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A AGROECOLOGIA NA RELAÇÃO CAMPO-CIDADE 1 . Suzana Gotardo de Meira Universidade Estadual do Oeste do Paraná-campus de Francisco Beltrão - UNIOESTE [email protected] Resumo Os impactos ambientais ocasionados pela industrialização da agricultura colocam em questão o pacote modernizador, baseado na dominação de todas as formas de vida por meio da racionalidade econômica e instrumental. A Agroecologia, entre várias outras formas de alternativas ao modelo convencional de agricultura, surge do cenário de crise da modernidade. Prezando pelo equilíbrio entre fatores, naturais, sociais, culturais, políticos e econômicos, e inter-relacionando diversas áreas do conhecimento científico ao saber tradicional, permeia as complexas relações entre o campo e a cidade. Contudo, procuramos neste texto, situar a Agroecologia na relação campo-cidade, apontando a comercialização e os consumidores de produtos agroecológicos e orgânicos, como principais elementos desta interação. Palavras-chave: Agroecologia. Campo-cidade. Comercialização. Consumidores. Introdução Ao escrever esse artigo, tivemos por objetivo, discutir de forma sucinta, como a Agroecologia se insere nas relações entre o campo e a cidade, considerando a importância da comercialização de alimentos orgânicos e agroecológicos e, consequentemente, dos consumidores, sobretudo os residentes nas cidades. Diversos estudos geográficos que abordam a relação campo-cidade têm sido realizados considerando a difusão e a incorporação das novas tecnologias disseminadas pelo processo de modernização agrícola; resultante da expansão do capitalismo no campo brasileiro. Em contraposição a este processo, imposto pelo “pacote” tecnológico da Revolução Verde, existem alternativas de produção agropecuária, que buscam ser menos impactantes do ponto de vista ambiental e social, aproximando-se da idéia de sustentabilidade. Nesse contexto, está a Agroecologia, que possui uma preocupação ambiental e social para além da dimensão produtiva, incorporando também aspectos como a gestão ambiental de estabelecimentos rurais, a valorização do trabalho no campo e o fortalecimento da relação entre o campo e a cidade, através da aproximação entre produtor e consumidor, viabilizadas em estratégias de comercialização diferenciadas que reduzem a ação de atravessadores.

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A AGROECOLOGIA NA RELAÇÃO CAMPO-CIDADE1.

Suzana Gotardo de Meira Universidade Estadual do Oeste do Paraná-campus de Francisco Beltrão - UNIOESTE

[email protected]

Resumo Os impactos ambientais ocasionados pela industrialização da agricultura colocam em questão o pacote modernizador, baseado na dominação de todas as formas de vida por meio da racionalidade econômica e instrumental. A Agroecologia, entre várias outras formas de alternativas ao modelo convencional de agricultura, surge do cenário de crise da modernidade. Prezando pelo equilíbrio entre fatores, naturais, sociais, culturais, políticos e econômicos, e inter-relacionando diversas áreas do conhecimento científico ao saber tradicional, permeia as complexas relações entre o campo e a cidade. Contudo, procuramos neste texto, situar a Agroecologia na relação campo-cidade, apontando a comercialização e os consumidores de produtos agroecológicos e orgânicos, como principais elementos desta interação. Palavras-chave: Agroecologia. Campo-cidade. Comercialização. Consumidores.

Introdução

Ao escrever esse artigo, tivemos por objetivo, discutir de forma sucinta, como a

Agroecologia se insere nas relações entre o campo e a cidade, considerando a

importância da comercialização de alimentos orgânicos e agroecológicos e,

consequentemente, dos consumidores, sobretudo os residentes nas cidades.

Diversos estudos geográficos que abordam a relação campo-cidade têm sido realizados

considerando a difusão e a incorporação das novas tecnologias disseminadas pelo

processo de modernização agrícola; resultante da expansão do capitalismo no campo

brasileiro. Em contraposição a este processo, imposto pelo “pacote” tecnológico da

Revolução Verde, existem alternativas de produção agropecuária, que buscam ser

menos impactantes do ponto de vista ambiental e social, aproximando-se da idéia de

sustentabilidade. Nesse contexto, está a Agroecologia, que possui uma preocupação

ambiental e social para além da dimensão produtiva, incorporando também aspectos

como a gestão ambiental de estabelecimentos rurais, a valorização do trabalho no

campo e o fortalecimento da relação entre o campo e a cidade, através da aproximação

entre produtor e consumidor, viabilizadas em estratégias de comercialização

diferenciadas que reduzem a ação de atravessadores.

