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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS RODRIGO HOLANDA BARBOSA VIOLÊNCIAS ESTATAIS E RESISTÊNCIAS: AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CONJUNTO CEARÁ. FORTALEZA – CEARÁ 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RODRIGO HOLANDA BARBOSA

VIOLÊNCIAS ESTATAIS E RESISTÊNCIAS:

AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CONJUNTO CEARÁ.

FORTALEZA – CEARÁ

2017

RODRIGO HOLANDA BARBOSA

VIOLÊNCIAS ESTATAIS E RESISTÊNCIAS:

AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CONJUNTO CEARÁ.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentadoao Curso de Graduação em Ciências Sociaisdo Centro de Humanidades da UniversidadeEstadual do Ceará, como requisito parcial paraobtenção do grau de Bacharel em CiênciasSociais.

Orientador: Prof. Dr. Geovani Jacó de Freitas

FORTALEZA – CEARÁ

2017

RODRIGO HOLANDA BARBOSA

VIOLÊNCIAS ESTATAIS E RESISTÊNCIAS:

AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CONJUNTO CEARÁ.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial paraobtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais.

Aprovada em: 15/ 12/ 2017.

Com amor e luto a Juliana Elias de Andrade,

colega, amiga e militante.

AGRADECIMENTOS

Aos moradores e moradoras do Conjunto Ceará, muito obrigado!

Aos meus pais, José e Geovana que tantas vezes me apoiaram para seguir em frente. Amo

vocês!

Ao meu orientador, professor Dr. Geovani Jacó de Freitas, pela paciência, atenção e dedicação

oferecidas durante a construção deste trabalho. Muito obrigado, pelo amparo em todos os

momentos, pelo exemplo profissional e em especial por sua doçura.

A professora Drª. Mônica Martins, de sabedoria grandiosa, obrigado pelo incentivo desde o

começo da graduação, sua humildade é inspiradora.

A professora Drª. Natália Montebello, pela rebeldia ideológica compartilhada, pela humildade

e pelo carinho propiciado.

A professora Drª. Rosemary Almeida, pelos seus ensinamentos e sua didática em sala de aula.

A todos(as) os(as) professores(as) do curso de graduação em ciências sociais da Universidade

Estadual do Ceará, meu profundo respeito.

Aos meus colegas da turma 2014.1 e de curso, pela caminhada em conjunto.

Aos meus amigos, Angela, Luan, Maluan e Stephany, vocês são minha família.

Em memória de Juliana Elias de Andrade, que infelizmente não pode completar o curso e que

nos deixou tão cedo, de forma tão apressada e dolorosa. Se de algum modo você pudesse nos

ver Jú, sei que estaria rindo daquele seu jeito e torcendo por nós.

“Está escrito, no grande livro da sabedoria

popular, que primeiro se deve viver, que é pra

depois poetar. Que primeiro se deve viver, que

é pra depois poetar.”

(Ednardo)

RESUMO

Este trabalho busca compreender uma história que se perde na banalidade do cotidiano, e que

questiona o discurso posto como único que elege um agente externo oficial: o Estado, como

produtor absoluto da realidade. Por meio de uma abordagem metodológica livre e de um

chamado à reflexão epistemológica nas ciências sociais, efetuamos as bases heurísticas que

dão pilar de sustentação para o empreendimento científico de caráter qualitativo no campo de

pesquisa. Assim, em resumo, este empreendimento é uma tentativa teórica e prática de

possibilitar que as ações superem o esquecimento resultante do desapossamento dos agentes

sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos. Na produção documental e nas falas

dos agentes, observamos que o bairro do Conjunto Ceará é fruto de um projeto urbanístico

vindo das políticas de habitação da ditadura dos anos 1970. Debruçando-se sobre essa história

oficial de construção do bairro e de seus espaços públicos por parte do poder público, que

desde o início é acompanhada de lutas reivindicatórias dessa construção promovida pelo

Estado, ou seja, lutas por reconhecimento e preservação dos espaços públicos, nos dá

propriedade para entender como e de que formas as violências do Estado se manifestam no

Conjunto Ceará, diante do atual contexto de avanço neoliberal. É em paralelo a esse retrato

que chegamos ao objetivo central deste trabalho, perguntando-nos como o próprio bairro e

seus espaços públicos se constroem por meio de táticas e resistências que elevam uma lógica

dotada de sentido compreendida como auto-organização. Investigamos, portanto o entremeio

dialético entre história/atualidade, macro/micro, sujeito/objeto e violência/resistência, para

pensar a realidade do bairro do Conjunto Ceará, descobrindo para isso as particularidades do

campo de futebol de areia batida feito pelos moradores onde deveria existir uma quadra

pública acimentada, o jardim de plantas medicinais e ornamentais em meio a um terreno

público baldio e um sarau de juventudes em uma quadra de skate abandonada pelo Estado no

coração do Conjunto Ceará.

Palavras-chave: Violência. Resistência. Auto-organização.

ABSTRACT

By means of a free methodological approach and a call for epistemological reflection in the

social sciences, we make the heuristic bases that give support to the scientific enterprise of a

qualitative nature in the field of research. Thus, in short, this enterprise is a theoretical and

practical attempt to enable actions to overcome the forgetfulness resulting from the

dispossession of the social agents of their original power to narrate themselves. In the

documentary production and in the speeches of the agents, we observe that the district of

Conjunto Ceará is the result of an urban project coming from the housing policies of the

1970s dictatorship. It is based on this official history of the construction of the neighborhood

and its public spaces by the public power, which from the outset is accompanied by struggles

to reclaim this construction promoted by the State, that is, struggles for the recognition and

preservation of public spaces, gives us ownership to understand how and in what ways state

violence manifests itself in the Conjunto Ceará, in the face of the current context of neoliberal

advancement. It is in parallel to this portrait that we arrive at the central objective of this

work, to find a history that is lost in the banality of everyday life, and which questions the

discourse posed as the only one that elects an official external agent: the State, as absolute

producer of reality, asking as the neighborhood itself and its public spaces are built through

tactics and resistances that elevate a logic endowed with meaning understood as self-

organization. We therefore investigate the dialectic between history / actuality, macro / micro,

subject / object and violence / resistance, to think about the reality of the neighborhood of

Conjunto Ceará, discovering for this the peculiarities of the sand soccer field made by the

residents where it should exist an open public court, the garden of medicinal and ornamental

plants in the middle of a vacant public lot and a youth salon on a skateboard abandoned by the

State in the heart of the Conjunto Ceará.

Keywords: Violence. Resistance. Self-organization.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BNH Banco Nacional de Habitação

CCPA Centro Cultural Patativa do Assaré

CHESF Companhia Hidroelétrica do São Franscisco

CLE Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência

COBAL Companhia de Alimentação

COHAB Companhia de Habitação

COVIO Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitualidade e Violência

CSU Centro Social Urbano

IC Programa de Iniciação Científica

LIVRE Movimento Liberdade e Valores Revolucionários

MMA Ministério do Meio Ambiente

SECULT Secretaria da Cultura do Ceará

SEDUC Secretaria da Educação do Ceará

UECE Universidade Estadual do Ceará

UV Unidade de Vizinhança

UV2 Unidade de Vizinhança 2, Escola Dr. Gentil Barreira

UV3 Unidade de Vizinhança 3, Escola Edilson Brasil Soares

UV7 Unidade de Vizinhança 7, Escola Plácido Aderaldo Castelo

UV8 Unidade de Vizinhança 8, Escola José Maria Campos de Oliveira

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………….. 12

2 REFLEXÕES E OLHARES NO CAMPO DE PESQUISA.................……….. 19

2.1 REFLEXÕES EPISTÊMICAS E METODOLÓGICAS.........…........................… 20

2.1.1 O entremeio……………………………………………………………………… 22

2.1.2 A ruptura e os sujeitos da pesquisa……………..……….………..…………… 242.1.3 Ideologia e a ciência libertária……………...…………..……………………… 27

3 O CONJUNTO CEARÁ….…………………………………………………… 31

3.1 AS POLÍTICAS DE HABITAÇÃO……………………………………………… 31

3.2 O PROJETO CEARÁ……………………………………………………………. 333.3 AS VIOLÊNCIAS ESTATAIS..…………………………………………………. 36

3.4 LUTAS POR PRESERVAÇÃO………………………………………………….. 39

4 A AUTO-ORGANIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA.......................…………. 43

4.1 AS RESISTÊNCIAS……...………………………………………………………. 45

4.2 A LÓGICA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO……………………………………….. 51

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 55

REFERÊNCIAS………………………................................................................. 57

APÊNDICES….……………................................................................................. 62

APÊNDICE A – REGISTRO DE LEI……………………………………………. 63

APÊNDICE B – REGISTRO EM JORNAL……………………………………... 64

121 INTRODUÇÃO

A maioria que passa pelos cursos de graduação, e que, portanto, pode ir ou não

para uma pós-graduação, não está nem um pouco preocupada em discutir as raízes profundas

de sua ciência. A maioria das pesquisas é de fato ciência normal (KUHN, 1998) que se polpa

de subversões ao que está posto como comum e padrão, porém o problema reside no fazer de

uma reprodução mecânica, tida somente como empecilho na obtenção de um título

acadêmico. Essas pessoas não querem correr riscos, porque seu real motivo é um sonho de

alcançar uma substancial elevação de padrão de vida devido ao acréscimo salarial que os

diplomas trazem. Essas pessoas podem fazer e dizer de tudo, basta que esse algo se ponha

como obstáculo da sua ambição individual. O modelo mecânico de academia hoje faz das

pesquisas uma prova, na qual o importante é pontuar e não propriamente a qualidade crítica,

livre e criativa. É mais do que correto a expressão que circula nos corredores: “falta vida nos

nossos trabalhos”. E nesse sentido, tenho acordo com Flickinger quando este diz que a

temática por excelência da modernidade é a [complexa] compreensão do mundo vivo

(FLICKINGER, NEUSER, 1994), por isso, por intermédio das teorias da auto-organização e

da ação, nos vimos na tentativa de elucidação do “nosso mundo vivo”, permeando aí o bairro

onde moro e seus espaços públicos.

É sempre interessante observar de onde surge o interesse do estudo e

propriamente, estudar as coisas a partir das reflexões de experiências e vivências (sobre nós,

sobre os outros, dos outros com os outros) de conhecimento do mundo. Diante disso, muito do

que colocamos aqui é fruto de reflexões epistemológicas e metodológicas, permitidas na

realização do curso de graduação em Ciências Sociais e, concomitantemente, com a

colaboração do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitualidade e Violência (COVIO), na

Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Podemos iniciar recordando que não escolhemos tratar das lutas no Conjunto

Ceará, senão afirmarmos que elas que nos escolheram: as coisas foram no caminhar dos fatos

desenvolvendo-se para que pudéssemos realizar esta pesquisa. Não que acreditemos em

destino, nem que este é o caminho que Deus nos reservou, mas que, em uma brincadeira do

acaso, tudo foi se interligando, bastou-nos seguirmos em frente para visualizar o tema.

Começamos a lidar e nos interessar pelo campo das lutas e dos movimentos

sociais aos 17 anos, ingressando em um movimento de juventude do bairro do Conjunto

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Ceará chamado Movimento LIVRE (Liberdade e Valores Revolucionários) e logo em seguida

aos participarmos da efervescência política da primavera de junho de 2013, em meio às

manifestações durante a Copa das Confederações no Brasil, em que pela primeira vez

aprendemos sobre anarquismo, ideologia libertária, que motivaram as reflexões teóricas e

práticas deste trabalho. Toda uma geração de jovens foi cultivada em um sentimento de

descontentamento geral, necessário para que alternativas despontassem. Em 2014, movido por

essas transformações, entro no curso de Ciências Sociais da UECE, e ao recorrer a uma bolsa

de permanência universitária, sou alocado, logo no primeiro semestre, no Laboratório de

Estudo e Pesquisa sobre Conflitualidade e Violência (COVIO), despertando nosso interesse

sobre o tema da violência, principalmente diante de uma Fortaleza que é considerada como a

capital mais violenta do Brasil1. Em 2015, surge uma oportunidade de bolsa pelo Programa de

Iniciação Científica (CNPQ/UECE), na pesquisa “Segurança, Insegurança e Cidadania: Lutas

por Reconhecimento e por Preservação de Espaços Públicos de Lazer – Estudos sobre um

Conjunto Habitacional na Cidade de Fortaleza”, um pico ainda mais alto de coincidência, pois

o conjunto habitacional de que se tratava a pesquisa, era justamente o Conjunto Ceará. A

partir daí a elucidação foi lógica, desejamos estudar as violências estatais com base num

quadro de lutas e resistências promovido pela pesquisa de Iniciação Científica, tendo a certeza

do desejo de darmos continuidade ao estudo, mas não querendo nos limitar a fazermos a

mesma coisa. Pretendemos enveredar ao campo político da sociologia urbana para saber se

essas resistências são ferramentas constituintes de auto-organização do bairro. Observamos

que apesar de haver bastante estudos sobre os movimentos políticos no Conjunto Ceará

(VIANA, 1996; MOREIRA, 2001; NETO, 2008), nenhum deles chegou a tratar e observar a

constituição dos espaços públicos por meio de sua face mais banal e autóctone, e inclusive,

nenhum chegou a dar um passo adiante da formulação comum de início-fim de uma luta, para

gerar a hipótese que essas próprias lutas participam de algo maior, como a construção do

próprio bairro.

Uma discussão ainda pode ser feita dentro dos problemas metodológicos, mas,

para nós, o fato de sermos moradores do bairro só legitima a pesquisa, é um desafio para a

prática sociológica na busca da construção da objetividade da prática científica, cujo

instrumento principal para isso é o controle do método (BOURDIEU, 2010). Acreditamos que

1 Segundo o Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, do México, 2016.

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ao invés de uma limitação, este fato está mais para uma vantagem. Cada vez mais nós vemos

pesquisas onde os pesquisadores são jogadores e jogo ao mesmo tempo, vencendo essa

dicotomia. Que bom seria que mais pessoas pudessem falar sobre suas periferias e que não

precisassem de alguém para isso; que bom seria se houvesse mais protagonistas das suas

próprias histórias. Como na música saudosa da internacional: “Façamos nós por nossas mãos.

Tudo o que a nós nos diz respeito”2. Nesse sentido a relevância pessoal desta pesquisa é

provocar satisfação racional e ações transformadoras.

Fica aparente que para além do contexto pessoal, há uma justificação que é

coletiva. Desde as manifestações de 2013, mudanças enormes vêm sendo efetivadas pouco a

pouco, por exemplo, a própria retomada da cultura de ato de rua, o descontentamento com a

lógica representativa da nossa democracia brasileira, dos políticos, das eleições e como

também dos partidos. Quanta luta causada pelas contradições de classe percebidas pelos

oprimidos, por sua vez ficou reprimida durante esses anos de governo do “menos pior” 3, da

institucionalização da luta, do populismo feito com a expansão do crédito e políticas públicas

ambíguas (que tanto agradam patrões e trabalhadores)? E ainda, atualmente, numa fase de

retrocessos e de políticas de austeridade (reformas trabalhista, da previdência, do ensino

médio etc.), frente a uma crise econômica e política e com nossa ciência sem respaldo social,

é fácil concluir que precisamos urgentemente de uma ciência social combativa e conectada

aos dilemas sociais de seu tempo histórico. Aí encontram-se as relevâncias de se estudar a

vida “dos e das de baixo”, suas condutas e dinâmicas, oficiais e banais. Aí encontram-se as

relevâncias de se estudar as violências estatais e concomitantemente, o Estado.

