interlocutor com quem discutiu, por mais de quarenta anos, todas as suas

questões pessoais, acadêmicas, literárias, profissionais e políticas:

Grande bem me fazes com a denúncia das ingramaticalidades [...] a

gramática fará letrudos, não faz escritores – além do que é também a

gramática que o reprova: [...] voltei-me para a gramática e tentei

refocilar num Carlos Eduardo Pereira. Impossível. O engulho voltou-

me – a imagem do Freire e da bomba. Dá-me ideia duma morgue onde

carniceiros de óculos e avental esfaqueam, picam e repicam as frases,

esbrugam as palavras, submetem-nas ao fichário da cacofonia grega.

A barrigada da língua é mostrada a nu, como a dos capados nos

matadouros – baços, fígados, tripas, intestino grosso, pústulas,

“pipocas”, tênias. Larguei o livro para nunca mais, convencido de que

das gramáticas saem Silvios de Almeida mas não Fialhos. ([1915]

2010, p. 329)

A escolha do discurso de Monteiro Lobato como objeto de investigação deste

trabalho se deve ao fato de ele ter sido um dos ideólogos do separatismo que mais

combateu a reação parnasiana conservadora nas primeiras décadas do século XX.

Embora ele tenha sido alvo de milhares de estudos e de publicações nas mais diversas

áreas de conhecimento, suas ideias acerca da língua do Brasil ainda mereceram poucos

estudos. Examinando a vastíssima bibliografia de livros, capítulos de livros, artigos em

periódicos, teses, dissertações e monografias informada no site1 do Projeto Temático

“Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros”, desenvolvido por

pesquisadores vinculados à Unicamp, junto ao Fundo Monteiro Lobato, observa-se que,

raramente, a temática linguística é abordada, apesar da contundência com que foi

discutida pelo escritor e da riqueza do material disponível sobre ela em seu arquivo. É,

pois, nesse vácuo que esta dissertação modestamente se inscreve. Reconhece-se que as

1 Conferir site http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/home.htm#

4

ideias de Monteiro Lobato sobre a língua do Brasil constituem um rico filão a ser

explorado pelos mais diversos campos da linguística.

Propõe-se aqui analisar os enunciados lobateanos sobre a língua brasileira com

base na análise de discurso francesa, tendo como pano de fundo a polêmica entre

separatistas e legitimistas2. É, portanto, o discurso de Monteiro Lobato sobre a

diferenciação linguística em curso no Brasil o objeto deste estudo. Busca-se abeirar os

sentidos atribuídos pelo escritor a essa diferenciação, o diálogo com o movimento

modernista, a polêmica com os conservadores, bem como o ethos do enunciador ao se

envolver na batalha para significar a alteridade linguística brasileira e a constituição de

uma identidade nacional. Como suporte central para a leitura dos enunciados, recorre-se

à abordagem proposta por Dominique (2008a), particularmente à primeira e à segunda

hipótese que afirmam, respectivamente, o primado do interdiscurso sobre o discurso e a

polêmica como interincompreensão. Também o conceito de ethos discursivo, tal como

discutido por Maingueneau (1997; 2004; 2008; 2011), Ruth Amossy (2011) e Salgado e

Motta (2008) integra o dispositivo de análise a ser mobilizado na leitura do corpus.

Segundo Pêcheux (1994), há duas vias para a constituição do corpus na análise

de discurso: a via arquivista e a via experimental. O arquivo é formado por documentos

pertinentes, conservados e disponíveis sobre uma questão. Tais documentos são

produzidos independentemente de sua constituição, a posteriori, como objeto de estudo.

Foram produzidos para servir a outros propósitos e, por acaso, passam a interessar aos

analistas de discurso. Já pela via experimental, os dados que constituem o corpus são

obtidos por meio de uma cenografia que põe os locutores em situação de teste,

2 A pesquisa aqui apresentada integra o projeto “Discursos sobre o português brasileiro – do século XIX

ao século XXI”, coordenado pela Profª. Dra. Maria Inês Pagliarini Cox, que faz parte do corpo docente do

Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso (MeEL/UFMT). Trata-se

de uma pesquisa sobre os sentidos atribuídos à(s) variedade(s) brasileira(s) do português, baseada em

corpus de textos escritos por escritores, jornalistas, gramáticos, linguistas, homens de Letras em geral,

desde o século XIX, momento em que o nacionalismo romântico começou a instigar as discussões acerca

da constituição da língua nacional, em oposição à corrente conservadora que defendia o purismo

linguístico e a manutenção do padrão gramatical imposto pelo domínio português.

Integra igualmente o projeto “Para a História do Português Brasileiro-Mato Grosso – PHPB-MT”,

coordenado pelo Prof. Dr. Elias Alves de Andrade, docente do Mestrado em Estudos de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso (MeEL/UFMT). Este projeto faz parte da proposta de pesquisa

coletiva lançada no I Seminário para a História do Português Brasileiro, realizado em abril de 1997 pelo

Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).

Coube aos Professores Doutores Ataliba de Castilho e Rosa Virgínia Mattos e Silva a tarefa de reunir,

naquele primeiro seminário, professores, pós-graduandos e graduandos a fim de estabelecer as primeiras

ideias de uma investigação coordenada. Essa iniciativa garantiu a proposição de um projeto guarda-chuva.

Nascia, assim, o Projeto Nacional Integrado Para a história do português brasileiro dividido em equipes

regionais por todo o país.

5

orientados pelo propósito da investigação. Instado por provocações do pesquisador, o

informante produz os textos que comporão o corpus a ser estudado. No presente estudo,

o corpus será montado com sequências discursivas (SDs) extraídas do arquivo de textos

que compõem a vasta obra de Monteiro Lobato, a ser examinada na perspectiva do

trajeto temático. A pesquisa se inicia com uma leitura das obras de Lobato, à guisa de

localização e recorte de SDs em que temas referentes à nacionalização da língua e do

país em todos os seus aspectos estejam em pauta.

A presente pesquisa e suas descobertas encontram-se organizadas e mostradas

em 5 capítulos.

O primeiro capítulo constitui-se de uma breve biografia de Monteiro Lobato,

visando a familiarizar o leitor com o pensador inquieto que ele foi a respeito de tantas

questões nacionais candentes no momento histórico em que ele viveu e pensou o Brasil,

incluindo as questões linguísticas, literárias, artísticas, políticas, sanitárias etc. Nesse

capítulo, é possível vislumbrar algumas pistas de como era o estilo de Lobato, de como

se comportou durante alguns eventos marcantes de sua vida e da intensidade das

palavras e ações com que se envolvia na defesa de suas ideias, quase sempre

transformadas em práticas por meio de campanhas.

No segundo capítulo, explicitam-se os passos da pesquisa, o percurso

metodológico; explica-se a opção pela pesquisa de arquivo; especificam-se os objetivos

e como foi constituído e organizado o corpus, destacando-se o critério para a seleção

das SDs a serem lidas nos capítulos de análise. Ressalta-se, pois, que esse processo de

organização do corpus é incompleto até que se finalize a pesquisa, uma vez que dá

paulatinamente ao processo de interpretação. Mudanças significativas quanto às SDs a

serem tomadas como exemplares no processo de leitura sempre podem ocorrer, pois

SDs escolhidas de início podem vir a ser descartadas como não tão pregnantes para o

tratamento do tema em foco, ao passo que outras podem vir a ser incluídas no corpus.

O terceiro capítulo é composto pelo referencial teórico. Nele, revisitam-se os

conceitos de formação discursiva, interdiscurso, interincompreensão, tradução,

simulacro, polêmica e ethos discursivo, tal como concebidos na abordagem que

Dominique Maingueneau faz da análise de discurso.

O quarto capítulo inicia o processo de análise discursiva do corpus, nucleado

pelo texto O Dialeto Caipira (1921), o qual é acompanhado de outras SDs que se

relacionam com a temática principal do texto. Nele, os enunciados são lidos

principalmente com base nos conceitos de interdiscurso e seus correlatos

6

(interincompreensão, polêmica, tradução, simulacro), buscando-se perfilar a presença do

Outro no mesmo, ou seja, a heterogeneidade constitutiva e a polêmica que permeiam o

discurso lobateano.

O quinto capítulo também é composto por análises discursivas que partem de um

texto central, Dicionário Brasileiro (1921), e de SDs que se encontram em relação

parafrástica com ele. Numa primeira seção, os conceitos básicos para a análise

empreendida são também o de interdiscurso e o de polêmica. Na segunda seção desse

mesmo capítulo, estuda-se o ethos do enunciador com o auxílio do conceito de derrisão.

Portanto, nas páginas que seguem, esboça-se a aplicação de um conjunto de

conceitos da análise de discurso francesa na leitura de um determinado corpus de SDs,

com o intuito de observar sua potencialidade na interpretação dos sentidos constituídos

pelos enunciados perscrutados. Ademais, esta investigação pretende fazer coro aos

estudos linguísticos que se preocupam em entender as variações e as mudanças que

ocorrem em determinado idioma, reconhecendo que a diversidade e a heterogeneidade

são inalienáveis das línguas vivas. Variar e mudar são processos naturais para as línguas

vivas. Porém, ainda hoje, quase dois séculos depois dos românticos e quase um século

depois dos modernistas, os puristas de plantão veem tais processos como corrupção da

boa língua. Continua a ter razão Lobato, ao dizer que o brasileiro anda de marcha ré.

7

CAPÍTULO I

MONTEIRO LOBATO: UM SUJEITO INSURRETO

O homem civilizado é um puro e simples produto da

educação. Só a educação amansa, socializa e

internacionaliza. (LOBATO, [1940] 2009, p. 234)

Homem de Letras, de muitas histórias e facetas, José Bento Monteiro Lobato

destaca-se entre as grandes personalidades brasileiras como uma figura de opiniões

contundentes em quaisquer situações ou a respeito de quaisquer assuntos. Nasceu em

Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882, e em sua homenagem este dia é hoje o dia

da literatura infantil. Filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusto Lobato,

seu nome verdadeiro era José Renato Monteiro Lobato, mas, em 1893, preferiu adotar o

nome do pai para poder usar uma bengala que lhe pertencera e trazia inscrita no punho

as iniciais JBML.

Lobato foi alfabetizado pela mãe. Seu avô, o Visconde de Tremembé, possuía

uma vasta biblioteca com obras infantis, as quais Lobato, ainda criança, leu em sua

totalidade. Estudou em Taubaté até os 13 anos, depois, como interno, continuou os

estudos no Instituto de Ciências e Letras de São Paulo. Ainda muito cedo, aos 16 anos,

perdeu o pai e logo depois, aos 17, a mãe. A partir de então, sua tutela ficou a cargo do

avô materno, o Visconde de Tremembé. Concluiu o curso secundário em Taubaté e

iniciou os preparatórios para a faculdade de Direito em São Paulo, por imposição do

avô. Por sua vontade, Lobato teria feito faculdade de Belas-Artes, como comenta em

várias oportunidades. O gosto pelas artes o levou a desenhar, principalmente caricaturas

e, ainda, a fotografar, sendo que muitos desses trabalhos foram publicados

posteriormente.

Desde cedo, era causador de polêmicas. Criado em família católica, escandalizou

a todos quando se recusou categoricamente a fazer primeira comunhão. Também o

discurso de formatura, proferido na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,

estremeceu os presentes: suas palavras foram de tal modo críticas e violentas que alguns

convidados, padres, bispos e professores, retiraram-se da solenidade por se sentirem

insultados. O tom de insurreição com que se comunicava parecia não ser uma escolha

sua, mas algo que jorrava de seu ser e personalidade extremamente fortes.

8

Ainda na faculdade, reunia-se com os amigos escritores e artistas em uma casa

que denominaram de Minarete, local de grandes proezas juvenis e de muitos artigos,

agrupados, posteriormente, na obra Literatura do Minarete. A cada publicação, era um

novo escândalo. Os temas favoritos do círculo eram a vida acadêmica e a república onde

viviam os jovens autores.

Depois de formado, Lobato foi promotor em Areias, cidade assim descrita em

carta a seu amigo Godofredo Rangel com quem se correspondeu ativamente por quatro

décadas (1903-1943): “Areias, Rangel! Isto dá um livro a Euclides. Areias, tipo da ex-

cidade, de majestade decaída. Areias vive hoje do que Areias foi” (1911, p. 315). Para

Lobato, sua vida naquele local era sinônimo de tédio. Aborrecido com a cidade e com

os afazeres jurídicos, passou a dedicar-se mais a leituras e a escrever. E, em uma carta

escrita à noiva Purezinha, diz: “Que grande coisa, a literatura! Sem ela minha vida aqui

conduziria irremissivelmente ao suicídio” (LOBATO, [1918] 2011, p. 136).

Em 1911, com a morte do avô, mudou-se para a fazenda que dele herdara,

localizada em Buquira. Lá, gestou o personagem que viria a se tornar símbolo nacional:

o Jeca Tatu. No ano seguinte, casou-se com Maria Pureza da Natividade. Do casamento

vieram os quatro filhos: Edgar, Guilherme, Marta e Rute.

Durante o tempo em que morou na fazenda, começou a florescer a ideia de criar

fábulas para as crianças brasileiras, uma vez que, na sua visão, havia uma escassez de

bons textos para esse público leitor. Pensava em histórias com bichos nacionais e não

exóticos, imaginava histórias que poderiam acontecer na imaginação ou realidade de

qualquer criança que compartilhasse a experiência de viver em um sítio, por exemplo.

Em carta ao amigo Rangel, fez menção a essa carência: “As fábulas em português, que

conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato –

espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada.”

(LOBATO, [1916] 2010, p. 370)

Apesar de as opiniões sobre Lobato se polarizarem entre vê-lo como deus ou

como diabo, sem dúvida, ele foi um intelectual de reconhecida atuação em diversas

áreas, tendo contribuído grandemente para o desenvolvimento da inteligência bem como

das artes brasileiras na primeira metade do Século XX. Dentre as muitas ocupações

exercidas, ele foi fazendeiro, editor, crítico de arte, jornalista/publicista, escritor literário

e não-literário. Em certo momento de sua vida, investiu em petróleo e ferro, tornando-se

também um homem de negócios. Contudo, em qualquer ocasião, era um defensor da

liberdade do pensamento e da expressão, condição para que o país tivesse identidade

9

própria como os ingleses, por exemplo: “O hábito de ter ideias próprias faz da Inglaterra

o que a Inglaterra é. O hábito brasileiro de aceitar por comodismo ou preguiça, ideias

alheias não me parece que esteja fazendo grande coisa deste país.” ([1927] 2008, p.26)

Sempre teve em vista o desenvolvimento do Brasil e acreditava que a literatura

pudesse colaborar nessa empreitada. Por isso, categorizava os escritores como

necessários, pois, por meio deles, o país poderia ser revelado aos seus habitantes.

Contudo, alguns escritores eram considerados inúteis por Monteiro Lobato, porque

somente se ocupavam de questões nacionalmente irrelevantes.

Atualmente, quando se fala em Monteiro Lobato, logo vem à mente o pai de

Emília e as numerosas peripécias vividas pela turma do Sítio do Pica-pau Amarelo, sua

obra mais difundida na mídia e à qual grande parte dos leitores brasileiros já teve

acesso. Entretanto, a obra desse autor vai muito além de sua produção no campo da

literatura infantil. Lobato compõe o rol de escritores mais críticos sobre os assuntos

relacionados à nacionalidade. Suas obras adultas representam uma quebra no padrão

literário brasileiro. Em Urupês, escancara à população em geral problemas nacionais

que até então eram restritos aos intelectuais e os discute abrangentemente. Inspirado

pelas pesquisas dos médicos sanitaristas que observavam grande miséria, desnutrição e

moléstias assolando o povo brasileiro, Lobato criou Jeca Tatu, um de seus mais

conhecidos personagens. Desmistificando o herói indígena, que até então prevalecia

como ideia romântica, Lobato demonstrou que o estereótipo do brasileiro era o do

caipira – Jeca Tatu. Apareceu, pela primeira vez, na compilação de contos Urupês, mas

inspirou e participou de muitas outras histórias. Esse personagem é bastante

representativo das mazelas nacionais. Era um caboclo pobre, pálido, magro e amarelo

que vivia numa casinha de sapé, na zona rural. Um dos traços mais marcantes da figura

é que ele passava seus dias de cócoras, fumando cigarros de palha. Extremamente

preguiçoso, não cultivava horta e raramente plantava alguma roça. Às vezes pescava ou

caçava. Dizia que as coisas “não pagavam a pena” e por isso nada realizava, apenas

bebia pinga. Criava um ou outro porco e meia dúzia de galinhas, mas como não os

alimentava ou dedicava qualquer cuidado, os bichos pouco ou nada produziam. Até

mesmo o cachorro de Jeca vivia com bernes que ele não tirava por desânimo. Até que

um dia veio um médico e verificou que Jeca sofria de Amarelão, passou algumas

medicações e orientações, depois disso, Jeca se curou e prosperou.

Jeca simboliza o caipira abandonado pelo poder público às doenças e à

indigência. Em virtude desse personagem, lançou-se uma vigorosa campanha

10

jornalística em favor do saneamento. O personagem denunciava as feridas nacionais.

Instigava a crítica contra os falsos patriotas e contra os políticos que ignoravam a

precária situação brasileira.

A campanha de Lobato a favor do saneamento nacional acabou forçando o

governo a dar atenção ao problema sanitário. Deflagrou-se, em São Paulo, uma

campanha de saneamento, sob o comando de Arthur Neiva. O código sanitário foi

remodelado e transformado em lei. Os artigos gerados por essa questão foram reunidos

no livro O problema vital.

Até mesmo para explicar traços da fala brasileira, Lobato recorria ao espírito do

Jeca Tatu: “O pobre jeca, sempre de estômago vazio e na embira, forçado a levar ao

máximo de suas consequências a lei do menor esforço, suprimiu o inútil “u” do “olhou”

e dispensou a variação pronominal “mim”, já que só com o pronome “eu” ele (e todo

mundo) se arranja perfeitamente bem”. (LOBATO, [1940] 2009, p.44)

Ainda que não fosse classificado como escritor do modernismo, visto seu

epigramático artigo sobre Anita Malfatti, intitulado Paranoia ou mistificação, no qual

se posicionava contrariamente à arte moderna, Lobato estava constantemente

preocupado com os problemas brasileiros abordados pelo movimento modernista, como

a questão da construção da identidade nacional, com a qual sempre esteve às voltas na

sua produção literária ou jornalística.

Depois de escrever Velha praga e Urupês, o escritor estava se firmando como

escritor - publicista. Suas ideias em torno dos problemas nacionais instigavam debates e

discussões, direcionando a sociedade a desvendar a realidade brasileira até então

desconhecida e a qual a intelectualidade e figuras importantes da época insistiam em

ignorar.

O espírito garrido do escritor confundia-se com o do jornalista. Certo de que

atingiria a sociedade, Lobato lançava mão de todos os meios de comunicação da época

– o livro, o jornal e a revista – numa tentativa veemente de despertar a consciência

nacional e mudar os padrões comportamentais da coletividade. Tratava-se de um

homem que não media as palavras, ou ao contrário, media-as tão bem que sabia o

alcance que elas teriam. Sempre atuou no âmago das questões de maneira firme e

decidida.

Em 1918, compra ativos da Revista do Brasil, veículo no qual já publicava há

algum tempo. Nessa revista, investe em propaganda e começa a publicar pequenos

anúncios de livros que ainda iria lançar. Fazia sempre questão de frisar que a revista

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acolheria os novos. Nos editoriais, havia um espaço denominado “O momento”, onde

circulavam os assuntos de maior interesse coletivo, nacionais ou internacionais, além de

questões econômicas. Formou muitas empresas até abrir sua própria editora.

Essa iniciativa empresarial de Lobato foi muito importante para o Brasil, porque,

até então, havia cerca de vinte editoras no país, segundo ele mesmo revela em uma de

suas entrevistas, e, ainda assim, não eram editoras de grande porte. Por esse motivo, a

Monteiro Lobato & Cia ficou conhecida como a primeira grande editora nacional.

Em 1920, a empresa Monteiro Lobato & Cia estava muito bem. Conciliando

com as atividades da editora e da Revista Brasil, Lobato recebia seus companheiros e

costumava jogar xadrez. Em um desses encontros, ele ouve uma história de Hilário

Tácito – autor de Madame Pommery, romance editado por Lobato – em que um

peixinho desaprendia a nadar e morria afogado; a história instigou o escritor a criar um

conto com este motivo intitulado A história do peixinho que morreu afogado. Inspirado,

reaviva memórias da infância vivida na zona rural e lança a primeira edição de A

menina do nariz arrebitado, obra em que aparece, pela primeira vez, a personagem mais

conhecida do autor, uma espevitada bonequinha de pano falante: a Emília. Muitos

dizem que a personalidade forte e questionadora da boneca é um reflexo autobiográfico

do próprio Lobato.

Os textos escritos para as crianças utilizavam uma linguagem simples mas

comovente, eram repletos de situações onde imperavam a criatividade e a livre

imaginação. Permeados de seres mágicos e situações inquietantes com muitas

referências nacionais, os livros infantis despertavam a curiosidade e faziam grande

sucesso, como ainda hoje.

Pretendendo atingir o maior número possível de leitores, Lobato distribuiu

gratuitamente quinhentos exemplares para todos os grupos e escolas públicas de São

Paulo. O livro A menina do nariz arrebitado foi reeditado e virou Narizinho Arrebitado,

sendo adotado pelo governo de São Paulo para uso no segundo ano das escolas públicas.

Narizinho alcançou a tiragem recorde de 50.500 exemplares. Diante do sucesso, Lobato

decidiu se dedicar à literatura infantil e revolucionou o mercado editorial infantil,

contribuindo para a formação do pensamento e identidade cultural nacional.

Em 1921, a Monteiro Lobato & Cia estava em franco crescimento. Lobato

trabalhava com representantes que circulavam por todo o país, coisa que os outros

donos de editoras não faziam. No ano em questão, contava com mais de trezentos

vendedores que alcançavam as áreas mais remotas do Brasil. Dessa maneira, a saída dos

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livros era constantemente alavancada. Outra estratégia usada era distribuir alguns

exemplares gratuitamente nas escolas e ir disseminando aos poucos o gosto pelas obras.

Uma das maiores mudanças no escopo da criação do objeto livro foi a

substituição das nada interessantes capas tipográficas por capas desenhadas. Visando

conquistar cada vez mais leitores, contratou artistas que ilustravam as capas, deixando-

as atraentes para o consumidor.

A editora ia muito bem, progredia a olhos vistos. Então, Lobato decidiu investir

em maquinário para ampliar os negócios. Esse investimento o levou à contração de

dívidas altas, o que não seria problema, considerando seu sucesso como editor. Mas

uma grande seca acometeu São Paulo e a cidade teve que racionar energia elétrica e,

nessa época, o maquinário só podia trabalhar dois dias por semana, diminuindo

consideravelmente a fabricação de livros e resultando em prejuízo atrás de prejuízo. A

falência foi assinada em 1925. Entretanto, o empreendedorismo aflorado fez com que

Lobato logo abrisse a Cia. Editora Nacional.

Nas suas obras destinadas aos adultos, principalmente, havia sempre uma crítica

a respeito de questões nacionais. Aparentemente, a ideia não era negar o elemento

estrangeiro, tampouco reduzir sua qualidade ou importância, mas, sim, valorizar o

nacional, estimular estudos sobre o país, com o objetivo de revitalizar o imenso

potencial artístico e intelectual que ele vislumbrava entre os brasileiros.

Lobato estava sempre presente nos debates sobre os problemas nacionais e

opinava sobre os assuntos que afetavam o país. Assumindo essa postura, assinou alguns

documentos da Liga de Defesa Nacional. Essa liga, criada em 1916, no Rio de Janeiro,

por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon, visava estimular o patriotismo,

propagar a educação, além da instrução militar e cívica, também se preocupava com

temas como o trabalho, a defesa da paz e da liberdade. Então, mesmo sem fazer parte

oficialmente dessa Liga, Lobato compartilhava de muitos de seus ideais, deixando

registros dessa participação nos documentos oficiais da Liga.

Desde cedo, a relação de Monteiro Lobato com a língua era inquietante. Conta ele

que, no ano de 1895, aos 14 anos, foi reprovado em uma prova oral de Português. Este

acontecimento foi marcante e pode ter sido o estalo que desencadeou uma implicância

frequente de Lobato com a gramática e, evidentemente, com os gramáticos. Em suas

cartas a Godofredo Rangel, publicadas em A barca de Gleyre, é comum pedir para que

o amigo lhe corrigisse algum texto ou que melhorasse a colocação pronominal, já que,

13

de suas próprias impressões, não se considerava apto para manejar certas regras da

língua portuguesa:

De gramática guardo a memória dos maus meses em que menino passei

decorando, sem nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva.

[...] E entreguei-me a aprender, em vez de gramática, língua – lendo os que

a têm e ouvindo os que falam expressivamente. (LOBATO, [1915] 2010,

p.329)

Essa relação controversa com a gramática se reflete diretamente em muitos de

seus textos, a exemplo de O colocador de Pronomes e Emília no país da Gramática.

Nesse último, vemos Lobato batendo no passadismo gramatical e defendendo, como

natural, a mudança linguística:

Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu

tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a

língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo

aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer

uma coisa aqui dizem outra.

— Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha

— concluiu Narizinho.— Por quê? Ambas têm o direito de falar como

quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua,

sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se

não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra — as

necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que

emigra a adaptar-se à sua nova pátria. A língua desta cidade está ficando

um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar

tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão

ver. (LOBATO, [1934] 1984, p.91)

Mesmo se tratando de uma obra, supostamente, de literatura infantil, Lobato nela

afirma sua posição predominantemente separatista acerca do português brasileiro em

relação ao português lusitano.

É possível que também seja fruto da frustração de ser reprovado no exame de

português, a meticulosidade com que Lobato tratava dos textos: reescrevia-os muitas

vezes, tantas quantas acreditasse fossem necessárias e, ao enviá-los para a publicação,

fazia numerosas recomendações aos tipógrafos e editores para que não alterassem nada,

ortográfica ou gramaticalmente. A carta dirigida a Bruno Di Tolla, chefe das oficinas da

empresa gráfica da “Revista dos Tribunais”, exemplifica muito bem a diligência com

que acompanhava a edição de suas obras:

Meu caro Bruno:

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É favor avisar aos linotipistas que o autor deste livro sou eu, e não eles, nem o

Capanema, nem aqueles cretinos da Academia de Letras, e mais os m.... que

fazem reformas ortográficas e c.... em cima de quase todas as palavras as b....

que eles chamam “acentos”e só os cretinos iguais a eles aceitam. O resultado

dessa política acentista dos senhores compositores é a demora no trabalho,

imposta pela retirada de todos os acentos, que não figuram nos originais e que

eles, de medo do governo vão botando. Isso redunda em prejuízo para a

oficina e redobro de trabalho para mim. Porque eu não transijo, e por mais

“à” com acento agudo, antigo, clássico e certo, e por mais “êle" e “êsse" que

apareçam nas provas, eu não adiro e corto os acentos por mais trabalho que

isso me dê. Peço pois ao amigo Bruno que fale com esses homens e

convença-os de que o autor do livro sou eu: e ou o livro sai com a minha

ortografia ou não sai. Hei de morrer sem concordar com os imbecilissimos

reformadores ortográficos que fazem de cada palavra um pinico. (LOBATO,

s/d apud MÁXIMO, 2004, p.23)

Mesmo bem antes de começar a escrever para crianças, Lobato já discutia sobre

as variações linguísticas e defendia que a linguagem literária fosse mais acessível aos

leitores. Sua crença nessa ideia se justificava por acreditar que só assim os textos

poderiam atingir um público maior. No trecho seguinte de uma carta trocada com

Rangel, publicada em A barca de Gleyre, a preocupação com a adequação da linguagem

ao público infantil brasileiro é expressa com clareza: “Pobres crianças brasileiras! Que

traduções galegais! Temos que refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem. [...] Estou

precisando de um Dom Quixote para crianças, mais correntio e mais em língua da terra

que as edições do Garnier e dos portugueses”. (LOBATO, [1925] 2010, p. 499-500)

Esta preocupação com a compreensão e amplo acesso do idioma fez com que

Lobato fosse muito bem recebido por vários públicos, inclusive o mais modesto, e

proporcionou a expansão do mercado literário brasileiro.

No concernente a leituras que realizava, Lobato costumava documentar suas

opiniões e publicá-las como prefácios ou até mesmo discuti-las em cartas com amigos.

Em uma das cartas ao Godofredo Rangel, menciona Camilo Castelo Branco e o elogia

bastante. Chega a dizer que fazia a leitura desse autor para melhorar o próprio estilo:

“Saber a língua é ali. Camilo é a maior fonte, o maior chafariz moderno donde a língua

portuguesa brota mijadamente, saída inconscientemente, com a maior naturalidade

fisiológica”. (LOBATO, [1909] 2010, p. 208)

Ao prefaciar Éramos Seis da Sra. Leandro Dupré, Lobato avalia como positiva a

aproximação da língua falada e escrita e, consequentemente, o distanciamento gradativo

da escrita clássica do idioma lusitano. O trecho seguinte foi extraído desse prefácio,

publicado em Prefácios e Entrevistas:

15

[...] Quem fala no livro inteiro é a protagonista, a viúva, essa boa mulher

pensa e fala exatamente como todas as mulheres do seu tipo e da sua classe

social entre nós. Fala e pensa e age como milhões de heroínas do trabalho

caseiro e da criação dos filhos. E como fala uma criatura assim? Exatamente

como a autora a faz falar. A gramática por um lado e a viúva por outro. [...] E

a conclusão a que cheguei aqui deixo para meditação do Edgar Cavalheiro e

outros críticos. Parece que o segredo de escrever e ser lido está em duas coisas

– ter talento de verdade e escrever com a maior aproximação possível da

língua falada, sem perder, portanto, nenhum dos farelinhos ou sujeirinhas da

vida, pois é aí que se escondem as vitaminas produtoras do mistério e

perturbador ‘quê’ das verdadeiras obras de arte. (LOBATO, [1940] 2009, p.

60-62)

Nessa mesma obra que reúne muitos escritos do autor em estudo, Lobato

prefacia o livro de Nhô Bento (poeta do Vale do Paraíba) e mais uma vez expõe seus

pensamentos sobre a linguagem e a língua:

Devemos fazer a gramática da interessantíssima língua do jeca como os

franceses fizeram a gramática da língua de “oc”e devemos ensinar essa

gramática nas escolas, lado a lado com a gramática portuguesa, em vez de

torturar as pobres crianças com o terrível e inútil latim do senhor Capanema.

Ficaríamos assim educados em duas línguas, a geral, ou portuguesa, e uma

língua auxiliar, a do jeca. Que vantagem haveria nisso? Oh, grande: -

podermos falar gramaticalmente como os 15 milhões de jecas que há no

território brasileiro. (LOBATO, [1940] 2009, p.42)

No excerto supracitado, Lobato propõe que as variedades linguísticas sejam

estudadas na escola e nota que a maioria dos brasileiros se utiliza desse modo de falar

para comunicar-se, portanto, nada seria mais coerente que estudar a língua assim. Como

ilustração do tipo de linguagem que menciona Lobato no trecho acima, seguem alguns

versos de autoria de Nhô Bento:

Quem de tudo qué sabê

acaba, não sei pro quê,

maluco que inté dá medo

fazendo as conta nos dedo

sem nunca podê acertá. (...)

(NHÔ BENTO apud LOBATO, [1940] 2009, p. 44-45)

A relação de Lobato com a política, com a língua e até mesmo com as obras que

lê e escreve demonstra sempre, de maneira emblemática, sua mentalidade crítica e

personalidade forte. As ideias defendidas circulavam no Brasil em sua geração, geração

descontente com o quase nada que a inteligência brasileira havia conseguido fazer para

completar o processo de emancipação cultural do Brasil em relação a Portugal e Europa.

16

Contudo, não se pode deixar de observar que as ações e as atitudes de Lobato em

relação aos movimentos vanguardistas de sua época são contraditórias.

Apesar de ter sido, em muitos pontos, o precursor do Modernismo, a ele nunca

aderiu explicitamente. Ficou conhecido pela sua contenda com modernistas por causa

do artigo "A propósito da exposição Malfatti", em que critica a mostra de pintura

moderna da artista, que ele caracterizava de não nacional e de, mais uma vez, seguir as

tendências europeias.

O artigo intitulado Paranoia ou mistificação (1917), que integra a obra Ideias de

Jeca Tatu ([1919], 2008), configura-se como uma crítica corrosiva à obra de Anita

Malfatti. Nesse texto, Lobato começou tecendo elogios à artista: Anita possui “[...] um

talento vigoroso, fora do comum, [...] qualidades inatas, das mais fecundas na

construção de uma sólida individualidade artística.”, mas põe tudo a perder, deixando-se

influenciar pelas “extravagâncias de Picasso & Cia”. Ao fazer parte do modernismo,

colocaria:

[...] seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura [...]. Sejamos

sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de

outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não

havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas

caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma ideia, mas sim

desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador. (LOBATO,

[1919] 2008, pp.72-77)

Na leitura do artigo fica evidente que Lobato não censura Malfatti como má

artista, mas sim salienta o fato de que os artistas brasileiros estavam novamente

copiando as tendências artísticas da Europa. Os “ismos” eram escolas prontas e

acabadas que impediriam a emancipação artística nacional. A convivência lobateana

com os modernistas é conflituosa, suas críticas a Malfatti renderam-lhe maus olhares de

muitos participantes do movimento. Menotti del Picchia e Mário de Andrade acusavam

Lobato de ter um pensamento retrógrado e abjuravam-no na tentativa de desqualificá-lo

como crítico. Em contrapartida, Mario da Silva Brito, que o caracterizava como

carrasco de Malfatti, elogiava sua eloquência e originalidade crítica.

A postura lobateana em relação a qualquer arte era a mesma que mantinha em

relação à escrita, preferia sempre o nacional e prezava a simplicidade. E apesar de não

ter aderido deveras ao movimento moderno, era um representante iconoclasta e

sistemático desse programa em suas atitudes e ideias revolucionárias.

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E assim, Lobato acabou não participando da Semana de Arte Moderna, realizada

no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922. Mais tarde, publicou no

“Jornal da Manhã” que “se participasse da Semana, talvez me tivesse contaminado com

a inteligência manifestada. Preferi ficar na minha honesta burrice.”(AZEVEDO, 2001,

p. 170)

Todavia, é possível perceber que, no campo da ação e das ideias sociais,

econômicas, políticas, culturais e linguísticas, Lobato foi um dos praticantes mais

sistemáticos do programa modernista. Ele era naturalmente moderno. Ademais, nunca

perdeu o contato com os modernistas mais engajados, publicava sempre os textos do

movimento na “Revista Brasil”. Outras evidências desse envolvimento são: uma

prestigiada conferência que Oswald de Andrade fez em Paris - “Jeca Tatu na

Sorbonne”; também em Paris, Sergio Millet traduziu o conto de Lobato “O macaco que

se fez homem”. Outro registro é o artigo escrito por Lobato O nosso dualismo ([1933]

2008), que reforça a ideia a favor do experimentalismo das vanguardas, em oposição à

suposta postura que diziam ser adotada por ele:

Esta brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisa não é tal

movimento, vai desempenhar uma função muito séria em nossas letras. Vai

forçar-nos uma atenta revisão de valores e apressar o abandono de duas

coisas a que andamos aferrados: o espírito da literatura francesa e a língua

portuguesa de Portugal. (LOBATO, [1933] 2008 p. 16-17)

Este artigo virou polêmica e foi refutado por outros escritores da época, que

aderiam ao modernismo, movimento denominado no artigo supracitado de futurismo.

Entretanto, Oswald de Andrade, um dos líderes do movimento, entrou em defesa de

Lobato, fazendo com que, ao menos temporariamente, os ânimos se acalmassem. Entre

aproximações e recuos, a relação de Lobato com o modernismo, por vezes, era estreita

e, por vezes, distante, mas jamais indiferente. Por isso, duvida-se fortemente de que

tenha havido uma ruptura de Lobato com os modernistas bem como de que não tenha

havido interesse por parte dele pela experimentação formal desenvolvida pelo

movimento no campo artístico e literário.

Lobato, preocupado com o resgate das raízes autenticamente nacionais, em

1917, promoveu uma pesquisa convocando seus leitores a enviarem cartas com

narrativas (contos, causos) sobre Saci. Com a coleta feita por meio da pesquisa,

organizou e publicou o livro “Saci-Pererê: o resultado de um inquérito”, mantendo as

versões do conto tal como circulavam pelo país.

18

Muitos foram os projetos voltados para causas públicas nacionais nos quais

Lobato se engajou. Sua busca constante pela adoção de processos científicos em todos

os níveis de atividade humana foi balizada pelas ideias de Henry Ford. Com sua teoria

organizacional do trabalho, Ford representava para Lobato um caminho eficaz para

extinguir a miséria da face da terra. Para ele, o fordismo figurava como a realização

concreta de desenvolvimento para o país. Entretanto, pensava que o Brasil que, ainda,

tinha a Europa como modelo, não estava preparado para a racionalidade pragmática,

devendo ainda muito amadurecer antes de aderir ao que chamava de “solução

definitiva”.

Em 1926, lançou O choque, obra que esboçava um futuro que Lobato já

antecipava. Nele, apresentava engenhos semelhantes a naves espaciais e submarinos,

que seriam corriqueiros num cotidiano posterior. Outra curiosidade foi a previsão da

eleição de um presidente negro nos Estados Unidos. Criava-se, então, o

“porviroscópio”. Tratava-se de um artefato que captava o tempo, passado ou futuro, que

podia ser observado através de um globo de cristal. A ideia seria semelhante ao que se

tem disponível em uma tela de cinema ou de TV. Lobato também previu o uso de ondas

eletromagnéticas para a comunicação o que denominaria de “radio transporte”,

maquinando já o mundo informatizado atual. Discutiu estereótipos, fantasias do

inconsciente coletivo, questões sobre o feminismo, preconceitos raciais e sociais, além

de rever conceitos de dominação e liberdade.

Em 1927, nomeado por Washington Luís para ocupar interinamente o cargo de

adido comercial junto ao consulado brasileiro de Nova York, Lobato deixou a

Companhia Editorial Nacional e assumiu a incumbência com o propósito de facilitar o

comércio de produtos brasileiros pelas outras Américas. Na revolução de 30, Getúlio

Vargas demitiu os funcionários interinos e Lobato teve que deixar o cargo, entretanto,

não sem antes escrever uma longa carta ao chefe do país, na qual mencionou que os

principais problemas econômicos brasileiros relacionavam-se ao ferro, combustível e

trigo.

Mesmo destituído do cargo, Lobato não se rendeu, ficou nos Estados Unidos e

buscou estabelecer intercâmbio com a União Soviética, negociando com uma

corporação russa a permuta de petróleo já refinado por café, cacau, couro e borracha.

Sua iniciativa para implantar uma refinaria no Brasil não obteve sucesso.

Quando voltou ao Brasil, escreveu de novo a Getúlio, mas nunca obteve

resposta. Mesmo assim, estava empenhado em ampliar os negócios de ferro e petróleo

19

no Brasil. Por isso, dedicou-se à metalurgia, certo de que essa atividade poderia

transformar o Brasil em uma nação rica, produtiva e eficiente.