A metodologia utilizada para elaboração do presente artigo está baseada em leituras e

análises de obras que abordam a temática proposta, relacionando-a com as discussões

realizadas na disciplina, com a pesquisa de Mestrado que estamos desenvolvendo,

intitulada “Intencionalidades, territorialidades e temporalidades da Agroecologia em

Itapejara d´Oeste, Salto do Lontra e Verê (SO/PR)”2, e demais pesquisas realizadas no

Grupo de Estudos Territoriais (GETERR), as quais nos concedem conhecimento

empírico da Agroecologia praticada em alguns dos municípios do Sudoeste paranaense.

Para melhor compreensão e organização das idéias, primeiramente buscamos

compreender como se apresentam na atualidade as relações entre o campo e a cidade; e

quais os fatores condicionantes dessas relações, diante da internacionalização do capital

e do marcante avanço tecnológico e científico, que abrange e liga os espaços rurais e

urbanos, conduzindo a variadas interações de objetos e ações. Em um segundo

momento, apresentamos algumas definições de Agroecologia, com o intuito de

tomarmos conhecimento de como esse conceito vem sendo trabalhado e, de termos

condições de apontar, posteriormente, como ela se insere na discussão entre campo e

cidade, a partir da análise da comercialização e dos consumidores de produtos

agroecológicos. Concluímos com considerações a respeito do potencial da agroecologia

na aproximação entre a cidade e o campo, no sentido de perceber que a demanda e o

interesse dos moradores de áreas urbanas é fundamental para o fortalecimento da

agroecologia, e como a agroecologia pode contribuir para a compreensão acerca da

viabilidade e da importância de novas formas de agricultura frente os desafios

socioambientais vigentes.

Relação campo-cidade

A relação campo-cidade é uma temática bastante complexa abordada pela Geografia,

sobretudo, visto que a distinção e o limite destes se tornam cada vez mais obscuros pela

acentuada articulação entre esses espaços, proporcionada pelo avanço tecnológico e

científico, que concomitantemente se materializa nos espaços rurais e urbanos, mesmo

que de forma distinta.

Segundo Marafon (2011), o desenvolvimento tecnológico proporcionou a melhoria das

vias de comunicação, da telefonia, da internet, das estradas, dos meios de transporte,

facilitando o acesso aos lugares e, consequentemente, o crescimento de atividades não

agrícolas no campo. É cada vez mais difícil diferenciar ou conceituar o espaço rural e o

espaço urbano. Porém, se tratando da relação campo-cidade, devemos refletir sobre o

espaço rural em sua complexidade, ou seja, inserido em um mundo globalizado, com

uma perspectiva transescalar dos fenômenos, intensa devido ao avanço tecnológico e

que provoca significativas transformações no território.

Conforme Araújo e Soares (2009) a internacionalização do capital é responsável pelas

principais transformações socioespacias, ocorridas no campo e na cidade. Com uma

infra-estrutura de transporte e comunicação mais moderna e dinâmica nas cidade, unida

à modernização do campo, a diversificação dos serviços foi impulsionada,

intensificando os fluxos e as relações entre estes espaços, alterando assim, a vida e o

trabalho dos sujeitos.

O campo e a cidade deixam de ser distintos e opostos, como vistos tradicionalmente. A

modernização da sociedade gerou profundas transformações nesses espaços,

intensificando as relações entre os mesmos. Desta forma entendemos que campo-cidade,

rural urbano devem ser compreendidos como espaços interdependentes. Por mais

urbanizada que seja uma cidade, seus moradores precisam de alimentos, provindos do

campo e, por mais sustentável que seja uma propriedade rural, esta precisa de algum

tipo de insumos e tecnologias básicas desenvolvidas na cidade. Citemos isso como

exemplo, talvez o mais básico, para visualizarmos o quão inerente é a relação entre

campo e cidade.

