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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE A. MAIA CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS MILKA PATRÍCIA DE SOUSA OLIVEIRA FIGURATIVIZAÇÕES DO FRACASSO EMFOGO MORTO PAU DOS FERROS 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE A. MAIA CAMEAM

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

MILKA PATRÍCIA DE SOUSA OLIVEIRA

FIGURATIVIZAÇÕES DO FRACASSO EMFOGO MORTO

PAU DOS FERROS

2012

MILKA PATRÍCIA DE SOUSA OLIVEIRA

FIGURATIVIZAÇÕES DO FRACASSO EMFOGO MORTO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Letras.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues

PAU DOS FERROS

2012

MILKA PATRÍCIA DE SOUSA OLIVEIRA

FIGURATIVIZAÇÕES DO FRACASSO EM FOGO MORTO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

APROVADA EM: 28/01/2013

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues

Orientador

UERN

Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa

Membro Examinador

UFCG

Prof. Dr. José Vilian Mangueira

Membro Examinador

UERN

Profª. Drª. Maria Edileuza da Costa

Membro Suplente

UERN

Para minha mãe, Teresa Cristina de Sousa Andrade, símbolo da força e da sabedoria da mulher nordestina que atravessa a fronteira de seu próprio tempo e que se faz imprescindível para mais esta conquista.

AGRADECIMENTOS

Ao meu filho, Otávio Augusto de Sousa Oliveira

“De sua formosura/já venho dizer:/é um menino magro,/de muito peso não é,/mas tem o peso de homem,/de obra de ventre de mulher (...) É tão belo como a soca/que o canavial multiplica./Belo porque é uma porta/abrindo-se em mais saídas./Belo como a última onda/que o fim do mar sempre adia (...) Belo porque tem do novo/a surpresa e a alegria”.

(João Cabral de Melo Neto)

A todos os meus familiares: pai (Datonho), irmãs (Cínthia, Leilane e Érica), cunhados (Giordanno e Ricardo), sobrinhos (a bela Isadora ea princesinha Morgana) e, em especial a minha avó, Zulmira de Sousa (in memoriam) - personificação do orgulho e da alegria de ser nordestino.

Ao professor Dr. Manoel Freire Rodrigues, orientador e amigo, cujo conhecimento vai além da sala de aula e atravessa as cercanias do grande sertão da vida de todos nós, trazendo lume novo.

Às minhas amigas-irmãs, Egna Rebouças, Patrícia Aires e Regiane Cabral, pela força e fé abrandando as pedras dessa estrada que se chama vida.

À Giulia Maria, por segurar a minha mão desde a inscrição até a defesa deste trabalho e guiar-me nos momentos de profundo desânimo, com o seu carinho e sua eterna paciência na lida do dia-a-dia.

A Célia Maia (Diretora), Rita Nobre (Vice-diretora) do colégio Moreira Dias e Martha Garcia (Colégio Geo), minha eterna gratidão pela compreensão e palavras de conforto ao longo desta jornada.

A todos os professores que fizeram parte de minha construção intelectual, desde os primeiros ensinamentos, e que, inegavelmente, contribuíram para mais esta formação acadêmica.

Morro Velho

“No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu

Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu

Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer

Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho

Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos

Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver

Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande

Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante

Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta, já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar

Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá

Já tem nome de doutor, e agora na fazenda, é quem vai mandar

E seu velho camarada, já não brinca, mas, trabalha”.

Milton Nascimento

OLIVEIRA, Milka Patrícia de Sousa. Figurativizações do fracasso emFogo Morto. 2012. 115 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.

RESUMO

Este estudo tem como preocupação nuclear analisar os diversos modos de figurativizações do fracasso presentes nos protagonistas da obra Fogo Morto (1943), como resultado do processo de mudanças sociais pelos quais passara o Nordeste brasileiro, desde o século XIX, até as primeiras décadas do século XX, mais especificamente, na região da Várzea da Paraíba. Como objetivos específicos, procuramos delinear nossa investigação em três momentos: compreender os procedimentos estéticos de José Lins do Rego na configuração das personagens de Fogo Morto; apreender as diversas formas de figurativizações do fracasso como elemento modelador físico-psicológico de seus atores sociais e situar a figura do fracassado no conjunto das relações sociais caracterizadas na forma romanesca da citada obra. Justificamos a importância desta abordagem, na medida em que, esta obra proporciona um estudo de como o fracasso projeta-se em seus protagonistas no contexto mais amplo do romance de 1930 e do Nordeste canavieiro do escritor paraibano.Para tratar das questões referentes ao contexto do Romance de 1930 e de sua contribuição na literatura brasileira, seguimos o direcionamento de Albuquerque (2006), Bueno (2006), Carpeaux (2005), Freyre (2000), Rego (1997) (2004) (2010) e Coutinho (1991);acerca do herói fracassado na literatura enquanto resultado das transformações sociais, através de Bakhtin (1990), Candido (1987) (1991), Coutinho (1991) e Paes (1990);para tratar das questões referentes às penalizações sofridas pelos indivíduos por um sistema economicamente falido, buscamos norteamento seguindo os estudos deCandido (1991), Lukács (2003) e Coutinho (1991), entre outros. Para a materialização do nosso trabalho, partimos do método indutivo, seguido de uma pesquisa, bibliográfica, documental, descritiva e de uma abordagem qualitativa. Por fim, percebemos que os resultados da nossa investigação mostram que o fracassado na obra Fogo Morto se modela a partir do declínio de uma sociedade, despreparada para a nova ordem social, imposta pela industrialização dos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste e de suas novas relações de poder que subjugam a todos, não mais por meio de um “Senhor” de terras, despótico e patriarcalista, mas sim, por meio da Usina que esmaga, não só a cana-de-açúcar, mas toda uma sociedade e os que dela sobrevivem, restandopara estes, apenas, a amargura, a ruína e a ilusão de uma possível vitória.

PALAVRAS-CHAVE: REGIONALISMO, FRACASSO, FIGURATIVIZAÇÃO.

OLIVEIRA, Milka Patrícia de Sousa. Figurativizações do fracasso emFogo Morto. 2012. 115 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.

RESUMEN

Este estudio tiene como eje analizar los diversos modos de „figurativizaciones‟ del fracaso presentes en los protagonistas de la obra FogoMorto (1943), como resultado del proceso de cambios sociales por los cuales pasó el Nordeste brasileño, desde el siglo XIX hasta las primeras décadas del siglo, más especificamente, en la región de Várzea da Paraíba. Como objetivos específicos, procuramos delinear nuestra investigación en tres momentos: comprender los procedimientos estéticos de José Lins do Rego en la configuración de los personajes de FogoMorto; aprehender las diversas formas de figurativizaciones del fracaso como elemento modelador físico psicológico de sus actores sociales y situar la figura del fracasado en el conjunto de las relaciones sociales caracterizadas en la forma romanesca de la citada obra. Justificamos la importancia de este abordaje, en la medida que esta obra proporciona un estudio de como el fracaso se proyecta en sus protagonistas en el contexto más amplio del romance de 1930 y del Nordeste cultivador de caña de azúcar del escritor paraibano. Para tratar de las cuestiones referentes al contexto del Romance de 1930 y de su aporte para la literatura brasileña, seguimos el direccionamiento de Albuquerque (2006), Bueno (2006), Carpeaux (2005), Freyre (2000), Rego (1997) (2004) (2010) y Coutinho (1991); acerca del héroe fracasado en la literatura como resultado de las transformaciones sociales, a través de Bakhtin (1990), Candido (1987) (1991), Coutinho (1991) y Paes (1990); para tratar de las cuestiones referentes a las penalizaciones sufridas por los individuos en un sistema económicamente fallido, buscamos orientación siguiendo los estudios de Candido (1991), Lukács (2003) y Coutinho (1991), entre otros. Para la materialización de nuestro trabajo, partimos del método inductivo, siguiendo una pesquisa, bibliográfica, documental, descriptiva y de un abordaje cualitativo. Por fin, percibimos que los resultados de nuestra investigación muestran que el fracasado en la obra FogoMorto se modela a partir del declino de una sociedad ignorante a un nuevo orden social, impuesta por la industrialización de los ingenios de caña de azúcar en Nordeste y de sus nuevas relaciones de poder que subyugan a todos, no más por medio de un “Señor” de tierras, despótico y patriarcalita, sino, por medio de la Usina que aplasta no solo la caña de azúcar, sino a toda una sociedad y los que de ella sobreviven, quedando para estos, solamente, la amargura, la ruina y la ilusión de una posible victoria.

PALAVRAS-CHAVE: REGIONALISMO, FRACASSO, FIGURATIVIZAÇÃO.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................ 9

CAPÍTULO I - REAVIVANDO O FOGO DE 1930 E A OBRA DE

JOSÉ LINS DO REGO .................................................................. 13

1. LITERATURA REGIONALISTA: BREVE RESGATE

HISTÓRICO .................................................................................. 14

2. A DERROCADA E CONSEQUENTES INFLUÊNCIAS DO

ENGENHO NORDESTINO NA OBRA DE JOSÉ LINS DOREGO 19

3. JOSÉ LINS DO REGO E SUA OBRA ..................................... 22

CAPÍTULO II - O MESTRE JOSÉ AMARO: AMARGURA E

INCONFORMISMO ....................................................................... 30

CAPÍTULO III - O ENGENHO DE SEU LULA: O PODER

ARRUINADO ................................................................................ 64

CAPÍTULO IV - CAPITÃO VITORINO: A SAGA DE UMA ILUSÃO

...................................................................................................... 87

4. CONSIDERAÇÕESFINAIS ................................................... 108

REFERÊNCIAS ........................................................................... 112

Oliveira, Milka Patrícia de Sousa

Figurativizações do Fracasso em Fogo Morto. / Milka Patrícia de Sousa Oliveira– Pau dos Ferros, RN, 2013.

116 f.

Orientador(a): Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues

Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras.

1. Regionalismo literário - Dissertação. 2. Figurativização. 3. Fracasso. I. Rodrigues, Manoel Freire. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 801.95

Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Bibliotecário: Sebastião Lopes Galvão Neto – CRB - 15/486

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INTRODUÇÃO

Este estudo tem como intenção, quanto à pesquisa, a abordagem do fracasso

presente nas três personagensprincipais da obra Fogo Morto(1943), de José Lins do

Rego, mostrando-as como produto das relações históricas e sociais que se

mantiveram na sociedade patriarcal nordestina em meados do século XIX até os

primeiros anos do século XX, quando, neste período, os engenhos de cana-de-

açúcar passavam da ostentação ao declínio, ficando os mesmos de “fogo morto”,

expressão que, no Nordeste, significa engenho parado, sem produção efetiva, o que

interferiu de forma direta nos elos existentes nessa região.

José Lins do Rego, assim como outros escritores regionalistas dos anos de

1930, tais como Graciliano Ramos (São Bernardo; Vidas Secas), Jorge Amado

(Cacau), José Américo de Almeida (A Bagaceira) e Rachel de Queiros (O Quinze),

só para citar alguns, formam o elenco de artistas que inaugurou, no século XX, a

linha do realismo crítico, representando ficcionalmente problemas brasileiros em

geral e específicos de determinadas regiões, trazendo para a reflexão as questões

sociais mais marcantes do momento em que estes romances foram escritos,

destinados, cada um ao seu tempo, e a seu modo, a provocar a conscientização do

leitor.

Dentre esse elenco de narrativas problematizadoras acima citadas,que serviu

muitas vezes de testemunho vivo das relações de “vassalagem” existentes no

Nordeste brasileiro,bem marcadas pelas vozes de quem manda (senhor/patrão) e de

quem obedece (dependentes/empregados), Fogo Mortopassou a ser a mais

apropriada para a análise proposta, pois revela, ao mesmo tempo, tanto os

processos de mudanças sociais pelos quais passara essa região – sempre marcada

por grandes conflitos sociais –, bem como, das relações humanas, já que coube a

estas representar esteticamente, na referida obra, o que ocorrera naquelas

paragens, dando enfoque ao desajuste das pessoas com a realidade resultante

desse declínio escravista nos engenhos nordestinos, o que atingiu não só os

oprimidos, bem como o opressor, tamanha foi a sua violência. Por estar centrada no

desenvolvimento e na decadência dessa sociedade e em suas consequências, Fogo

Mortorevela o infortúnio físico-existencial dos que nela buscavam sobrevivência.

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Diante disso, percebe-se que o citado romance dá ênfase ao ser humano e,

para isto, sua estrutura textual organiza-se de tal forma que o narrador usa o

discurso indireto livre, o que permite expressar melhor a interioridade de suas

personagens, levando o leitor a adotar uma visão crítica e a reter certos

conhecimentos a respeito das mesmas que, como seres decadentes – não só no

campo da construção física, mas, principalmente, das ideias individuais –, ocupam o

plano central da narrativa sendo, inclusive, responsáveis pela divisão do romance

em três partes intituladas de acordo com o nome das mesmas: “O mestre José

Amaro”, “O engenho se Seu Lula” e “O capitão Vitorino”.

O romance conta a história do engenho Santa Fé, desde sua fundação até o

seu declínio, quando se transforma em “fogo morto”, ficando, como já se sabe,

inativo. Quando a era de esplendor desse engenho – síntese dos demais engenhos

da região – chega ao fim, a decadência pouco a pouco vai se instaurando, até

chegar à ruína completa. Para os bem-nascidos é necessário manter a aparência do

esplendor dos tempos áureos, daí a ostentação, a tentativa, quase insana,de se

mostrar quem (ainda) está no poder, o que, aliás, era prática muito comum desde os

tempos coloniais, onde funcionários da Coroa e latifundiários portugueses, ligados

ou não à aristocracia, competiam entre si, restando, para os dependentes destes,

ostracismo por meio da loucura e da solidão em meio a mais profunda essência da

nulidade humana.

Embora José Lins do Regoaborde questões sociais, é no ser humano e nos

seus conflitos existenciais que se constrói, em Fogo Morto, o pilar de sua obra, o

que pode ser visto, de início, na própria escolha do título dado ao seu 10º romance.

Fogo Morto, além de ser uma expressão usada para se referir aos engenhos que

não produziam mais, ou seja, não moíam mais a cana para extrair o caldo destinado

aos tachos, para virar melaço a ser cristalizado em forma de açúcar, constitui, nesta

obra, uma representação metafórica da situação da vida dos que ladeavam esse

contexto.

