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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS UNICAMP INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS IFCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CRISTINA AMARO VIANA MEIRELES Ricoeur e a consciência de si: uma análise à luz de algumas ressonâncias do pensamento de Jean Nabert Campinas SP 2016

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

    CRISTINA AMARO VIANA MEIRELES

    Ricoeur e a consciência de si:

    uma análise à luz de algumas ressonâncias do pensamento de Jean Nabert

    Campinas – SP

    2016

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

    A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

    Professores Doutores a seguir descritos, em seção pública realizada em 28/03/2016,

    considerou a candidata CRISTINA AMARO VIANA MEIRELES aprovada.

    Prof.ª Dr.ª Jeanne Marie Gagnebin (Orientadora)

    Universidade Estadual de Campinas - SP

    Profº Dr. Hélio Salles Gentil (Membro)

    Universidade São Judas Tadeu - SP

    Profº Dr. Ivan Domingues (Membro)

    Universidade Federal de Minas Gerais - MG

    Profº Dr. Jean-Luc Amalric (Membro)

    Université de Montpellier - França

    Profº Dr. Noeli Dutra Rossatto (Membro)

    Universidade Federal de Santa Maria - RS

    A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de

    vida acadêmica da aluna.

  • Aos meus pais, Sebastião e Vilma, meu ponto de

    partida; às minhas filhas, Aline e Isabel, a minha

    melhor parte; ao Fernando, a parte que me completa.

  • AGRADECIMENTOS

    À Professora Jeanne Marie Gagnebin, por tudo o que fez por mim e pela minha pesquisa

    durante esses cinco anos. A senhora foi minha orientadora no sentido mais completo da

    palavra. Primeiramente, a senhora me orientou pelo exemplo, tanto do seu brilhante percurso

    acadêmico como da sua conduta de ser humano, por exemplo, quando não considerou um

    empecilho a minha gravidez – desejada, mas não planejada para aquele momento –, logo no

    primeiro ano do doutorado. Em segundo lugar, me orientou no sentido prático, por exemplo,

    quando me sugeriu que eu prestasse o processo seletivo do IFCH, mesmo já tendo sido

    aprovada para cursar doutorado no IEL, e também quando acompanhou de perto todos os

    ajustes relativos à minha permanência em Paris, durante os doze meses do período sanduíche,

    preocupando-se não apenas com minha inserção acadêmica naquele país, mas também com

    meu bem-estar, e do meu esposo e de minhas filhas, que me acompanharam. Em terceiro

    lugar, a senhora me deu a mais sólida orientação acadêmica que eu poderia ter tido, da qual

    posso destacar, a título de exemplo, a decisiva conversa na ANPOF em 2012, quando

    sussurrou em meu ouvido o nome Jean Nabert, bem como após o Exame de Qualificação,

    quando me incitou a focar a pesquisa na filosofia da vontade de Paul Ricoeur. Muito obrigada,

    Professora!

    Aos meus pais, por acreditarem em mim incondicionalmente e por me impulsionarem ao se

    sentirem orgulhosos de mim. Por serem exemplo de força, de coragem, de luta, de

    perseverança e de fé. Por terem me ensinado a não abaixar a cabeça diante das dificuldades e

    a olhar sempre para frente. Além de tudo isso, pelo suporte financeiro durante todo o período

    em Paris, pelas remessas mensais de valores convertidos, complemento fundamental para que

    eu pudesse ter a tranquilidade de me dedicar à pesquisa sem maiores preocupações. Essa

    conquista, sem dúvida, é também de vocês! Muito obrigada!

    Ao Programa de Pós-graduação, pela solidez e nível de excelência incomparáveis, o que

    muito facilitou a condução desta pesquisa. Aos funcionários, em especial à Maria Rita,

    sempre muito atenciosa e disposta a tirar todas as minhas dúvidas ao longo desses anos.

    Obrigada!

    À CAPES, pela bolsa PDSE (Processo BEX 2644/14-2), sem a qual eu jamais poderia ter tido

    a rica experiência de trabalhar no Fonds Ricoeur no IPT (Institut Protestant de Théologie), de

    conhecer o Fonds Nabert no ICP (Institut Catholique de Paris), de frequentar bibliotecas

    públicas diariamente, bem como de conhecer de perto a pesquisa filosófica contemporânea na

    França.

  • Ao Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) da Universidade Federal

    de Alagoas (UFAL), por conceder o afastamento de minhas funções durante dois anos, em

    especial ao Professor José Urbano de Lima Júnior, por prontamente ter aceitado assumir

    minhas disciplinas durante este período, caso fosse necessário. Muito obrigada!

    Ao Professor Johann Michel, primeiramente por ter aceitado ser meu coorientador no período

    de doze meses, por ter generosamente me acolhido na École des Hautes Études em Sciences

    Sociales (EHESS) e no Fonds Ricoeur, pelas suas estimulantes e didáticas palestras e

    intervenções, pela condução magistral dos seminários de pesquisa, nos quais tive a

    oportunidade de prestigiar célebres conferências de Olivier Abel, Jean-Luc Amalric, Luca

    Possati e Claudio Romano, e também pela presteza com relação aos trâmites burocráticos.

    Muito obrigada!

    Aos Professores Hélio Gentil e Jean-Luc Amalric, pelas valiosas críticas, sugestões e

    correções na ocasião do Exame de Qualificação.

    Ao Fonds Ricoeur, por ser um espaço privilegiado para se estudar a filosofia de Paul Ricoeur,

    pela sua vasta e intensa programação ao longo de todo o ano, pela sua estrutura propícia ao

    acolhimento dos estrangeiros, pela organização e agradabilidade do ambiente. Às pessoas que

    não medem esforços para manter as atividades desse centro, em especial Olivier Villemot, por

    estar sempre disposto a colaborar com indicações bibliográficas, e também pela ajuda com

    relação à gramática da língua francesa. Obrigada!

    A Roberta Picardi, David Le-Duc Tiaha e Tamoaki Yamada, pesquisadores do Fonds Ricoeur,

    pelas dicas e sugestões preciosas em relação à filosofia reflexiva francesa e ao pensamento de

    Jean Nabert. Obrigada!

    A Weiny César, meu companheiro brasileiro no Fonds Ricoeur, pela amizade, pelas conversas

    filosóficas, pelas discussões sobre Ricoeur e Nabert, pela escuta atenta de minhas dificuldades

    acadêmicas e de problemas cotidianos, pelos almoços no RU, por ter me apresentado sua

    linda família e alguns de seus amigos na Maison du Brésil. Muito obrigada!

    Aos amigos brasileiros em Paris: Sandra, Matheus, Silene, Valdir, Weiny, Beatriz, Luiza,

    Juliano, Giovana, Malcom, bem como os pequenos Cecília, Isa, Vitória e Maria Clara.

    Descobrir os encantos e as dificuldades de Paris com vocês foi muito mais interessante.

    Obrigada!

    Ao Claudio Reichert, pelos inúmeros textos compartilhados, além das indicações

    bibliográficas e dicas preciosas. Obrigada!

    A Beate Bengard, minha amiga alemã no Fonds Ricoeur, por partilhar seu tema de pesquisa,

    por me ajudar a entender um pouco melhor o Protestantismo na França, pelas conversas sobre

  • cotidianidades mesmo em meio às minhas dificuldades com a língua francesa nesse contexto.

    Obrigada!

    Ao João Botton, pelas conversas virtuais, pela troca de conhecimentos e levantamento de

    questões. Obrigada!

    A Maxwell e Tissiana, Marina e João, Janaína e João Carlos, Mônica e José Urbano, e

    Fernando Marzullo, amigos em Maceió, pelos momentos partilhados de descontração, pelas

    conversas que sempre me permitem abrir os horizontes para outras áreas das Humanidades e

    do conhecimento, além do apoio nos momentos de dificuldade. Obrigada!

    Aos meus pais, Sebastião e Vilma, aos meus irmãos Eduardo e Ricardo, às minhas cunhadas

    Luciane e Daiane, às minhas sobrinhas Maria Eduarda e Elisa, pela presença diária em minha

    vida, notadamente durante o sanduíche: a presença virtual de vocês, muitas vezes, foi o que

    me segurou no real. Minha eterna gratidão!

    Ao meu irmão Ricardo, pelas preciosas explicações e indicações bibliográficas sobre noções

    oriundas da biologia, bem como pelas instigantes discussões acerca dos limites da vida

    consciente. Obrigada!

    À minha filha Aline, pela sua encantadora presença diária em minha vida e por aceitar e

    compreender minhas ausências e também minha eventual indisponibilidade mesmo quando

    presente. Além disso, por ser tão ajuizada e autônoma, o que me permitiu uma dedicação

    maior à pesquisa. Muito obrigada!

    À minha filha Isabel, pela sua doce presença diária em minha vida, e também pelas constantes

    solicitações de minha atenção e cuidados em sua ainda tenra idade, o que me lembrava de que

    existia um mundo para além da minha pesquisa. Muito obrigada!

    Ao Fernando, meu esposo, pelo apoio e compreensão, por ter estado ao meu lado o tempo

    todo nesse percurso, desde o ingresso no doutorado, cuidando de tudo em casa durante as

    cansativas – mas recompensadoras – viagens semanais de Maceió a Campinas para cumprir

    créditos em disciplinas, e depois, no último ano, período da intensificação da escrita, por

    assumir novamente a dianteira na organização cotidiana. Além disso, pelas inúmeras

    conversas filosóficas, pelo interesse no tema da minha pesquisa e nos autores escolhidos,

    pelas confrontações e problemas levantados, além das sempre muito precisas explicações dos

    conceitos bergsonianos que vez ou outra eu precisei encarar. Obrigada!

    Por fim, ao Sidney Wanderley, pela cuidadosa revisão gramatical, ortográfica e de estilo.

    Obrigada!

  • "Seul un bond, celui par lequel Achille d'un seul coup dépasse la

    tortue, un bond effectif et non pensé ni sans cesse divisé par la

    réflexion, peut rompre la marche immobile de la réflexion e sa

    tristesse."