De acordo com Marafon (2011) atualmente, o campo, além de exercer as funções

habituais, como fornecimento de matéria-prima, mão-de-obra para as cidades, e

consumo de produtos oriundos da mesma, vem sendo, o espaço destinado para

atividades não agrícolas, como a produção industrial e o turismo, valorizando os

aspectos naturais. Além disso, é cada vez mais freqüente a migração de pessoas da

cidade para o campo, em busca de maior qualidade de vida e da inserção no mercado de

trabalho. Ao mesmo tempo em que o espaço rural é o local da produção agropecuária, é

também o espaço que absorve o trabalho de jardineiros, caseiros, diaristas, etc.

Para o autor, o espaço rural, representado pelo agronegócio e pelos complexos

agroindustriais, caracterizado pela modernização e industrialização da agricultura, frutos

da revolução verde, torna-se fortemente marcado pela técnica e pelo capital. Neste

contexto e como contraposição, a produção familiar, marcada por atividades agrícolas e

não agrícolas, valoriza o patrimônio natural e histórico do espaço rural por ela ocupado,

através da existência de áreas preservadas e de um processo de ocupação, que mesmo

tendo forte influência do capital, não apresenta a mesma modernização se comparada

aos estabelecimentos rurais do agronegócio. Portanto, os estabelecimentos da

agricultura familiar possibilitam a prática da agricultura baseada nos princípios da

Agroecologia.

Ao valorizar estes aspectos, a produção familiar permite a prática de atividades não-

agrícolas no espaço rural, para atrair pessoas do espaço urbano. Essas práticas compõem

uma alternativa diante do agronegócio, com o objetivo de construir uma agricultura com

base na Agroecologia, que esteja próxima aos fundamentos do desenvolvimento

sustentável e que estimule as pessoas, sejam turistas ou habitantes da cidade, a buscar

no campo, tranqüilidade, produtos saudáveis e qualidade de vida.

Conforme afirma Elias (2006), em contraposição ao processo de globalização tanto da

produção como do consumo agropecuário, ocorre uma intensa fragmentação da

produção e dos espaços agrários. Desta forma, devemos considerar esta fragmentação

para que possamos compreender as redefinições regionais e das cidades médias e locais,

pois este fator torna cada vez mais diferenciado os espaços agrícolas.

Existem diversos circuitos da economia agrária bem hierarquizados, os quais, em uma

extremidade, constituem os produzidos pela agricultura científica globalizada, ligada ao

circuito superior da economia urbana e, na outra, os espaços agrícolas onde predomina o

extrativismo vegetal, a pecuária extensiva, entendida aqui como aquela que utiliza

técnicas rudimentares ou tradicionais, como o gado solto no pasto, por exemplo, e a

natureza tem peso decisivo para a vida das comunidades. Sendo assim, têm-se duas

lógicas na organização do espaço agrário e, portanto, nas relações com as cidades,

principalmente as médias e pequenas, uma lógica histórica, que tem sua base nos ciclos

da natureza, nas condições naturais locais, no tempo lento e na produção para o

consumo e, uma lógica modernizadora, que organiza o espaço, de modo que o local seja

articulado com os circuitos espaciais globalizados, a partir de imposições de caráter

ideológico e de mercado. (ELIAS, 2006).

A Agroecologia tem sua produção baseada nos ciclos da natureza, considera o saber

tradicional, a cultura, os costumes e as especificidades locais. Ela se fundamenta na

produção de alimentos livres de insumos químicos, não apenas se preocupando com

quem produz, mas também respeitando o consumidor que adquire seus produtos.

De acordo com Marafon (2011), configuram-se novas relações entre campo e cidade.

Coexiste uma variedade de atividades no campo que decorrem da ação dos pequenos

agricultores, os quais são os maiores produtores de alimentos, que traçam criativas

estratégias para se manter no campo e sobreviver. Na contemporaneidade, há uma

enorme diversidade de sujeitos sociais no campo, são assalariados, parceiros,

trabalhadores, grandes e pequenos proprietários, os sem-terra, pessoas que vêm das

cidades para desempenhar atividades não agrícolas, entre outros. Esses sujeitos, através

de seu trabalho e de sua cultura, materializam no espaço rural uma ampla diversidade de

objetos e ações, tornando o campo bastante complexo.