Lobato acreditava que tornaria seu país economicamente independente e

concentrou esforços para que o Brasil se desenvolvesse nesse sentido. Recebeu apoio da

Aliança Nacional Libertadora (ANL). Suas ideias foram ficando cada vez mais

populares e seu nome progressivamente mais ligado ao ferro e ao petróleo.

Mais uma vez, sua postura contundente o destacava, escrevia diversas cartas

denunciando o que considerava ser uma série de manobras prejudiciais à economia

nacional. Como incomodou demais, em janeiro de 1941, foi preso, no meio da

madrugada, levado abruptamente de sua casa para a Casa de Detenção de São Paulo,

onde foi impedido até mesmo de ter contato com outros presos. Ficou preso por três

dias e depois foi solto. Entretanto, por não calar suas ideias, fossem elas de encontro aos

poderosos ou não, e, também, pelo fato de não se dobrar diante de ideias que lhe

pareciam equivocadas, em março do mesmo ano, foi preso novamente. Ficaria preso por

seis meses. Todavia, um forte movimento se organizou para libertá-lo, incluindo

amigos, intelectuais e familiares. Finalmente, após três meses de detenção, libertam

Monteiro Lobato no meio da noite, sem alarde, assim como foi sua primeira prisão.

Mesmo com o indulto, Lobato era vigiado e seu livro Peter Pan foi questionado.

Tentava-se de todas as maneiras cercear as ideias de Lobato, ainda que fosse numa

história infantil já popularmente conhecida. Nessa época, passou a se dedicar ainda mais

aos textos infantis e, com frequência, recebia cartas de fãs de todas as idades, mas

costumava responder com mais prontidão às crianças.

Firmou-se como um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX e

esteve constantemente engajado em campanhas para que o Brasil trilhasse o caminho da

modernidade e se emancipasse de Portugal e da Europa.

Faleceu em São Paulo, no dia 4 de julho de 1948, aos 66 anos de idade, por

causa de um derrame.

No livro biográfico “Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia”, Azevedo brinda

seus leitores com uma autobiografia bem curtinha de Lobato:

Lobato por Lobato

Nasceu em Taubaté, aos 18 de abril de 1884 (na verdade 1882). Mamou até

87. Falou tarde, e ouviu, pela primeira vez aos 5 anos, um célebre ditado:

‘Cavalo pangaré/ Mulher que... em pé/ Gente de Taubaté/ Dominus libera

mé’.

Concordou.

20

Depois, teve caxumba aos 9 anos. Sarampo aos 10. Tosse comprida aos 11.

Primeiras espinhas aos 15.

Gostava de livros. Leu Carlos Magno e os doze pares de França, o Robson

Crusoé, e todo o Júlio Verne.

Metido em colégio, foi um aluno nem bom nem mau – apagado. Tomou

bomba em exame de português, dada pelo Freire. Insistiu. Formou-se em

Direito, com um simplesmente no 4º ano – merecidíssimo. Foi promotor em

Areias, mas não promoveu coisa nenhuma. Não tinha jeito para a chicana e

abandonou o anel de rubi (que nunca usou no dedo, aliás).

Fez-se fazendeiro. Gramou café a 4.200 a arroba e feijão a 4.000 o alqueire.

Convenceu-se a tempo que isso de ser produtor é sinônimo de ser imbecil e

mudou de classe. Passou ao paraíso dos intermediários. Fez-se negociante,

matriculadíssimo. Começou editando a si próprio e acabou editando aos

outros.

Escreveu umas tantas lorotas que se vendem - Urupês, Gênero de grande

saída, Cidades mortas, Ideias de Jeca Tatu, subprodutos, Problema vital,

Negrinha, Narizinho. Pretende publicar ainda um romance sensacional que

começa por um tiro:

- Pum! E o infame cai redondamente morto...

Nesse romance introduzirá uma novidade de grande alcance, qual seja, a de

suprimir todos os pedaços que o leitor pula.

Particularidades: não faz nem entende de versos, nem tentou o raid a Buenos

Aires.

Físico: Lindo!” (A novela semanal, São Paulo, n. 1, 2 maio, 1921)

(AZEVEDO, 2001, p. 17-18).

Eis aqui uma síntese modesta da história de um homem cuja personalidade

contestatória e fortíssima rompe com o que lhe impunha a sua realidade contemporânea.

Ele promoveu uma verdadeira revolução no mercado consumidor de literatura no Brasil,

por um lado, pela sua preocupação constante em abrasileirar e simplificar a linguagem

literária, aproximando-a da oralidade, e, por outro, pelas estratégias ousadas de que

lançava mão para fazer seus livros chegarem ao público leitor, como a distribuição

gratuita de uma primeira tiragem às escolas, para que, em seguida, fosse adotada. Sem

dúvida, Lobato foi um visionário, incluindo-se entre os homens que muito ampliaram os

horizontes do seu tempo.

21

CAPÍTULO II

NOTAS SOBRE O ARQUIVO DE MONTEIRO LOBATO E A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

Meu hábito em tudo é por de lado métodos e seguir

as intuições da veneta. Acho a veneta algo sério e

misterioso, Rangel. É como se uma força dentro de

nós cochichasse. (LOBATO, [1944] 2010, p. 301)

O estudo realizado nesta dissertação faz parte do projeto “Discursos sobre o

português brasileiro – do século XIX ao século XXI”. Esse projeto perscruta os sentidos

atribuídos à(s) variedade(s) brasileira(s) do português, investigando um corpus de textos

escritos por escritores, jornalistas, gramáticos, linguistas, homens de Letras em geral,

desde o século XIX, momento em que o nacionalismo romântico abre o debate acerca

de uma possível língua nacional, até o século XXI. Logicamente, o discurso sobre a

existência ou o desejo de uma língua brasileira nunca se fez sem a reação da ortodoxia a

defender a língua tal como herdada do passado lusitano quinhentista. Iniciado pelos

românticos, o debate experimentou certa retração durante o período parnasiano, mas foi

retomado com muita ênfase na virada do século XX, momento em que o modernismo

começou a entrar na cena literária. Especificamente, este trabalho vai se debruçar sobre

um conjunto de textos escritos por Monteiro Lobato, nas primeiras décadas do século

XX, sobre a questão da língua brasileira, ou seja, sobre a “brasilina”, para usar a

designação dada pelo próprio autor.

2.1 DO ARQUIVO

Como se constitui um corpus em análise de discurso e como se procede em uma

pesquisa como a aqui esboçada? Em primeiro lugar, é preciso considerar o campo

discursivo, neste caso o campo das Letras. Um analista nunca estuda a totalidade dos

discursos que compõe um campo, tendo em vista a complexidade das relações que os

enredam. Geralmente, o analista recorta do campo um espaço discursivo “[...]

constituído, no mínimo, por dois posicionamentos discursivos que mantenham relações

particularmente fortes” (MAINGUENEAU, 1997, p.16). Nesta investigação, recorta-se

do campo das Letras o espaço formado pelo discurso modernista sobre a língua

brasileira na sua relação com o discurso conservador, uma vez que o primeiro se

constitui no embate com o segundo, numa inextricável trama interdiscursiva.

22

Feito esse recorte, pode-se, então, pensar na constituição do corpus. Pêcheux

nomeia duas vias de construção do corpus: a via arquivista e a via experimental. O

arquivo é formado por documentos pertinentes, conservados e disponíveis sobre uma

questão (PÊCHEUX, 1994). Pela via experimental, os dados que constituem o corpus

são obtidos por meio de uma cenografia que põe os locutores em situação de teste. No

presente estudo, o corpus será montado com enunciados extraídos do arquivo de textos

que compõem a obra de Monteiro Lobato, tematizando a formação de uma suposta

língua brasileira. Entretanto, não se trata de tomar o arquivo como algo já dado, pois,

em análise de discurso, a constituição do corpus é balizada pelo gesto interpretativo do

pesquisador.

A noção de arquivo, tal como empregada na análise de discurso, foi cunhada

inicialmente por Foucault. Segundo o autor,

Operar com a noção de arquivo é, portanto, salientar que a análise

desenvolve-se pautada em um conjunto de enunciados efetivamente

produzidos, respondendo a um sistema de enunciabilidade “a lei do

que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados

como acontecimentos singulares”. (FOUCAULT, 1986, p.150)

Uma pesquisa de arquivo pode desvendar o a priori histórico das práticas

discursivas numa dada formação social, trazendo à tona “[...] as condições de

emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de

seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e

desaparecem” (GREGOLIN, 2004, p. 91). Nos termos de Judith Revel,

O arquivo representa, portanto, um conjunto dos discursos

efetivamente pronunciados numa dada época e que continuam a existir

através da história. Fazer a arqueologia dessa massa documentária é

buscar compreender suas regras, suas práticas, suas condições e seu

funcionamento. (REVEL, 2005, p.18)

É com base nessa visão que se buscou compreender os posicionamentos

discursivos de Monteiro Lobato em relação à polêmica acerca da existência de uma

língua nacional, brasileira, cuja memória discursiva começou a se formar no século

XIX, principalmente pela militância do escritor romântico José de Alencar. No que

tange a essa polêmica, Lobato assumiu posicionamentos diferentes, ao longo de sua

trajetória intelectual. A relação do autor com a língua sempre foi muito presente e muito

intensa, entretanto, os pensamentos foram mudando concomitantemente ao homem.

23

Revolvendo-se o arquivo lobateano, observa-se que suas primeiras

manifestações acerca da língua começam na década de 1900, nas cartas a Godofredo

Rangel. Nesse período, Lobato já demonstra certa aversão à gramática e, por várias

vezes, menciona nas cartas que não domina bem as regras gramaticais, principalmente

no que se refere aos pronomes e alguns outros detalhes do idioma. Entretanto, busca nos

clássicos portugueses, principalmente em Camilo Castelo Branco, modelos para

aperfeiçoar o trato com a língua: “Saber a língua é ali. Camilo é a maior fonte, o maior

chafariz moderno donde a língua portuguesa brota mijadamente, saída

inconscientemente, com a maior naturalidade fisiológica”. (LOBATO, [1909] 2010, p.

208).

Camilo Castelo Branco representava um modelo de boa escrita para Lobato, a

ponto de ele afirmar que se deixava “penetrar” e “ensaboar” “com as riquezas do maior

sabedor da língua d’quem e d’além mar, Algarves e Colônias”, que contrastava com

“[...] o atrevimento da filha bastarda que vingou vicejar nestas paragens, tomou-lhe o

nome e vive a dar-se como sua sucessora!” ([1910], 2010, p. 233). Até esse momento, o

escritor brasileiro valorizava o que era luso e via o português brasileiro como indigno de

ser considerado um filho legítimo; era, sim, um filho “bastardo”, uma espécie de

corrupção do original, uma cópia deformada. Em outra ocasião, referiu-se à dificuldade

que tinha para lidar com a “maldita língua”, que manejava “achavascadamente,

plebeiamente” ([1909] 2010, p. 222), termos que demonstram a relação de aliança,

ainda que tensa, com a norma portuguesa. Também confessava seu desejo de “[...] ter

uma horta de frases belamente pensadas e ditas em língua diversa da língua bunda.”

([1915] 2010, p. 297) que ia se apossando por inteiro da alma do brasileiro.

Embora nutrisse certa simpatia pela língua portuguesa d’além mar, que se

dispunha a aprender “lendo os que a têm e ouvindo os que falam expressivamente”,

sempre esconjurou a gramática que o martirizava desde os tempos de aluno: “De

gramática guardo a memória dos maus meses em que menino passei decorando, sem

nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva”([1915] 2010, p. 329). Seu

desprezo pela gramática, que tinha como algo inútil, certamente estava relacionado a

uma reprovação, em 1985, num exame de português.

A partir da metade da década de 1910 (1915 ou 1916), passa a defender a

coexistência de uma língua brasileira (língua nova) com a portuguesa (língua velha).

Por volta de 1917, já esboçava uma posição mais definida em relação à gramática,

continuava a afirmar que não conhecia a língua portuguesa e que nem tinha planos de

24

fazê-lo, já que, na sua visão, a extrema correção acabaria com a originalidade do texto.

Até mais ou menos 1920, preocupava-se com as regras, sempre as mencionava em suas

críticas, entretanto, aos poucos, iria se afastando, cada vez mais, dos modelos pré-

concebidos e das regras pré-estabelecidas para se expressar mais livremente e em

harmonia com a fala brasileira.

A partir do início da década de 20, passou a criticar veementemente os

gramáticos e seus simpatizantes e a defender ideia de que a língua corrente no Brasil

constituía um idioma à parte daquele de Portugal. É com este pensamento que, em 1921,

escreve os textos O dicionário Brasileiro e Dialeto Caipira, o primeiro comentando o

projeto de elaboração de um dicionário que vinha sendo desenvolvido pelo professor

Francisco de Assis Cintra e o segundo resenhando a obra de Amadeu Amaral. Os dois

textos constituem o núcleo desta dissertação.

Outro texto de bastante destaque nessa fase marcada pelo desejo de ruptura com

a norma lusitana é Emília no país da gramática, no qual, finalmente, Lobato entra em

contato com a gramática e tenta didatizar conceitos que considera fundamentais, mas

com uma visão que lembra a da sociolinguística de hoje.

Os textos analisados nesta dissertação correspondem ao momento em que

Monteiro Lobato defende com vigor a emancipação da variedade brasileira em relação à

norma lusa. A variedade brasileira deixa de ser vista como a filha bastarda para ser vista

como a língua nacional, posição que se remete à afirmação e à construção de uma

identidade cultural brasileira. Lobato sempre esteve às voltas com a luta pela formação

de uma identidade brasileira, colocando no centro de suas preocupações o idioma

nacional. Escrevia sobre este tema energicamente e propugnava pela liberdade do uso

da língua o mais eficazmente possível, visando à funcionalidade. Alardeava sua ojeriza

contra as normas gramaticais e criticava a língua lusa, nomeando-a de língua velha, que

deveria dar espaço ao que é novo, a língua brasileira.

Ao prefaciar a obra Éramos Seis, da Senhora Leandro Dupré, Lobato exorta seus

pensamentos sobre a correção exagerada e toda sua obsolescência, comparando o

excesso de correção ao beneficiamento do arroz, que deixa o grão bonito, polido,

branco, mas sem vitaminas. Assim, também o texto hiper corrigido seria sem vitaminas,

sem graça, não representaria os verdadeiros sentimentos e ideias de quem escreve,

resultando em algo sem vida, comparável a quem sofre de beribéri, uma doença

degenerativa que acomete àqueles que têm deficiência de vitamina B. “O excesso de

perfeição estilística faz na literatura o mesmo que as modernas máquinas de beneficiar

25

arroz fazem a esse grão. Essas máquinas deixam o arroz uma beleza, de tão branco e

polido. Transformam-no em bastõesinhos de nácar – mas quem se alimenta só com eles

acaba com beribéri” ([1940] 2009, p.56). Lobato elogiava obras como Éramos Seis e

Memórias de um Sargento de Mílícias, pois atendiam aos quesitos de simplicidade

requeridos por toda boa obra. Poderiam ser lidas e vistas com bons olhos por qualquer

escritor ou pela população em geral.

Sua longa história de implicâncias com os pronomes frutificou e rendeu o conto

O colocador de pronomes (1940), chamado por ele também de Conto Gramatical. Nele,

narra os infortúnios de Aldrovandro Cantagalo, um homem que tem toda sua história

modificada e regida pela gramática, e que, além disso, nasce e morre por colocações

indevidas de pronomes. Para expressar a insensatez do uso desmedido e irrestrito das

normas gramaticais sobre a colocação pronominal, faz com que o personagem se

envolva em acontecimentos catastróficos por causa da gramática: o pai teve de se casar

com uma mulher que não amava, em decorrência de um mau uso de pronome e a

colocação indevida de outro pronome precipitou a morte do personagem principal. Esse

texto representa uma pequena parcela do grande empenho realizado por Lobato, para

simplificar o idioma brasileiro e torná-lo cada vez mais útil e em sintonia com o povo

que dele fazia uso.

Há numerosos artigos, críticas e textos de outros gêneros nos quais Lobato

registra seu posicionamento separatista em relação à polêmica acerca do português do

Brasil. Insistia na adoção do padrão coloquial, ao invés do padrão cristalizado na

literatura. Todavia, nos seus últimos anos de vida, na década de 40, parece assumir uma

posição menos independentista, orientando os novos escritores para que cuidassem de

se adequar aos ditames da língua portuguesa.

2.2 DOS OBJETIVOS

Este trabalho tem por objetivo geral analisar os discursos em torno do português

brasileiro, sob as lentes da análise do discurso de vertente francesa, enfocando a

polêmica entre separatistas e legitimistas na obra de Monteiro Lobato. Pretende

apreender possíveis alinhamentos discursivos em relação à reivindicação de uma língua

nacional e pontuar os argumentos de que Lobato lançou mão para defender sua posição.

De modo mais específico, pretende-se analisar o discurso de Monteiro Lobato

acerca da(s) variedade(s) brasileira(s) do português, mais precisamente, acerca de uma

26

possível língua nacional; examinar os efeitos de sentidos que envolvem a alteridade

linguística do português em seu discurso; verificar a ideologia do movimento

modernista no que concerne ao projeto de valorização da cultura nacional,

especificamente no que se refere à constituição de uma língua nacional brasileira;

investigar o ethos do enunciador ao propor a nacionalização da língua; apreender, no

nível da superfície linguística, as marcas materiais da polêmica entre o discurso

separatista e legitimista referente à língua portuguesa; contribuir com a

discussão/reflexão acerca do português como uma língua heterogênea.

2.3 DA CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

A constituição do corpus discursivo a ser analisado nesta dissertação foi

precedida pela leitura de obras de Monteiro Lobato. Foram lidas 16 obras, mais o

capítulo a respeito de Monteiro Lobato da coletânea Português do Brasil (volume II),

organizada por Edith Pimentel Pinto (1981). Entre elas se encontravam diversos

gêneros: cartas, novelas, artigos, críticas, contos, relatos de pesquisa, prefácios e

entrevistas. Após essa leitura de reconhecimento da massa textual, foi realizada uma

leitura orientada para o recorte das sequências discursivas (SDs) que tematizassem,

direta ou indiretamente, a questão da língua nacional, tendo como pano de fundo a

formação de uma identidade cultural e linguística brasileira, independente de Portugal e

da Europa.

Os enunciados selecionados neste trabalho devem ser observados enquanto

acontecimentos discursivos, uma vez que serão “[...] retomados, desdobrados,

deslocados em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que eles convocam”

(Pechêux, 1997, p.19). Por isso, deve-se considerar a situação histórica de onde

emergiram tais enunciados, que não devem ser considerados como autônomos, pois

mantêm íntima relação com outros enunciados anteriores e posteriores a eles. Sobre esta

relação inevitável entre os enunciados, Foucault afirma:

Não há enunciado em geral, livre, neutro e independente, mas sempre um

enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando

um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele

se integra sempre em um jogo enunciativo. (FOUCAULT, 1986, p. 114).

Desse ponto de observação, entende-se que os enunciados devem ser

analisados em sua singularidade respectiva à situação em que estão inseridos e na

27

correlação que mantêm com outros enunciados num mesmo momento histórico. Estas

relações são estabelecidas dentro de um arquivo.

A seguir, apresentam-se tabelas que mostram a origem e a distribuição das SDs

que compõem corpus. Tais tabelas incluem: títulos dos textos de onde foram extraídas

as SDs; obra em que se encontram os textos; códigos criados para identificar texto e

obra ao serem citados e referidos nos capítulos de análise; o ano da primeira publicação

da obra respectiva e a edição usada nesta dissertação. As tabelas estão organizadas por

gênero e as obras relacionadas em ordem cronológica (em ordem temporal crescente).

Ao todo, são oito tabelas identificadas pelo gênero como: cartas, novelas, artigos,

críticas, contos, relatos de pesquisa, prefácios e entrevistas e, ainda, os textos

organizados por Edith Pimentel Pinto (1981), na coletânea Português do Brasil (volume

II).

Tabela 1 – CARTAS

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – Areias, 21 de

julho de 1907

A Barca de

Gleyre

BDG1 1944 2010

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – Areias, 31 de

julho de 1907

A Barca de

Gleyre

BDG2 1944 2010

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – São Paulo,

10 de Julho de 1908

A Barca de

Gleyre

BDG3 1944 2010

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – Areias, 1º de

novembro de 1908

A Barca de

Gleyre

BDG4 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel -

Areias, 10 de

dezembro de 1908

A Barca de

Gleyre

BDG5 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

A Barca de

Gleyre

BDG6 1944 2010

28

Areias, 1º de julho de

1909

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – Areias, 7 de

julho de 1909

A Barca de

Gleyre

BDG7 1944 2010

Correspondência

escrita a Godofredo

Rangel – Areias, 7 de

julho de 1909

A Barca de

Gleyre

BDG7 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Areias, 15 de setembro

de 1909

A Barca de

Gleyre

BDG8 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Areias, 12 de janeiro

de 1910

A Barca de

Gleyre

BDG9 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 30 de julho

de 1910

A Barca de

Gleyre

BDG10 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Caçapava, 16 de

janeiro de 1915

A Barca de

Gleyre

BDG11 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 30 de

setembro de 1915

A Barca de

Gleyre

BDG12 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 07 de

dezembro de 1915

A Barca de

Gleyre

BDG13 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 17 de março

de 1916

A Barca de

Gleyre

BDG14 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 15 de abril

de 1916

A Barca de

Gleyre

BDG15 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 16 de amior

de 1916

A Barca de

Gleyre

BDG16 1944 2010

29

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Fazenda, 11 de junho

de 1916

A Barca de

Gleyre

BDG17 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 28 de

dezembro de 1917

A Barca de

Gleyre

BDG18 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 20 de

fevereiro de 1919

A Barca de

Gleyre

BDG19 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 23 de

março de 1920

A Barca de

Gleyre

BDG20 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 11 de

janeiro de 1925

A Barca de

Gleyre

BDG21 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

São Paulo, 08 de

março de 1925

A Barca de

Gleyre

BDG22 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Rio de Janeiro, 08 de

novembro de 1925

A Barca de

Gleyre

BDG23 1944 2010

Correspondência a

Godofredo Rangel –

Rio de Janeiro, 08 de

julho de 1926

A Barca de

Gleyre

BDG24 1944 2010

Tabela 2– NOVELA

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

O queijo-de-minas ou

História de um nó-

cego

Literatura do

Minarete

LM1 1948 2008

30

Tabela 3– ARTIGOS E CRÍTICAS

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

A ação de Oswaldo

Cruz

Problema vital,

Jeca Tatu e

outros textos

PVJTOT1 1918 2010

Dezessete milhões de

opilados

Problema vital,

Jeca Tatu e

outros textos

PVJTOT2 1918 2010

Primeiro Passo Problema vital,

Jeca Tatu e

outros textos

PVJTOT3 1918 2010

A caricatura no Brasil Ideias de Jeca

Tatu

IJT1 1919 2008

A questão do estilo Ideias de Jeca

Tatu

IJT2 1919 2008

Estética oficial Ideias de Jeca

Tatu

IJT3 1919 2008

Paranoia ou

mistificação

Ideias de Jeca

Tatu

IJT4 1919 2008

Pedro Américo Ideias de Jeca

Tatu

IJT5 1919 2008

Almeida Júnior Ideias de Jeca

Tatu

IJT6 1919 2008

A poesia de Ricardo

Gonçalves

Ideias de Jeca

Tatu

IJT7 1919 2008

A estátua do Patriarca Ideias de Jeca

Tatu

IJT8 1919 2008

Curioso caso de

materialização

Ideias de Jeca

Tatu

IJT9 1919 2008

Rondônia Ideias de Jeca

Tatu

IJT10 1919 2008

Amor imortal Ideias de Jeca

Tatu

IJT11 1919 2008

A mata virgem, Mr.

Deibler e Zago

Ideias de Jeca

Tatu

IJT12 1919 2008

As quatro asneiras de

Brecheret

Ideias de Jeca

Tatu

IJT13 1919 2008

Arte Brasileira Ideias de Jeca

Tatu

IJT14 1919 2008

Um romancista

argentino

Ideias de Jeca

Tatu

IJT15 1919 2008

31

O vale do Paraíba –

diamante a lapidar

Ideias de Jeca

Tatu

IJT16 1919 2008

Cartas de Paris Ideias de Jeca

Tatu

IJT17 1919 2008

A conquista do Azoto Ideias de Jeca

Tatu

IJT18 1919 2008

O pai da guerra A onda verde OV1 1921 2008

Dialeto Caipira (texto

completo)3

A onda verde OV2 1921 2008

O Dicionário

Brasileiro (texto

completo)

A onda verde OV3 1921 2008

Molière na roça Mundo da Lua ML1 1923 2008

As locuções populares Mundo da Lua ML2 1923 2008

O pitoresco Mundo da Lua ML3 1923 2008

Da balbúrdia de ideias Mister Slang e

o Brasil

MSB1 1927 2008

Da proteção à

incompetência

Mister Slang e

o Brasil

MSB2 1927 2008

Da cabeça e da mão Mister Slang e

o Brasil

MSB3 1927 2008

Tempos de transição Na antevéspera NA1 1933 2008

O primeiro livro sobre

o Brasil

Na antevéspera NA2 1933 2008

O nosso dualismo Na antevéspera NA3 1933 2008

Euclides, um gênio

americano

Na antevéspera NA4 1933 2008

Uma visita a Guiomar

Novaes

Na antevéspera NA5 1933 2008

O carro de boi Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM1 1940 2010

A arte Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM2 1940 2010

A palavrosidade Fragmentos,

opiniões e

FOM3 1940 2010

3 O destaque dos textos “Dialeto Caipira” e “O Dicionário Brasileiro” deve-se ao fato de eles serem

nucleares aos capítulos 4 e 5 respectivamente.

32

miscelânea

Assessores Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM4 1940 2010

Traduções Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM5 1940 2010

O segredo de bem

escrever

Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM6 1940 2010

Pelo triângulo mineiro Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM7 1940 2010

Júlio César da Silva Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM8 1940 2010

Quem é esse Kipling? Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM9 1940 2010

Machado de Assis Fragmentos,

opiniões e

miscelânea

FOM10 1940 2010

Sara Bernhardt Literatura do

Minarete

LM2 1948 2008

A todo transe Literatura do

Minarete

LM3 1948 2008

Sobre poesia e poetas

Nós

Conferências,

artigos e

crônicas

CAC1 1959 2010

Sobre poesia e poetas

–Ricardo Gonçalves

Conferências,

artigos e

crônicas

CAC2 1959 2010

Saudação a Horácio

Quiroga

Conferências,

artigos e

crônicas

CAC3 1959 2010

Torpilhar Conferências,

artigos e

crônicas

CAC4 1959 2010

O teatro brasileiro

(Sequência discursiva

da p.91)

Conferências,

artigos e

crônicas

CAC5 1959 2010

O doutor Quirino Conferências,

artigos e

crônicas

CAC7 1959 2010

33

A evolução das ideias

argentinas

Conferências,

artigos e

crônicas

CAC8 1959 2010

A hora perigosa Conferências,

artigos e

crônicas

CAC9 1959 2010

Tabela 4 – CONTO

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

O Plágio (1905) Cidades Mortas CM 1919 2007

Marabá O macaco que

se fez homem

MQSFH 1923 2008

Emília no país da

gramática

Emília no país

da gramática

EPG1 1934 1984

Tabela 5 – RELATO DE PESQUISA

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

O Saci-Pererê:

resultado de um

inquérito

O Saci-Pererê:

resultado de um

inquérito

SPRI1 1918 2008

Tabela 6– PREFÁCIOS

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

O segredo de escrever

e ser lido

Prefácios e

entrevistas

PE1 1940 2009

Seleta de contos

brasileiros organizada

nos Estados Unidos

por Lee Hamilton

Prefácios e

entrevistas

PE2 1940 2009

34

Contas de Capiá, de

Nhô Bento

Prefácios e

entrevistas

PE3 1940 2009

Éramos seis, da

senhora Leandro

Dupré

Prefácios e

entrevistas

PE4 1940 2009

No silêncio...contos Conferências

Artigos e

crônicas

CAC10 1959 2010

Tabela 7 – ENTREVISTAS

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

Insultos ao Brasil Prefácios e

entrevistas

PE5 1940 2009

Tabela 8 - TEXTOS DA COLETÂNEA PORTUGUÊS BRASILEIRO ORGANIZADA

POR EDITH PINTO PIMENTEL (PB/EP)

TEXTO OBRA CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

O colocador de

pronomes

Contos pesados PB/EP –

CP

1940 1981

Língua Brasileira Revista

Academia

Paulista de

Letras

PB/EP -

RAPL

1941 1981

Carta a Francisco de

Campos – São Paulo,

05 de dezembro de

1937

Cartas

escolhidas

PB/EP –

CE

1961 1981

A gramática

portuguesa

Críticas e outras

notas

PB/EP –

COM

1965 1981

A seguir, representa-se a proporção de SDs de cada obra na constituição do corpus em

forma de gráfico.

35

PROPORÇÃO DE SDs EM RELAÇÃO AOS TEXTOS CONSTITUINTES DO CORPUS

Em concomitância com a leitura das obras, procedeu-se à digitação das SDs

recortadas para a composição do corpus e posterior descrição e interpretação. No

momento em que garimpávamos as SDs, dois textos saltaram à vista e foram tomados

como a base da análise pela sua relevância discursiva: Dialeto Caipira e O Dicionário

36

Brasileiro. As demais SDs serão mobilizadas em função da análise desses dois textos, à

medida que houver aproximação temática entre os textos completos e as SDs

As SDs, apesar de serem datadas de épocas diversas, pertencerem a gêneros

variados e serem materialmente diferentes umas das outras, mantêm a unidade temática

e são bastante semelhantes no que se refere ao posicionamento discursivo, formando

famílias parafrásticas, uma vez que, apesar da variação formal, mantêm estabilidade

referencial e regularidade enunciativa.

Destarte, é preciso lembrar a simultaneidade entre a descrição e a interpretação.

Entre esses dois procedimentos metodológicos, há não sucessão, mas dobra de um sobre

outro. Evitando praticar “uma higiene pedagógica do pensamento” (PÊCHEUX, 1990,

p. 51), à maneira da semântica estruturalista, a análise de discurso, confrontada com a

deriva do sentido, com a possibilidade do equívoco, em vista do enredamento com o

sentido outro, funciona como uma disciplina interpretativa.

O dispositivo de análise a ser mobilizado realçará a noção de interdiscurso e suas

correlatas: heterogeneidade, polêmica, interincompreensão e simulacro, uma vez que as

controvérsias estão muito presentes na enunciação lobateana. Além disso, também salta

aos olhos do analista a intensidade do ethos do enunciador, que será esquadrinhado na

companhia de Ruth Amossy (2011) e Salgado e Motta (2008) e com o apoio da noção

de derrisão (Baronas, 2005).

37

Capítulo III

BALIZAS TEÓRICAS

Um país se faz com homens e livros. (LOBATO,

1929)

Realiza-se, neste capítulo, uma retomada dos conceitos de formação discursiva e

interdiscurso, tal como pensados por Foucault e Pêcheux. Em seguida, revisitam-se os

estudos de Maingueneau (1984/2008a) acerca do primado do interdiscurso e da

polêmica como interincompreensão. Além desses conceitos, revisita-se, também, aquele

de ethos discursivo, tal como discutido por Maingueneau (1997; 2004; 2008; 2011),

Ruth Amossy (2011) e Salgado e Motta (2008).

3.1 DA FORMAÇÃO DISCURSIVA AO INTERDISCURSO

Atualmente, o discurso não é mais concebido como uma estrutura fechada em si

mesma, independente dos outros discursos circulantes, mas é visto como

constitutivamente heterogêneo. Para clarear essa mudança de perspectiva, refaz-se

rapidamente o percurso dos conceitos de formação discursiva e interdiscurso no quadro

da análise de discurso francesa. O conceito de formação discursiva (FD) foi proposto

por Foucault (1969) e ressignificado por Pêcheux (1975). Para Foucault, estudar as

formações discursivas equivalia a compreender o funcionamento dos enunciados:

Um enunciado pertence a uma formação discursiva, como uma frase

pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas

enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e

a de uma proposição pelas leis de uma lógica, a regularidade dos

enunciados é definida pela própria formação discursiva. A lei dos

enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma

única e mesma coisa; o que não é paradoxal, já que a formação discursiva

se caracteriza não por princípios de construção, mas por uma dispersão de

fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidade,

mas uma lei de coexistência, e já que os enunciados, em troca, não são

elementos intercambiáveis, mas conjuntos caracterizados por sua

modalidade de existência (FOUCAULT, [1969]1986, p.135).

Os enunciados pertenceriam a uma FD que constrangeria os sentidos a serem

postos em circulação numa dada formação sócio-histórica. Assim, a relação entre os

enunciados de uma mesma FD seria da ordem da paráfrase e da sinonímia, segundo “a

38

lei de coexistência”. Evidentemente, essa concepção acentua a singularidade de cada FD

e não seu enredamento com outras FDs.

Pêcheux recorre ao conceito de FD proposto por Foucault, contudo, desde o

princípio visualiza um enredamento de FDs. Em sua revisão conceitual, Pêcheux

apoiou-se no materialismo histórico e na teoria althusseriana da ideologia. Conforme

essa orientação filosófica, a formação discursiva precisava ser pensada na sua relação

necessária com a formação ideológica e a formação social.

Para ele, as representações sociais e os discursos seriam a expressão de

conjunturas ideológicas, que estariam diretamente ligadas a determinada formação

social num dado momento histórico. As condições de produção determinam quais

discursos podem ser produzidos e quem pode enunciá-los. Destarte, tendo em vista as

contradições que permeiam o tecido social, principalmente nas sociedades divididas em

classes, mas não apenas nelas, as FDs nunca se apresentam independentes uma das

outras. Daí Pêcheux (1997) se referir ao “todo complexo com dominante de formações

discursivas” que, por sua vez, se remete ao “todo complexo com dominante das

formações ideológicas”, ambos refletindo as relações de desigualdade-subordinação que

permeiam uma formação social dada. Contudo, a dependência dos discursos em relação

às ideologias não se mostra explicitamente, uma vez que

[...] toda formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que

nela se constitui, sua dependência com relação ao “todo complexo com

dominante” das formações discursivas, intrincado no complexo das

formações ideológicas... ([1975], 1997, p. 162)

A noção de “todo complexo com dominante de formações discursivas”

desemboca naturalmente naquela de “interdiscurso” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 162),

esmiuçada através das noções de “pré-construído” e “articulação” ou “discurso

transverso”. Por “pré-construído”, Pêcheux (1997, p. 164) designa “‘o sempre-já-aí da

interpelação ideológica que fornece a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da

universalidade”. Já por “articulação”, o autor designa o processo de incorporação-

dissimulação do pré-construído no fio do discurso pelo sujeito. Desde a sua proposição,

a noção de interdiscurso passa a ocupar um lugar central no campo da análise de

discurso.

Não sem razão, na obra Gênese dos discursos ([1984] 2008a), Dominique

Maingueneau propõe, como a primeira das sete hipóteses teórico-metodológicas por ele

formuladas, que “[...[ o interdiscurso tem precedência sobre o discurso” (p. 23). Em

39

decorrência disso, o discurso deve ser analisado como um “[...] espaço de trocas entre

vários discursos convenientemente escolhidos” (p. 23) e não como uma unidade

autônoma, que se constitui independentemente de outros dizeres com os quais

compartilham o espaço e estão em constante fricção.

Segundo Orlandi (2000), o interdiscurso é da ordem da memória. A autora

define o interdiscurso como “[...] o saber discursivo que torna possível todo dizer e que

retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando

cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2000, p. 31). Isso significa que os sentidos de

nossas palavras e formulações não estão nelas mesmas, mas no acontecimento da

retomada dos discursos que as empregaram, sob a forma do esquecimento. Em resumo,

“O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que

determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2000, p. 33).

3.2 DO PRIMADO DO INTERDISCURSO

Maingueneau ([1984] 2008a) recorre ao conceito de heterogeneidade

constitutiva (Authier-Revuz, 2004) para esmiuçar a hipótese do primado do

interdiscurso, postulando uma relação inextricável entre o Mesmo e o Outro. O autor

explora o conceito de interdiscurso tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de

vista metodológico, como uma ferramenta de análise. Contudo, subsumindo que o

conceito é grosseiro e vago, propõe a tríade – universo discursivo, campo discursivo,

espaço discursivo – para operacionalizá-lo. O termo “universo discursivo” designa

[...] o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem

numa conjuntura dada. Este universo discursivo representa necessariamente

um conjunto finito, mesmo que não possa ser apreendido em sua

globalidade. É de pouca utilidade para o analista e define apenas uma

extensão máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos domínios

susceptíveis de serem estudados, os “campos discursivos”.

(MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p.33)

Esta noção, de certo modo, corresponde ao que Pêcheux chamou de

interdiscurso ou “[...] todo complexo com dominante de formações discursivas [...] que

é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que [...] caracteriza o

complexo das formações ideológicas.” (Pêcheux, 1988, p. 162). Teoricamente, é

possível postular o conjunto dos discursos que circulam numa dada formação social

como o horizonte de que se parte, porém, metodologicamente, essa dimensão, pela sua

40

abrangência e dispersão, apresenta-se problemática. Então, Maingueneau visualiza, no

escopo do “universo discursivo, o “campo discursivo”, concebendo-o como:

[...] um conjunto de formações discursivas que se encontram em

concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do

universo discursivo. ‘Concorrência’ deve ser entendida da maneira mais

ampla; inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade

aparente etc. entre discursos que possuem a mesma função social e divergem

sobre o modo pelo qual ela deve ser preenchida. [...] Esse recorte em

‘campos’ não define zonas insulares; é apenas uma abstração necessária, que

deve permitir múltiplas redes de trocas. [...] Não é possível, pois, determinar

a priori as modalidades das relações entre as diversas formações discursivas

de um campo. É-se então conduzido a isolar, no campo, ‘espaços

discursivos’. (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 34).

É preciso lembrar que os “campos discursivos” não constituem ilhas no mar de

discursos que circulam numa conjuntura social dada, mas são eles que permitem ao

pesquisador formular hipóteses sobre a constituição de um discurso a partir do diálogo

com formações discursivas já existentes num campo específico. Assim, o campo

discursivo abarca os discursos que “conversam” entre si, como o político; o

educacional; o da saúde e assim por diante. Embora os campos não sejam

empiricamente apreensíveis, são um postulado necessário para apreender a rede

intersticial de trocas constitutivas de um discurso. Não é possível determinar todas as

relações discursivas nem todas as formações abarcadas por um campo discursivo, porém

é um construto analítico que permite a circunscrição do “espaço discursivo” a ser

recortado pelo pesquisador como objeto de análise. O autor entende que o “espaço

discursivo”

[...] delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas

formações discursivas que, supõe-se, mantêm relações privilegiadas, cruciais

para a compreensão dos discursos considerados. Este é, pois, definido a partir

de uma decisão do analista, em função de seus objetivos de pesquisa

(MAINGUENEAU, [1987]2009, p. 117).