    Somente um salto, aquele pelo qual Aquiles subitamente ultrapassa a

    tartaruga, um salto efetivo e não pensado, nem incessantemente

    dividido pela reflexão, pode romper o caminhar imóvel da reflexão e

    sua tristeza.

    Paul RICOEUR, Le volontaire et l’involontaire, p. 243.

    "Seul le sentiment, par son pôle d'infinitude, m'assure que je peux

    'continuer mon existence dans' 1'ouverture du penser et de l'agir"

    Somente o sentimento, por seu polo de infinitude, me garante que eu

    posso 'continuar minha existência na' abertura do pensar e do agir.

    Paul RICOEUR, L'homme faillible, p. 188.

  • Ricoeur e a consciência de si: uma análise à luz de algumas ressonâncias

    do pensamento de Jean Nabert.

    Cristina Amaro Viana Meireles

    RESUMO

    Este trabalho consiste num estudo da noção de consciência de si a partir da Filosofia da

    Vontade de Paul Ricoeur (1913-2005). Buscamos compreender as elaborações do jovem

    Ricoeur atentando para as influências do (e confluências com o) pensamento de Jean Nabert

    (1881-1960), um expoente da filosofia reflexiva francesa a quem o próprio Ricoeur conferiu

    um lugar de destaque entre suas principais referências teóricas. No Capítulo 1, apresentamos

    os contornos da problemática, indicando que nosso ponto de partida é a compreensão de que a

    consciência de si é uma apropriação significativa que o homem faz de si mesmo. Isto feito,

    buscamos investigar o que é essa apropriação e como ela se efetua, por meio da exploração de

    quatro de suas dimensões. A primeira dimensão é a reflexiva, e é abordada no Capítulo 2.

    Nesse Capítulo, exploramos o papel constitutivo que o ato de reflexão exerce sobre a

    consciência de si, o que encaminhou para uma discussão acerca da noção de interioridade da

    qual se pode falar numa filosofia reflexiva. Nesse Capítulo 2, as principais obras estudadas

    são Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau (1933), de

    Ricoeur, e o artigo “La philosophie réflexive” (1957), de Nabert. A segunda dimensão

    investigada é a ética, e é abordada no Capítulo 3. Nesse Capítulo, nos questionamos se o ato

    de reflexão que inaugura a consciência de si é um ato livre. A noção de voluntário é

    enfrentada nesta parte, bem como um questionamento sobre o exato papel da razão no ato

    livre que caracteriza a consciência de si. Nesse Capítulo 3, as principais obras estudadas são

    Le volontaire et l’involontaire (1950), de Ricoeur, e L’expérience intérieure de la liberté

    (1924), de Nabert. A terceira dimensão explorada é a ontológica, e é abordada no Capítulo 4.

    Nesse ponto, buscamos ampliar a compreensão do ser desse sujeito que efetua o ato livre de

    reflexão. Nessa parte é explorada a ideia de que o ser desse sujeito que livremente se apropria

    reflexivamente de seus atos de pensamento – constituindo uma consciência de si – é finito,

    mas, ao mesmo tempo, contém em si uma dimensão de infinitude intransponível. Essa

    compreensão gera uma questão que impõe um desvio necessário: meditar sobre o papel

    desempenhado pela dimensão infinita na constituição da consciência de si. Nesse Capítulo 4,

    as principais obras estudadas são L'homme faillible (1960), de Ricoeur, e Éléments pour une

    Éthique (1943), bem como Essai sur le mal (1955), ambas de Nabert. A quarta dimensão

    investigada é a hermenêutica, e é abordada no Capítulo 5. Trata-se de um caminho necessário

    no curso da pesquisa que se delineou, já que a apreensão da infinitude que constitui o sujeito

    da reflexão só poderia ser interpretativa. A análise do testemunho enquanto veículo da

    compreensão da infinitude que constitui a consciência de si é o guia deste Capítulo. Nesse

    Capítulo 5, as principais obras estudadas são o artigo “L‟herméneutique du témoignage”, de

    Ricoeur, e a obra póstuma Le désir de Dieu (1966), de Nabert.

    PALAVRAS-CHAVE

    Consciência de si. Filosofia reflexiva francesa. Liberdade e consciência. Causalidade da

    consciência. Afirmação originária. Testemunho do absoluto.

  • Ricoeur et la conscience de soi: une analyse au regard de quelques résonances

    de la pensée de Jean Nabert.

    Cristina Amaro Viana Meireles

    RÉSUMÉ

    Ce travail est une étude de la notion de conscience de soi autour de la Philosophie de la

    Volonté de Paul Ricoeur (1913-2005). Nous cherchons à comprendre les élaborations du jeune

    Ricoeur en prenant en considération les influences de (et les confluences avec) la pensée de

    Jean Nabert (1881-1960), un représentant de la philosophie réflexive française à qui Ricoeur

    lui-même a donné une place prépondérante parmi ses références théoriques principales. Le

    Chapitre 1 présente les contours du problème; dans cette partie, nous indiquons notre point de

    départ, à savoir la compréhension selon laquelle la conscience de soi est une appropriation

    significative que l‟homme fait de soi-même. Ensuite, nous recherchons ce qu‟est cette

    appropriation même, qu‟est-ce que c‟est et comment elle s‟effectue, ce que nous essayons de

    faire par l‟exploration de quatre de ses dimensions. La première dimension est la réflexive, et

    elle est abordée dans le Chapitre 2. Dans ce chapitre, nous étudions le rôle constitutif que

    l‟acte de réflexion exerce sur la conscience de soi, ce qui mène à une discussion sur la notion

    d‟intériorité dont on peut parler dans le cadre d‟une philosophie réflexive. Dans ce Chapitre 2,

    les principaux ouvrages étudiés sont Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez

    Lachelier et Lagneau (1933), de Ricoeur et l‟article “La philosophie réflexive” (1957), de

    Nabert. La deuxième dimension, objet de notre recherche, est l‟éthique, abordée dans le

    Chapitre 3. Dans ce chapitre, nous nous demandons si l‟acte de réflexion qu‟inaugure la

    conscience de soi est un acte libre. La notion de volontaire est traitée dans cette partie; nous

    abordons également un questionnement sur le rôle exact de la raison dans l‟acte libre qui

    caractérise la conscience de soi. Dans ce Chapitre 3, les principaux ouvrages étudiés sont Le

    volontaire et l’involontaire (1950), de Ricoeur et L’expérience intérieure de la liberté (1924),

    de Nabert. La troisième dimension étudiée est l‟ontologique, abordée dans le Chapitre 4. Dans

    cette partie, nous essayons d‟élargir la compréhension de l‟être de ce sujet qui effectue l‟acte

    libre de réflexion. Nous étudions l‟idée selon laquelle l‟être du sujet qui, de façon totalement

    libre, s‟approprie réflexivement ses propres actes de pensée – et ainsi constitue une

    conscience de soi – est fini, mais que, en même temps, son être contient une dimension

    d‟infinitude insurmontable. Cette compréhension produit une question qui impose un

    nécessaire détour: réfléchir sur le rôle de la dimension infinie dans la conscience de soi. Dans

    ce Chapitre 4, les principaux ouvrages étudiés sont L'homme faillible (1960), de Ricoeur, et

    Éléments pour une Éthique (1943), ainsi que l‟Essai sur le mal (1955), tous deux de Nabert.

    La quatrième dimension objet de notre recherche est l‟herméneutique, abordée dans le

    Chapitre 5. Il s‟agit d‟un chemin devenu nécessaire lors du parcours de notre recherche car

    l‟appréhension de l‟infinitude constitutive du sujet de la réflexion ne peut être

    qu‟interprétative. L‟analyse du témoignage comme véhicule de la compréhension de

    l‟infinitude constitutive de la conscience de soi est le guide de ce Chapitre. Dans ce Chapitre

    5, les principaux ouvrages étudiés sont l‟article “L‟herméneutique du témoignage”, de

    Ricoeur, et l‟ouvrage posthume Le désir de Dieu (1966), de Nabert.

    MOTS-CLÉS

    Conscience de soi. Philosophie réflexive française. Liberté et conscience. Causalité de la

    conscience. Affirmation originaire. Témoignage de l‟absolu.

  • Ricoeur and the self-consciousness: an analysis in view of some resonances

    of Jean Nabert’s thought.

    Cristina Amaro Viana Meireles

    ABSTRACT

    This work consists in a study of the notion of self-consciousness from the Philosophy of the

    will, by Paul Ricoeur (1913-2005). We have tried to understand the young Ricoeur‟s

    elaborations paying attention to the influences of (and confluences with) the thought of Jean

    Nabert (1881-1960), an exponent of the French Reflexive Philosophy school, for whom

    Ricoeur himself has assigned a prominent place among his main theoretical references.

    Chapter 1 presents the contours of the issue; in this part, we indicate our starting point,

    namely the assumption according to which self-consciousness is a significant appropriation

    that a human being makes of himself. Afterwards, we proceed to investigate what that

    appropriation is, and how it operates, by exploring four of its dimensions. The first dimension

    is the reflexive one, and it is approached in Chapter 2. In this Chapter, we explore the

    constitutive role that the act of reflection plays on the self-consciousness, what has forwarded

    us to a discussion about the notion of interiority as a subject of the Reflexive Philosophy. In

    this Chapter 2, the main works studied are Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu

    chez Lachelier et Lagneau (1933), by Ricoeur, and the article “La philosophie réflexive”

    (1957), by Nabert. The second dimension investigated is the ethical one, and it is approached

    in Chapter 3. In this Chapter, we raise the following question: is the act of reflection that

    inaugurates self-consciousness a free act? The notion of voluntary is faced in this part, as well

    as an interrogation about the exact role played by reason on the free act that characterizes

    self-consciousness. In this Chapter 3, the main works studied are Le volontaire et

    l’involontaire (1950), by Ricoeur, and L’expérience intérieure de la liberté (1924), by Nabert.