Desta forma, Marafon (2011) aponta que o campo brasileiro é fortemente marcado pelo

agronegócio, com base na biotecnologia e no pacote imposto pela Revolução Verde,

mas também pela agricultura familiar. Esta, é marcada pela enorme gama de variações

no território brasileiro, seja por níveis tecnológicos diferenciados, estratégias de

sobrevivência para se manter no campo ou pela luta dos movimentos sociais pelo acesso

a terra. Sendo assim, o campo brasileiro pode ser caracterizado pelas suas marcas

principais, os complexos agroindustriais (CAIs), a produção familiar, a luta pela terra e

as relações que estabelece com a cidade.

O complexo agroindustrial incorpora uma vasta extensão de terras, geralmente

mecanizadas. Sua produção é voltada para a exportação, ou seja, são desenvolvidos a

partir da introdução da lógica capitalista no campo, que transforma a produção agrícola

em agronegócio. Para produzir alimentos de grande demanda, como laranja, café, cana-

de-açúcar, milho e soja, tratores, colheitadeiras, insumos químicos e sementes

transgênicas foram incorporados ao processo produtivo. Os complexos agroindustriais

“[...] formam uma rede que possibilita a produção em bases modernas, pois, na

atualidade, as empresas estabelecem conexões no território, de forma a atuarem em

todas as áreas de produção e comercialização dos produtos agrícolas.” (MARAFON,

2011, p. 159).

O Estado tem papel fundamental no processo de expansão dos complexos

agroindustriais, através do financiamento da produção, de pesquisas, e na implantação

de uma logística que permita a circulação dos produtos de origem agropecuária no

território. Porém, conforme já citado, além da produção convencional, moderna e

integrada aos mercados globalizados, há no meio rural brasileiro a expressiva presença

da produção de base familiar, desenvolvida em pequenas propriedades, que apresenta

dificuldade em acessar o crédito para a produção. Desta forma, em práticas alternativas

como no caso da agroecologia, boa parte das sementes utilizadas, são crioulas, ou seja,

provém da própria propriedade ou de outros agricultores, não tendo notas fiscais para

comprovar a aquisição, o que impede o acesso ao crédito e, por conseguinte, o seguro da

lavoura.

Com estas e outras dificuldades para se reproduzir e sobreviver, a produção familiar

apresenta características diferenciadas, como a diversificação da produção e o trabalho

em tempo parcial, o qual possibilita a redução da jornada de trabalho no campo. Desta

forma, membros da família podem desenvolver outras atividades fora da propriedade

para complementar a renda familiar, caracterizando a pluriatividade, com diferentes

fontes de renda que contribuem para geração de empregos, principalmente em

atividades não agrícolas, reduzindo a migração campo-cidade e estreitando as relações

entre o rural e o urbano.

Marafon (2011) também aponta que a maior parte das mudanças ocorridas no espaço

rural da agricultura familiar, pode ser observada em pequenas propriedades não

incorporadas aos complexos agroindustriais, ou seja, ao modelo hegemônico. Essas

mudanças correspondem à utilização das pequenas propriedades para áreas de lazer,

hotéis, pousadas, sítios de recreação e outros, que atraem as populações urbanas e geram

empregos aos pequenos proprietários rurais, possibilitando-os exercer outras atividades,

além das agrícolas.

Nesses espaços também ocorre o incentivo a práticas agroecológicas e alternativas,

tornando o espaço rural revalorizado pela maior preservação da natureza, o que se torna

uma mercadoria a ser consumida, sobretudo pela população de origem urbana. Através

da implementação de infra-estrutura de transporte e comunicação pelo poder público, o

acesso a esse rural passa a ser facilitado. A circulação de pessoas, mercadorias, capital,

informações e o exercício de atividades não agrícolas, aumentam os fluxos entre o

urbano e o rural.

Desse modo, a partir da compreensão de que as maiores mudanças no campo se dão na

pequena propriedade através do trabalho de agricultores familiares, principais sujeitos

que possibilitam a concretização da Agroecologia, buscaremos no próximo item

conceituá-la, assinalando sua relação com o campo e a cidade.

Agroecologia e a relação campo-cidade

Segundo Gliessman (2001), nos anos 1930, alguns ecologistas propuseram o termo

“Agroecologia” para designar a Ecologia aplicada à agricultura. Para o autor, a

Agroecologia é uma ciência que estabelece princípios ou direções, para que se

desenvolvam sistemas agrícolas sustentáveis do ponto de vista econômico e ambiental.