Entre a boa produção do engenho Santa Fé(em seu apogeu)e sua ruína

(extremidades de um processo), há uma intersecção que pode ser reconhecida

numa leitura mais atenta: entre o “fogo vivo” e o “fogo morto” da fornalha que não

mais produz a fumaça – símbolo de produtividade do engenho –, o narrador de Fogo

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Mortomostra a todos que, nesse modo de vida patriarcal, a prosperidade que antes

vigorava, naquele momento, entra em contínuo e terminal processo de declínio, que,

se por um lado é lento, e poderia dar ao leitor indícios de um possível ânimo de

recuperação financeira do engenho Santa Fé, por outro prenuncia um final trágico,

naquele arrastar-se de degradação social e econômica que contamina tudo,

inclusive as questões de natureza psicológica.

Pensando nos procedimentos ficcionais utilizados por José Lins do Rego para

representar a realidade fracassada de uma sociedade prestes a ruir, bem como os

seus integrantes, buscamos partirdo conceito de “figurativização” que, segundo a

estudiosa Ivone Figueiredo “parte de uma abstração para uma concretização que,

por sua vez, remete ao mundo natural”, ou seja, “essa abstração é concretizada pelo

revestimento figurativo que cria um efeito de realidade, pois constrói uma imagem do

real e representa, assim, o mundo” (FIGUEIREDO, 1999).

É nesse contexto de representação do desalinho social e humano, que o

presente estudo se edifica, uma vez que buscamos apontar, como resultado desse

desajuste,os variados modos de figurativizaçõesdo fracasso nas personagens

protagonistas de Fogo Morto, que ora se revela por meio dos discursos

representantesdesse contexto – o do Senhorio (simbolizado pelo proprietário do

Engenho), o do agregado (caracterizado pelo Mestre seleiro) e o da única

personagem independente daquele sistema (representado pelo capitão Vitorino, um

“Quixote” nordestino) – buscando representar suas identidades como indivíduos

penalizados por um sistema econômico falido.

Para tanto, dividimos o nosso trabalho em quatro partes. Na primeira parte

“Reavivando o fogo de 1930 e da obra de José Lins do Rego”, fizemos um breve

resgate histórico da prosa ficcional regionalista, desde sua introdução no Brasil – por

volta do século XIX – até o século XX – onde encontramos inserida a obra Fogo

Morto –, visando uma abordagem sobre a literatura regionalista no contexto mais

amplo do romance de 1930 e da obra de José Lins do Rego.

Na segunda parte “Mestre José Amaro: amargura e

inconformismo”averiguamos essa personagem como um ser fracassado, uma

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sombra1individual e coletiva de proporções devastadoras, que se mostra, tantoem

sua construção físico-psicológica, bem como na sua relação/situação com as demais

existências oprimidas – manifestadaao longo da históriapor meio de seus discursos

ede suas atitudes –, bem como em sua oportunidade de contestação, já que o

mesmo não só representa sua situação, mas também de outras personagens,

tornando-se, por isso, universal.

Na terceira parte “Coronel Lula de Holanda: o poder arruinado” temos como

personagem nuclear o senhor das terras do engenho Santa Fé, o coronel Lula,

representante da aristocracia canavieira arruinada que perdeu o poder econômico,

mas não o orgulho feudal e despótico.Simboliza a recusa ao progresso e sublima

seu orgulho em um misticismo supersticioso que acabam por se refletir no trato com

aqueles que vivem sob o poder de seu braço e de seu domínio territorial. Preocupa-

se em aparentar o que não era agarrando-se a uma rotina que lhe parecia

confortadora e impondo o poder (que não mais existe) aos que vivem sob sua

custódia, reiterando as relações de vassalagem que se mantiveram no Nordeste por

meio de sua classe social. Por constituir um símbolo da aristocracia rural nordestina

falida, torna-se clara a sua relevância no que tange à proposta desta dissertação,

uma vez que se configuracomo um poder fracassado.

Na quarta parte “Capitão Vitorino: a saga de uma ilusão”,Vitorino Carneiro da

Cunha constitui a última das três personagens centrais desse romance triangular.

Transitando entre os dois universos sociais formados por “senhores e vassalos”2, a

personagem simboliza a justiça num mundo em que a lei é a do mais forte. Sua

busca por valores tais como honra, coragem, bondade e lealdade, o torna uma

espécie de cavaleiro errante no sertão nordestino. Uma espécie de “herói

quixotesco” estabanado e ridículo, ostentando um poder e uma dignidade que está

longe de possuir. Assim como as duas personagens citadas anteriormente, o capitão

vivia em uma realidade muito diferente da que tenta aparentar e acredita existir.

1 A expressão “sombra” é utilizada neste trabalho como mais uma das representações metafóricas do

fracasso modelador das personagens que saltam na obra Fogo Morto, cuja aplicação busca sugerir: meros corpos humanos que vivem por viver sem grandes motivações ou projeções de vidas humanas, cuja ausência ou nulidade de sua própria existência oprimida gera, como consequência, o fracasso como fatalidade. 2 Embora este binômio seja mais apropriado à descrição da sociedade europeia medieval, está aqui

sendo utilizado como representação dos ecos dessa forma de organização social que se mantiveram no Nordeste brasileiro, sobremodo nas relações de poder postas em prática pelas sociedades patriarcalistas rurais da segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX.

13

Curiosamente, é ele quem estabelece os elos entre todas as personagens, servindo

como ponto central da narrativa e, portanto, importante para esse estudo, uma vez

que seu idealismo abstrato constitui uma forma de materialização do fracasso.

Enfim, “Figurativizações do fracasso na obra Fogo Morto” propõe um estudo

que se fará pelo viés analítico de como o fracasso figurativiza-se nos protagonistas

da citada obra, bem como compreendê-lo no contexto mais amplo do romance de

1930 e do Nordestecanavieiro de José Lins do Rego.

I -REAVIVANDO O FOGO DE 1930 E A OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO

A literatura regionalista no Brasil dos anos de 1930 teve como proposta

reavaliar o sentido do que é ser regional, buscando, sobremodo, problematizar as

questões, tanto no âmbito social, bem como, nos seus resultados frente aos

indivíduos habitantes da região em análise.Uma história social do romance de 30

propõe um grande serviço à comunidade pesquisadora desse tipo de literatura por

emprestar uma nova visão do período aqui estudado a partir de uma leitura

abrangente sobre o que se produziu nesta época. Nesta obra, o autor Luís Bueno

acaba por nos revelar um desenvolvimento bastante dinâmico da produção literária,

que, segundo o próprio autor, “pode ser mais bem capturado se pensado em uma

sucessão de fases” (BUENO, 2006).

Segundo Luís Bueno,ainda nos anos de 1920, paralelamente ao trabalho dos

modernistas, o que se via no Brasil era um esforço para ultrapassar a moda

naturalista e superar a moda anatoliana3 com uma literatura que, de um lado, figura

o intelectual que quer deixar de lado o ceticismo e, de outro, um país que interessa

descobrir(BUENO, 2006).

3Anatole France, pseudônimo de Jacques AnatoleThibault (1844-1924), era filho de um negociante de

livros em Paris. Sua produção literária é vasta, embora seja mais conhecido como um contador de histórias. Seu estilo segue à luz de Voltaire e Fenelon, baseando-se, portanto no ceticismo urbano e no hedonismo esclarecido da França do século XVIII. Esta visão da vida aparece em todas as suas obras, sendo explicitamente expresso na coleção de aforismos, Le Jardin d’Epicure (1895) [O Jardim de Epicuro]. (WWW.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1921/france-bio.html. acesso 06h e 43 min. 14/10/12).

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Na busca pela “brasilidade”, os ficcionistas buscam “amadurecer nos

primeiros anos da década de 1930 com experiências que acrescentaram uma visão

mais específica da realidade do país a modelos consagrados, como o do romance

da seca ou aquilo que se chama de romance de engenho” (BUENO, 2006).

Em consonância com o estudioso, no ano de 1937, se percebem sinais de

esgotamento do romance social que, desta vez, não se confunde com o ceticismo,

pois foi gerado pelo impasse criado por uma guerra iminente e que exigia duras

escolhas em meio a poucas possibilidades, de um mundo dividido em apenas dois

regimes, fascismo ou comunismo (Cf. BUENO, 2006).

Apesar do escritor escolhido para esta análise, José Lins do Rego, não

constar na lista dos ficcionistas estudados por Luís Bueno, o trabalho deste

pesquisador nos agracia, principalmente pela riqueza investigativa aplicada à

literatura produzida na citada época – que é a mesma da obra que nos serve como

objeto de análise –, bem como pelo fato de nos dar melhor diretriz quanto à

construção das personagens sociais enquanto seres fadados ao fracasso –

caracterização que muito tem a ver com as personagens abordadas neste trabalho

e, consequentemente, com o norteamento dado a esse estudo.

1. Literatura regionalista: breve resgate histórico

Sobre o regionalismo na literatura brasileira, Lúcia Miguel Pereira, na obra

Prosa de Ficção (de 1870 a 1920), publicada em 1976, afirma que“se considerarmos

regionalista qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades

locais, teremos que classificar desse modo a maior parte da nossa ficção”,pois,sob

esse aspecto, é provável que acabássemos considerando regionalista toda a

produção nacional, uma vez que, desde a segunda metade do século XVIII, tivemos

escritores preocupados em construir uma literatura nacional(PEREIRA, 1988, p.

175).

Para tanto, de acordo com a estudiosa, foi necessário traduzir para o texto

literário a realidade e as variantes linguísticas locais e/ou regionais, considerando,

portanto, neste sentido, regional todo texto que não tivesse como pano de fundo o

15

espaço citadino – ocupado, diga-se de passagem, pela burguesia ansiosa de

autonomia política (Cf. PEREIRA, 1988).

No século XIX, estando o Brasil já na condição de Nação Independente,

ocorre no nosso país o advento do romance – contemporâneo à formação das

grandes cidades brasileiras, sobremodo, São Paulo e Rio de Janeiro. Nesta última,

foi instalada a Corte comportando a burguesia “afrancesada”, não só como classe

social em ascensão, mas também como público leitor e consumidor da literatura do

Romantismo. É nesse período que começam a aparecer asnarrativas urbanas, cujo

intuito maior era atender as necessidades deste novo público ansioso por se fazer

“letrado” e, consequentemente, “maduro” intelectualmente, para, deste modo,

competir, socialmente, com a aristocracia vigente (Cf. PEREIRA, 1988).

Desde então, estabeleceu-se um contraste que, se de um lado tínhamos

obras cujo enredo se concentrava na cidade ou tinham-na como referência, como,

por exemplo, A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, Memórias de um

sargento de milícias (1853), de Manuel Antonio de Almeida, Cinco Minutos (1856) e

A Viuvinha (1857), de José de Alencar, de outro, surgiram tramas que procuraram

absorver a coloquialidade e os temas da vida interiorana, consideradas regionalistas,

como O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875), de José de Alencar, Inocência (1872),

do Visconde de Taunay, A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, O

Cabeleira (1876), de Franklin Távora (Cf. PEREIRA, 1988).

Após essa vasta produção literária, aqui apontada apenas uma parte, por

volta do decênio de 1870, especialmente, polêmicas instalaram-se entre intelectuais

e escritores pelo debate sobre as melhores criações regionalistas. Devido a isso,

algumas críticas foram rendidas ao modo como José de Alencar conduzia os seus

romances que, segundo Franklin Távora, falava de lugares completamente

desconhecidos por aquele (Cf. PEREIRA, 1988).

O que se percebe é que, no fundo, o que estava em jogo era uma discussão

sobre a identidade nacional, sobre como expressar essa identidade da maneira mais

fidedigna. Animados pelo desejo da “construção duma cultura válida no país”,

conformeAntonio Candido no Prefácio à 8ª edição da Formação da Literatura

Brasileira, os escritores iniciaram um processo de descobrimento e divulgação do

Brasil por meio da literatura (Cf. CANDIDO, 1997).

16

Durante anos,o regionalismo foi posto em segundo plano por boa parte dos

críticos, talvez, quem sabe, pelas duras críticas que José de Alencar sofrera, ele que

era considerado um expoente da narrativa ficcional. É claro que a formação deste

tipo de literatura deixou-se nortear pelos aspectos exóticos e pitorescos das regiões

desenhadas. Apenas na virada do século XIX para o século XX é que começaram a

circular narrativas regionalistas de maior valor literário – consideradas assim por não

caírem nos clichês e nas armadilhas das primeiras tentativas. A crítica iniciou, a

partir daí, um processo de revisão do regionalismo, que atingiu seu auge, segundo

os teóricos, com a chegada de Guimarães Rosa às letras nacionais (Cf. ABDALA,

1993).

Outra possibilidade para que a literatura regionalista tenha sido considerada

atividade secundária enquanto registro de ordem popular, portanto distanciada dos

interesses burgueses, é o atraso social, político e econômico retratado por esses

textos. Pois, devemos nos lembrar que nesta terra em que o bom era copiar a

Europa, apresentar os problemas das regiões mais remotas do país era demonstrar

que o Brasil não só padecia com o atraso, mas, de certa forma, o exaltava, dada a

pureza que alguns escritores reivindicavam para a literatura nacional, ou seja, uma

literatura sem influências estrangeiras. Vejamos:

As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra.A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro. A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em pureza, em sua genuína expressão (TÁVORA, 2002, p.13).

Com isso, fica claro que o escritor Fraklin Távora defendia com fervor a sua

terra natal, atitude compreensível, já que ele era representante fiel da literatura

romântica exercida naquele dado momento histórico.

A literatura da virada do século XIX para o XX começa a produzir um

regionalismo mais consciente se levarmos em consideração as primeiras tentativas,

o que levou a críticaa um processo de revisão dessa vertente literária que, por sua

vez, atingiu a sua maturidade no Modernismo de 1930.

17

O crítico Antonio Candido, em Brigada Ligeira (1945), abre discussões sobre

a prosa ficcional dos anos de 1930. A abertura do ensaio e toda a primeira parte

merecem atenção especial para o nosso viés analítico sobre o romance de 1930:

Talvez se possa dizer que os romancistas da geração dos anos 1930, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior – entendendo-se por litoral e interior menos as regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência, os padrões de cultura comumente subentendidos em tais designações. Essa dualidade cultural, de que temos vivido, tende, naturalmente, a ser resolvida, e enquanto não for não poderemos falar em civilização brasileira(CANDIDO,1987,p.41).