    The third dimension that we investigate is the ontological one, and it is approached in Chapter

    4. In this point, the aim is to further our understanding of this being of this subject that

    accomplishes the free act of reflection. In this part, we explore the idea according to which the

    being of this subject that freely appropriates reflexively of his own acts of thought – and this

    way constitutes a self-consciousness – is finite, but, at the same time, contains an

    insurmountable dimension of infinity. This understanding results in a question that imposes a

    necessary deviation: to consider the role played by the infinite dimension in the constitution

    of self-consciousness. In this Chapter 4, the main works studied are L'homme faillible (1960),

    by Ricoeur, and Éléments pour une Éthique (1943), as well as Essai sur le mal (1955), both

    by Nabert. The fourth dimension investigated is the hermeneutic one, and it is approached in

    Chapter 5. This is a necessary path in the line of research that has outlined, inasmuch the

    vision of infinity that constitutes the subject of reflection could only be interpretative. The

    analysis of testimony as a vehicle of the understanding of infinity that constitutes the self-

    consciousness is the guide of this Chapter. In this Chapter 5, the main works studied are the

    article “L‟herméneutique du témoignage”, by Ricoeur, and the posthumous work Le désir de

    Dieu (1966), by Nabert.

    KEYWORDS

    Self-consciousness. French Reflexive Philosophy. Freedom and consciousness. Causality of

    consciousness. Originary affirmation. Testimony of the absolute.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    Obras de RICOEUR:

    VI - Le volontaire et l'involontaire.

    HF - L'homme faillible.

    MR - Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau.

    NA - Négativité et affirmation originaire.

    SA - Soi-même comme un autre

    Obras de NABERT:

    EE - Éléments pour une Éthique.

    EL - L’expérience intérieure de la liberté.

    EM - Essai sur le mal.

    dD - Le désir de Dieu.

    DD - Le divin et Dieu.

    PR - La philosophie réflexive.

  • SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 15

    2. DIMENSÃO REFLEXIVA DA CONSCIÊNCIA DE SI ............................................ 27

    2.1. O que é reflexão? ............................................................................................................. 28

    2.1.1. Reflexão como ato ........................................................................................................ 32

    2.1.2. Sobre o “objeto” da reflexão ........................................................................................ 37

    2.2. A filosofia reflexiva ......................................................................................................... 42

    2.2.1. Sujeito e conhecimento verdadeiro de si ...................................................................... 44

    2.2.2. Reflexão e reflexão filosófica ....................................................................................... 54

    2.2.3. Filosofia reflexiva enquanto método ............................................................................ 64

    2.2.4. Filosofia reflexiva enquanto doutrina ........................................................................... 70

    3. DIMENSÃO ÉTICA DA CONSCIÊNCIA DE SI ........................................................ 75

    3.1. Liberdade não é livre-arbítrio .......................................................................................... 84

    3.2. Uma noção de liberdade que convive com determinações .............................................. 92

    3.2.1. Motivo e valor ............................................................................................................. 93

    3.2.2. O lugar da razão na deliberação .................................................................................. 110

    3.2.3. Da deliberação à decisão: nem continuidade previsível, nem descontinuidade

    aleatória ................................................................................................................................ 148

    3.3. Determinação de si: a importância da liberdade para a consciência de si .................... 159

    4. DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA CONSCIÊNCIA DE SI ...................................... 168

    4.1. Objetividade e objetivação ............................................................................................ 171

    4.1.1. A finitude ................................................................................................................... 174

    4.1.2. A negação ................................................................................................................... 181

    4.2. Afirmação originária ..................................................................................................... 190

    4.2.1. Nabert e Ricoeur: filósofos da afirmação ................................................................... 190

    4.2.2. Afirmação originária e absoluto ................................................................................. 197

    4.2.3. Desejo, esforço e síntese humana................................................................................ 224

    4.3. Falibilidade e mal .......................................................................................................... 253

    4.3.1. A segunda negatividade: culpa, fracasso, solidão ...................................................... 254

    4.3.2. Consciência do mal e consciência de si....................................................................... 272

    4.3.3. Sentimento: a síntese do thumos (coração) ................................................................ 285

    5. DIMENSÃO HERMENÊUTICA DA CONSCIÊNCIA DE SI ................................ 292

    5.1. A compreensão .............................................................................................................. 293

    5.2. O testemunho.................................................................................................................. 303

    5.3. Da filosofia reflexiva à hermenêutica ............................................................................ 313

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 323

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 329

    A. Obras de Ricoeur e de Nabert .......................................................................................... 329

    B. Obras sobre Ricoeur e sobre Nabert ................................................................................ 331

    C. Obras sobre a filosofia reflexiva francesa ........................................................................ 335

    D. Obras de referência geral ................................................................................................. 336

  • 15

    1. INTRODUÇÃO

    Este trabalho versa sobre um tema filosófico específico: a consciência de si. Contudo,

    esta afirmação diz muito pouco, pois o que este assunto tem de importante, tem de amplo:

    grande parte da história da filosofia poderia ser lida como um conjunto de diversas

    abordagens da consciência de si. A começar pela modernidade, temos em Descartes (1596-

    1650) o sujeito racional como solo seguro do conhecimento verdadeiro1; em Spinoza (1632-

    1677), a alma e o corpo humanos como modos da verdadeira substância que é Deus2; em

    Leibniz (1646-1716), o ego como uma mônada3; em Hume (1711-1776), o eu como uma

    ilusão criada pela memória4. Na contemporaneidade, a lista só faz crescer: em Kant (1724-

    1804), a limitação das possibilidades do conhecimento humano5; em Hegel (1770-1831), o

    sujeito é considerado como um dos vários momentos de um espírito absoluto que se

    desenvolve ao longo da História6; em Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900) e Freud

    (1856-1939) – os assim chamados “mestres da suspeita” –, temos a postulação da existência

    de uma consciência falsa, proveniente de uma compreensão equivocada da estrutura

    (econômico-social para o primeiro, moral para o segundo, pulsional para o terceiro)

    subjacente à nossa consciência7; em Kierkegaard (1813-1855) e Heidegger (1889-1976) – ao

    menos o de Ser e tempo –, a existência como categoria primeira de nosso ser: seja enquanto

    um não-ser que busca o ser atravessando os estágios hierárquicos da existência (estético,

    ético, e, finalmente, religioso), no primeiro8, seja enquanto um dasein que realiza seu ser

    projetando-se em direção às suas possibilidades futuras, no segundo9.

    Se formos um pouco mais concessivos, apesar da grande quantidade de afirmações em

    contrário, poderemos encontrar autores defendendo que o tema da consciência de si já estaria

    presente não só em filósofos da Idade Média, como também em clássicos da filosofia antiga

    grega. Em filósofos da Antiguidade tardia e do Medievo ligados ao Cristianismo, poder-se-ia,

    1 Cf., por exemplo, SILVA, Franklin L. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993,

    (Coleção Logos). 2

    Cf., por exemplo, REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volume 4: de Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus, 2005. 3 Cf., por exemplo, HAMLYN, David W. Metaphysics. Cambridge: CUP, 1984.

    4 Cf., por exemplo, QUINTON, Anthony. Hume. São Paulo: Editora Unesp, 1999 (Coleção Grandes Filósofos).

    5 Cf., por exemplo, FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três “críticas”. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

    6 Cf., por exemplo, NÓBREGA, Francisco P. Compreender Hegel. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

    7 Cf., por exemplo, SCOTT-BAUMANN, Alison. Ricoeur and the hermeneutics of suspicion. New York: Continuum,

    2009. 8 Cf., por exemplo, BLANC, Charles Le. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. (Coleção Figuras do

    Saber). 9 Cf., por exemplo, CASANOVA, Marco A. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009.

  • 16

    por exemplo, defender a existência de uma ideia de consciência de si enquanto incompletude,

    a qual se realizaria numa consciência divina: por exemplo, em Agostinho (354-430) a análise

    da miséria humana pelo viés de sua inserção temporal, em contraposição à eternidade que só

    Deus pode usufruir10

    ; e em Tomás de Aquino (1225-1274), a ideia de que o ser das criaturas

    finitas é determinado pela sua participação no ser mesmo (que é Deus)11

    . Na Antiguidade, a

    tarefa apresenta-se um pouco mais árdua, mas ainda assim existe a possibilidade de se

    aproximar o humanismo racional de Sócrates (469/470-399 a.C.) e Platão (428/427-348/347

    a.C.) a uma primeira aparição do que mais tarde viria a ser uma noção de consciência de si12

    .

    Se a consciência de si é o tema sobre o qual discorre este trabalho, é preciso, em

    primeiro lugar, esclarecer três coisas bastante básicas. Primeiro: o que estamos chamando de

    consciência de si; segundo: quais as questões filosóficas importantes para a aproximação

    proposta; terceiro: qual a abordagem escolhida para investigar o tema tal como circunscrito. A

    expressão “consciência de si” é densa, pois envolve dois conceitos filosóficos dificílimos, e a

    complexidade aumenta justamente pelo fato de que tais noções fazem parte de nosso léxico

    corriqueiro, de nossa vida cotidiana, de modo que o costume e o hábito recobrem a própria

    dificuldade de definição existente tanto em relação à “consciência” como em relação a “si”,

    fazendo com que, frequentemente, tenha-se a equivocada impressão de que o sentido de tais

    termos é praticamente autoevidente. Apesar disso, a busca por uma clarificação dos conceitos

    em questão tem sido empreendida com afinco em algumas subáreas importantes da filosofia,

    tais como a Fenomenologia, a Filosofia da Mente, a Filosofia da Ação, a Ética e a

    Hermenêutica. Podemos traçar um quadro panorâmico bem genérico apenas com o intuito de

    ilustrar algumas das inúmeras direções que a investigação pode seguir em cada uma dessas

    subáreas.