Gliessman define a Agroecologia como uma fusão da Agronomia com a Ecologia, e

afirma que ela se constitui uma ciência. Seguindo o conceito de desenvolvimento

sustentável, o autor coloca que a agroecologia proporciona o conhecimento e os

métodos necessários para desenvolver uma agricultura ambientalmente correta, que

pode ser altamente produtiva e economicamente viável.

Segundo Caporal (2008), foi nos anos 1980 que a Agroecologia passou a ter um

enfoque científico, iniciado com a tentativa de mostrar novas formas de integrar a

Agronomia com a Ecologia. Logo em seguida, ela incorporou a importância de unir o

saber popular, para realizar o manejo sobre o ambiente e sobre os recursos naturais nos

processos produtivos agrícolas ou extrativistas. Desta forma, o saber acumulado pelas

comunidades tradicionais ao longo dos anos passou a se articular com o conhecimento

científico e a Agroecologia passa a ser a ciência que articula diferentes conhecimentos

científicos e saberes populares para a busca de mais sustentabilidade na agricultura.

Para Altieri (2009), a disciplina científica que aborda o estudo da agricultura em uma

perspectiva ecológica é a Agroecologia, a qual tem por finalidade analisar os processos

agrícolas de forma interdisciplinar. O enfoque agroecológico considera os ecossistemas

agrícolas como unidades fundamentais de estudo, nas quais os ciclos minerais, as

transformações de energia, processos biológicos e relações socioeconômicas devem ser

considerados e analisados como um todo. Sendo assim, a Agroecologia não se interessa

apenas pela maximização de um determinado componente da produção, mas pela

otimização do agroecossistema como um todo, onde há uma complexa interação entre

pessoas, solo, animais, plantas, etc.

De acordo com Assis e Romeiro (2002), a Agroecologia é entendida como ciência que

busca compreender o funcionamento de agroecossistemas (propriedades agrícolas

compreendidas como ecossistemas, onde ocorrem diversas relações de troca entre

matéria e energia), com o princípio de sustentabilidade das atividades, através da

conservação dos recursos naturais e menor dependência de insumos externos. A

Agroecologia procura inter-relacionar conhecimentos de várias áreas para propor uma

orientação para agricultura que considere as condições ambientais impostas pela

natureza.

No processo de construção da Agroecologia como ciência, foram incorporados

contribuições de vários campos do conhecimento que, de alguma forma nos ajudam a

apreender a crise socioambiental gerada pelos modelos de desenvolvimento e de

agricultura convencionais que se mostram insustentáveis, devido principalmente a

degradação ambiental e a desigualdade social das quais são responsáveis. Porém,

simultaneamente, contribuem para a reflexão e construção de novos desenhos de

agroecossistemas e de agricultura que almejem a sustentabilidade.

Assis e Romeiro (2002) apud Saquet et. al. (2012), apontam que na agricultura orgânica

procura-se produzir alimentos livres de qualquer tipo de insumos químicos e com sabor

original que atenda às expectativas do consumidor. A busca por produtos orgânicos leva

a uma pressão de mercado que favorece a produção com base em altas tecnologias,

externas à propriedade e à monocultura, privilegiando o fator econômico. A prática

eminentemente mercantil pode colocar em risco a sustentabilidade do sistema, pois

costuma desconsiderar o equilíbrio entre o social, o econômico e o ecológico.

Destacamos aqui que a agricultura orgânica, assim como a agroecologia possui um

enfoque ecológico para produção, porém não questiona as relações convencionais do

mercado que intensificam as desigualdades sociais. A agroecologia, por sua vez, é mais

ampla, haja vista que leva em consideração relações socioeconômicas e processos

biológicos em conjunto, procurando compreender o agroecossistema como um todo, ou

seja, as relações entre animais, pessoas, plantas e solo.

Os argumentos em torno da Agroecologia são extremamente plausíveis, pois fortalece a

concepção e as características de autonomia da agricultura familiar, garantido a

sobrevivência das famílias com qualidade de vida. Contudo, a Agroecologia, não pode

ser entendida como uma atividade do agronegócio, onde o agricultor não tem ações

próprias, não participa da tomada de decisões e não utiliza formas de produção

tradicionais. Porém, não se pode ignorar a infiltração do capitalismo no campo, e dizer

que o agricultor não está inserido no mercado, ou que nega o mercado.