As palavras do crítico podem parecer ásperas, já que o conflito campo versus

cidade já era extremamente percebido nos anos de 1940 e, mais do que isso, era

um embate brutal: o homem do interior que não sabia do funcionamento da

sociedade moderna, da sociedade citadina. Por isso, Candido – que fez parte de

grupos de oposição ao Estado Novo de Getúlio Vargas – quando afirma que a

civilização brasileira depende da resolução da dualidade cultural entre o campo e a

cidade, ele o faz pensando historicamente no abismo social entre esses espaços

geográficos, algo semelhante ao que já havia sido feito pelo escritor Euclides da

Cunha em Os Sertões.

O romance regionalista de 1930 veio mostrar as contradições e

conflitos de um Brasil que se queria moderno, urbano e industrializado, mas que

guardava também muito dos traços arcaicos em sua diversidade regional. Segundo

os seguidores da vertente regionalista moderna, o país não era composto apenas de

seus estados mais desenvolvidos ou de seus modernos centros urbanos em

expansão. Havia também o campo, dominado por uma sociedade patriarcal em

decadência, assim como, nas cidades, o homem comum, enfrentando,

semelhantemente, problemas sociais. Assim como os autores da literatura proletária,

os autores regionalistas da segunda fase modernista tinham uma preocupação

sociológica e documental, distanciando-se, portanto, do experimentalismo estético

da primeira fase, que tinha por focoabolir as velhas fórmulas – predomínio da

linguagem culta e das formas clássicas na poesia – constituindo-se, por isto, como

“fase heroica”, conforme ficou conhecida pela historiografia literária.

18

A temática agrária aparece com mais força no romance regionalista do que a

temática urbana. Isso pode ser visto pela grande quantidade de obras que foram

dedicadas a retratar os problemas ligados a esse espaço, como por exemplo, o

problema da seca – em alguns romances – ou a decadência dos engenhos de cana-

de-açúcar, como é o caso de Fogo Morto, escolhido para esta análise.

É com esse olhar realista sobre o Brasil, que o regionalismo alcança o seu

ponto alto, pois herdou do regionalismo romântico o interesse pela relação entre os

seres humanos e os espaços que eles habitam, apresentando agora uma

perspectiva mais determinista, recuperando, da literatura Realista do final do século

XIX, o interesse em estudar as relações sociais, tornando-se, por assim dizer, mais

completo.

Além disso, inova ao abandonar a idealização romântica e a impessoalidade

realista, para apresentar uma visão crítica das relações sociais e do impacto do meio

sobre o indivíduo. Essas raízes literárias que relacionam a ficção de 1930 às duas

estéticas do século XIX fizeram com que os romances escritos nesse período

ficassem conhecidos também como neorrealistas.

Tendo como projeto literário revelar como uma determinada realidade

socioeconômica, no caso, o subdesenvolvimento brasileiro, poderia interferir na vida

dos seres humanos, esses artistas se propuseram a mostrar isso a partir da

construção de suas obras com o enredo a nascer das relações entre o contexto

socioeconômico e o espaço (caracterizado de modo bem definido). A maioria deles,

como se sabe, se baseou no conhecimento pessoal da realidade nordestina para

desenvolver esse projeto.

Atentando às palavras de João Luiz Lafetá quanto à diferença entre o projeto

de 1922, cujo caráter estava no campo da estética se diferençando, por isso, do

projeto de 1930 que, segundo o teórico, se encontraria no ideológico:

Entretanto, não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do Modernismo [...]. As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos atrás, se o projeto estético, a “revolução na literatura”, é a predominante da fase heroica, a “literatura na revolução” (para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar), o projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o primeiro plano nos anos 30 (LAFETÁ, 1974, p. 19).

19

Fica claro, nessa citação, que o crítico conseguiu harmonizar as distinções

entre os dois momentos do Modernismo, deixando claro que todo movimento

artístico tem ou um projeto estético – em referência as pretensões da primeira fase

modernista de 1922 – ou um projeto ideológico – em detrimento aos interesses

regionalista ou do que a crítica literária convencionou de ficcionistas de 1930. Assim

sendo, coube à geração de 1922 dar maior relevância às questões estéticas e à

geração de 1930 ao projeto ideológico, subordinando, consequentemente, aquele

grupo de intelectuais a este.

Feitos os devidos esclarecimentos, finalizaremoscom uma discussão sobre a

mudança que se deu quanto ao eixo da ficção brasileira na década de 1930 que se

deslocou do Rio de Janeiro e de São Paulo para Maceió, capital de Alagoas. Pois,

era lá que moravam três dos mais importantes escritores do período: Rachel de

Queirós, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

2.A derrocada e consequentes influências do engenho nordestino na obra de

José Lins do Rego

O primeiro decênio do século XX, no Brasil, é marcado pela busca de

transformar as cidades brasileiras em um "espelho" das cidades europeias. O que se

tinha era uma literatura excessivamente formal, sem preocupações com a realidade,

principalmente no que tange às questões sociais, conforme verificamos no tópico

anterior deste estudo, a partir dos apontamentos de Lúcia Miguel Pereira.

Na segunda década do século XX, por volta do ano de 1922, percebe-se um

rompimento com tais preceitos, estabelece-se agora no Brasil uma nova visão, surge

um Brasil mais nacionalista, valorizando suas várias regiões e culturas, deixando o

país de centralizar-se culturalmente e literariamente apenas nos estados de Minas,

Rio e São Paulo, ouseja, na região Sudeste.

Embora a geração de 1922 tenha sido relevante para a instauração do

movimento modernista brasileiro, é na geração de 1930 que ele ganha maior

repercussão, “com a valorização da narrativa que toma a seu cargo denunciar as

20

problemáticas condições de vida do homem brasileiro e seus estigmas” (HELENA,

2000, p. 43).

Era então a busca pela “literatura nacional”, tentando retratar as diversas

regiões brasileiras com seus tipos humanos, costumes, crenças e linguagem. Nasce

o “romance de trinta” e, através da literatura “inventa-se” um nordeste povoado por

mestiços, pobres, incultos e primitivos (ALBUQUERQUE, 2006, p. 106).

Um dos pioneiros deste processofoi Gilberto Freyre, com Casa Grande

eSenzala, lançado em 1933. Freyre, pela primeira vez na história do Brasil, insere o

negro na sociedade como algo positivo. Mesmo que este livro seja um estudo

sociológico sobre a formação do Brasil, suas ideias contribuíram para o

amadurecimento de diversos escritores nordestinos, dentre eles, José Lins do Rego

que, tendo lançado Menino deEngenho em 1932, mostra clara influência do

estudioso pernambucanoem livros posteriores, como por exemplo, em Banguê

(1934) e Usina (1936), no qual fica evidente a influência de Freyre, mais

especificamente, quanto às suas concepções regionalistas apresentadas por meio

do Grupo Regionalista4(Cf. ALBUQUERQUE, 2006).

Tanto Freyre como José Lins do Rego – dentre outros que, como eles,

descendem de uma aristocracia rural falida, enquanto membros de uma classe cada

vez menos poderosa – encaram o passado patriarcal de modo trágico. Ambos os

autoresveem esse processo de decadência dos engenhos como destruidor das

relações humanas tradicionais que, segundo eles, tornavam a vida mais humana,

uma vez que o homem, em sua grande maioria, senhor ou dependente, estava

desapegado de alguns valores capitalistas, como, por exemplo, o individualismo-

egocêntrico (Cf. ALBUQUERQUE, 2006).

Por este motivo, buscam resgatar um passado onde a elite era mais humana

4 A 28 de abril de 1924 é fundado em Recife o Centro Regionalista do Nordeste. Liderados por

Gilberto Freyre havia nomes como Odilon Nestor, Amaury de Medeiros, Alfredo Freyre, Carlos Lyra Filho e Pedro Paranhos. Tal grupo procurava enxergar o Brasil por meio das suas regionalidades. Em 1925 ocorre a publicação do Livro doNordeste, organizado por Freyre, que utiliza temas de todas as áreas do conhecimento humano e pede a especialistas para que façam um balanço dos 400 anos da história do Nordeste, apontando caminhos para o futuro da região. Finalmente, em 1926, dá-se o Congresso Regionalista do Nordeste, realizado pela Faculdade de Direito do Recife. O pensamento regionalista se monta sob a tríade “tradição”, “região” e “modernidade” – que devem sempre andar de mãos dadas. A tradição é entendida como legado cultural dos índios, negros e portugueses – as três culturas formadoras do Brasil, da unidade nacional (http://www.mafua.ufsc.br/numero13/ensaios/ricardo.htmacesso 15/10/12 às 14h e 56 min.).

21

e protetora, sendo, portanto, mais gentil com seus trabalhadores e comseus

escravos, que adquiriam gratidão para com seus senhores, preferindo, portanto,uma

relação escravocrata patriarcal mais humana do que as novas relações inumanas

que surgiam com o nascimento e crescimento do capitalismo selvagem, como se

pode presenciar, por exemplo, na obra Fogo Morto, mais especificamente na

descrição das relações mantidas entre a família do capitão Tomás Cabral de Melo

com a terra e com sua escravatura.A denúncia social dentro do regionalismo de

ambos tinha como objetivo rejeitar o presente, determinado por frieza nas relações

sociais, e enaltecer o passado mais humano (Cf. ALBUQUERQUE, 2006).

Como uma forma de contrastar com o perfil regionalista dos dois escritores

anteriormente citados, podemos aludir à obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Mesmo sendo consideradaregionalista esta obra não possui idealização alguma.

Para Graciliano nunca houve um Nordeste harmonioso como o que José Lins do

Rego e Gilberto Freyre buscaram mostrar enquanto representantes da aristocracia

rural falida. Ademais, os heróis que permeiam suas narrativas também não são

vistos de modo eufêmico;pelo contrário, Fabiano e sua família são mostrados como

bichos, vitimados pelo sistema, e mal conseguiam articular pensamentos e palavras.

As autoridades em Vidas Secas são retratadas como mesquinhas, não há

esperança de melhoria de vida para nenhum deles, sendo esta obra, um romance de

pura denúncia, ou seja, sem distanciamento da realidade opressora (Cf.

ALBUQUERQUE, 2006).

O que se nota, portanto, é que a esperança, quando apresentada,reside no

aumento de consciência e desalienação do leitor em Graciliano, enquanto que em

José Lins do Rego, por exemplo, encontra-se fadada à efemeridade, por

consequência da fatalidade das relações de poder, econômica e senhorial, do

Nordeste canavieiro esmagado pela Usina.

3. José Lins do Rego e sua obra

Um paraibano, filho de família patriarcal nordestina. Nasce na Vila do Pilar em

03 de junho de 1901. Seus pais eram João do Rego Cavalcanti Sobrinho e Amélia

22

Lins Cavalcanti de Albuquerque. Quando sua mãe morre, José Lins do Rego passa

a morar no Engenho Corredor na companhia de seu avô paterno. Essa mudança

veio favorecer a José Lins se identificar com o ambiente de suas obras, na medida

em que foi testemunha da decadência do engenho de açúcar o qual cedeu lugar às

usinas, um processo que transformou a sociedade, tanto no aspecto econômico

como no individual de cada homem que passara por aquela época.

Quando deu início aos seus estudos, ingressando posteriormente na

Faculdade de Direito do Recife, passa a escrever uma coluna literária para o jornal

Diário do Estado daParaíba. É neste entremeio que conhece Raul Bopp, tornando-

se amigo também de Osório Borba e José Américo de Almeida, autores que vieram

a contribuir bastante na sua vida como escritor.

Forma-se em 1924, e logo após casa-se com Filomena Massa Lins do Rego,

tendo depois três filhas. É neste mesmo ano que conhece o seu futuro grande amigo

Gilberto Freyre. Zé Lins considerava Freyre como o maior responsável pela sua

definição literária (Cf. COUTINHO, 1991).

Em 1925, Rego assume o cargo de promotor público em Munhuaçu, Minas

Gerais. Depois se muda para Alagoas, estreando logo após como romancista,

quando publica o seu primeiro livro, Menino de Engenho (1932), o qual se torna um

grande sucesso entre os críticos.

É com Menino de engenho que José Lins do Rego começa a parte mais

gloriosa da sua criação literária, chamada de Ciclo da cana-de-açúcar. Neste livro,

utiliza-se de experiências autobiográficas, relatando sua infância no engenho de seu

avô que, anos depois, será transformado ficcionalmente na usina BomJesus,

processo relatado por José Lins de forma melancólica, porém, consciente da

fatalidadedesta sucessão– mediante as mudanças econômicas no nordeste

canavieiro –no livro Usina (1936).

É no período do "Ciclo da cana-de-açúcar", em 1935, que se muda para o Rio

de Janeiro. Volta a escrever para os jornais, e destaca-se como cronista. Realiza

várias viagens e tem suas obras publicadas em vários idiomas. Nessa mesma época

a sua paixão por futebol se torna evidente quando se torna um dos diretores do

Clube de Regatas do Flamengo. Em 1955, entra para Academia Brasileira de Letras,

23

falecendo dois anos depois vítima de cirrose hepática (COUTINHO, 1991).

José Lins do Rego, assim como Gilberto Freyre, foram escritores que se

apegaram ao conceito de nacionalidade. É em Casa Grande & senzala (2000) que

Freyre dá sua maior contribuição para o conhecimento do Brasil patriarcal e rural, de

forma detalhista e realista, revelando o processo de formação do Brasil. É uma obra

apegada ao aspecto social, tratando de questões culturais, econômicas e políticas,

criticando também o racismo. É nessa obra que se encontram nas relações sociais a

presença marcante de um sistema patriarcalista e paternalista. Por meio de suas

ideias, Freyre desafiou a elite intelectual daquela época, utilizando como elementos

de valorização da sua obra todas as formas de cultura e manifestações populares,

elevando, assim, a cultura brasileira a um patamar de destaque, por seu sincretismo,

rejeitando toda forma de preconceito pelos elementos que compõem a miscigenação

do povo brasileiro (Cf. FREYRE, 2000).

Em estudo sobre a vida e a obra de José Lins do Rego, o estudioso Edilberto

Coutinho, por meio do seu livroRomance do Açúcar (1980), destaca que:

Como fervoroso adepto do regionalismo tradicionalista, José Lins do Rego ataca violentamente os modernistas carioca-paulistas. A língua de Mário de Andrade, em Macunaíma, aparece-lhe tão arrevesada quando a dos sonetos de Alberto de Oliveira (COUTINHO, 1980, p.11).