Os “espaços discursivos” são visualizados/projetados/recortados pelo analista

em função de seu objeto/objetivo de investigação. Cabe ao analista aliar o conhecimento

de textos que possui ao saber histórico, para definir o espaço discursivo ao qual

restringirá sua pesquisa, podendo, à medida que a análise do corpus progride, confirmá-

lo ou refutá-lo.

Nesta dissertação, postula-se o campo discursivo das Letras, em meio ao qual se

circunscreve a relação polêmica entre modernos e conservadores no que tange à forma

41

de significar a variedade linguística brasileira e a formação de uma identidade nacional.

A porta de entrada para o exame dessa polêmica é a obra de Monteiro Lobato. Para

tatear as formações discursivas que interpelam Monteiro Lobato ao enunciar sua

posição sobre a existência/formação de uma possível língua brasileira, é necessário

levar em conta o tenso diálogo que ele mantinha com o discurso legitimista, alinhado

com o purismo da língua portuguesa. Assim, embora a obra-arquivo de que se extrairá o

corpus para estudo seja única, ela constitui um espaço discursivo atravessado por

diferentes posições ideológicas no que diz respeito ao estatuto da língua nacional: a

língua portuguesa apropriada e transformada a ponto de se tornar outra – a brasilina –

ou a língua portuguesa mantida inalterada tal como nos impuseram aqueles que nos

colonizaram o corpo e a alma.

Ao tratar do primado do interdiscurso, Mainguenau ([1984] 2008a, p. 36)

acrescenta que, para reconhecer este fenômeno, é fundamental que se “[...] construa um

sistema no qual a definição de rede semântica que circunscreve a especificidade de um

discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro.” Mais

uma vez, o autor enfatiza a ideia de que o discurso não é fechado em si mesmo, mas sim

um profícuo lugar de trocas.

Destarte, o espaço discursivo pode ser apreendido de duas formas: “[...] como

um modelo dissimétrico que permite descrever a constituição de um discurso, mas

também como modelo simétrico de interação conflituosa entre dois discursos para os

quais o outro representa totalmente ou em parte seu Outro” (MAINGUENEAU, [1984]

2008a, p. 40).

No âmbito do espaço discursivo, o Outro, traduzido pelo Mesmo, é virado pelo

avesso, passando a existir sob a forma da negação e do simulacro. Daí decorre a

concepção de que todo discurso é constitutivamente heterogêneo, concepção que

deságua no postulado da interincompreensão, da polêmica inerente ao processo de

tradução entre discursos de um mesmo espaço.

3.3 DA POLÊMICA COMO INTERINCOMPREENSÃO

Compreender o espaço discursivo como um enredamento interdiscursivo

significa realçar sua natureza heterogênea, seu atravessamento por diversas posições

enunciativas, que, segundo Maingueneau ([1984] 2008a, p. 99), levam à

42

“interincompreensão” generalizada, ao desentendimento recíproco entre o Mesmo e

Outro.

Todo discurso alinha-se com/defende uma perspectiva de significado,

reivindicando, de um lado, semas “positivos” e, de outro, rejeitando semas “negativos”,

que, no processo de tradução, são identificados com a posição do Outro. O processo de

tradução é, assim, constitutivo do discurso. O autor insiste que não se trata de tradução

de uma língua para outra, mais sim de uma FD para outra. Trata-se, sim, de “[...] um

mecanismo necessário e regular, ligado à constituição de formações discursivas que

remetem, para além delas mesmas, a descontinuidades sócio-históricas irredutíveis”

(MAINGUENEAU, [1984]2008a, p. 101). O discurso Outro está sempre presente no

discurso Mesmo, mas, para preservar sua identidade, o discurso Mesmo inclui o Outro

apenas na forma de simulacro.

O funcionamento do processo de interincompreensão e de tradução por meio de

simulacro encontra-se bem esmiuçado na leitura que Maingueneau faz do espaço

discursivo formado pelos discursos humanista devoto e jansenista que instituíram uma

forte polêmica no contexto francês da metade do século XVII acerca de como os fieis

deveriam se comportar para viver cristãmente. O autor pensa cada um desses discursos

como um modelo ou sistema de restrições semânticas globais. Propõe dois modelos

semânticos constituídos por semas positivos e negativos: Modelo 1 (M1),

correspondente ao discurso jansenista, e Modelo 2 (M2), correspondente ao discurso

humanista devoto, afirmando que as regras de interincompreensão

[...] derivam naturalmente da própria estrutura do modelo. De fato, quando

um enunciador humanista devoto, colocado em posição de discurso-agente,

traduzir em M2- as categorias de M1+, ele traduzirá a /consistência/ como

/dureza/, a /verticalidade/ como /tirania/, e assim por diante. ([1984] 2008a,

p. 103)

A retomada, ou melhor, a tradução do discurso jansenista, engendrado por M1,

pelo discurso humanista devoto, engendrado por M2, se faz pela grade dos semas

negativos, o que resulta na produção de simulacros. Maingueneau chama de discurso-

agente aquele que realiza a tradução e de discurso-paciente aquele que é alvo da

tradução. Na citação anterior, o discurso-agente seria o humanista devoto e o paciente, o

jansenista.

Outro exemplo seria o discurso da linguística em relação ao da gramática

tradicional. Quando a linguística insiste que “[...] as línguas são primeiro orais”, ela se

43

posiciona como discurso-agente em relação ao grafocentrismo da gramática que

funciona, nesse caso, como discurso-paciente. Isso quer dizer que “[...] a formação

discursiva não define um universo de sentido próprio, ela define igualmente seu modo

de coexistência com os outros discursos” (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 106).

Um tal enunciado polemiza com o discurso da gramática que afirma o primado da

escrita. Todavia, não se deve entender polêmica como controvérsia violenta, mas como

“a dupla interincompreensão que atravessa o espaço discursivo”, “uma troca regrada

(...) que cria situações irreversíveis, provoca múltiplos encadeamentos e enunciações

novas” (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 107-108).

Respondendo à crítica de que essa compreensão do conceito de polêmica poderia

esvaziar-lhe o sentido, Maingueneau propõe uma distinção entre um nível dialógico – o

da interação/heterogeneidade constitutiva – e um nível polêmico – o da

interação/heterogeneidade mostrada, mais e melhor dizendo, o da citação. No gesto de

polemizar, ou seja, de citar o discurso-paciente, mediante “fragmentos localizáveis”,

embute-se a ilusão de quem pensa estar incorporando o real do discurso do Outro ao

discurso do Mesmo, mas dele, efetivamente, só faz incorporar um simulacro. Além

disso, como afirma Maingueneau (2008), não é meramente o significado do fragmento

citado que é alvo de simulacro, mas todos os elementos da discursividade que compõem

o que ele chama de semântica global (as palavras, o estatuto do enunciador e do

enunciatário, o modo de enunciação, a intertextualidade etc.). Diz o autor:

[...] colocado em conflito com o corpo citante que o envolve, o elemento citado se

expulsa por si próprio, pelo simples fato de que ele se alimenta de um universo

semântico incompatível com aquele da enunciação que o envolve. A tradução do

Outro, a construção de um simulacro podem, pois, abranger todos os planos da

discursividade. (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 108).

Se todo discurso tem sua gênese ligada ao interdiscurso, isso quer dizer que ele é

necessariamente dividido e a única forma de perseguir o ideal (inatingível!) de

completude e fechamento é demarcar sua posição em relação ao Outro, mantendo-o à

distância, sob controle. Assim, sem a polêmica, “[..] a identidade do discurso correria o

risco de desfazer-se” (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 113). Diante da hipótese do

primado do interdiscurso sobre discurso e/ou formação discursiva, é-se levado a pensar

que

O discurso não escapa à polêmica tanto quanto não escapa à interdiscursividade

para constituir-se. Por toda sua existência, ele se obriga a esquecer que não nasce de

44

um retorno às coisas, mas da transformação de outros discursos ou que a polêmica é

tão estéril quanto inevitável, que a interincompreensão é insular, na medida da

incompreensão que supõe (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 117).

Numa visada cronológica, Maingueneau refere-se aos discursos constituintes de

um espaço discursivo como discurso primeiro e discurso segundo. Tendo em vista que o

discurso segundo se constitui a partir do primeiro, tende-se a pensar que apenas o

discurso primeiro pode funcionar como o Outro do discurso, numa relação dessimétrica.

Contudo, essa dessimetria, ligada à gênese do discurso segundo, não cobre todas as

formas de relação entre os discursos que compõem o espaço discursivo. Nem sempre o

discurso segundo golpeia mortalmente o discurso primeiro. Ele pode demorar a

sucumbir e até mesmo não desaparecer.

Na perspectiva da gênese, pode-se falar para o discurso segundo de uma fase de

constituição, em que a presença do Outro é ostensiva, e de uma fase de conservação, em

que a presença do Outro, embora não se dissipe totalmente, recua para a periferia.

Contudo, “[...] há um momento em que o sistema que funda a formação discursiva se

desfaz”, desaparecendo “[...] qualquer laço com o Outro constitutivo, mesmo quando se

continua a crer na lenda original, a inscrever-se em sua filiação” (MAINGUENEAU,

[1984] 2008a, p. 40- 41).

Assim, o funcionamento da polêmica é controverso, pois quem se põe a defender

uma perspectiva de significado como a única correta, verdadeira, para afastar a ameaça

representada pela perspectiva de significado defendida pelo Outro, precisa inseri-la em

seu sítio de sentidos e dominá-la, anulando-a por meio de simulacros.

O Mesmo não polemiza com os sentidos que lhe são estranhos, mas sim com

aqueles que teve de negar para se constituir. O gesto de exclusão é um gesto inconcluso,

pois aquilo que é negado continua a reaparecer de forma explícita ou velada, no fio do

discurso. Conclui Maingueneau que “[...] o Outro representa esse duplo cuja existência

afeta radicalmente o narcisismo do discurso, ao mesmo tempo em que lhe permite ter

acesso à existência.” (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 115).

As noções de interdiscurso, interincompreensão, tradução e simulacro solapam a

tese romântica e idealista – a da criação ex nihilo – sobre a gênese do discurso. Os

discursos não são criações independentes produzidas por gênios movidos pelo impulso

de significar o mundo adamicamente. Eles se constituem no interior do interdiscurso e

afirmam sua identidade pela negação do Outro. Orlandi (1990, p. 237) concorda com

Maingueneau que a interincompreensão seja “constitutiva dos discursos em suas

45

distâncias relativas às diferentes formações discursivas”. Contudo, ela percebe certo

viés psicologizante na leitura que esse autor faz da noção, a seu ver, incompatível com a

análise de discurso francesa que desacredita a ilusão subjetiva e sua correlata, a ilusão

referencial. Não são só os sentidos que não são os mesmos de uma formação discursiva

para outra, mas também o objeto de que se fala. Por exemplo, “[...] colonizador e

colonizado nunca estão falando da mesma coisa [...] O que é ‘natureza’ para o

brasileiro, não é o mesmo que natureza para os franceses principalmente quando se trata

da Amazônia” (ORLANDI, 1990, p.237 e 238).

3.4 O ETHOS: DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA À ANÁLISE DE DISCURSO

Toda enunciação implica a construção de imagens do enunciador. A cada vez

que alguém enuncia, além dos sentidos comunicados pelas palavras, deixa rastros, mais

ou menos explícitos, de suas crenças, de sua personalidade e de muitas outras

características de si, enquanto enunciador. A maneira de falar e se apresentar e o tom

utilizado muito contribuem para que o projeto discursivo seja bem sucedido. Para

designar esse aspecto da enunciação, a retórica clássica, desde Aristóteles, empregava o

termo ethos, que se incluía entre as provas da argumentação.

Assim, o ethos, para os contemporâneos de Aristóteles, designava a construção

de uma imagem que poderia garantir o sucesso da oratória. A noção estava, pois,

intimamente ligada à arte retórica e à persuasão. Era compreendida como aquilo que o

orador deixava transparecer de si, o caráter, aquilo que poderia ou não causar boa

impressão. O ethos se constituía não pelo esforço isolado do enunciador, mas em uma

interação constante com o interlocutor.

Aristóteles concebia a retórica a partir da trilogia logos, pathos e ethos, que, por

sua vez, vinculava-se à tríade pragmática: o orador, o ouvinte e o discurso, constituindo

as provas da argumentação. Discordando de seus contemporâneos que não viam no

ethos importância alguma para a persuasão, o filósofo grego defendia a ideia de que ele

era a mais importante das três provas.

O pathos estava ligado ao ouvinte e designava os sentimentos, as paixões nele

despertadas pelo orador. Tratava-se de orientar o discurso pelas reações do auditório,

buscando nele suscitar emoções específicas favoráveis à recepção das ideias

transmitidas.

46

O logos seria a própria demonstração, realizada mediante argumentos razoáveis,

que teriam de ser convincentes o bastante para fazer o auditório acreditar que a

perspectiva do orador é a correta. No caso dessa prova, os argumentos devem ser claros

e compreensíveis, a linguagem utilizada deve ser a mais lógica e rigorosa possível.

E o ethos corresponderia ao caráter, aos hábitos do orador, que validariam o

discurso. Essa prova centrava-se na figura do orador. Este, por seu turno, deveria ser a

pessoa mais apropriada para enunciar sobre determinado assunto, ser digno de

confiança; deveria revelar inteligência prática, um caráter virtuoso e boa vontade.

Assim, para Aristóteles, o ethos era constituído por meio de atitudes e virtudes, tais

como a benevolência, a equidade e, ainda, pela maneira de ser e pelos hábitos cotidianos

do orador.

Se o logos convencia por si só, o ethos e o pathos dependiam da situação

comunicativa e da atuação dos indivíduos nela envolvidos. Todavia, nenhum elemento

desse triângulo teórico se sobrepunha ao outro, uma vez que a relevância de cada um

deles, para a convicção ou persuasão, estava vinculada à situação de comunicação e ao

tipo de discurso a ser realizado.

Essa forma de conceber a retórica está ligada à concepção aristotélica de

homem. Para ele, o homem é um “animal (=> pathos) político (=> ethos) que tem a

capacidade de falar e pensar (=> logos). Sua héxis, sua maneira de experimentar e de

manifestar essas três dimensões de seu ser, constitui, portanto, seu ethos”. (EGGS,

2011, p. 42)

Contemporaneamente, o termo ethos foi reintroduzido nas ciências da linguagem

por meio da teoria polifônica da enunciação de Oswald Ducrot, também conhecida

como uma pragma-semântica, uma vez que concebe a fala como ação que visa a

mobilizar o outro. O autor busca relacionar o enunciado não com um sujeito falante

empírico, mas sim com a própria enunciação. Por isso, distingue o sujeito enunciador,

fonte do dizer, do sujeito empírico, o sujeito falante real. Divide, dessa maneira, o

locutor em “locutor-L” (ser da ficção discursiva) e “locutor-” (ser do mundo). Ele

observa que “[...] o ethos está ligado a L, o locutor como tal: é como origem da

enunciação que ele se vê investido de certos caracteres que, em contrapartida, tornam

essa enunciação aceitável ou recusável” (DUCROT, 1984, p. 179, apud AMOSSY,

2011 p. 15). Para ele, a postura do enunciador e o modo de expressão revelam mais do

que aquilo que ele de fato diz, pois o ethos materializa-se muito mais no nível do

mostrado do que no nível daquilo que é dito explicitamente. A despeito de haver uma

47

tentativa de gerenciamento da construção do ethos, há que se considerar que ele quase

sempre ultrapassa a intencionalidade dos falantes. Seria incoerente com os postulados

da análise de discurso pensar na subjetividade enunciativa como uma consciência

empírica.

Na análise do discurso, o interesse pelo ethos ressurgiu em Dominique

Maingueneau, mas fora do quadro estrito da argumentação. Em Gênese dos discursos

(1984), ao formular a tese de uma semântica global, dedica uma seção ao estatuto do

enunciador e do enunciatário. Segundo o autor, “[...] cada discurso define o estatuto que

o enunciador deve conferir-se e o que deve conferir a seu destinatário para legitimar seu

dizer” (MAINGUENEAU, [1984] 2008a, p. 87). Nessa obra, não alude explicitamente

ao ethos, mas sim ao status do enunciador. Já em Novas tendências em análise de

discurso ([1987] 1989, p. 45-50), ao tratar da cena enunciativa, inclui uma seção sobre o

ethos, afirmando que o discurso é inseparável de uma “voz” ou de um “tom”. O

conteúdo e o tom do dizer são como duas faces de uma mesma moeda, não há como

separá-las. Maingueneau recorre e ressignifica a noção de ethos movido por duas

razões:

Duas razões me levaram a recorrer à noção de ethos: seu laço crucial com a

reflexividade enunciativa e a relação entre corpo e discurso que ela implica. É

insuficiente ver a instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso

apenas como estatuto ou papel. Ela se manifesta também como “voz” e, além

disso, como “corpo enunciante”, historicamente especificado e inscrito em

uma situação, que sua enunciação ao mesmo tempo pressupõe e valida

progressivamente (MAINGUENEAU, [2005] 2011, p. 70).

Na retomada que faz da noção aristotélica de ethos, via leitura de Ducrot,

Maingueneau adverte que, no quadro da análise de discurso, é preciso fugir à tentação

de interpretar essa noção pelo viés psicologizante e voluntarista, atribuindo ao

enunciador a intenção de produzir determinados efeitos sobre o auditório. No universo

da análise de discurso francesa, os efeitos são produzidos não pelo enunciador, mas pela

formação discursiva que o interpela. Os efeitos “[...] se impõem àquele que, no seu

interior, ocupa um lugar de enunciação, fazendo parte integrante da formação

discursiva, ao mesmo título que as outras dimensões da discursividade”

(MAINGUENEAU, [1987] 1989, p. 45 e 46).

O linguista francês articula a noção de ethos à de cena enunciativa e,

particularmente, à de cenografia, deslocando-a de sua vinculação estrita com a

argumentação, como fazia a retórica clássica. Afirma ele que o ethos “[...] é parte

48

constitutiva da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o vocabulário ou os

modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de existência”

(MAINGUENEAU, [2005] 2011, p. 75). Uma cena da enunciação pode combinar três

cenas: cena englobante, cena genérica e cenografia, dentre as quais ao menos as duas

primeiras estão sempre presentes. A essas três cenas correspondem três modos de

interpelação do co-enunciador.

A “cena englobante” “corresponde ao tipo de discurso, ao seu estatuto

pragmático” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 115), definindo, sobremaneira, o modo de o

texto interpelar o leitor. Quem vive numa formação sócio-histórica como a nossa, se

receber um folheto na rua, é capaz de remetê-lo ao discurso religioso, político,

publicitário, jornalístico, literário ou qualquer outro tipo. Por exemplo, como leitores de

um folheto de teor publicitário, somos interpelados como consumidores possíveis.

A cena englobante é demasiado geral para dar conta de especificar as atividades

discursivas em que enunciador e co-enunciador se encontram engajados. “Vemo-nos

confrontados com gêneros de discurso particulares, com rituais sociolinguageiros que

definem várias cenas genéricas” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). A “cena genérica”,

conforme Possenti (2008, p. 204), implica um contexto específico que estabelece os

papeis dos participantes, o modo de inscrição no espaço e no tempo, o suporte material,

a finalidade etc. No caso de um folheto publicitário, um gênero textual específico,

concretizado por meio de um suporte textual (impresso) também específico, tem-se o

produtor (o enunciador) de determinadas mercadorias ou serviços tentando persuadir

uma classe determinada de consumidores (o co-enunciador) a adquirir seus produtos.

Os espaços da cena englobante e da cena genérica são relativamente estáveis e,

na maioria das vezes, apenas elas definem a cena da enunciação. Contudo, pode intervir

uma cena bastante específica e imprevisível – a cenografia – “[...] que não é imposta

pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas é instituída pelo próprio discurso”

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Ainda segundo o autor, “A escolha da cenografia

não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua cenografia, pretende

convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima” (2008b, p. 117).

Maingueneau (2001, p. 87 e 88) afirma que a cenografia implica um

enlaçamento paradoxal: a enunciação supõe uma certa cena que, efetivamente, só se

constitui e legitima à medida que ela própria vai se desenrolando. “Desse modo, a

cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela

legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la [...]”.

49

Uma cenografia pode incluir uma cena validada, quer dizer, uma cena instalada

na memória coletiva, que evoca determinados modos de ser e estar ligados às atividades

sociais. Uma cena validada funciona “[...] como um estereótipo autonomizado,

descontextualizado, disponível para reinvestimento em outros textos”

(MAINGUENEAU, 2001, p. 92), por ser compartilhada pelo enunciador e

coenunciador. Na cenografia, as figuras de enunciador e coenunciador encontram-se

associadas “[...] a uma cronografia (um momento) e a uma topografia (um lugar) das

quais supostamente o discurso surge” (MAINGUENEAU, [2005] 2011, p. 77). São,

pois, a cronografia e a topografia que alimentam tanto a cena enunciativa, especialmente

a cenografia, quanto o ethos do enunciador.

O ethos do enunciador constitui uma espécie de fiador do discurso. Para ilustrar

essa afirmação, recorre-se ao estudo realizado por Maingueneau acerca do discurso

religioso, envolvendo a polêmica entre humanistas devotos e jansenistas. Ele cita o livro

Introduction à la vie devote, de São Francisco de Sales, um humanista, para mostrar

como cenografia e ethos se juntam na constituição do fiador do discurso. Nesse livro, a

cenografia da conversa familiar, a que o enunciador recorre na urdidura do texto,

articula-se naturalmente com o ethos da “doçura” e da “temperança”. O enunciador –

um confessor – exprime-se pacífica, afetuosa e paternalmente, como convém a um

corpo devoto segundo a doutrina humanista. A devoção legítima, para essa doutrina,

não se coaduna com pessoas (enunciadores e coenunciadores) com “humor

melancólico” e “rosto deplorável, triste e aflito”, traços correspondentes ao ethos e ao

corpo do fiador jansenista que funciona como “antifiador” do enunciador humanista.

Como humanistas devotos, São Francisco de Sales e seus seguidores “[...] liberam uma

fala alegre, de temperamento sanguíneo” (MAINGUENEAU, [2005] 2011, p. 78 e 79),

com a confiança de quem acredita no princípio de um cosmos harmonioso.

O fiador do discurso constitui-se por meio de um processo de “incorporação”

que envolve três registros: o primeiro consiste em dotar o enunciador de um corpo

adequado aos sentidos enunciados por ele; o segundo, em fazer o coenunciador aderir a

essa esquematização do corpo do enunciador e a terceira, em levá-los a imergir na

comunidade imaginária dos que compartilham determinadas formas de significar e dizer

o mundo (MAINGUENEAU, [2005] 2011, p. 73).

Maingueneau (2011) estabelece uma importante diferenciação entre ethos dito e

mostrado: o ethos dito é aquele apresentado diretamente pelo enunciador, tentando

mostrar que é uma pessoa e não outra, enquanto que o ethos mostrado é aquele que não

50

é dito diretamente pelo enunciador, mas é reconstruído por meio de rastros, indícios,

deixados por ele no seu discurso.

O autor observa ainda que “[...] se o ethos está crucialmente ligado ao ato de

enunciação, não se pode negar, no entanto, que o público constrói representações do

ethos antes mesmo que ele (o enunciador) fale” (MAINGUENEAU, 2011, p.71). Ao

mesmo tempo que a imagem do enunciador se constrói no e pelo discurso, ela não deixa

de se influenciar pelas representações coletivas pré-existentes. Assim, ao lado do ethos

discursivo, construído no decorrer da enunciação, o ethos pré-discursivo corresponde à

imagem prévia do enunciador em seu espaço social e às representações compartilhadas

que circundam sua pessoa, independentemente de ele enunciar ou não. Contudo, é

principalmente ao ethos discursivo que Maingueneau dedica seus estudos.

A Retórica antiga movia-se “[...] em torno da palavra viva e integrava,

consequentemente, à sua reflexão, o aspecto físico do orador, seus gestos, bem como

sua entonação” (MAINGUENEAU, 1997, p. 46). Nela, o ethos dizia respeito à

eloquência pública, realizada oralmente diante de grandes assembléias, e, como tal,

envolvia o caráter, o tom e a corporalidade do orador. Ao introduzir o ethos no quadro

da análise de discurso, Maingueneau amplia seu escopo analítico para além das práticas

orais de linguagem, incluindo também as práticas escritas e as intersemióticas que

timbram o tempo presente. Mesmo que nos textos escritos não seja possível verificar a

aparência física do enunciador, lá se encontram pistas que revelam características

fundamentais de sua corporalidade.

Há quem conceba o ethos como “voz”, contudo Maingueneau prefere pensá-lo

como “tom”, termo que julga mais adequado às práticas de linguagem contemporâneas,

uma vez que elas não se restringem mais à oralidade. O termo “voz” poderia ser

inapropriadamente associado ao oral. Além do tom e da corporalidade, o ethos envolve

também o caráter do enunciador. O caráter seria “o conjunto de traços psicológicos que

o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador, em função de seu

modo de dizer”, enquanto que a corporalidade seria a “uma representação do corpo do

enunciador da formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1997, p. 47). Diz o autor:

Parece-nos que a fé em um discurso, a possibilidade de que os sujeitos nele

se reconheçam presume que ele esteja associado a uma certa voz (que

preferimos chamar de tom, à medida que seja possível falar do “tom” de um

texto do mesmo modo que se fala de uma pessoa). [...] Mas, o tom, por si só,

não recobre, sem seu conjunto, o campo do ethos enunciativo. O tom está

51

necessariamente associado a um caráter e a uma corporalidade.

(MAINGUENEAU, [1997] 1997, p. 46).

O ethos mantém uma relação íntima com a reflexividade enunciativa,

evidenciando a articulação do corpo textual com o discurso. Manifesta-se no discurso

associado ao enunciador, uma vez inserido em uma cena genérica ou cenografia

historicamente específica. Trata-se de localizar-se em um lugar social que afeta

diretamente a construção do discurso. Conforme Amossy (2011, p.122), “[...] o ethos é

condicionado pela cena de enunciação, ela própria considerada na distribuição dos

papéis implicados pelo gênero de discurso e pela cenografia”.

Dessa forma, pode-se dizer que o ethos está ligado à enunciação, mas não

necessariamente é verbalizado no enunciado. Ele se constitui em uma imagem que é

construída pelo interlocutor a partir de uma maneira de enunciar que é também uma

maneira de ser. Conforme Salgado (2008, p.29),

A problemática do ethos pede que não se reduza a interpretação dos

enunciados a uma simples decodificação; alguma coisa da ordem da

experiência sensível se põe na comunicação verbal. As “ideias” suscitam a

adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de

ser. [...] O poder de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de

ele constranger o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo,

seja ele esquemático ou investido de valores historicamente especificados.

O ethos é, pois, uma força persuasiva que transborda as fronteiras do dizer.

Caracteriza-se pela identificação do interlocutor com os valores veiculados

implicitamente no/pelo discurso. Nessa identificação, encontram-se os estereótipos, por

meio dos quais o interlocutor lança mão de representações culturais fixas, de modelos

pré-construídos e estabelecidos para atribuir algumas características e não outras ao

enunciador.

Em resumo, toda enunciação, oral, escrita ou multimodal, apresenta um “tom”,

que o coenunciador (leitor, ouvinte, telespectador etc) apreende a partir do que é dito ou

até mesmo do que não é dito, mas é mostrado no fio dos enunciados. Os elementos

construtores do ethos, ou seja, do fiador, são os mais variados, incluem a escolha das

palavras, a entonação, o ritmo, os argumentos, as imagens, todas as marcas verbais ou

multimodais que indiciem aspectos do caráter, do tom e da corporalidade do enunciador.

Em relação a tais traços, não se espera que o coenunciador se porte como um

decodificador, mas sim que seja envolvido e se identifique com eles como quem “[...]

participa ‘fisicamente’ do mesmo mundo do fiador” (MAINGUENEAU, [2005] 2011,

52

p. 90). O coenunciador encontra-se, pois, implicado na cena da enunciação do mesmo

modo que o enunciador.

Embora Pêcheux (1975) não tenha se referido ao ethos propriamente, não deixou

de considerar o jogo de imagens entre os interlocutores como tomando parte da

enunciação e do discurso. Refletindo sobre a construção dessas imagens, propôs uma

série de questões a elas subjacentes: “Quem sou eu para falar-lhe assim?”; “Quem é ele

para que me fale assim”; “Quem ele pensa que sou para que me fale assim?”; “Quem eu

penso que ele é para que eu lhe fale assim?” As imagens que cada um faz de si, do outro

e do referente seriam, pois, constitutivas da enunciação, analogamente ao ethos.

Retomadas as noções de interdiscurso, polêmica, interincompreensão, simulacro

e ethos, procede-se, então, à análise propriamente dita, esquadrinhando o corpus de

enunciados lobateanos acerca da formação/existência de uma possível língua brasileira,

independente da língua portuguesa herdada dos colonizadores.

53

CAPÍTULO IV

O DIALETO CAIPIRA: “FALAMOS À MODA DE BRASILINA,

MAS ESCREVEMOS À MODA DE DONA MANUELA”

— Isso mesmo. A cidade nova saiu da cidade velha.

No começo isto por aqui não passava dum bairro

humilde e malvisto na cidade velha; mas com o tempo

foi crescendo e ainda há de acabar uma cidade maior

que a outra.— Vamos percorrer a cidade nova, que é a

que mais nos interessa — propôs

Narizinho.(LOBATO, [1934] 1984 p. 19)

Este capítulo será nucleado pelo texto O dialeto Caipira, uma resenha feita por

Monteiro Lobato do texto homônimo de Amadeu Amaral4. A obra de Amaral, cujo

objeto é o linguajar do caipira paulista do vale do Paraíba, foi publicada em 1920. Ao

resenhar essa obra, Lobato reflete, à luz da teoria do evolucionismo linguístico, sobre as

variedades e mudanças linguísticas que ocorriam no português brasileiro, anunciando o

nascimento de uma nova língua. Escrita, em grande parte, com uma linguagem

metafórica e de fácil apreensão, a resenha lobateana é exemplar da polêmica em torno

da língua nacional que ganhara um novo fôlego nas primeiras décadas do século XX.

Como se trata de um texto relativamente curto e central para este capítulo, optou-se por

disponibilizá-lo por completo neste capítulo. À medida que a análise do texto a seguir

transcrito for sendo realizada, enunciados recortados de outros textos de Lobato que

apresentem convergência de sentidos serão incorporados à leitura apresentada.

O dialeto caipira

Sob este título modesto acaba Amadeu Amaral de compor a primeira gramática da língua

brasileira.

Expliquemo-nos.

A grande árvore da língua latina, que circunstâncias felizes fizeram viçar ao bafejo das brisas

mediterrâneas, depois de completo um glorioso ciclo biológico, morreu como morrem árvores

– escasqueada, broqueada, parasitada, lenhada e afinal derrubada pelo bárbaro a manejar

inconscientemente o machado da evolução.

Mas como árvore que era, morreu perpetuando a espécie nas filhas – esses frondosos alporques

4 Amadeu Amaral nasceu em 6 de novembro de 1875 em Capivari, Estado de São Paulo, e faleceu em 24

de outubro de 1929, em São Paulo, capital. Começou a atuar no jornalismo ainda jovem e dedicou-se

paralelamente à poesia, aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialetologia. Era autodidata e sua erudição

surpreendia a todos. No Brasil, foi pioneiro no estudo científico de um dialeto regional.

54

que constituem hoje a família neolatina.

Bela irmandade! Quatro irmãs, opulentas de tesouros literários – a lusa, a italiana, a francesa, a

espanhola, e a mais humildezinha, aquela entalada no frége dos Bálcãs – a romena. E todas

bem enseivadas, ricas, capazes de a seu turno reflorirem em prole magnífica de que sairão as

netas da língua latina.

Cá entre nós já vemos grulhar a netinha número um, sub-variedade da língua portuguesa.

É a língua da terra, a língua geral destes vinte e cinco milhões de criaturas que somos.

Coexiste em nosso território, ao lado da língua-mãe e oficial, a portuguesa. Humilde criança da

roça gerada no seio da arraia-miúda dos campos e do povinho humilde e sofredor das cidades,

negam-lhe pão e água os magnatas cortesanescos que fazem roda de peru em torno da rainha

metropolitana.

Não obstante menina cresce, conchegada com amor no seio do povo, já é ela, a neta, e não mais

a avó erudita, quem satisfaz às necessidades de intercâmbio mental dos roceiros, das patuleias

urbanas e dos literatos que se dirigem às massas e não às elites.

Nela é que o sertanejo ama, o gaúcho bravateia, o retirante chora, o seringueiro lamenta-se, o

vaqueiro descanta, o cafajeste persnostica. Tem já poetas embelecados pelas suas graças

nascentes e adoradores prosistas, doidos pelo seu linguajar langue, ingênuo, expressivo e

vivamente impregnado da cor, do som, do cheiro, do ité, do agreste da terra brasílica.

Crescerá essa menina, far-se-á moça e mulher e sentar-se-á um dia no trono ora ocupado por

sua empertigada e conspícua mãe. Imperará no Brasil inteiro – não como hoje, às ocultas e

medrosamente, mas às claras, de justiça e de direito; e não na língua falada apenas, mas na

falada, na escrita e na erudita. E a língua velha mãe, que cá vige, mas não viça, abdicará de vez

em favor da filha espúria que hoje renega, e desconhece, e insulta como corruptora da pureza

importada.

Cem anos levará isto? Que importa? Cem, duzentos, quinhentos – isso é nada na vida de um

povo.

E Sinhazinha Brasilina não tem pressa. Menina descançadota, meio “mãe da vida”, ela olha

para o tempo e, despreocupada, folga e ri de pé no chão à beira dos corgos, pelas vendolas de

estrada, nos casebres de sopapo, nos sambas, nas catiras, nas farras, na peraltagem infantil das

ruas. Convive apenas com o povinho miúdo. Foge acanhada dos grandes, em cujo olhar severo

só vê censuras e desprezo.

Tem namorados, Cornélio Pires é um. Valdomiro Silveira é outro. Com eles abre o coração e

entremostra o ouro que lhe vai dentro.

Gosta ainda de sapatear quanto Catulo sapeca o pinho choroso. Mas, apesar destas fugidias

entradas no grande palco, a arisca Brasilina permanece roceira, e só nos campos reina qual

ninfa selvagem – pés nus, vento nos cabelos, sol nas faces.

Era assim. Mas hoje Brasilina está séria, de testa franzida. Veio perturbar-lhe o sossego um

homem seu desconhecido, cuja atitude a surpreende.

Amadeu Amaral, em vez de sussurrar-lhe palavras de amor ou desferir-lhe descantes de viola,

estuda-a. E Brasilina, tomada a sério pela primeira vez, escolhida de improviso por um escritor

de alto renome que a quer tratar com fidelidade, entrepara, acanhadinha, de pé atrás e dedo na

boca. E Amadeu assim a esboça, dos pés à cabeça, em traços firmes, num carvão que marcará

entre nós o início de uma fase nova de estudos linguísticos – e está fecundíssima.

55

Até aqui a nossa filologia se limitava a bizantinar sobre verrugas da língua-mãe, mexericando

com os clássicos, fossando como leitoa pulverulentos alfarrábios reinóis. Surgia a polêmica

estéril. Intervinha lá de Lisboa a palmatória; os gramáticos menores – que os há como

carrapatos pelo interior – assanhavam-se; e o ponto debatido, em vez de esclarecer-se, ficava

como novelo bagunçado que gato brincou.

O estudo único em matéria filológica que nos cumpria fazer, não fazíamos. Era esse da língua

nova que ao país inteiro interessa: o estudo, o retrato fiel da Brasilina arisca que atende às

necessidades de expressão dos vinte e cinco milhões de jecas que somos.

Porque, estranha contradição! falamos à moda de Brasilina, mas escrevemos à moda de dona

Manuela, por falta de coragem, ou medo ao bolo da palmatória (férula) portuguesa.

Esse estudo, tão reclamado, Amadeu Amaral superiormente o realizou. Seu dialeto caipira vale

por chave de ouro a abrir as portas de um mundo inédito. É o começo da gramaticalização de

uma língua nova, neta da língua de Horácio.

Ele traz pela mão, honestamente, a caipirinha dialetal paulista e a apresenta ao país.

- Está aqui o pingo d’água arisco que vai ser o diamante de amanhã. Exponho-a aos vossos

olhos, nuazinha em pelo, envergonhada e humilde como a apanhei reinando à beira dos corgos.

Apanhei-a como O. F. apanha borboletas: sem lhes tocar nas asas para que nenhuma falripa do

irisado se perca. Está pura e intacta como se surgisse de um banho matinal no ribeirão.

Estudei-a sob todos os aspectos.

O fonético, enunciando as alterações normais dos fonemas e as modificações isoladas. O

lexicológico, dizendo dos elementos lusos, arcaicos na forma ou no sentido, com que se

enfeita; dos elementos indígenas que assimilou, dos africanos e das elaborações pessoais –

deliciosa criação de fino valor expressivo. O morfológico, dando à formação das palavras, as

maluqueiras teratológicas, as flexões de grau e verbo e o modo todo seu de resolver a questão

dos pronomes. O sintático, reunindo fatos relativos ao sujeito, aos pronomes como objetivo

direto, às conjugações perifrásticas, às orações relativas, às modalidades de negativa e à

maneira de circunstanciar o tempo, e espaço e a causa.

Em seguida, organizei um vocabulário onde desfio o rosário inteiro de palavras que ela criou,

ressuscitou, simbolizou e modificou – ou corrompeu, como querem os moralistas vestidos na

pele dos filólogos.

Aqui tendes a minha contribuição. Juro pela fidelidade do esboço – que assim que foi que a vi,

à língua nova, brincando menineira em terras de São Paulo. Façam os outros o mesmo.

Retratem-na com este carinho, ao Norte, ao Sul, ao Centro – honestamente, sem retoques.

Porque Brasilina é volúvel. Trata-se de gaúcha nos pampas, de vaqueira no Centro, de

seringueira na Amazônia e só a teremos estudada de modo integral, nas graças corporais e na

psicologia, quando lhe fotografarmos todas as variantes. Só esse trabalho coletivo nos permitirá

a posse do diamante bruto que por aí rola nas mãos calejadas do poviléu. Feito isso, é lapidá-lo

na ourivesaria da rima e da prosa e teremos criado a língua nova que no futuro falarão duzentos

milhões de homens.

É isto que nos diz o livrinho modesto de Amadeu Amaral, o Fernão Lopes da gramaticologia

brasileira.

Seu dialeto caipira assanhará as tartarugas filológico-perobas, como obra ímpia que dá honras

de cidade à “corrupção”. Esses carunchos sob forma humana pertencem à fauna cadavérica. Só

56

se sentem à vontade quando a questão é de necropsia. Em se tratando de arrastar a asa a uma

rapariga viva, de carne morena e quente, persignam-se como fradalhões hipócritas e gritam

fugindo às arrecuas:

- Pecado! Pecado!... (OV2, [1921] 2008, p. 89-92)

Ao resenhar a obra O Dialeto Caipira, Lobato, de partida, presume seu

significativo valor, afirmando estar, apesar do título modesto que lhe fora atribuído por

Amadeu Amaral, diante da “primeira gramática da língua brasileira”. (LOBATO, OV2

[1921], 2008). Nessa afirmação, Lobato desloca o espectro restrito da obra – um estudo

dialetológico do falar caipira paulista – para um espectro amplo – uma gramática da

língua brasileira. É como se dissesse que o dialeto caipira é a língua brasileira. É como

se houvesse uma identificação entre ser brasileiro e ser caipira, o que faz muito sentido

em se tratando de Monteiro Lobato, que, como ninguém, reverenciou o Brasil da roça,

do mato, em sua obra, como o que havia de mais genuíno no país, como a única esfera

que não estava contaminada pelos modelos lusitanos e europeus. Ao mencionar, na

resenha, “a língua brasileira”, Lobato usa um artigo definido, referenciando-a como uma

língua pública e notoriamente conhecida, apartada do português, carecendo apenas de

ser gramaticalizada, tarefa que começava a ser realizada com a obra de Amadeu

Amaral.