    10

    Cf., por exemplo, NOVAES, Moacyr. Eternidade em Agostinho, interioridade sem sujeito. In: Revista Analytica, v. 9, n. 1, 2005, p. 93-121. 11 Cf., por exemplo, REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volume 2: Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus, 2003. 12

    Este é, aliás, o argumento de Jean NABERT em Étude critique: “Le progrès de la conscience dans la philosophie occidentale”, de M. Léon Brunschvicg. In: Révue de Métaphysique et de Morale. Paris, 1928, p. 219-275. “Quand commence le problème moderne de la conscience? Il recommence, certes, avec Montaigne et avec Descartes, lorsque l’autonomie de la conscience redevient solidaire de la vérité de la science. Mais ne fait-on par là que rejoindre, grâce à une mathématique et à une physique nouvelles, l’humanisme rationnel de Socrate et de Platon? Si le problème du progrès de la conscience a fait son entrée dans la philosophie occidentale avec la naissance de cet humanisme, n’a-t-il pas fait une autre entrée lorsque le christianisme a passé d’Orient en Occident?” (p. 237).

  • 17

    Fenomenologia Fil. da Mente Fil. da Ação Ética Hermenêutica

    Si Imanente Indivíduo Agente Pessoa Sujeito

    Consciência

    Transcendente, intencional

    Conhecimento, experiência interior

    Ação voluntária, ascrição

    Responsabilidade, liberdade, valores

    Memória, compreensão,

    projeto

    É evidente que este esquema não tem nenhuma pretensão de reduzir a complexidade

    da variedade e das originalidades das pesquisas que se realizaram e se realizam sobre o tema,

    no Brasil e no mundo. Trata-se apenas de um esforço inicial indicativo justamente da gama de

    possibilidades de caminhos que se abrem logo de saída a todo aquele que tenha se proposto

    buscar compreender a especificidade da consciência de si. Assim, com o quadro acima, não

    pretendemos dizer que toda pesquisa sobre a consciência de si no âmbito da Ética deve

    necessariamente buscar clarificar este conceito em consonância com o da pessoalidade, nem

    que a consciência em Ética só pode ser concebida nos limites das indagações sobre a

    responsabilidade, a liberdade e os valores. Ao invés disso, quisemos apenas indicar que, se se

    busca uma aproximação da temática do si a partir de indagações como “o que significa ser

    pessoa?”, muito provavelmente estamos no campo da Ética, e, nesse sentido, um caminho

    produtivo costuma ser o de buscar compreender a consciência atrelada às questões sobre a

    responsabilidade, a liberdade ou os valores13

    . É evidente que posições divergentes e mesmo

    opostas quanto à consciência de si podem ser encontradas coabitando no terreno comum da

    Ética; por exemplo, abordagens que estariam de acordo com uma acepção do si como pessoa,

    mas que enxergaram problemas na ligação tacitamente admitida entre consciência e

    responsabilidade14

    .

    Semelhantemente, se nos aproximamos da ideia de si a partir das vivências imanentes,

    indagando pelo seu significado, há indícios fortes para supor que tal perspectiva encontraria

    resultados promissores no campo da Fenomenologia, em que se busca clarificar a ideia de

    consciência pautando-se permanentemente por um ponto de vista transcendental15

    . Sem

    querer adentrar na problemática das inúmeras ramificações que a fenomenologia sofreu desde

    13

    Para mencionar apenas dois exemplos: Paul RICOEUR, Soi-même comme un autre; Hans JONAS, O princípio responsabilidade. 14

    Veja-se, por exemplo, Arthur SCHOPENHAUER, O livre-arbítrio. 15

    Nesse domínio, ilustramos com duas grandes obras clássicas: Edmund HUSSERL, Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo; e Jean-Paul SARTRE, L’être et le néant: Essai d’ontologie phénoménologique.

  • 18

    Edmund Husserl (1859-1938), cumpre observar que a ideia mesma de consciência

    transcendental chega a ser problematizada por expoentes da própria fenomenologia16

    .

    No que se refere à segunda coluna, ela planifica uma outra possibilidade de se indagar

    pelo si, em que este é entendido prioritariamente no contexto de sua vida mental privada, em

    princípio acessível a apenas um único indivíduo (ele próprio); consciência, nessa perspectiva,

    pode ser compreendida como o conjunto das vivências particulares que o indivíduo

    experimenta17

    . Esse caráter internalista da consciência, contudo, tem sido alvo de acirrados

    debates no seio mesmo da Filosofia da Mente; por isso cumpre mencionar uma outra vertente,

    a assim chamada externalismo, que propõe compreender a consciência a partir também de

    suas relações com o corpo, com o mundo objetivo e com a cultura18

    .

    A quarta coluna busca ilustrar uma direção de análise da consciência de si no contexto

    da Filosofia da Ação. Sabemos que esta própria conceituação de subárea carece ainda de

    clarificação, sendo muitas vezes entendida como uma ramificação da Filosofia da Mente,

    outras vezes como oriunda de certa junção entre Ética e Filosofia Política. De todo modo,

    nesse âmbito costuma-se aproximar do conceito de si, compreendendo-o como agente, e daí o

    caminho que se abre para investigar a consciência enquanto condição da ação voluntária, que

    prefiguraria aqueles atos que podem ser legitimamente atribuídos a um agente (em

    contraposição às ações reflexas, por exemplo). Este caminho é rico, complexo e abrangente,

    podendo ser identificado mesmo em Aristóteles19

    , e notadamente em Ricoeur20

    .21

    Por fim, a quinta coluna visa ilustrar um caminho em que, para além das propriedades

    mentais, dos traços comportamentais, das implicações morais e do estatuto fenomenológico-

    ontológico, busca-se elucidar o sentido do si a partir do movimento mesmo de

    autocompreensão iniciado por um sujeito. Trata-se da subárea da Hermenêutica, em que o

    trabalho subjetivo de interpretação é considerado como fundamental. A consciência desse si

    16

    Por exemplo, o próprio Paul Ricoeur o faz (Cf. Na escola da fenomenologia). 17

    Seguindo o padrão, mencionamos duas obras-chave desse caminho para o estudo da consciência de si: Thomas NAGEL, What is it like to be a bat?, e David CHALMERS, The conscious mind. Uma outra obra singular digna de nota por buscar compreender a consciência de si no contexto da Filosofia da Mente, mas de maneira afortunadamente associada à Fenomenologia, é a recente La conscience a-t-elle une origine? – Des neurosciences à la pleine conscience: une nouvelle approche de l’esprit, de Michel BITBOL. 18

    Além do clássico The concept of mind, de Gilbert RYLE, mencionamos os Philosophical Essays, de Donald DAVIDSON. 19

    ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V, São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores) 20

    RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. 21

    Mencionamos, contudo, duas obras-chave da Filosofia da Ação entendida como um desenvolvimento da Filosofia da Mente: Persons and bodies, de Lynne R. BAKER, e Dynamics in action: Intentional behavior as a complex system, de Alicia JUARRERO.

  • 19

    entendido como um sujeito que busca incessantemente interpretar o sentido de sua existência

    passa a ser ligada à ideia de compreensão, no sentido amplo que engloba tanto o trabalho de

    memória, como também o de uma projeção rumo às possibilidades futuras22

    .

    Dado o enorme leque de possibilidades de se conceber o si, a consciência e a

    consciência de si – cuja amplitude tentamos apenas sumariamente ilustrar –, cumpre agora

    tentar levar a cabo o primeiro dos três esclarecimentos básicos elencados mais acima, ou seja,

    dizer em qual das direções se enquadraria melhor a pesquisa que ora apresentamos. A

    ambição ideal seria poder encontrar uma apreensão do conceito de consciência de si que fosse

    tão ampla e profunda a ponto de poder responder satisfatoriamente às inquietações das mais

    variadas subáreas da filosofia – cujo pequeno conjunto apenas indicamos. É evidente que um

    empreendimento desta natureza seria impraticável, a menos que estivéssemos em condições

    de apresentar uma proposta inovadora, original e autoral. Não é este o caso. Assim sendo,

    operamos uma primeira delimitação da noção de consciência de si a partir de algumas

    inquietações pessoais, decidindo por um caminho que começou a delinear-se por algumas

    recusas, as quais nos levaram a buscar uma concepção de consciência de si como:

    (1) Distinta de uma aproximação preponderantemente empirista: ou seja, recusamos

    partir da associação entre consciência de si e consciência imediata do mundo

    objetivo, segundo as abordagens que a consideram um tipo especial de percepção,

    só que voltada para um “objeto” bastante especial, qual seja a dimensão dita

    “interna” da existência.

    (2) Distinta de uma aproximação preponderantemente racionalista: ou seja, recusamos

    partir da ideia de que consciência de si é fundamentalmente uma compreensão do

    tipo intelectual, em que o foco de análise são as ideias, em detrimento deliberado

    das dimensões afetivas e emocionais da vida psíquica.

    (3) Distinta de uma aproximação preponderantemente psicológica: ou seja, recusamos

    ter de aceitar que os sentimentos e os afetos não podem ser levados em conta senão

    numa aproximação que tenha o foco na psique dos indivíduos considerados

    isoladamente. Em outras palavras, buscamos conceber a consciência de si no seio

    de uma investigação que almeje encontrar elementos universais, próprios da

    investigação filosófica.

    22

    As obras clássicas que indicamos nesse domínio são Ser e tempo, de Martin HEIDEGGER (em particular as seções §31, 32 e 33); e também duas obras de Paul Ricoeur: Temps et récit (em particular o vol. 3) e Soi-même comme un autre.

  • 20

    (4) Distinta de uma aproximação preponderantemente transcendental: ou seja,

    recusamos ter de conceder, de saída, que a consciência concreta que o homem tem

    de si mesmo em sua vida cotidiana é apenas uma ocorrência isolada de algo muito

    mais “essencial” e originário, este sim merecedor de uma investigação sistemática.

    Em outras palavras, buscamos uma compreensão da consciência de si que parta da

    concretude da existência, buscando clarificá-la à luz da conceituação filosófica,

    mas que não se volte contra a concretude nesse percurso de sua clarificação.