De acordo com o exposto, podemos dizer que os agricultores e a Agroecologia, estão

ligados e se relacionam, com o global e o local, com o rural e o urbano, e sua principal

relação campo-cidade se dá através da comercialização e dos consumidores de produtos

agroecológicos e orgânicos, como veremos a seguir.

Comercialização e consumidores de produtos agroecológicos e orgânicos

Com o crescimento das cidades e da população, cresce também o consumo de produtos

oriundos do espaço rural, principalmente de alimentos, como frutas, verduras, legumes e

grãos, os quais no Brasil e, com maior destaque na região sul, com exceção dos grãos,

são produzidos em pequenas propriedades, por agricultores familiares.

A busca pela qualidade de vida aliada a uma alimentação saudável faz com que os

consumidores procurem alimentos livres de agrotóxicos e de procedência conhecida

para o consumo. Entram em cena os produtos agroecológicos, produzidos de forma

diferenciada, por meio de técnicas e manejo da propriedade que não agridem o meio

ambiente e os recursos naturais, objetivando o equilíbrio entre aspectos naturais,

culturais, sociais e econômicos; e os alimentos orgânicos, produzidos sem a utilização

de agrotóxicos, na busca pelo alimento limpo.

Segundo Brandenburg (2002), a produção familiar de alimentos agroecológicos e

orgânicos criou novas formas de comercialização, onde se privilegiou a venda direta ao

consumidor, em feiras, eventos regionais, venda na própria propriedade, entrega em

domicílio e mercados organizados por associações ou cooperativas de produtores

agroecológicos e orgânicos (figura 1). Esse tipo de comércio constrói espaços de

sociabilidade, degustação de produtos, reeducação de hábitos alimentares, difusões de

informações e chega a constituir organizações de consumidores ecológicos que se

diferenciam dos convencionais, quando buscam alimentos livres de resíduos tóxicos e

com selos de garantia e origem regional.

Figura 1 - Feira da Agricultura Familiar em Salto do Lontra – SO/PR.

Fonte: MEIRA, S.G. 2010.

Estas formas de comercialização estreitam os laços entre consumidores, em sua maioria

residentes na área urbana, e agricultores, produtores de alimentos agroecológicos

geralmente residentes no espaço rural. Essa relação não caracteriza uma simples venda,

pois o consumidor passa a conhecer o produtor e a forma que é produzido o alimento

que consome no dia-a-dia, diferente do mercado convencional que limita as informações

do produto ao rótulo que apresenta na embalagem.

Um estudo realizado pelo Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social

- IPARDES (2007) demonstra que no estado do Paraná, as feiras de produtos

agroecológicos e orgânicos, onde são comercializados produtos certificados e não

certificados, é a forma mais expressiva da comercialização direta. Os produtos não

certificados são considerados coloniais e/ou artesanais, porém, não podem ser

comercializados como livres de agrotóxicos. Para que o consumidor tenha garantias

sobre a procedência e a qualidade dos produtos vendidos como orgânicos, faz-se

necessário algum tipo de certificação.

No Brasil, segundo o Decreto 6.323/2007 (Art. 29 § 2), “O Sistema Brasileiro de

Avaliação da Conformidade Orgânica é integrado pelos Sistemas Participativos de

Garantia da Qualidade Orgânica e pela Certificação por Auditoria”. Assim, o Governo

Federal reconhece a certificação por auditoria (majoritária no país e dominada por

algumas empresas), e a certificação participativa (pouco difundida, porém considerada

pelos agricultores e suas entidades representativas, mais justa e menos dispendiosa).

(MEIRA E CANDIOTTO, 2011).

A certificação participativa se dá através de uma organização associativa ou

cooperativa, que assume a responsabilidade pelas atividades de enquadramento e

avaliação da conformidade das unidades atendidas, num Sistema Participativo de

Garantia, do qual fazem parte, produtores, técnicos que dão assistência para produção e,

os consumidores. Deste modo, a certificação é outro fator que acentua a relação campo-

cidade, pois os consumidores são os maiores interessados na validação do produto. Por

isso, fazem parte desde processo, mostrando que as interações ocorrem a partir da

relação entre os indivíduos da área rural e urbana.