Que o português falado do lado de cá do Atlântico já era outro em relação àquele

falado do lado de lá, era um fato que vinha sendo dito desde o século XIX. Porém, não

havia consenso sobre o status dessa diferença: uma diferença dialetal ou sistêmica?

Muitos a nomeavam como “dialeto brasileiro”, “fala/falar brasileiro”, “linguajar

brasileiro”, “variedade brasileira”, “regionalismo”, “provincianismo”, posição que

admitia o processo de diferenciação, mas não o bastante para justificar a constituição de

outro idioma. Pode-se dizer que essa posição não rompe com a política de unidade

linguística entre o Brasil (colonizado) e Portugal (colonizador). A

colonização/dominação governamental teria sido interrompida, mas não a linguística.

Poucos tiveram a coragem de classificar essa diferença como uma diferença

sistêmica e nomeá-la como “língua brasileira”, “idioma brasileiro” ou qualquer outra

designação que a vinculasse ao Brasil. Contudo, alguns separatistas, arrogando-se a

missão de completar o processo de emancipação do Brasil, equacionavam autonomia

política e autonomia linguística, ou seja, equacionavam nação e língua

(ALBUQUERQUE E COX, 1997), ambas inextricavelmente ligadas. Dentre eles,

Salomé Queiroga ([1873]1978) dizia: “Escrevo em nosso idioma, que é luso-bundo-

57

guarani” (p. 168); “Os literatos portugueses castiguem seus patrícios quando escrevem

idioma brasileiro, mas por Deus, deixem-nos em paz falando nossa língua que é

brasileira, não portuguesa” (p. 167). Também, Mário de Andrade designou a língua

falada no Brasil como “língua brasileira”: “A língua brasileira é das mais ricas e

sonoras” ([1922] 1993, p. 67). Porém, Mário voltou atrás, passando a designá-la como

“fala brasileira”, assumindo uma posição conciliatória com a língua portuguesa. Já

Lobato, no texto anterior, referiu-se à língua falada no Brasil como “língua brasileira”

ou “Brasilina”, nomes que não ignoram e nem suavizam a disjunção que ocorreu na

história da língua portuguesa na colônia brasileira. O fato de nomeá-la dessa forma

patenteava uma ruptura em relação ao processo dominante de significação que a

nomeava como língua portuguesa, lembrando a nossa filiação ao discurso da

colonização. Conforme Seriot (1996, p. 297), “[...] o nome da língua é um objeto de luta,

um objeto simbólico extraordinário, capaz de fabricar uma ontologia”. Contudo, para

Monteiro Lobato, nomear uma língua de brasileira ou Brasilina não seria um gesto

suficiente para emancipar cultural, literária e linguisticamente o país, se essa língua

fosse apenas uma língua oral, falada pelo poviléu, pela arraia miúda, pelos matutos e

iletrados; seria necessário que essa língua se tornasse uma língua escrita, que fosse

gramatizada, pois só assim poderia se tornar uma língua de expressão literária, uma

língua sem restrição para circular em todos os meios.

Por gramatização, entende-se, conforme Auroux (1992, p. 65), “[...] o processo

que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que

são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”.

Vale notar que Lobato, sem nenhuma ciência linguística stricto sensu, enxerga o estudo

efetuado por Amaral como “[...] o começo da gramaticalização de uma língua nova, neta

da língua de Horácio” (LOBATO, OV2 [1921], 2008), como o começo da

gramaticalização da língua brasileira, ou melhor, da Brasilina, como ele a nomeia.

Amadeu Amaral teria fincado o primeiro pilar, a gramática, que instrumentaria a

Brasilina. Ele categoriza, dá exemplos e prescreve regras que regem o novo idioma,

atendendo, pois, aos critérios que seriam apontados por Auroux (1992) mais de meio

século depois de Lobato:

A categorização das unidades pressupõe duas coisas: termos teóricos e uma

fragmentação da cadeia falada. São essencialmente as partes do discurso,

suas definições e propriedades, que fazem as vezes de termos teóricos. [...]

Os exemplos se beneficiam de uma espantosa estabilidade no tempo; nós os

reencontramos, por um processo de tradução, de língua a língua. A

58

constituição de um corpus de exemplos é um elemento decisivo para a

gramaticalização. [...] os exemplos testemunham sempre uma certa realidade

linguística. [...] As regras podem ser encaradas como prescrições (diga...,

não diga...; diz-se...) (AUROUX, 1992, p. 66-68)

Se, como observa Auroux, os pilares da gramatização são a gramática e o

dicionário, a obra de Amaral, sem que ele soubesse, reunia esses dois instrumentos, uma

vez que ela se divide entre apresentar uma gramática do dialeto caipira falado na

província de São Paulo e um vocabulário não de todos os brasileirismos, mas dos “[...]

vocábulos em uso entre os roceiros, ou caipiras, cuja linguagem, a vários respeitos,

difere bastante da da gente das cidades, mesmo inculta” (AMARAL, 1920, p. 36).

Porém, Lobato insistia em ver em O Dialeto Caipira algo mais amplo em termos de

gramatização da língua brasileira do que o próprio Amaral pretendia com sua obra.

Outro aspecto que salta aos olhos do leitor nessa resenha é a forma como a tese

evolucionista que marcou a linguística histórica e comparada no século XIX é

metaforicamente explorada no discurso de Lobato sobre a língua brasileira, embora ele

não se refira de modo explícito a ela. São muitas as metáforas de que ele se serve para

falar da nova língua que estava nascendo: a metáfora da árvore, a metáfora das relações

de parentesco, a metáfora do ciclo da vida, a metáfora da mulher em várias faixas

etárias, a metáfora da formação de uma pedra preciosa a partir de uma gota de água.

Efetivamente, o evolucionismo linguístico é um eco da tese de Darwin sobre a seleção

natural dos organismos na luta pela sobrevivência.

Segundo Kristeva (1974, p. 274), a linguística do século XIX é dominada pela

visão genealógica das línguas que, além de agrupá-las em famílias, deriva cada membro

de uma fonte inicial. O evolucionismo não enfatizava a lógica dos sistemas gramaticais,

mas sim o vitalismo do logos, inspirando-se no estudo dos “seres vivos”, dos

organismos. Aliás, de acordo com o pensamento evolucionista, o desenvolvimento

histórico explica tudo, os seres orgânicos e inorgânicos, as sociedades e instituições e

suas práticas:

A crosta terrestre, os seres organizados, as sociedades e suas instituições,

apareceram como os produtos do desenvolvimento histórico cujos

pormenores não podiam ser adivinhados a priori, e de que só se podia dar

conta observando e determinando, tão exatamente quanto permitissem os

dados, a sucessão e os cruzamentos dos fatos particulares através dos quais

eles se realizaram... os próprios corpos inorgânicos têm uma história.

(KRISTEVA, 1974, p.286)

59

Logo no começo do texto, a tese do evolucionismo linguístico, que vincula a

origem do língua portuguesa ao latim, é evocada por meio da metáfora da árvore:

A grande árvore da língua latina, que circunstâncias felizes fizeram viçar ao

bafejo das brisas mediterrâneas, depois de completo um glorioso ciclo

biológico, morreu como morrem árvores, escasqueada, broqueada,

parasitada, lenhada e afinal derrubada pelo bárbaro a manejar

inconscientemente o machado da evolução. (OV2 [1921], 2008)

Como as árvores, as línguas nascem, crescem, têm um período de apogeu e

depois declinam e morrem, mais precisamente, transformam-se em outras línguas.

Lobato relembra o que se passou com o latim, que viçou “ao bafejo das brisas

mediterrâneas”, mas, depois de completar “um glorioso ciclo biológico, morreu”.

Atacadas pelas pragas e pelos homens, as árvores (e também as línguas) tombam. No

caso do latim, sua expansão, acompanhando o avanço do Império Romano pelo

território europeu, colocou-o em contato com a língua dos bárbaros que habitavam a

região, produzindo, num primeiro momento, um processo de dialetação que deu origem

ao chamado latim vulgar que, progressivamente, se afastava da língua falada no entorno

de Roma.

Vale lembrar que o termo “bárbaro” se origina do termo grego βάρβαρος

(barbaros), utilizado para se referir aos estrangeiros, às pessoas que não eram gregas,

àqueles povos cuja língua materna não lhes era compreensível por ser diferente da

grega. No Império Romano, a expressão passou a ser usada com a conotação de "não-

romano" ou "incivilizado", para se referir aos povos germânicos, celtas, iberos, trácios e

persas, aqueles que, manejando o latim como língua estrangeira, acabaram por dialetá-

lo, com base nas suas línguas maternas, dando origem às distintas línguas românicas:

português, italiano, francês, espanhol, romeno e o galego.

Assim, quando Lobato afirma figurativamente que a grande árvore da língua

latina é “derrubada pelo bárbaro a manejar inconscientemente o machado da evolução”,

ele não só reitera a interpretação de que as línguas românicas foram geradas pelos

bárbaros que falaram o latim como língua estrangeira, mas que, analogamente, serão os

bárbaros brasileiros, que, falando a língua portuguesa como estrangeiros, a derrubarão

para dar lugar à língua brasileira. Quer dizer, o processo de evolução que vai

transformar o português em brasileiro também será realizado pelo machado dos

bárbaros, da “arraia miúda”, do “povinho humilde”, dos “roceiros”, da “patuléia

urbana”, dos “jecas”, do “poviléu”, da gente brasileira tida como não civilizada, inculta

60

etc. É a interação com a língua do outro, do bárbaro, que impulsiona a mudança, a

evolução linguística. A grande árvore latina é vista como uma árvore genealógica que

retrata a história da família (a família neolatina), desdobrada nas gerações e relações de

parentesco:

Mas como árvore que era, morreu perpetuando a espécie nas filhas – esses

formosos alporques que constituem hoje a família neolatina.

Bela irmandade! Quatro irmãs, opulentas de tesouros literários – a lusa, a

italiana, a francesa, a espanhola, e a mais humildezinha, aquela entalada no

frége dos Bálcãs – a romena. E todas bem enseivadas, ricas, capazes de a seu

turno reflorirem em prole magnífica de que sairão as netas da língua latina.

Cá entre nós já vemos grulhar a netinha número um, sub-variedade da língua

portuguesa. (OV2 [1921], 2008)

A avó (a língua latina) morreu, deixando as filhas (as línguas portuguesa,

italiana, francesa, espanhola e romena que são irmãs) que podem reflorir em “prole

magnífica de que sairão as netas da língua latina. Conforme Lobato, “a netinha número

um”, já estava a caminho no Brasil, originada da mãe lusitana na sua interação com a

língua dos bárbaros (povos indígenas que habitavam o país antes da colonização e

africanos trazidos para cá como escravos). É interessante observar como a metáfora da

árvore é trabalhada ao longo do texto por Lobato que faz uma espécie de contraste entre

morte e vida: de um lado, está a árvore que morre “escasqueada, broqueada, parasitada,

lenhada e afinal derrubada” e, de outro, as árvores que nascem dos alporques (alporque

é um método reprodução vegetal, pela formação de raízes adventícias num ramo de uma

planta já enraizada), “opulentas”, “bem enseivadas e ricas”, capazes de gerar uma prole

numerosa.

O genealogismo linguístico busca reconstruir o esquema de evolução das

línguas, remontando até as formas mais arcaicas atestadas ou postuladas

hipoteticamente, como é o caso do indo-europeu. Não seria despropositado afirmar que

Lobato dialoga com o evolucionismo linguístico, embora, em momento algum, cite seus

mentores Bopp, Grimm ou Schleicher, ou faça referência explícita a essa teoria, o que

sugere uma retomada interdiscursiva na forma de heterogeneidade constitutiva. Apenas

o leitor familiarizado com a história do pensamento linguístico, informado do discurso

evolucionista, é capaz de reconhecê-lo nas entrelinhas de Lobato. Para ele, a língua

brasileira parte de um ancestral comum, a língua latina, que, transplantada para a

Península Ibérica, foi se transformando até se tornar a língua portuguesa, que, trazida

para a colônia do novo mundo, foi se “barbarizando” até se fazer outra língua – a

61

brasilina. Em muitos outros textos de Lobato, o evolucionismo é evocado para explicar

o processo de diferenciação que o português vinha sofrendo no Brasil, como se pode

observar pelas SDs a seguir:

SD1: Se a língua mais espalhada no mundo, como é a inglesa, dispensa

flexões, isso demonstra que a flexão é uma inutilidade, um atraso, um

retardamento de evolução. E no português da roça, no Brasil, as flexões vão

desaparecendo. Um caboclo da roça fala à moda inglesa. Diz por exemplo:

Eu vou, tu vais, ele vai, nós vai, vocês vai, eles vai; em vez de dizer como no

português gramatical “não evoluído”: Eu vou, tu vais, ele vai, nós vamos,

vós ides, eles vão. Temos aqui seis flexões que o caboclo, esse precursor,

reduz a duas apenas, sem que de nenhum modo se faça menos compreendido

que um membro da Academia Brasileira de Letras. (PE2, [1940] 2009, p.38)

SD2: E acentuaria que o mesmo direito que tiveram os portugueses de

corromper o latim e transformá-lo em língua portuguesa temos nós, letrados,

de corromper a língua portuguesa e transformá-la na “língua brasileira”; e

tem o iletrado jeca de “evoluí-la” para outro rumo. (PE3, [1940], 2009, p.43)

SD3: Quem condena como coisa “errada” o modo de falar ou a língua do

jeca, revela-se curto de miolo. Os modos de variação duma língua são

fenômenos naturais, e não há erro nos fenômenos naturais. Erro é coisa

humana. Temos que estudar essas variações em vez de totalmente condená-

las, pois condená-las equivale, por exemplo, a condenar os anéis de Saturno

em nome dos planetas que não possuem anéis; ou as caudas dos cometas em

nome dos astros suras; ou as sementes da paineira por virem ao mundo

envoltas num algodãozinho em nomes das sementes do capiá, que vêm

nuas.” (PE3, [1940] 2009, p.44)

SD4: O pobre jeca, sempre de estômago vazio e na embira, forçado a levar

ao máximo de suas consequências a lei do menor esforço, suprimiu o inútil

“u” do “olhou” e dispensou a variação pronominal “mim”, já que só com o

pronome “eu” ele (e todo mundo) se arranja perfeitamente bem”. (PE3,

[1940], 2009, p.44)

SD5: Porque as palavras também nascem, crescem e morrem, como tudo

mais. (EPG1, [1934] 1984, p.13)

SD6: — Mesmo assim — explicou o rinoceronte — muitas palavras

estrangeiras vão entrando e com o correr do tempo acabam "naturalizando-

se". Para isso basta que mudem a roupa com que vieram de fora e sigam os

figurinos desta cidade. (EPG1 [1934] 1984, p.17)

As SDs 1 a 6 mantêm entre si certa relação parafrástica, pois, apesar de

formalmente divergentes, apresentam convergência de sentido. Nelas, fala um

enunciador interpelado pelo discurso evolucionista. Há indícios de um diálogo com o

princípio da seleção natural, central à teoria da evolução proposta por Charles Darwin.

Darwin (1859, p. 61) definiu a seleção natural como um "[...] princípio no qual cada

pequena variação [ou característica], se benéfica, é preservada". O conceito parecia

62

muito simples, mas era muito fecundo para explicar porque indivíduos mais adaptados

ao ambiente tinham mais chances de sobreviver e reproduzir-se. Havendo variação entre

inidivíduos, inevitavelmente será preservada a variação mais vantajosa relativamente ao

ambiente. Segundo ele, os seres que fossem capazes de se adaptar perpetuariam a

espécie, enquanto aqueles que não se modificassem não conseguiriam mais se adequar

ao meio e se extinguiriam. A cada geração, a seleção natural favoreceria a permanência

das características adaptadas, constantemente aprimoradas. As propriedades benéficas e

os seres com bons fenótipos configurariam a população com mais chance de

sobrevivência, e os seres que não desenvolvessem a aptidão ao meio iriam rareando, até

desaparecerem completamente. De certa forma, processo semelhante ocorre com a

língua velha, que, “confinada” aos espaços da escrita erudita, pouco a pouco vai

desaparecendo, enquanto a língua nova, adaptada à comunidade que a fala

cotidianamente, venceria a luta pela sobrevivência.

Na SD1, o enunciador parece recorrer ao princípio da seleção natural para

explicar a tendência de perda dos morfemas flexionais no paradigma verbal que, para

ele, representaria uma evolução do português. O verbo flexionado em número e pessoa

seria próprio de um “português gramatical ‘não evoluído’”, ao passo que o não

flexionado seria próprio do português evoluído. Na luta entre as formas verbais

flexionadas e as não flexionadas, as últimas teriam mais chance de sair vencedoras,

porque mais adaptadas ao contexto brasileiro. Como argumento em favor de sua tese, o

enunciador traz o exemplo do inglês, que é o idioma com maior circulação no mundo e

se assemelha ao português falado pelo brasileiro iletrado no que tange à flexão verbal. O

sujeito que não foi à escola e não flexiona os verbos estaria se adiantando à mudança,

que, aos olhos do enunciador, era natural, esperada e não afetaria a funcionalidade do

idioma. A julgar pelo caso do inglês, a simplificação das flexões seria o destino óbvio

de um idioma evoluído. Em sua evolução, línguas analíticas tendem a se transformar em

línguas sintéticas. Contudo, quem estaria promovendo a evolução do português não

eram os membros da Academia Brasileira de Letras, mas sim o caboclo, o jeca, ou seja,

era o bárbaro que estava manejando o machado da evolução. O sucesso reprodutivo de

uma das variações pode levar a uma língua diferente. No futuro vislumbrado por

Lobato, esse sucesso estava levando à Brasilina.

Conforme a SD4, o português falado pelos jecas, “sempre de estômago vazio e

na embira”, estaria sujeito à “lei do menor esforço”, que suprime tudo o que é inútil e

desnecessário para a comunicação. Demonstrando uma observação acurada da variação

63

do português no Brasil, Lobato aponta fenômenos que iriam ser estudados décadas mais

tarde pela fonética e fonologia, como a supressão da semivogal “u” no ditongo

homorgânico “ou”, a exemplo de “olhou”, que se transforma em “olhô”. É também a lei

do menor esforço que leva os jecas a dispensar a variação pronominal de caso “eu/mim”

em favor de “eu” que passa a ser usado em todas as posições frasais, independentemente

da função sintática. Entre falantes, acometidos pela fome e pelo desânimo, as variações

motivadas pela lei do menor esforço tendem a ser selecionadas. Variações linguísticas

mais adaptadas à comunidade social tinham mais chances de sobreviver e reproduzir-se.

Na SD2, Lobato reivindica para os brasileiros direito igual ao que os portugueses

tiveram em relação ao latim. Se os portugueses tiveram o direito de corromper o latim

até ele virar português, por que os brasileiros letrados e até os jecas iletrados não teriam

também direito de “[...] corromper a língua portuguesa e transformá-la na ‘língua

brasileira’”. O ciclo de mudanças não se encerra com a formação da língua portuguesa,

cabendo aos brasileiros “evoluí-la” noutra direção. Evidentemente, esse é um enunciado

em que o discurso separatista, em nome de que Lobato enuncia, polemiza com o

discurso conservador que defende a manutenção intacta do português legítimo herdado

de Portugal.

Na SD3, a polêmica com os legitimistas também se faz presente, tendo como

ponto de controvérsia a postura judicativa ou descritiva diante dos “modos de variação

duma língua”. Para Lobato, só quem é “curto de miolo” avalia fenômenos naturais

como errados. E, para ele, as variações linguísticas são fenômenos naturais e, como tal,

elas carecem ser estudadas, conhecidas, e não julgadas e condenadas. Avaliar as

variações linguísticas como erro é um equívoco, uma vez que só se pode falar em erro

em relação ao que é humano. Ele compara as variações linguísticas a fenômenos

astronômicos e biológicos. Enfim, ele assume, em relação ao estudo das variações

linguísticas, uma postura compatível com o paradigma científico que se desenvolveria

no Brasil, no caso da linguística, a partir da década de 1960.

Na SD5, o enunciador reproduz o enunciado lapidar do evolucionismo, segundo

o qual também as palavras, também as línguas, estariam sujeitas ao ciclo natural da

vida: nascer, crescer e morrer. Contudo, conforme a SD6, morrer pode não ser sinônimo

de desaparecer, mas de virar outra coisa, de naturalizar-se, de adaptar-se ao novo

ambiente, mudando “a roupa com que vieram de fora” pelos figurinos locais.

Na resenha da obra de Amadeu Amaral, Lobato apresenta a “netinha” do idioma

latino, filha da língua lusa, a língua brasileira:

64

Cá entre nós já vemos grulhar a netinha número um, sub-variedade da língua

portuguesa.

É a língua da terra, a língua geral destes vinte e cinco milhões de criaturas

que somos. Coexiste em nosso território, ao lado da língua-mãe e oficial, a

portuguesa. Humilde criança da roça gerada no seio da arraia-miúda dos

campos e do povinho humilde e sofredor das cidades, negam-lhe pão e água

os magnatas cortesanescos que fazem roda de peru em torno da rainha

metropolitana. (OV2 [1921], 2008)

Nessa sequência, a primeira referência de Lobato à língua brasileira é

metafórica. As metáforas da árvore genealógica, das relações de parentesco (família),

das idades e da mulher imbricam-se nos enunciados lobateanas sobre a língua brasileira.

Ao longo de todo o texto, a língua brasileira é personificada como uma menina, a

“netinha número um” do latim. A língua brasileira, já a “grulhar” (tagarelar) por aqui, é

utilizada por nada menos que 25 milhões de pessoas, mas, ainda, não se sobrepõe à

língua lusa, elas “coexistem” lado a lado. Como língua gerada na roça, pela ação do

machado dos bárbaros (a arraia-miúda dos campos e o povinho humilde e sofredor das

cidades), tem seu direito de cidadania negado, usurpado, pela elite conservadora e

legitimista, introduzida no enunciado, por meio do simulacro “os magnatas

cortesanescos”, ridicularizados por Lobato por fazer “roda de peru” em torno da “rainha

metropolitana”. A metáfora põe a nu a prática de reverenciar o idioma lusitano, como os

cortesãos reverenciavam e bajulavam a nobreza (“a rainha metropolitana”). O

enunciador destila um humor corrosivo em direção à prática legitimista de curvar-se à

língua da metrópole e de renegar a língua que aqui estava sendo gerada.

Em várias ocasiões de sua obra, Lobato se manifesta sobre a divisão linguística

no Brasil, evidente demais para não ser notada. Na SD7, que segue, o enunciador

contrasta a língua do povo com a língua dos grandes escritores:

SD7: Como é viva a língua do povo! E como é fria, morta, a língua erudita,

embalsamada pelos grandes escritores! Inda ontem o verifiquei ao trocar

meia dúzia de frases com o carapina que está aqui reconstruindo um telheiro.

(ML3, [1923] 2008, p.99)

De acordo com a SD7, a diferença entre a língua do povo (a brasileira) e a língua

erudita dos escritores (a lusitana) seria a diferença entre a vida e a morte. A língua do

povo é “viva”, ao passo que a dos escritores é “morta”, “fria”, “embalsamada”, para não

apodrecer sob a ação do tempo. A língua erudita se mostra inadequada à vida cotidiana,

constatação que Lobato faz ao trocar meia dúzia de palavras com um representante do

65

povo. As SDs 8 a 11 também se concentram na temática da divisão linguística reinante

no Brasil das primeiras décadas do Século XX:

SD8: Em casos tais, frequentes na história, a regra é a língua velha ir ficando

cada vez mais confinada entre os eruditos, enquanto a língua nova se

expande no povo. Por fim, vence o povo, que é número e força. (NA3,

[1933] 2008, p. 124)

SD9: O povo fala brasileiro e os próprios escritores que escrevem em

português, não o falam em família. Em casa, de pijama, só se dirigem à

esposa, aos filhos e aos criados em língua da terra, brasileiríssima. (NA3,

[1933] 2008, p.124)

SD10: Bastos quis um dia falar, depressa, depressa, caso urgente, e

esqueceu-se de que estava no Brasil.

-“Alô! Se o excelentíssimo X está, obséquio, e grande, far-me-á o atendente,

chamando-mo”.

Ninguém pescou. Bastos insiste. Nada. Berra. Nada. Por fim manda às favas

o português de Frei Luís de Sousa e diz:

- “O seu Coisada tá aí? Quedele ele, então? Me chame ele, já, sim, meu

bem”?

O Coisada atende pressuroso e Bastos jura nunca mais falar ao telefone em

língua de escrever. (NA3, [1933] 2008, p.125)

SD11: Temos duas civilizações, ou melhor, duas “culturas”: a cultura

importada, dos que vivem nas cidades, sabem ler e escrever e até livros

escrevem!, e a cultura local, filha da terra como um cogumelo é filho dum

pau podre, desenvolvida pelos homens do mato – o caboclo, o caipira, o jeca,

em suma. Como o Jeca nunca leu nada nem escreve, a sua cultura foi se

fazendo ao tipo primitivo, por lentas acessões e restritas experiências locais

– e como transmissão sempre oral. (PE3, [1940] 2009, p. 41)

Na SD 8, o enunciador afirma a coexistência da língua nova, a brasileira, e a

língua velha, a portuguesa, deixando, contudo, entrever que a língua brasileira sairá

vencedora na corrida pela sobrevivência, uma vez que se expande entre o povo, “que é

número e força”, quer dizer, a maioria popular sobrepujará a minoria erudita. E, até

mesmo os escritores, conforme a SD9, “[...] que escrevem em português”, que usam

português na esfera pública, na esfera privada (em casa, em família, de pijama)

recorrem à “língua da terra, brasileiríssima”. Para compor a fachada, com a qual se

apresentam publicamente, os escritores usam o português, mas, na intimidade, quando

deixam cair as máscaras sociais, engrossam a massa que fala brasileiro. O uso do sufixo

superlativo “íssima” potencializa a sentido de identidade linguística, isto é, de língua

genuinamente brasileira, genuinamente nacional.

Na SD10, por meio de uma anedota, o enunciador mostra que a língua falada

pelo povo estaria dominando a maneira de se expressar com tal intensidade que, se a

66

variedade lusitana fosse utilizada em uma conversa trivial, seria motivo de

desentendimento ou “ruído” na comunicação. Numa suposta conversa telefônica entre

um português e um brasileiro, Lobato põe o leitor a rir da ineficiência de se falar no

Brasil como se escreve em Portugal. Para que o brasileiro (seu Coisada) entendesse o

que o português (Sr. Bastos) queria dizer, foi necessário realizar uma tradução da língua

de escrever para a língua de falar. Nessa SD, a ênfase recai na diferença entre língua de

falar, já totalmente abrasileirada, e a língua de escrever, ainda sob a canga lusitana, a

ponto de soar estrangeira, incompreensível, quando deslocada para a fala.

Na SD11, Lobato continua a explorar a questão da divisão, mas, dessa vez,

ampliando o escopo do linguístico para o cultural. Num primeiro momento, o

enunciador se refere a “duas civilizações”, designação que ele corrige para “duas

culturas”, por meio do modalizador autonímico “ou melhor”, por lhe parecer mais

adequada à sua posição discursiva que recupera a memória romântica quanto à defesa

da cultura nacional. Uma das culturas é dos letrados, habitantes de centros urbanos que

“até livros escrevem!”; a outra é a cultura local produzida pelos bárbaros (homens do

mato – o caboclo, o caipira, o jeca) tal um cogumelo que é “filho dum pau podre”. Essa

cultura se transmite apenas oralmente e não pela palavra impressa.

No Brasil vivido por Lobato, a língua escrita (portuguesa) e a falada (brasileira)

coexistiam, mas não em harmonia. Segundo o escritor, era o conservadorismo da escrita

que atrasava o processo de evolução. Hoje, os sociolinguistas falam da escrita como

uma força centrípeta, quer dizer, uma força que atua no sentido contrário à variação e à

mudança linguística. Enfim, já naquela época, Lobato intuía o poder da escrita como

uma força que retardava a transformação do português em brasileiro, como se pode ler

nas SDs 12 a 17, a seguir:

SD12: Essa língua descende da que os portugueses introduziram e que alijou

a língua geral então existente nestes territórios: o tupi-guarani. Ficou a

língua portuguesa sendo a língua geral do Brasil e até hoje o é. E por que o

é? Porque aprendemos o português de duas maneiras: de ouvido e de leitura.

Se o aprendêssemos só de ouvido, como acontece com o jeca, a nossa

“língua geral” estaria hoje tão distanciada da língua portuguesa que um

português não a entenderia. O que conserva as línguas e impede que

caminhem com velocidade excessiva pela tentadora estrada da evolução é a

escrita. (PE3, [1940] 2009, p.42)

SD13: Ficaríamos assim educados em duas línguas, a geral, ou portuguesa, e

uma língua auxiliar, a do jeca. Que vantagem haveria nisso? Oh, grande:

podermos falar gramaticalmente com os quinze milhões de jecas que há no

território brasileiro. A evolução dessa língua é curiosíssima e

67

inteligentíssima, como todas as evoluções não atrapalhadas pelos breques

dos artificialismos. A forma escrita das línguas é um artificialismo

tremendamente embaraçador da evolução natural das línguas. (PE3, [1940]

2009, p.42)

SD14: E vendo isso, e comparando o enlevo que seus poemas nos provocam,

ficamos a imaginar que neste país de duas “culturas” tão diversas, a letrada e

a iletrada, talvez seja a iletrada mais interessante, a mais original, a mais rica

em poesia. [...] Muito mais interessante que esta nossa língua de letrudos.

(PE3, [1940] 2009, p. 50 - 51)

SD15: Há duas línguas, a falada e a escrita. A falada é que é a grande coisa,

pois é o meio de comunicação entre todas as criaturas humanas, afora as

mudas. A língua escrita veio depois, e é coisa restritíssima. Todas as

criaturas humanas jogam com língua falada, e quantas com a língua escrita?

Uma porcentagem insignificante. Isso faz que a língua falada resida

permanentemente no apogeu da expressão e do pitoresco, ao passo que a

língua escrita se atrase a ponto de ficar uma coisa exigidora de tradução.

(PE4, [1940] 2009, p. 57)

SD16: O natural é a incorreção. Note que a gramática só se atreve a meter o

bico quando escrevemos. Quando falamos, afasta-se para longe, de orelhas

murchas. Na linguagem falada, a não ser na boca de um sujeito que conheço,

o verbo concorda ou não com o sujeito – à vontade (e repetir a frase para

restaurar uma concordância é pedantismo). Os pronomes arrumam-se como

podem – antes ou depois, embaixo ou em cima, e muitas vezes nem entram

na frase -, são pequenininhos e as palavras grandes não os deixam entrar. Em

oposição a essa língua fresquíssima, tão pitoresca, toda improvisações e

desleixos, com todas as cores do arco-íris, todos os cheiros e todos os

sabores, temos a língua escrita, emperrada, pedante, cheia de “cofos” e

“choutos”. Ah, se toda gente escrevesse como fala, a literatura seria uma

coisa gostosa como um curau que comi domingo no Tremembé. (PE4,

[1940] 2009, p.58)

SD17: Quem fala no livro inteiro é a protagonista, a viúva, e essa boa mulher

pensa e fala exatamente como todas as mulheres do seu tipo e de sua classe

entre nós. [...] A gramática para um lado e a viúva por outro. Caso não

queiram, os verbos podem perfeitamente não concordar com os sujeitos. A

pontuação é como sai – as vírgulas podem ficar uns milímetros para lá ou

para cá do lugar certo. Em muitas frases interrogativas, o ponto de

interrogação não aparece, está sabiamente subentendido. E os tais vícios de

linguagem abundam – ecos, repetições, todos eles...

[...] A autora não se limita a fazer a heroína pensar e a falar como falam as

viúvas em sua situação. Também escreve como escreveria uma tal viúva.

Não há preocupação com nada senão do assunto. [...] E consegue o milagre:

tudo fica vida, só vida, em seu extraordinário romance. [...] E a gente fica a

pensar numa coisa tremenda: se a “literatura” não é a grande desgraça da

literatura!...(PE4, [1940] 2009, p. 60-61)

Nas SDs 12 a 17, Lobato continua a tematizar a divisão interna que separava a

realidade linguística brasileira de sua época, de modo tal que a língua falada e a língua

escrita, separadas por um oceano de diferenças, raramente se encontravam. Nessas SDs,

68

é possível perceber o embate travado pelo enunciador, cuja fala revela adesão ao

discurso separatista, que é também um discurso de fundo nacionalista. Em razão desse

posicionamento, a enunciação acerca da língua falada (brasileira) reveste-se de

avaliação positiva, ao passo que a enunciação acerca da língua escrita (portuguesa)

reveste-se de avaliação negativa.

Na SD12, a língua portuguesa é apresentada como a língua geral do Brasil, mas

também como usurpadora, por ter alijado a outra língua geral – o tupi-grarani – que

existia no país antes da colonização. O que mantém a hegemonia do português como

língua geral é o fato de ele ser escrito e, assim, poder ser aprendido tanto pela leitura

quanto oralmente. Se ele fosse aprendido “só de ouvido, como acontece com o jeca”, a

língua geral do Brasil já seria completamente outra a ponto de se tornar incompreensível

a um português. Assim, a escrita é apresentada como uma força conservadora que

impede a evolução do português para o brasileiro.

Na SD13, Lobato fala da vantagem de se ter uma gramática da língua brasileira

(“uma língua auxiliar, a do jeca”) que pudesse ser um instrumento de ensino como são

as gramáticas da língua portuguesa (a geral, ou portuguesa), ressaltando o status de uma

língua gramaticalizada. Quer dizer, “falar gramaticalmente com os quinze milhões de

jecas que há no território brasileiro” é diferente de falar a língua brasileira só aprendida

de ouvido. A gramaticalização do brasileiro e seu ensino possibilitariam a comunicação

efetiva com a significativa maioria da população do país. O idioma gramaticalizado

seria a base para a formação da identidade brasileira, tendo em conta que seria por meio

dele que o povo em geral se expressaria, enquanto cultura diversa, nação diversa. Na

SD13, a língua geral, portuguesa, escrita, é também retomada por meio de um

simulacro, na medida em que é remetida ao conservadorismo dos legitimistas. Por meio

da expressão “breques dos artificialismos”, a escrita é significada como algo que freia

“a evolução natural das línguas”. Se, na SD12, a escrita foi significada como algo que

impede a evolução natural do brasileiro, na SD13, ela é sinonimicamente significada

como algo que a embaraça, ambas as ações portando um sema negativo.

Ao prefaciar a obra de Nhô Bento5, na SD14, o enunciador volta a insistir na

divisão cultura letrada/iletrada, avaliando positivamente a fecundidade da segunda em

5 José Bento de Oliveira nasceu no litoral paulista no início do século XX. Mudou-se para a capital ainda

jovem, tornando-se poeta de linguagem cabocla. Sua poesia reflete a figura do caipira, brejeiro, caboclo e

matuto. É autor de “Rosário de Capiá”, publicado em 1946, reunindo 58 de suas poesias com linguagem

69

detrimento da primeira. Da língua iletrada, Lobato diz: “a mais interessante, a mais

original e a mais rica em poesia”. Já para significar a língua letrada, o escritor recorre ao

simulacro “língua de letrudos”, com o sufixo /-udo/ expressando pejorativamente a ideia

de exagero.

Na SD15, novamente o enunciador destaca a coexistência de duas línguas, a

falada e a escrita, e reafirma a superioridade da variedade falada, que para ele é “o meio

de comunicação entre todas as criaturas humanas, afora as mudas”. Declara ainda que a

língua escrita vem depois da falada e restringe-se a umas poucas línguas, de modo que

todas as criaturas humanas possuem uma língua falada, mas poucas tem uma língua

escrita. Além disso, como a língua falada está sempre se renovando, a língua escrita

pode ficar tão atrasada, tão distante daquela, a ponto de precisar de tradução. Essa forma

de conceber o processo de diferenciação entre a língua falada e a escrita é tão atual que

poderia ser assinada por qualquer sociolinguista contemporâneo, mas saiu da pena de

Lobato há quase um século.

Como agente do abrasileiramento linguístico em consonância com o discurso

separatista, Lobato traduz por meio de semas negativos tudo aquilo que caracteriza o

discurso purista e legitimista. A forma como se refere ao Outro se reveste de um caráter

pejorativo e, acima de tudo, provocativo. Na SD16, mais uma vez procurando

diferenciar a língua falada da escrita, ele dirá que a fala é naturalmente incorreta, e a

gramática só “se atreve a meter o bico quando escrevemos”. As correções gramaticais

seriam obrigadas a “afastarem-se para longe, de orelhas murchas” quando falamos. O

fato de repetir uma frase já compreendida pelo interlocutor para fazer uma correção

gramatical, por exemplo, seria uma atitude desnecessária e revestida de “pedantismo”.

Lobato considera a colocação pronominal apenas um detalhe irrelevante. Se o sentido

não se altera, não faz diferença usar próclise, mesóclise ou ênclise: “Os pronomes se

arrumam como podem – antes ou depois, embaixo ou em cima, e muitas vezes, nem

entram na frase –, são pequenininhos e as palavras grandes não os deixam entrar.” A

discussão sobre a colocação pronominal protagonizou por diversas vezes o campo de

batalha entre separatistas e legitimistas. Entre os brasileiros a próclise era a tendência,

enquanto para os portugueses a ênclise era mais comum. Lobato pregava a liberdade da

colocação pronominal, a ponto de dizer, em tom de escracho, que os pronomes

popular e abrasileirada, fiel ao modo de falar caipira no que concerne aos vocábulos escolhidos e até

mesmo à transcrição de aspectos fonéticos da fala.

70

poderiam ser colocados “antes ou depois, embaixo ou em cima, e muitas vezes, nem

entrar na frase”. Além disso, a língua falada seria “fresquíssima, tão pitoresca, toda

improvisações e desleixos, com todas as cores do arco-íris, todos os cheiros e todos os

sabores”, em contraste com a língua escrita, que seria “emperrada, pedante, cheia de

‘cofos’ e ‘choutos’”, uma vez que o seu usuário deveria estar sempre atento às normas

gramaticais, como as de colocação pronominal. O enunciador chega a dizer que se a

linguagem escrita fosse como a falada, a literatura seria tão gostosa quanto o curau que

havia comido no Tremembé. As características tomadas como positivas pelos

legitimistas, como as normas de concordância verbal e a colocação pronominal, são

envolvidas por semas negativos, quando traduzidas por um enunciador interpelado pelo

discurso separatista e nacionalista. Essa tradução do discurso do Outro por meio de

simulacro constitui o que Mainguenau (2008) chama de interincompreensão, ou seja, o

desentendimento recíproco entre o Mesmo e Outro, no caso do corpus aqui estudado, o

desentendimento recíproco entre o discurso separatista e o discurso legitimista.

