universidade e talento - florestan fernandes

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Revista Adusp 8 UNIVERSIDADE E TALENTO Educação Neste artigo, redigido no ano passado, Florestan Fernandes analisa a crise da educação no Brasil. Para ele, nunca existiu uma política educacional que atendesse aos interesses dos mais necessitados. O Estado não priorizou e não prioriza o ensino gratuito e a pesquisa. Quanto à USP, Florestan lamenta que ela tenha conferido à antiga Faculdade de Pedagogia e à Licenciatura o segundo plano, não assumindo sua vocação de formadora do quadro docente. Claudomiro Teodoro/Folha Imagem

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UNIVERSIDADE E TALENTO

Educa

ção

Neste artigo, redigido no ano passado, Florestan Fernandes analisa a crise da educação no Brasil. Para ele, nunca existiu uma política educacional que atendesseaos interesses dos mais necessitados. O Estado não priorizou e não prioriza o ensino

gratuito e a pesquisa. Quanto à USP, Florestan lamenta que ela tenha conferido àantiga Faculdade de Pedagogia e à Licenciatura o segundo plano, não assumindo

sua vocação de formadora do quadro docente.

Claudomiro Teodoro/Folha Imagem

Auniversidade en-frenta uma crise dealcance mundial. Jáescrevi sobre o as-sunto, que, aliás,preocupa muitos

estudiosos. A situação brasileiraé peculiar, porque atravessamosrápido demais a transição do ca-pitalismo competitivo para o ca-pitalismo oligopolista; e este sealterou em seus dinamismos eco-nômicos e culturais antes que ti-véssemos nos adaptado ao mode-lo anterior. Toda umainfra-estrutura, mon-tada principalmenteàs custas do poder po-lítico, foi obsoletizadanas duas transforma-ções sucessivas. E ogrande beneficiáriodos investimentos pú-blicos e do processode acumulação “pri-mitiva”, a firma gigan-te estrangeira, agoraexige um marco zerocomo novo ponto departida, com a privati-zação das estruturascriadas pelo interven-cionismo estatal, sobas bandeiras contradi-tórias do “nacionalis-mo econômico” e da“modernização” com vistas à “in-corporação no primeiro mundo”.Poucos países erraram tanto emsuas políticas econômicas e de-vastaram maior soma de recursosmateriais e humanos no altar do“desenvolvimento econômico”,primeiro, e da “aceleração do de-senvolvimento econômico”, de-pois. Mas não aprendemos a li-ção. A ilusão continua de pé e ogoverno, juntamente com as eli-tes no poder das classes domi-nantes, barafustou pela última al-ternativa, certos que as contasnão sairão de seus bolsos, masdos cofres públicos.

Isso quer dizer que as chama-das “políticas educacionais” dasvárias repúblicas deste séculonunca existiram. Se elas tivessem

realidade, o Estado daria, forço-samente, prioridade, no ensinogratuito e de qualidade em todosos graus, à pesquisa básica em to-dos os ramos do saber, à pesquisacientífica aplicada e à invençãotecnológica original, para evitarexatamente o que aconteceu - oque fizeram os Estados Unidos, aAlemanha e o Japão. A autono-mia da produção do saber e dopensamento inventivo represen-tam os alvos essenciais de umaNação que pretenda crescer e di-

ferenciar-se através do capitalis-mo. Este possui duas faces distin-tas. Ao lado de uma interdepen-dência inevitável, coexistem, noplano internacional, os países ca-pitalistas hegemônicos, cuja ex-pansão é relativamente auto-sus-tentada, e os países de origemcolonial ou não, cujo crescimentoé neocolonial, dependentes ouassociados, os quais transferempara o exterior parcelas variáveisdo excedente econômico, pilha-das através das técnicas econômi-cas, culturais e políticas do impe-rialismo. Quanto maior for a re-lação entre o excedente econômi-co gerado e as alíquotas apro-priadas pelas nações capitalistashegemônicas, maior será a ten-dência dos países explorados em

combinar alta concentração dariqueza, da cultura e de podernas mãos de minorias privilegia-das e a crescente concentraçãode miséria, de ignorância e de su-balternização nas inúmeras maio-rias dos de baixo. As classes so-ciais funcionam como bombas desucção: os que mandam reprodu-zem com maior dureza os proces-sos de expoliação aplicados pelasnações capitalistas centrais (oque levou alguns autores a usar oconceito de “colonialismo inter-

no”, pouco precisopor ocultar as mani-festações efetivas daluta de classes e dadominação imperialis-ta). Em conseqüência,o que sobra do exce-dente econômico vaipredominantementepara as funções deacumulação de capitaldo Estado. Destinam-se recursos mínimospara as demais fun-ções, vinculadas àeducação escolar, aosserviços de saúde e deassistência social oude habitação etc. Nãosão as escolas quebarram e expulsam ospobres da seleção po-

sitiva. É a estrutura de classes so-ciais que impede qualquer formade distribuição das oportunida-des educacionais entre todas asclasses, marginalizando as classessubalternas da participação edu-cacional, cultural e política“eqüitativa”e “democrática”.