Conforme Hespanhol (2008) a comercialização dos produtos agroecológicos e

orgânicos geralmente é local devido à pequena escala de produção, resultando em maior

autonomia do produtor, que pode comercializar seus produtos na comunidade onde

vive, no próprio município e em cidades vizinhas. As vendas realizadas no atacado,

geralmente são ligadas a associações e/ou cooperativas, que conseguem reunir um

volume maior e mais diversificado de produtos, adquirindo um significativo poder para

negociar com as redes varejistas.

Apesar da importância e da viabilidade econômica e social da comercialização direta

dos produtos agroecológicos e orgânicos (através de feiras, na própria propriedade rural,

com entregas em domicílio e em mercados diferenciados organizados por associações

ou cooperativas de agricultores agroecológicos e orgânicos), o escoamento e

comercialização desses produtos vem aumentando nos mercados varejistas. Com o

aumento do interesse dos mercados varejistas, muitos agricultores podem deixar de

abastecer os mecanismos de comercialização direta para direcionar seus produtos para o

mercado.

No entanto, as lógicas da comercialização direta e do mercado varejista, são bem

diferentes e suas consequencias devem ser consideradas na decisão dos agricultores. Ao

estabelecer uma relação com mercados varejistas, há um contrato onde o agricultor se

compromete a entregar certa quantidade de alimentos de forma regular. Assim, ele

acaba priorizando a produção destinada ao mercado, criando uma relação de

subordinação aos interesses dos mercados varejistas. Outro ponto a ser destacado refere-

se ao valor pago ao agricultor e ao preço final do produto para o consumidor, pois o

mercado paga o mesmo valor ou até menos ao agricultor e cobra um valor maior do

consumidor, se comparado com os mecanismos de comercialização direta.

Cabe ressaltar também as empresas que processam os produtos orgânicos e os vendem

para as redes de supermercados. Embora possam manter áreas próprias de cultivo, a

maior parte da produção que essas empresas negociam é procedente de agricultores

familiares, com os quais estabelecem contrato do tipo parceria ou de integração. Esse

aspecto demonstra que mesmo absorvendo a produção agroecológica de agricultores

familiares, a integração destes com as empresas de orgânicos acaba favorecendo a

empresa, pois apesar de garantir ao agricultor o escoamento de sua produção, a maior

parte dos lucros dessa produção fica com as empresas. Além disso, as negociações com

as empresas levam os agricultores a adotarem uma lógica economicista que acaba

aumentando sua subordinação aos mercados e reduzindo a autonomia dos agricultores

familiares agroecológicos.

O mercado de produtos orgânicos e agroecológicos, voltado para a exportação envolve

empresas comerciais que atuam segundo demandas preestabelecidas por compradores

externos e, os agricultores, direta ou indiretamente, através de entidades representativas.

No mercado institucional, os agentes envolvidos são instituições governamentais, desde

as federais às municipais, bem como organizações de agricultores, que destinam seus

produtos para escolas, creches etc. (IPARDES, 2007).

O aumento do interesse e da procura por alimentos orgânicos por parte dos mercados

varejistas, leva alguns agricultores ou associações a fechar contratos ou mesmo acordos

informais de entrega para tais mercados. Essa estratégia acaba prejudicando a relação

direta entre produtor e consumidor, sobretudo para os consumidores, que pagam mais

caro pelos alimentos orgânicos comercializados pelos mercados varejistas. Outro fato a

ser destacado reside na subordinação dos agricultores e suas associações a esses

mercados, principalmente no caso dos contratos firmados.

Para comercializar os alimentos agroecológicos e/ou orgânicos, os mercados varejistas

exigem a identificação e certificação adequada. Porém, ao se adaptar às exigências dos

mercados varejistas, o processo de comercialização dos produtos agroecológicos entra

na lógica ditada por estes. Assim, apesar de se manter ambientalmente correta, a

produção, certificação e comercialização desses alimentos podem deixar de ser

socialmente justa, a partir do momento em que há apropriação do trabalho e dos lucros

dos agricultores pelos mercados.