    A ideia de consciência de si que buscamos deverá, desse modo, ser delimitada pelo

    constante cuidado para não cairmos em nenhuma dessas quatro direções extremas. Ao lado

    dessa delimitação de caráter negativo, acrescentamos uma delimitação mais positiva,

    explicitando o que esperaríamos de uma conceituação de consciência de si segundo nossas

    inquietações. Assim, buscamos uma noção de consciência de si que possa dar conta de

    explicar:

    (1) Qual é a origem da consciência de si no homem: ou seja, a partir de que momento

    um ser humano passa a perceber-se como fundamentalmente distinto de um mundo

    à sua volta e, além disso, como uma unidade em si mesma. Que permita entender

    também no que consistiria essa distinção em relação ao mundo e aos outros. E, por

    fim, se esse processo de surgimento da consciência de si é algo meramente

    biológico-natural ou se está fundamentalmente associado à dimensão social-

    cultural da vida humana.

    (2) Qual é o exato papel da dimensão ética no aparecimento – e na manutenção – da

    consciência de si: ou seja, em que medida essa apreensão que o homem faz de si

    mesmo enquanto uma unidade distinta do mundo e dos outros implica um

    apreender-se por referência aos valores e à sua vida moral. Que permita explicar o

    que acontece com a consciência de si naqueles momentos da vida de uma pessoa

    em que ela muda radicalmente seu conjunto de valores – por exemplo, uma

    conversão religiosa, uma filiação político-partidária, uma reformulação ideológica

    em suas mais variadas formas.

    (3) Qual é a importância da dimensão narrativa para a consciência de si: ou seja, qual

    é a influência que tem sobre a tomada de consciência de si o ato – tão humano – de

    contar-se a história de si mesmo, encadeando uma narrativa pessoal que pode ou

    não revelar-se numa narrativa pública. Que permita entender a dimensão

    interpretativa da consciência de si, dando conta de articular uma explicação, por

  • 21

    exemplo, do trabalho de luto, de superação, mas também dos casos de não

    superação.

    (4) Qual é a relevância das outras pessoas na constituição e manutenção da

    consciência de si: ou seja, em que medida a consciência de si só chega a se instituir

    mediada pelo contato com a alteridade. Que permita elucidar a dimensão

    intersubjetiva da consciência de si, dando conta de explicar como exatamente a

    visão de outrem pode operar – se é que realmente opera – influências em nossa

    autoimagem, por exemplo.

    Assim sendo, buscamos nesta pesquisa uma noção de consciência de si tão abrangente

    quanto possível, mas cuja abrangência seja embasada numa articulação coesa e sistêmica.

    Parece-nos que semelhante conceituação de consciência de si pode ser encontrada na obra de

    Paul Ricoeur (1913-2005), de modo que buscar compreendê-la e elucidá-la se mostra como

    uma tarefa da mais alta prioridade no contexto de nossas inquietações. Em primeiro lugar,

    cumpre informar que, entre seus 32 livros publicados23

    , nenhum deles traz no título a palavra

    “consciência”, e tampouco a expressão “consciência de si”. Entre os artigos, o quadro é um

    pouco mais animador: dois prefácios versando sobre livros que contêm “consciência” e

    “consciência de si” em seus títulos, e três artigos com a ocorrência de “consciência” no título.

    O primeiro prefácio é de 1957, referente ao livro L’homme et sa raison – tome 1: Raison et

    conscience de soi, de Pierre Thévenaz; o segundo é de 1973, referente ao livro La

    phénomenologie de Merleau-Ponty: Une recherche des limites de la conscience, de Gary B.

    Madison. Quanto aos artigos propriamente, os títulos são os seguintes: La crise de la

    démocratie et de la conscience chrétienne (1947); Phénomenologie de la conscience de

    culpabilité: Essai de pathologie éthique (1983); La crise de la conscience historique et

    l’Europe (1998). Em relação ao conteúdo desses cinco textos, o que estaria em consonância

    mais forte com nosso projeto é o prefácio ao livro de Thévenaz (1913-1955), primeiramente

    por ser o mais específico – trata-se precisamente da consciência de si, e não da consciência

    histórica, moral ou religiosa – que não obstante tangenciam a nossa temática; em segundo

    lugar, por permitir vislumbrar um pouco da teia conceitual na qual Ricoeur costura a noção de

    consciência de si. É evidente que, sendo um prefácio, ele não poderia ir muito além da

    circunscrição já traçada pelo prefaciado; no entanto, o foco nas relações entre consciência de

    23

    A bibliografia completa de Ricoeur pode ser encontrada na página do Fonds Ricoeur na internet: http://www.fondsricoeur.fr/fr/pages/bibliographie.html Acesso em 25/5/2015.

    http://www.fondsricoeur.fr/fr/pages/bibliographie.html

  • 22

    si e reflexão, entre consciência de si e crise – por exemplo – exibe desde cedo alguns dos

    caminhos das preocupações do próprio Ricoeur em relação ao assunto24

    .

    No entanto, é digno de observação que a expressão “consciência de si” e mesmo o

    termo “consciência” são bastante escassos nos títulos da vasta obra de Ricoeur. Assim sendo,

    cumpre dar uma palavra sobre a razão da escolha deste filósofo em nosso empreendimento de

    buscar uma clarificação conceitual do que seja a consciência de si. Seria ele o mais apropriado

    para a pesquisa proposta? Qual é, afinal, a relevância que teve o tema da consciência de si

    para o conjunto da obra do próprio Paul Ricoeur? Se nos for permitido desde já aventar uma

    tese secundária em relação à principal – a qual nem sequer mencionamos, mas do que já

    estamos próximos –, seria justamente a de que toda a filosofia de Ricoeur é uma filosofia da

    consciência, bem entendido e bem sublinhado: no sentido explicado por Jean Lacroix (1900-

    1986), isto é, uma filosofia da tomada de consciência25

    . Assim, se “consciência” e

    “consciência de si” são raros nos títulos das obras ricoeurianas, são abundantes em suas

    reflexões, já que toda vez que conceitos como “si”, “pessoa”, “identidade” e “homem”

    aparecem em seus textos, eles trazem consigo a implicação de uma tomada de consciência. E

    tais termos são abundantes nos textos de Ricoeur, a julgar pela sua ocorrência nos títulos:

    “homem” aparece 18 vezes26

    , “pessoa” consta em oito títulos27

    , “identidade” em sete28

    , “si”

    em seis29

    , além de “indivíduo”30

    , que consta em um título, totalizando quarenta ocorrências ao

    longo de sua obra.

    Assim, para fechar a caracterização do nosso objeto de estudo, trilhamos os passos de

    Ricoeur, isto é, apoiamo-nos na hipótese de que “consciência” é um conceito que só pode ser

    plenamente abarcado levando-se em conta sua íntima relação com o “si”, de modo que

    acreditamos poder dizer que o que estamos chamando de consciência de si é nada mais que a

    24

    As relações entre consciência de si e reflexão serão objeto do Capítulo 2. As relações entre consciência de si e crise serão tratadas no Capítulo 3 (na perspectiva do conflito entre vontade e razão) e também no Capítulo 4 (na perspectiva da desproporção entre finitude e infinitude). 25

    Cf. LACROIX, Jean. Panorama de la Philosophie Française Contemporaine, p. 46, grifos do autor: "En face des philosophies de la conscience se dressent des philosophies de la prise de conscience, comme celle de Spinoza, qui nie d'abord l'arbitraire apparent de la conscience, en tant qu'il est une méconnaisance des motivations cachées, et procède à une sorte de suspension du contrôle de la conscience par quoi le sujet est rendu égal à son esclavage véritable". Interessante observar que a tomada de consciência, em Ricoeur, pode chegar a adquirir mesmo a forma de uma retomada de consciência, como exemplifica o caso da consciência de culpa: "Ainsi, dans la conscience de faute, le futur veut enrôler le passé, la prise de conscience se révèle comme reprise et la conscience se découvre une épaisseur, une densité qui ne seraient pas reconnues par une réflexion seulement attentive à l'élan en avant du projet". (RICOEUR, Paul. HF, p. 33, grifo nosso). 26

    Sendo um livro, 14 artigos e três títulos de livros prefaciados. 27

    Sendo os oito, artigos. Obs.: consideramos, na contagem, também a ocorrência do adjetivo “pessoal”. 28

    Sendo os sete, artigos. 29

    Sendo um livro, quatro artigos e um título de livro prefaciado. 30

    Um artigo.

  • 23

    apropriação significativa que o homem faz de si mesmo, constituindo-se como pessoa. É

    preciso reconhecer, contudo, que dizer que a consciência de si é a autoapropriação

    significativa de si mesmo é muito pouco. No entanto, cremo-nos justificados se for levado em

    conta que esta clarificação é apenas nosso ponto de partida, o que vai permitir, por exemplo,

    indicar a direção para darmos um passo rumo à segunda clarificação elencada mais acima:

    especificar quais são as questões filosóficas importantes no contexto dessa delimitação que

    propomos.

    De modo amplo, cumpre tentar entender como o homem efetua essa apropriação

    significativa de si mesmo e, ademais, o que é exatamente essa apropriação. É nesse sentido

    que elencamos um grupo de quatro questões importantes para a presente aproximação do

    conceito de consciência de si. A primeira questão que se mostra relevante versa sobre a

    reflexão, comumente conhecida como um suposto retorno sobre si mesmo: o que é a reflexão,

    e em que medida ela permite que se faça uma apropriação significativa de si mesmo? Ela é, de

    fato, possível enquanto “retorno” sobre o mesmo? A segunda questão se refere à dimensão

    ética da apropriação significativa de si mesmo: apropriar-se significativamente de si mesmo é

    um movimento de liberdade ou de privação de liberdade? Essa apropriação envolve

    julgamentos morais? Se sim, como se dá o julgamento e a apreciação dos valores nessa

    relação do si ao si-mesmo? A terceira questão versa sobre a natureza ontológica mesma do ser

    que efetua a autoapropriação: que é, no final das contas, o ser desse ente que se apropria

    significativamente de si mesmo? Em que medida a autoapropriação significativa de si mesmo

    contribui para que esse ente se torne pessoa? Por fim, a quarta questão diz respeito ao adjetivo

    “significativo”: como exatamente se dá essa extração do sentido por meio da autoapropriação

    de si mesmo? O sentido é criado, descoberto ou configurado pelo testemunho? Em outras

    palavras, qual é a envergadura da dimensão hermenêutica na autoapropriação de si mesmo?