Urge a relevância fundamental de estudarmos a sociabilidade diante do conflito

como parte integradora da unidade do real, ou seja, uma unidade da discordância (SIMMEL,

1983); e por conseguinte, percorrer o ímpeto revolucionário dos autores clássicos da

sociologia que afirmaram que a oposição é parte da relação e que com tal pressuposto,

fizeram-nos sentir que não podemos ser completamente vítimas das circunstâncias, ao

escrever a relação de que enquanto houver possibilidade de ação, haverá resistência.

Para além da relevância para a academia de se estudar essas mudanças em curso, é

importante que nossa ciência reafirme, de uma vez por todas seu compromisso com a

2 Escrita em francês em 1871 pelo militante anarquista Eugène Pottie. Letra em:https://www.letras.mus.br/hinos/588176/ Acesso em: 20/01/2017.3 Expressão popular usada para designar o governo do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2014.

15

sociedade. O que mais nos importa aqui é que este trabalho tenha relevância para a

comunidade à qual pertencemos.

Bom, dado as justificativas introdutórias, queremos agora deixar uma

apresentação também introdutória do conjunto geral deste trabalho.

Pudemos encontrar vários exemplos nos estudos produzidos pelo Centro de

Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade de Campinas (CLE-

UNICAMP), a citar o estudo sobre a auto-organização das brincadeiras de crianças

(IMPÉRIO-HAMBURGUER; PEDROSA e CARVALHO In: DEBRUN, 1996), evidenciando

o que Freire um dia veio a dizer: não é possível ao sujeito ético viver sem estar

permanentemente exposto à transgressão da ética (FREIRE, 2002). A transgressão da norma

de conduta, do oficial, possibilitada por uma das probabilidades da ação humana, sempre abre

caminho para o estudo da lógica banal, que por sua vez, também é tratada aqui como

constitutiva na produção da realidade conflituosa e dialética.

Aliás, nossa cultura foi feita por quem? Quem se importa em descrever tais

aspectos? Quem não gostaria que todos soubessem que pode haver um pouco de desordem na

regulação da vida? De quem é a ordem sagrada que não poderia ser maculada com o

reconhecimento do ser social auto-organizado?

Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbaçãodo preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir,amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse riscosempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classesdominantes pela manutenção da ordem. (RIBEIRO, 1995, p.25)

Como posto, para entendermos de maneira geral o sentido implicado nesta

pesquisa, precisamos nos fazer algumas perguntas. A primeira e mais fundamental foi, como

se dá a produção do espaço público no Conjunto Ceará? E a resposta mais imediata foi a de

nos referirmos à ordem como a grande responsável tanto pela produção desses espaços, como

pelo bem-estar deles e de seus usos, ou seja, o Estado aparece (de modo paternalista) como

portador de todo feito nos espaços públicos. Sob a resposta mais imediata, a lógica da ordem,

por meio do Estado, recebe todos os créditos, e assim, o assunto estaria encerrado. Porém,

mesmo que o questionamento aqui pretendido não seja a favor ou contra a lei e a ordem, é,

entretanto, em crítica ao discurso lógico e hegemônico da lei. Nos perguntamos mais à frente:

será que somente o Estado produz a criação e transformação dos espaços? Será que somente a

16

ordem gera condutas? A abrangência da ordem e de seu olhar panóptico é eficaz no seu

controle? O que podemos encontrar na banalidade/informalidade do cotidiano?

A premissa é de que não há ordem que dê conta da complexidade, portanto, do

caos que é a realidade do universo em expansão. Há tempos que nas ciências naturais

predomina a noção de que a energia do universo (após o Big Bang) se dispersa, tende a

desordem e a entropia. É o caos regendo a vida. Entretanto, aqui na terra, o discurso das

classes dominantes para assegurar sua dominação não poderia ser o do caos, foi/é, pelo

contrário, o discurso da ordem do Estado racional moderno, colocando em ostracismo termos

como anarquia, caos e desordem.

Trataremos o termo caos de maneira científica, encontrando, em geral, na física

estatística, que a desordem em um sistema não implicado de valoração da ideologia

dominante, está na verdade associada (mediante uma função logaritmo) ao número de

microestados/configurações acessíveis às partículas. Logo, aumentando o número de

configurações disponíveis, aumenta-se a desordem e com ela estaríamos aumentando a

complexidade do todo. Na química, Ilya Prigogine (1996) em seus estudos sobre as estruturas

dissipativas, provou que estas aceleram a liberação de energia e com isso liberam mais

energia do que a que foi gasta para fazer a estrutura, isso de forma espontânea e auto-

organizada, mostrando-nos a faceta do caos criador, o que lhe rendeu um prêmio Nobel em

1977. Exemplos como este; ajudam-nos a pensar (frente à impossibilidade das ciências do

homem de se constituírem nomológicas) o outro lado da realidade dual conflituosa (SIMMEL,

1983), em que se torna preciso pensar na ordem, mas em paralelo buscar apreendermos a

desordem em seu entremeio.

Referindo-nos aos sujeitos que fogem da ordem, os sujeitos insubmissos

(CERTEAU, 1998) e sua arte astuciosa, recordamos que tal arte é feita por táticas.

Diferentemente da estratégia, na qual predomina o lugar sobre o tempo, ou seja, aquela em

que as relações de poder do dominador garantem a possibilidade de planejar e de desenvolver

postulações que lhe deem base para a gestão de suas relações, a tática é sempre dependente do

tempo.

A tática tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, semapreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base ondecapitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar umaindependência em fase das circunstâncias (…) Tem que constantemente jogar comos acontecimentos para os transformar em ocasiões. (CERTEAU, 1998, p.47)

17

Porém, mais uma vez, enfatizamos a importância de romper com o olhar “de

cima”, ou dos “de baixo visto de cima”, para que seja possível ver a auto-organização no

plano das táticas. A partir do modelo polemológico de Certeau (1998) para essa explicação;

além da arte de dar golpes no campo minado do inimigo, visto do próprio campo do inimigo,

nos perguntamos, que resistências são dadas sob o ponto de vista do campo do subalterno?

Ajustando de outra forma, problematizamos a noção de resistência vista exclusivamente sobre

o aproveitamento na ausência do olhar panóptico, questionando o discurso eurocêntrico que

coloca o próprio olhar panóptico como produtor da única lógica possível de conhecimento de

mundo4.

As ações e condutas que entremeiam a lógica da ordem e da desordem, e que

rompem com a regra de produção e legitimação dessa produção de espaços públicos, podem

ser vistas como desvios e transgressões, ou seja, a partir da regra, em cadeias descontínuas e

pela negação de tudo o que não se sacralizou na cadeia contínua hegemônica. Contudo, apesar

das táticas exibirem-se fragmentadas, que lógicas possuem? Ou não possuem lógica própria?

Ações que não necessariamente quebram uma regra, no entanto, não há regra que

as determinem, dependem não só do tempo enquanto tática, mas possivelmente de uma

autorreferência presente na sociabilidade. Tanto as ações que transgridem esse “monopólio do

fazer” do Estado, como aquelas que não a fazem necessariamente, mas que ainda assim não

são regra, provocam em nós a reflexão de que apesar de considerarmos a existência das ações

de sujeitos insubmissos e subalternos como parte da cena social, parece-nos que só

conhecemos essas ações de resistência quando elas chocam-se com as regras, o que seria

incongruente, pois quantas dessas ações são punidas? E quando estas ações não são punidas,

elas não existem?

Não estamos dizendo que essas resistências são certas ou erradas obviamente; e

sim que elas existem em uma dinâmica de referencialidade propriamente produzida numa

cena de luta e conflito movida por uma economia de trocas simbólicas. A hipótese é que nas

relações de poder e conflito no campo da produção dos espaços públicos do bairro do

Conjunto Ceará, não há só legitimação, ou luta por reconhecimento do Estado, mas também

contestação e resistência de uma produção própria desses espaços.

Não há somente as lutas por reconhecimento (que a pesquisa de IC constatou), ou

seja, que reivindicam ações produtivas do Estado para com os espaços públicos, há

4 Ver concepção de sujeito subalterno em Spivak (2010).

18

concomitantemente, lutas e resistências que fazem parte elas mesmas da produção dos

espaços públicos. No Conjunto Ceará, devido ao fato da sua origem remontar a um projeto

urbanístico de grande porte e com diversas áreas e equipamentos públicos, isso toma a forma

de uma especial particularidade propícia para observarmos, também, diversas possibilidades

de ações na produção desses espaços.

É no entremeio entre o macro e o micro que acontece a produção da realidade,

incluindo os espaços públicos do Conjunto Ceará. Como na teoria da prática em favor das

relações dialéticas, em que as articulações entre as práticas de atores sociais “na vida

concreta” (“on the ground”) e as grandes “estruturas” que exercem coerção sobre essas

práticas e que, ao mesmo tempo e em última instância, podem ser transformadas por elas.

Assim falaremos que “a história faz as pessoas, mas as pessoas fazem a história” (ORTNER,

2003, p.277).

Se a pesquisa de iniciação científica visualizou uma das faces da realidade na

produção dos espaços no Conjunto Ceará, queria demonstrar aqui nesta monografia a outra

face. Um empreendimento teórico e prático de investigação sobre a história do Conjunto

Ceará enquanto fruto de um projeto urbanístico vindo das políticas de habitação da ditadura

dos anos 1960. Debruçando-se por conseguinte nas lutas por reconhecimento e preservação

dos espaços públicos, para tentar entender como e de que formas as violências do Estado se

manifestam no Conjunto Ceará. E ainda, traçando um paralelo a essa história oficial, chegar

ao objetivo central deste trabalho, encontrar uma história que se perde na banalidade do

cotidiano, por meio de táticas e resistências autorreferenciadas e produtivas da realidade,

como o campo de futebol de areia batida feito pelos moradores, onde deveria existir uma

quadra pública acimentada, o jardim de plantas medicinais e ornamentais em meio a um

terreno público baldio e um sarau de juventudes em uma quadra de skate abandonada pelo

Estado no coração do Conjunto Ceará.

192 REFLEXÕES E OLHARES NO CAMPO DE PESQUISA

Neste segundo capítulo tentaremos colocar à disposição do leitor e da leitora todo

o arsenal de dispositivos mentais necessários para aprofundar nosso tema, tentando reproduzir

desde sua gênese às principais reflexões, de forma que este empreendimento científico seja

socializado e possa permanecer propriedade comum. Por um chamado à reflexão

epistemológica nas ciências sociais e o caminhar em meio a uma abordagem metodológica

livre, conheceremos as bases heurísticas que dão pilar de sustentação para este

empreendimento científico de caráter qualitativo no campo de pesquisa.

Tal empreitada teve início no ano de 2015, por meio da pesquisa do Programa de

Iniciação Científica da UECE, intitulada “Segurança, insegurança e cidadania: lutas por

reconhecimento e por preservação de espaços públicos de lazer – estudos sobre o Conjunto

Ceará na cidade de Fortaleza”. Neste ano, começávamos nossa inserção e o acompanhamento

das lutas no bairro. Várias foram as dificuldades do campo, como a recorrente briga de egos

entre as lideranças antigas do bairro, diante de suas políticas antiquadas, pragmáticas, em que

um dia são amigos mais sinceros, no outro, inimigos jurados, friamente mutáveis de acordo

com as circunstâncias e necessidades pessoais, dependentes sempre do Estado em suas

estratégias e em seu fazer político. Mesmo observando as práticas políticas divergentes, nós

como pesquisadores, estivemos com frequência na construção, lado a lado com as lideranças e

moradores do bairro em suas lutas, embora soubéssemos da necessidade de que os valores

ideológicos não orientassem os procedimentos do nosso trabalho de campo.

Até 2017, durante esses dois anos, a pesquisa de IC seguiu marcando presença no

campo estudado, mesmo que demonstrando falhas em outros pontos, como na sistematização

do conhecimento; o que de nenhum modo quer dizer que não houve produção de

conhecimento. Depois de seu término, procurou-se condensar o legado dessa experiência

sobre os arranjos políticos do movimento com o Estado, mas também ampliar esse

aprendizado aos arranjos políticos dos agentes em seu cotidiano ordinário (CERTEAU, 1998).

A partir desse confronto de olhares, surge a vontade de desenvolver a pesquisa para este

trabalho monográfico. Não diferentemente, nesse esforço de ampliação do olhar, as

dificuldades fizeram-se presentes, principalmente no que se refere à identificação dos agentes

políticos, devido à despersonificação, horizontalidade e descentrabilidade das ações de

resistência encontradas na realidade cotidiana de moradores do Conjunto Ceará. Ao contrário

dos interlocutores da

20

pesquisa de IC, sobretudo lideranças comunitárias, para identificar os agentes das resistências

aqui narradas, foi necessário um maior contato sistemático com o campo e seus agentes.

Assim, em resumo, esta ampliação é uma tentativa teórica e prática de possibilitar

que as ações que estão à margem no cotidiano superem o esquecimento resultante do

desapossamento dos agentes sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos. Neste

sentido, o objetivo geral desta monografia é investigar como táticas e resistências banais ante

a uma violência estatal podem ser constituintes na produção dos espaços públicos do bairro do

Conjunto Ceará. Os objetivos específicos são os de ampliar o universo de conhecimento sobre

a memória do bairro, registrando suas lutas e histórias de resistências; descrever como e de

que formas a violência do Estado se manifesta no Conjunto Ceará; e apreender qual a lógica

presente nas resistências autorreferenciadas dos moradores do Conjunto Ceará.

2.1 REFLEXÕES EPISTÊMICAS E METODOLÓGICAS

Uma pergunta que surge nas nossas cabeças de jovens cientistas sociais é a

preocupação de qual abordagem teórico-metodológica utilizar em nossas pesquisas. Nossa

mente parece estar em constante guerra devido às disputas dessas abordagens pela nossa

consciência, nessa enxurrada de argumentos que tentam a toda hora nos convencer (em alguns

casos converter) do único caminho legítimo para produzir um conhecimento válido.

Nosso desafio então esteve posto: primeiramente romper com a lógica religiosa do

caminho único e verdadeiro; e depois buscar pontos positivos e negativos das abordagens

dominantes e esquecidas das Ciências Sociais, cuidando para que esse “caldo” seja

dialeticamente, tese e antítese de uma metodologia libertária.