Segundo a apreciação feita, José Lins do Rego trazia em si toda a tradição

regional que lhe coube enquanto descendente da aristocracia rural, bem como deste

tipo de literatura. Para Coutinho, era, José Lins do Rego o escritor que mais se

aproximou das idéias de Gilberto Freyre, um de seus pares.Conforme Coutinho, os

dois autores chegaram a desenvolver suas produções textuais no mesmo período.

Enquanto José Lins do Rego lançava o romance Doidinho (1933) – segundo livro

incorporado ao Ciclo da cana-de-açúcar –, Freyre publicava, no mesmo ano,Casa

Grande & senzala, uma das mais relevantes obras sociológicas do Brasil. Tais

produções nos fazem perceber que a grande fonte de inspiração desses dois

nordestinos foram as memórias da sociedade açucareirapatriarcal,contraditória e

elitista da qual descendiam. Portanto, foram eles que deram visibilidade à história

dos engenhos nordestinos.

Nota-se que em Menino de Engenho, Doidinho e Banguê, há forte presença

24

do memorialismo. Por isto, José Lins do Rego opta por um narrador personagem,

Carlos de Melo, que faz o relato autobiográfico de sua infância no engenho Santa

Rosa, o qual as tensões sociais sempre são apontadas. Já em Fogo Morto,

percebemos que as personagens criadas pelo ficcionista paraibano, ganham maior

dinamicidade, trabalhando o autor com vários temas, como cultura popular,

religiosidade, misticismo, e a evidente atmosfera de decadência e melancolia.

É nessas primeiras três obras citadas acima, que José Lins Rego documenta

a história do engenho, revelando o lirismo, mas não elevando a narrativa a uma

tensão predominante – mesmo que em Banguê a tensão interna em Carlos de Melo

já se imponha –, a narrativa fixa-se em cenas que não trazem maior complexidade

dramática (Cf. COUTINHO, 1980).

Quando dá sequência à sua criação literária, busca mais objetividade nos

seus enredos. A narração passa de primeira pessoa a terceira pessoa, e os conflitos

são externalizados, não deixando de lado o caráter descritivo de suas personagens

com seus respectivos dramas pessoais, o que ocorre em Moleque Ricardo, seu

quarto livro.

O Moleque Ricardo é o primeiro romance do autor narrado em terceira

pessoa, passando a fazer parte de suas obras independentes, ou seja, daquelas que

não fazem parte do Ciclo da cana-de-açúcar. O enredo possui um caráter político,

pois retrata a realidade nordestina através da personagem Ricardo, um moleque

serviçal de engenho que passa a ser um proletário urbano, mais especificamente,

um grevista. Neste romance encontra-se a preocupação com as novas práticas e

estilos de vida trazidos com a modernidade, é o que ocorre também em seu

penúltimo livro do ciclo da cana-de-açúcar, Usina, que retrata a decadência dos

engenhos por força do processo industrial e a transformação do Engenho Santa

Rosa em Usina Bom Jesus. Tudo isso somado à enchente do rio Paraíba – que

antecipa a falência do usineiro –, e às dívidas que destroem a antiga propriedade, o

usineiro é obrigado a retirar-se com sua família. Repare como José Lins do Rego

trata da desintegração do engenho pela maquinaria moderna:

A usina Bom Jesus nasceu dessa fraqueza, da luta entre a SãoFélix gananciosa e a família do velho José Paulino, querendo resistir à invasão que vinha de fora. O Dr. Juca sonhava com opoder, com o despotismo que esteira de usina impunha. E o Santa Rosa fora escolhido para sede da

25

fábrica pelas suas condições naturais. Com a compra de mais outras propriedades a usina ficaria em situação privilegiada. Várzeas extensas e água com fartura era tudo para o destino que o Dr. Juca queria dar ao velho domínio do pai. E depois a situação topográfica do engenho era ótima, sobretudo pela proximidade da estrada de ferro e a vizinhança de outros engenhos. Era bem o Santa Rosa o centro de zona capaz de fornecer cana para uma grande fábrica (REGO, 2010, p. 88).

A proposta de progresso que era trazida pela usina era encantadora à

sociedade, que via nesta uma forma de melhorar a vida da população que, por sua

vez, nutria certa desconfiança, posto que não fosse acostumada a tamanha

grandiosidade:

O povo pobre olhava para a usina embevecido. Mulheres tinham vindo de longe para ver. Usina para elas era uma coisa de um poder extraordinário. Queriam ver de perto aquele monstro. Mas não devia haver tanta coisa de extraordinário para contentar aquelas imaginações. A maquinaria estendia-se, as moendas grandes, a roda gigante, e a esteira puxando cana. Tudo maior que o engenho, mas nada com o grandioso que diziam. Os que já haviam visto a Goiana Grande se desapontavam com o tamanho da Bom Jesus. Aquilo era mais um meio aparelho (REGO, 2010, p. 90-91).

Essa modernização acabou não só por causar mudanças sociais, mas

também causar mudanças com relação ao ambiente da poluição do rio, a retenção

da água pela usina, levando as pessoas ao desespero. A queda na produção devida

à estiagem levou logo depois ao declínio do usineiro.

Fogo Morto (1943) é o último livro do "ciclo da cana-de-açúcar", e considerado

pela crítica uma obra-prima. Ambienta-se no Pilar, Estado da Paraíba, a partir de

1848. Divide-se em três partes: a primeira dá ênfase à personagem José Amaro,

seleiro autônomo que vive nas terras do Engenho Santa Fé; a segunda é a história

do Engenho Santa Fé e seu proprietário Lula de Holanda, aristocrata rural, no topo

da estrutura social daquela época; e a terceira mostra a personagem Vitorino

Carneiro da Cunha, parente de José Paulino, do engenho vizinho.

Utilizando-se de uma linguagem coloquial, marcada pela oralidade, por certas

vezes, repetitiva e relaxada, mesclando com espontaneidade, o ficcionista paraibano

consegue dar a Fogo Morto um estilo poético, além de mostrar os problemas

culturais, socioeconômicos e humanos, que serão, por vezes, enfocados nesse

estudo como forma de retratar, também, a distância entre o trabalhador e os ricos

donos de engenho exploradores.

26

Fogo Morto, assim como todas as obras que compõem o ciclo da cana-de-

açúcar, realça o processo de apreensão da realidade social nordestina no século

XX. Em Fogo Morto a narrativa espelha vários conflitos de ordem cultural, porém o

nível mais profundo está no conflito que se aprofunda na estratificação

socioeconômica do Nordeste dos anos 1930. Na abertura do segundo parterevelam-

se esses traços:

O Capitão Tomás Cabral de Melo chegara do Ingá do Bacamarte para a Várzea do Paraíba, antes da revolução de 1848, trazendo muito gado, escravos, família e aderentes. Fora ele que fizera o Santa Fé. Havia aquele sítio pegado ao Santa Rosa, e como o velho senhor de engenho, o antigo Antônio Leitão, não quisesse ficar com aquelas terras, ele ali se fixara. Era homem de pulso, de muita coragem para o trabalho. Ele mesmo dera ao engenho que montou o nome de Santa Fé. Tudo se fizera a seu gosto (REGO, 1997, p.122).

Manter a tradição, para José Lins do Rego, é manter a identidade de um

povo, e um desses elementos é a língua, importante tanto para a construção das

tradições orais quanto para a construção de uma escrita literária.

A proximidade da escrita de José Lins com a língua do povo, a oral, fez com

que ele fosse vítima de alguns críticos que defendiam o purismo da língua culta.

Assim, a valorização da linguagem oral é um dos pontos cruciais na escrita deste

autor, trazendo para a literatura a estilização da linguagem regional autêntica, pura,

sem influência externas.

É válido ressaltar que quando o escritor constrói sua obra baseado na

vivência passada, ele traz à tona elementos que constituíram os fazeres, costumes,

valores e crenças daquela época, recuperando assim a tradição nordestina. Região

e tradição se tornam elementos inseparáveis. Seu memorialismo se torna evidente

quando reconstrói e descreve as personagens e o mundo em que viveu.

No romance que fecha o ciclo da cana-de-açúcar, Fogo Morto, os aspectos

mais marcantes são: denúncia social e enaltecimento da região. A tradição

regionalista está inserida no processo de transição de uma sociedade antes

agrícola, para uma sociedade industrial.

José Lins trabalha com dois elementos caracterizadores da sua criação

literária que constituem o gênero romance: o velho, que sempre se encontra

27

presente, e o novo em fase de afirmação. São estes elementos que fazem da obra

deste autor um referencial da prosa brasileira. Desde a publicação em 1943 da sua

obra Fogo Morto, esta tem sido alvo de estudos dos críticos literários que analisam

seu estilo. Na apreciação de Otto Maria Carpeaux:

O grande valor literário da obra de José Lins do Rego reside nisto: o seu assunto e o seu estilo correspondem-se plenamente. Assim e só assim, conta-se a decadência do patriarcalismo no Nordeste do Brasil, com as suas inúmeras tragédias e misérias humanas e uns raros raios de graça e de humor. Por isso, José Lins do Rego consegue acertadamente o que quer: e isto parece-me o maior elogio que se pode fazer a um escritor. Pode ser que “o homem da terra” nem sempre sabia disso; mas “o homem dos livros”, que há também em Zé Lins sabe muito bem(CARPEAUX, 2005, pp. 19-20).

Essa apreciação elogiosa sobre o ficcionista paraibano é importante para

ressaltar que a contribuição de José Lins na literatura não se restringe a área da

ficção, pois o mesmo escreveu crônicas, artigos, livros de viagem, literatura infantil,

memórias e conferências. Além disso, a obra desse autor é o atestado de

experiência de uma vida que começa no Nordeste em meio aos engenhos e da

desgraça daqueles que são menos favorecidos, refletindo, assim, suas raízes e

ampliando o contexto cultural.

A sua vida se encontra presente em cada um dos romances, e é por isso que

sua biografia se faz relevante para a compreensão de sua produção ficcional. José

Lins desejava, como ele mesmo confessara, traçar a biografia de seu avô que era,

para ele, a representação do senhor de engenho. É diante do cenário canavieiro que

as experiências vividas por ele na infância serviram, assim, de matéria bruta para

sua ficção.

É no ano de sua morte que Carlos Drummond de Andrade faz uma crônica

em sua homenagem, onde expressa o seu ponto de vista sobre a prosa do então

amigo:

Os romances mais autênticos de José Lins, os de sua infância dramatizada, dos quais Fogo Morto é como um epílogo magistral,continuam doendo depois de lidos, porque a narrativa colocou largamente sua presença entre os acontecimentos, seja de forma direta, seja através de impressões e modos particulares de ver e sentir; ofereceu-se em confidência, tocou-nos. Só isso? Não. Seu caso pessoal se insere numa paisagem, numa cultura, numa fase econômica e política, que passam a viver em representação dramática a nossos olhos, despercebidos até então do caráter trágico do panorama, ou ainda não habituados a encontrar toda essa tragicidade em termos (tão simples) de ficção(ANDRADE. In: Correio da manhã, 1957, pp.

28

17 e 18).

É em contato com o mundo rural em sua realidade que José Lins se fez um

escritor de linguagem eclética, livre, com a marcante sonorização do povo

nordestino. Sua espontaneidade no processo narrativo reproduz muito bem a

oralidade dos cantadores e contadores populares do folclore nordestino, como a

Velha Totônia. É por isso que nota-se uma quase escassez de diálogo no romance

Fogo Morto. Em suas obras a linguagem oral brasileira é produzida de forma

autêntica e livre de todas as peias eruditas. Sendo, portanto, marcantes suas

características regionais.

Apesar do reconhecimento de sua produção, encontra-se também oposição

crítica à sua produção literária, como, por exemplo, em Luís Costa Lima, que

negativiza o escritor ao analisar os livros que compõem o “Ciclo da cana-de-açúcar”,

chamando a atenção para a concentração estética. Segundo ele “o tipo resulta de

uma concentração efetuada sobre a ação de personagens, e a visualização tem uma

abrangência maior, compreendendo criaturas e mundos” (2003, p. 344). Fatores que

em sua visão não são observados por José Lins do Rego em Menino de Engenho:

[...] a natureza não se integra com o homem. Ela é simples pano de fundo que orna ou contrasta com a realidade humana. Isso equivale dizer que a visualização e o tipo caminham lado a lado, sem se integrarem. Poder-se-ia dizer que a articulação está justamente no contraste entre o esplendor da natureza, com as suas cores e o frescor dos ventos, e a miséria do homem. No entanto, esta articulação por contrastes não é trabalhada pelo autor. Podemos percebê-la como “matéria” de vida, mas não como formulação contida no conteúdo da obra (In COUTINHO, 2003, p. 346).

Percebe-se, portanto, que o crítico não vê José Lins como um narrativista,

mas sim como um descritivista na perspectiva exigente de George Lukács no artigo

“Narrar ou descrever?” (1965).

Costa Lima ainda afirma que em Doidinho o caráter paisagístico desaparece

na medida em que se restringe às quatro paredes do internato, causando prejuízo à

obra. O crítico ainda afirma que essas visualizações do autor José Lins são

decorrentes da sua incapacidade de articular os fatos, regiões e criaturas.

Essa visão de Lima se baseia em Lukács, pois para o mesmo o escritor que

29

privilegia a descrição de certo modo legitima o existente pela cumplicidade,

tornando-o eterno, acreditando que a realidade descrita em determinado momento é

e será sempre aquela, ignorando dessa forma as mudanças que podem ocorrer a

essa realidade. Assim, Lukács dá preferência a uma literatura que esteja ligada a

uma realidade social vivenciada através do narrar, contrapondo-o à forma descritiva.

Ele afirma que, em face de uma narração, participamos. Já em face de uma

descrição, observamos (LUKÁCS, 1965, p. 50).

Em Fogo Morto, embora José Lins do Rego ainda trabalhe sob o predomínio

da descrição (conforme assinalou Costa Lima) o procedimento adotado abre

caminho para a supremacia da narrativa, uma vez que é uma narrativa não linear e

descentrada, construída a partir de vários pontos de vista, tendo em si três núcleos

diferentes que integram suas personagens no tema maior que é a decadência de um

modo de produção e estilo de vida que acaba envolvendo-os dentro de um destino

coletivo de inadequação e desadaptação.