O elogio da língua falada também pode ser observado na SD17, recorte de um

prefácio que Lobato escreve para a obra Éramos Seis, da senhora Leandro Dupré6.

Lobato destaca a identificação entre a linguagem da protagonista (uma viúva) e a das

mulheres de carne e osso que ela representa. A despreocupação com a correção

gramatical é mostrada pelo enunciador através da frase “A gramática por um lado e a

viúva por outro”, que patenteia a separação entre elas, o afastamento da linguagem da

protagonista em relação às normas gramaticais que regulam a escrita. A escrita da

senhora Leandro Dupré, sensível à fala, muito agrada Lobato. A preocupação apenas

com o assunto e a despreocupação com a correção gramatical transformam seu romance

em “vida, só vida”. Concluindo seu elogio à língua falada, que é também a língua

brasileira, Lobato pensamenteia: “E a gente fica a pensar numa coisa tremenda: se a

“literatura” não é a grande desgraça da literatura!”. O que essa frase um tanto

enigmática pode querer dizer? Que a literatura, ou seja, que as Letras, que é o império

da escrita, aniquila a literatura. Quanto mais a literatura fluir no ritmo da língua falada,

afastando-se da gramatiquice caduca, tanto mais graça e leveza terá.

6 Maria José Dupré, ou Sra. Leandro Dupré, como assinava inicialmente seus livros, nasceu em Botucatu,

no dia 01 de maio de 1898. Tornou-se conhecida pelo romance Éramos Seis. O romance, prefaciado por

Lobato, conta a história de uma mulher que se dedica à vida familiar e que termina seus dias viúva e

sozinha numa casa de repouso. O peculiar dessa obra é a escrita imitar a linguagem falada da

protagonista.

71

Enfim, nas SDs 12 a 17, a polêmica entre separatistas e legitimistas inunda os

enunciados. Como o enunciador é um separatista, é o viés separatista que pauta a

interpretação do discurso do Outro, no que tange à divisão entre a língua falada

(brasileira) e a língua escrita (portuguesa) que caracterizava a sociedade brasileira

contemporânea a Monteiro Lobato. O processo de interincompreensão levado a efeito

pelo enunciador separatista resultou em avaliação positiva, elogiosa, da língua

falada/iletrada/brasileira e negativa, crítica, da língua escrita/letrada/lusitana. Da língua

falada, diz o enunciador: língua “pitoresca”, “fresquíssima”, “curiosíssima”,

“inteligentíssima”, “original”, “rica em poesia”, “toda improvisações e desleixos, com

todas as cores do arco-íris, todos os cheiros e todos os sabores”, “gostosa como um

curau” etc. Já da língua escrita, diz o enunciador: língua impostora, “língua de

letrudos”, “emperrada, pedante, cheia de ‘cofos’ e ‘choutos’”, “artificial”,

“embaraçadora da evolução natural das línguas”, “exigidora de tradução”, “atrasada”

etc. Filtradas, pois, pela semântica separatista, as formas de o enunciador se referir à

língua falada incorporam semas positivos, ao passo que as formas de o enunciador se

referir à língua escrita incorporam semas negativos.

Retome-se a resenha sobre a obra O dialeto caipira. Como já se apontou

anteriormente, Lobato metaforiza a língua brasileira como uma mulher, uma menina

que já nasceu, está crescendo e se transformará em uma moça graciosa que vai encantar

poetas e prosistas. Essa metáfora se mantém em todo o texto, mas, à medida que o texto

avança, a menina vai crescendo:

Não obstante a menina cresce, conchegada com amor ao seio do povo. Já é

ela, a neta, e não mais a avó erudita, quem satisfaz às necessidades de

intercâmbio mental dos roceiros, das patuleias urbanas e dos literatos que se

dirigem às massas e não às elites gomosas. (OV2 [1921], 2008)

No início, tratava-se da netinha recém-nascida, agora trata-se de uma menina

que está crescendo e se expandindo em meio ao povo por melhor se adequar às suas

necessidades de interação. Quem era o povo em cujo seio a língua brasileira crescia?

Eram os “roceiros”, “as patuleias urbanas” e “os literatos que se dirigem às massas e

não às elites gomosas”. Como o povo não era uma massa homogênea, o

abrasileiramento não estava produzindo uma língua única, mas múltipla, como podia ser

observado em todo o território nacional:

72

Nela é que o sertanejo ama, o gaúcho bravateia, o retirante chora, o

seringueiro lamenta-se, o vaqueiro descanta, o cafajeste pernostica. Tem já

poetas embelecados pelas suas graças nascentes e adoradores prosistas,

doidos pelo seu linguajar langue, ingênuo, expressivo e vivamente

impregnado da cor, do som, do cheiro, do ité, do agreste da terra brasílica.

(OV2 [1921], 2008)

A língua brasileira seria não só a mais adequada às várias funções exercidas

pelos homens (sertanejo, gaúcho, retirante, seringueiro, vaqueiro, cafajeste) nas

diferentes regiões e espaços sociais, mas também a mais expressiva para poetizar e

narrar, pela sua íntima relação com a natureza local, com as características do contexto e

com o povo que a utiliza. Para além da divisão entre língua portuguesa e língua

brasileira, ele já notava o processo de dialetação da língua brasileira que já surgia como

várias línguas.

Todo ser humano cresce e vai se tornando independente dos pais. Do mesmo

modo, a menina língua brasileira crescerá e se emancipará de sua velha mãe lusitana.

Crescerá essa menina, far-se-á moça e mulher e sentar-se-á um dia no trono

ora ocupado por sua empertigada e conspícua mãe. Imperará no Brasil

inteiro – não como hoje, às ocultas e medrosamente, mas às claras, de justiça

e de direito; e não na língua falada apenas, mas na falada, na escrita e na

erudita. E a velha língua-mãe, que cá vige, mas não viça, abdicará de vez em

favor da filha espúria que hoje renega, e desconhece, a insulta como

corruptora da pureza importada. (OV2 [1921], 2008)

Nessa sequência discursiva, o enunciador prenuncia o futuro promissor da língua

brasileira diante da língua portuguesa que já se encontraria em decadência (“a velha

língua-mãe, que cá vige, mas não viça”). A língua brasileira não ocupa o lugar de honra

que merece ocupar, por ele ainda estar “ocupado por sua empertigada e conspícua mãe”,

mas chegará o dia em que ela será a língua oficial do país, não apenas na fala, mas

também na escrita. Tal sequência é exemplar da polêmica entre separatistas e

legitimistas, pois ela deixa entrever a posição de ambos. Por meio do processo de

interincompreensão, o separatista significa a mãe língua portuguesa mediante um

simulacro: ela é uma “velha”, “empertigada e conspícua” (soberba, vaidosa, aparecida)

que, apesar de ainda vigente, não brota (“viça”) mais, ou seja, já está quase seca, estéril,

morta. Por sua vez, a voz do discurso legitimista é citada pelo discurso separatista como

aquela que censura a “filha espúria”, que a “renega”, “desconhece”, “insulta como

corruptora da pureza importada” e a condena a uma existência clandestina, “às ocultas e

medrosamente”. Essa interpretação da língua brasileira deixa entrever o processo de

73

interincompreensão do ponto de vista da semântica legitimista, cuja ideologia purista

leva à recusa de qualquer mudança linguística, como sinal de corrupção e não de

desenvolvimento natural das línguas vivas. Para um legitimista, a língua brasileira era

uma “filha espúria”, quer dizer, uma filha ilegítima, bastarda, falsificada, adulterada,

não genuína, não castiça, um mal a ser extirpado etc.

No correr da resenha, a menina língua brasileira vira a sinhazinha Brasilina:

E sinhazinha Brasilina não tem pressa. Menina descançadota, meio “mãe da

vida”, ela olha para o tempo e, despreocupada, folga e ri de pé no chão à

beira dos corgos, pelas vendolas de estrada, nos casebres de sopapo, nos

sambas, nas catiras, nas farras, na peraltagem infantil das ruas. Convive

apenas com o povinho miúdo. Foge, acanhada, dos grandes, em cujo olhar

severo só vê censuras e desprezo. (OV2 [1921], 2008)

Nessa sequência, a menina vira uma moça, mais precisamente, uma

“sinhazinha”, cujo nome de batismo é Brasilina, expressando uma incisiva tomada de

posição em favor do discurso separatista-nacionalista. A metáfora da “sinhazinha

Brasilina”, além de produzir o efeito de sentido de que a língua brasileira está

crescendo, também a coloca na condição da filha dos patrões que poderá um dia

dominar o país inteiro (“Imperará no Brasil inteiro”). Por enquanto, ainda não ganhou a

cena principal, circulando, sem pressa, à vontade, “à beira dos corgos, pelas vendolas de

estrada, nos casebres de sopapo, nos sambas, nas catiras, nas farras, na peraltagem

infantil das ruas”, apenas na boca do “povinho miúdo”. No final dessa sequência, pode-

se observar novamente a polêmica em torno da língua brasileira, com a retomada, pelo

enunciador separatista, da voz legitimista: “Foge, acanhada, dos grandes, em cujo olhar

severo só vê censuras e desprezo”. A posição legitimista é, pois, enunciada na forma de

um simulacro; ela é significada como “olhar severo”, “censura” e “desprezo” dos

grandes pelo povinho miúdo, ou seja, ela é mostrada como uma postura intimidatória.

A personificação da língua brasileira como mulher é explorada sob vários

ângulos. Na sequência seguinte, a sinhazinha é dita até ter namorados:

Tem namorados. Cornélio Pires é um. Valdomiro Silveira é outro. Com eles

abre o coração e entremostra o ouro que lhe vai dentro. (OV2 [1921], 2008)

Os supostos namorados de Brasilina eram escritores contemporâneos de Lobato

que utilizavam o falar caipira em suas obras, abonando, assim, a nova variedade.

Cornélio Pires é considerado o “bandeirante da música caipira”. Seu trabalho de

pesquisa e promoção da música, linguagem e cultura geral do caboclo ocupa um lugar

74

de destaque, pelo seu pioneirismo, na indústria fonográfica brasileira, inaugurando o

rico filão da música caipira/sertaneja. Valdomiro Silveira, tido como escritor

regionalista, nutria grande curiosidade e simpatia pelos caipiras paulistas, com os quais

buscava conviver para apreender seu modo de falar e seus costumes que transformava

em matéria para seus livros. Enfim, ambos eram escritores caboclistas que escreviam

em dialeto caipira. Diante deles, Brasilina não se intimidava, abria seu coração e

mostrava o ouro que ia lá dentro. Nessa sequência, o enunciador destaca a apropriação

do saber linguístico do caboclo pelos escritores regionalistas, em cuja companhia

Brasilina teria liberdade de se mostrar sem censura.

Também na companhia de Catulo da Paixão Cearense, poeta, compositor e

músico, que se dedicou ao cancioneiro popular, tendo composto “Luar do sertão”,

considerado o hino nacional do sertanejo, sinhazinha Brasilina se sentia à vontade:

Gosta ainda de sapatear quanto Catulo sapeca o pinho choroso Mas, apesar

destas entradas fugidias no grande palco, a arisca Brasilina permanece

roceira, e só nos campos reina, qual ninfa selvagem – pés nus, vento nos

cabelos, sol nas faces. (OV2 [1921], 2008)

Excetuando-se pelo lugar de honra que lhe concediam escritores e musicólogos

regionalistas, era na roça, lugar onde nascera e vinha crescendo, que Brasilina, longe

das regras da civilização, ficava à vontade, reinava em estado bruto, “qual ninfa

selvagem – pés nus, vento nos cabelos, sol nas faces”. Contrastando com essa ideia de

soltura, liberdade, sossego e descompromisso, a Brasilina é posta por Lobato como uma

mulher “séria de testa franzida”, ao ser transformada em objeto de estudo por Amadeu

Amaral:

Era assim. Mas hoje Brasilina está séria, de testa franzida. Veio perturbar-

lhe o sossego da vida um homem, seu desconhecido, cuja atitude a

surpreende. (OV2 [1921], 2008)

Brasilina, até então puro saber linguístico do povinho miúdo, sem instrução,

iletrado, que vive na roça, é surpreendida por Amadeu Amaral que se interessa por ela

não como poeta, prosista ou folclorista, mas como alguém que quer estudá-la, que quer

produzir um saber metalinguístico sobre ela. Assim, a menina-sinhazinha leve e solta (o

saber linguístico) se transforma na mulher séria (o saber metalinguístico):

Amadeu Amaral, em vez de sussurrar-lhe palavras de amor ou desferir-lhe

descantes de viola, estuda-a. E Brasilina, tomada a sério pela primeira vez,

75

escolhida de improviso por um escritor de alto renome que a quer tratar com

fidelidade, entrepara, acanhadinha, de pé atrás e dedo na boca. E Amadeu

assim a esboça, dos pés à cabeça, em traços firmes, num carvão que marcará

entre nós o início de uma fase nova de estudos linguísticos – e está

fecundíssima, verão. (OV2 [1921], 2008)

O gesto de Amadeu Amaral, ao escrever O dialeto Caipira, é considerado por

Lobato o gesto inaugural do processo de gramaticalização da Brasilina, gesto

fundamental para ela ser alçada à condição de idioma nacional, digno de ser escrito e

não apenas falado. A partir de então, a Brasilina não seria útil só para dizer palavras de

amor ou para as cantorias de viola, revestia-se da importância de um objeto de estudo,

de um fenômeno linguístico a ser pesquisado e retratado com “fidelidade”. Não seria

mais a língua do povinho miúdo e dos escritores regionalistas, resultado da danação do

português legítimo, motivo de vergonha para seus falantes. Seria já uma língua

dignificada por uma descrição gramatical. Segundo Lobato, a descrição realizada por

Amadeu Amaral perfila a Brasilina “dos pés à cabeça em traços firmes, num carvão que

marcará entre nós o início de uma fase nova de estudos linguísticos”. Amadeu Amaral

seria uma espécie de divisor de águas, marco de uma revolução no pensamento

linguístico da época, inteiramente devotado a questões filológicas relacionadas ao

passado, à língua-mãe. Um estudo dialetológico, sincrônico, de uma variedade

linguística falada no Brasil, era uma baforada de ar fresco num campo cheirando a

mofo. Nesse ponto da resenha, a crítica aos legitimistas se intensifica:

Até aqui a nossa filologia se limitava a bizantinar sobre verrugas da língua-

mãe, mexericando com os clássicos, fossando como bácora pulverulentos

alfarrábios reinóis.

Surgia a polêmica estéril. Cândido de Figueiredo intervinha de lá com a

palmatória; os gramáticos menores – que os há como carrapatos pelo interior

– assanhavam-se; e o ponto debatido, em vez de esclarecer-se, ficava como

novelo que gato brincou. (OV2 [1921], 2008)

Como já foi mencionado anteriormente, para Lobato, a obra de Amadeu Amaral

representa um marco da mudança de direção dos estudos linguísticos no Brasil, marco

textualizado por meio do sintagma adverbial “Até aqui”. A atitude legitimista de

endeusamento da língua lusitana é traduzida por meio de um simulacro corrosivo que

coloca a filologia brasileira na condição de quem se perde em discussões complexas,

mas irrelevantes (“a nossa filologia se limitava a bizantinar sobre verrugas da língua-

mãe”), de quem mexerica com os clássicos (provavelmente em alusão aos parnasianos),

de quem fuça, como porco (“bácora”), livros velhos, cheios de pó e já sem importância

76

alguma, da metrópole portuguesa (“pulverulentos alfarrábios reinóis”). Tal como

descrita pelo separatista Lobato, a filologia brasileira se metia em polêmicas gramaticais

estéreis, incapazes de gerar bons frutos. O termo “bizantinar” remete-se a

“bizantinismo”, que significa “[...] tendência a se preocupar com temas complexos e

sutis, porém sem importância ou consequência prática, especialmente quando há

questões mais relevantes a resolver” (HOUAISS, 2009, p. 298). E o pior de tudo isso

era que, nas intermináveis discussões sobre “as verrugas da língua-mãe”, a palavra final

– o uso da palmatória – cabia a Lisboa, metonimicamente representada pelo filólogo e

dicionarista português Cândido de Figueiredo7, que, do lado de cá do Oceano Atlântico,

era copiado pelos “gramáticos menores”, traduzidos/interincompreendidos como

“carrapatos” por Lobato. Tais os carrapatos, animais que parasitam vertebrados, os

gramáticos menores parasitam os gramáticos grandes que legislam sobre a língua

legítima de seu lugar de origem. Do enredo entre os gramáticos da metrópole lusitana e

os gramáticos menores da ex-colônia em torno de questiúnculas linguísticas irrelevantes

(as tais verrugas) não resultava nenhum esclarecimento apenas muita confusão,

textualizada pela imagem do “novelo que gato brincou”.

Na sequência seguinte, o separatista desqualifica os estudos filológicos

centrados em questões irrelevantes que desviavam o foco do único estudo que realmente

interessava ao país – o estudo da língua falada pelos “vinte e cinco milhões de jecas que

somos”. Segundo Lobato, a falta de estudos da Brasilina aumentava a contradição entre

a fala e a escrita:

O estudo único em matéria filológica que nos cumpria fazer, não fazíamos.

Era esse da língua nova que ao país inteiro interessa: o estudo, o retrato fiel

da Brasilina arisca que atende às necessidades de expressão dos vinte e cinco

milhões de jecas que somos.

Porque, estranha contradição! falamos à moda de Brasilina, mas escrevemos à

moda de dona Manuela, por falta de coragem, ou medo ao bolo da palmatória

(férula) portuguesa (OV2 [1921], 2008).

Para textualizar a contradição entre falar brasileiro, mas escrever português,

Lobato desdobra sua metáfora da mulher, formulando um nome próprio feminino

7 O português Antônio Cândido de Figueiredo (1846-1925) foi um dos mais destacados filólogos da

língua portuguesa. Foi autor do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, publicado originalmente em

1899 e alvo de muitas reedições. Também publicou inúmeros estudos de filologia, ficção e crítica, dentre

os quais Lisboa no ano 3000, obra de crítica social e institucional, publicada em 1892, e recentemente

reeditada. Traduziu numerosas obras de filologia e linguística. Foi sócio correspondente da Academia

Brasileira de Letras. (http://www.ao.com.br/download/figueire.pdf) Acessado em 12 de novembro de

2012.

77

também para a língua portuguesa. Se a língua brasileira é a “Brasilina”, a língua

portuguesa é “dona Manuela”, nome especialmente adequado para evocar a

antroponímia lusitana. Dizer que alguém se chama Manuel/Manuela é quase como dizer

que ele/ela é português/portuguesa. Brasilina é simplesmente Brasilina, ao passo que

“dona Manuela” vem acompanhada pela forma de tratamento “dona”. Segundo Houaiss

(2009, p. 708), “dona” é um título honorífico que, em princípio, precedia apenas o nome

próprio de mulheres pertencentes às famílias nobres, tendo, posteriormente, se ampliado

para todas as mulheres distinguidas por algum título de respeito como: casadas,

religiosas, viúvas, idosas. O contraste metafórico entre Brasilina/dona Manuela

textualiza a ainda subserviência brasileira ao padrão gramatical lusitano em matéria de

escrita. Dona Manuela é a encarnação não apenas da autoridade portuguesa, mas

também do autoritarismo do colonizador que, se não detém mais o poder político, ainda

não desistiu de colonizar a nossa língua. Nessa e em inúmeras outras sequências (SDs

18 a 32), Lobato condena veementemente a fraqueza do brasileiro que se intimida ante a

“férula” (palmatória) portuguesa, esgueirando de assumir como língua oficial do país a

Brasilina.

SD18: Acho o Eça o culpado de metade do emporcalhamento da língua no

Brasil, onde o lido é imitado é só ele, ele e mais ele p.(BDG13, [1944] 2010,

p. 335)

SD19: Nada em Bilac revê enxerto de arte alheia. O vocabulário é o velho

vocabulário da Metrópole; as almas são almas velhas... (IJT2, [1919] 2008,

p. 51)

SD20: Os artistas medíocres porque sendo brasileiros de carne ficaram

europeus de espírito (ITJ3, [1919] 2008, p. 66)

SD21: Queremos, agora, infundir na pátria uma alma e um caráter próprios,

fazendo brotar da terra que angustiosamente resseca, que é a nossa vida

material, as nobres fontes de idealismo. Doutro modo será este povo um

corpo sem alma, uma pobre coisa sem transcendência. (ITJ 15, [1919] 2008,

p. 198)

SD22: Seja assim nossa arquitetura: moderníssima, elegantíssima, como

moderna e elegante é a língua do poeta; mas, como ela, filha legítima de seus

pais, pura do plágio, da cópia servil, do pastiche deletério. (ITJ2, [1919]

2008, p.51)

SD23: Herdeiro de boas e más qualidades da Metrópole, o Brasil Colônia,

que outra coisa não era senão o próprio Portugal em projeção rarefeita sobre

uma terra nova, não relevou em nenhum campo plástico sinal de capacidade

estética (ITJ6, [1919] 2008, p.87)

78

SD24: Não há mais ilusões, não seremos nunca um “original” e sim má

“cópia”. O partido do plágio erigido em um sistema de governo e educação

vencerá em toda a linha. Pobre do meu Jeca Tatu, serás suprimido. (SPRI1,

[1918] 2008, p.373)

SD25: Certas preferências são de resultados muito sérios na vida dos povos.

O hábito de ter ideias próprias faz da Inglaterra o que a Inglaterra é. O hábito

brasileiro de aceitar por comodismo ou preguiça, ideias alheias não me

parece que esteja fazendo grande coisa deste país. (MSB1, [1927] 2008, p.26)

SD26: Aquelas ideias de Mister Slang sobre o parasitismo camuflado

impressionaram-me profundamente. Cheguei a convencer-me de que o

Brasil era a fragílima nação que é porque finge ser o país que não é. (MSB3,

[1927] 2008, p.97)

SD27: Esta brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisa não é tal

movimento, vai desempenhar uma função muito séria em nossas letras. Vai

forçar-nos uma atenta revisão de valores e apressar o abandono de duas

coisas a que andamos aferrados: o espírito da literatura francesa e a língua

portuguesa de Portugal. (NA1, [1933] 2008, p. 16-17)

SD28: Comi há meses um português inteiro e noto que desde essa ocasião é

que sinto o tal peso, a tal bola no estomago. Pois é isso! Mais indigesto, nem

pepino cru. (NA2, [1933] 2008, p. 47)

SD29: Inversão, ou melhor, atrapalhação, angu completo dos valores e

regras universalmente aceitos. A gramática, a boa ordem, a justa medida, a

clareza – pilhérias! Porque é que o pronome reflexo não há de abrir

períodos? E zás: “Me parece que...” E o “você” expeliu o “tu” e a velha

asneira, que andava no refugo porque só os asnos a manuseavam, foi

reabilitada, vestida à moderna e veio à tona de livros e jornais, toda garrida,

provando mais uma vez que tudo vai da apresentação, e que um urubu

preparado por Vatel pode saber melhor ao paladar do que uma perdiz assada

pelas nossas cozinheiras do trivial. (NA3, [1933] 2008, p.122)

SD30: Porque é estranho isto de permanecermos tão franceses pela arte e

pensamento e tão portugueses pela língua, nós, os escritores, nós, os

arquitetos da literatura, quando a tarefa do escritor de um determinado país é

levantar um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por

meio da língua falada nesse país. (NA3, [1933] 2008, p. 123)

SD31: A eterna queixa dos nossos autores, de que não são lidos, vem disso –

dessa anomalia que eles não percebem. O público não os lê porque não lhes

entende nem as ideias nem a língua. (NA3, [1933] 2008, p. 124)

SD32: Este dualismo de mentalidade e língua tem que cessar um dia. Os

gramáticos hão de convencer-se, afinal, de que a língua portuguesa variou

entre nós, como acontece todas as vezes que um idioma muda de continente.

(NA3, [1933] 2008, p.124)

79

As SDs 18 a 32 constituem uma consistente família parafrástica de enunciados

em que Lobato repudia o servilismo brasileiro diante dos modelos literários europeus e

do padrão linguístico português. Essa atitude de sujeição é textualizada por meio de

formulações como “imitação” (SD18), “enxerto de arte alheia” (SD19), “plágio”, “cópia

servil”, “pastiche deletério” (SD22), “nunca um ‘original’ e sim má ‘cópia’” (SD24),

“aceitação, por comodismo ou preguiça, de ideias alheias” (SD25), “parasitismo

camuflado”, “o Brasil finge ser o país que não é” (SD26), expressões que entretêm uma

relação de sinonímia. A servidão do Brasil também é significada pelo enunciador

separatista como uma espécie de vampirização da alma nacional, por meio de

formulações como: “as almas são almas velhas” (SD19), “brasileiros de carne ficaram

europeus de espírito” (SD20), “será este povo um corpo sem alma, uma pobre coisa sem

transcendência” (SD21), “o Brasil Colônia [...] não era senão o próprio Portugal em

projeção rarefeita” (SD23), “o Brasil era a fragílima nação que é porque finge ser o país

que não é” (SD26), “é estranho isto de permanecermos tão franceses pela arte e

pensamento e tão portugueses pela língua” (SD30), “esse dualismo de mentalidade e

língua” (SD32). Segundo o enunciador, quem imita “emporcalha” a língua/literatura do

Brasil (SD18), é “medíocre” (SD20), é “comodista” e “preguiçoso” (SD25).

O enunciador se mostra desiludido em relação à possibilidade de o Brasil ter

uma identidade, ser original, porque o “partido do plágio”, imperando no sistema de

governo e na educação, aniquilará aquilo que é tido pelo enunciador como

genuinamente nacional – a cultura, a alma e a língua do jeca tatu (SD24). Embora

Lobato seja um crítico contumaz do modernismo, que, na SD27, ele chama de

“brincadeira de crianças inteligentes”, ele nutre certa esperança de que o movimento

possa apressar a emancipação da literatura e língua nacional. Graças aos modernistas, as

Letras brasileiras passavam por uma transformação e começavam a se libertar do

“espírito da literatura francesa e da língua portuguesa de Portugal”. Com a ironia que

lhe é peculiar, Lobato textualiza metaforicamente, na SD28, a repulsa de tudo aquilo

que vinha de Portugal, como um ato de canibalismo em a que a “refeição” é indigesta.

Possivelmente, com a metáfora “Comi um português inteiro” estava dizendo que leu um

texto escrito em português castiço, um texto que, passado meses, ele não conseguia

digerir, por ser “mais indigesto que pepino cru”. Não era fácil completar o ritual

antropofágico de deglutição da cultura, literatura e língua lusitana para produzir cultura,

literatura e língua brasileira, sem recair no script modelo/cópia, que dominou a arte do

período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX.

80

Na SD29, o problema da colocação pronominal, que nunca faltava na polêmica

entre separatistas e legitimistas, marca presença no enunciado. Nele, Lobato discorda de

alguém que reabilitara as normas de colocação pronominal, contra a liberdade de usar os

pronomes como eles surgem naturalmente na frase. Para ele, essa preocupação

desmedida com os pronomes era uma “atrapalhação”. A inquietação lobateana com a

originalidade o levava a indignar-se com o hábito dos escritores brasileiros de seguir a

arte e o pensamento francês e a língua de Portugal, quando deveriam trabalhar no

sentido de fazer da literatura nacional um monumento que refletisse “as coisas e a

mentalidade desse país por meio da língua falada nesse país” (SD30). Segundo Lobato,

o desinteresse pela literatura brasileira se deve à falta de identificação do povo com os

textos, cujas ideias são copiadas da França e cuja língua é copiada de Portugal: “o

público não os lê porque não lhes entende nem as ideias nem a língua” (SD31). No

compasso da teoria evolucionista, Lobato esperava que essa dualidade de pensamento e

de língua um dia acabasse, que, finalmente, os gramáticos se sentiriam convencidos de

que o português “variou entre nós, como acontece todas as vezes que um idioma muda

de continente” (SD32), uma vez que as situações, as demandas e, principalmente, os

povos que o falam são outros. Nessas SDs, a França é significada como detentora do

monopólio da alta cultura/literatura e Portugal é significado como detentor do

monopólio da língua, e a aceitação incondicional desses dois monopólios é a danação

do Brasil.

Nas SDs 33 a 42, a seguir, o enunciador separatista repudia a imitação de

franceses e europeus:

SD33: Envenenados pelo mal da época, Debret, Taunay, Montigny e outros

agravaram o erro francês, inoculando-o em uma colônia em formação. E

assim, mal orientados, incapazes de visão brasílica das coisas, a obra

educativa desses mestres consistiu em impor um convencionalismo. As

obras desse período acumulam-se, boas, medíocres ou más quanto à técnica,

mas seladas todas com o carimbo da desnacionalização. (IJT6, [1919], 2008,

p. 88)

SD34: De que maravilhosas coisas o brasileiro não seria capaz se não ficasse

no terreno do pastiche o inibitório terror à mofa escarninha do francês.

(IJT14, [1919], 2008, p. 186)

SD35: Ai! Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos,

como o francês tem a coragem de ser francês, e o inglês a de ser inglês, e o

alemão a de ser alemão? Quando? Quando? (IJT, [1919] 2008, p. 189)

SD36: Paris! Paris! Estou nessa Paris que sempre virou a cabeça de todos os

brasileiros – e como não, se há aqui sessenta mil mulheres de “bem fazer a

81

quem lhes paga” ou tapeia? Brasileiro é mico – e em parte nenhuma um

homem se convence mais disso do que aqui. Chegam e: onde é? Indique-me

uma coisa boa. Louvre, Sorbonne? Centros de Arte e Cultura? Ah, ah, Ah...

(IJT17, [1919], 2008, p. 246)

SD37: E “cultura nacional” entre nós não passa de cópia servil do que se faz

no estrangeiro, sem as cautelas duma sábia adaptação. (IJT18, [1919], 2008,

p. 255)

SD38: Nas demais manifestações, letras, artes e ciência, ainda não criou

coisa nenhuma; sempre satelitante, qual lua morta, em torno dos movimentos

europeus, copia-lhes com servilismo a letra sem nunca assimilar o espírito.

(PVJTOT1, [1918], 2010, p. 23)

SD39: Ah, se o Brasil que fala e pensa e age consagrasse ao estudo e solução

dos problemas internos um décimo das energias desprendidas em comentar

os fatos europeus... (PVJTOT2, [1918] 2010, p.32)

SD40: Há bem pouco tempo só quem conhecia alguma outra língua podia

por-se em contato com a universalidade [...] A Editora Nacional rompeu com

o mito. Começou a dar livros que não os franceses, e nessa literatura o povo,

com certo espanto, começou a ver que o mundo não é apenas bordel ou

alcova [...] Que há descampados e florestas imensas, montanhas, planuras de

neve, tigres e panteras e elefantes... (FOM9, [1940] 2010, p.278)

SD41: É isso mesmo. O Brasil é um carro de boi. Mas um carro vexado de o

ser, traz ensebados os eixos para não rechinar. Falta-lhe a bela coragem de

ser carro de cabeça erguida, e chiar à moda velha, indiferente ao motejo de

Paris – a grande obsessão brasileira. O mal não está em ser carro de boi. Está

em o esconder. (FOM1, [1940] 2010, p. 28)

SD42: Nós temos a obsessão do francês. Essa obsessão leva uma sociedade

que se diz culta a atitudes ridículas, a macaquices inacreditáveis.” (CAC3,

[1959] 2010, p. 87)

Na SD 33, Lobato lamenta que os franceses que vinham fazer arte no país não

incorporassem às suas obras uma “visão brasílica das coisas”, limitando-se a transferir o

convencionalismo francês para a colônia e deixando de colaborar para a formação de

uma arte brasileira. Independentemente da qualidade de tais obras – “boas, medíocres

ou más quanto à técnica” – todas pecavam por nelas trazer impresso “o carimbo da

desnacionalização”. Quer dizer, os franceses que vinham para o Brasil faziam apenas

difundir “o erro francês, inoculando-o em uma colônia em formação”. “Inocular”

significa introduzir um agente causador de doença num organismo ainda saudável que,

pela ação do agente, adoecerá. É como se a arte francesa fosse vírus introduzido no

Brasil, contaminando a nossa arte, fazendo-a adoecer.

Lobato mostra, na SD34, acreditar no potencial brasileiro, mas observa que este

era desperdiçado em plágios descaracterizantes, em “macaquices inacreditáveis”, tudo

82

por medo da troça e da zombaria (“terror à mofa escarninha do francês”) daqueles que

imitavam cegamente tudo o que era francês: gastronomia, moda, arte, literatura,

arquitetura etc. Na sua convicção nacionalista, Lobato se irritava profundamente com

francesismo da elite paulistana. A dita sociedade culta era criticada não apenas por se

intimidar diante da francesia, mas também por ser covarde, por não ter a coragem de ser

ela mesma. O que os brasileiros deveriam imitar dos franceses, dos ingleses e de outros

europeus era o espírito de independência, que fazia um francês ter a coragem de ser

francês, um inglês ter a coragem de ser inglês (SD35). Porém, não era o espírito

resoluto dos europeus que os brasileiros imitavam, copiavam-lhes “com servilismo a

letra sem nunca assimilar o espírito” (SD38).

A SD36 descreve o comportamento de um brasileiro em Paris. Segundo Lobato,

Paris é a cidade dos sonhos dos brasileiros. Observando como eles se comportam na

capital francesa, ninguém teria dúvida de que são, de fato, “micos”, pois agem como

macacos que irracionalmente imitam qualquer gesto do outro. O encantamento não é

dirigido apenas para os ícones da alta cultura na cidade, mas também para o seu lado

bordel. Aliás, o único resquício de brasilidade que seria conservado em Paris seria a

“esperteza” para “tapear” as meretrizes (“há aqui sessenta mil mulheres de ‘bem fazer a

quem lhes paga’ ou tapeia?”). O enunciador ironiza o afobamento dos brasileiros que,

ao aportarem na Cidade Luz, já chegam perguntando onde ficam os pontos turísticos

culturais mais conhecidos (“Louvre, Sorbonne? Centros de Arte e Cultura?”),

comportamento que despreza e desdenha, a julgar pelo seu riso derrisório “ah, ah, ah...”.

A todo o momento, Lobato retoma os dizeres fundamentais do discurso nacionalista de

que as produções brasileiras deveriam ser originais, ou, pelo menos, quando inspiradas

em obras estrangeiras, ser sabiamente adaptadas à cultura nacional e não uma cópia

servil (SD37).

Na SD38, mais uma vez o enunciador lança mão de uma metáfora para criticar a

dependência brasileira da cultura européia. Dessa vez, sua inspiração brota do campo da

astronomia – a cultura brasileira é comparada a uma “lua morta”, ou seja, é comparada a

um satélite, cuja propriedade é a de gravitar em torno de outro corpo celeste principal.

Nessa relação metafórica, o corpo celeste principal é a Europa e a lua morta, o Brasil,

condenado ao satelitismo em relação a tudo que viesse daquele continente. As letras,

artes e ciências no Brasil gravitavam em torno do que pensavam e criavam os europeus.

Ao qualificar a “lua” como “morta”, Lobato realça ainda mais a inércia criativa nacional

e a nenhuma originalidade da chamada cultura civilizada, erudita no país. O satelitismo

83

brasileiro é também esconjurado na SD39, com uma espécie de interpelação da elite

pensante brasileira para que ela concentrasse suas energias em pensar os problemas

nacionais e não os estrangeiros. No Brasil, a Europa era conteúdo frequente em

conversas tidas como “civilizadas”. Lobato queixava-se de que muito tempo era gasto

para “comentar fatos europeus” e que esse tempo deveria ser gasto buscando soluções

para os problemas brasileiros e para o estudo do que poderia impulsionar o

desenvolvimento efetivo do país.

Na SD40, o enunciador fala como um editor comprometido com o projeto

nacionalista de oferecer aos leitores brasileiros outra literatura que não apenas a

francesa que os fazia pensar que o mundo era apenas “bordel ou alcova”. Com a

diversificação que sua editora promoveria, os leitores teriam a oportunidade de

visualizar outros cenários, como “descampados e florestas imensas, montanhas,

planuras de neve, tigres e panteras e elefantes”.

Na SD41, mais uma metáfora se junta à coleção lobateana. Dessa vez, o Brasil é

dito um “carro de boi”, provavelmente o veículo mais rudimentar usado no país, à

época, associado à vida rústica do campo, ao imobilismo cultural, à cultura oral, ao

“jeca tatu”, paradoxalmente maldito e consagrado pelo escritor como o tipo

genuinamente brasileiro. O ritmo de um carro de boi é muito lento, como lento é o

desenvolvimento do país. Todavia, o mal do Brasil, segundo Lobato, não era ser “carro

de boi”, não era se desenvolver lentamente, era negar essa condição, ensebando “os

eixos para não rechinar”, ou seja, para não chiar e disfarçar sua rusticidade. O desejo

enunciado é o de que o Brasil ousasse e, mesmo sendo ainda caipira, tosco, rudimentar,

lento, tivesse a intrepidez de se assumir como era, indiferente ao escárnio parisiense. A

obsessão da chamada sociedade culta pelo francesismo levava “a atitudes ridículas, a

macaquices inacreditáveis” (SD42).

É, portanto, pelo viés da semântica nacionalista que Lobato significava a

dependência brasileira, na virada do século XX, de tudo o que era europeu,

principalmente, francês. A mania de copiar tudo o que era parisiense era abominada

pelo escritor, posição que se reflete nos diversos simulacros presentes no conjunto de

SDs 33 a 42, por meio dos quais se refere a esse comportamento indesejável: “obras

seladas com o carimbo da desnacionalização” (SD33), “pastiche” (SD34), “Brasileiro é

mico” (SD36), “cópia servil” (SD37), “servilismo” (SD38), “satelitante qual lua morta”

(SD38), “atitudes ridículas” (SD42), “macaquices inacreditáveis” (SD42). Tais

simulacros encarnam o desprezo que nutria pelo espírito de colonizado do brasileiro que

84

o fazia legitimar, pela cópia, o que era estrangeiro. Na escrita de Lobato, há sempre uma

voz reivindicando originalidade para as Letras, as artes e a cultura brasileira e lutando

pela consolidação de uma identidade nacional.

Observando a veemência com que Lobato repudiava a imitação dos franceses,

em matéria de literatura, artes e cultura, e a imitação dos portugueses, em matéria de

língua, é possível compreender a razão de seu entusiasmo diante da empreitada de

Amadeu Amaral, ao sistematizar o dialeto caipira numa obra:

Esse estudo, tão reclamado, Amadeu Amaral superiormente o realizou. Seu

dialeto caipira vale por chave de ouro a abrir as portas de um mundo inédito.