Fugindo como quem foge da pregação que bate na sua porta nos dias de domingo,

na busca por uma autonomia intelectual, procuramos primeiramente romper com o comum,

adotando o espírito do “anti-escolismo”, ou seja, em antítese a essas grandes teorias que se

propõem a ser universais, e, por um vício patriarcal, desenvolvem “escolas de pensamento” na

qual um “pai/mestre” é progenitor da teoria e seus “filhos/seguidores” desenvolvem-na

“debaixo de suas asas”. O pensamento deve ser livre, na analogia com a família, cada filho

deve aprender a voar com suas próprias asas.

Abandonar o escolismo não é abandonar os paradigmas de uma ciência. De

acordo com Kuhn (1998, p.31) “A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais

21

esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo

científico que se queira considerar”.

Toda ciência tem seus paradigmas e de fato eles são importantes para sua

reprodução, todavia nunca são absolutos, nunca devem abandonar a razão e passarem a ser

atos puramente mantidos pela fé, pela crença cega a modelos (como dogmas) e seus

formuladores (como profetas). Abandonar o escolismo é se aventurar no campo da ciência

normativa (KUHN, 1998), sem no entanto, abdicar da condição se sermos livres, iguais,

originais e criativos.

Nesse sentido, o campo sociológico é bem maduro, pois ao se constituir com base

no dissenso ao qual se estabelecem vários paradigmas, em vez de demonstrar sua fraqueza,

estabelece frente às ciências duras um diferencial que revela uma ecologia de saberes

(SANTOS, 2012; BOURDIEU, 2002). Portanto, dizer que não há hierarquia entre esses

saberes, e que o cientista social pode ser livre para desenvolver seu pensamento, o que não é

propriamente falar de um não-método, ou de uma não-crença, mas sim de uma metodologia

livre e de um pensamento livre. A Escola de Chicago, por exemplo, apesar de se constituir

como escola, é identificada com um caráter de escola de atividade, ou seja, as pessoas

trabalham juntas, mas não necessariamente compartilham as mesmas teorias.

Coincidentemente, essa escola e seu interacionismo simbólico abandonam as grandes

especulações teóricas e as perspectivas evolucionistas (BECKER, 1996).

Lógico, nós devemos deixar de esperar por soluções milagrosas e pretensiosas. O

que propomos, na verdade, é pautado, ao contrário, na humildade teórica de reconhecer que o

real está incansavelmente sempre a um passo da teoria e que jamais poderíamos reduzir o real

a uma ordem pré-constituída. Como define Malatesta (2009, p.39), as teorias “sempre

hipotéticas e provisórias, [...] constituem um meio cômodo para reagrupar e vincular fatos

conhecidos, e um instrumento útil para a investigação, o descobrimento e a interpretação de

fatos novos: mas não são a verdade”.

Nesse sentido, buscamos entender que o funcionalismo, o estruturalismo, a

compreensão e demais outras abordagens contribuem para a construção de conhecimento, que

as teorias estão disponíveis para apropriação e sem hierarquia ou barreiras que a impeça de

utilizá-las. Em sua cartilha brasileira de aprendiz de sociólogo, Guerreiro Ramos descreve o

dogmatismo como aquilo que “consiste na adoção extensiva de argumentos de autoridade na

discussão sociológica, ou em certa tendência a discutir ou avaliar fatos através da mera

22

justaposição de textos de autores prestigiosos” (RAMOS, 1957, p. 20). A quantidade de

citações não revela valor heurístico para o trabalho, exceto as multiplicidades de informações

entre ciências (utilizamos biólogos, químicos, filósofos, antropólogos, cientistas políticos,

sociólogos, geógrafos, pedagogos e outros), possibilitadas pela interdisciplinaridade de uma

abordagem metodológica libertária, assim como literaturas, ideologias e intuições foram

utilizadas no processo de ruptura, construção e constatação do objeto. A mesa é farta quando

não se possui restrições (lê-se dogmatismos) alimentares.

Base motivadora para essa concepção foi uma releitura do anarquismo

epistemológico de Paul Feyerabend (1977). Autor que não é anarquista em termos políticos

(como ele mesmo diz negar apoio a esse tipo de organizações e movimentos), mas que propõe

uma metodologia anárquica e livre que recebe críticas ao cair no princípio do “vale tudo”.

Nesse sentido surge a necessidade de uma releitura baseada na crítica ao absolutismo do “vale

tudo”, sobre o qual Castoriadis provoca reflexão “não haver um saber absoluto sobre a

sociedade não quer dizer que não haja nenhum saber sobre a sociedade, que se possa dizer

qualquer coisa, que tudo valha”. (CASTORIADIS apud VOLKER, 1981, p.97).

Bourdieu (2010) também adquire uma importância vital no nosso trabalho,

quando abre passagem para esse tipo de abordagem, ao criticar o dogmatismo. A rigidez, ou

seja, aquela ideia teimosa e fechada que temos – muitas vezes movidos pela ideologia – de

algo, totalmente incoerente com a ousadia do pensamento livre/libertário da produção

científica e, por que não dizer, incompatível com a própria ideia de ciência como pensamento

essencialmente crítico e racional, em substituição, nos revela a importância do rigor teórico-

prático, este que por sua vez não está em oposição a qualquer ousadia, ao contrário, completa-

a, pois quanto maior for a ambição teórica, maior deve ser o estabelecimento de provas; só

assim se faz ciência de maneira racional.

2.1.1 O entremeio

Por mais que tenhamos comentado anteriormente, da importância sobre o ímpeto

revolucionário que os autores da sociologia da ação tiveram, a tensão que percorre toda a

tradição sociológica ainda é o equilíbrio entre estrutura e ação.

A história da sociologia é a história dos extremos, ou seja, do desenvolvimento

das teorias macroestruturais ou das teorias microestruturais. A linha de pensamento

contemporânea segue em frente para formar um outro presente, problematizando não somente

23

o indivíduo e a sociedade, mas essa própria ancestral dicotomia que nos acompanha. O

pensamento sociológico para Passeron (1995) por exemplo é um raciocínio de entremeio, algo

entre as flutuações da universalidade e o firmamento dos fenômenos. É então dizer que “nada

está separado, tudo está interligado”, indivíduo e sociedade, ação e estrutura, o formal e o

informal, o presente experimental e o contexto histórico; e assim promover perspectivas e

métodos teóricos, históricos e experimentais (ALMEIDA, FREITAS, SANTOS, 2012),

provenientes da unidade da discordância entre o mundo objetivo e subjetivo da vida social.

Os extremos, seja por um lado um idealismo que reivindica a preponderância da

razão e das subjetividades, ou por outro lado um empirismo que reivindica a objetividade do

saber, “[…] seriam dois lados da mesma medalha representada pela convicção [eurocêntrica]

referente ao domínio irrestrito do paradigma da razão autônoma e autossuficiente.”

(FLICKINGER, NEUSER, 1994, p.33)

O entremeio é essencialmente dialético. Enquanto os extremos, de algum modo

chegam a uma síntese de forma mecânica, abandonando o movimento conflituoso e

antagônico do permanente devir, o entremeio segue num processo infindável como a dialética

serial (BORBA, 2008). Essa perspectiva dualista da dialética como em Proundhon e Bakunin,

em um progresso contínuo de tensão entre tese e antítese e, portanto, em falta proposital do

elemento da síntese presente nas análises marxistas, é parte de uma crítica maior ao

absolutismo e o fim dos contrários, a utopia.

Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todasas coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob o aspecto daqualidade como da quantidade, (…), exercem, sem o querer e sem mesmo poderpensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, sejapor transição, uma ação e uma reação perpétua que, combinando-se num únicomovimento, constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidadeuniversais. (BAKUNIN, 2012, p. 42).

Neste trabalho, a auto-organização pôde ser estudada a partir do entremeio que se

forma entre a violência estatal que vem de cima e as resistências autóctones que vem de

baixo, dos moradores comuns do Conjunto Ceará.

24

2.1.2 A ruptura e os sujeitos da pesquisa

É mister que o interesse em estudar “a vida dos e das de baixo”, apesar de ser

louvável, exige compreender mais que seu próprio discurso, e no outro extremo, exige mais

do que a dedicação teórica e empírica de seu estudo, ou seja, em termos científicos, faz-se

necessário uma reflexão sociológica (de ruptura) na construção do objeto. Quando nos

referimos a “termos científicos” é somente dizendo que não nos basta o assunto, por mais

relevante que seja, para fazer ciência, temos que nos preocupar em sermos viáveis, críticos e

racionais. Vários são os estudos feitos diante da complexidade que é o real, e por isso mesmo

quase sempre não começamos do zero. Nesse sentido, não basta buscar algo desafiador, mas

sim alcançável comparado ao nosso arsenal, algo baseado pelo conflito construtivo da relação

entre rigor e ousadia (BOURDIEU, 2010).

Para o ofício do sociólogo, o qual consiste invariavelmente no estudo de algo tão

complexo como a sociedade humana, urge sob essa lógica racional e crítica da ciência que é a

própria sociologia, uma necessária ruptura com o que nos vem de imediato, como o senso

comum, douto ou não, e todas as prenoções que nos são impostas em meio a construção do

objeto. Diante disso, falar de uma ruptura epistemológica é imprimir a ruptura em todas as

etapas do conhecimento humano designada portanto como epistemologia, isso inclui, tanto a

teoria, como a prática, como a metodologia.

O certo é que tanto no estudo do instituído como nas práticas do instituinte

(CASTORIADIS, 1986), permanece sempre a necessidade de uma ruptura epistemológica.

Assim como o discurso instituído não é tomado como verdade de maneira imediata, o

discurso instituinte não diferentemente também deve ser condicionado aos critérios

científicos.

Visto essa complexidade e essa incerteza de nossa parte do campo do

conhecimento científico, a busca da objetividade ressurge e com ela, um reconhecimento de

que na ciência não podemos excluir por completo a intervenção dos valores. A atividade

científica está sempre a depender das escolhas valorativas do próprio cientista, rompendo com

o ideal de objetividade pura que uma vez desejou ter enquanto o paradigma positivista resistia

nas ciências sociais. O que há de fazermos portanto, é prosseguir defendendo na atividade

científica, o controle da ciência (sua autonomia) sobre os valores, as paixões, as intuições e as

ideologias; utilizando-se de ferramentas como a vigilância epistemológica (BOURDIEU,

2010).

25

A delimitação deste trabalho surge a partir da noção de que a história não é feita

exclusivamente por grandes homens, ou, pelo menos, com exceção àquela “história” que nos

contam, a história dos heróis, dos líderes e dos vencedores. Em maior medida de suor e

sangue, a história é feita por homens e mulheres comuns; Pedros e Julianas que não têm seus

nomes nos livros, mas que em cada ação fazem e fizeram história. Um verdadeiro dilema para

os subalternos, que conforme a própria designação do termo, dependem de outros e de que

outros falem, é quando, ao mesmo tempo em que suas histórias são eclipsadas pelo poder da

estrutura hegemônica, estes quando conseguem falar, deixam de ser (SPIVAK, 2010), essa é

sua condenação. Portanto, se o desafio contemporâneo é contrapor o sujeito do progresso, o

sujeito da disciplina e sua ordem gnoseológica de mundo, estamos diante de um grande

desafio.

O que podemos perceber (verificando nossas capacidades) diante deste desafio e

em relação à delimitação do objeto desta pesquisa, é a compreensão desde Weber (1994) da

importância da capacidade de revivenciar para a evidência. Cremos que isto não tenha

mudado, apesar das críticas certeiras do “lugar” e da “episteme do lugar” eurocêntrico e

colonial onde o conhecimento é produzido (NAVARRETE, 2015). Adiante, se segundo a

lógica constituída de ações que geram condutas na processualidade complexa do real, quanto

mais vivência, maior são as bases de conhecimento, poderíamos concluir então que se a

vivência é adquirida na ação e na conduta, em relação a si e ao outro, logo, o fato de estarmos

imersos no campo de pesquisa desde 2015, por meio do Programa de Iniciação Científica,

entrevistando os moradores, toma uma vital importância. Já que sob a coerência entre os

meios e os fins,

[…] a partir de “factos da experiência” para nós “reconhecidamente” válidos e defins dados, deduz no seu agir as consequências claramente resultantes (segundo asnossas experiências) para o tipo de “meios” empregados. (WEBER, 1994, p.6)

Inclusive com esta reflexão, podemos inverter a problemática que seria sob o

ponto de vista da neutralidade positivista, o fato de sermos moradores do bairro. Cada

morador é sujeito e objeto desse campo e, nesta pesquisa, não somos diferentes. O que não

nos deixa embaralhar as coisas, porém, é que além desta faceta, também soma-se a faceta de

pesquisador. Somos parte da pesquisa da nossa própria pesquisa, e em grande medida todo o

nosso objetivo é estudarmos parte de nossas vidas, sim, vida é o que tudo isso se trata como já

referido. Logo, uma separação forçada aqui entre sujeito e objeto seria como uma vivissecção

de sapos, em que o estudo é feito mas a vida se esvai na construção do objeto. Pelo contrário,

26

essa interligação possibilita a oscilação do olhar de dentro e de fora, que em vez de pretender

dominar o conhecimento, no status de sujeito conhecedor, “experimenta a si mesmo expondo-

se ao risco de perder sua auto-certeza e o chão firme de seu saber”. (FLICKINGER,

NEUSER, 1994, p.40).

Importante não confundirmos esta reflexão com o desejo personalista fruto do ego

individualista que o capitalismo nos cria. Não, não quero ser representante do bairro, isso

contradiria tudo o que afirmamos anteriormente e seria sobretudo etnocêntrico de nossa parte.

A divisão histórica entre trabalho manual e trabalho intelectual é inerente à sociedade de

classes e traz consigo na universalização da ciência ocidental, uma profunda divisão entre

sujeito e objeto, uma matriz cartesiana fundada no mecanicismo de partes separadas pela

lógica racionalista do pensamento transcendental (NAVARRETE, 2015). Nessa divisão, que

serve muito bem como justificativa da exploração e expropriação do capital por uma minoria

privilegiada que pode pensar sob o suor da maioria oprimida que é levada a fazer,

encontramo-nos em um lugar de privilégio como estudante universitário e não desejamos

exercê-lo para “poder falar”, pelo contrário, procuramos usá-lo para que os “outros falem”.

Colocamos o fato de sermos, nós mesmos, moradores como um passo à frente (e

não um passo atrás) para compreendermos mais a fundo se há enunciados lógicos de auto-

organização, nos baseando na prerrogativa da importância da vivência nas teorias da prática,

como coerência de estarmos no meio se o fim desejado for compreendê-lo. Como também se

queremos enfrentar o desafio de representação do subalterno, precisamos estar o mais

próximos possível deles. Portanto, mais do que um privilégio, reconhecemos a nossa

identidade de moradores do Conjunto Ceará, sob uma reivindicação do lugar de produção do

discurso sobre o real que nos foi historicamente negado.

Obviamente, reconhecer esse fato não o faz de todo positivo. Ser morador do

bairro implica evidentemente numa necessidade constante de estranhamento. Na expressão de

Geertz (2008), hoje “somos todos nativos” porque podemos ser pesquisados e nós próprios

nos pesquisarmos, sendo necessário, para isso, termos à disposição os meios científicos, o que

nos faz afirmar, mais uma vez, o pressuposto anteriormente evidenciado da necessidade da

ruptura como ferramenta epistemológica.