Uma “política educacional”,aberta para a formação e o penei-ramento do talento, compreendea pré-escola e os demais graus deensino. E deve ser, necessaria-mente, seletiva a nível vocacional.A crítica corrente, sobre o “elitis-mo”, pressupõe equívocos circu-lares. Ela envolve um lapso con-tra-ideológico, que contém efeitoboomerang. O nosso ensino, espe-cialmente no segundo grau, masde modo particular na graduação

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As chamadas “políticas educacionais” das

várias repúblicas deste século nunca

existiram. Se elas tivessem realidade, o

Estado daria, forçosamente, prioridade, no

ensino gratuito e de qualidade em todos os

graus, à pesquisa básica em todos os ramos

do saber, à pesquisa científica aplicada e à

invenção tecnológica original.

e pós-graduação, não é elitista -constitui um monopólio das elitesdas classes dominantes. A altaqualidade do ensino interessa aossetores das classes sociais dosdois níveis inferiores, trabalhado-ras ou médias. A antiga concep-ção da educação escolar comoum ascensor social, apesar de in-sustentável, continha aí o seugrão de congruência com o regi-me de classes e o carátercompetitivo da sociedadecapitalista. Em certas con-dições históricas, ela cor-responde às exigências edu-cacionais e psicoculturaisda mobilidade social.Quando foi fundada, a Fa-culdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras respondia auma ideologia “oficial” daselites no poder, de buscarmeios de ampliação e reno-vação através de “sanguenovo”. Vilfredo Pareto eoutros cientistas sociaisanalisaram esse processo,que surge imperativamentequando as elites das classesdominantes “envelhecem”e “declinam” ou em cir-cunstâncias especiais, nasquais após uma prolongadaexclusão voltam para o in-terior da classe dominante(ou estamento; ou casta) aúnica viabilidade da “reno-vação das elites” (o quetambém pode ocorrer co-mo efeito de invasões ou daimigração). A licenciaturasurgiu nesse contexto, que lhe foifavorável, porque houve extensapassagem de professores de se-gundo grau e de escolas normaispara o ensino superior, patrocina-do e amparado pelo poder públi-co estadual. A experiência, a ma-turidade e por vezes a vocaçãodesses professores asseguraramum corpo estudantil sofisticado,crítico e ansioso por encontrar al-guma via de sair da rotina e deconseguir o ensejo de lançarem-se em outra linha de competiçãoprofissional.

A programação do curso dedidática subordinou-se ao objeti-vo de formar professores comcomprovado nível de profissiona-lização. Por isso, a escolha dasmatérias e os conteúdos dos cur-sos foram mais teóricos do quepráticos. Professores ideais paraalunos ideais de uma escola ideal.Esse nexo sustentou os resultadospositivos alcançados e, ao mesmo

tempo, alimentou a fonte dos ma-logros ocidentais que se segui-ram. Nas três primeiras décadas,os professores licenciados pos-suíam uma reserva de mercado eo professor de segundo grau e deescola normal desfrutava de pres-tígio social que o situava aproxi-madamente (embora de maneiranebulosa) nas cercanias do profis-sional liberal. Além disso, o pro-fessor conseguia um salário quepermitia sustentar as aparências euma tradição estamental o prote-gia de quedas abruptas e constan-

tes de avaliação. Acresce quemuitos lograram manter-se nauniversidade, como assistentes eprofessores contratados ou cate-dráticos. Era uma minoria que seamparava em status próprio, quea punha em um nível de reputa-ção social equivalente ao top dosprofissionais liberais mais consi-derados. No planejamento global,nunca se tentou um teste precoce

do “produto real” da licen-ciatura. Os professores maisatilados ou corajosos sa-biam que deviam fazeradaptações pedagógicas sé-rias, em benefício dos estu-dantes e de suas futuras ta-refas como professores. Po-rém, o Frankenstein teóricoe prático permaneceu, semmodificações pedagógicasestruturais e dinâmicas, pormuito tempo.

Enquanto isso, a socie-dade inclusiva alterou-se e oobjetivo de formar professo-res sofreu diversos desloca-mentos e outras tantas de-formações correspondentes.O próprio professor de se-gundo grau enfrentou umprocesso de desnivelamentopersistente, perdendo pres-tígio, renda e condições deauto-realização pedagógicapropícias. Em suma, a “car-reira de professor” perdeusuas lantejoulas, tornando-se pouco atrativa: só a voca-ção ou um grau profundode curiosidade pela sociali-

zação dos adolescentes garantiamuma procura oscilante. Paralela-mente, a ênfase (que começa coma ditadura militar mas aumentouprogressivamente, pela incorpora-ção do Brasil na economia oligo-polista mundial) foi posta na for-mação de massas de estudantesdos cursos técnicos e da gradua-ção e pós-graduação, nas quais sedifundiu a ambição do “profissio-nal para a iniciativa privada”. A li-cenciatura perdia sentido paraduas categorias importantes dealunos: os que pretendiam “seguir

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A “carreira de professor”

perdeu suas lantejoulas,

tornando-se pouco atrativa: só

a vocação ou um grau

profundo de curiosidade pela

socialização dos adolescentes

garantiam uma procura

oscilante.

a carreira universitária”; e os quebuscavam os melhores saláriosnos melhores empregos, fazendoa conexão entre “empresa e uni-versidade” ao nível profissional.