É o começo da gramaticalização de uma língua nova, neta da língua de

Horácio. (OV2 [1921], 2008)

Segundo o nacionalismo lobateano, enfim, surgia algo que arejava as Letras

brasileiras, viciadas pelo ar contaminado da Europa que soprava em nossa direção. Para

quem, cansado de brigar com o partido da cópia, o jeca era o tipo que melhor

representava o homem nacional, a publicação de um estudo sobre o dialeto caipira

significava muita coisa. Estudar, sistematizar e publicar um livro sobre a língua do jeca,

tida como filha do português e neta do latim (a língua de Horácio), eram gestos que

inauguravam uma nova era que podia levar o Brasil a uma emancipação completa de

Portugal. Para tanto, a língua brasileira precisava se tornar uma língua escrita, ou seja,

precisava ser gramatizada. O processo de gramatização de uma língua se inicia com a

sua transcrição por meio das letras. Uma língua que, até então só tinha uma existência

oral, passa a ser escrita e cria as condições para o desenvolvimento de um saber

metalinguístico sobre ela, cujos pilares são, como já se observou anteriormente, a

gramática e o dicionário. Lobato compreende o estudo de Amadeu Amaral como

encetando o processo de gramaticalização da língua brasileira, passo fundamental para o

seu reconhecimento como língua independente do português e, consequentemente,

como língua oficial do país. Uma vez escrita, a Brasilina não seria apenas a língua

ouvida “à beira dos corgos, pelas vendolas de estrada, nos casebres de sopapo, nos

sambas, nas catiras, nas farras, na peraltagem infantil das ruas”, saída da boca da

“arraia-miúda dos campos e do povinho humilde e sofredor das cidades”, dos “roceiros,

das patuleias urbanas e dos literatos que se dirigem às massas e não às elites”, seria uma

língua digna da expressão literária, a ser lapidada “na ourivesaria da rima e da prosa”.

Lobato era um enunciador incansável na afirmação do valor que a cultura

nacional merecia e, por isso, atribuía grande relevância à iniciativa de Amadeu Amaral

85

de apresentar “a caipirinha dialetal paulista” ao país, uma vez que ele a tinha como

língua que atenderia “às necessidades de expressão dos vinte e cinco milhões de jecas

que somos” e que, no futuro, viria a ser a língua nova a ser falada por “duzentos milhões

de homens”.

A partir de então, Lobato passa a falar aos leitores em primeira pessoa do

singular, como se fosse o próprio Amadeu Amaral apresentando sua obra:

Está aqui o pingo d’água arisco que vai ser o diamante de amanhã. Exponho-a

aos vossos olhos, nuazinha em pelo, envergonhada e humilde como a apanhei

reinando à beira dos corgos. Apanhei-a como O. F. apanha borboletas: sem

lhes tocar nas asas para que nenhuma falripa do irisado se perca. Está pura e

intacta como se surgisse de um banho matinal no ribeirão. (OV2 [1921],

2008)

Nessa sequência discursiva, mais metáforas são formuladas para apresentar a

Brasilina ao público leitor como uma língua em processo de formação: ela é um pingo

de água que ainda vai se cristalizar; ela é uma menina-moça, nua, pura e intacta como se

tivesse acabado de se banhar no ribeirão; ela é como as borboletas que precisam ser

capturadas como muito cuidado para não ter danificada a penugem que produz o

espectro de cores quando atingida pela luz. Quer dizer, o trabalho de Amaral não

apresentava uma língua pronta, mas o devir da nova língua, e o fazia com o cuidado de

não deturpá-la. Na sequência discursiva a seguir, Lobato finalmente resenha o livro O

Dialeto Caipira, indicando o que ele contém:

Estudei-a sob todos os aspectos.

O fonético, enunciando as alterações normais dos fonemas e as modificações

isoladas. O lexicológico, dizendo dos elementos lusos, arcaicos na forma ou

no sentido, com que se enfeita; dos elementos indígenas que assimilou, dos

africanos e das elaborações pessoais – deliciosa criação de fino valor

expressivo. O morfológico, dando a formação das palavras, as maluqueiras

teratológicas, as flexões de grau e verbo e o modo todo seu de resolver a

questão dos pronomes. O sintático, reunindo fatos relativos ao sujeito, aos

pronome como objetivo direto, às conjugações perifrásticas, às orações

relativas, às modalidades de negativa e à maneira de circunstanciar o tempo,

e espaço e a causa.(OV2 [1921], 2008)

Em seguida, organizei um vocabulário onde desfio o rosário inteiro de

palavras que ela criou, ressuscitou, simbolizou e modificou – ou corrompeu,

como querem os moralistas vestidos na pele dos filólogos. (OV2 [1921],

2008)

Na retomada da obra feita por Lobato, fica evidente o diálogo travado por

Amadeu com a gramática tradicional. É com base nos conceitos e na terminologia desse

paradigma que o dialetólogo realiza e organiza seu estudo, partindo da menor unidade

86

(nível fonético) para a maior (nível sintático). Na verdade, a obra reúne os dois

instrumentos da gramaticalização de que fala Auroux (1992): uma gramática e um

vocabulário do dialeto caipira.

No enunciado sobre o vocabulário criado pela Brasilina, pode-se observar com

clareza a heterogeneidade do discurso que, nesse caso, além de constitutiva, é também

mostrada. Veja-se que, sob o ponto de vista do discurso separatista, o enunciador fala

das palavras que a língua “criou, ressuscitou, simbolizou e modificou”, ações sobre as

quais não há incidência de uma avaliação negativa. Porém, quando retoma a voz dos

legitimistas (“os moralistas vestidos na pele dos filólogos”), o enunciador usa o termo

“corrompeu”, termo investido de uma carga semântica negativa, habitualmente usado

por eles para designar a mudança que ocorreu no português falado no Brasil, uma

mudança que, segundo viés conservador, destruía a integridade da língua-mãe.

Enunciados como esse são extremamente significativos para mostrar a fecundidade da

tese que afirma a natureza interdiscursiva e heterogênea do discurso.

Ainda falando como se fosse Amadeu Amaral, no enunciado seguinte, Lobato

convoca outros estudiosos a também contribuir para a descrição da língua nova,

retratando-a fielmente, “sem retoques”, como ele mesmo diz (jura) fazer. Com um

feeling de sociolinguista, quando essa ciência era sequer imaginada nos moldes

científicos que ela viria a ter, ao ser criada na década de 1960, Lobato já observava que

a língua nova era múltipla e não una. Assim, a tarefa de descrever todas as variantes

regionais da língua nova era um trabalho coletivo:

Aqui tendes a minha contribuição. Juro pela fidelidade do esboço – que assim

que foi que a vi, à língua nova, brincando menineira em terras de São Paulo.

Façam os outros o mesmo. Retratem-na com este carinho, ao Norte, ao Sul,

ao Centro – honestamente, sem retoques.

Porque Brasilina é volúvel. Trata-se de gaúcha nos pampas, de vaqueira no

Centro, de seringueira na Amazônia e só a teremos estudada de modo

integral, nas graças corporais e na psicologia, quando lhe fotografarmos todas

as variantes. Só esse trabalho coletivo nos permitirá a posse do diamante

bruto que por aí rola nas mãos calejadas do poviléu. Feito isso, é lapidá-lo na

ourivesaria da rima e da prosa e teremos criado a língua nova que no futuro

falarão duzentos milhões de homens. (OV2 [1921], 2008)

É desdobrando a metáfora da língua nova como uma mulher jovem – Brasilina –

que Lobato fala sobre a necessidade descrever as variantes regionais que a compõem.

Brasilina é representada como uma mulher “volúvel” que se faz “gaúcha nos pampas”,

“vaqueira no Centro”, “seringueira na Amazônia”, assumindo tipos regionais, o que

87

pode ser entendido como uma reafirmação da tese evolucionista, segundo a qual há uma

adaptação dos organismos ao meio em que vivem. Brasilina só será retratada

integralmente, “nas graças corporais e na psicologia”, quando todos os seus tipos

(variantes) forem estudados. Da metáfora da mulher, Lobato passa para a do “diamante

bruto” que “rola nas mãos calejadas do poviléu”. Quer dizer, o trabalho de coleta do

vernáculo da nova língua teria deve ser feito entre o poviléu, por estudos realizados nas

diversas regiões, in loco, com o registro apenas dos fatos linguísticos vigentes. Esses

estudos resultariam na posse do “diamante bruto”, ou seja, resultariam na apreensão da

língua nova comum, que seria lapidada por prosadores e poetas. Em síntese, a língua

nova estava sendo produzida pelo povo, deveria ser gramatizada por estudiosos como

Amadeu Amaral e lapidada pelos escritores.

A convocação para a tarefa de descrever as variantes da língua nova é uma

espécie de glosa do que o próprio Amadeu Amaral, que se considerava apenas um

“hóspede da glotologia”, diz no prefácio de seu livro. Ele insistia na ideia de que era

necessário desenvolver um trabalho imparcial, paciente e metódico de observação dos

falares de cada região, cujas descrições, posteriormente, poderiam ser comparadas,

fazendo sobressair “os caracteres gerais do dialeto brasileiro”:

É claro que não é esta uma tarefa simples, para ser levada a cabo com êxito

por uma só pessoa, muito menos por um hóspede em glotologia. Mas é bom

que se comece, e dar-nos-emos por satisfeito, se tivermos conseguido fixar

duas ou três ideias e duas ou três observações aproveitáveis, neste assunto,

por enquanto, quase virgem de vistas de conjunto, sob critérios objetivos. [...]

Fala-se muito num "dialeto brasileiro", expressão já consagrada até por

autores notáveis de além-mar; entretanto, até hoje não se sabe ao certo em

que consiste semelhante dialetação, cuja existência é por assim dizer

evidente, mas cujos caracteres ainda não foram discriminados. Nem se

poderão discriminar, enquanto não se fizerem estudos sérios, positivos,

minuciosos, limitados a determinadas regiões.

O falar do Norte do pais não é o mesmo que o do Centro ou o do Sul. O de S.

Paulo não é igual ao de Minas. No próprio interior deste Estado se podem

distinguir sem grande esforço zonas de diferente matiz dialetal - o Litoral, o

chamado "Norte", o Sul, a parte confinante com o Triângulo Mineiro.

Seria de se desejar que muitos observadores imparciais, pacientes e

metódicos se dedicassem a recolher elementos em cada uma dessas regiões,

limitando-se estritamente ao terreno conhecido e banindo por completo tudo

quanto fosse hipotético, incerto, não verificado pessoalmente. Teríamos

assim um grande número de pequenas contribuições, restritas em volume e

em pretensão, mas que, na sua simplicidade modesta, escorreita e séria

prestariam muito maior serviço do que certos trabalhos mais ou menos vastos,

que de quando em quando se nos deparam, repositórios incongruentes de

fatos recolhidos a todo preço e de generalizações e filiações quase sempre

apressadas.

88

Tais contribuições permitiriam, um dia, o exame comparativo das várias

modalidades locais e regionais, ainda que só das mais salientes, e por ele a

discriminação dos fenômenos comuns a todas as regiões do país, dos

pertencentes a determinadas regiões, e dos privativos de uma ou outra fração

territorial. Só então se saberia com segurança quais os caracteres gerais do

dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros, quantos e quais os subdialetos, o

grau de vitalidade, as ramificações, o domínio geográfico de cada um.

Seremos imensamente grato às pessoas que se dignarem de nos auxiliar, de

acordo com as ideias que aí ficam esboçadas, no aumento e no

aperfeiçoamento desta modesta tentativa (AMARAL, 1920, p. 2 e 3).

Fechando o momento da enunciação em que assume a voz de Amadeu Amaral

para dizer do que vai dentro do texto, Lobato confere ao autor de O Dialeto Caipira, a

honrosa alcunha de “Fernão Lopes da gramaticologia brasileira”. Assim, o feito de

Amadeu Amaral, ao iniciar o processo de gramatização da língua brasileira, seria

comparável ao feito de Fernão Lopes, considerado o precursor da prosa literária e

ensaística de língua portuguesa:

É isto que nos diz o livrinho modesto de Amadeu Amaral, o Fernão Lopes8

da gramaticologia brasileira.

Seu dialeto caipira assanhará as tartarugas filológico-perobas, como obra

ímpia que dá honras de cidade à “corrupção”. Esses carunchos sob forma

humana pertencem à fauna cadavérica. Só se sentem à vontade quando a

questão é de necropsia. Em se tratando de arrastar a asa a uma rapariga viva,

de carne morena e quente, persignam-se como fradalhões hipócritas e gritam

fugindo às arrecuas:

- Pecado! Pecado!... (OV2 [1921], 2008).

No último parágrafo da resenha, o processo de interincompreensão realizado

pelo enunciador separatista-nacionalista em relação ao discurso legitimista é levado às

últimas consequências, resultando em mais uma farta safra de simulacros. Presumindo a

crítica e a censura que a obra de Amadeu Amaral poderia sofrer da parte dos

conservadores, adiantando que ela poderia ser dita por eles uma “obra ímpia que dá

honras de cidade à ‘corrupção’”, quer dizer, uma obra que peca contra as normas e os

valores estabelecidos e abona a corrupção da boa língua, Lobato nomeia os legitimistas

como: “tartarugas filológico-perobas”, “carunchos”, “fauna cadavérica” e, mais, afirma

que eles só lidam bem com a língua morta que pode ser submetida a “necropsia”. Se,

por um lado, os legitimistas são representados como quem está em companhia da língua

8 Fernão Lopes viveu entre 1380-1460. Cronista histórico lusitano nascido em Lisboa, é considerado

precursor dos modernos métodos historiográficos e criador da prosa literária e ensaística de língua

portuguesa. Lobato compara Amaral, por ser precursor da gramática da língua brasileira, a Fernão Lopes

que é considerado precursor da prosa portuguesa.

89

velha e morta, por outro, os separatistas tomam partido da língua nova, que está no

esplendor da vida. Pelos cultuadores da morte, agora ditos “fradalhões hipócritas”, a

língua nova, apresentada sensual e metaforicamente como “uma rapariga viva de carne

morena e quente”, é, presumivelmente, vista como pecado de que se afastam. Além de

puristas, puritanos, eis a imagem que Lobato pinta dos legitimistas com a profusão de

metáforas e simulacros que pontuam o texto, do início ao fim.

Apesar de esboçar um gesto radical de afirmação da língua e da literatura

brasileira, praticamente em todos os enunciados, Lobato procura se desvencilhar daquilo

que, na sua opinião, transforma os brasileiros em micos – a imitação rasa do padrão

estético francês e das normas linguísticas portuguesas. O lugar de que Lobato fala é o do

separatista, porém esse lugar, longe de ser um território conquistado em definitivo, é um

território sob litígio, disputado com o legitimista, que defende a manutenção do domínio

linguístico português, mesmo quando os outros laços foram rompidos. Considerando

que, em relação ao corpus de enunciados aqui analisado, o discurso separatista é o

agente, o legitimista sempre é retomado/traduzido por meio de semas negativos,

rejeitados, afinal, “[...] o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas

somente com o simulacro que constroi dele” (MAINGUENEAU, 2005, p. 103). Assim,

perspectivado pela semântica separatista, o modo legitimista de significar a alteridade

linguística brasileira é abominado por Monteiro Lobato.

90

CAPÍTULO V

O DICIONÁRIO BRASILEIRO: “UM CAMPONÊS DO MINHO NÃO COMPREENDE

NEM É COMPREENDIDO POR UM JECA DE SÃO PAULO”

Temos deveres para com o futuro. Já que não

soubemos ou não pudemos consertar as coisas tortas

herdadas, tenhamos ao menos a hombridade de não

iludir nossos filhos. “Falhamos” – deve ser a nossa

linguagem. “Não pudemos corrigir os erros vindos de

trás. Não pudemos conseguir um bom governo. Não

pudemos endireitar a Central – nem o Departamento

Nacional de Produção Mineral. Mas vocês, que vão

constituir o Brasil de amanhã, saibam disso,

enfronhem-se desde já das mazelas vigentes, e quando

virarem adultos tratem de fazer o que a nós não foi

possível. Tratem de consertar o Brasil, pois do

contrário sofrerão ainda mais do que nós. Males que

se agravam progressivamente tornam-se cada vez

mais dolorosos”. (LOBATO, [1940] 2009, p.203)

Este capítulo nucleia-se pelo texto O dicionário brasileiro, escrito por Lobato

em 1922, com o propósito de saudar a obra que estava sendo produzida pelo professor

paulista Francisco de Assis Cintra, como uma espécie de monumento para comemorar o

centenário da independência do Brasil. Na análise do texto será focalizada a polêmica

entre os separatistas e os conservadores no que concerne à forma de significar a língua

nacional e a identidade brasileira. Outras sequências discursivas que enunciem (o desejo

de) a ruptura com o padrão português e a defesa da língua brasileira, a busca de uma

identidade cultural e linguística verdadeiramente nacional e o repúdio ao patriotismo

caricatural, serão também tomadas aqui como objeto de leitura. Além disso, uma breve

incursão pelo ethos lobateano será feita ensaiada neste capítulo. Como no capítulo 4,

transcreve-se, a seguir, o texto a ser analisado, para que o leitor tenha a oportunidade de

lê-lo integralmente.

91

O dicionário brasileiro

Assim como o português saiu do latim pela corrupção popular dessa língua, o brasileiro está

saindo do português. O processo formador é o mesmo: corrupção da língua mãe. A cândida

ingenuidade dos gramáticos chama “corromper” ao que os biologistas chamam “evoluir”.

Aceitemos o labéu e corrompamos de cabeça erguida o idioma luso, na certeza de estarmos a

elaborar uma obra magnífica.

Novo ambiente, nova gente, novas coisas, novas necessidades de expressão: nova língua.

É risível o esforço do carrança, curto de ideias e incompreensivo, que deblatera contra esse

fenômeno natural e tenta paralisar a nossa elaboração linguística em nome dum respeito

supersticioso pelos velhos tabus... que corromperam o latim.

A nova língua, filha da lusa, nasceu no dia em que Cabral pisou no Brasil.

Não há documentos, mas é provável que o primeiro brasileirismo surgisse exatamente no dia

22 de abril de 1500. E desde então não se passou um dia talvez em que a língua do reino não

fosse na colônia infiltrada de vocábulos novos, de formação local, ou modificada na

significação dos antigos.

Hoje, após 400 anos de vida, a diferenciação está caracterizada de modo tão acentuado que um

camponês do Minho não compreende nem é compreendido por um jeca de São Paulo ou um

gaúcho do Sul.

Quer isto dizer que no povo – e a língua é um produto puramente popular – a cisão já está

completa.

Nas classes cultas a diferença é menor, se bem que acentuadíssima, sobretudo na pronuncia e

no emprego de palavras novas. Até arcaísmos lusos ressuscitam cá e são correntes de norte a

sul. Um deles foi tomado como brasileirismo: o emprego do pronome pessoal “ele” como

complemento direto. Ora, isso é coisa velha, forma anterior ao descobrimento do Brasil. Dizem

os escabichadores de antigualhas que é do uso corrente dos cancioneiros, na Demanda do

Graal, no Amadis etc. E citam de Fernão Lopes muito “viu ela”, “nomeamos ele” etc. – de

Fernão Lopes!, um dos grandes pais da língua lusa.

Não é brasileirismo, pois, essa forma velha e revelha. É um lusitanismo ressurreto na colônia.

Outros protestam que não, que não é arcaísmo e sim forma nativa, peculiaridade das línguas

indígenas faladas no Brasil pré-luso.

Hoje, do Amazonas ao Borges, o “ele” e o “ela” desbancaram o “o” e o “a” na linguagem

falada, apesar da resistência dos letrados e da resistência da língua escrita. Não nos consta que

algum escritor de mérito usasse na prosa ou no verso esse pseudobrasileirismo, embora,

falando familiarmente incida nele. Mas dia virá em que se rompa esta barreira, porque as

correntes populares são irresistíveis, os gramáticos não são os donos da língua, e esta não é

uma criação lógica.

Verão, pois, nossos futuros netos, um Rui, de tanta autoridade como o atual, abrir uma oração

política da mais alta importância com esta forma que inda choca o beletrismo de hoje: O Brasil,

senhores, amei ele o mais que pude, servi ele o que me deram as forças etc.

E verão um Bilac lançar um “ouvir estrelas” assim:

92

Ontem divisei ela

na janela...

Será isso simplesmente a reabilitação da forma lusa dos pré-clássicos, já vitoriosa na língua, ou

a vitória da sintaxe tupi?

Riem-se? Não é matéria de riso. É a anotação singela da marcha de um fenômeno.

Inda nos detém hoje o medo à férula dos gramáticos d’além-mar e de seus prepostos no Brasil.

Não obstante a corrente do “ele” cresce dia a dia e acabará expungindo a do “o”.

Além dessas incoercíveis modificações sintáticas, temos outra feição evolutiva operada em

larga escala: a adoção de palavras novas por injunções das necessidades ambientes.

A língua é um meio de expressão. A variedade de coisas novas que tivemos a necessidade de

expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força no povo um surto copiosíssimo de

vocábulos. Eles brotam por aí como cogumelos durante a chuva. Lutam entre si. Os fracos, os

inúteis, caem, como frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons, os expressivos e

necessários, vencem e ficam na língua. A princípio na língua falada. Depois penetram a

chamada literatura regional. Passam dela aos glossários de brasileirismos e entram, por fim,

consagrados, no panteão dos dicionários.

A extensão do nosso território favoreceu grandemente o neologismo. Houve além disso a

contribuição copiosa do índio e do negro. Há agora a do italiano em São Paulo e a dos alemães

no Sul.

A maioria destas palavras são de absoluta necessidade. Como falar da vida amazônica sem

recurso às mil palavras de criação local? Como pintar o Rio Grande sem recorrer ao

vocabulário gaúcho? E falar do Rio sem tomar as pitorescas invenções glóticas do cafajeste

carioca?

Há no português termos que substituam o “encrenca” e seus derivados, de criação alemã

catarinense? E a “uruca”, a “caguira”, o “engrossamento”, como enunciar com palavras do

Morais?

Sem coragem ainda de lançarmos o nosso dicionário, vemo-lo já em trabalhos preparatórios, a

delinear-se nas obras de B. Rohan, Taunay, Romaguera e tantos outros coletores de

regionalismos.

Virá a seu tempo. Convencer-nos-emos um dia de que, se saímos de Portugal, nada mais temos

com o ex-reino, hoje tumultuosa República. Virá, talvez, muito breve. O dicionário brasileiro já

anda em elaboração. Um professor paulista, Francisco de Assis Cintra, emérito sabedor da

língua e rijamente dotado para o trabalho da empresa acaba de iniciá-lo sob as mais inteligentes

bases.

Em matéria dicionarística vivemos ainda hoje na absoluta dependência de Portugal. Temos o

que Portugal nos manda, Aulete, Vieira, Cândido de Figueiredo. Este nos deu a honra insigne

de incluir na sua obra uma boa cópia de brasileirismos, para contentar a colônia e fazer bom

negócio nela. Os mais dicionários são rigorosamente portugueses.

Quem lê Alberto Rangel, por exemplo, o mais rico batedor de termos regionais da nossa

literatura, em muitos pontos não tem meios de lhe compreender o pensamento. Esbarra a cada

passo com uma palavra regional coletada por ele e, se recorre aos dicionários, fica na mesma.

No próprio Rui Barbosa quantas palavras não existem que o carrança português não nos deu a

93

honra de “endicionarizar”?

Isso, porém, não é culpa deles que fazem léxicos portugueses para seu uso lá. A culpa é nossa,

pois já era tempo de termos publicado o nosso dicionário.

Pensando assim, o Prof. Assis Cintra empreendeu a obra nas seguintes bases: eliminar do novo

dicionário todas as palavras portuguesas desusadas no Brasil, já arcaísmos, já lusitanismos de

moderna criação popular, absolutamente inúteis para as nossas necessidades expressivas.

Eliminar todas as palavras coloniais portuguesas que atravancam os dicionários atuais,

fazendo-os obesos.

Dar, principalmente, a significação que os vocábulos portugueses têm aqui no Brasil, e

subsidiariamente a que têm no ex-reino.

Introduzir nossas criações linguísticas, as coletadas pelos glossaristas e as que andam soltas.

Fazer, em suma, o dicionário prático de que precisa quem vive nesta terra, que já foi colônia e

está custando a se convencer de que não mais o é.

Será, pois, uma obra de grande utilidade e alto alcance, porque consolidará definitivamente o

cisma operado na velha língua lusa.

Acontece hoje o seguinte: o menino abre o Aulete e procura a palavra “hein”; e vê lá a

pronúncia “na-e”. Ri-se, está claro, e chama “âne” ao pobre Aulete.

Outro vai ao C. de Figueiredo em busca da palavra “chupim”, que ele ouve todos os dias

aplicada a um passarinho preto que parasita o tico-tico e por analogia aos maridos de

professoras. Não encontra. Mas encontra, por exemplo, “caloqueio”, pássaro africano. Temos

de abrir a gaiola ao caloqueio e pôr em seu lugar o chupim. Está aquele estafermo a empatar

um poleiro precioso.

Dirão: seria melhor conservar todas as palavras portuguesas e incluir todas as nossas. Isso seria

fazer uma almanjarra ineditável, ou caríssima, ao passo que o peneiramento acima proposto

aliviaria a obra das múmias inúteis que se esmirram ali, dos exotismos da Índia e Angola com

que nada temos que ver, daria livro maneiro, cômodo, num volume só, e por preço ao alcance

do povo.

Acoimam o nosso povo de ignorante, mas não lhe dão sequer um dicionário da língua, bom e

barato! Os sucedâneos portugueses que lhe indicam, sobre lhe não satisfazerem as exigências,

custam os olhos da cara, 80, 100 mil-réis.

Além dessa novidade, o Prof. Cintra pretende dar o máximo rigor às definições, aproximando-

se dos grandes dicionários estrangeiros, Webster à frente. Fugirá assim, às erronias que Aulete

e Figueiredo increpam aos anteriores e em que incidiram, se bem que em menor escala.

Abro ao acaso este último e leio: “Desarvorado – que fugiu desordenadamente”. Logo: navio

desarvorado – navio que foge desordenadamente.

E são os papões da língua. Dão- nos em cima de palmatória e ensinam-nos que o que não se

deve dizer, esquecidos de que não se deve dizer, sobretudo, asneiras.

Muita coisa se projeta para a comemoração da independência. Se for levado a termo o

Dicionário Brasileiro, nenhuma comemoração será mais significativa. Valerá por um

esplêndido monumento e por um grande passo na “realização” duma independência

“proclamada”que vai fazer cem anos”. (OV3, [1921] 2008, 113 – 117)

94

5.1 DA POLÊMICA ACERCA DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL BRASILEIRA

Nota-se, como no capítulo anterior, o diálogo de Lobato com o

evolucionismo linguístico, teoria segundo a qual as línguas originam-se umas das

outras, podendo ser esquematizada através de uma árvore genealógica. Novamente ele

relembra o processo de formação do português a partir do latim vulgar, para sustentar

que o que está ocorrendo com a língua no Brasil é análogo ao processo que resultou no

idioma luso. Por isso, de nada adiantaria os gramáticos resistirem a esse processo de

mudança, ele era inevitável:

Assim como o português saiu do latim pela corrupção popular dessa língua, o

brasileiro está saindo do português. O processo formador é o mesmo:

corrupção da língua mãe. A cândida ingenuidade dos gramáticos chama

“corromper” ao que os biologistas chamam “evoluir”.

Aceitemos o labéu e corrompamos de cabeça erguida o idioma luso, na

certeza de estarmos a elaborar uma obra magnífica.

Novo ambiente, nova gente, novas coisas, novas necessidades de expressão:

nova língua.

É risível o esforço do carrança, curto de ideias e incompreensivo, que

deblatera contra esse fenômeno natural e tenta paralisar a nossa elaboração

linguística em nome dum respeito supersticioso pelos velhos tabus... que

corromperam o latim.

A nova língua, filha da lusa, nasceu no dia em que Cabral pisou no Brasil.

Não há documentos, mas é provável que o primeiro brasileirismo surgisse

exatamente no dia 22 de abril de 1500. E desde então não se passou um dia

talvez em que a língua do reino não fosse na colônia infiltrada de vocábulos

novos, de formação local, ou modificada na significação dos antigos.(OV3,

[1921] 2008)

A relação interdiscursiva com o evolucionismo biológico é, assim, uma

constante nas argumentações lobateanas. O escritor chega a contrastar o sentido

negativo de “corromper” e “corrupção” da língua mãe, conforme a semântica do

discurso legitimista à qual os gramáticos se filiam, com o sentido positivo de “evoluir”,

conforme a semântica do discurso separatista e nacionalista. Nacionalista que é, ele

convoca os brasileiros a aceitarem o labéu (mácula infamante à reputação de alguém) de

95

corruptores do idioma luso e a prosseguirem na corrupção, pois, pelo viés evolucionista,

isso significa a elaboração de “uma obra magnífica” – a língua brasileira.

O recurso ao evolucionismo parece lhe garantir uma explicação natural,

difícil de ser rebatida pelos conservadores/legitimistas. Lobato não se cansa de repetir

que o processo dinâmico, mediante o qual ele concebe a língua, é natural e recorrente:

“assim como o português saiu do latim pela corrupção popular dessa língua, o brasileiro

está saindo do português”. Por não entenderem que a evolução linguística é um

processo natural, por conceberem a língua de modo estático e invariável, por tentarem

“paralisar a elaboração linguística” em curso, os gramáticos são ditos pelo enunciador

como possuidores de uma “cândida ingenuidade”.

Lobato trava um tenso debate com o discurso legitimista, que, alinhado com

o purismo, defende a conservação do português original. O Outro só entra no discurso

separatista por meio de simulacros que acentuam a oposição e a resistência à mudança

do português para o brasileiro. O Outro é “carrança” (passadista); “curto de ideias”;

“incompreensivo”, e apegado a “velhos tabus”. Tais simulacros trazem à tona a

heterogeneidade dos discursos, bem como a interincompreensão inerente à polêmica.

De acordo com a teoria darwinista, quando membros de uma espécie se

separam geograficamente, enfrentam diferentes ambientes e tendem a evoluir em

diferentes direções. Esse processo é conhecido como evolução divergente. Passado um

longo tempo, tais membros poderão ter se desenvolvido em diferentes vias, de tal modo

que serão considerados como espécies distintas. Essa é a razão de uma espécie, por

vezes, separar-se em múltiplas espécies, em vez de simplesmente ser substituída por

outra nova (a partir disso Darwin sugeriu que todas as espécies atuais evoluíram de um

ancestral em comum). Em termos do evolucionismo linguístico, esse ancestral comum

seria o indo-europeu (uma língua hipotética postulada por Schleicher, conforme

Kristeva (1974, p.291)), do qual todas as línguas saíram. Se o português era o latim que,

graças à expansão do Império Romano, saiu do Lácio para terras habitadas por povos

que falavam outras línguas, o brasileiro seria o português trazido para a América

habitada pelos povos indígenas que aqui viviam antes da colonização, pelos africanos

trazidos para cá na condição de escravos e pelos imigrantes vindos desde o século XIX.

No Brasil, o português “evolui” para outra língua. Trata-se de um processo de

adaptação, assim enunciado por Lobato: “Novo ambiente, nova gente, novas coisas,

novas necessidades de expressão: nova língua”. Assim, o fato de o idioma mudar de

português para brasileiro era tão inquestionável quanto o princípio da adaptação das

96

espécies, segundo o qual aqueles seres que não se adaptam ao ambiente morrem e são

progressivamente substituídos por outros que se adaptam a ele.

Para Lobato, a evolução do português para o brasileiro começou no dia 22 de

abril de 1500 e não poderia ser diferente, pois, ao desembarcarem no Brasil, os

portugueses se deparam com diferenças que somente poderiam ser expressas por

vocábulos novos, ou mesmo, por vocábulos velhos ressignificados. A situação posta

pelo novo ambiente, pelas novas gentes e seus costumes singulares impunha a

necessidade de novos termos e, desde então, o idioma não havia mais parado de mudar

para dar conta de expressar a nova realidade em nada parecida com a portuguesa: “não

se passou um dia talvez em que a língua do reino não fosse na colônia infiltrada de

vocábulos novos, de formação local, ou modificada na significação dos antigos”.

Depois de quatro séculos, o processo de diferenciação linguística entre a ex-

metrópole e a colônia tornou-se tão significativo a ponto de o povo de lá e o povo de cá

não se entenderem mais:

Hoje, após 400 anos de vida, a diferenciação está caracterizada de modo tão

acentuado que um camponês do Minho não compreende nem é compreendido

por um jeca de São Paulo ou um gaúcho do Sul.

Quer isto dizer que no povo – e a língua é um produto puramente popular – a

cisão já está completa.

Nas classes cultas a diferença é menor, se bem que acentuadíssima, sobretudo

na pronuncia e no emprego de palavras novas. Até arcaísmos lusos

ressuscitam cá e são correntes de norte a sul. Um deles foi tomado como

brasileirismo: o emprego do pronome pessoal “ele” como complemento

direto. Ora, isso é coisa velha, forma anterior ao descobrimento do Brasil.

Dizem os escabichadores de antigualhas que é do uso corrente dos

cancioneiros, na Demanda do Graal, no Amadis etc. E citam de Fernão Lopes

muito “viu ela”, “nomeamos ele” etc. – de Fernão Lopes!, um dos grandes

pais da língua lusa. (OV3, [1921] 2008)

A exemplo do que enuncia em O dialeto caipira, ao atribuir a evolução ao

“machado dos bárbaros”, nesse texto Lobato também afirma que quem faz a língua

evoluir é o povo, representado pelo “jeca de São Paulo” e “gaúcho do Sul”, do lado de

cá, e pelo “camponês do Minho” do lado de lá. No nível do povo, a “diferenciação” ou a

“cisão” entre a língua portuguesa e a brasileira já estaria completa. Embora entre os

falantes cultos a “diferença” fosse menor, era, ainda assim, bastante acentuada,

sobretudo no vocabulário e na pronúncia.

97

Para ilustrar a cisão, Lobato recorreu uma vez mais à tópica dos pronomes,

reiteradamente evocada por aqueles que se punham a discutir sobre a língua do Brasil.

Dessa vez, a cisão se patenteava pelo uso, entre os brasileiros, da forma “ele/ela”

(pronomes pessoais do caso reto) e não “o/a” (pronomes pessoais do caso oblíquo) na

função de complemento direto. Essa tendência seria considerada, pelos legitimistas, um

“brasileirismo”, explicação que o enunciador rebate de modo contundente, dizendo

tratar-se de um “lusitanismo ressurreto na colônia”. Lobato não perdia a oportunidade

de escarnecer a posição legitimista fazendo voltar contra ela um argumento a que ela

recorria para combater os “brasileirismos” – o que a pesquisa filológica (“os

escabichadores de antigualhas”) diz sobre o tema. Nesse caso, a pesquisa revelava que o

uso de “ele/ela” como complemento direto já era abundante no português arcaico,

anterior ao descobrimento do Brasil. Havia quase um sabor de vingança em poder dizer

que o que era tachado como “brasileirismo”, na verdade, era um autêntico

“lusitanismo”. Afinal, como afirma Maingueneau ([1984] 2008a, p. 110), na polêmica o

que se busca é flagrar o adversário em erro, desqualificá-lo, “[...] mostrando que ele

viola as regras do jogo (mentindo, produzindo citações inexatas, informações errôneas,

sendo incompetente, pouco inteligente etc...)”.

Na sequência seguinte, essa polêmica encontra-se materializada por meio da

negação:

Não é brasileirismo, pois, essa forma velha e revelha. É um lusitanismo

ressurreto na colônia. Outros protestam que não, que não é arcaísmo e sim

forma nativa, peculiaridade das línguas indígenas faladas no Brasil pré-luso.

(OV3, [1921] 2008)

Trata-se de um caso de negação polifônica, uma vez que confronta pontos de

vista discursivamente antagônicos. De um lado, Lobato dizia: não é brasileirismo

(como um legitimista diria que é), é lusitanismo; de outro, o legitimista rebatia: não é

arcaísmo (como diz Lobato), é nativismo, indigenismo pré-luso. O espaço de troca entre

separatista e legitimista é, pois, um espaço de interincompreensão recíproca, pois cada

um não pode entender o Outro a não ser pelo seu próprio sistema de restrições.

Em mais uma sequência discursiva de O dicionário brasileiro, pode-se

observar a polêmica separatista versus legitimista:

Hoje, do Amazonas ao Borges, o “ele” e o “ela” desbancaram o “o” e o “a”

na linguagem falada, apesar da resistência dos letrados e da resistência da

língua escrita. Não nos consta que algum escritor de mérito usasse na prosa

98

ou no verso esse pseudobrasileirismo, embora, falando familiarmente incida

nele. Mas dia virá em que se rompa esta barreira, porque as correntes

populares são irresistíveis, os gramáticos não são os donos da língua, e esta

não é uma criação lógica. (OV3, [1921] 2008)

Referindo-se à substituição de “o/a” por “ele/ela” na função de complemento

direto como um “pseudobrasileirismo”, Lobato tinha por definitiva a hipótese de que

esse fenômeno era um arcaísmo residual entre os falantes brasileiros. Esse arcaísmo

tornou-se a norma na linguagem falada de norte a sul do Brasil, sendo ouvido inclusive

entre os “letrados” em situações não monitoradas. Se ainda não havia se tornado a

norma geral da língua brasileira, era porque enfrentava a resistência da língua escrita,

dos letrados e dos gramáticos. A rusga com os gramáticos tornava-se manifesta quando

Lobato afirmava que eles “não são os donos da língua”, e que, portanto, não havia por

que se submeter ao que eles ordenam. Além disso, a força popular acabaria por vencer a

“batalha” de qualquer maneira, era apenas uma questão de tempo. Quem faz a língua é o

povo e não os gramáticos.

No trecho seguinte, Lobato presume um tempo futuro em que a corrente

popular do “ele/ela” terá derrotado o uso de “o/a” na função de complemento direto,

conforme prescreve a gramática lusitana, um tempo em que enunciados célebres de Rui

Barbosa e Olavo Bilac passarão por um processo de “tradução”:

Verão, pois, nossos futuros netos, um Rui, de tanta autoridade como o atual,

abrir uma oração política da mais alta importância com esta forma que inda

choca o beletrismo de hoje: O Brasil, senhores, amei ele o mais que pude,

servi ele o que me deram as forças etc.

E verão um Bilac lançar um “ouvir estrelas” assim:

Ontem divisei ela

na janela...

Será isso simplesmente a reabilitação da forma lusa dos pré-clássicos, já

vitoriosa na língua, ou a vitória da sintaxe tupi? (OV3, [1921] 2008)

Ninguém melhor para representar o beletrismo da época do que Rui Barbosa

e Olavo Bilac, cuja escrita constituía o padrão linguístico e literário a ser seguido

segundo os legitimistas. Assim, quando Lobato conjeturava o processo futuro de

tradução de Rui Barbosa e Olavo Bilac da norma lusa para a norma brasileira, um tom

de ironia, irreverência e até heresia parecia impregnar os enunciados, já que se tratava

99

de alterar, ou melhor, de adulterar formas consagradas. É como se ele estivesse

profanando algo sagrado.