Nos contatos que tivemos com os moradores do bairro, procuramos perguntar o

que as pessoas acham das violências estatais em que estão submetidas para saber se elas

legitimam, omitem, resistem, ou qualquer outra resposta possível. Na busca de entendermos

qual o sentido das condutas de resistência e como funciona o processo de auto-organização na

27

produção do espaço no Conjunto Ceará, buscamos ouvir uma heterogeneidade de sujeitos

subalternos, desde as lideranças que estavam atuando nas lutas do bairro, como os “cidadãos

comuns”, aqui compreendidos como os agentes que atuam no cotidiano ordinário do bairro,

sem mediações de instituições oficiais, seja dos movimentos organizados ou do Estado.

Desconfiávamos que esse processo não seria exclusivo de uma minoria politizada e que cada

ação continha um poder de transformação.

Em busca de coerência com a investigação do caminho informal e da lógica sem

intermediários da auto-organização, o mais interessante foi encontrarmos interlocutores sem

vínculos profissionais e institucionais, pois estes outros (que têm vínculos) recebem

evidentemente um peso maior em suas relações (percebendo o próprio poder como relação),

oriundo da estrutura vinculada. Portanto, a lógica compreensível destes sujeitos tende a

reproduzir a lógica da própria instituição, a lógica consolidada, dominante, a lógica da ordem,

a hetero-organização.

As entrevistas que realizamos serviram para coletivizar nosso olhar sobre o bairro,

já que não seria justo apenas enunciar com todos os cuidados científicos, ainda que com todos

os cuidados científicos o que observamos e, com isso, escrevermos este trabalho. Outras

vozes deveriam ser ouvidas para que essa estória fosse “uma estória que eles contam a eles

próprios, sobre eles mesmos” (GERTTZ, 2008) e não uma em que contamos para eles, pois

assim assumiríamos um papel de vanguarda e não seríamos coerentes com o que pensamos

sobre o papel da ciência libertária na emancipação social “dos e das de baixo”.

2.1.3 Ideologia e a ciência libertária

Ao longo do curso de graduação aprendemos de quase todos os professores e

professoras que a principal preocupação da ciência não é com o “dever ser”, ela se preocupa

sobretudo com “o que é”. O “dever ser” pode ser tratado pela ideologia, baseando esse desejo

em seus valores e princípios, pois trata-se de uma ideia futura que ainda não existe.

Gostaríamos de compartilhar esta reflexão, pois ainda há atualmente uma

verdadeira confusão entre os campos da ideologia e ciência. Considera-se que quando a

ideologia se afirma como científica e estes dois campos são embaralhados, então nasce daí

uma doutrina/sistema teórico. A teoria científica é então alienada, um caráter fechado de

sistema é imposto movido pelos princípios ideológicos e criam-se dogmas que por sua vez

também alienam a prática. Esse tipo de pensamento fechado pode cair em um absolutismo e

28

com isso em seu contato com outros pensamentos, há sempre o risco eminente de taxá-los de

primitivos ou utópicos. O fazer do “socialismo científico” de Marx é um exemplo disso,

quando tenta enxergar a realidade de maneira total pela luneta embaçada da ideologia. E se

consegue ou pensa conseguir ler a realidade de maneira total, acha que pode prever algo sobre

ela, que tem poder sobre ela, criando fases lineares da história. Esse poder inflama a cabeça

dos intelectuais embebidos de posições hierárquicas e centralistas, a partir das quais acham-se

com poder de ler a totalidade dos fatos, ao mesmo tempo em que se autointitulam

“vanguardas” da história.

Toda lente ideológica não é suficiente para analisar a realidade, porque

maniqueísmos e redundâncias podem vir à tona movidos pelos valores. Logo, até mesmo para

a atividade política, não somente ideologia se faz necessária para a elaboração e prática de um

projeto de transformação social a longo prazo, a ciência deve estar presente, contudo, mesmo

assim as duas, ideologia e ciência ainda cumprem diferentes papéis nesse projeto político. Na

atividade científica é, do mesmo modo, importante reconhecer que a paixão, os valores, a

intuição devem, sim, estarem presentes (e estarão), contudo, ideologia e ciência não podem

ser a mesma coisa. “A questão metodológica não é a da isenção de valorações, mas a do

controle suficiente delas, até mesmo porque declarar-se não ideológico é ideologia barata.”

(DEMO, 1985, p.7)

A ciência libertaria é uma ciência autônoma, por mais que andem todos juntos, é

independente de ideologias, valores, intuições e paixões. Melhor dizendo, quando uma ciência

é autônoma, imaginamos que podemos mostrar que nela predomina a qualidade definida

como científica (DEMO, 1985).

Tomemos muito cuidado somente com uma coisa: defender essa diferenciação não

é defender o distanciamento entre ciência e política. Vivemos em um mundo agonístico no

qual tudo é político, tudo é luta e na ciência não é diferente. A ciência também deve encontrar

sua prática política.

Deus havia proibido que Adão e Eva tocassem a árvore da ciência. Queria que ohomem, privado de toda consciência de si mesmo, permanecesse um eterno animal,sempre de quatro patas diante de Deus eterno, seu criador e seu dono. Porém é aquique chega Satanás, o eterno rebelde, o primeiro revolucionário, livre pensador eemancipador dos mundos. (BAKUNIN, 2012, p.10, tradução nossa)

Bakunin usa o mito da criação para dizer que o homem se emancipou, se separou

da animalidade e se constituiu propriamente como homem, começou sua história e seu

desenvolvimento como humano por um ato de desobediência e de ciência.

29

A humanidade teria decidido pela rebeldia e pelo pensamento. Para este autor

libertário, desobediência e ciência estão intimamente ligadas. Obviamente que ele não

acredita no mito e que colocar Satanás como o primeiro revolucionário é mais uma inversão

irônica em prol da ciência do que uma crença. O que ele queria realmente era fazer uma

crítica aos idealistas de todos os tipos, atacando sua forma de pensar que vai de cima pra

baixo, da mais perfeita abstração à imperfeição absoluta, do pensamento ao ser. Compara

assim Deus e o Estado nesse mesmo movimento de dominação e subjugação.

A ciência pela sua origem rebelde, não se conformando nunca, deve se mover de

baixo pra cima, do “inferior” ao “superior” para que possa ser ferramenta libertadora destes

“inferiores”, pois como disse Proudhon (apud BAKUNIN, 2012, p.9), “o ideal não é mais que

uma flor da qual são raízes as condições materiais de existência”. Nesta pesquisa, buscamos

considerar desde a violência estatal e as práticas de resistências que se lhe opõem à concepção

da auto-organização dos espaços públicos dos moradores do Conjunto Ceará. Ensejamos

fazer um movimento de baixo pra cima, das partes ao todo, em que mesmo sugerindo uma

generalização, nem por isso deveríamos impor essa “verdade” ao outro.

Em todas as partes, o idealismo religioso, político ou filosófico, serviu de

bandeira para a força sanguinária e brutal da exploração material desenfreada (BAKUNIN,

2012). Porém, assim como há os que dominam em nome de Deus, há quem queira dominar

em nome da ciência, ou se esconder sob o manto de uma ciência absoluta. Pois

historicamente, ao preencher o espaço aberto que a ordem teológica e feudal deixou, a razão

humana ficou exposta às necessidades antes atribuídas à ideia de Deus, como a onipotência e

onisciência (FLICKINGER, NEUSER, 1994). Nesta mesma perspectiva, Bakunin conclui:

Em uma palavra, a ciência é a bússola da vida, mas não é a vida. A ciência é geral,abstrata, insensível, como as leis não é mais que a reprodução ideal, reflexiva oumental, é dizer cerebral (para recordar-nos que a ciência mesma não é mais que umproduto material de um órgão material, do cérebro). (2012, p.67, tradução nossa)

De fato, ser incondicionalmente um produto do cérebro é o grande limite da

ciência, porque ela está fundada no pensamento humano, está condicionada à efêmera

existência material humana frente ao universo. Nada mais do que um humúnculo, morto e

incompleto desde o nascimento, semelhante ao criado por Wagner, discípulo de Fausto na

peça teatral de Goethe, poderia ser criado pela ciência, diz Bakunin (2012). A vida seria

fugitiva, palpitante de felicidades e sofrimentos, ela cria tudo que é real, deixando para a

ciência, apenas constatações das criações da vida. E quando os homens da ciência, saindo de

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seu mundo abstrato, se misturam a criação vivente no mundo real, tudo o que propõe só pode

ser pobre, privado de sangue e vida (BAKUNIN, 2012). O que Bakunin nos ensina é que a

ciência tem a missão de tentar entender a vida, mas nunca poderá governá-la, porque não são

as individualidades abstratas e sim os indivíduos reais, os que fazem a história. Ele chega a

propor uma “rebelião da vida contra a ciência”, não para destruir a ciência, mas exatamente

para pô-la em seu lugar.

Tudo que passa pela humilde abstração individual do cientista, que também não

pode ser separada da ciência, no final, não pode configurar-se como produção da totalidade do

real, será no máximo totalizante, uma representação casualmente adequada. Como em

Castoriadis (1986, p. 93) “A teoria como tal é um fazer, a tentativa sempre incerta de realizar

o projeto de uma elucidação do mundo”.

Se o resultado final desta pesquisa pode servir de hipótese interpretativa para toda

experiência nova nas periferias, deve sempre estar pronto para ser modificado, corrigido ou

mesmo abandonado. Sermos capazes de viver em um mundo desordenado, que quase sempre

caminha para o outro lado do qual sugerimos, é um peso desafiante e massacrador sob nossa

insignificância individual e que assola feito bicho-papão os jovens cientistas sociais, condição

inexorável, entretanto, que temos que enfrentar.

Por conseguinte, é importante reconhecermos os limites de capacidade da própria

metodologia, como reconhecer o lugar de fala e em até aonde vão as nossas capacidades

individuais. Acreditamos, assim como na analítica do poder em Foucault (1982), que não

pode ser vista como uma teoria geral e universal, ou na teoria da complexidade em Morin

(2006), que considera desde o começo a impossibilidade de uma onisciência; que quando

falamos em pesquisa científica, falamos em uma representação parcial do real e não em uma

totalidade absoluta do real. Decidimos não percorrer caminhos quantitativos para provar que

este trabalho representa a produção autorreferenciada da esfera pública do Conjunto Ceará e

nem impor em um etnocentrismo como o próprio real de fato. Uma abordagem qualitativa que

mostre o que há de factual, mesmo que em sua incompletude, pode fazer dessa parte

pesquisada, a expressão muito significativa de um todo.

Concluindo em diálogo com Spivak (2010) e sua ideia da dualidade entre a

representação de falar pelo subalterno e a representação da práxis contínua de reflexão sobre o

discurso do oprimido, buscamos trilhar o caminho da segunda forma. A ciência libertária deve

ser aquela que devolve o controle do discurso à vida cotidiana das pessoas.

31

3 O CONJUNTO CEARÁ

3.1 AS POLÍTICAS DE HABITAÇÃO

A acumulação de capital na estrutura fundiária do estado do Ceará, marcada pelas

grandes propriedades de criação de gado e cultivo de algodão no início do século XX, e a

consequente dificuldade criada na fixação dos camponeses e camponesas, geraram um

processo de êxodo rural que foi um dos fatores significativos para a urbanização de Fortaleza.

A Cidade virando um centro coletor de produção primária, foi aos poucos estruturada. A

ferrovia e depois as rodovias colocaram a cidade de Fortaleza em um ponto de integração,

estreitamente ligado ao contexto de diversas estiagens no sertão, o que nos deixa relacionar o

crescimento demográfico com o fluxo migratório. Não bastando que a comparação entre

estruturação da Cidade e o aumento populacional expressasse uma verdadeira precarização

nas condições de vida da maioria da população, quando as pessoas do interior chegavam,

eram logo tratadas de serem “expulsas” para as periferias urbanas (SILVA, 1992). Porém,

após a industrialização dos anos 1930 e com mais vigor após a década de 1950, com a

aumento expressivo de indústrias estrangeiras, como também o surgimento de indústrias

estatais, há um aceleramento do processo de crescimento urbano e com ele de todas as

mazelas advindas da desigualdade estrutural de tal “progresso”.

Durante os governos militares (que é o ponto na história a que queremos chegar),

imersos nesse contexto de desenvolvimentismo, a favelização, o desemprego, o crescimento

desordenado das periferias, a pobreza e a desigualdade acabam por estar também associados

aos efeitos negativos dele. Sob essas circunstâncias há o surgimento de políticas públicas

estatais que tentavam minimizar, de forma precária, alguns desses problemas, entre os quais o

da falta de moradia em relação ao crescimento populacional e urbano (MARICATO, 1987)

pela construção de grandes conjuntos habitacionais. Tal entendimento revela uma mudança na

forma de produção dos espaços públicos, pois se durante a belle époque o centro da cidade de

Fortaleza concentrava os clubes elegantes, os comércios, os bancos, as praças arborizadas, os

cinemas e, inclusive, o grandioso teatro José de Alencar (PONTE, 1993). A partir dos projetos

de conjuntos habitacionais subscreve-se uma tentativa de incluir tais espaços públicos em

locais afastados do Centro.

Em conjunto com as políticas de habitação, também eram várias as violências

estatais que atingiam a população pela precariedade e talvez incapacidade de produção e

manutenção de espaços e equipamentos públicos em locais periféricos, tais como a baixa

32

qualidade da moradia, a insalubridade, a ausência de saneamento, a dificuldade de transporte,

de abastecimento, o atendimento à saúde, lazer etc. Instituições nesse período foram criadas

para possibilitar o desenvolvimento das políticas de habitação e consolidar a estratégia do

governo em tornar as camadas populares antes ligadas ao governo populista derrubado pelo

golpe, em 1964, suas aliadas (SOUZA, 1974), ao atender parte de suas demandas.

O Banco Nacional de Habitação (BNH) foi criado em 1964, inicialmente como

uma autarquia federal e posteriormente, em 1971, como uma empresa pública. Era prática do

BNH desenvolver atividades em parceria com os setores públicos e privados na captação de

recursos, construção e venda de habitações. Prática que pôde ser considerada um verdadeiro

fracasso, pois até 1986, durante todo esse tempo, o número de conjuntos habitacionais

construídos foi insignificante, e, de uma maneira geral, caracterizados pela péssima

infraestrutura, sendo chamados “cidades dormitórios”. As críticas (AZEVEDO, 1988)

aferiram que os empreendimentos serviam mais para justificar o investimento por meio de

licitações no setor de obras urbanas, e que eram feitos a longas distâncias de lugares

urbanizados, porque no fundo terras menos valorizadas significavam economia de dinheiro.