    Cada uma dessas quatro questões constituirá o núcleo de um Capítulo deste trabalho,

    assim dividido:

    Capítulo 2: Dimensão reflexiva da consciência de si

    Capítulo 3: Dimensão ética da consciência de si

    Capítulo 4: Dimensão ontológica da consciência de si

    Capítulo 5: Dimensão hermenêutica da consciência de si

    O recorte inicial já está assentido: trata-se de como a filosofia de Ricoeur lidou com

    tais questões. Contudo, isto ainda é quase tão amplo quanto o mundo, de modo que é preciso

    efetuar um recorte adicional, com o que chegamos ao terceiro ponto que precisaria ser

    clarificado, elencado mais acima, qual seja o da abordagem escolhida. Como, afinal,

  • 24

    abordaremos a filosofia de Ricoeur de modo a buscar tirar dela o máximo de recursos para

    responder a esse grupo de questões, tendo como objetivo último nada menos que chegar a

    uma melhor compreensão do que seja a consciência de si? O recorte escolhido, nós fixamos,

    primeiramente, de modo cronológico: deter-nos-emos, sobretudo, na obra publicada nas

    décadas de 1950 e 1960, período em que veio à luz a sua Philosophie de la volonté, obra em

    dois tomos, Le volontaire et l’involontaire (sua tese de doutorado publicada em 1950) e

    Finitude et culpabilité (obra publicada em 1960, reunindo dois livros, L’homme faillible e La

    symbolique du mal). Os livros utilizados para a presente pesquisa serão Le volontaire et

    l’involontaire e L’homme faillible. O primeiro será abordado especialmente no Capítulo 3,

    sobre as questões éticas, e o segundo especialmente no Capítulo 4, sobre as questões

    ontológicas. Nos Capítulos das extremidades, uma pequena extrapolação dos limites

    cronológicos precisará ser feita: no Capítulo 2, sobre o tema da reflexão, precisaremos

    retornar um pouco e considerar uma publicação de 1933, um mémoire de juventude de

    Ricoeur sobre a filosofia reflexiva francesa; no Capítulo 5, sobre as questões hermenêuticas,

    precisaremos considerar alguns textos publicados na década de 1970, sobre o tema do

    testemunho.

    Esse recorte cronológico será acrescido de um outro, de caráter metodológico. Trata-se

    de especificar como exatamente leremos a obra de Ricoeur desse período. A escolha feita foi a

    de buscar, dentro dessa delimitação, as ressonâncias do pensamento de Jean Nabert (1881-

    1960), expoente da filosofia reflexiva francesa contemporânea, cuja importância para sua

    filosofia Ricoeur admitiu e sublinhou inúmeras vezes31

    . Se a obra de Ricoeur é vasta, a de

    Nabert é rara: três livros publicados em vida, um livro póstumo (sendo Ricoeur um dos

    editores), e um total de 25 textos (sendo sete artigos e o restante, estudos críticos, prefácios,

    31 Podemos mencionar, como exemplo, a sua primeira coletânea de ensaios sobre hermenêutica, publicada em 1969, O conflito das interpretações (p. 289-304), bem como a segunda coletânea, publicada já em 1986, intitulada Du texte à l´action (p. 25). Podemos mencionar, ainda, a sua autobiografia intelectual, Réflexion faite, publicada em 1995 (p. 30). Estas poucas passagens revelam, ao lado da expressa filiação, que Ricoeur nunca foi um adepto muito bem comportado: em Conflito das interpretações, ele faz uma análise minuciosa das dificuldades implicadas na filosofia reflexiva de Jean Nabert; em Du texte à l’action, ele explora os problemas gerais de toda filosofia reflexiva; e, por fim, em Réflexion faite, ele apresenta diversas ressalvas a esta, notadamente quanto à necessidade de complementá-la com desenvolvimentos da fenomenologia. Quanto aos escritos de Ricoeur sobre Nabert, temos notadamente seis (sendo quatro deles prefácios aos livros de Nabert e dois artigos sobre sua filosofia), além de outros três textos que não fazem referência a Nabert no título, mas cujo conteúdo é estreitamente ligado à clarificação e discussão da obra nabertiana: Négativité et affirmation originaire (1956), L’herméneutique du témoignage (1972), e Emmanuel Levinas, penseur du témoignage (1989).

  • 25

    introduções e relatórios)32

    . Se os textos de Nabert são raros, eles também são densos, como

    bem observaram Ricoeur33

    , Emmanuel Doucy34

    e Ludovic Robberechts35

    .

    Ora, algumas perguntas importantes surgem diante deste recorte. A uma delas é

    preciso, se não responder, pelo menos começar a esclarecer desde esta Introdução: qual é a

    extensão do tema da consciência de si no conjunto das reflexões de Jean Nabert? Podemos

    dizer, com Paule Levert36

    e com Ludovic Robberechts37

    , que ela é imensa. Numa primeira

    aproximação, podemos afirmar que a noção de consciência de si que se pode apreender da

    obra de Nabert atende às nossas inquietações (negativas e positivas) expostas mais acima e,

    além disso, tem grande potencial – evidenciado logo de saída – para ser trabalhada em

    conjunto com aquela oriunda da obra de Ricoeur, já que parte também da pressuposição de

    uma íntima (e intransponível) relação entre consciência e si, a qual mais acima chamamos de

    apropriação significativa de si mesmo, ou simplesmente apropriação, para utilizar a mesma

    terminologia de Nabert38

    .

    32

    Cf. lista completa em LEVERT, Paule. Jean Nabert ou l’exigence absolue, p. 186-188. 33 Cf. RICOEUR, Paul. Préface. In: NABERT, J. Le désir de Dieu: “Les livres de Jean Nabert sont des oeuvres rares; ils sont rares en nombre: outre sept articles de revues, Jean Nabert publia seulement trois livres [...]; mais ce sont surtout des oeuvres rares par densité intérieure; elles sont le fruit d’une sorte de raréfaction de l’écriture ; Nabert créait un livre autant par suppression que par addition: redites et reprises, références historiques et

    considérations annexes, transitions et pauses étaient impitoyablement éliminées”. (p. 7). 34

    Cf. DOUCY, Emmanuel. L’absolu et les valeurs chez Jean Nabert. In: ROBILLIARD, Stéphane; WORMS, Frédéric (dir.) Jean Nabert, l’affirmation éthique. Paris: Beauchesne, 2010, p. 105-130: “*...+ il a publié, de son vivant, trois ouvrages, relativement brefs mais particulièrement denses”. (p. 107). Nesta mesma coletânea, mas num outro artigo, intitulado La pensée du mal chez Jean Nabert (p. 73-101), Doucy afirma a respeito de Essai sur le mal – mas que acreditamos poder estender ao conjunto da obra de Nabert: “Il est vrai que le livre est ardu et qu’il oppose à celui qui veut s’en approprierla leçon une difficulté particulière: il ne requiert pas seulement de son lecteur une certaine agilité intellectuelle jointe à une suffisante capacité d’imagination et d’empathie pour s’ouvrir réellement aux dimensions du problème affronté, mais encore et surtout une patiente attention, une participation active à l’’acte’ et au procès de l’ascèse réflexive qui s’y déploie *...+” (p. 73-74). 35

    Cf. ROBBERECHTS, Ludovic. Essai sur la Philosophie Réflexive. Vol. II: Jean Nabert et après. Namur: Presses Universitaires de Namur, 1974: “Inconnu *…+ parce qu’il est illisible. Non qu’il emploie des mots savants et un vocabulaire ésotérique – la langue de Nabert est un français très classique et son vocabulaire tout au plus kantien – mais chacune de ses phrases contient un monde. Très concrètement: chacune de ses phrases est le résumé de plusieurs autres, voire de plusieurs pages”. (p. 7). 36

    Cf. LEVERT, Paule. Jean Nabert ou l’exigence absolue: “Toute l’oeuvre de Nabert tente de conduire la conscience à se comprendre elle-même et, à partir d’une réflexion sur sa finitude, sur les expériences qui la déchirent et l’aliènent, de la remettre en possession de soi”. (p. 99). 37

    Cf. ROBBERECHTS, Ludovic. Les grandes lignes de la Philosophie de Monsieur Jean Nabert. Bruxelles, 1960: “Nous venons de constater que toute la philosophie de M. Nabert est centrée sur la conscience humaine et, à l’intérieur de celle-ci, sur son exigence infinie”. (p. 364) 38

    Cf. NAULIN, Paul. L’itinéraire de la conscience: Étude de la philosophie de Jean Nabert. Paris: Aubier-Montaigne, 1963: “Dans un cours professé à l’E.N.S. en 1944-1945, Nabert caractérisait celle-ci [a filosofia] comme ‘l’ensemble des operations par lesquelles une conscience prend possession de soi’. C’est ainsi que chacune de ces opérations se révélera comme un moyen de ce que Nabert designe sous le terme d’’appropriation’ où nous paraît s’exprimer l’essentiel de sa pensée et des difficultés qu’elle soulève. Le mot, par lui-même, indique assez la forme du problème: il s’agit, em chaque cas, pour la conscience, de faire sienne une donnée qui apparaissait d’abord comme étrangère, de trouver dans cette expérience l’occasion de son propre développement et d’entrer en possession de soi par la médiation de l’objet”. (p. 16).

  • 26

    Os quatro livros principais de Nabert servirão de referência a esta pesquisa.

    L’expérience intérieure de la liberté (1924) estará fundamentalmente presente no Cap. 3;

    Éléments pour une éthique (1943) será utilizado para nossas análises no Cap. 3 e no Cap. 4;

    Essai sur le mal (1955) balizará as discussões no Cap. 4, e Le désir de Dieu (1966) será a

    referência para o nosso Cap. 5. Dois artigos serão também essenciais: La philosophie réflexive

    (1957), que será levado em consideração no Cap. 2; e Le divin et Dieu (1959), no qual nos

    apoiaremos no Cap. 5.