Vale destacar, em relação à sequência discursiva anterior, que ela conjetura

duas das teses que até contemporaneamente são levantadas acerca da fala popular

brasileira: a tese da arcaicidade e a tese do crioulismo. Segundo a tese da arcaicidade, a

situação de isolamento vivida no interior do Brasil teria favorecido a conservação de

traços de português antigo (“a reabilitação da forma lusa dos pré-clássicos”). Já segundo

a tese do crioulismo9, na perspectiva de Câmara Jr. (1963), é inadequado falar em

substrato de línguas africanas para explicar a formação do português brasileiro; é mais

apropriado pensar que “[...] os escravos negros adaptaram-se ao português sob a forma

de um crioulo.” (1963, p. 77). Depois de abandonarem suas línguas maternas africanas,

os escravos teriam recorrido ao português, engendrando essa espécie de crioulo. Um

crioulo é o resultado de simplificações de uma língua ao ser usada por uma população

estrangeira que não percebe as “sutilezas estruturais” da língua-base adotada no

intercurso das comunicações. A crioulização, decorrente o processo de simplificação,

apressa tendências evolutivas já presentes na deriva da língua-base. O linguista defende

a tese de que seria esse português crioulo que, funcionando como um substrato,

determinaria a alteridade do português do Brasil. Para ele, o contato entre brancos e

índios foi menos intenso do que aquele entre brancos e negros africanos no cotidiano

das fazendas, onde havia um convívio estreito entre as amas de leite, conhecidas como

“mães-pretas”, e as crianças brancas. As crianças, em fase de aquisição de linguagem,

certamente iam assimilando traços do português crioulo que ouviam da boca das amas

que as alimentavam, ninavam e delas se ocupavam em tempo integral. As mães-pretas

seriam, assim, as difusoras do falar crioulo, que marcaria profundamente o português

brasileiro. Sintetizando a tese de Câmara Jr. (1963), Alkmim (2005, p. 113) afirma que

“[...] português brasileiro é resultado do contato entre o português e uma forma

‘radicalizada’ do próprio português, sem a influência das línguas africanas, mas

marcado pela ação dos falantes de línguas africanas.”

9 O termo “crioulo” designa o pidgin quando ele se torna a língua materna de uma comunidade

linguística. O pidgin é um sistema de comunicação linguística que não tem falantes nativos, que sempre é

usado como segunda língua em situações de contato entre falantes de línguas diferentes. Quando se torna

a língua materna de uma comunidade, o pidgin passa a ser designado como “crioulo”. Via de regra, o

crioulo vive uma relação diglóssica com uma língua oficial imposta pelo colonizador (CALVET, 2002).

100

Prevendo que os leitores iriam rir da inusitada e pitoresca tradução dos

enunciados de Rui Barbosa e Olavo Bilac, como se ri de uma anedota, Lobato se

antecipava a eles, dizendo-lhes que se tratava de coisa séria:

Riem-se? Não é matéria de riso. É a anotação singela da marcha de um

fenômeno.

Inda nos detém hoje o medo à férula dos gramáticos d’além-mar e de seus

prepostos no Brasil.

Não obstante a corrente do “ele” cresce dia a dia e acabará expungindo a do

“o”. (OV3, [1921] 2008)

Advertia os leitores de que não estava brincando, de que estava falando sério

quando prognosticava a iminente mudança, a “marcha de um fenômeno” que havia de

silenciar a norma lusitana. Se a norma brasileira ainda não se impôs inteiramente, isso

se devia às críticas, censuras, correções e punições dos gramáticos portugueses e seus

prepostos (encarregados) no Brasil. Novamente ele recorria à metáfora/simulacro da

palmatória (férula) para expressar a relação de domínio que Portugal mantinha sobre o

Brasil em matéria de língua. Os brasileiros tinham de obedecer aos gramáticos

portugueses, como as crianças tinham de obedecer a seus mestres, a seus pais, aos mais

velhos, sob pena de serem castigados. Ameaçados pelo uso da palmatória, os brasileiros

se calavam. Porém, conforme Lobato, nem a palmatória impedia a marcha inexorável

do “ele/ela” que iria expungir, ou seja, fazer desaparecer, apagar, eliminar a norma

lusitana que prescrevia o uso de “o/a”.

Na sequência seguinte, o enunciador, insistindo no discurso evolucionista,

volta a falar do desenvolvimento de um léxico brasileiro como se falasse da luta pela

sobrevivência ou da adaptação das espécies:

Além dessas incoercíveis modificações sintáticas, temos outra feição

evolutiva operada em larga escala: a adoção de palavras novas por injunções

das necessidades ambientes.

A língua é um meio de expressão. A variedade de coisas novas que tivemos a

necessidade de expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força no

povo um surto copiosíssimo de vocábulos. Eles brotam por aí como

cogumelos durante a chuva. Lutam entre si. Os fracos, os inúteis, caem, como

frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons, os expressivos e

necessários, vencem e ficam na língua. A princípio na língua falada. Depois

penetram a chamada literatura regional. Passam dela aos glossários de

brasileirismos e entram, por fim, consagrados, no panteão dos dicionários.

101

A extensão do nosso território favoreceu grandemente o neologismo. Houve

além disso a contribuição copiosa do índio e do negro. Há agora a do italiano

em São Paulo e a dos alemães no Sul.

A maioria destas palavras são de absoluta necessidade. Como falar da vida

amazônica sem recurso às mil palavras de criação local? Como pintar o Rio

Grande sem recorrer ao vocabulário gaúcho? E falar do Rio sem tomar as

pitorescas invenções glóticas do cafajeste carioca?

Há no português termos que substituam o “encrenca” e seus derivados, de

criação alemã catarinense? E a “uruca”, a “caguira”, o “engrossamento”,

como enunciar com palavras do Morais? (OV3, [1921] 2008)

Nessa sequência, o aparecimento de vocábulos novos explicava-se como

decorrência das “injunções das necessidades ambientes”. Como expressar a variedade

de coisas novas ainda não nomeadas pela língua do colonizador? Diante dessa realidade,

os vocábulos novos brotavam como “cogumelos que brotam por aí com a chuva”. A

relação interdiscursiva com o evolucionismo aflora no enunciado quando Lobato

menciona que os vocábulos vão travar uma “luta entre si” e somente os fortes

sobreviverão, assim como prevê o princípio de sobrevivência dos mais aptos: “Os

fracos, os inúteis, caem, como frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons,

os expressivos e necessários, vencem e ficam na língua.”. Outro ponto da SD que evoca

o discurso evolucionista é o princípio da adaptação ao meio, assim retomado pelo

enunciador: “Como falar da vida amazônica sem recurso às mil palavras de criação

local? Como pintar o Rio Grande sem recorrer ao vocabulário gaúcho? E falar do Rio

sem tomar as pitorescas invenções glóticas do cafajeste carioca?”, ou seja, os vocábulos

necessários para expressar a realidade brasileira não poderiam ser os mesmos usados

para expressar a realidade lusitana. Como expressar a “uruca”, a “caguira”, o

“engrossamento”, com palavras do Morais? A expressão da realidade brasileira exigia

um léxico próprio, formado por neologismos, contribuições indígenas, africanas e dos

imigrantes, além, logicamente, dos termos lusitanos. Por sua vez, um léxico próprio

exigia um dicionário brasileiro.

O dicionário, tal como a gramática, era fundamental para o processo de

gramatização da língua brasileira, conforme Auroux (1992). Se, no capítulo 4, pôde-se

acompanhar o entusiasmo de Lobato com O dialeto caipira de Amadeu Amaral,

considerada pelo escritor a primeira gramática da língua brasileira, no capítulo 5, o que

lhe provoca júbilo é um dicionário em fase de elaboração. Segundo o enunciador, as

palavras surgiam na língua falada, eram absorvidas pela literatura regional, pelos

102

glossários de brasileirismos e, então, tinham o direito de galgar mais um degrau rumo à

oficialização, legítimas o bastante para figurar no “panteão dos dicionários”. Como

informa Lobato, os estudiosos estavam na fase de coleta dos regionalismos, mas um

deles – Francisco de Assis Cintra – já andava preparando o dicionário brasileiro:

Sem coragem ainda de lançarmos o nosso dicionário, vemo-lo já em trabalhos

preparatórios, a delinear-se nas obras de B. Rohan, Taunay, Romaguera e

tantos outros coletores de regionalismos.

Virá a seu tempo. Convencer-nos-emos um dia de que, se saímos de Portugal,

nada mais temos com o ex-reino, hoje tumultuosa República. Virá, talvez,

muito breve. O dicionário brasileiro já anda em elaboração. Um professor

paulista, Francisco de Assis Cintra, emérito sabedor da língua e rijamente

dotado para o trabalho da empresa acaba de iniciá-lo sob as mais inteligentes

bases.

Em matéria dicionarística vivemos ainda hoje na absoluta dependência de

Portugal. Temos o que Portugal nos manda, Aulete, Vieira, Cândido de

Figueiredo. Este nos deu a honra insigne de incluir na sua obra uma boa cópia

de brasileirismos, para contentar a colônia e fazer bom negócio nela. Os mais

dicionários são rigorosamente portugueses.

Quem lê Alberto Rangel, por exemplo, o mais rico batedor de termos

regionais da nossa literatura, em muitos pontos não tem meios de lhe

compreender o pensamento. Esbarra a cada passo com uma palavra regional

coletada por ele e, se recorre aos dicionários, fica na mesma.

No próprio Rui Barbosa quantas palavras não existem que o carrança

português não nos deu a honra de “endicionarizar”?

Isso, porém, não é culpa deles que fazem léxicos portugueses para seu uso lá.

A culpa é nossa, pois já era tempo de termos publicado o nosso dicionário.

(OV3, [1921] 2008)

Como outros intelectuais das primeiras décadas do século XX, Lobato

também batia na tecla de que, apesar de o Brasil não ser mais domínio de Portugal,

ainda não havia se convencido de sua alforria em relação ao ex-reino. Em matéria de

instrumentos linguísticos, a dependência ainda era completa. Daí a sua empolgação com

a obra de Amadeu Amaral e com dicionário brasileiro que estava sendo preparado pelo

professor paulista, Francisco de Assis Cintra. Esse dicionário iria preencher uma lacuna,

já que todos os usados no país eram “rigorosamente portugueses”, exceto o de Cândido

de Figueiredo que incluía uma “boa cópia de brasileirismos”, que, de acordo Lobato, era

uma estratégia para “contentar a colônia e fazer bom negócio com ela”. A falta de

dicionários brasileiros dificultava a leitura de obras regionais ou de autores brasileiros

que usavam termos ausentes nos dicionários portugueses. Quem recorria a tais

103

dicionários para se esclarecer sobre o significado de brasileirismos em nada podia ser

ajudado.

O enunciador chama a atenção para os cinco princípios norteadores do

projeto de Francisco de Assis Cintra:

1. Eliminar do novo dicionário todas as palavras portuguesas desusadas no

Brasil, já arcaísmos, já lusitanismos de moderna criação popular,

absolutamente inúteis para as nossas necessidades expressivas.

2. Eliminar todas as palavras coloniais portuguesas que atravancam os

dicionários atuais, fazendo-os obesos.

3. Dar, principalmente, a significação que os vocábulos portugueses têm aqui

no Brasil, e subsidiariamente a que têm no ex-reino.

4. Introduzir nossas criações linguísticas, as coletadas pelos glossaristas e as

que andam soltas.

5. Fazer, em suma, o dicionário prático de que precisa quem vive nesta terra,

que já foi colônia e está custando a se convencer de que não mais o é.

Será, pois, uma obra de grande utilidade e alto alcance, porque consolidará

definitivamente o cisma operado na velha língua lusa. (OV3, [1921] 2008)

Além de eliminar as palavras lusas que não se prestavam mais a dizer a vida

dos brasileiros, tal dicionário deveria privilegiar o significado que os vocábulos

portugueses assumiam no Brasil e só depois o significado que eles tinham no ex-reino e,

principalmente, incluir os vocábulos criados/utilizados no país, os já coletados pelos

glossários regionais e aqueles que ainda não constavam de levantamento algum. Lobato

idealizava uma obra enxuta, prática que eliminasse tudo o que fosse inútil para os

falantes brasileiros. Na sua perspectiva, os dicionários não poderiam ser volumosos

(“obesos”), pois isso dificultaria sua aquisição e manuseio pelo povo. Esses princípios

parecem inverter/subverter a ordem colonial: primeiro viriam os brasileirismos e depois

os lusitanismos, gesto simbólico de consolidação do “cisma operado na velha língua

lusa”. A voz portuguesa teria de se sujeitar à voz brasileira. A elaboração de um

dicionário assim concebido seria, pois, uma ação política efetiva para consolidar a nação

que ainda se portava como colônia de Portugal linguística e culturalmente.

A maneira lobateana de se referir ao Outro é constantemente derrisória,

característica que será analisada com mais profundidade no capítulo seguinte, destinado

ao estudo do ethos discursivo. Entretanto, não se pode deixar de observar o tom

derrisório que permeia as críticas direcionadas aos dicionários portugueses, por não

104

retratarem a pronúncia brasileira e sim a lusitana e por não incluírem o nosso léxico ou

o sentido outro dado por nós a termos portugueses:

Acontece hoje o seguinte: o menino abre o Aulete e procura a palavra

“hein”; e vê lá a pronúncia “na-e”. Ri-se, está claro, e chama “âne” ao pobre

Aulete.

Outro vai ao C. de Figueiredo em busca da palavra “chupim”, que ele ouve

todos os dias aplicada a um passarinho preto que parasita o tico-tico e por

analogia aos maridos de professoras. Não encontra. Mas encontra, por

exemplo, “caloqueio”, pássaro africano. Temos de abrir a gaiola ao

caloqueio e pôr em seu lugar o chupim. Está aquele estafermo a empatar um

poleiro precioso. (OV3, [1921] 2008)

É de modo irônico que o enunciador retrata a cena hipotética de uma criança

brasileira consultando o Aulete, a maior referência em matéria de dicionário português,

e se depara com a pronúncia “na-e”, cujo estranhamento é motivo de escárnio (“Ri-se,

está claro, e chama “âne” ao pobre Aulete”). Quer dizer, o grande dicionário Aulete é

rebaixado, torna-se motivo de chacota e ganha até o apelido de “âne”. Não menos

irônica é a cena hipotética de outra criança brasileira indo a C. de Figueiredo, dessa vez

para buscar o significado da palavra “chupim” que não consta no dicionário português.

O fato de o dicionário não incluir o termo “chupim”, muito comum entre os brasileiros

para designar uma ave da fauna encontrada no país e, também, para significar, por

analogia, qualquer espécie de parasitismo, é novamente motivo de chacota. O brasileiro

que não encontra “chupim”, mas encontra “caloqueio” (um pássaro africano) é

convidado, metaforicamente a soltar o “caloqueio” para dar lugar ao “chupim”, quer

dizer, a excluir do dicionário brasileiro as palavras lusitanas ou de outras línguas que

não tenham sido adotadas pela língua brasileira. O “caloqueio” que ocupa a “gaiola” ou

o “poleiro”, metáforas para nomear o lugar do verbete no dicionário, é dito um

“estafermo” (estorvo) por tomar o lugar do termo brasileiro “chupim”. É, pois,

derrisoriamente, que o enunciador argumenta a favor do princípio número um

estabelecido pelo Prof. Cintra: “Eliminar do novo dicionário todas as palavras

portuguesas desusadas no Brasil”. Manifesta-se, nessa atitude irônica, o desejo de um

enunciador que quer calar, tanto quanto possível, a língua do colonizador e

liberar/legitimar a língua brasileira, a ponto de ela se tornar digna de figurar num

dicionário.

105

Quanto ao segundo princípio, que era o de “eliminar tudo o que atravanca os

dicionários atuais, fazendo-os obesos”, Lobato, prevendo a réplica do Outro, já antecipa

a tréplica:

Dirão: seria melhor conservar todas as palavras portuguesas e incluir todas as

nossas. Isso seria fazer uma almanjarra ineditável, ou caríssima, ao passo que

o peneiramento acima proposto aliviaria a obra das múmias inúteis que se

esmirram ali, dos exotismos da Índia e Angola com que nada temos que ver,

daria livro maneiro, cômodo, num volume só, e por preço ao alcance do povo.

Acoimam o nosso povo de ignorante, mas não lhe dão sequer um dicionário

da língua, bom e barato! Os sucedâneos portugueses que lhe indicam, sobre

lhe não satisfazerem as exigências, custam os olhos da cara, 80, 100 mil-réis.

(OV3, [1921] 2008)

A presença do Outro é indiciada por “dirão”, verbo com a desinência da

terceira pessoa do plural (+ão = eles), que invoca, ainda que sob a forma da

indeterminação, os legitimistas, conservadores por princípio. Para cumprir sua função

de auxiliar o brasileiro a usar sua língua, o dicionário precisava cortar na carne tudo

aquilo que fazia das obras do gênero algo pesado, volumoso, de difícil consulta e

manuseio e, além do mais, economicamente inacessível ao povo. Produzir um

dicionário enxuto significava, pois, excluir os termos lusos desusados no cotidiano

brasileiro, designados por Lobato mediante o simulacro “múmias inúteis”, bem como os

“exotismos da Índia e Angola”, igualmente estrangeiros no país. Enquanto a solução

legitimista passava pela inclusão dos brasileirismos nos dicionários portugueses já

existentes, sem exclusão de nada, a separatista passava pela eliminação de tudo o que

não era útil ao falante brasileiro, de tudo que não tivesse sido incorporado ao nosso

léxico. Lobato não perdia de vista a adequação da obra ao público a que se destinava.

Lobato pensava como escritor, mas também como editor.

Os conflitos sobre os princípios a reger a elaboração de dicionários

continuam a espocar nos enunciados, dessa feita, no tocante à natureza das definições,

que, segundo Lobato, careciam de rigor:

Além dessa novidade, o Prof. Cintra pretende dar o máximo rigor às

definições, aproximando-se dos grandes dicionários estrangeiros, Webster à

frente. Fugirá assim, às erronias que Aulete e Figueiredo increpam aos

anteriores e em que incidiram, se bem que em menor escala

Abro ao acaso este último e leio: “Desarvorado – que fugiu

desordenadamente”. Logo: navio desarvorado – navio que foge

desordenadamente.

106

E são os papões da língua. Dão- nos em cima de palmatória e ensinam-nos

que o que não se deve dizer, esquecidos de que não se deve dizer, sobretudo,

asneiras. (OV3, [1921] 2008)

Lobato evocava certa “ciência” acerca da elaboração de definições para os

verbetes de dicionários, segundo a qual o parâmetro era o Webster. Tomando esse

parâmetro por base, o dicionário brasileiro precisava evitar as “erronias” que Aulete e

Figueiredo imputavam aos dicionários anteriores, mas nas quais também eles incidiram.

Quer dizer, Aulete e Figueiredo são flagrados em contradição. Para mostrar como as

definições de tais dicionários não eram precisas, Lobato ilustra com um verbete tomado

ao acaso de Figueiredo, o verbete “desarvorado”, assim definido: “Desarvorado – que

fugiu desordenadamente”, e exemplificado pela locução “navio desarvorado – navio que

foge desordenadamente”. Conforme Lobato, definir “navio desarvorado” como “navio

que foge desordenadamente” é uma “asneira”, uma tolice, uma impropriedade, pois o

lexema “fugir” pressupõe um agente, um sujeito animado, e “navio” é um sujeito

inanimado. Muito provavelmente, pensava que uma definição mais precisa para essa

locução seria “navio que perdeu os mastros”. Assim, Lobato não perdia a chance de

revidar a “palmatória” que “os papões da língua” sempre usavam para nos castigar e

ensinar o que não devíamos dizer. Usando, como palmatória, a ironia, o enunciador

lembrava àqueles que se compraziam em criticar o modo de falar dos brasileiros que o

que não se devia dizer era “asneira”.

Lobato encerra a resenha refletindo sobre o significado do dicionário brasileiro

no escopo da política nacionalista levada a efeito, nas primeiras décadas do século XX,

pela parte da intelligentsia brasileira inconformada com os rumos do processo de

independência quase cem anos depois de ela ter sido proclamada:

Muita coisa se projeta para a comemoração da independência. Se for

levado a termo o Dicionário Brasileiro, nenhuma comemoração será

mais significativa. Valerá por um esplêndido monumento e por um

grande passo na “realização” duma independência “proclamada” que

vai fazer cem anos. (OV3, [1921] 2008)

A ainda dependência linguística de Portugal era vista como um problema por

aqueles que professavam a política nacionalista, por isso se fizera tema tão frequente

entre eles. Nossa emancipação política precisava se completada com a emancipação

cultural, literária e linguística, se quiséssemos ser definitivamente alforriados de

Portugal. Enquanto continuássemos a depender das gramáticas e dicionários lusitanos,

107

nossa servidão idiomática e literária não seria rompida. Daí Lobato saudar

entusiasticamente o dicionário que estava sendo elaborado pelo Prof. Cintra, como

saudara o livro O dialeto caipira de Amadeu Amaral. Via em ambas as obras um gesto

de efetiva autonomia em relação a Portugal, um gesto dos mais significativos para

comemorar o centenário da independência, “proclamada”, mas ainda não inteiramente

“realizada”. Naquele início de século, Lobato vislumbrava, ainda que de modo meio

embaçado, que a gramatização da língua brasileira (a produção de uma escrita e de

instrumentos linguísticos: gramática e dicionário) poderia legitimá-la como língua do

Estado. Conforme Orlandi (2007, p. 55), a gramatização traz em seu cerne: “a

constituição de um sujeito nacional, um cidadão brasileiro com sua língua própria,

visível na gramática. Individualiza-se o país, seu saber, sua língua, seu sujeito político

social e suas instituições”. No gesto de gramatizar a língua brasileira, reafirmava-se,

pois, a unidade/identidade entre língua, nação e Estado.

A preocupação com as questões nacionais timbrou as obras lobateanas.

Entretanto, o nacionalismo caricatural e ufanista sempre foi duramente criticado por ele,

como se pode ver pelas SDs 44 a 47:

SD44: Minha ojeriza contra o “patriotismo” e o “nacionalismo” que o

Nogueira, o Bilac, o Sura e outros andam a lançar vem duma coisa orgânica

em mim [...] Não há verdade possível em nada visto através dos óculos

desnaturadores de qualquer apaixonamento – seja patriotismo, nacionalismo,

hermismo, civilismo etc. Tudo isso não passa de políticas partidárias, de que

os filósofos naturalmente se afastam. (BDG15, [1944] 2010, p. 352)

SD45: O patriotismo nacional! Que catinga de Cafraria!... Não é um

sentimento construtor. É berro, é chavão, é a sonoridade mais lorpa e tola

que pode haver no mundo. (IJT17, [1919] 2008, p. 250)

SD46: Patriotismo! Como anda esta palavra desviada do verdadeiro

sentido!... Patriota só o é quem cumpre o seu dever e trabalha, e produz

riqueza material ou mental, e funciona como a silenciosa madrépora na

construção econômica e ética do seu país. A esta hora milhões de

verdadeiros patriotas lá estão no eito, porejantes de suor, na faina da limpa

e do plantio. Febrentos de maleita, exaustos pelo amarelão, espezinhados

pelo ácaro político, lá estão cavando a terra como podem, desajudados de

tudo, sem instrução, sem saúde, sem gozo da mais elementar justiça. Estão

fazendo patriotismo, embora desconheçam a palavra pátria. (PVJTOT3,

[1918] 2010, p.58)

SD47: O tempo, o papel e a tinta gastos em glosar o melhor modo de

“fazer” patriotismo e salvar esta Pátria, se o aplicássemos no estudo das

coisas prosaicas da vida de que tudo mais deflui, redundaria em uma forma

de patriotismo prático de tremendo alcance. (FOM3, [1940] 2010, p.51)

108

Nesse conjunto de SDs, Lobato enuncia sobre os excessos que timbravam o

nacionalismo de sua época. A falta de ponderação e bom senso anulava, na sua opinião,

a tarefa prática de nacionalizar o país. O “apaixonamento” pelo nacionalismo, como por

qualquer outra ideologia, fazia com que seus prosélitos perdessem a razão. Assim, o

enunciador, no processo de interpelação pelo nacionalismo, se posiciona como um “mau

sujeito” (PÊCHEUX, 1988, p. 215), contra-identificando-se “com a formação discursiva

que lhe é imposta pelo interdiscurso”. Essa modalidade de interpelação faz com que o

sujeito da enunciação se separe do “sujeito universal” da ideologia dominante e conteste

o que ele o faz pensar. Tal forma de interpelação se indicia na materialidade linguística

mediante traços que marcam a afastamento da ideologia. Em todas essas SDs, esse

nacionalismo cego é atribuído ao Outro. Na SD44, por exemplo, ele é assim dito: “o

‘patriotismo’ e o ‘nacionalismo’ que o Nogueira, o Bilac, o Sura e outros andam a

lançar” e não eu. Nas SDs 45 e 46, refere-se ao nacionalismo ufanista praticado pelo

Outro, muito apropriadamente materializado no nível do enunciado pelo ponto de

exclamação (“patriotismo nacional!” ou “Patriotismo!”), mimetizando a entonação

daqueles que falam como “bons sujeitos”.

Outro traço que indicia a contra-identificação com essa forma de

nacionalismo são os simulacros usados para se referir a ele. Na SD45, ele é dito

“catinga”; “berro” “chavão”; “sonoridade mais lorpa e tola”, sinalizando a desadesão do

enunciador em relação a ele. O que principalmente irritava Lobato era o nacionalismo

verborrágico praticado pelos intelectuais, o discurso vazio daqueles que apenas

pregavam o “patriotismo”. Conforme a SD46, eram patriotas não os proselitistas do

nacionalismo, mas aqueles que, mesmo sem conhecer o termo “patriotismo”,

trabalhavam para construir o país. Quer dizer, eram mais patriotas os jecas descritos na

SD46 do que os bilaques referidos na SD44. O vazio das palavras que não repercutia em

nenhum resultado prático foi desqualificado por Lobato na SD 47, em que o enunciador

critica o dispêndio de tempo e de material por aqueles que se ocupam em glosar o

discurso de como “salvar a pátria”. Para salvar a pátria era preciso fazer alguma coisa

por ela e não apenas louvá-la. O esforço de tais “patriotas” seria muito mais útil se se

voltasse para o estudo e solução das questões “prosaicas da vida” de que tudo mais

depende. Nacionalismo prático, construtor da nação, e não apenas doutrinário, era isso

que Lobato defendia. Por essa razão, avaliava tão positivamente a empreitada de

Amadeu Amaral, escrevendo O dialeto caipira, e do Prof. Cintra, elaborando o

Dicionário Brasileiro.

109

A luta pela nacionalização do país rendeu muitos enunciados que se

nucleavam pelo desejo de ruptura com a lusofonia em prol da emancipação da língua

brasileira:

SD48: _ É, mestre, isto é o Brasil ainda com s ou z à vontade.

_ E que língua se fala por aqui?

_ A portuguesa, está claro.

_ Não me parece – objetou a sombra, sacando das algibeiras o papelucho

apanhado na rua. [...] vejo um anúncio em língua que não é a minha, nem é

língua viva ou morta de meu conhecimento. Será o idioma do futuro? (IJT

19, [1919] 2008, p. 131-132)

SD49: Outro fator que muito contribuiu para este sucesso: a introdução em

cena da prosódia brasileira. Havia a crença ridícula de que a nossa prosódia

não se prestava para o teatro. Prestava para se entenderem entre si trinta

milhões de criaturas; para o teatro, não! O hábito de só termos aqui,

representado em português companhias portuguesas, estabeleceu esse

dogma. Mas assim como na literatura, a língua nacional, a língua geral deste

país, a brasileira, filha da portuguesa, está batendo a progenitora, assim

também no nosso teatro linguajar, com os seus modismos, a sua prosódia, as

suas inflexões próprias, baterá a língua lusa. O público já encontra

dificuldade em compreender o que dizem os atores portugueses, que não

transigem com a prosódia nossa. (CAC5, [1959] 2010, p.91)

SD50: Além de que os modismos de lá, as finuras, os idiotismos da língua

lusa, já não correspondem aos nossos e são mal compreendidos cá. (CAC5,

[1959] 2010, p. 92)

Na SD48, o enunciador retratou um diálogo imaginário com Camilo Castelo

Branco, ídolo literário de Lobato, considerado por ele “o maior chafariz moderno donde

a língua portuguesa brota mijadamente” (citado por BRITO, 2000). Lobato não lia

Camilo para imitar Camilo, mas sim para se lobatizar ainda mais: “o que eu quero é que

de Camilo tu saias mais Rangel do que nunca e eu saia bestialmente Lobato” (citado por

BRITO, 2000). Nesta suposta conversa, Lobato põe Camilo estranhando a língua que se

fala no Brasil (“vejo um anúncio em língua que não é a minha, nem é língua viva ou

morta de meu conhecimento”). O fato de um português do naipe de Camilo Castelo

Branco não reconhecer a língua falada no Brasil como sua língua, ou seja, como sendo a

língua portuguesa, era um argumento incontestável de que o cisma linguístico entre

Brasil e Portugal estava praticamente consumado. No diálogo imaginário, Camilo

também não foi capaz de identificar a língua que via escrita no papelote com nenhuma

outra língua que conhecesse o que o faz pensar em ser “o idioma do futuro”. Assim,

com a chancela da maior autoridade em língua portuguesa, Lobato argumentava em

favor da “língua nova” que estava nascendo no Brasil – a sinhazinha Brasilina. Afinal,

110

uma nação e um Estado independente precisavam de uma língua própria. Nas SDs 49 e

50, o enunciador trouxe novamente o argumento de que as diferenças entre a língua

falada em Portugal e a falada no Brasil já eram tão acentuadas que os falantes de lá e de

cá viviam um processo de incompreensão mútua. Por essa razão, defendia a utilização

da língua brasileira em todos os contextos, no teatro, na literatura ou em qualquer outra

esfera de comunicação. Se a língua brasileira era boa para 30 milhões de pessoas se

entenderem porque não serviria para a comunicação no teatro? Lobato se indispunha

com a elite beletrista do país que não fazia concessão à prosódia brasileira na linguagem

teatral.

Além disso, a ruptura com Portugal avultava como uma atitude fundamental

para a criação de uma identidade cultural e linguística brasileira:

SD51: Nós no Brasil ainda estamos a crescer, a enfolhar, a radicar. Por isso

o que chamamos de arte não passa de simples reflexos de artes alheias.

(FOM2, [1940] 2010, p.31)

SD52: Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que

refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem. [...] Estou precisando de um

Dom Quixote para crianças, mais correntio e mais em língua da terra que as

edições do Garnier e dos portugueses. (BDG22, [1944] 2010, p. 499-500)

SD53:[...] o artista cresce à medida que se nacionaliza. É mister que a obra

d’arte denuncie ao mais rápido volver d’olhos a sua origem, como as raças

denunciam pelo tipo individual o grupo etnológico. (IJT13, [1919] 2008, p.

61)

SD54: Queremos, agora, infundir na pátria uma alma e um caráter próprios,

fazendo brotar da terra que angustiosamente resseca, que é a nossa vida

material, as nobres fontes de idealismo. Doutro modo será este povo um

corpo sem alma, uma pobre coisa sem transcendência. (IJT15, [1919] 2008,

p. 198)

SD55: O Brasil é velho, meu caro, é um dos países mais velhos do mundo.

Idade nas pessoas ou nos povos, não se calcula pelo número de anos. Há

velhos de 20 anos e septuagenários moços. No Brasil, só vejo sinais de

velhice. A raça que o habita é o velhíssimo português, misturado com o

arquivelho africano, mais o venerável pele-vermelha que por séculos e

séculos ocupou este território. (MSB2, [1927] 2008, p. 68)

Nas SDs 51, 52 e 53, Lobato lamentava que a arte nacional bem como as

traduções dos clássicos da literatura ainda estivessem impregnadas do Outro (língua e

arte alheias). Indignava-se diante das “traduções galegais” (SD52), defendendo a ideia

de que traduções brasileiras, mais palatáveis ao público infantil, eram imprescindíveis

para educar, formar leitores e tirar o povo da ignorância e da miséria que imperavam no

111

país. Metonimicamente, afirmava como indispensável para os brasileirinhos “um Dom

Quixote para crianças, mais correntio e mais em língua da terra que as edições do

Garnier e dos portugueses”. Como editor, procurou colocar essas ideias em prática.

Nas SD53 e 54, o enunciador reafirmava o binômio arte-nação, já que era por

meio dele que as produções de um povo podiam ser identificadas e reconhecidas como

tal. A arte de um país que não refletisse a alma de seu povo seria como “um corpo sem

alma, uma pobre coisa sem transcendência”. Por fim, na SD55 , o enunciador critica os

velhos hábitos, a estagnação que fazia com que as produções fossem sempre “antigas”.

O que era novo e diferente era rechaçado como uma ameaça ao paradigma intelectual

dominante conservador. Mais uma vez é possível vislumbrar a interincompreensão entre

os discursos separatista e legitimista. Como o discurso agente, no caso, é o separatista,

ele introduz o Outro na forma de simulacros relacionados aos sentidos de velhice e

decadência, tais como: “um dos países mais velhos do mundo”, “velhos de 20 anos”,

“septuagenários moços” e “velhíssimo português”, “o arquivelho africano” e “o

venerável pele-vermelha”. Vale notar como o predicado “velho” vai se intensificando

no enunciado por meio de uma gradação: velho => septuagenário => velhíssimo =>

arquivelho => venerável. Lobato, apesar de ser um homem ligado à terra, não era

arcaico; era adepto das luzes, um ferrenho defensor do progresso. Na época em que foi

adido comercial em Nova York (1927), impressionado com o desenvolvimento dos

americanos, dizia que o Brasil andava de costas, que dormia ou que era troglodita. É

nesse sentido, assumindo uma posição francamente iluminista, que significava o país

como velho, arcaico.

Neste capítulo, como no anterior, é como separatista que Monteiro Lobato

enuncia sobre a língua do Brasil. Enquanto os legitimistas afirmam que o idioma

nacional é o português, Lobato insiste que há uma língua nova – a língua brasileira –

que já nasceu e é falada por mais de 30 milhões de criaturas. Essa língua começa a ser

reconhecida e legitimada, na medida em que é apropriada e escrita pela literatura

regionalista e modernista, estudada e registrada em gramáticas e dicionários. A análise

aqui realizada mostra que as discussões sobre a língua brasileira encontram-se

inextricavelmente ligadas ao nacionalismo lobateano que não era um nacionalismo

proselitista, obtuso, ufanista, incapaz de enxergar as misérias (pobreza, doença,

ignorância, atraso cultural, abandono pelo Estado) do país. Era um nacionalismo que

nos convidava a nos vermos como somos, mesmo que nossa imagem fosse a do jeca

tatu, pois todos os nossos males embicavam no erro de querermos ser cópias do Outro.

112

5.2 DO ETHOS LOBATEANO

Nesta seção, serão analisadas sequências discursivas lobateanas, focalizando o

ethos discursivo e o tom derrisório com que o enunciador se refere ao Outro, os

legitimistas ou conservadores. Como suporte para a análise a ser empreendida, toma-se

o conceito de ethos tal como visto no capítulo 3, bem como o conceito de derrisão nas

leituras propostas por Bonnafous (2003) e Baronas (2005, 2012(?)). As sequências

discursivas a serem analisadas tematizam a luta pela nacionalização do idioma e pela

plena emancipação cultural do Brasil em relação a Portugal. Independentemente do

ponto de vista defendido, a entonação lobateana é sempre contundente e extremista.

Segundo Bonnafous (2003, p. 35 e 37), o termo derrisão é usado para nomear

“a associação do humor e da agressividade”, distinguindo-se da pura injúria. Refere-se a

“zombarias, gracejos, trocadilhos, jogos de palavras irônicas” e a “numerosos

procedimentos discursivos que visam a desqualificar o Outro por meio do ridículo”.

As enunciações lobateanas são prenhes de derrisão. Nelas, a tônica

predominante em direção ao Outro, no caso os defensores do purismo linguístico, é a

ironia, a ridicularização, a caricatura. Essa estratégia discursiva ficou conhecida na

retórica clássica como tropos zombeteiro, cuja intenção era ridicularizar o adversário,

provocando o riso no auditório. A noção de tropos zombeteiro, tal como mobilizada por

Baronas (2005) para a compreensão da derrisão, pode ser concebida como

[...] um gênero textual, cuja temática centra-se em questionar por meio da

sátira a ordem estabelecida e/ou os valores largamente cristalizados em

nossa sociedade. Tal questionamento tem como alvo preferido as mais

diferentes autoridades sociais e se impõe a ler sob diferentes facetas: nas

charges, nas caricaturas, nos pastiches, nas piadas, nos jogos de palavras etc.

(BARONAS, 2005, p. 106)

Assim, a derrisão, por revestir a agressão e a violência verbal de um efeito

humorístico e provocar o riso da platéia (auditório ou público leitor), exime o

enunciador, em grande parte, da responsabilidade pelo que diz, já que o que diz se

caracteriza como algo da ordem do motejo e não da fala séria. Como afirma Baronas

(2012, p. 8), a derrisão é “uma espécie de ‘amabilidade verbal’ violenta que, por

produzir o riso, foge de sanções negativas da legislação e, principalmente da opinião

pública”.

113

Nas enunciações de Lobato sobre a língua, a cultura e a identidade nacional, ou

seja, sobre o nacionalismo, o efeito derrisório é fartamente produzido por meio de

figuras de linguagem que rebaixam o Outro:

SD56: Em matéria de patriotismo está o homem uma galinha choca de pinto

novo. O pinto é a Pátria. Nogueira arrepia-se e cacareja, se alguém olha para

o pinto. (BDG14 [1944] 2010, 347)

Por meio da metáfora animalizante “uma galinha choca de pinto novo”,

Lobato, ao tempo que zomba dos patriotas caricatos, afasta-se do grupo de intelectuais

que professa essa espécie de nacionalismo cego. Também ele era um nacionalista, mas

um nacionalista crítico, inconformado com a pasmaceira, a apatia, a mediocridade, a

indiferença diante dos problemas do Brasil que lhe era contemporâneo. Dessa forma,

ele se patenteia como um enunciador nacionalista Outro que não se arma em defesa da

pátria à maneira de uma galinha choca que se arrepia e cacareja incondicionalmente

diante da menor ameaça à sua cria. Mediante essa metáfora animal, Lobato ridiculariza

e rebaixa aqueles que se identificam e praticam o nacionalismo ufanista, incorporando o

ethos do enunciador crítico, ácido, derrisório. Trata-se de uma forma de ethos mostrado,

pois é a partir do como diz que o tom vai sendo construído.

Já na SD57, a seguir, o dissenso em relação ao patriotismo ufanista é nomeado

explicitamente pela expressão “Minha ojeriza contra”:

SD57: Minha ojeriza contra o “patriotismo” e o “nacionalismo” que o

Nogueira, o Bilac, o Sura e outros andam a lançar vem duma coisa orgânica

em mim [...] não há verdade possível em nada visto através dos óculos

desnaturadores de qualquer apaixonamento – seja patriotismo, nacionalismo,

hermismo, civilismo etc. Tudo isso não passa de políticas partidárias, de que

os filósofos naturalmente se afastam. (BDG15 [1944] 2010, p. 352)

Na SD57, Lobato demarca a heterogeneidade discursiva, aspeando as palavras

“patriotismo” e “nacionalismo”. Embora fosse ele mesmo um nacionalista, não o era no

mesmo sentido de Nogueira, Bilac e outros; opunha-se contundentemente ao modo

como os movimentos assim designados eram praticados à época. Via-os como artificiais

e vazios, como frutos de exagero e irracionalismo produzidos pelos “óculos

desnaturadores de qualquer apaixonamento”, pelo qual tinha “ojeriza”. Para o

enunciador, o nacionalismo e o patriotismo assim concebidos e praticados eram

políticas partidárias que contrariavam os interesses do povo. Por isso, não mereciam sua

adesão. Daí o emprego do termo “ojeriza” que incorpora ao enunciado a repulsa, a

114

repugnância orgânica sentida pelo enunciador diante de tais ideologias. Aliás, a palavra

“ojeriza” indicia uma postura corporal do enunciador, a postura de quem se afasta

de/repele o Outro com nojo, asco, aversão etc.