Essas alterações teriam deafetar o número de candidatos àlicenciatura e o grau de atraçãopela imaginação pedagógica. Épreciso que se reconheça objeti-vamente: isso não acarretavauma natural deterioração da li-cenciatura. Ao contrário, punhaem questão a sua especificidadee o modelo de realizá-la. Quan-do saí da USP a situa-ção estava nesse pé enão tive ocasião de iralém das reflexões ali-nhadas acima. Desco-bri que a Faculdade deEducação encetou umaevolução que não seprevia, muito instigan-te e produtiva. E que,dentro dos altos e bai-xos dos obstáculos quea USP ergue à renova-ção fora e acima decertos campos de ensi-no e investigação, elase equipou para darum sentido mais pro-vocativo à formação doprofessor. Daí a preo-cupação que orientou aescolha do tema desteartigo. O talento conta como oalfa e o ômega das funções cru-ciais da universidade. E cabe aosprofessores conclamar o corpocoletivo da instituição em quetrabalham para essa função. Nãoporque o número de professoresformados seja pequeno. Masporque o talento permeia ou é onervo vital da existência de umamatéria-prima (perdõem-me a li-berdade) que valha a pena, o es-tudante, de uma universidadecom força criadora e de uma so-ciedade com condições para for-jar a sua autonomia cultural, ba-se do seu desenvolvimento eco-nômico relativamente auto-sus-tentado, da revolução cultural eda revolução democrática.

O maior erro que ocorreu naUSP foi o de conferir à antigaFaculdade de Pedagogia e à li-cenciatura o segundo plano, decompanheiros de viagem de ter-ceira qualidade. Desde o início,a Pedagogia deveria, pelo me-nos, ter uma preeminência à Fi-losofia. Trazer bons professoresdo exterior e fomentar a sua in-fluência interna segundo ritmosintensos. E difundir representa-ções que expusessem a pedago-gia como o eixo das esperanças,que movia a USP e a Faculdade

de Filosofia, Ciências e Letras.Correlatamente, os alunos quese destinavam à licenciatura epretendiam devotar-se ao ensi-no deviam aprender que abraça-vam uma vocação complexa efundamental. Cabia aos profes-sores do curso de pedagogia eda licenciatura ou do curso defilosofia assinalar a importâncianuclear do talento virgem e doseu polimento na universidade.A tarefa ficou, por algum tem-po, nas mãos de sociólogos e es-fumou-se, como se a Nação deorigem colonial e dependentenão devesse bater-se pela sele-ção e aproveitamento dos talen-tos, de todas as magnitudes,com os olhos voltados para den-

tro e para baixo. A universidadecondenou-se a subsistir comoprisioneira das elites das classesdominantes e não percebeu quedependia dos professores paraassociar a imaginação pedagógi-ca a um novo estilo de cultivar eestimular os talentos para ativi-dades que transcendiam aos “in-teresses empresariais” e ao“crescimento econômico”.

Uma “política educacional”pioneira e transformadora devecentrar-se na associação recí-proca da atividade docente críti-

ca e do despertar dotalento inconformis-ta. O que se preten-de? Integrar o jo-vem à estrutura e aofuncionamento domaquinismo ou daempresa? Ou con-duzir a Nação emer-gente em sua auto-emancipação coleti-va? A imaginaçãopedagógica nutre-sede conhecimentosteóricos e de proce-dimentos práticosque agitam a orga-nização e os conteú-dos da personalida-de. Ela não pode serexcluída das corren-tes culturais, sociais

e políticas que mudam dia-a-diao porvir do Brasil. No ponto ze-ro, pretendeu-se que a universi-dade fosse a serva dos podero-sos e de seus privilégios. Hoje, oque se quer é que a universida-de contribua para a libertaçãodos oprimidos e que promova,entre os de baixo, uma forte as-piração de combater o embrute-cimento, de promover a desalie-nação e desvendar o seu talentopara si, para a sua classe e paraa coletividade. O talento comodetonador social? E ele valeráalguma coisa, em si e por si, senão escapar à rotina, ao estran-gulamento da profissão comoum fim exclusivo, à tirania daordem?

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O maior erro que ocorreu na USP foi o de

conferir à antiga Faculdade de Pedagogia e

à licenciatura o segundo plano, de

companheiros de viagem de terceira

qualidade. Desde o início, a Pedagogia

deveria, pelo menos, ter uma preeminência

à Filosofia. Trazer bons professores do

exterior e fomentar a sua influência interna

segundo ritmos intensos.