É dessa forma que emerge diante de nós o José Lins do Rego investigador

que se fez designado para cuidar da derrocada do engenho, da mudança estrutural

socioeconômica, da loucura das personagens, libertando-se de seu memorialismo.

O crítico Antonio Candido diz, de forma bastante pertinente, que essa obra

retrata a história de seres fracassados, heróis, “de decadência e de transição, tipos

desorganizados pelo choque entre o passado e o presente divorciado do futuro”

(CANDIDO, 1992, p. 61). É por isso que, despreparados para poder reagir a esses

desafios causados pelas mudanças econômicas vindas pelo surgimento do

capitalismo, desenvolvem sentimentos de instabilidade e crise existencial que estão

diretamente relacionadas à crise econômica (CANDIDO, 1992, p. 61).

Em meio a essas instabilidades e crises humanas marcadas pela decadência

de uma sociedade patriarcal autoritária é que saltam as personagens nucleares da

obra Fogo Mortoe seus fracassos a serem analisados nos próximos capítulos deste

trabalho.

II - O MESTRE JOSÉ AMARO: AMARGURA E INCONFORMISMO

30

A obra Fogo Morto traz como cenário uma sociedade decadente, marcada

pelo ressentimento de alguns, pelo desajuste e pela revolta, o que resulta, em tudo,

uma atmosfera de ruína social e psicológica, embora existam lastros de uma

felicidade passada, restrita aos afortunados habitantes dos engenhos, conforme

verificaremos no decorrer deste estudo.

Usando de uma ambientação em meio à natureza da várzea, o narrador

conduz o leitor ao mundo de José Amaro. Tal procedimento estético, ao lado do

diálogo, faz da obra um cenário aberto às sensações de toda ordem, causando no

leitor uma espécie de enfrentamento à sua própria condição humana, conduzindo-o

a profundas reflexões, a tal ponto que, alguns, parecem sentir na própria carne a dor

e a angústia dos que se encontram fadados à nulidade e ao fracasso.

Assim é o universo particular do mestre seleiro. Dor e angústia que não têm

fim. Mesmo diante de tanta penúria, nos interessa investigar sobremodo a vida desta

personagem, adentrar em sua alma e buscar respostas. Para tanto, comecemos

analisando passo a passo os procedimentos estéticos utilizados pelo romancista

paraibano, José Lins do Rego, quanto à composição do mestre José Amaro.

Antes mesmo de apresentar ao leitor o lugar social ocupado pela personagem

por meio de sua profissão, “seleiro dos velhos tempos”, de suas posses, como a

“casa de taipa, de telheiro sujo”, de seus apetrechos de trabalho (a quicé, o martelo

e a sola), ou até mesmo de sua família (Sinhá e Marta), o autor quebra o habitual

fazendo-o através de suas características físicas, chamando a atenção do leitor para

as aparências que, embora nesta obra fiquem em segundo plano, já que o que mais

interessa ao escritor é o universo interior de suaspersonagensdesvalidas, serão

imprescindíveis para que se possa, não só manter um maior contato com o

protagonista, bem como com a decadência que se constituirá no fracasso e que se

estabelecerá em toda a narrativa, permitindo, ao leitor, estar face a face com esta

condição.

O mestre José Amaro, personagem principal da primeira parte – das três que

compõem este romance –, é apresentado como um “velho de aparência doentia, de

olhos amarelos, de barba crescida” e que arrastava uma perna torta (REGO, 1997,

p. 12).

31

Adentrando nos aspectos físicos do mestre seleiro por julgarmos tais

elementos essenciais quanto à verificação de seu estado degradado, percebemos

que o narrador de Fogo Morto não poupa o leitor em nada. Nada de fantasias, nada

de eufemismos. O enredo permite encarar a decadência total e absoluta que toma

toda a obra. A decadência física da personagem é marca de sua condenação à

ruína. A todo o momento, o romancista atenta para a construção física de sua

personagem central como a dizer ao leitor que o aviso está dado quanto ao fracasso

que está por ser configurado. Observe-se: “A barba grande, os cabelos enormes

cobrindo-lhe as orelhas davam às feições deformadas do mestre um aspecto de

bicho, de monstro. Ele não sabia de nada. Olhava para tudo com os olhos famintos”

(REGO, 1997, p.96).

Tal construção “monstruosa” ultrapassa as normas da mera compleição, pois,

além dos componentes físicos apresentados, nos chama a atenção a descrição dos

olhos do mestre. Tal exposição nos leva a considerar um velho dito popular de que

“os olhos são o espelho da alma”. Em consonância com o que foi citado, percebe-se

que a ressalva dada aos olhos do seleiro nada mais é do que resultado de duas

situações. A primeira, mais próxima do sentido denotativo, apresenta o resultado de

seu contato permanente com a sola, já que esta constitui uma das ferramentas de

seu trabalho enquanto artesão; a segunda, mais próxima da conotação, faz atentar

para algo mais profundo, como, por exemplo, a descrição da alma do mestre que,

como os seus olhos, está doente, daí a sua aparência assustadora. Vejamos: “Que é

que tinha de verdade seu compadre? Que raiva era aquela? Nunca o vira tão

amarelo, com os olhos como se fossem de gema de ovo. Devia ser que a doença

estivesse apertando” (REGO, 1997, p.43). Essa era a impressão de Adriana –

mulher de Vitorino -, com relação ao estado do Mestre Amaro, já permeado de

traços degradantes.

A cor amarela é usada como metáfora da palidez de sua vida, de sua

existência condicionada ao desencanto e, por conseguinte, de seu malogro. Nada

lhe satisfaz de forma duradoura. Tudo em sua vida se resume ao mero temporário,

pois seu destino está sentenciado ao degredo e à solidão. Em todo o enredo da

primeira parte, presenciamos tal condição, como, por exemplo, nesta passagem:

“Estou perdendo o gosto pelo ofício. Já se foi o tempo em que dava gosto trabalhar

numa sela. Hoje estão comprando tudo feito. E que porcarias se vendem por aí!”

(REGO, 1997, p. 12). Nesta passagem, percebemos o desgosto de Amaro frente ao

32

seu trabalho como seleiro, desgosto aumentado por sua idade já avançada e por

não ter tido nenhum filho para lhe repassar o ofício de seleiro “Estou velho, estou

acabado, não tive filhos para ensinar o ofício, pouco me importa que não me

procurem mais. Que se danem. O mestre José Amaro não respeita lição de

ninguém” (REGO, 1997, p.13).

A literatura, segundo Lúcia Miguel Pereira (1988), enquanto arte faz uso de

diversos mecanismos estilísticos, dentre eles, no que tange à escrita, tanto pode ser

utilizada do ponto de vista da informação, quanto da figuração, proporcionando

efeitos estéticos que se dão, sobremodo no ato da leitura, por meio do processo da

construção textual. Portanto, os olhos seriam caracterizados como efeito de seu

trabalho no couro e de seu hábito de cheirar sola o dia inteiro, bem como do reflexo

do seu estado interior. Consequentemente, seus olhos se configuram uma pequena

amostra de sua infelicidade mais do que latente. São estes “olhos amarelos”, da “cor

de um branco de preso de cadeia” que dão ao mestre “um ar diferente dos outros

homens” (REGO, 1997, p. 32) e que farão, mais tarde, com que o povo da bagaceira

passe a acreditar que ele era um monstro noturno que chupava o sangue dos

desafortunados que cruzavam o seu caminho em noite de lua cheia, como

verificaremos adiante.

Mesmo gozando de certa liberdade frente aos seus pares por ser homem

branco, de voto livre e ter uma profissão, José Amaro ainda é um indivíduo que

precisa se calar – mesmo que este resista em determinadas situações – diante dos

poderosos da região para não ser punido. É morador – desde o tempo de seu pai –

nas terras do coronel Lula de Holanda, proprietário do engenho Santa Fé. Sua

chegada às terras do engenho também foi resultado de sua ruína pessoal e por

consequência de sua família, pois o que levou seu pai a morador do engenho em

que reside foi um crime de morte. O mestre José Amaro recebeu como herança do

seu genitor a desgraça deste ato. Seu pai, mestre artesão e homem de fibra – aos

olhos do mestre – anteriormente ao crime, gozou de certo reconhecimento quanto à

sua profissão, ao ponto de uma de suas peças, mais especificamente uma sela, ter

sido dada de presente, pelo barão de Goiana, ao imperador. É em face de um

passado de glória do seu pai, que a decadência de José Amaro torna-se mais

dolorosa:

33

Aqui moro para mais de trinta anos. Vim parar aqui com o meu pai que chegou corrido de Goiana. Coisa de um crime que ele nunca me contou. O velho não contava nada. Foi coisa de morte, esteve no júri. Era mestre de verdade. Só queria que o senhor visse como aquele homem trabalhava na sola. Uma peça dele foi dada pelo barão de Goiana ao imperador. Foi pra trás. Veio cair nesta desgraça. É a vida, seu Laurentino. O mestre José Amaro não é homem para se queixar. Estou somente contando. Aguento no duro (REGO, 1997, p. 14).

Outro fator de configuração de seu fracasso quanto à sua condição de

rebaixado frente aos grandes da região é o grande desafeto que nutre pelo coronel

José Paulino, proprietário do engenho Santa Rosa e que, tempos atrás, lhe

desfeiteou com gritos, ocasionando, com isto, uma rixa do mestre com o mesmo.

Orgulhava-se por nunca ter cortado sequer uma tira de couro para o seu inimigo.

Numa conversa informal com um dos transeuntes das terras do Santa Fé, mais

especificamente com o pintor Laurentino, o mestre diz:

- Vai trabalhar para o velho José Paulino? É bom homem, mas eu lhe digo: estas mãos que o senhor vê nunca cortaram sola para ele. Tem a sua riqueza, e fique com ela. Não sou criado de ninguém. Gritou comigo, não vai. (...) A bondade dele não me enche a barriga. Trabalho para homem que me respeite. Não sou um traste qualquer. Conheço estes senhores de engenho da Ribeira como a palma da minha mão (REGO, 1997, p.12).

No presente diálogo entre o mestre e o pintor que vai ao engenho Santa

Rosa, do coronel José Paulino, “para um serviço de pintura na casa-grande” (REGO,

1997, p. 12.), pois a filha deste está para se casar, podemos verificar a recusa de

José Amaro em servir ao seu desafeto. É por meio desta conversa que o interlocutor

mantém o primeiro e importante contato com a voz amargurada e revoltada do

seleiro, além de tomar conhecimento da desavença do mestre com o proprietário

das terras do Santa Rosa.

Outro momento de revelação por meio do discurso do seleiro, no que tange à

desavença entre o mesmo e José Paulino, pode ser percebido numa conversa entre

José Amaro e um carreiro – condutor de carro de boi –, que, no momento, prestava

serviço a José Paulino. Segundo o serviçal, o coronel havia encomendado alguns

correames (correias de couro) para os bois no Pilar, porém ele (o carreiro) gostava

mais do trabalho do mestre. Após um olhar sarcástico, como quem nada deve, fala o

mestre:

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- É encomenda do Santa Rosa? Pois, meu nego, para aquela gente não faço nada. Todo mundo sabe que não corto uma tira para o coronel José Paulino. Você me desculpe. É juramento que fiz. (...) - Se fosse para você, dava de graça. Para ele nem a peso de libra. É o que digo a todo mundo. Não agüento grito. Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um lambe-sola, mas grito não leva (REGO, 1997, p. 17).

Como a análise passa pelo processo de decomposição, o autor decompõe as

personagens como forma de expor a constituição do todo, mostrando os traços

marcantes de cada personagem, suas diferenças e semelhanças. Assim, José

Amaro, peça chave neste capítulo, se constitui como personagem curiosa. Seu perfil

psicológico já se faz notar não só por meio do excerto acima apresentado, bem

como a partir da etimologia do seu nome, proveniente da palavra latina “amarus” ou

“amargo” – um paradoxo, já que o mesmo vive em meio ao “doce” açúcar da cana –

dando a entender quão profunda é a amargura desta personagem. Com isso, o autor

tira do leitor qualquer possibilidade de expectativa contrária ao que é apresentado. É

a iniciação para a configuração do fracasso no protagonista e na obra, componente

este que é retomado a todo instante na narrativa por meio de vários elementos.

Tanto é assim que o narrador, após mais uma conversa entre o mestre e o

pintor quanto ao gosto daquele pelo ofício, dá ao leitor mais um elemento

representativo do fracasso, agora, no que tange à função de seleiro (artesão)

naquelas paragens onde os produtos manufaturados (industrializados) eram

considerados marcas do “progresso”:

Hoje estão comprando tudo feito (...) Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por muita preciosidade que vejo. Basta lhe dizer que o seu Augusto do Oiteiro adquiriu na cidade uma sela inglesa, coisa cheia de arrebiques. Pois bem, aqui esteve ela para conserto. Eu fiquei me rindo quando o portador do Oiteiro me chegou com a sela. E disse, lá isto disse: “Por que seu Augusto não manda consertar esta bicha na cidade?”. E deu por ela um preção. Se eu fosse pedir o que pagam na cidade, me chamavam de ladrão. É, mestre José Amaro sabe trabalhar, não rouba a ninguém, não faz coisa de carregação. Eles não querem mais os trabalhos dele. Que se danem. Aqui nesta tenda só faço o que eu quero (REGO, 1997, p. 12-13).

Como se pode perceber, a palavra “progresso” adquire sentido dúbio no

contexto da narrativa, se levarmos em consideração que o benefício destas

mudanças foram usufruídos pelos “afortunados”, os chamados “bem-nascidos”, o

que não era o caso de José Amaro, fadado à categoria de “rebaixado”, como

35

também de outros indivíduos que cercavam as redondezas do Engenho Santa Fé,

como, por exemplo, Torquato (cego errante que vive da “caridade” dos outros e

espia do cangaceiro Antonio Silvino), Alípio (aguardenteiro), Manoel de Úrsula

(caçador)e José Passarinho (negro e alcóolatra) o qual não detinha o respeito de

ninguém daquela região.

Mesmo sendo competente em sua atividade enquanto mestre seleiro,

inclusive o único naquelas redondezas, a Usina – responsável pelo progresso acima

apontado – fez de sua profissão algo obsoleto. A ascensão da industrialização por

toda a região da Paraíba fez com que trabalhos artesanais – manuais – fossem

deixados de lado, sendo agora mais interessante para a população consumir um

produto industrializado, deixando assim os trabalhos manuais à margem desse

processo, e, portanto, tornando estas profissões decadentes, o que afeta não só a

vida particular desses indivíduos, mas toda a população que os cerca.