    Assim, a tese principal do presente trabalho é que a noção de consciência de si que se

    pode extrair da filosofia de Ricoeur desenvolvida entre os anos 1950 e 1960 evidencia uma

    forte ressonância do pensamento de Nabert, ressonância da qual tentaremos nos aproximar por

    meio de uma separação didática em quatro dimensões da consciência de si, como já indicado

    mais acima: reflexiva, ética, ontológica e hermenêutica.

  • 27

    2. DIMENSÃO REFLEXIVA DA CONSCIÊNCIA DE SI

    “N‟étant pas sujet à des mouvements violents, il semble que je devais

    être maître de moi plus qu‟un autre; cependant, soit par un effet de ma

    mauvaise constitution, soit que l‟homme soit fait ainsi, je passe

    successivement par mille états divers en un jour. Mille pensées, mille

    idées que je voudrais rejeter, que je ne recherche pas, qui me font

    même pitié, me passent dans l‟esprit. Ma raison n‟est pas souvent

    endormie; elle voit tout cela, elle gémit, elle blame ou elle approuve;

    ce sont là ses seules fonctions.”

    Não estando sujeito a movimentos violentos, parece que eu deveria

    ser mestre de mim mais que qualquer outro; no entanto, seja por um

    efeito de minha constituição ruim, seja porque o homem mesmo seja

    feito deste modo, o que ocorre é que eu passo sucessivamente por mil

    estados diferentes em um dia. Mil pensamentos, mil ideias que eu

    gostaria de rejeitar, que eu não procuro, que chegam a me dar pena,

    me passam no espírito. Minha razão frequentemente está acordada;

    ela vê tudo isto, ela geme, ela critica ou ela aprova; tais são as suas

    únicas funções.

    MAINE DE BIRAN, Premier Journal, p. 59-60.

  • 28

    2. DIMENSÃO REFLEXIVA DA CONSCIÊNCIA DE SI

    2.1. O que é reflexão?

    Para uma aproximação exitosa da dimensão reflexiva da consciência de si ou da

    apropriação significativa de si mesmo, um primeiro passo que daremos – propedeuticamente –

    é o de explorar os sentidos possíveis e comuns do termo “reflexão”. A começar pelos

    dicionários de língua portuguesa, observamos que eles fazem referência, em suas primeiras

    definições, à "concentração do espírito sobre si próprio, suas representações, ideias,

    sentimentos"39

    ou, mais precisamente, ao ato pelo qual a consciência volta-se sobre si mesma

    para examinar seu próprio conteúdo40

    . O verbo "refletir" considera, em suas últimas

    definições, as ideias de "[...] examinar, meditar, pensar, pesar, ponderar [...]"41

    . Em

    dicionários monolíngues da língua inglesa, o substantivo “reflection” aponta em primeiro

    lugar para os processos óticos e sonoros, e a referência ao “pensamento sério” aparece

    somente na quinta definição42

    . Num importante dicionário da língua francesa, Le Robert, o

    termo “réflexion” é definido em primeiro lugar no contexto da Física, como mudança de

    direção das ondas luminosas e sonoras; num segundo verbete passa a constar a referência às

    capacidades humanas, primeiramente à deliberação e à meditação, e em seguida, ao

    discernimento e à inteligência43

    . Já o Larousse coloca em primeiro e segundo lugar as ideias

    de refletir sobre alguma coisa e de efetuar observação crítica, elencando as definições

    relativas à Física somente a partir da terceira definição44

    . Apesar de distinções de ênfase,

    podemos verificar que uma ideia presente nas poucas definições que examinamos é a de que a

    reflexão é um ato subjetivo, mais frequentemente associado ao pensamento e, cremos poder

    acrescentar, ao pensamento consciente. A reflexão teria um caráter de ato deliberado em

    busca de uma melhor compreensão dos conteúdos do próprio pensamento.

    39

    HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Verbete: reflexão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1.631. 40

    FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. ver. e aum. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 1.471. 41

    HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Verbete: refletir, p. 1.631. 42

    SOANES, Catherine. (ed.) The Oxford Dictionary of current English. Verbete: reflection. 3rd ed. New York: Oxford University Press, 1993, p. 756. 43

    Na língua francesa, nota-se uma antecipação interessante do sentido que aqui nos interessa mais diretamente: a deliberação e a meditação: “Retour de la pensée sur elle-même en vue d’examiner plus à fond une idée, une situation, un problème”. Cf. REY, Alain (Dir.) Le Petit Robert micro. Dictionnaire d’apprentissage de la langue française. Dictionnaires Le Robert: Paris, 2013, p. 1.216. 44

    JEUGE-MAYNART, Isabelle (dir.) Le petit Larousse ilustré. Paris: Éditions Larousse, 2012, p. 928.

  • 29

    Se persistirmos mais um pouco nesta estratégia propedêutica de entrar na questão a

    partir de uma análise do léxico, podemos também consultar os dicionários de filosofia, com o

    que poderemos fazer ainda alguns acréscimos relevantes à noção de reflexão. Ferrater Mora

    (1912-1991) aponta como sendo a característica essencial da reflexão uma inversão na direção

    costumeira do ato de pensamento: geralmente, direcionamos nossa atenção para os conteúdos

    de nossos atos de pensamento; com a reflexão, volta-se a atenção para os próprios atos45

    .

    É bastante comum, no cotidiano e no meio acadêmico, encontrarmos o termo filosofia

    associado ao termo reflexão, este último entendido como “pensamento sério” ou “meditação

    profunda”. É preciso sublinhar que este sentido de reflexão é insuficiente – e mesmo

    desorientador – para nossa investigação sobre a consciência de si, e isto basicamente por duas

    razões: primeiro, porque o indivíduo que empreende tais pensamentos sérios não se dirige

    para si mesmo, mas sim para algum objeto, tal como um neurocirurgião que pensa seriamente

    em como separar gêmeas siamesas ou um filósofo que medita profundamente sobre o

    problema filosófico da liberdade. É possível, ainda, pensarmos a reflexão neste sentido

    mesmo quando um indivíduo reflete sobre aspectos intimamente associados à sua vida, porém

    de tal modo que efetua uma objetificação de tais aspectos: por exemplo, quando um indivíduo

    examina mentalmente sua biografia, buscando entender melhor um evento passado,

    elucidando como este teria influenciado todo o decurso de sua história pessoal desde então.

    Contudo, há ainda uma segunda razão para rejeitarmos este sentido de reflexão logo de

    início. A reflexão, entendida deste modo, não apenas não se refere à consciência de si, como

    também pressupõe a existência prévia desta, e desse modo ela deixa de problematizar

    justamente o cerne de nossa busca. Tanto o neurocirurgião como o filósofo, e ainda a pessoa

    (porventura arrependida) dos exemplos mencionados acima, já são uma consciência

    constituída previamente ao ato de reflexão, seja esta consciência um pensamento científico

    que se volta para um objeto exterior (o neurocirurgião), ou uma inquietação existencial que se

    volta para uma questão de caráter mais vital (o filósofo), ou ainda um olhar que se reconhece

    enquanto unidade e que se dirige analiticamente para o conteúdo de sua própria memória (a

    pessoa refletindo sobre sua vida). E, o que talvez seja o mais importante, a reflexão não

    afetará esta consciência já pressuposta. Assim sendo, todo ato de pensamento com

    semelhantes características, ainda que seja chamado de reflexão, não interessará para nossos

    propósitos. Se a filosofia está associada a um sentido de reflexão que permita uma

    aproximação da ideia de consciência de si – e defendemos firmemente que esteja –, é, antes,

    45

    FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofia. Vol. IV: Q a Z. Madrid: Editora Ariel Espanha, 1998.

  • 30

    num outro sentido de filosofia, qual seja o de uma filosofia reflexiva, o que trataremos de

    explorar em seguida (Seção 2.3.).

    Antes, continuemos tentando nos aproximar de uma definição mais precisa de reflexão

    que possa atender aos nossos propósitos. Neste percurso, é impossível deixar passar

    despercebida a tematização, amplamente conhecida, que a metafísica de Platão fornece da

    reflexão. O conceito de reflexão advém, em Platão, de uma metáfora visual46

    : a reflexão é o

    processo de geração de uma imagem. Imagem, para Platão, é um conceito difícil de definir

    prontamente, uma vez que ele abrange uma diversidade de entes. No plano das coisas

    sensíveis – que Platão chama de “visíveis” no Livro VI da República –, imagens são o reflexo

    das coisas reais: “[...] em primeiro lugar, [as] sombras; seguidamente, [os] reflexos nas águas,

    e [aqueles] que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes [...]”47

    . Já no

    plano das coisas inteligíveis, uma imagem é o reflexo dos verdadeiros princípios; assim, por

    exemplo, os geômetras e aritméticos inferem os verdadeiros princípios “[...] utilizando como

    imagens os próprios originais dos quais eram feitas as imagens pelos objectos da secção

    inferior [isto é, a das coisas visíveis] [...]”48

    . Desse modo, um terreno em forma de

    quadrilátero ou um ângulo formado entre um poste de luz e o chão funcionam como imagens

    das ideias de quadrilátero em si ou ângulo reto em si.