Outro motivo de fracasso do BNH, conforme indica Azevedo (1988), foram os elevados

recursos financeiros nos setores da economia vinculado à construção civil, para atender aos

interesses dos proprietários de terras urbanas, deixando obvio que sua prioridade não era os

“sem tetos”:

Apesar de todos os esforços realizados, o BNH não conseguiu atingirsatisfatoriamente os setores de renda mais baixa através dos programas tradicionais.Ressalte-se que o Banco tinha como clientela prioritária as famílias de renda mensalentre um e três salários-mínimos. (p.112)

Viana (1996) descreve que as Companhias de Habitação (COHAB), nesse

período, eram órgãos fracionados por estados, aos quais cabiam fazer a compra ou

desapropriação do terreno e a urbanização, utilizando-se, para tal, recursos próprios ou do

BNH. Cabia-lhes apresentar os projetos técnicos das moradias e providenciar as medidas

indispensáveis para a execução após a provação do BNH. As companhias de habitação eram

estruturadas na forma de sociedades de capital aberto, onde o sócio majoritário era o poder

público e os governos responsáveis pela gestão burocrática do processo, cabendo à iniciativa

privada a execução das obras. Em 19715, a COHAB-Ceará foi oficializada pelo então

governador do estado, César Cals de Oliveira Filho, pela lei nº 9.557, vinculada à Secretaria

5 Disponível em: https://www.al.ce.gov.br/legislativo/legislacao5/leis2011/15005.htm Acesso em 11/12/2017.

33

de Obras e Serviços Públicos. As críticas as COHAB's davam-se para além da procura por

terrenos desvalorizados e consequentemente localizados na periferia, a redução da área útil da

habitação e a utilização de material de baixa qualidade, procurando o barateamento do preço

final das moradias (VIANA, 1996).

Devido à crise financeira e institucional, a década de 1980 foi o ponto final das

políticas de financiamento à habitação, tendo como coroamento a extinção do BNH mediante

decreto-lei 93.600, de 21 de novembro de 1986. Porém, a crise nas COHAB's chegou antes

mesmo da década de 1980 e do período da extinção do BNH. Em 1974, as COHAB's

limitaram-se a atender famílias com comprovação de renda entre 3 a 5 salários-mínimos,

priorizando as de mais alta renda, conforme revela Azevedo (1988). Diante de um contexto

desfavorável da economia nacional e de um segundo choque do petróleo na economia

internacional, o consumo da população fora penalizado pela política monetária do governo de

“arrocho salarial”, enquanto que as prestações das moradias só aumentavam, gerando um

elevado número de inadimplentes, que transformavam-se ou em abandonos voluntários das

habitações, ou expropriações por meio da justiça. O problema da habitação popular nesse

sentido estava para além de um desequilíbrio entre a oferta de imóveis e a população

consumidora, envolvia de forma mais complexa as dimensões sociais, políticas e econômicas

de um país afundado numa recessão.

3.2 O PROJETO CEARÁ

O que expomos anteriormente é um cenário geral que explica porque em março de

1977, concluiu-se a construção da 1ª etapa de um pioneiro conjunto habitacional em termos

urbanísticos e, pelo menos, até a metade da década de 1990, o maior bairro de Fortaleza: o

Conjunto Ceará, constituído de quatro etapas. Assim como outros conjuntos, a exemplo do

Araturi I e II, São Miguel, Novo Mondubim e José Walter, o Conjunto Ceará foi construído

longe do centro da Cidade, desprovido de qualquer estrutura existente, em uma região

desvalorizada, na qual, segundo os relatos propiciados pela escuta dos moradores, as terras

onde ficam a 1ª e 3ª etapas eram chamadas de “Estiva6” e mais abaixo, na 2ª e 4ª etapas, as

terras eram conhecidas como “Veneza”, porque eram tão baixas que alagavam em períodos de

inverno, antes de construírem os canais que cortam o bairro. Porém, de fato, o megaprojeto

Ceará, que deu origem ao nome do bairro, contava com algumas diferenciações em relação

6 Substantivo feminino: Marinha, O fundo interno de um navio.

34

aos outros bairros, abrangia 389 hectares de terra e oferecia 4 tipos de casas, caracterizadas de

A-D, variando de tamanho entre 23-57 m², além de contar com um modelo urbanístico

moderno (VIANA, 1996).

Produto do contexto das políticas habitacionais da década de 1960, o Conjunto

Ceará teve início já em 1967, criado pelo quarto governo de Plácido Aderaldo Castelo (hoje o

ícone dá nome à escola da unidade de vizinhança 7), projetado pela Companhia de Habitação

Popular do Ceará (COHAB-CE), a partir do projeto urbanístico chamado de Projeto Ceará.

Teve sua inauguração apenas no ano de 1978 e sua lei de decreto somente veio em 1989.

Inspirado em urbanistas estrangeiros, como o arquiteto americano Clarence Arthur Perry, o

bairro inaugurava a ideia de Unidade de Vizinhança (UV), na qual as avenidas denominadas

por letras cercavam o bairro repleto de ruas menores denominadas por números, de acordo

com sua UV, constituindo assim um sistema alfanumérico próprio de localização. A estratégia

era diminuir o tráfego de veículos no interior do bairro e propiciar mais segurança para a

mobilidade de seus moradores, ao mesmo tempo em que os equipamentos públicos

disponíveis incentivassem práticas comunitárias. Por isso, o projeto continha a construção de

uma escola com oito salas de aula, um centro comercial de abastecimento, um núcleo

comunitário (popularmente conhecido como “centrinho”) com biblioteca, auditório e sala de

reunião e uma praça pública para cada Unidade, que ao final da construção de 4 etapas,

totalizaram 11 Unidades de Vizinhança (UV). O bairro ainda contava com um posto policial,

um posto de saúde e um centro social urbano (CSU) no ano de 1977. Tudo deveria está perto,

a alguns passos de casa e que esses passos, principalmente das crianças ao irem à escola,

deveriam ser dados com segurança em vias com pouco trânsito (PERRY, 1929).

No que se refere à população, foi no reflexo das primeiras políticas de habitação

antes da crise que as primeiras famílias do Conjunto Ceará foram aparecendo, sobretudo

famílias de baixa e média renda (VIANA, 1996). Porém, em uma roda de conversa sobre a

memória do bairro, ouvimos nos relatos dos moradores que além dos funcionários públicos

que imaginávamos serem os primeiros moradores do Conjunto, os retirantes da seca

chegavam pelos trilhos do trem que dividem os municípios de Caucaia e Fortaleza, e se

estabeleciam no bairro, como característico da época.

O sistema de transporte coletivo contava com o ferroviário e o rodoviário de

forma precária. Em entrevista com Antônio Godofredo, morador residente na Avenida H

número 1969, nos conta que “até o final da década de 1980 não havia terminal de ônibus, só

foi construído lá pelo mandato do prefeito Juraci Magalhães, em 1990.”

35

O entrevistado recorda em suas memórias que o ônibus da linha 4ª etapa era o mesmo que ia

ao Centro, antes que fosse criada a linha expressa e que os ônibus usavam a praça José de

Alencar como terminal. Recorda ainda que a empresa que fazia os translados era a Viação

Gerema, hoje com o nome de Siará Grande e que os veículos tinham a cor vermelha.

Segundo o IBGE (Censo 2010), o bairro conta com uma população de 42.810

habitantes. Ao contrário de um bairro de periferia plenamente marginalizado, em termos de

estrutura o Conjunto goza de um reconhecimento social, percebido como uma espécie de

“centro da periferia” de Fortaleza. Nesta perspectiva, seus moradores relatam diferenças deste

bairro em relação a outros da periferia da Cidade, ressaltando a importância da comunidade na

luta e preservação desse status conquistado. Em incursões iniciais de campo, os moradores

recordam as lutas de enfrentamento a governos estaduais e municipais para cobrar ações e

resistir a intervenções que não atendiam ao interesse da comunidade, como foi a luta contra a

passagem de linhões de alta-tensão elétrica da Companhia Hidroelétrica do São Francisco

(CHESF), que cortariam o bairro e que não tiveram êxito em sua implementação, pois a

comunidade, por meio de protesto, conseguiu barrar o projeto.

O legado em forma de espaços e equipamentos públicos deixado pelo projeto

urbanístico originador do Conjunto Ceará, se por um lado abriu caminho para a construção de

uma identidade de morador(a) e um status pelo reconhecimento de seus moradores por se

considerarem o “centro da periferia”, isso só pôde fazer-se devido às lutas reivindicatórias,

por reconhecimento e preservação contra diversas violências estatais. Segundo os

depoimentos coletados por Viana (1996, p.34) o Conjunto Ceará em seu início só tinha

calçamento nas avenidas, os prédios, escolas, comércios, posto policial, estavam construídos,

mas não tinham a menor infraestrutura.

Quando eu cheguei aqui na rua 107, ela não tinha calçamento, tinha de pegar ônibuslá na Granja, não tinha uma farmácia, eram poucos os moradores. Era uma tristeza,muita gente vendeu as casas e foi embora. (…) Eram muitas dificuldades: ladrão,lama, esgoto estourado. Foi difícil.

Portanto se hoje a realidade é outra, isso se deve à intensa capacidade dos

moradores, segundo eles próprios, de “fazerem-se ouvir” pelos poderes públicos, como

atestam nossas entrevistas.

A gente tem que ser bem atendido nesses hospitais. Olha, não é de graça, esseshospitais saem do nosso bolso. E imposto pago por nós e como morador nós temosque cobrar. O morador do Conjunto Ceará tem que se unir e cobrar aquilo que é dedireito. Eles não estão fazendo um favor a gente, eles tão lá porque nós votamos,

36

eles estão para defender nossos interesses como cidadãos. (Morador MárcioAlexandre, 30/09/2015.)

3.3 AS VIOLÊNCIAS ESTATAIS

Como já mencionado, os espaços públicos do bairro foram logrados por

intermédio de lutas e resistências coletivas locais, ao longo da formação do Conjunto, e cujas

conquistas se encontram vivas e pulsantes ainda nas narrativas memoriais dos moradores,

sejam aqueles tradicionais, sejam parte da população mais jovem que tivera contato com essas

memórias circulantes. Entretanto, apesar do orgulho na identidade de morador, do status de

reconhecimento do bairro e do poder de “fazer-se ouvir” desses moradores, observamos que

ainda assim os equipamentos e espaços públicos, atualmente, estão em condições precarizadas

de funcionamento. Essa percepção põe em xeque a validade material do status de “centro da

periferia”, pois estando o Conjunto Ceará envolvido em problemas comuns a qualquer

periferia, fica cada vez mais ideal e mais difícil de sustentá-lo. Articularemos mais disso

depois, sobretudo na hipótese de que para que esse status não se perca, lutas são emplacadas

por preservação e reconhecimento.

De todo modo, no Conjunto Ceará encontramos vários tipos de violências

impelidas às periferias, como amontoados de lixo residencial e entulhos, canais de esgoto a

céu aberto, quedas de energia, falta de água, precariedade da estrutura e ensino das escolas,

precariedade da estrutura e serviço de saúde etc. Entendemos que a hipótese de uma sociedade

sem conflito é zero (SIMMEL,1983), o que não quer dizer uma naturalização dos conflitos da

nossa sociedade, a exemplo da desigualdade social, nem uma forma de conformismo quanto a

eles, mas que a violência é um fato na sociedade, assim como o conflito. Mesmo que nem

todo conflito seja violento, é sob esta perspectiva que afirmamos que a história do Conjunto

Ceará é também uma história de constante violência estatal. Desde os primórdios do bairro

que os moradores relatam situações que sofreram em suas vidas, como nas narrativas

coletadas em entrevistas no ano de 1994, por Viana (1996), e corroboradas por novos

depoimentos e falas por nós colhidos em nossa pesquisa de campo, que atestaram que os

arredores do Conjunto eram verdadeiros brejos e que, como o transporte público era precário,

os moradores tinham que ir a pé até outros bairros para pegar o coletivo, ou pior, quando

alguém adoentava-se, tinha que levar nos braços o doente ou pagar um táxi e nem todo mundo

37

podia fazer isso (Idem)7. Ou segundo uma moradora em uma de nossas entrevistas:

Quando eu vim de Baturité menina, eu chorava pra voltar pro interior. Aqui faltavaágua de dia e luz à noite, era só os sapos cantando, nem muro as casas tinham. Hojeem dia as casas já têm muro, mas aqui e acolá ainda falta luz. (Geovana Maria,moradora da 2ª etapa.)

Violência em linhas gerais é tratada aqui como na perspectiva de Machado da

Silva (2008), ao analisar a violência urbana como uma representação coletiva que não tem

um significado homogêneo, mas que existe como uma categoria de entendimento do senso

comum que consolida e oferece sentido a experiências vividas na cidade. Assim, a violência

urbana tem um horizonte polissêmico, não estando, de forma alguma, apenas relacionada ao

crime. Sob uma perspectiva de análise mais ampliada, nos é possível pensá-la no campo

político, moral, econômico e estrutural da vida em sociedade. A violência nesse sentido é um

fenômeno social irredutível à dimensão física, principalmente, em sua dimensão simbólica por

meio de um processo de imposição de verdades ou colonização de valores, possível em uma

superestrutura baseada na força, na coerção e na dominação, a exemplo do Estado.

O enquadramento coletivo da violência produz uma gramática com amplas

variações possíveis, uma linguagem que problematiza a ordem social e reconhece uma

“sociabilidade violenta” (SILVA, 2010) ao naturalizar a violência que questiona essa ordem e

ao percebê-la como um fato que está sempre posto. A violência se torna um fim em si mesma,

ela é sua própria explicação e se autorregula. Nas falas anteriores dos moradores, é visível que

a presença constante da violência estatal, de um certo modo faz parte da sociabilidade dos

moradores do Conjunto Ceará.

No esforço de elucidar, mais ou menos, a noção de violência aqui mencionada, é

necessário abordamos, ainda que de modo superficial, a ação de um dos agentes promotores e

reprodutores da violência, especificamente o que nos interessa no foco deste trabalho: o

Estado. Esta associação política pode ser definida a partir de seus meios peculiares como o

uso da força física, sendo um uso legítimo e legitimado desta, graças ao campo simbólico de

um monopólio reclamado com êxito para si dentro de um território (WEBER, 1982). Weber

(1999), reconhece o Estado por meio de uma sociologia da dominação e, nesta mesma

categoria, Bakunin (2003) também define Estado. Para este, o Estado em sentido prático é

inevitavelmente dominação, por conseguinte, Estado sem ela, de forma aberta ou oculta, é

impossível. A aproximação de definições sobre o Estado entre Weber e Bakunin dispõe de

7 Ver depoimento do morador da rua 733, nº 241, 3º Etapa, citado por Viana (1996).

38

muita sintonia, mesmo que poucos tenham parado para conceber esse diálogo. Tanto em

Weber (1982) como em Bakunin (2012) a dominação do Estado possui expressão nos campos

físico e simbólico, com ênfase para as perspectivas da legitimação política e do

reconhecimento moral dos dominados:

O Estado é a força, e tem, antes de mais nada, o direito da força, o argumentotriunfante do fuzil. […] Para impor-lhe respeito, é-lhe absolutamente necessária umasanção moral qualquer. É preciso, além do mais, que esta sanção sejasimultaneamente tão simples e tão evidente que possa convencer as massas que,após terem sido reduzidas pela força do Estado, devem ser conduzidas aoreconhecimento moral de seu direito. (BAKUNIN, 2012, p. 102-103)

No campo de pesquisa, as esferas física e simbólica da violência dominadora do

Estado, mostraram-se por meio da ausência e da presença dele. Os dois jeitos inter-

relacionados de maneira contínua e dialética, como por exemplo, na luta que será detalhada

mais adiante sobre a tentativa de fechamento do Hospital Nossa Senhora da Conceição, no

bairro estudado, evidenciando uma violência do Estado por meio de sua presença, mas que

antes disso diante de um atendimento e estrutura precarizados como narradas pelos

moradores, evidenciava uma violência estrutural quanto, simbólica por meio da ausência do

próprio Estado no local e da percepção que muitos tinham de que era isso.