É interessante notar que, em meio às contradições da modernidade, ao

mesmo tempo em que a indústria faz de sua arte algo ultrapassado, faz também

com que a mesma se torne algo raro, o que, por sua vez, constitui uma vantagem,

mesmo que mínima – diante da decadência que causou à profissão - para José

Amaro. Além de ser branco, é a sua profissão que faz dele um cidadão livre, entre

tantos subjugados aos senhores da terra, como podemos verificar nos excertos

abaixo:

Trabalho para homem que me respeite. Não sou um traste qualquer. Conheço estes senhores de engenho da Ribeira como a palma da minha mão (REGO, 1997, p. 12). É o que lhe digo, seu Laurentino. Você mora na vila. Soube valorizar o seu ofício. A minha desgraça foi esta história de bagaceira. É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo nesta casa como se fosse dono. Ninguém dá valor a oficial de beira de estrada. Se estivesse em Itabaiana estava rico. Não é lastimar, não. Ninguém manda no mestre José Amaro (REGO, 1997, p. 14).

Quanto à construção discursiva da narrativa, é válido salientar que todo o

diálogo mantido entre José Amaro e Laurentino se dá da forma mais prosaica

possível, uma vez que os mesmos pertencem ao mesmo lugar social. Como se

sabe, o primeiro é um seleiro; o outro um pintor de paredes. Ambos trabalhadores

braçais a serviço dos poderosos daquela região, ou seja, membros da mesma

categoria.

36

O recurso estilístico utilizado pelo autor é tão eficiente nesse propósito que a

comunicação flui, não só entre as personagens propriamente ditas, bem como com o

leitor que participa de início de modo indireto, depois, passando a uma interatividade

maior uma vez que este tece, no instante em que toma contato com esse

entrelaçamento de discursos, “conclusões” ou (pre)conceitos quanto aos planos de

ordem social e de ordem existencial e/ou psicológica.

José Lins do Rego marca toda a primeira parte de Fogo Morto pela oralidade.

Tal estratégia permite um maior aproveitamento da informalidade decorrente do

discurso prosaico. Como se sabe, isto ocorre, sobremodo pelos diálogos

apresentados, como também, por meio das ações e reflexões dos atores sociais.

Entretanto, é válido salientar que o discurso indireto-livre predomina na obra, porém

em situações especiais, como, por exemplo, na investigação do universo psicológico

de suas personagens, pois nelas reside o interesse maior do escritor enquanto

romancista.

José Lins do Rego foca o humano, pois é nele que reside a sua verdadeira

arte, enquanto ficcionista telúrico. Para tanto, comecemos observando o discurso do

seleiro com os diversos transeuntes que cortam todos os dias a estrada de terra

batida do engenho onde mora como oficial “de beira de estrada”.

A importância deste procedimento dialógico entre as vozes que falam,

sobremodo representadas pelas personagens atuantes, interferindo sobre as “não-

ditas”, pode ser verificada através das análises de Bakhtin, em seu texto Questões

de literatura e de estética (1990), especificamente quanto à pessoa que fala no

romance. De acordo com o teórico russo, o “homem” presente no romance moderno

é “essencialmente o homem que fala”, pois “o romance necessita de falantes que lhe

tragam seu discurso original, sua linguagem” (BAKHTIN, 1990, p. 134).

Por pensar assim, o estudioso russo afirma que é imprescindível destacar três

momentos acerca do homem que “fala” e sua “palavra”. Vejamos cada um deles, por

meio das palavras do próprio filósofo da linguagem:

No romance, o homem que fala e sua palavra são objeto tanto de representação verbal como literária. O discurso do sujeito falante no romance não é apenas transmitido ou reproduzido, mas representado artisticamente e, à diferença do drama, representado pelo próprio discurso

(do autor) (BAKHTIN, 1990, p. 135).

37

Numa primeira discussão sobre a pessoa que fala no romance, Bakhtin

acredita que o “herói” é o principal objeto desse gênero textual, pois, tanto é dele a

“voz” que fala, bem como a “palavra” (Cf. BAKTHIN, 1990, p. 135) que materializa o

seu discurso, ou seja, para o teórico russo “a pessoa que fala e seu discurso.

Constituem um objeto específico enquanto objeto do discurso”, consequentemente,

“não se pode falar do discurso como se fala dos outros objetos da palavra”, como

por exemplo, os “objetos inanimados”, os “fenômenos”, os “acontecimentos” etc.

Portanto, para Bakhtin, ficaria a cargo de o discurso exigir atos “formais especiais”

do “enunciado” e da “representação verbal”, pois, para o estudioso, não existe

sujeito mudo, logo, o papel da literatura, enquanto gênero discursivo privilegiado no

que diz respeito à representação da complexa natureza dialógica da linguagem, faz-

se imprescindível para compreendermos as consequências da fala da personagem

na forma romanesca que é, sobretudo, o principal objeto deste tipo de texto

narrativo, pois, sem o homem e seu discurso não haveria a existência do próprio

romance enquanto estrutura atravessada de discursos (Cf. BAKHTIN, 1990, p. 135).

Num segundo momento, Bakhtin traça uma nova reflexão sobre o herói

romanesco, agora, como “sujeito” do enunciado, uma vez que “é um homem

essencialmente social, historicamente concreto e definido”, sendo a sua voz “uma

linguagem social (ainda que em embrião), e não um „dialeto individual” (BAKHTIN,

1990, p. 135).

Ao fazer tal afirmação, o filósofo da linguagem reflete sobre algumas marcas

presentes no “sujeito” – enquanto elemento individual – do romance, tais como: o

“caráter”, os “destinos” e o “discurso”. Para Bakhtin, esses elementos individuais são

“indiferentes para o romance”, já que as peculiaridades da palavra dita pelas

personagens refletem uma certa “significação” e uma provável “difusão social” que,

segundo ele, constituem, por esse motivo, apenas “linguagens virtuais”. Para o

teórico russo, a voz de uma personagem também pode converter-se em resultado

de “estratificação da linguagem”, ou seja, uma “introdução ao plurilinguismo”

(BAKHTIN, 1990, p. 135).

Por último, Bakhtin observa que esse sujeito que fala no romance é, via de

regra, um “ideólogo”, e a materialização de seu discurso é sempre um “ideologema”.

Deixemos que o próprio teórico se explique:

38

Uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social. Precisamente enquanto ideologema, o discurso se torna objeto de representação no romance e, por isso, este não corre o risco de se tornar um jogo verbal abstrato. Além disso, graças à representação dialogizada de um discurso ideologicamente convincente (na maioria das vezes atual e eficaz), o romance favorece o esteticismo e um jogo verbal puramente formalista, menos que todos os outros gêneros verbais. Assim, quando um esteta se põe a escrever um romance, seu esteticismo não se revela absolutamente na construção formal, mas no fato de que o romance representa uma pessoa que fala que é ideólogo do esteticismo, que desvenda sua profissão de fé, sujeita a uma aprovação no romance (BAKHTIN, 1990, p. 135).

Ponderando sobre as conclusões bakhtinianas sobre a pessoa que fala no

romance e seu discurso, percebe-se que, tanto a “pessoa” (sujeito), bem como o

“discurso” (palavra), constitui o “objeto” que especifica o romance, criando, segundo

o estudioso, a originalidade deste gênero, mesmo que, no romance, “não se

apresente apenas o homem que fala”, ou seja, esse homem no romance é um ser

movido pela “ação” que, por sua vez, é “sempre iluminada ideologicamente”, mesmo

que o seu discurso seja “virtual” (BAKHTIN, 1990, p. 136).

Portanto, para Bakhtin, tanto a ação quanto o comportamento do sujeito

presente na narrativa romanesca devem ser levados em consideração, pois são

“indispensáveis” tanto para a “revelação” como para a “experimentação” de sua

“posição ideológica”, de sua “palavra” (Idem, ibidem, p. 136).

Em consonância com as formulações do estudioso russo sobre o

comportamento do sujeito na narrativa ficcional, analisaremos o perfil de José Amaro

em meio à sua condição de morador de terras alheias e de oprimido socialmente.

Apesar de representar a figura do aviltado socialmente, nos chama a atenção a sua

situação de mediador social, pois na tradição colonialista de que nossa civilização é

produto José Amaro aparece como oficial, ou seja, tem habilidade que se constitui

em sua fonte de renda, fato que o distingue na sociedade, já que os demais ou são

latifundiários ou lavradores de terras que já têm dono, exercendo, por assim dizer,

uma relação de “vassalagem”, como era praticada na Idade Média. Observemos:

- Todo o mundo pensa que o mestre José Amaro é criado. Sou um oficial, seu Pedro, sou um oficial que me prezo. O coronel Lula passa por aqui, me tira o chapéu como um favor, nunca parou para saber como vou passando. Tem o seu orgulho. Eu tenho o meu. Moro em terra dele, não lhe pago foro, porque aqui morou meu pai, no tempo do seu sogro (...) Sou pobre, seu

39

Pedro, mas sou um homem que não me abaixo a ninguém (REGO, 1997, p. 20).

Como se percebe, a condição de mediador social que o mestre ocupa na obra

por ter uma profissão, que lhe confere dignidade frente aos senhores de terras, bem

como o respeito dos trabalhadores braçais daquelas paragens, também faz deste

um desinteressado por aquela que serve de base de sustentação tanto dos grandes

quanto dos pequenos, a terra. Um destes motivos é o fato de que o mestre, antes

mesmo de vir morar na Várzea, habitava em Goiana, juntamente com sua família.

Portanto, como podemos observar, o mestre não tinha nenhum vínculo mais próximo

com o trabalho rural, não existia nenhuma “tradição” de pai para filho como nos

vínculos familiares da região canavieira da Várzea, já que José Amaro e os seus

parentes eram todos da cidade. Vejamos:

Fora sempre de seu ofício, sempre pegado no couro, cortando sola, batendo brocha. A terra lhe era distante. Viu a várzea coberta de lavoura, olhava as vazantes, os altos e nunca reparara que tudo aquilo era o poder, era a força verdadeira do homem. Sabia que o homem tirava tudo da terra, que a terra paria tudo (REGO, 1997, p. 79).

Este alheamento em relação à terra, ocasionado pelo seu ofício é que o

mantém livre das peias e dos maus tratos dos poderosos. Ademais, para o mestre,

ele era homem livre – mesmo agregado a uma terra que não era sua. Tanto é assim

que não obedece a ninguém. Como ele mesmo faz questão de enfatizar:

- Seu Floripes, pode dizer ao coronel que o mestre José Amaro não é escravo de homem nenhum. Eu voto em quem quero (...) Não voltaria mais a trabalhar no Santa Fé. Mudaria de terra, mas ninguém pisaria por cima dele (REGO, 1997, p. 34-35). Sou homem de meu trabalho. O que eu digo, não escondo de ninguém. Estou nesta terra há muitos anos e nunca tive que me rebaixar a ninguém (REGO, 1997, p. 47).

Além do seu ofício, outro fator que faz do mestre seleiro um agente no seu

meio social é a sua cor. Por ser o mestre um homem “branco”, eleva-se em meio a

tantas pessoas de cor que, por isto mesmo, eram rebaixadas a categoria de

trabalhadores de eito ou escravos, ou seja, pessoas carregadas de conotações

negativas devido ao contexto histórico de escravidão e, consequentemente,

subserviência. Tal condição dava ao mestre mais um elemento de distinção frente

40

aos demais, já que sua cor era tida como sinônimo de respeito, por ser justamente a

cor dos que habitavam a casa grande e dos cidadãos livres. Tanto é assim que o

mestre, de modo semelhante aos poderosos, além de usufruir da liberdade – em

termos de cativeiro –, tem direito ao voto, o que faz dele um cidadão livre, pois pode

decidir quem deve ou não ocupar os altos cargos políticos. Para os grandes, o voto

representava continuar no mando; para o mestre, uma arma poderosa contra

aqueles. Vejamos:

Com pouco mais era a casa do mestre José Amaro. Sim, era o José Amaro da Silva, eleitor de voto livre, o seu compadre José Amaro. Pelo seu gosto o padrinho do seu filho Luis seria o primo José Paulino. Mas a sua mulher tomou o seleiro. Mulher teimosa, de vontade, de opinião (REGO, 1997, p. 25). Tivera um primo barão no governo da província. Antes de chegar em casa ia dar uma conversa com o compadre José Amaro. Não era de família como a sua, mas era homem branco, o pai fora filho dum marinheiro de Goiana (REGO, 1997, p. 26).

Diante dessas palavras acima do narrador, por meio do discurso indireto-livre,

José Lins do Rego cria um espaço para que surja, na construção psicológica do

mestre, uma sombra de proporções devastadoras, como, por exemplo,

manifestações expressas ao longo do enredo e na relação com as outras

personagens que favorecerão também a análise da sombra coletiva, em

consonância com as atitudes da personagem em questão. Tudo isto presenciado

pelo leitor, que toma contato com a engenharia estética e o discurso inconformado

do mestre seleiro, como pode ser observado nos excertos abaixo:

Batia forte na sola, batia para doer na sua perna que era torta. Que lhe importava o cabriolé do coronel Lula? Que lhe importava a riqueza do velho José Paulino? As filhas do rico morriam de parto (REGO, 1997, p. 19). - Homem, não estou falando de seu Augusto. Estou falando é da laia toda. Não está vendo que, comigo delegado, a coisa não corria assim? Aonde já se viu autoridade ser como criado, recebendo ordem dos ricos? Estou aqui no meu canto mas estou vendo tudo. Nesta terra sé quem não tem razão é pobre (REGO, 1997, p. 18).

Como podemos observarJosé Amaro não só representa sua situação, como

também de outras personagens – seus pares –, tornando-se, por isso, universal e,

consequentemente, corroborando a importância de sua existência oprimida para

esta análise, além de nos incitara buscar respostas que façam sua vida decadente

41

adquirir sentido no que tange à verificação do processo de elaboração

ficcionalrepresentativa do seu fracasso.

O narrador não poupa tintas na configuração quanto à condição fracassada

de José Amaro em meio ao contexto social em que este se encontra. De modo

gradativo, José Lins do Rego constrói esta identidade – socialmente oprimida e

existencialmente decadente – conforme presenciamos. Primeiro por meio da

aparência física do protagonista e ao mesmo tempo, por meio do seu discurso

amargurado. Agora, o narrador atenta para mais um elemento configurador deste

estado: a constituição familiar do mestre seleiro.