Quando se tratava de defender a constituição de uma nação independente de

Portugal, Lobato não economizava nas imagens grotescas para denegrir a imagem do

legado lusitano. Na SD58, esse legado é dito um “monte de esterco”:

SD58: A árvore Brasil ainda não chegou à fase de floração. Ainda é um pé

de mamona que nasceu ao léu, no monte do esterco lusitano. (BDG19 [1944]

2010, p.434)

Nessa SD, o Brasil é metaforizado como uma árvore que “ainda não chegou à

floração”. Não era o Brasil uma árvore frondosa, nobre, em plena florescência como

bradavam os ufanistas; era ainda “um pé de mamona que nasceu ao léu, no monte de

esterco lusitano”. Um pé de mamona efetivamente não é uma árvore de grande porte, é

uma arvorezinha, um arbusto que nasce sem ser plantado pelo processo de dispersão das

sementes, que nasce ao acaso (“ao léu”) no “monte de esterco lusitano”. Como ignorar

que o Brasil era ainda apenas um pé de mamona adubado pelos excrementos lusitanos?

Assim, assumindo uma postura insurreta em relação à ideologia reinante em sua época,

Lobato

Não se deixará tomar de um nacionalismo vesgo, e muito menos não

partilhará da corrente ‘ufanística’, apregoando serem belas todas as nossas

tristes realidades. Não! O nacionalismo que o anima é diferente, nada tem

de ‘pátria amada’, de ‘hino nacional’. Este tipo de patriotismo só consegue

irritá-lo. O que prega é a exata compreensão dos nossos problemas, a

valorização das coisas brasileiras, sem os olhos deformadores do róseo [...]

otimismo10

.

Vale ressaltar que o modalizador “ainda”, ao tempo que indicia uma avaliação

negativa do presente pelo enunciador, indicia também um ato de fé no futuro do Brasil,

como país que se desenvolverá e se tornará independente de Portugal. O enunciador não

poupava alfinetadas aos legitimistas, antagonizando com aqueles que defendiam o

passadismo e o lusitanismo da cultura e da língua.

Como observador atento da língua em uso e não congelada nas gramáticas,

Lobato celebra, com entusiasmo, a vida da língua que não cessa de se renovar contra os

10 Ver http://www.historiaecultura.pro.br/modernosdescobrimentos/desc/lobato/lobatonotempo1915.htm

115

padrões enrijecidos que nos querem impor os prepostos de Portugal no Brasil. Esse

envolvimento entusiástico do enunciador para com a mudança linguística pode ser

observado na SD59:

SD59: Que deleite ter em mente a evolução dum vocábulo! (BDG7 [1944]

2010, p. 207).

Nessa sequência, o enunciador constrói um ethos francamente favorável à

mudança linguística. O tom que permeia o enunciado é compatível com a imagem de

um enunciador deslumbrado, arrebatado, seduzido, em estado de “deleite”, ao conjeturar

o processo de “evolução de um vocábulo”, que, metonimicamente, representa o

processo de evolução da língua. A adesão incondicional ao discurso separatista é

indiciada não apenas pelo léxico, mas também pelo contorno frasal exclamativo,

materializando a avaliação positiva que o enunciador fazia da evolução do idioma que

estava transformando o português em brasileiro.

Fisgado pelo evolucionismo linguístico, que lhe permitia interpretar as

mudanças que se operavam no português falado no Brasil como naturais e inevitáveis e

não como destruição da língua, o enunciador vislumbrava a necessidade de traduzir os

clássicos da literatura em linguagem mais adequada ao público leitor infantil brasileiro.

Ele cria que se o brasileiro não lia era porque não entendia a língua literária,

completamente alheia à língua falada no país. Na SD60, Lobato nomeia esse

descompasso:

SD60: Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que

refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem. (BDG21, [1944], 2010, p. 499).

Nessa sequência, o enunciador superficializa a contradição vivida pelo público

leitor infantil na época, contrastando “crianças brasileiras” e “traduções galegais”. Se,

por um lado, o enunciado soa como um lamento diante da constatação de que, vertidas

para o português lusitano, tais obras mais repeliam do que atraiam as “pobres crianças

brasileiras”, por outro, ele convoca o interlocutor à mudança, a participar da tarefa de

abrasileirar a linguagem dos clássicos para que cativassem o público infantil. Como se

trata de uma cenografia de carta pessoal (Lobato escrevendo a Godofredo Rangel, seu

fiel confidente por mais de 40 anos), a forma verbal de 1ª. pessoa do plural – “temos” –

é um “nós” inclusivo (eu + você), por meio de que o enunciador convoca seu

interlocutor a participar do projeto de abrasileiramento da linguagem das obras

116

destinadas às crianças, projeto que seria a pedra de toque das atividades do Lobato

editor e empresário do ramo editorial.

Reiteradamente, Lobato lamentava o descompasso entre o público leitor

brasileiro e a língua literária que lhes era apresentada e incitava seus colegas das Letras

a tomar parte na tarefa de abrasileirar a linguagem:

SD61: Realmente muito interessante e de grande pitoresco. Há coisas

deliciosas de observação e expressão. Pena escrever na tal cacografia

portuguesa. (BDG 24, [1944] 2010, p. 514)

SD62: Estou precisando de um Dom Quixote para crianças, mais correntio e

mais em língua da terra que as edições do Garnier e dos portugueses.

(BDG22, [1944] 2010, p. 500)

Na SD61, o enunciador constrói um ethos de descontentamento ao comentar a

obra de Wellington Brandão que Godofredo Rangel lhe enviara de Passos, a cidade

onde atuava como juiz. Mostrava-se entusiasmado com as coisas “interessantes”,

“pitorescas” e “deliciosas” que o texto tinha a dizer, mas lamentava que tudo estivesse

estragado pela “cacografia portuguesa”. Lobato era sempre um juiz implacável quando

se tratava de julgar a prática da imitação da escrita literária lusitana por escritores

brasileiros. A literatura brasileira carecia de ser escrita em língua brasileira, assim como

os clássicos, a exemplo de Dom Quixote, para serem lidos por nossas crianças

precisavam ser escritos numa linguagem mais familiar, mais “correntia” e “da terra”.

Na SD62, é, pois, o enunciador-editor (“estou precisando”) que incita a comunidade das

Letras a apresentar traduções em língua familiar e inteligível ao público leitor infantil

brasileiro. Ao longo de toda a sua vida não tirou do horizonte a preocupação em

produzir literatura, quer como autor, quer como tradutor, quer como editor, que

seduzisse o leitor infantil. Num balanço final de sua trajetória intelectual e política,

chegou a afirmar-se desiludido com tudo menos com sua aposta nas crianças. Chegou

mesmo a dizer que só gostaria de voltar ao mundo, se fosse para escrever mais histórias

para as crianças.

Praticamente em todas as SDs analisadas neste capítulo e no capitulo 4,

destinadas a interlocutores adultos, pode-se observar um envolvimento “visceral” do

enunciador com a defesa do abrasileiramento da língua nacional, o que o faz assumir

uma atitude derrisória em relação ao ponto de vista do Outro, que defendia a fidelidade

ao lusitanismo. Pode-se dizer que, entre as muitas campanhas que empunhou ao longo

de sua atuação literária, acadêmica, profissional e política, Lobato travou um acirrado

117

combate em prol da independência da língua nacional – a brasilina. Quando defendia a

constituição da língua brasileira em gêneros como cartas a amigos, matérias

jornalísticas, entrevistas, ensaios, resenhas, enfim, em textos destinados à intelligentsia

brasileira que lhe era contemporânea, seu tom era comumente belicoso, fazendo dos

textos verdadeiros campos de batalhas, cujas armas eram o escárnio, a ironia, o

escracho, tudo que se prestasse à produção do efeito derrisório.

Contudo, mudadas as cenas genéricas orientadas pelo propósito da discussão

com os pares para a cena genérica do conto infantil, percebe-se uma mudança na

constituição do ethos do enunciador. A irreverência continua presente, principalmente

na fala da espevitada personagem Emília e dos outros personagens do sítio que, ao

falarem pelo enunciador, sempre desautorizam a causa legitimista e apoiam a

separatista, mas há uma didatização do discurso sobre a evolução do português para o

brasileiro. O enunciador se torna menos ácido e corrosivo e mais instrutivo na defesa de

sua tese. Há, por assim dizer, uma suavização do tom, uma certa delicadeza não

percebida quando a cena genérica se orienta para a interlocução com adultos, porém os

traços delineadores do discurso são ainda provocativos e questionadores. As SDs que

seguem foram extraídas da obra Emília no país da gramática:

SD63: São os escombros duma cidade que já foi muito importante — a

cidade das palavras latinas; o mundo foi mudando e as palavras latinas

emigraram dessa cidade velha para outras cidades novas que foram surgindo.

Hoje, a cidade das palavras latinas está completamente morta. Não passa

dum montão de velharias. Perto dela ficam as ruínas de outra cidade célebre

do tempo antigo — a cidade das velhas palavras gregas. Também não passa

agora dum montão de cacos veneráveis. (EPG1, [1934] 1984, p.9)

SD64: Judiação! — comentou Narizinho. — Acho odioso isso. Assim como

num país entram livremente homens de todas as raças — italianos, franceses,

ingleses, russos, polacos, assim também devia ser com as palavras. Eu, se

fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas as palavras que

quisessem entrar — e não exigia que as coitadinhas de fora andassem

marcadas com os tais grifos e as tais aspas. (EPG1, [1934] 1984, p.17)

SD65: A cidade de Portugália dava a ideia duma fruta incõe — ou de duas

cidades emendadas, uma mais nova e outra mais velha. A separação entre

ambas consistia num braço de mar. — A parte de lá — explicou o

rinoceronte — é o bairro antigo, onde só existiam palavras portuguesas. Com

o andar do tempo essas palavras foram atravessando o mar e deram origem

ao bairro de cá, onde se misturaram com as palavras indígenas locais. Desse

modo formou-se o grande bairro de Brasilina.

— Compreendo — disse Pedrinho. — Para cá é a parte do Brasil e para lá é

a parte de Portugal. Foi a parte de lá, ou a cidade velha, que deu origem à

parte de cá, ou a cidade nova.

118

— Isso mesmo. A cidade nova saiu da cidade velha. No começo isto por

aqui não passava dum bairro humilde e malvisto na cidade velha; mas com o

tempo foi crescendo e ainda há de acabar uma cidade maior que a outra —

Vamos percorrer a cidade nova, que é a que mais nos interessa — propôs

Narizinho. (EPG1, [1934] 1984, p. 19)

SD66: Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no

seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a

língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo

aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer

uma coisa aqui dizem outra. [...]

— Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha

— concluiu Narizinho.

— Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas

estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra,

começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os

costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de expressão

tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua

nova pátria. A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha.

Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha

como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver. (EPG1, [1934] 1984, p.

91)

SD67: Depois da tremenda revolução ortográfica da Emília, o Brasil ficou

envergonhado de estar mais atrasado que uma bonequinha e resolveu aceitar

as suas ideias. E o governo e as academias de letras realizaram a reforma

ortográfica. Não saiu coisa muito boa, mas serviu. (EPG1, [1934] 1984,

p.135)

SD68: A senhora canta muito bem, mas não entoa. Talvez tenha até carros

de razão. Entretanto ignora a maçada que é para as crianças estarem

decorando um por um o modo de se escreverem as palavras pelo sistema

antigo. Os velhos carranças é natural que estejam do seu lado, porque já

aprenderam pelo sistema antigo e têm preguiça de mudar; mas as crianças

estão aprendendo agora e não há razão para que aprendam pelo sistema

velho, muito mais difícil. Eu falo aqui em nome da criançada. Queremos a

ortografia nova porque ela nos facilita a vida. (...) (EPG1, [1934] 1984, p.

144)

Nas SDs 63 a 66, o enunciador, assumindo a função de narrador, explica/defende

a tese da evolução linguística, que, a seu ver, estava transformando a língua portuguesa

em língua brasileira, por meio da metáfora da cidade velha e da cidade nova. Essa

metáfora permite-lhe apresentar de modo concreto, num diálogo entabulado com as

personagens, o princípio sobre a evolução natural das línguas que adotava para explicar

as mudanças que estavam ocorrendo com o português ao ser trazido para o Brasil. Se se

se comparar a explicação evolucionista dada por Lobato nos textos nucleares aos

capítulos 4 e 5 (O dialeto caipira e O dicionário brasileiro) com a que é fornecida no

texto Emília no país da gramática, pode-se perceber a preocupação do enunciador, em

relação ao último, em ser claro, inteligível e palatável ao público infantil.

119

Na SD63, com as metáforas da cidade velha e da cidade nova, o enunciador

pode explanar visualmente como do latim saiu o português e como do português está

saindo o brasileiro. O tom derrisório, se é que se pode falar nele em relação a este texto,

apresenta-se eufemizado: a cidade das palavras latinas estaria completamente morta,

dela só restaram os “escombros”, um “montão de velharias”; a cidade das palavras

gregas seria um “montão de cacos veneráveis”. Tais expressões, embora se revistam de

uma avaliação negativa, são menos agressivas do que, por exemplo, dizer que o legado

lusitano é um “monte de esterco” (SD58).

Na SD64, o enunciador faz menção ao preconceito linguístico, urdido na bacia

semântica do purismo, com as palavras estrangeiras que iam, aos poucos, sendo

incorporadas ao idioma. O tom utilizado é um tom infantil, de quem tem “pena” e pensa

ser uma “judiação” que os novos vocábulos não sejam aceitos como já parte do idioma

nacional. Um ponto que chama atenção nesta sequência discursiva é que o enunciador

sugere que quem toma as decisões sobre o que deve ou não fazer parte do idioma seria

um “ditador”.

Na SD65, continua o tom didático do discurso, utilizando a metáfora das cidades

“nova” e “velha” para explicar os idiomas brasileiro e luso, respectivamente. O

enunciador afirma que se deve investigar a cidade nova, pois seria esta “a que mais

interessa”; sempre procurando persuadir o leitor infantil a se afastar e emancipar das

normas linguísticas lusitanas.

Na SD66, o enunciador condena a “curteza de vistas” dos legitimistas, pois

entende que o idioma evolui naturalmente, e que o novo ambiente em que o idioma se

encontrava, Brasil e não mais Portugal, também propiciaria maior dinamismo nas

mudanças linguísticas. O enunciador acrescenta ainda que o a língua brasileira iria se

distanciar e diferenciar tanto da língua portuguesa quanto esta da língua latina, em tom

de quem profetiza o futuro: “vocês vão ver”.

Na SD67, o enunciador demonstra como se sente a respeito do modo como o

Brasil lida com a língua, o sentimento é de “vergonha”, pois o país estaria “atrasado” e

por insistência da revolucionária Emília teria feito uma reforma, já sinalizando algum

progresso no sentido de autonomização do idioma nacional, ainda que não fosse a

reforma desejável: “não saiu coisa muito boa, mas serviu”. O ethos presente nessa SD

procura persuadir os leitores a se identificarem com seus argumentos em favor da tese

evolucionista com que sustenta a ideia de que a língua brasileira estava se constituindo e

120

a se dissuadir da tese conservadorista que defendia a manutenção do português a ferro e

fogo.

Na SD68, o enunciador rechaça a prática insistente de ensinar para as crianças a

ortografia lusa, que considerava mais difícil. Para elas seria tedioso, uma “maçada” ter

que aprender as regras de um idioma que sequer era o que falavam. Completa ainda que

os “velhos carranças” teriam “preguiça” de aprender algo novo, por isso defendiam a

língua velha. O enunciador afirma também que não se queixa apenas em seu nome, mas

em nome de todas as crianças.

O enunciador constrói um ethos de enunciador inconformado e insurreto diante

das imposições linguísticas de gramáticos e filólogos. Em relação às normas de

acentuação gráfica, por exemplo, é contundente em pregar uma política de

“desacentuação”, não perdendo a oportunidade de atacar filólogos e gramáticos:

SD69: Revoltado contra os acentos acadêmicos, usei do meu prestígio na

Editora Nacional para uma guerra à excrescência, e consegui que a empresa

editasse centenas de milhares de livros com a “desacentuação”

exemplificada no livro que remeto como amostra. E não sei de uma só

criança que lendo-o, sinta falta das pulguinhas suprimidas. (PB/EP – CE

[1961], 1981, p.75)

Na SD69, a rejeição da política de acentuação é modalizada,

hiperbolicamente, como “excrescência”, se Lobato se dirige aos pares adultos, ou,

eufemisticamente, como “pulguinhas” desnecessárias (que não prejudicam em nada a

leitura), se imagina os leitores infantis. O enunciador constrói um ethos categórico,

contumaz, voluntarioso e, até mesmo, impertinente ao mencionar que usou de seu

prestígio na editora de que era um dos proprietários para declarar “guerra à

excrescência” do acento gráfico. Ainda mais agressivo é tom assumido pelo enunciador

nesse bilhete endereçado a Bruno Di Tolla (SD70), chefe das oficinas da empresa

gráfica da “Revista dos Tribunais”, que estava editando uma obra sua:

SD70: Meu caro Bruno:

É favor avisar aos linotipistas que o autor deste livro sou eu, e não eles,

nem o Capanema, nem aqueles cretinos da Academia de Letras, e mais os

m.... que fazem reformas ortográficas e c.... em cima de quase todas as

palavras as b.... que eles chamam “acentos”e só os cretinos iguais a eles

aceitam. O resultado dessa política acentista dos senhores compositores é a

demora no trabalho, imposta pela retirada de todos os acentos, que não

figuram nos originais e que eles, de medo do governo vão botando. Isso

redunda em prejuízo para a oficina e redobro de trabalho para mim. Porque

eu não transijo, e por mais “à” com acento agudo, antigo, clássico e certo, e

121

por mais “êle" e “êsse" que apareçam nas provas, eu não adiro e corto os

acentos por mais trabalho que isso me dê.

Peço pois ao amigo Bruno que fale com esses homens e convença-os de que

o autor do livro sou eu: e ou o livro sai com a minha ortografia ou não sai.

Hei de morrer sem concordar com os imbecilissimos reformadores

ortográficos que fazem de cada palavra um pinico. Lobato

(LOBATO, apud MÁXIMO, 2004, p.23).

Nesse bilhete/recomendação, defende aguerridamente sua política de

desacentuação contra as determinações das grandes autoridades da época: o Ministro da

Educação e Saúde, Gustavo Capanema, a Academia de Letras (desqualificados como

“cretinos”) e os reformadores ortográficos (desqualificados como “m...” e

“imbecilissimos”) por fazerem de “cada palavra um pinico”. Mostra-se intransigente na

defesa de que a obra, sendo sua, deveria respeitar sua ortografia (“o livro sai com a

minha ortografia ou não sai”). Não adocica as palavras para se referir ao Outro que

pudesse lhe fazer objeção, como se pode observar no trecho a seguir: “os m.... que

fazem reformas ortográficas e c.... em cima de quase todas as palavras as b.... que eles

chamam ‘acentos’ e só os cretinos iguais a eles aceitam”.

Raras vezes Lobato enunciou sobre a língua brasileira com temperança, sem

fazer de seus enunciados um pugilismo de palavras, sem bater no Outro, como nas

SD71 e 72:

SD71: Diz bem o A. dizendo língua pátria. Porque a língua pátria já não é

propriamente a língua lusa de Portugal – é sua filha brasileira. E se

gramática é o estudo dos fatos da língua, a gramática que nos convém é a

que estude os fatos da língua pátria. (PB/EPCOM [1965], 1981, p.54)

SD72: Essa diversidade não significa, entretanto, independência? - Não.

Não temos ainda uma língua brasileira definitivamente formada. Temos

entretanto, uma língua em formação. O “brasileiro” delineia-se, organiza-se,

cria vocabulário, constitui-se. Está em plena evolução. Mas não podemos

absolutamente afirmar que já somos independentes linguisticamente. (PB/EP

– RAPL [1941], 1981).

Nessas SDs, as observações feitas pelo enunciador são mais ponderadas,

esboçando gestos de concordância com pontos de vista diferentes do seu. Na SD71,

Lobato demonstra concordar com seu interlocutor no uso do termo “língua pátria” que

lhe parece mais adequado para designar a realidade linguística brasileira, já bastante

afastada da língua de Portugal. Chamar essa realidade de “português” lhe parecia

inadequado, pois ele acreditava estar diante de uma filha da língua lusa e não

propriamente diante da língua lusa. Completando seu raciocínio, afirma que, se a

122

gramática é o estudo dos fatos da língua, a gramática de que o brasileiro precisa é a

gramática da língua pátria que é a língua brasileira. Enfim, os fatos da língua pátria, no

Brasil, são os fatos da língua brasileira. O português lusitano não corresponde à língua

efetivamente falada no país. Portanto, a gramática deveria estudar e explicar a língua

brasileira e não reeditar/prescrever as normas lusitanas. Lobato aponta, pois, o

descompasso entre as normas objetivas da língua pátria, brasileira, e as normas

subjetivas do português padrão, lusitano. Algo semelhante ocorre na SD72, que afirma

não haver uma língua brasileira definitivamente formada, mas que há uma em processo

de formação (“O ‘brasileiro’ delineia-se, organiza-se, cria vocabulário, constitui-se. Está

em plena evolução”). Nessa SD, o tom moderado é garantido pelo deslocamento do fato

da língua brasileira para o futuro. Ela passa de uma língua brasileira radicada no

presente, para uma projeção, de uma língua real para uma língua sonhada. As palavras

“ainda”, “entretanto” e a frase “Mas não podemos absolutamente afirmar que já somos

independentes linguisticamente” são índices dessa voz mais ponderada.

Pronunciando-se acerca da língua brasileira, ou melhor, defendendo sua

emancipação, Monteiro Lobato foi frequentemente derrisório (escarneceu do Outro),

irônico, agressivo, irreverente, obstinado, contumaz, didático (quando se tratava de falar

com/para as crianças) e, raramente, racional. Enunciou no tom que convém a um

separatista genuíno que professa um nacionalismo crítico em pé de guerra com os

legitimistas/conservadores que defendiam a manutenção das peias que ainda prendiam o

Brasil a Portugal.

123

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso feito ao longo deste estudo não autoriza conclusões definitivas. A

suspensão temporária do tempo dedicado à análise e interpretação dos enunciados que

compõem o corpus é, definitivamente, uma pausa compulsória determinada pelo

calendário institucional. Ler Lobato, perscrutando tudo o que ele pensou e disse sobre a

língua do Brasil, como tradutor, jornalista, editor, escritor para adultos e crianças,

crítico de arte e missivista compulsivo, é uma tarefa hercúlea e invencível por um

pesquisador isolado na brevidade do tempo de um curso de mestrado.

Lobato, como inúmeros outros intelectuais que pensavam o Brasil tendo por

referência espaço-temporal a cidade de São Paulo das primeiras décadas do século XX,

era identificado pela sua natureza polêmica, pelas batalhas que travava tanto com os

passadistas quanto com os próprios modernistas, a exemplo das críticas ácidas

direcionadas à pintura de Anita Malfatti que, a seu ver, desperdiçava talento fazendo

“caricatura”, quer dizer, deformando o que a natureza apresentava de modo perfeito,

tornando feio o que era naturalmente belo (“futurismo, cubismo, impressionismo e tutti

quanti não passam de outros ramos da arte caricatural [...] que não visa, como a

verdadeira, ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade

do espectador”). Sua obra suscitou críticas em esferas diversas: estética, literária,

política, religiosa, ética, pedagógica etc. Enfim, ele não era uma unanimidade entre seus

contemporâneos. “Para alguns, foi inovador, revolucionário e publicista; para outros,

um reacionário, passadista, elitista e preconceituoso” (SOUSA, 2009, p. 19). Pode-se

dizer que ele era um sujeito mal ajustado à comunidade ética modernista, embora

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compartilhasse com ela muitas de suas bandeiras como a da nacionalização literária,

linguística, artística, enfim, cultural do país.

É de seu(s) discurso(s) sobre a nacionalização linguística do Brasil que se

ocupou neste estudo. Buscou-se observar o(s) posicionamento(s) assumidos por Lobato

na polêmica entre separatistas e legitimistas, com base nos conceitos de interdiscurso,

polêmica como interincompreensão e ethos. Como muitos outros intelectuais dessa

época, Lobato se incomodava como o inacabamento do processo de emancipação

brasileira oficializado com o acontecimento simbólico da Independência política em

1822.

Embora o corpus examinado neste estudo possa sugerir que o pensamento de

Lobato em relação à língua do Brasil seja unívoco, é preciso ressaltar que o separatismo

radical que se atestou em praticamente todos os enunciados aqui lidos é representativo

de uma das fases vividas pelo escritor Lobato. Segundo Pinto (1978), essa fase de

adesão plena ao separatismo foi precedida e seguida por outras menos radicais na

afirmação da autonomia linguística brasileira. Ao longo da década de 1900, ele

ressaltava o estilo natural de Camilo Castelo Branco, que escrevia tão naturalmente

como se “mijasse”. Entre os brasileiros, admirava Machado de Assis e Euclides da

Cunha. A partir da década de 1910, começava a ganhar contornos mais fortes sua

posição de repúdio ao padrão linguístico e ao estilo literário português, mas ainda

restava alguma preocupação com a gramática prescritiva. Frequentemente pedia a

Godofredo Rangel, amigo com quem se correspondeu por toda a vida, que lhe corrigisse

a colocação dos pronomes, exatamente o tópico gramatical que se tornaria seu “saco de

pancadas”.

Contudo, anunciada a década de 20, Lobato se voltava energicamente contra os

ditames gramaticais lusitanos e passava a defender com vigor a existência de língua

brasileira, batizada por ele de Brasilina, em processo de separação do português (Dona

Manuela), como se pôde observar nos textos “Dialeto caipira” (1921) e “O dicionário

brasileiro” (1921), analisados nos capítulos 4 e 5, respectivamente. Em 1924, escreveu

“O colocador de pronomes”, conto que narra a história do professor Aldrovando

Cantagalo, um sujeito obstinado pela correção linguística, um “mártir da gramática”,

cujo nascimento e morte se fez sob o signo de dois equívocos pronominais: “Filho dum

pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida”. Gerado

por um pai que fora obrigado a se casar com uma moça encalhada, que não amava, por

ter usado indevidamente lhe em vez de te, Aldrovando passou 50 anos de sua vida

125

coçando “a sarna filológica” das gramáticas para morrer vítima de uma próclise quando

as regras de colocação pronominal determinavam uma ênclise. Por azar do destino e

artimanha do diabo, no momento de composição do primeiro volume de sua obra,

intitulado “Do pronome se”, o tipógrafo empastelou os tipos justamente na montagem

da dedicatória a Frei Luís de Sousa: “À memória daquele que me sabe as dores”.

Seguindo sua própria intuição, o tipógrafo assim rearranjou a frase: “À memória

daquele que sabe-me as dores”. Obra impressa, Aldrovando abre o primeiro exemplar

que seria enviado, devidamente autografado, para ninguém menos do que Rui Barbosa.

Eis que seus olhos deslizaram pela página, detendo-se diante da “horrenda cinca”:

“daquele QUE SABE-ME as dores”. Acometido de “dor gramatical inda não descrita

nos livros de patologia”, Aldrovando morreu, murmurando “Luís, Luís, Lamma

Sabachtani?!”, fazendo ecoar uma das últimas frases que Jesus Cristo, segundo os

evangelhos, teria pronunciado na cruz em hebraico e aramaico: “Eli, Eli, lamma

sabachtani” (Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?). Porém, ele invoca Luís

de Sousa, um deus da língua portuguesa, e não o Deus do cristianismo. Esse conto

representa, pois, a culminância da posição separatista em Lobato. E a maioria das SDs

que compõe o corpus aqui analisado foi recortada de textos produzidos nessa fase.

Na década de 1940, Lobato se tornou menos contundente na sua posição

separatista. Numa entrevista à Folha da Manhã, em 1941, ele afirmava existir, no

Brasil, “uma língua em muitos pontos diversa da que se fala em Portugal”, mas que essa

diversidade ainda não equivalia a uma língua independente: “Não temos ainda uma

língua brasileira definitivamente formada. Temos, entretanto, uma língua em formação.

O ‘brasileiro’ delineia-se, organiza-se, cria vocabulário, constitui-se”. Pode-se observar

que Lobato não deixava de acreditar na língua brasileira como uma outra língua,

emancipada do português, apenas a deslocava do presente para o futuro, como sugere o

modalizador temporal “ainda”, no excerto anteriormente citado. Nessa entrevista ele

afirmava que esse processo de “evolução darwínica” que estava transformando o

português em brasileiro teria começado no dia em que Cabral aportou no Brasil, “[...] ao

sabor das diferenças mesológicas, raciais e sociais” aqui existentes.

Enfim, de modo mais ou menos radical, mais ou menos intempestivo, mais ou

menos urgente, Lobato nunca deixou de apostar na existência do língua brasileira e de

vinculá-la à construção de uma identidade nacional. Incomodava-lhe profundamente a

ideia de falar brasileiro, mas fazer literatura com português alheio. Ele costumava dizer

que quem mais lhe ensinara a escrever foram as crianças. Com elas aprendera a escrever

126

simples, a desvencilhar-se de toda a literatice e de todo pedantismo do estilo português.

Ao revisar as “Fábulas”, confessava a Rangel, ter raspado delas “quase um quilo de

‘literatura’” e de ainda assim ter sobrado coisa. Em Lobato, a premência da língua

brasileira era a premência de se dispor de uma língua escrita para um fazer literário que

fosse inteligível ao público leitor, que, segundo o escritor e editor, não lia porque não

entendia o que lia.

Como um dos objetivos específicos, essa pesquisa pretendeu analisar o discurso

de Monteiro Lobato acerca da(s) variedade(s) brasileira(s) do português, mais

precisamente, acerca de uma possível língua nacional. Quem envereda pelo arquivo

lobateano, depara-se com uma fartura de enunciados em que o escritor demonstra seu

posicionamento separatista acerca da língua brasileira. Saltam aos olhos do leitor,

analista de discurso, as manifestações invariavelmente apaixonadas em favor da língua

brasileira. Essa posição faz com que a língua brasileira seja interpretada por meio de

semas positivos, ao passo que o português seja lido mediante semas negativos. Para ele,

a língua brasileira seria a mais natural e adequada à expressão da nossa alma. Sem uma

língua própria, o brasileiro seria um povo sem identidade, “[...] um corpo sem alma, uma

pobre coisa sem transcendência” (ITJ 15, [1919] 2008, p. 198). Inúmeras personagens

lobateanas (Jeca Tatu, Emília e Narizinho, dentre outras) foram investidas da tarefa de

provar a eficiência e a propriedade da língua brasileira na escrita literária, à distância da

gramatiquice que mal se ajustava à expressão da brasilidade material e/ou espiritual. Era

preciso harmonizar a forma e o fundo na práxis literária, uma vez que “brasileiros de

carne [haviam ficado] europeus de espírito” (SD20). Contudo, apesar de sua militância,

Lobato foi alvo de críticas por escritores modernistas, como Mário de Andrade, que o

acusava de esconder-se atrás das personagens para usar a língua brasileira, não tendo

coragem, ele mesmo, de assumir o que pregava.

A investigação pretendeu ainda examinar os efeitos de sentidos que envolvem a

alteridade linguística do português no discurso de Lobato. No que concerne ao

interdiscurso, Lobato deixa transparecer a presença do Outro em suas defesas

inflamadas da língua e cultura brasileira. Praticamente em todas as sequências

discursivas, ele polemiza com discurso legitimista que traduz a evidente mudança do

português em direção à língua brasileira como “o monstro da corrupção”,

“prodriqueira”, “enfermidade”. Porém, tal um enunciador separatista, Lobato significa a

mudança, positivamente, como evolução. A língua brasileira seria uma criança, depois

uma mocinha cheia de vida, “curiosíssima”, “inteligentíssima”, “original”, “arisca”,

127

‘virginal”, “telúrica”, “rica em poesia”, “com todas as cores do arco-íris, todos os

cheiros e todos os sabores” etc. Já o português transplantado para o Brasil é significado

por meio de termos que integram semas negativos, como morte e velhice: “língua

velha”, “necropsia” e outras metáforas e termos vexatórios como “verrugas da língua

mãe”, “fradalhões hipócritas”, “sarna filológica”, “furúnculo filológico”, “língua

impostora”, “língua de letrudos”, “emperrada, pedante, cheia de ‘cofos’ e ‘choutos’”,

“artificial”, “embaraçadora da evolução natural”, “exigidora de tradução”, “atrasada”

etc. Na sua relação com Portugal e Europa, o Brasil precisava deixar de funcionar como

uma “lua morta”, ou seja, como um satélite, cuja propriedade é a de gravitar em torno

de um corpo celeste principal, não o sol, mas a Europa. O Brasil precisava superar,

conforme Lobato, sua condenação colonial ao satelitismo em relação a tudo que viesse

do continente europeu. Em resumo, passado pelo filtro da semântica separatista, o

acontecimento da mudança linguística do português no Brasil, instaurado desde o

princípio da colonização, é significado positivamente, ao passo que a defesa, pelos

legitimistas, da conservação do idioma lusitano em sua suposta “pureza” é esconjurada.

O estudo propôs-se, também, a verificar a ideologia do movimento modernista no

que concerne ao projeto de valorização da cultura nacional, especificamente no que se

refere à constituição de uma língua nacional brasileira. Em relação a esses aspectos,

apesar de não se filiar ao modernismo oficialmente, Lobato compartilhava com os

ideólogos do movimento muitas de suas ideias a respeito da construção de uma

identidade linguística e cultural brasileira. Era presença constante e muito ativa nos

debates sobre as questões que interpelavam o país. Estava sempre disposto a opinar e a

envolver-se em causas que visassem à constituição da brasilidade. Sua personalidade

forte rendeu muitos embates com os modernistas, a exemplo das críticas a Anita

Malfatti, comentado anteriormente, em que a comunidade modernista inteira saiu em

defesa da pintora. Mas se, por um lado, criticava os modernistas, por outro, enxergava

seu papel de vanguarda no “abandono de duas coisas a que andamos aferrados: o

espírito da literatura francesa e a língua portuguesa de Portugal”. Foi um modernista à

sua própria maneira, pode-se dizer.

Outra intenção do estudo foi investigar o ethos do enunciador ao propor a

nacionalização da língua. No decorrer da pesquisa, a noção de ethos avultou como

uma baliza apropriada para a leitura do corpus, uma vez que o tom de Lobato não era

um tom neutro, pacífico, algo que passasse despercebido, mas sim um tom apaixonado,

veemente, combativo, militante, revolucionário, transgressor, mordaz, praticamente em

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todos os enunciados. Quando defende a brasilidade linguística, literária, artística e

cultural do país, não o faz em pianíssimo, mas sim em fortíssimo. Por essa razão, o

ethos salta aos olhos do analista de discurso e não pode ser ignorado por ele. A postura

de Lobato é francamente derrisória, pois o riso é empregado por ele como arma para

desqualificar e diminuir o Outro. Na derrisão, não há inocência no riso; ele está a

serviço da ridicularização, do desprezo, da zombaria, do rebaixamento do Outro, além

da contestação da ordem estabelecida ou de princípios amplamente aceitos numa

sociedade (MERCIER, 2001, p.10). No caso de Lobato, o ethos derrisório dirigido aos

legitimistas é uma espécie de rebelião contra a autoridade da gramática impingida pelos

colonizadores, ou melhor, contra a autoridade do pai português, uma liberação da

pressão exercida sobre os brasileiros por quatro séculos. O riso derrisório tem por

função rebaixar aqueles que reivindicam autoridade, respeito e obediência. É

principalmente por meio dos termos que escolhe para se referir ao Outro que o tom de

zombaria se inscreve nos enunciados; a eles Lobato se refere como “magnatas

cortesanescos”, “tartarugas filológico-perobas”; “carunchos”, “fradalhões hipócritas”;

“carrapatos”; “bácora” (porco) etc. Em síntese, o ethos discursivo de Lobato se alinha

com o ethos revolucionário dos nacionalistas mais engajados das primeiras décadas do

século XX, incluindo a comunidade ética modernista.

Ao se esquadrinhar o arquivo lobateano, pretendeu-se, igualmente, apreender,

no nível da superfície linguística, as marcas materiais da polêmica entre o discurso

separatista e legitimista referente à língua portuguesa. Nesse percurso, observou-se que

a polêmica, que é, segundo Maingueneau (2008), uma forma de dialogismo e

heterogeneidade mostrada na superfície dos enunciados, manifesta-se frequentemente

em Lobato por meio de simulacros. Na tentativa de valorizar seu discurso, Lobato

utiliza termos que buscam diminuir o Outro, como “carrança” (passadista); “curto de

ideias”; “incompreensivo”, apegado a “velhos tabus” e os demais mencionados no

parágrafo anterior. O léxico lobateano para designar, derrisoriamente, o legitimista era

farto de possibilidades, sem contar com as argutas metáforas que ele criava para nomeá-

lo. Tais simulacros trazem à tona a heterogeneidade dos discursos, bem como a

interincompreensão inerente à polêmica. Os textos de Lobato são verdadeiras arenas em

que o separatista bate, com palavras, nos legitimistas, revelando que um discurso

sempre se origina de outro(s) discurso(s), aliando-se a ele(s) ou negando-o(s).

Por fim, objetivou-se contribuir com a discussão/reflexão acerca do português

como uma língua heterogênea. Se considerar-se que a alteridade do português do lado

129

de cá do Atlântico é divisada e feita tema de polêmicas desde o século XIX, seria de se

esperar que ela já tivesse sido assimilada e incorporada como natural nas interações

cotidianas. Contudo, não é o que se vê. A cada vez que a diversidade linguística do

português, apresentada pelo viés da linguística moderna como algo natural, por uma

razão ou outra, se faz tema da mídia contemporânea, a praça pública sai em defesa do

português castiço, mumificado nas gramáticas normativas. Lobato pensava que era um

trabalho dos escritores escrever a língua brasileira, assim como um trabalho dos

filólogos instrumentalizá-la com descrição gramatical e dicionário. Porém, os filólogos,

reclamava o escritor, só tinham olhos para as línguas mortas, só se interessavam pela

“necropsia”, em nada ajudavam na tarefa de gramaticalizar o brasileiro. Hoje quem

empunha a bandeira do português como sendo várias línguas são os linguistas,

principalmente os sociolinguistas, mas o senso comum continua a acreditar que só

existe um português correto e que nós linguistas estamos conspirando contra o povo

quando afirmamos que a variação linguística é normal e que sua(s) língua(s) é/são tão

boa(s) quanto a norma culta, embora seja(m) subavaliada(s) no mercado de bens

simbólico. Pregamos no deserto, pois o preconceito, a discriminação, o repúdio e a

intolerância se mostram mais vivos e fortes do que nunca. José de Alencar e outros

românticos tentaram traçar novos roteiros de significação para a língua brasileira,

Lobato e outros modernistas também tentaram e nós linguistas continuamos tentando...

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