    O estatuto ontológico que têm as imagens na metafísica de Platão – que já se pode

    entrever neste livro VI – fica evidente no livro VII, em particular com a célebre alegoria da

    caverna: uma imagem é aparência, cópia, simulacro da verdadeira realidade – a qual só pode

    ser encontrada no mundo das ideias ou coisas em si, como se sabe. Sem entrar nos méritos da

    46

    Aliás, a preferência pela visão nas metáforas filosóficas pode ser constatada não só em Platão, como em diversos momentos da história da filosofia. Por exemplo, a noção de ideias claras e distintas em Descartes (clareza e distinção são qualidades percebidas pela visão), ou ainda o par visão/visada com os quais Husserl explica a intencionalidade da consciência (noções que Ricoeur retomará em HF e que abordaremos no Capítulo 4, mais adiante), e também a ideia de clareira do ser com a qual o segundo Heidegger aborda a linguagem (mesmo que, em certo sentido, ele lutasse contra esta predominância das explicações visuais). É possível encontrar esta preferência pelas metáforas visuais mesmo em outros domínios do saber, como é o caso da noção teológica de revelação (fazer aparecer aos olhos, como se faz com uma fotografia obtida a partir de um negativo). Investigar esta preferência seria um estudo instigante. Já Aristóteles abria o Livro Primeiro da Metafísica exprimindo esta preferência: “*...+ nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações” (ARISTÓTELES. Metafísica, p. 3). Giovanni Reale propõe que esta preferência pela visão é própria do pensamento grego – e, desse modo, podemos pensar que daí viria a tendência ocidental em privilegiar a visão: “A firme convicção da superioridade da visão relativamente a todos os outros sentidos é outra característica emblemática da espiritualidade dos Gregos, levada ao primeiro plano já por Platão. [...] Recorde-se que, enquanto a civilização grega é uma civilização da ‘visão’ e da ‘forma’, a espiritualidade hebraica está centrada no ‘escutar’, no ‘ouvir’ *...+” (REALE, Giovanni. Sumário e comentários ao livro A, p. 6, grifos do autor). 47

    PLATÃO. A República. Livro VI, p. 311 (510a). 48

    PLATÃO. A República. Livro VI, p. 312 (511a).

  • 31

    influência que esta formulação exerceu em vários séculos de história da filosofia49

    , pontuamos

    que o caminho que seguirá a filosofia reflexiva francesa – particularmente nas figuras de

    Nabert e Ricoeur – será o de entender a reflexão não como o processo pelo qual se criam as

    imagens, mas, antes, como a única maneira pela qual uma consciência pode tornar-se

    consciente de si mesma. A consciência de si atingida pela reflexão não será nem imagem, nem

    modelo, mas compreensão movente. É verdade que a representação jogará um papel

    importante nesse processo reflexivo – a isso aludiremos no Capítulo 3 –, porém o conteúdo da

    representação não equivalerá a uma imagem no sentido platônico, conforme ficará claro –

    esperamos. Continuemos neste percurso de clarificar a maneira como deve ser entendida a

    reflexão que permite a instanciação da consciência de si.

    Em primeiro lugar, uma ideia de reflexão que permita tematizar a chamada

    consciência de si ou autoapropriação significativa de si mesmo precisa distinguir entre os

    conteúdos dos atos de pensamento e os próprios atos de pensamento. Assim, torna-se possível

    instaurar, logo de saída, uma distinção fundamental: os conteúdos dos atos de pensamento

    poderiam ser, num esforço de abstração, apropriados em terceira pessoa, mas os próprios atos

    de pensamento de modo algum poderiam ser apropriados a não ser em primeira pessoa. Com

    esta primeira formulação já deixamos de fora grande parte dos sentidos de reflexão

    encontrados no léxico e no imaginário coletivo, e começamos a vislumbrar o caminho que

    deverá ser trilhado. Contudo, esta primeira formulação, ao mesmo tempo que torna a via a ser

    buscada mais nítida, também aponta uma primeira grande dificuldade nela, a da pressuposição

    de uma duplicação da própria consciência. Para dizer de outro modo: se o sentido de reflexão

    que nos interessa diz respeito à apropriação dos próprios atos de pensamento, supõe-se

    inicialmente que haja uma duplicação da consciência: uma parte vivendo e executando os atos

    de pensamento, e a outra parte refletindo sobre eles. Este será um problema que a filosofia

    reflexiva enfrentará corajosamente, como mostraremos mais adiante.

    Ainda acompanhando as definições encontradas em dicionários de filosofia, André

    Lalande (1867-1963) nos permite dar mais um passo na via destacada com Ferrater Mora,

    trazendo-nos um acréscimo importante ao conceito de reflexão. Apoiando-se em Maurice

    Blondel (1861-1949), ele observa que a costumeira definição que sublinha o retorno do

    pensamento sobre seus próprios atos é, em certa medida, incompleta, muito embora seja a

    definição mais amplamente difundida50

    . Se nos apoiamos apenas nesta definição, a

    49

    Quanto a isto, é canônica a obra de Nietzsche. 50

    LALANDE, Andre. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. Verbete: reflexão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 935-936.

  • 32

    consequência é pensar a reflexão como uma duplicação da consciência, na medida em que

    temos, de um lado, os atos do pensamento e, de outro, uma instância que se debruça sobre

    esses atos. Assim, ao lado dessa dimensão “retrospectiva”, Lalande – na esteira de Blondel –

    chama a atenção para a dimensão “prospectiva” da reflexão:

    [...] ela se conduz, por assim dizer, para diante para a intenção e a realização

    final, concreta e singular que é o termo prático do seu movimento complexo

    e total; e, então, é uma prospecção sintética. E se a palavra reflexão designa

    igualmente esses dois processos tão diferentes [retrospecção e prospecção], é

    porque, de uma maneira normalmente implícita, mas que pode ser

    explicitada, entre eles há solidariedade [...].51

    Interessante observar que a operação prospectiva da reflexão é, segundo Blondel,

    sintética. Esta afirmação pode sugerir, a princípio, que o produto da reflexão consiste em certa

    unidade nos atos mentais ou pensamentos examinados. Dito de outro modo, antes de os atos

    de pensamento se tornarem objeto do escrutínio da reflexão, não seria possível conceber todos

    esses atos como constituindo uma unidade: seria apenas por meio da reflexão que passaria a

    ser possível conceber uma unidade dos atos de pensamento. Se perseguirmos esta suspeita, a

    pergunta que precisará ser colocada, em algum momento, é se essa unidade dos atos de

    pensamento seria apenas descoberta ou se seria mesmo criada pela reflexão. Também será no

    contexto de uma meditação sobre a reflexão que buscaremos abordar este problema da

    unidade da consciência. Tendo delimitado minimamente os contornos do conceito de reflexão

    com o qual estaremos doravante comprometidos, ensaiemos um primeiro retorno à ideia de

    consciência de si.

    2.1.1. Reflexão como ato

    Esta seção está longe de pretender ser uma palavra final na discussão. Antes, trata-se

    de mais um passo dado na direção da especificação da noção de consciência de si com a qual

    estamos comprometidos. Seu objetivo é assim circunscrito: trata-se de uma tentativa de

    encontrar uma resposta para uma determinada pergunta, a saber, quais são as diferenças entre

    reflexão e consciência de si e, além disso, quais são suas relações mais importantes?

    Nesse sentido, estamos já partindo da consideração de que reflexão e consciência de si

    não são exatamente a mesma coisa. Da maneira como estamos entendendo a reflexão até

    agora, está claro que se trata de um ato. Mas o que é, pois, um ato? Podemos dizer de um

    51

    BLONDEL, Maurice. apud LALANDE, Andre. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. Verbete: Reflexão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 935-936, grifo do autor.

  • 33

    fruto maduro que caiu de uma árvore que ele realizou um ato? E de uma pessoa que, andando

    distraída pela rua, sem perceber chuta um cachorro que dormia na calçada – acaso pode este

    evento ser considerado um ato? Para evitar uma correspondência desastrosa entre evento no

    mundo e ato – e com isso poder, por exemplo, atribuir pesos e responsabilidades distintas a

    uma pessoa que chuta um cachorro propositadamente e a uma outra que o chuta por não tê-lo

    visto –, costuma-se associar a noção de ato aos aspectos voluntários de uma ação qualquer no

    mundo52

    . Assim, um evento recebe o nome de ato se, e somente se, ele envolver uma

    dimensão de iniciativa, de espontaneidade, de intenção por parte daquele que o praticou.

    Evitando antecipar a acirrada querela ética que a noção de ação voluntária necessariamente

    implica – tema espinhoso que será enfrentado no Capítulo 3 –, buscaremos explorar a ideia de

    que a reflexão é uma ação voluntária pela mera constatação de que ela não pode se dar

    naturalmente no mundo. Dito de outro modo, só há reflexão se alguma consciência se

    propuser a efetuá-la.

    Chegar a um consenso quanto à especificação do ato livre que caracteriza a reflexão

    será, talvez, um dos grandes desafios da busca de elucidação da dimensão reflexiva da

    consciência de si, desafio vivenciado por Ricoeur já na redação de seu mémoire por ocasião

    da conclusão de sua graduação em filosofia, escrito em 1933 – quando Ricoeur tinha 20 anos

    de idade –, trabalho em que ele apresenta e discute duas propostas para entender esse ato livre

    que é a reflexão, a saber, a proposta de Jules Lachelier (1832-1918), para quem este ato é a

    indução, e a proposta de Jules Lagneau (1851-1894), para quem este ato é a experiência

    perceptiva. Comentaremos este mémoire mais adiante neste Capítulo (Seção 2.2.3.). Por

    agora, cumpre mencionar que Jean Nabert, em seu esclarecedor verbete da Encyclopedie

    Française, publicado em 1957, intitulado La philosophie réflexive53

    , resume bem esta

    dificuldade de definir qual é o ato livre que, afinal, caracteriza a reflexão:

    52

    Digna de nota é a definição aristotélica de ação voluntária. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V, São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores), p. 207: “Considero voluntária *...+ qualquer ação cuja prática depende do agente e que é praticada conscientemente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido (por exemplo, quem ela está golpeando, com que objeto e para que fim); além disso, nenhuma destas ações deve ser praticada acidentalmente ou sob compulsão (por exemplo, se alguém segura a mão de uma pessoa e com ela golpeia outra pessoa, a pessoa cuja mão é segura não age voluntariamente, pois a prática do ato não dependia dela)”. Cf., ainda, a exposição detalhada que Ricoeur faz da análise aristotélica das noções de vontade, escolha e deliberação em sua cara