É aqui que o leitor se depara com um dos momentos mais íntimos no que

tange à amargura de José Amaro. Sua família é um verdadeiro fracasso. Seu

casamento – arranjado – com uma mulher mais velha (Sinhá), por quem nutre

profundo ódio, ao invés de lhe proporcionar algum resultado positivo (como por

exemplo, um filho homem para ensinar o ofício e defendê-lo contra a injustiça do

mundo), “que fosse macho, de sangue quente, de força no braço” (REGO, 1997, p.

16), dá-se, exatamente o contrário, tem uma filha, Marta, que, além de ser mulher e

doente, ainda não havia se casado. Duas condições nada satisfatórias para as

exigências patriarcalistas daquele meio, onde só o universo masculino tem vez.

Esta situação certamente se constitui como uma das maiores razões para

este (res)sentimento contra sua mulher. Porém, uma pergunta se faz necessária:

seria esse o cerne de sua mágoa profunda? Da batida forte do seu martelo que

quebra todo o silêncio da Várzea todas as vezes que pensa em sua vida? Vejamos:

Era a sua mulher Sinhá e não podia esconder o seu ódio por ela. Agora viu a filha sair de casa com uma panela na cabeça, caminhando para o chiqueiro dos porcos. Era de fato a sua filha, mas qualquer coisa havia nela que era contra ele. O mestre José Amaro viu-a no passo lerdo, no andar de pernas abertas e quis falar-lhe também, dizer qualquer coisa que lhe doesse. Martelou mais forte ainda a sola e sentiu que a perna lhe doeu. Com mais força, com mais ódio, sacudiu o martelo. Era a sua família. Uma filha solteira, sem casamento em vista, sem noivo, sem vida de gente (REGO, 1997, p. 22).

Percebe-se que o romancista adentra cada vez mais no universo aflitivo de

sua criação ficcional, deixando o leitor mais inteirado do que está por ser dito, além

de criar, com isto, uma atmosfera de identidade entre o leitor e a personagem, cuja

42

ambientação facilita a legitimação do discurso amargurado propriamente dito. Todo

este processo narrativo não é aleatório. Desde a opção pelos diálogos (registro

informal) que tomam toda a primeira parte da obra, como já foi citado, esta

ambientação “afetiva”, entre os agentes do discurso (personagem e leitor), constitui-

se como mais um dos recursos estilísticos de José Lins do Rego para dar maior

verossimilhança aos fatos narrados. Com isso, o romancista faz o leitor sentir na

própria alma o quão desgraçada é a vida do mestre seleiro e, por extensão, dos que

com ele convivem.

É importante usar de sensibilidade para compreender tamanha decadência,

uma vez que toda ela percorre a obra e toma a alma de José Amaro. A descrição da

residência do mestre se configura como uma das metáforas mais curiosas presentes

na obra, pois nos sugere o estado de alma desta personagem. A desordem é tão

desproporcional quanto o seu desequilíbrio emocional. O mestre, pouco a pouco

entra num estágio de degradação pessoal, o que pode ser acompanhado em alguns

momentos como, por exemplo, na passagem: “Dentro de casa o cheiro de sola

fresca recendia mais forte que o da comida no fogo. Viam-se, por toda parte, arreios

velhos, selas arrebentadas, e pelo chão, pedaços de sola enrolados” (REGO, 1997,

p. 13).

A descrição da casa de forma caótica demonstra uma das tantas situações da

decadência interior do mestre seleiro, como também a pobreza e a atmosfera de

malogro e ruína em que vive, assim como sua vida. Falta-lhe encantamento para a

sua existência e, como se sabe, uma das bases de sustentação humana é a

estruturação familiar, o que não é o caso da personagem em questão. A condição

de pai de uma filha “pálida, com seus trinta anos, de pele escura, com cabelos

arregaçados para trás” (REGO, 1997, p. 14) e sem nenhum pretendente, aguça no

mestre, além de sua ira, o receio de ser alvo de chacota, como acontecia, por

exemplo, com as moças dovelhoLucindo que, vítimas das brincadeiras de alguns

rapazes que, “nos dias de quaresma, apareciam para serrar caixão na sua porta,

altas horas da noite” (REGO, 1997, p. 36), assim comoacontecia com a filha do

capitão Gila do Itambéque, não suportando mais a zombaria dos peraltas, “disparou

um clavinote carregado de sal em cima da rapaziada” (REGO, 1997, p. 36).

Devemos atentar, em meio a toda ruína pessoal do mestre, para outro fator

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que se faz importante na obra em estudo: o casamento. Por meio dele, as famílias

adquiriam e/ou reafirmavam o status ou apenas cumpriam uma das “obrigações”

sociais no meio em que viviam. É interessante perceber que a união entre duas

pessoas por meio das bênçãos da Igreja já teve o seu importante papel na literatura.

Inclusive, este compromisso, além dos elementos acima apontados, foi visto, no

século XIX - mais precisamente no período conhecido como Romantismo – como

consolidação do verdadeiro amor entre os apaixonados, bem como uma das formas

de adquir o “dote” (espécie de renda extra dada ao noivo pelo sogro como forma de

manter o alto padrão financeiro da nova família), prática comum entre os membros

da burguesia, classe social que, na época, configurou-se como público leitor e

consumidor deste tipo de literatura (Cf. BOSI, 1994).

Porém, na obra em estudo, o casamento adquire outro rumo, diferente dos

chamados romances urbanos ou citadinos, cujos valores são outros. Repare que o

meio (ambientação rural) e a classe social dos marginalizados são diferentes.

Tomando como base um dos romances da literatura brasileira de caracterização

interiorana, como, por exemplo, Inocência (Visconde de Taunay), podemos verificar

que no meio ambiente campesino, faz-se exigir o cumprimento de algumas normas,

como casar com alguém de posses para uma reafirmação social ou, até mesmo,

para não ficar no “caritó”, como é o caso de Sinhá, esposa do mestre Amaro.

Portanto, casar sua filha, era uma obrigação, um dever, já que ambos atuam como

personagens fadados ao fracasso e à nulidade social, sem chances de mudanças

quanto à sua condição. Daí um dos grandes desgostos do seleiro. A moça passara

da idade, vencera o prazo de validade. O que resulta, na obra, em duas situações

malogradas: o mau êxito como pai (por não casar a filha) e a doença mental de

Marta (pela rejeição do pai e por não conseguir um pretendente). Reparemos nas

palavras amarguradas de Sinhá sobre esta condição:

Pobre da Marta que o pai não podia ver que não viesse com palavras de magoar até as pedras. Por ela não, que era um resto de gente só esperando a hora da morte. Mas não podia se conformar com a sorte de sua filha. O que teria ela de menos que as outras? Não era uma moça feia, não era uma moça de fazer vergonha. E no entanto nunca apareceu rapaz algum que se engraçasse dela. Era triste, lá isto era. Desde pequena via aquela menina quieta para um canto e pensava que aquilo fosse até vantagem (REGO, 1997, p. 45).

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O desgosto, por assim dizer, partia tanto do pai como da mãe, ambos fadados

ao encargo, como pais, de casar a única filha que tinham. Esta imposição contratual

por meio do casamento – decorrente principalmente do meio em que viviam – caso

se realizasse, deveria constar como uma das formas de reafirmação de José Amaro

e de Sinhá enquanto genitores, livrando os mesmos de cair em “desgraça”, como,

por exemplo, acontecera com algumas famílias do Pilar. Como isto não foi possível,

ocasionou mais uma forma de fracasso. Não contando com perspectivas financeiras,

José Amaro e Sinhá entendiam que casar a filha era uma questão de honra, de não

cair na boca da “canalha”, bem como feria o seu orgulho como pai, agravando o seu

complexo de inferioridade. Portanto, ter uma filha solteirona naquelas paragens era

a mesma coisa de estar condenado a uma maldição, a uma grande infelicidade da

qual era suscetível qualquer família, pobre ou rica. Por este motivo, as filhas

mulheres eram vistas negativamente pela própria família, principalmente pelo

patriarca – homem carregado de lastros machistas – por estas serem alvo desta

obrigação que, uma vez não cumprida, macularia a reputação da família por várias

gerações. Vejamos o sentimento de José Amaro sugerido pelo narrador:

Ouvia o gemer da filha. Batia com mais força na sola. Aquele Laurentino sairia falando da casa dele. Tinha aquela filha triste, aquela Sinhá de língua solta. Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo, como batia naquela sola. A filha continuava chorando como se fosse uma menina. O que é que tinha aquela moça de 30 anos? Porque chorava sem que lhe batessem? Bem que podia ter tido um filho, um rapaz como aquele Alípio que fosse homem macho, de sangue quente, de força no braço. Um filho do mestre José Amaro que não lhe desse o desgosto daquela filha (REGO, 1997, p.16).

A força repressora do meio em relação ao casamento atua de tal modo

avassalador na vida do mestre seleiro que culmina no fim do seu casamento com a

velha Sinhá. A propósito disto, a amargura do mestre se faz mostrar em diferentes

níveis de intensidade ao longo da convivência com sua família – a mulher, que se

casara para não cair em desgraça, e a filha desiludida de pretendentes –, o que

repercutiu na recusa, por parte de sua esposa, em continuar naquela situação de

desgostos de toda ordem. Gradativamente, Sinhá percebe que o seu marido não é

bem um ser humano:

A velha Sinhá não sabia mesmo o que se passava com o seu marido. Fora ele sempre de muito gênio, de palavras duras, de poucos agrados. Agora,

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porém, mudara de maneira esquisita. Via-o vociferar, crescer a voz para tudo, até para os bichos, até para as árvores. Não podia ser velhice, a idade abrandava o coração dos homens (REGO, 1997, p. 45).

Além do seu comportamento insensível, de sua aparência física aterradora e

de seu cheiro desagradável – pelo contato constante com a sola –, Sinhá velha,

semelhante ao início do casamento, cria verdadeira aversão ao marido, uma espécie

de “nojo” que, somado aos maus tratos constantes consigo e com a filha, resulta em

constantes reflexões sobre sua vida ao lado do mestre seleiro:

Aquele ofício era doentio. A cor de Zeca não era de outra coisa, era do cheiro da sola, daquele viver constante pegado no couro. Ela mesma, no começo de casada, sofrera muito para se acostumar com aquele cheiro dentro de casa. Quando o marido se chegava para ela, sentia como se fosse nojo. E lembrava-se quando ficara grávida de Marta o quanto padecera para pode agüentar a companhia de Zeca. Era o cheirar da sola, a inhaca medonha de que não podia se separar. Por fim acostumou-se. Teria que viver ali, mas custou-lhe um pedaço da sua vida (REGO, 1997, p. 46).

Sinhá velha, acostumada à ira e ao mando do marido, começa a questionar a

situação em que vive. Não quer mais se calar diante da força bruta do seleiro. Mas,

o que fazer? Afinal, Zeca era o seu marido. Era ele quem passava o dia inteiro

batendo sola para sustentar a família. Mas isto lhe dava o direito de posse sobre ela

e sua filha? Porque aquela secura, aquele falar sem trato? Algo lhe diz que aquilo

não era vida. Pouco a pouco, começa a invejar a vida de sua comadre, sinhá

Adriana, que, mesmo mulher, comandava a sua casa, dando ordens, com direito a

voz. Além disto, o marido daquela (Vitorino), era mais humano do que o seu. Conclui

que a filha era o seu único motivo para continuar vivendo. Nada mais lhe dava

contentamento. Era a sua vida uma grande desilusão. Vejamos:

Só a sua filha prendia-a. Só ela ainda lhe dava coragem de viver. Tudo sofrera calada, como escrava, sem direito a levantar a voz, a dar uma opinião para resolver uma coisa. Às vezes tinha até inveja de sua comadre Adriana, fazendo tudo, dando ordens pela sua cabeça. Apesar de tudo, o compadre Vitorino era humano. Zeca não tinha coração, não tinha alma, era aquela secura de pau, aquele falar de raiva, desde que o conhecera. E depois para tudo tinha a sua opinião, de tudo sabia, só ele é que tinha razão (REGO, 1997, p. 46).

Com o tempo, tais reflexões passam de meras deduções ao nível de

consciência. Isto gera em Sinháuma grande e profunda revolta. É o início do

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desvinculamento de sua condição de mulher em relação ao mestre e à sociedade

patriarcalista da qual faz parte como ser inferior. Ao mesmo tempo em que isto

acontece, Sinhá conquista certa autonomia como ser humano. Sua voz passa a

existir e, em casa, passa a impor o seu direito, rebatendo as duras palavras do

marido, bem como assumindo o comando sobre sua própria vida, assim como o da

filha, decidindo o que deve ser feito ou não. Porém, à custa de muito sofrimento. De

início, o seu marido não aceita a nova situação, afinal ele é o homem – já dizia seu

pai –, o “galo de briga” que sustenta a casa batendo sola o dia inteiro. Vejamos:

- Cala a boca, Zeca! A gente não está aqui para ouvir besteira. - Eu não digo besteira, mulher. Se não quiser me ouvir que se retire. Estou falando a verdade. É só isto que me acontece, ouvir mulher fazer má criação. Aí o mestre José Amaro levantou a voz. - Nesta casa mando eu. Quem bate sola o dia inteiro, quem está amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Falo o que eu quero, seu Laurentino. Isto aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem (REGO, 1997, p. 14).

Com o passar do tempo, as coisas começam a piorar. A amargura e a

desilusão acometem toda a família de forma cada vez mais violenta. É a

interiorização do fracasso em cada personagem, e cada um, a seu modo, passa por

este processo.

Como forma de aliviar seus conflitos existenciais, o mestre seleiro passa a ter

hábitos esquisitos, como por exemplo, caminhar a ermo em noites de lua cheia.

Busca, na natureza, refúgio para sua vida malograda. A natureza da várzea passa a

ser o seu mundo paralelo. Um mundo totalmente diferente do seu. Um mundo sem

patrão e um mundo sem obrigações. Um mundo sem dor. Um mundo sem aquela

infelicidade de todos os dias. O mundo do mestre José Amaro. Vejamos:

O seleiro estava possuído de paz, de terna tristeza; ia ver a lua, por cima das cajazeiras, banhando de leite as várzeas do coronel Lula de Holanda. Foi andando de estrada afora, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o para andar. Era o que nunca fazia. Vivia pegado naquele tamborete, como negro no tronco. E foi andando (REGO, 1997, p. 31).