A aproximação entre produtores e consumidores de alimentos orgânicos é algo

fundamental para o fortalecimento da Agroecologia e da autonomia dos agricultores

envolvidos. A venda direta elimina os intermediários, tornando-se mais vantajosa para

produtores, que acabam tendo mais lucro e uma relação direta com os consumidores de

seus alimentos, bem como para os consumidores, que adquirem produtos com preços

mais baixos do que os ditados pelos mercados e passam a conhecer a lógica da

Agroecologia e a dialogar com os agricultores.

Há uma aproximação entre produtor e consumidor, fato que tende a desencadear

relações de solidariedade, formas de comércio mais justas, melhoria da auto-estima dos

agricultores, compreensão da importância da Agroecologia e da realidade dos

produtores por parte dos consumidores, bem como um maior conhecimento dos

agricultores a respeito dos anseios dos consumidores. Estes fatores mostram de forma

clara a interação de elementos e sujeitos procedentes do campo e da cidade,

evidenciando a relação que há entre o espaço rural e o espaço urbano.

Considerações

O espaço rural é considerado como híbrido, com múltiplas funções, com os complexos

agroindustriais, a produção familiar, atividades agrícolas e não agrícolas, agricultores e

não agricultores que interagem e criam conexões espaciais o tempo todo. Estes sujeitos

participam de uma complexa rede, que envolve tanto elementos rurais, como urbanos e

imprimem uma marca ao espaço rural.

Nosso intuito foi compreender como a Agroecologia se insere nas relações entre o

campo e a cidade, considerando a comercialização e os consumidores de produtos

agroecológicos e orgânicos. A partir da análise exposta, podemos apontar que mesmo

sendo uma alternativa à agricultura convencional, a Agroecologia também sofre

influência do capitalismo infiltrado no campo, acentuando ainda mais a interação entre

o espaço rural e o urbano.

Os agricultores e a Agroecologia estão ligados e se relacionam com o global e o local,

com o rural e o urbano. A principal relação campo-cidade promovida pela agricultura

orgânica e/ou agroecológica, se dá através da comercialização e dos consumidores de

produtos orgânicos, em locais diferenciados e que priorizam a venda direta, onde quem

produz é quem comercializa e portando conhece todo processo de produção. Estas

formas de comercialização favorecem a troca de informações entre produtores e

consumidores de produtos agroecológicos e orgânicos, principais sujeitos da relação

campo-cidade, quando abordada a temática da Agroecologia.

O pouco apoio do Estado e de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de

práticas agroecológicas em pequenas propriedades com mão-de-obra familiar dificultam

as possibilidades de melhorias ambientais, uma vez que a Agroecologia não agride o

meio ambiente, e também sociais, pois preza por melhores condições de vida e

alimentação dos agricultores e consumidores. O incentivo as práticas agroecológicas

poderia ser uma alternativa para diminuir a precarização da vida nas cidades, que não

absorvem o contingente populacional, muitas vezes proveniente de áreas rurais, onde

não há as mínimas condições e garantias para se manter no campo.

Através dos elementos apresentados, concluímos que são as pessoas, em suas relações

cotidianas, os principais atores responsáveis pelas relações que ocorrem das mais

variadas formas entre o campo e a cidade. Contudo, os governos têm fundamental

importância nesta articulação, pois através de políticas publicas de incentivo à

Agroecologia, mais indivíduos poderiam ser produtores e/ou consumidores de alimentos

orgânicos, estreitando as relações campo-cidade de forma com que um complemente o

outro, e não seja visto, ainda por muitas pessoas, como o campo sendo sinônimo de

atraso e a cidade como espaço representado pelo avanço tecnológico, científico e

informacional.

Notas 1 Texto escrito a partir da disciplina “Urbanização e produção das cidades”, ofertada no programa de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - campus de Francisco Beltrão e, ministrada pela professora Dra. Silvia Regina Pereira. 2Na pesquisa de mestrado desenvolvemos o estudo das intencionalidades, territorialidades e temporalidades que caracterizam a agroecologia em Itapejara d´Oeste, Salto do Lontra e Verê (PR), afim de compreendermos os ritmos, similitudes e diferenças presentes na agroecologia praticada em tais municípios do Sudoeste do Paraná, os quais, possuem experiências na produção agroecológica, geralmente considerada como atividade complementar, baseada nas pequenas unidades de produção rural com mão-de-obra familiar, análoga a agricultura praticada na região.

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