Prédios abandonados, amontoados de lixo nos terrenos e nas ruas, má iluminação,

esgoto a céu aberto, miséria e pobreza mostram a falha do Estado em não conseguir dar conta

de cuidar das pessoas. Isso tem respaldo na análise histórica de Foucault sobre a passagem da

exacerbação do uso do direito de espada do soberano para os dispositivos do que chamou de

biopoder: “A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu

chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e deixar morrer.”

(FOUCAULT, 2009, p.294)

Consideramos violência estatal, portanto, de um ponto de vista histórico e

cultural, como ação que envolve a representação coletiva de agentes sobre perturbações de

acordos tácitos, perturbações estas percebidas na ausência ou na presença do Estado. A

violência como violência, faz parte ainda de uma gramática moral na qual, se constroem as

percepções dos agentes sociais, em particular referimo-nos aos moradores do Conjunto Ceará,

sobre as violações de acordos tácitos que variam entre legitimações, omissões, resistências

etc.

Para concluirmos este ponto, a violência estatal pode ecoar por meio de outras

ações, como proposto por Maturana (apud FLICKINGER, NEUSER, 1994), quando algum

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tipo de perturbação pode atuar como propulsor em dadas formações, mesmo que não as

determinem. É possível então que as violências estatais façam papel de alavancas na formação

de lutas por reconhecimento e preservação advindos (contraditoriamente) do próprio Estado

e/ou resistências próprias. Algo que pode se revelar mais evidentemente conforme se dê o

enfraquecimento ou não do reconhecimento/dominação simbólica do Estado.

3.4 LUTAS POR PRESERVAÇÃO

Descreveremos e analisaremos agora, um pouco das lutas por reconhecimento e

preservação que acompanhamos no campo de pesquisa, sem nos atermos muito a elas, pois

cremos que essas lutas já estão melhores detalhadas nos relatórios de pesquisa de iniciação

científica8 e além disso, cremos que, dessa forma, pudemos dar foco para as resistências auto-

organizadas que são tema deste trabalho.

As lutas que acompanhamos em campo e que são aqui tratadas, ancoram-se em

uma determinada situação. O Conjunto Ceará em seu nascedouro, em tempos de presença

ativa do Estado autoritário pós-golpe de 1964, contava com um padrão de habitabilidade

complexo e de uma produção do espaço público voltada para o bem morar de seus habitantes,

mediante uma gama de serviços públicos. Em nosso tempo de avanço da ideologia neoliberal,

a partir dos anos 1990, emerge uma diminuição progressiva de políticas públicas e de

atividade do Estado em garantir a manutenção de espaços e serviços à população. Contraste

violento este que gera lutas pelos moradores e moradoras, que afirmam reivindicar o que é

seu, ou o que um dia certamente foi. Esse orgulho de pertença ao lugar é um dado

fundamental que constatamos, e que nos permite recordar que a comunidade ali vivente é

também um ente moral, logo as lutas políticas desenvolvidas na comunidade também são

lutas morais (HONNETH, 2009), confrontos movidos pelas percepções morais dos agentes

em defesa do bairro.

Isso é história, é tradição, é identidade. Nós não podemos perder mais nada, nãopodemos perder o nome de nossas ruas, o nome de nossas avenidas, o nossohospital, nós não vamos perder nada. Pelo menos nós não vamos mais perder nadacalados, porque se o Conjunto Ceará tá abandonado pelo prefeito, pelos políticos,

8 FREITAS, G.J.; HOLANDA, R.B.; NEVES, J.S. Relatório da pesquisa Segurança, insegurança e cidadania: lutas por reconhecimento e por preservação de espaços públicos de lazer – estudos sobre um conjunto habitacional na cidade de Fortaleza (2015-2016). Universidade Estadual do Ceará: Fortaleza, 2016.

FREITAS, G.J.; HOLANDA, R.B. Relatório da pesquisa Segurança, insegurança e cidadania: lutas por reconhecimento e por preservação de espaços públicos de lazer – estudos sobre um Conjunto Ceará na cidade de Fortaleza (2016-2017). Universidade Estadual do Ceará: Fortaleza, 2017.

40

ele não pode ser abandonado pela gente. (Johnson, membro do Fórum Comunitáriode Lutas Unificadas, 30/09/2015)

Narrativas como a reproduzida acima tornam-se de muita relevância ao

questionarmos a centralidade de algumas esferas nas determinações das ações de agentes sob

a realidade, como a esfera econômica tão suprema na visão de alguns economicistas. A

relevância se dá do mesmo modo ao questionar a visão do Estado que classifica o cidadão

mais como agente econômico (homo economicus) do que como agente político, já que sua

perspectiva é de vanguarda, de fazer pelo cidadão; essas lutas reivindicam uma posição de

agente político para o cidadão.

A primeira luta que encontramos, ainda na primeira parte da pesquisa (2015-

2016), foi a luta contra o fechamento do Hospital e Maternidade Nossa Senhora da

Conceição, situado na Rua 1018, 4ª etapa do Conjunto Ceará. Segundo os moradores, o prédio

no qual hoje se encontra o Hospital era um dos centrinhos disponíveis do Projeto Ceará, o da

Unidade de Vizinhança 10. Esse Hospital, devido à precariedade da saúde da região, conforme

depoimentos de moradores, tornou-se vital não só para o Conjunto Ceará, mas também para

todos os bairros circunvizinhos que não possuem Hospital e Maternidade, como os bairros

Genibau, Bom Jardim, Granja Portugal, Granja Lisboa, e até o bairro Jurema, situado no

vizinho município de Caucaia. A condição atestada pelos moradores que dependem do

Hospital era de péssimo funcionamento. Em depoimento, um morador chegou a designar a

unidade de saúde como “matadouro”. Após uma pane no seu sistema elétrico, a unidade

hospitalar foi fechada no dia 22 de agosto de 2015, porém, na manhã do dia 25, servidores e

comunidade fizeram um ato contra o fechamento da unidade, a partir do qual desencadeou-se

uma luta coletiva de negociação com o governo municipal. Estas mobilizações culminaram

com a realização de uma audiência conjunta da Câmara Municipal de Fortaleza e Assembleia

Legislativa, aberta ao público, no próprio Polo de Lazer do Conjunto, para discutir a

importância do Hospital, e afirmar as reivindicações populares desta questão e de outras de

interesse geral do Conjunto. Resultou destas mobilizações junto aos gestores públicos do

Município e do Estado a reversão da decisão governamental de fechamento do Hospital.

Uma segunda luta, que também nos chamou a atenção, mas que não obteve êxito,

foi contra a mudança de nome da Avenida B, tradicional logradouro do bairro, para Av. Alanis

Maria Laurindo de Oliveira, uma homenagem à criança de 7 anos de idade, moradora do

Bairro, que fora sequestrada, estuprada e morta, no ano de 2010; enquanto sua avó participava

da missa, Alanis brincava no pátio da Igreja Matriz do Conjunto Ceará quando foi abordada e

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seduzida por um homem, responsável pelo ato que culminou com a morte da vítima. Contra

esta medida, cujo pleito foi de iniciativa de um vereador do bairro, há o argumento de parte

dos moradores da preservação da lógica original de construção do Conjunto, estruturado a

partir da concepção de Unidades de Vizinhanças, identificadas por meio de letras e números;

que essa mudança fora feita sem a consulta dos moradores; e ainda que a homenagem poderia

ter sido feita de outras formas.

Ainda em 2015, estudantes secundaristas da Escola José Maria Campos de

Oliveira, conhecida como UV8, receberam a notícia que a instituição deveria “fechar as

portas” em 2016. No dia 26 de novembro, estudantes saem em caminhada fazendo um ato

político em meio às ruas do bairro do Conjunto Ceará contra o fechamento da escola. A

Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC) alegava que seus motivos tinham base em uma

“otimização administrativa”. Ao final, a escola foi reaberta sob a pressão coletiva assumida

pelos agentes locais. Porém, em 2016, a luta por educação não parou, segundo nossos

registros de campo, uma outra escola, a Dr. Gentil Barreira, denominada de UV2, teve seu

prédio demolido “para reforma”; que se arrasta sem previsão para término. Em decorrência

disto, toda a sua equipe (estudantes, professores e gestão) foi colocada na UV8, de forma que

no turno da manhã funciona uma escola e em outro, a escola desalojada em decorrência da

reforma do seu prédio. Em meio à greve dos professores estaduais da educação básica, uma

onda de ocupações transborda em Fortaleza, inspiradas nas ocupações das escolas de São

Paulo e no movimento secundarista do Chile em 2006, em defesa de uma educação de

qualidade, em apoio aos professores e por melhores condições para os estudantes. Por estes

motivos alegados, estudantes decidiram ocupar os espaços da Escola José Maria Campos de

Oliveira/Gentil Barreira, como forma de pressão e “defesa da educação”. Nesse período de 5

meses, várias outras escolas também aderiram ao movimento. No Conjunto Ceará, o Liceu e a

UV7 também foram ocupados. Participamos de cine debates, muralismo, confraternizações,

mutirões de limpeza, etc. Em agosto de 2016, houve a desocupação das escolas UV2 e UV8,

pois com a decisão vinda dos professores em greve de voltar às aulas, os alunos que não

haviam tido negociação com a SEDUC decidiram barrar a entrada dos outros alunos, fazendo

uma barricada. A comunidade revoltada com a decisão dos estudantes, impera em fazê-los

desocupar. Nós, mesmo como pesquisadores, fomos afetados pela fúria violenta. Felizmente a

negociação foi feita no fim da tarde e a

42

escola foi desocupada, após assembleia estudantil.

Por fim, outra luta se estendeu desde o começo do ano de 2016 e se deu pela

decisão da COHAB (por meio da Prefeitura de Fortaleza) de vender (leiloar) vários prédios

públicos e históricos que formam, com outros equipamentos, o Polo de Lazer Luiz Gonzaga.

Um lugar que é tradicionalmente ponto de encontro e sociabilidade da população do Conjunto

e dos bairros vizinhos em busca de lazer. Espaços que já foram muito mais frequentados pelos

moradores, hoje entre os usos e contra-usos (LEITE, 2002) é frequentado pelas manifestações

de juventudes periféricas, conhecidas como “rolezinhos”, nos quais jovens reúnem-se para

escutar funk na praça nova de skate, situado no meio do Polo. Um desses prédios posto a

leilão, refere-se à construção onde funcionava na década de 1970 a Companhia Brasileira de

Alimentos (COBAL-CE), e onde hoje funciona o Centro Cultural Patativa do Assaré (CCPA).

O prédio, na década de 1990, foi adaptado internamente para abrigar um shopping popular.

Para esse shopping, foram construídas 40 lojas, distribuídas entre empreendedores

locais, além da promessa de atrair uma loja âncora, que nunca se efetivou. Após alguns anos

de funcionamento, o shopping veio à falência, conforme informações colhidas em entrevistas.

“No início dos anos 2000, os lojistas remanescentes, oriundos da antiga configuração do

shopping, acompanhados de grupos culturais, artistas e artesãos, produtores culturais e

entidades da sociedade civil ocuparam o prédio e transformaram no que hoje é o Centro

Cultural Patativa do Assaré - (CCPA)”, como nos informou um de nossos entrevistados. Com

a ameaça de leiloamento, anunciado pela COHAB neste ano de 2017, houve uma ocupação do

equipamento por vários agentes políticos, nos quais destacam-se os lojistas, grupos culturais e

os próprios moradores, construindo uma agenda de atividades político-culturais. Um detalhe

importante que argumentam contra o leiloamento do prédio, é a presença de serviços de

utilidade pública do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (DETRAN-CE) e de um

posto dos Correios e Telégrafos. Em visita de observação às instalações do Prédio do CCPA e

demais instalações, são visíveis a precariedade e a falta de conservação e manutenção das

instalações do prédio, igualmente à precária manutenção do Polo de Lazer do Conjunto Ceará,

praça principal do bairro Conjunto Ceará no qual o prédio encontra-se localizado. Em junho

de 2017, o Governo do Estado do Ceará decide repassar o prédio do Centro Cultural Patativa

do Assaré para a Secretaria de Cultura (SECULT) segundo os ocupantes do prédio.

43

4 A AUTO-ORGANIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA

O espaço público é o lugar do fazer comum, porém, considerando que esse

“comum” não é necessariamente harmônico, o espaço público é também o espaço da luta por

excelência. Os agentes estão em permanente conflito e, consequentemente em permanente

tensão de mudança:

A complexidade da ação dos agentes sociais inclui práticas que levam a umconstante processo de reorganização espacial que se faz via incorporação de novasáreas ao espaço urbano, densificação do uso do solo, deterioração de certas áreas,renovação urbana, relocação diferenciada da infraestrutura e mudança, coercitiva ounão, do conteúdo social e econômico de determinadas áreas da cidade. (CORRÊA,1989, p. 11)

Uma pergunta importante portanto, serviu-nos de guia: “quem são esses agentes”?

A partir dela, pudemos começar a refletir as relações de poder que nos aparecem de imediato

no senso comum de forma naturalizada. A população, por exemplo, dificilmente é considerada

um agente capaz de produzir os espaços públicos. Nas entrevistas junto aos moradores,

sempre em paralelo com as percepções de que as ações de resistência constituem algo de fato

“bom” para vida social, são acompanhadas percepções de que aquelas ações de resistência

“precisam ser terminadas”. As resistências são vistas como incompletas, deslegitimadas pelo

pouco capital simbólico e social que possuem, frente ao “monopólio do fazer” na produção

dos espaços públicos vindo do Estado. Nas falas dos moradores, a produção independente do

espaço, feita pelos próprios moradores, não é vista como algo fixo, as representações surgem

com o mesmo sentido do que são chamadas as “gambiarras”.

A realidade é que somos condicionados, desde nossa infância, a acreditar que asformas de organização do nosso cotidiano pertencem naturalmente a uma misteriosaesfera superior, o Estado, ou aos poderosos interesses da especulação imobiliária.(DOWBOR, 1999, p.8)

Seja a passividade criada pelo liberalismo e sua teoria da mão invisível, na qual o

mercado assegura naturalmente um mundo melhor, ou ainda, pela passividade da visão

estadista que despeja sua fé na crença que o planejamento central colocará ordem em nossas

vidas, a grande parte de nossa gente é cultivada como ovelhas que necessitam ser guiadas. Ao

naturalizarmos essa concepção, deixamos de perceber a nossa capacidade de

autotransformação social e, principalmente, deixamos de ver imersas no cotidiano que as mais

variadas espécies dessas transformações continuam a acontecer em todos os cantos.

44

Concordamos fundamentalmente com Hannah Arendt (1999), segundo quem a

política não se define exclusivamente por meio do Estado. A política é antes uma forma de

sociabilidade entre os agentes, que estão em permanente luta. Os agentes interagem entre si

sob a condição primordial da liberdade, nas palavras de Arendt, o “livre agir é agir em

público, e público é o espaço original do político” (ARENDT, 1999, p.11). Nesse sentido, por

meio da sociabilidade um espaço público cria suas próprias regras, pelas quais os

acontecimentos da vida em sociedade fazem-se visíveis e inteligíveis para os que dele

participam. Para vias deste trabalho definiremos segundo Arendt (1999), que esfera pública é

uma zona de discurso e de política, um espaço comum da opinião e da ação.

Nesse ponto, é possível pensar toda a trajetória que fizemos como ações dentro da

esfera pública, a produção do espaço planejada pelas políticas de habitação do Estado nas

origens do Conjunto Ceará, as lutas por preservação dessa produção e a produção própria por

meio de resistências que estamos prestes a falar. Conquanto, antes de adentrar nas resistências

que acompanhamos, precisamos frisar a crítica à exclusividade do Estado na esfera pública,

elegendo essa questão como de vital importância para o entendimento delas.

A produção da realidade acontece por relações dialéticas presentes no entremeio

entre o macro e o micro, porém, as relações de poder entre agentes dentro da esfera pública

costumam imbricar as concepções teóricas em um ou outro extremo do espectro da

“profundidade” psicológica do poder. De um lado está Foucault (1982), que concebe o poder

enquanto algo ubíquo, espalhado como relação por todo o tecido social e psicologicamente

muitíssimo invasivo. Não há “fora” do poder, nessa perspectiva mesmo que não tenhamos

dúvidas que o poder é relação, este aparece-nos divinizado, onipotente, absoluto. De outro

lado Scott (1990) defende uma “profundidade” do poder muito menos invasiva, em que as

pessoas dominadas entendem muito bem o que está ocorrendo e que até têm tradições de

resistência. De todo modo, sem querermos nos arriscar a tomar algum partido, é só

considerando o “fora”, a não absolutividade, que entenderemos baseados na multiplicidade de

possibilidades de uma ação, que enquanto houver ação há resistência. Quando consideramos o

“fora”, podemos desenvolver o ponto central deste trabalho e dar amplitude a um universo de

possibilidades de elementos que podem existir nesse campo “proibido” da realidade, como

uma criança cuja mãe traça uma linha e a proíbe de ultrapassar, desejamos cada vez mais

desvendá-lo.

454.1 AS RESISTÊNCIAS

Foi por meio de visitas exploratórias de campo que descobrimos agenciamentos

feitos pelos próprios moradores, dentre eles, delimitamos três nos quais pudemos nos

debruçar. São eles: um campo de futebol de areia onde deveria existir uma quadra pública

acimentada; um jardim de plantas medicinais e ornamentais em meio a um terreno público

baldio; e um sarau de juventudes em uma quadra de skate abandonada no coração do

Conjunto Ceará. Todos eles tinham em comum o fato de haver um tipo de violência estatal

sempre circundante nas narrativas de seus agentes, no campo de futebol, uma violência sobre

o lazer das pessoas; no jardim de plantas, uma violência contra o saneamento e o bem-estar; e

no sarau de juventudes, um visível abandono dos poderes públicos e uma violência sobre o

direito à cultura negado. Essas violências não determinam por si só as resistências, como

assevera Maturana (1996, p.58): “[…] um ser vivo é como é, em cada instante, não porque

algum de seus componentes predetermine como deva ser, senão porque começou com certa

estrutura inicial e teve uma certa história particular de interações.” Outras características em

comum entre as resistências são a descentralização e a espontaneidade, mas essas serão

tratadas mais adiante quando investigarmos a lógica de auto-organização.

A chamada praça velha de skate, situada no Polo de Lazer Luiz Gonzaga, é na

verdade, um tipo de pequeno anfiteatro com alguns degraus ao seu redor que, historicamente,

foi ocupado pelas tribos do skate, patins e outros esportes radicais, assim como também pela

juventude “roqueira” do Conjunto Ceará. Segundo um dos moradores entrevistados, dono de

uma loja temática no Centro Cultural Patativa do Assaré, a cultura do rock que marcou uma

geração de jovens no bairro está em declínio e as péssimas condições de estrutura da velha

praça de skate acompanham-na. São os próprios usuários da pista que confeccionam os

obstáculos, a exemplo de rampas e corrimões. Em seus relatos, os usuários da pista relatam

diferenças com a pista nova, feita pela Prefeitura logo mais alguns metros de distância no

Polo de Lazer, ao lado da igreja matriz do bairro. Falam em diferenças entre as modalidades

de skate propicias em cada ambiente e que, segundo eles, a Prefeitura não teria levado em

conta os interesses dos praticantes mais antigos por meio de consulta para que a nova pista

fosse feita. Enquanto que a nova pista a modalidade é a Vertical Bowl [que em inglês quer

dizer bacia vertical], com rampas maiores feitas de cimento e sem muitos obstáculos, a antiga

pista seria para a modalidade Street [que quer dizer rua], porque em um estilo mais horizontal,

é usado como obstáculo praticamente tudo que está presente em uma arquitetura urbana.

46Figura 1 – Quadra de skate do Polo de lazer Luiz Gonzaga.

Fonte: Zona Imaginária Ceará.

O interessante da dinâmica de um fim de semana, quando o fluxo é alto de

usuários, é que há uma espécie de autogestão do uso do equipamento. Quando há alguém no

obstáculo, ninguém pode atrapalhá-lo, os outros ficam em uma das pontas da quadra, em uma

espécie de fila sem que seja preciso marcar lugar, aproveitam para prestigiar a vez do colega

e, se este fizer com louvores a manobra, batem palmas ou gritam algo parabenizando-o.

Quando um termina a manobra, outro logo em seguida assume o lugar, de forma que todos

têm a sua chance de serem vistos e assim provarem suas habilidades perante o grupo.

A quadra é ponto de tráfico e uso de drogas, e a mais usada é o álcool, o cigarro

em segundo e só em terceiro a maconha, segundo as observações oriundas das visitas

sistemáticas ao espaço. O que nos chamou atenção foi que a quadra é do lado da delegacia de

polícia do bairro. Nas percepções dos moradores, costumamos ouvir que lá é um espaço de

“vagabundos e drogados”, o que evidencia a deslegitimação de um local abandonado pelos

poderes públicos. Mesmo assim, o local é ponto de manifestações culturais desde muitas

47gerações. Os saraus são exemplos delas. Chegamos a observar exposição de livros, oficina de

serigrafia e, sobretudo, vários tipos de ritmos musicais em apresentações dos próprios jovens

moradores do bairro, a exemplo de música experimental, poesia, rock, rap e reggae. Todas

essas variadas programações são parte de uma espécie de cultura alternativa que retrata o

cotidiano das juventudes na periferia. Os saraus não são uma produção autóctone do espaço

de forma particular, eles são, na verdade, um incremento dessa produção na medida em que os

usuários de skate continuam a usar a quadra, assim como fluxo do transitar de pessoas não é

interrompido. Eles fazem parte da resistência complexa promovida pelos jovens na produção

e manutenção da pista velha de skate.

Próximo à rua 303, do lado da escola Edilson Brasil Soares, conhecida como

UV3, podemos ver um campo de areia de pequeno porte, chamado pela população de

“campinho now roots”. Segundo as memórias das pessoas do local, antes havia uma quadra de

concreto do lado de fora do Colégio que a comunidade usava, muito provavelmente ainda

resquício do projeto urbanístico planejador do bairro. O que nos contam é que o espaço tinha

sido “jogado ao léu” e que em um dia, em época eleitoral, a mando de um vereador e sob suas

promessas de reconstruí-la, a quadra que ainda era usada, apesar das suas condições, foi

destruída. A promessa, para surpresa dos moradores, não foi cumprida e, durante meses, o

local ficou deserto, abandonado. Para a reconstituição da história do local, contam-nos ainda

que havia uma quadra do lado de dentro da escola, própria para os estudantes da UV3, feita de

cimento e com cobertura, contudo, devido à precariedade da estrutura da escola, o uso de

materiais de péssima qualidade e em decorrência de fortes chuvas, a cobertura desabou, sem

que tenha havido feridos. Os destroços ficaram espalhados pelo chão e alguns materiais foram

saqueados. Sem nenhuma perspectiva de reconstrução das duas quadras, os moradores da

Unidade de Vizinhança 3 ficaram compelidos pela violência no âmbito de lazer e resolveram

fazer eles mesmos um campo com os alambrados da antiga quadra dentro da escola e as

“travinhas” da antiga quadra do lado de fora. Em uma demonstração de produção do espaço

público de forma autônoma, os moradores construíram um campo de areia batida, pintaram os

muros arredores, plantaram mudas e circunscreveram o campo com pneus velhos. Quando

perguntados quem cuidava do espaço, eles responderam “é nois mesmo”, um deles ainda

completou que “se não fossem eles, aquilo já teria acabado”.

48Figura 2 – Campo de futebol Now Roots

Fonte: Próprio autor.

Juntou o pessoal lá na quadra que tinha caído, falaram com o diretor (da escola), sepodia usar as grades que estavam lá, ai o diretor cedeu, com os restos, pintaram eplantaram algumas plantas, o Adilson é que rega no domingo de manhã. (Moradora,Entrevista em 11/11/2017)

No muro ao lado do campo, que recebeu a pintura dos moradores, podem ser

observado os seguintes dizeres: “Cuidamos e limpamos, a prefeitura é nois!” Essas frases, nos

relembram que as lutas políticas são compreendidas, também, como lutas morais

(HONNETH, 2009) e que expõem a dimensão simbólica desses agenciamentos. A percepção

dos moradores acerca da ausência do Estado naquele espaço faz com que haja uma perda na

legitimidade dos poderes públicos e, consequentemente, uma diminuição na dominação

simbólica. A fissura que a ausência do Estado nos dispositivos de reprodução da dominação

simbólica gera a resistência. Aqui evidenciamos sem dúvida uma prova concreta da existência

do “fora”, pelo menos em termos psicológicos do poder.

49Nesse espaço analisado, há uma dinâmica de autogestão das atividades. Os times

jogam uma partida de 10 minutos ou 2 gols, quem fica esperando sua vez de jogar se

posiciona logo após a trave e exerce a função de gandula para repor a única bola quando esta

foge do campo. Quando o gandula entra em campo com seu time, o próximo da fila

previamente acertada, assume o lugar dele na função. Os horários do chamado “racha” ou

partida, são organizados de forma espontânea. Há dias que jogam os moradores, como os

domingos, e há dias para os visitantes de outros bairros. Sobre esses “outros”, os moradores

costumaram representá-los como pessoas de bairros vizinhos, que usam o campo em horários

tarde da noite e que fazem muito barulho. Quando perguntávamos quem eram os usuários do

campo e eram mencionados os horários de madrugada, as pessoas disseram “não são os daqui

não, é o pessoal de fora que vem pra jogar”.

Como nas outras resistências, há uma gramática variada de sentidos em relação ao

campo de futebol. Neste contraponto, chegamos a ouvir falas de moradores afirmando que

“antes o pessoal jogava mais, agora vem gente é usar droga aí”. Há usuários de maconha entre

os que praticam a atividade física, o que justifica esse tipo de percepção, mas o local não é

identificado como um ponto de tráfico e o uso parece não acarretar problemas para a

comunidade, sendo, em certa medida, tolerado, principalmente porque alguns usuários são

moradores e filhos dos moradores.

Ainda sobre esse campo, foi identificado como um de seus usos, a prática de aulas

de educação física dos estudantes da UV3, certamente na falta da quadra nas dependências do

Colégio. Foi possível observarmos os adolescentes fardados no exercício de atividades físicas

coordenadas pelo professor.

Em relação ao jardim, fica localizado em um terreno público baldio, situado na

rua 335. O local, pelo que escutamos de nossos interlocutores, constantemente é alvo de

despejo indevido de lixo residencial, resíduos de construção de edifícios, móveis descartados

etc. Para ajudar na solução de tal problema, uma parte pequena do terreno foi delimitada com

uma cerca de madeira e telhas de barro encravadas ao chão. Segundo um dos agentes,

moradora de frente ao jardim, cerca de 5 pessoas se revezam pra cuidar do ambiente, cada um

tem seu dia e horário pra aguar as plantas. Dentre elas, uma agente é formada em geografia

pela Universidade Estadual do Ceará. Ela nos relata que existem papoulas, ipês e mais uma

variedade de plantas, entre medicinais e ornamentais. De acordo ainda com nossa

entrevistada, a maioria das plantas foram adquiridas em um viveiro da cidade e Sobral, pois

50há um programa em que se pode trocar “20 sacos de arroz ou açúcar por uma muda”,

entretanto há outras plantas que foram compradas com o dinheiro pessoal de alguns agentes.

Em uma outra visita ao local, recebemos relatos de que há alguns vizinhos que

não entendem o sentido da resistência segundo as percepções dos agentes. Uma prática

comum é a queima do lixo e da vegetação no terreno baldio, o que desta vez teria feito chegar

o fogo até o jardim queimando algumas plantas. Nas narrativas dos moradores da rua 335, a

falta de consciência do restante da população é a maior dificuldade. Talvez por isso, dentro do

jardim existem placas que, além de decorativas, cumprem um papel sinalizador com dizeres

do tipo: “Mantenha o jardim limpo e bem cuidado!”

Figura 3 – Jardim de plantas da rua 335.

Fonte: Próprio autor.

51

Porque antes, quando não tinha a cerca o pessoal ainda jogava lixo aqui dentro,agora com a cerca que melhorou, mais ainda jogam e a gente tira. […] se todomundo cuidar um pouquinho aí dá certo. (Eveliza, moradora, entrevista em11/11/2017)

Com auxílio de programas de geoprocessamento, Sousa (2015), quantificou o

total da cobertura vegetal do bairro do Conjunto Ceará em 15,1 m² por pessoa, ou 19,08%,

considerado com base nas proposições da Organização das Nações Unidas (ONU) como um

bom quantitativo de cobertura vegetal, graças a moradores como os da rua 335. Como o

Ministério do Meio Ambiente (MMA) adverte, “as áreas verdes urbanas […] contribuem de

modo significativo para a qualidade de vida e equilíbrio ambiental das cidades.9”

O jardim é uma evidência das relações de classe na sociabilidade da vida nas

cidades. Enquanto as elites têm a possibilidade de criar espaços segregados, a exemplo dos

Alphavilles, distantes das populações e das mazelas que residem nas periferias das grandes

cidades, os mais pobres agregam melhorias feitas com suas próprias mãos aos locais onde

moram por meio de resistências (BAUMAN, 2009).

Se essas resistências foram ações de agentes orientadas pelas percepções de

violências estatais, sob os relatos dos moradores percebemos que estas também começam a

esboçar implicações. Seja nas falas sobre a “vagabundagem” no campo de futebol, seja na

queima de lixo perto do jardim de plantas ou sobre o uso de drogas no sarau da pista velha de

skate, a realidade prova mais uma vez que está sempre a um passo da ciência. Tais

implicações, merecem obviamente seu estudo detalhado, porém, deixaremos para outra

ocasião. Resta-nos compreender que, como afirma Maturana,

As mudanças das estruturas do ser autoproduzido, que eram as próprias reações àsperturbações, evidentemente são inversamente, de novo, perturbações para seupróprio meio ambiente. (MATURANA apud FLICKINGER, NEUSER, 1994, p. 73)

4.2 A LÓGICA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO

O clássico pensamento da sociologia da ação é o que considera, na qualidade de

compreensível, aquela apuração dos complexos de sentidos, incluindo aí as apreensões das

lógicas de mundo mediante evidências racionais, tornando nossa tentativa de representação

“casualmente adequada” (WEBER, 1994). Lógicas presentes numa realidade social que, como

51

9 MMA, Parques e Áreas Verdes. Disponível em: www.mma.gov.br/cidades-sustentaveis/areas-verdes-urbanas/parques-e-áreas-verdes Acesso em: 05/12/2017.

analisa Bourdieu (1989), é constituída de campos de forças em que os sujeitos disputam bens

simbólicos com valor específico em cada campo. Esses campos se dividem entre dominantes

e dominados, ou melhor, entre aqueles que detêm e os que não detêm os meios de produção

material e simbólica do mundo. Assim, a sociedade é um aglomerado de indivíduos que

participam de várias trocas e interações simbólicas.

Adotando em Morin (2006) a visão de mundo sob a esfera da complexidade, na

qual o tecido social está mais efetivamente ligado a múltiplas configurações de ações,

interações, retroações, acasos e condições que constituem nosso mundo, a complexidade

então apresenta-se, na realidade, com os traços da desordem e do caos, conforme enuncia

Santos (2010, p.39):

O caos, que a ordem e o progresso da modernidade pareceram ter atirado para o lixoda história, regressa hoje, tanto na epistemologia, como nos processos sociais.Longe de ser por essência negativo, o caos é um horizonte dramaticamente ampliadode possibilidades e, como tal, compreende, como nenhum outro, possibilidadesprogressivas e possibilidades negativas.

Abre-se, portanto, um diálogo muito sincero e instigante dessa visão de mundo

com a sociologia que se debruça sobre as artes cotidianas do fazer, e favorece-a à medida que

a concepção de realidade concebida em complexas e variadas formas e lógicas, não só

padrões, legitimas e oficiais, como aquelas banais podem ser apreendidas. Ao problematizar a

sociedade por meio dessa visão de mundo, a abordamos em uma complexa teia proveniente de

interações e relações entre indivíduos. Como demonstra a analítica de poder em Foucault

(1982), o poder não se capta “pegando a coisa”, pois este em si não é coisa, e sim relação;

pensar em ações, condutas, sociabilidades e lógicas, seria pensar nos mesmos termos. No

comparativo, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles, logo, se pensarmos as ações

auto-organizadas como práticas sociais, a auto-organização estaria como relação. Em termos

ideais, ela pode estar como lógica nas ações e condutas reais.

Apesar da auto-organização poder ser pré-definida de forma simples pela reflexão

de que “uma organização ou ‘forma’ é auto-organizada quando se produz a si própria”

(DEBRUN, 1996, p. 4), ela reside em esforços de vários cientistas. As raízes da abordagem

científica sobre auto-organização, sem dúvida são latino-americanas, ainda na década 1970 e

graças aos estudos do neurofisiólogo chileno Humberto Maturana (1996) que definiu

autopóiese como sendo aquela coisa que se destaca pelo fato de ela representar

entrelaçamentos da produção de seus próprios componentes. Rompendo com a teoria clássica

52

europeia baseada em Newton, que dizia que qualquer transformação deveria ser explicada

necessariamente à base de uma força externa, como bem mostra essa trajetória Hans-Georg

Flickinger e Wolfgang Neuser (1994).

A conceituação, no entanto, que devemos nos deter por um momento, quase em

síntese, corrobora com a seguinte referência:

No que se refere ao ser humano e à sociedade, aparecem em Morin como unidadescomplexas e multidimensionais. O ser humano é sincronicamente biológico,psíquico, social, afetivo, emocional, racional. A auto-organização aparece comoprocesso permanente e indissociável de desorganização e reorganização [...] Anecessidade de pensar em conjunto as noções de ordem, de desordem e deorganização, na sua complementaridade, concorrência e antagonismo, nos fazrespeitar a complexidade física, biológica e humana. Pensar não é só servir às ideiasde ordem ou de desordem, é servir-se delas de modo organizador e, às vezesdesorganizador, para conceber nossa realidade. (PAIXÃO JÚNIOR; PEREIRAJÚNIOR; ILARIO, 2014, p.76-77)

De fato, teríamos uma concepção geral da lógica de auto-organização que nos dá

uma amplitude larga e preciosa a partir das reflexões anteriores. Mas, não podemos parar por

aqui, urge uma necessidade de estabelecer vínculos com as peculiaridades que encontramos

no campo de pesquisa. Nossos esforços apreenderam um caráter autorreferencial,

descentralizado, informal e despersonalizado nas resistências que acompanhamos.

Em termos generalizantes, percebemos que a lógica de auto-organização presente

nas condutas de resistência dos moradores do Conjunto Ceará é, sobretudo, algo que se

desenrola no tempo de maneira direta, sem intermediários. Foram os próprios moradores que,

deparados com algum tipo de violência estatal, imprimiram uma produção auto-organizada do

espaço em que vivem. A autorreferencialidade nesse sentido é um importante carácter da auto-

organização que, segundo Debrun (1996, p.55) esse processo depende “basicamente de si

mesmo, ser autônomo, é a primeira maneira, para um processo organizado, de ser auto, de ser

ele mesmo, de ser inteligível e partir de si mesmo”.

Outro fator que se adiciona nas nossas concepções é a despersonalização,

descentralidade ou horizontalidade. As resistências que observamos não vêm de lideranças

constituídas, como por exemplo, as pessoas que construíram o jardim não têm nenhum tipo de

cargo nesse modo de conduta e não há como estabelecer uma porcentagem para cada uma, de

acordo com o que fizeram ou não fizeram na resistência. Na mesma medida, não há como

saber todos os nomes dos jovens que já contribuíram com a produção do espaço na pista velha

de skate, ou que já leram sua poesia, ou cantaram uma música em um dos saraus. Não existem

53

membros supérfluos num sistema social (MATURANA, 1996) e na lógica de auto-

organização deve “reinar certa igualdade de forças – seja qual for a maneira específica de

entender a noção de força conforme as áreas de auto-organização – entre os elementos que

vão entrar em interação” (DEBRUN, 1996, p.37).

Na teoria de auto-organização, o objeto define-se pela relação entre componentes,

estes que são contemplados em seu relacionamento como elementos constitutivos da unidade.

Logo, qualquer tentativa de personificação ou de creditação exacerbada (por motivos

eleitorais por exemplo) em um dos agentes de uma resistência, será então uma fragmentação

que perde o sentido de relação necessário à conceituação de um auto-organização. O resultado

da resistência não pertence a ninguém. “Houve sujeitos na auto-organização, mas não o

Sujeito da auto-organização” (DEBRUN, 1996, p.18).

Um organismo vivo, p.ex., perde seu grau de organização se considerarmos seuscomponentes não mais segundo seu relacionamento mútuo, senão de modomecânico, ou seja, enquanto conjunto de órgãos diferentes. (Flickinger, Neuser,1994, p.20)

Como observou Viana (1996), desde o começo do Conjunto Ceará, embora os

moradores tenham sido dos mais diversos pensamentos e hábitos, a necessidade material

imposta fez com que a união para obter melhorias, desmatando as regiões circunvizinhas e em

mutirões fosse possível. Porém, esse processo autônomo de organização do espaço e da vida

dos moradores do Conjunto Ceará não pode ser lido como um processo em que os

condicionantes econômicos têm primazia, sem levar em conta o “choque” moral e simbólico

entre a criação do Projeto Ceará e a administração do Estado em nossos dias. Queremos

afirmar, com isso, que é preciso desempenhar aqui um voo para além de algumas dogmáticas

que possam aparecer e ressaltar que há também muita emoção nas motivações da ação desses

moradores. Um processo que é constituinte e constituído não só por uma reação econômica,

mas também sentimental.

Surgiu-nos, então, a indagação de qual seria o sentido desse processo. Logo

percebermos que não seria correto enquadrarmos o sentido da auto-organização em

semelhança a um sentido de um dos agentes, ao sentido imposto pelo Estado, ou a um sentido

subversivo da população, pois a verdade é que não há um sentido único na produção da esfera

pública, mas uma multiplicidade de sentidos difusos e todos eles são peças na construção do

espaço social, a exemplo do bairro, muitas vezes, inclusive, com sentidos antagônicos que se

chocam produzindo anomias internas. É na soma imprevisível deles que surge uma

configuração dos espaços.

55A auto-organização então, para concluirmos, é um processo pelo qual, a partir de

ações desencadeadas por si mesmas, agentes, como os moradores do Conjunto Ceará na

cidade de Fortaleza, transformam suas condições de vida, superando dificuldades e

atualizando potencialidades. Esse processo (movimento, relação) só ocorre quando o próprio

agente se torna protagonista; se conduzido por um agente externo, tratar-se-ia de hetero-

organização (PAIXÃO JÚNIOR; PEREIRA JÚNIOR; ILARIO, 2014).

56

CONCLUSÃO:

Algumas considerações finais serão apresentadas nesta seção. A primeira que

devemos fazer e que neste momento já deve estar mais do que óbvia, é que a auto-organização

é uma questão sociológica, mas não é uma questão social. Por conseguinte, devemos salientar,

também, a importância de se estudar as produções do espaço público, porque é nesses

“lugares que se forma a experiência humana, que ela se acumula, é compartilhada, e que seu

sentido é elaborado, assimilado e negociado.” (BAUMAN, 2009, p.13)

A auto-organização é uma lógica que persiste na retomada da sociabilidade e

coletividade, indo contrária ao fluxo da modernidade liquida, que tende a produzir na

paisagem urbana espaços segregados de desintegração da vida comunitária:

Os estratagemas arquitetônico-urbanísticos identificados e listados por Flusty são osequivalentes tecnicamente atualizados dos fossos pré-modernos, das torres e dasseteiras nas muralhas das cidades antigas. Mas, em lugar de defender a cidade etodos os seus habitantes de um inimigo externo, servem para dividir e manterseparados seus habitantes [...] (BAUMAN, 2009, p.17)

Nosso trabalho foi de evidenciar as resistências como uma produção advinda de

uma rede específica de relações de coletividade, uma rede que dá as bases concretas para os

processos de condutas coletivas auto-organizadas. São os “laços de sociabilidade” entre os

agentes que compartilham o agenciamento, que caracteriza cada pedaço “numa peculiar rede

de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por

participação em atividades comunitárias, desportivas etc.” (MAGNANI, 2000, p.193).

Quando os agenciamentos aconteceram e as pessoas desafiaram o poder e a legitimidade do

Estado em seus atos de resistência, não foi nem o laço econômico, nem o laço ideológico, mas

o laço geográfico-simbólico de identidade de bairro que imperou. Tal entendimento alerta a

qualquer grupo político que possa interessar, um fato cada vez mais visível. Para além das

condições materiais e econômicas, é necessário para agrupamento e organização de uma

coletividade, condições sentimentais e simbólicas também, inclusive, algo que vale para

qualquer projeto de revolução social. Na medida em que a ciência descobre fatos como esse,

as ideologias podem ou não se utilizar para propiciar propaganda de que é ou não possível

escolher nosso caminho.

57

É importante embasar por meios científicos que há condutas de auto-organização

presentes e construtivas na nossa sociedade. E que isso não é criação da cabeça de profetas

esquerdistas em seus planos utópicos de mundo. Logicamente, se esses processos existem no

pensamento dessas pessoas, é unicamente porque foram retirados do seio das movimentações

populares.

Uma preocupação que temos frente à lógica de auto-organização, é que ela

parece-nos muito frágil, diante de que não está posta como convenção, nem como direito

(WEBER, 1994, p.21) Mas, esperamos que o conteúdo tenha sido de aproveitamento para o

leitor e que tenhamos de alguma maneira respondido aos questionamentos que nos moveram

durante este trabalho. Acreditamos ter apresentado argumentos e evidências suficientes nesta

monografia, para concluir que não somente o Estado é capaz de produzir, criar e transformar

os espaços públicos, que não somente a ordem gera condutas e que é questionável a

abrangência absoluta do olhar panóptico do Estado.

Se no começo do bairro a produção do espaço público deu-se exclusivamente

pelo Estado, por se tratar justamente de um projeto urbanístico, e no decorrer do tempo

sempre houve lutas por preservação e por apelo ao poder público na produção dos espaços,

compreendemos que os espaços públicos do Conjunto Ceará não apenas são transformados

pelo Estado, eles se transformam e experimentam a transformação como tal. Existe uma

produção do espaço público autorreferenciada que ao primeiro olhar pode parecer mínima,

mas que ao ser estranhada, reflete uma grande produção pela qual as três resistências

mencionadas neste trabalho são apenas exemplos. No âmbito mais comum e cotidiano dos

moradores, a cada intervenção deles nas calçadas, ao plantar e aguar as árvores dos canteiros

das avenidas, ao recolher o lixo em local público e mais uma lista de coisas, é possível ver

auto-organização.

Quando eu vim pra cá meu marido falou assim: não vai falar besteira, mas a gente

fala besteira pelas besteiras que são feitas. […] Oh, eu me sinto dona do pedaço da

avenida B onde eu moro, porquê? Por que eu me levanto 4 e meia da manhã, eu

cuido das minhas plantas do canteiro, eu varro, apanho lixo sem luva, com essas

mãos que tá aqui inteirinha. […] A prefeitura cuida, a comunidade tem que cuidar

também. (Socorro Guedes, moradora, 30/09/2015)

58

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62

APÊNDICES

63

APÊNDICE A – REGISTRO DA LEI DE OFICIALIZAÇÃO DO BAIRRO, ARQUIVO DA

CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA.

64

APÊNDICE B – REGISTRO DE CÓPIA XEROGRÁFICA DE MATÉRIA EM JORNAL

LOCAL, DATANDO DE ABRIL DE 1982.