A cada caminhada, o mestre toma consciência de sua vida fracassada. Nada

mais lhe traz sossego, nada lhe traz a mínima alegria. No início, orgulhava-se do pai

que tivera por ser este um oficial de respeito e homem de fibra: fizera sela para o

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imperador, além de ter um crime nas costas – o que dava certo status ao mestre na

sua situação de morador de terras, cujo meio é de “cabra macho”. Outro traço de

sua altivez era o fato de nunca ter precisado se rebaixar aos grandes das terras,

mesmo sendo um oficial “de beira de estrada”. Além disto, se sentia dono de sua

casa e de sua família, o que lhe dava dignidade pessoal, bem como a condição de

ser o único exímio artesão daquelas cercanias, trabalhando apenas para aqueles a

quem escolhia. E agora só lhe restava caminhar sem parar. Caminhar pelas terras,

que sempre odiara e que jamais seriam suas. Mesmo assim, era um mundo novo

que se abria para o mestre. Um mundo sem o cheiro acre da sola, um mundo com

novos odores. Reparemos:

Na lagoa, a saparia enchia o mundo de um gemer sem fim. E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. Tudo era tão bonito, tão diferente da sua casa. Quis andar mais para longe. E se deixasse a estrada? Ganhou pelo atalho que ia para o rio. (...) Cheirava toda a terra. Era cheiro de flores abertas, era cheiro de fruta madura. O mestre José Amaro foi voltando para a casa como se tivesse descoberto um mundo novo (REGO, 1997, p. 31).

Absorto em suas elucubrações, o mestre esqueceu que caminhar em lugares

desabitados altas-horas da noite provocaria nos moradores daquela localidade

pensamentos nada positivos. O preço de suas peregrinações foi caro: cai na boca

do povo. Seu comportamento inusitado, adicionado ao seu temperamento agressivo,

bem como à aparência monstruosa, foi o que precisava a “canalha” da qual tanto

fugia. Agora não era mais gente, era um lobisomem, estava desmoralizado, era o

início do seu triste fim. Vejamos:

Quando chegou, a mulher já estava com medo: - Que foste fazer a estas horas, Zeca? Só quem está aluado! Calou-se, fechou a porta de casa e foi para a rede com o coração de outro homem. Não dormiu. Ouvia tudo que vinha lá de fora. Ouvia o ressonar da filha. O que é que havia com ela? (...) O cheiro de sola nova enchia a casa. O mestre José Amaro via a lua muito branca entrando pelas telhas. E dormiu com as réstias que lhe pontilhavam o quarto. Sinhá roncava como os porcos do chiqueiro. No outro dia corria por toda parte que o mestre José Amaro estava virando lobisomem. Fora encontrado pelo mato, na espreita da hora do diabo; tinham visto sangue de gente na porta dele (REGO, 1997, p. 31).

Sinhá começa a temer o marido: seu aspecto físico se torna mais e mais

grotesco, além do que, suas palavras e ações se tornam cada vez mais

desequilibradas – quando retorna para casa após os seus “passeios”, parece outra

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pessoa, mais leve e mais sereno, mas basta amanhecer o dia para que tudo volte ao

normal – amargura e grosseria. Vejamos:

A velha sentiu uma nuvem nos olhos. Parou de bater roupa, sentou-se na pedra, e com a voz mansa, como de uma doente de morte, foi dizendo para a companheira: - Menina, tudo isto é mentira. Este homem é o meu marido. A moça baixou a cabeça, ferida de vergonha. (...) E continuaram em silêncio no serviço (REGO, 1997, p. 61).

Era o fracasso que vinha a galope bater a porta da velha Sinhá. Aquelas

palavras em consonância com toda a situação de sua existência passaram, por um

instante, como um redemoinho medonho. Em seu coração, a mulher do seleiro

sentia toda a dor de sua vida precária. Descontava, batendo furiosamente nos

velhos panos. Envergonhada, mantem, além do silêncio, a cabeça baixa. Não tem

coragem de encarar os olhos daquela que lhe falara, a pouco, de sua família. Em

seus pensamentos, Sinhá contempla toda a sua desgraça. E, como forma de

refrigério, busca entender toda a situação, ruminando conjecturas, conforme nos

mostra o narrador:

E o seu marido, e a vida, a cara, os arrancos, as esquisitices do seu marido? Por que inventava o povo uma coisa daquela? Até de sua filha, da sua pobre Marta, inventavam uma desgraça daquela. Já tinha acabado de bater os seus panos. Podia estendê-los por ali mesmo como fazia sempre. Mas teve vergonha de ficar junto daquela moça. Era como se fosse culpada de um crime, de um ato mau. Arrumou a roupa molhada e fez a trouxa. A moça levantou-se para ajudá-la. - A senhora me perdoe, eu não sabia (REGO, 1997, p. 62).

De volta para sua casa, Sinhá – acompanhada de José Passarinho, que

insiste em carregar a trouxa de roupa lavada –, compara a sua vida à daquele negro.

Via nele uma felicidade que há muito não sentia. Mesmo pobre e marginalizado por

ser negro e alcóolatra, Passarinho vivia cantando melodias melancólicas, bonitas de

fazer doer o coração de um cristão. Tomada por uma intensa tristeza, Sinhá

caminha carregando amargura em sua alma. Ao chegar, encontra o marido metido

num serviço caprichado que, por isto, nem dá atenção aos que chegavam.

A notícia de que o mestre se transformava em lobisomem corria forte. O

negro José Passarinho era prova disto. Como peregrinava por volta da região, ficou

sabendo da história por meio da boca de várias pessoas. Como não tinha muito

discernimento para saber em que deveria acreditar, passou a temer o seleiro:

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(...) ouvia o bater do martelo do mestre. Sem dúvida ele estava nos seus azeites. Passarinho sabia que o povo falava do seleiro. Por toda a parte corria aquela história de lobisomem, aquela fama de andar ele correndo de noite para beber sangue de gente. Passarinho não tinha cabeça para medir as coisas. Ele via o mestre com aquela cara aborrecida, e tinha medo. Sim, medo de chegar-se para perto. (...) Ouvira também falarem mal da moça da casa. A língua do povo não tinha tamanho (REGO, 1997, p. 63).

Enquanto a fama do mestre (como lobisomem) cresce rapidamente por meio

da boca do povo, o estado de saúde mental de sua filha piora. A cada dia que se

passa, Marta fica mais soturna, mais isolada, evitando qualquer tipo de comunicação

até com sua mãe Sinhá, única pessoa com quem ainda mantinha algum contato. Um

silêncio de morte arrebata toda a família. Até a velha Sinhá, que anteriormente ao

encontro com a moça do rio, buscava prosear com os seus, vivia calada para um

canto, pensando na desgraça que era sua vida ao lado daquele homem de atitudes

suspeitas e de palavras duras para com ela e sua filha.

Acostumada aos maus tratos constantes do marido, percebemos que Sinhá

sofre muito mais por Marta, sua filha. Era isto o que mais lhe doía, pois, quando

testemunhou aquela conversa sobre seu marido, Zeca virando lobisomem, ela

conseguiu suportar, mas quando a cabocla meteu a filha nisto, Sinhá deixa claro que

isto tudo era demais para uma mãe. Em suas indagações, busca encontrar

respostas para tanta maldade, pois não consegue encontrar nenhum motivo real

para tudo o que ela e sua família estavam passando. Vejamos:

Pouco tempo depois o seleiro saiu de casa. E a mulher ficou com o pensamento na moça do rio. Nunca podia imaginar que o povo estivesse fazendo de seu marido um lobisomem. Era, sem dúvida, por causa daquele gênio azucrinado de Zeca, por causa de sua cor, do amarelo dos seus olhos. (...) Zeca dera agora para fazer aqueles passeios à noite. Era homem de manias. (...) O que não podia ela suportar era que lhe falassem de sua filha. E do jeito que falavam era mesmo para matar um ente de desgosto (REGO, 1997, p. 66-67).

É interessante perceber que a decadência, em diferentes graus, toma todos

os membros da família, uma espécie de “efeito dominó”. Constata-se que a cada

momento que se passa, intensifica-se, por exemplo, no mestre, o desgosto de sua

vida; Sinhá, desde o encontro com a moça no rio, passa a temer seu marido como a

um diabo; já com Marta, as proporções são ainda mais devastadoras: a loucura.

Cada vez mais ensimesmada, Marta não quer conversa nem com a mãe – a

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quem se dirigia vez ou outra. Fadada à condição de subordinada ao pai, que nunca

em sua vida lhe dirigiu uma palavra de carinho, e à sociedade machista, que a vê

como algo sem valor por ser mulher e pelo fato de ter trinta anos de idade, sem

pretendentes, metida em seu quarto o dia inteiro ou a fazer algum serviço da casa,

se vê obrigada a cumprir o único dever que tinha para com a sociedade patriarcalista

da qual fazia parte: constituir sua própria família, o que não fora possível até o

momento. Portanto, de modo semelhante aos pais, ela também se vê como um ser

fracassado. Um ser inútil (enquanto mulher), odiada (enquanto filha) e infeliz

(enquanto ser humano). A loucura foi o alto preço de tanta infelicidade. É o fracasso

tripardindo-se entre os membros da malograda família do mestre José Amaro.

Um fato inusitado acontece na vida do mestre seleiro. Em uma de suas

peregrinações pelos caminhos ermos em altas horas da noite, o seleiro encontra-se

com o aguardenteiro Alípio, que ali se encontrava à procura daquele. O motivo para

o encontro consistia em pedir ao artesão um favor em nome do capitão Antônio

Silvino, que se encontrava escondido, juntamente com o seu bando, das tropas do

tenente Maurício, após um confronto no Ingá.

Ao ouvir o nome do homem que mais admirava no mundo, José Amaro

estremece. Aguçando os ouvidos em atenção às palavras de Alípio, o mestre toma

conhecimento, de forma detalhada do que tem que fazer para auxiliá-lo. Era preciso

alimentar o cangaceiro e seus rapazes. Por este motivo, retorna à sua casa na

companhia do aguardenteiro para tomar as devidas providências. Assim que

chegam, Sinhá, sob as ordens do marido, prepara duas galinhas para matar a fome

do homem que tem o poder de incutir medo nos senhores de engenho da região e,

por isto, ganhou a profunda admiração do seleiro.

Para o mestre José Amaro, servir ao capitão não era um mero favor. Era mais

do que isso. Era mostrar para ele mesmo que ainda tinha algum valor. Que não era

um traste qualquer, mesmo sendo um “seleiro de beira de estrada” a servir

camumbembes. Sim. Era ele o homem que agora alimentava o justiceiro dos pobres.

E num lapso de êxtase sentiu que era o mestre José Amaro de outrora.

Depois de satisfeito o pedido de Alípio, Sinhá, diferente de seu marido, se

apavora, o seleiro fica com um sentimento de satisfação por ter sido útil e com o

sentimento de vingança com relação aos grandes das terras:

O homem se foi, e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na sua

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mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro. Ele matava galinha e dava para o capitão Antônio Silvino que mandava em toda a cambada de senhores de engenho. Cazuza do Trombone, de Maçangana, mudara-se para a cidade com medo dele. O velho José Paulino dera um banquete ao capitão Antônio Silvino. Disseram até que a filha do grande servira a mesa, como se fosse ama dos cangaceiros. Sinhá torrara duas frangas para o homem que ele mais admirava neste mundo (REGO, 1997, p. 68).

Vê-se, por meio do discurso do narrador, uma nota de satisfação em José

Amaro, porém um contentamento que se materializa por meio do poder conferido a

outro homem. Um homem que tinha o corpo fechado para tiro de polícia. Que sabia

furar cerco, “botando todos os macacos para correr na bala” (REGO, 1997, p. 77).

Um homem que não tinha medo de quem quer que fosse; grande ou pequeno. Um

homem a que sobrava coragem. Portanto, um homem que, em quase nada, se

assemelhava ao mestre. Reparemos que todos estes adjetivos atribuídos ao capitão

Antônio Silvino pelo seleiro, o que reforça sua admiração por aquele, também

definem, de certo modo, o lugar social do mestre enquanto subjugado àqueles que

temem o poder do cangaceiro. Por este motivo, a satisfação do mestre se faz por

meio da consciência de sua própria condição de ser subjugado à força repressora a

que está condicionado, conferindo-lhe, mais uma vez, a condição de fracassado.

Ademais, Antônio Silvino, mesmo defendendo os oprimidos, representa, na

obra, o poder ilegal, já que é um cangaceiro, portanto visto como bandido. Em

contrapartida, a polícia, representada pelo tenente Maurício, constitui o poder legal,

ou pelo menos é o que deveria ser, já que esta usa de meios abusivos,

principalmente contra os pequenos da região.

De forma extraordinária, José Lins do Rego traça um painel das relações de

poder no interior brasileiro, sobremodo na região canavieira da Paraíba, onde os

grandes daquele lugar se viam obrigados a contratar jagunços para protegê-los, tal

era a repressão. É interessante perceber que, como quase sempre reza a História,

os ricos recebem maior proteção, seja da polícia armada, seja de capangas

particulares; já aos pobres, resta, além do amparo celestial, a condição de sujeitos à

mercê de cangaceiros para ter o direito à justiça, mesmo que mínima. O cangaceiro

Antônio Silvino, que antes denotava o poder ilegal, passa a representar o poder

“legal” para os fracos e oprimidos, daí a admiração destes por aquele, como, por

exemplo, a que se observa no mestre José Amaro – representante da sombra

coletiva dos seus iguais. Por conseguinte, nota-se uma via de mão dupla na

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narrativa: o que antes era ilegal passa à condição de legal e vice-versa.

Começa a se notar na alma do mestre certa mudança. Diferentemente de seu

comportamento sorumbático, ele queria falar; conversar com os seus. Mostrar toda a

sua satisfação em viver que, a esta altura, estava estampada em sua cara como

nunca se vira antes. Mesmo não tendo “pregado o olho” a noite inteira, o mestre

estava feliz. Botou sua banca à porta de casa e preparou-se para trabalhar, como

fazia quase todos os dias. Porém, este sentimento positivo de a pouco, logo passou.

Mal pegou no serviço, toda aquela alegria se desfez. Eis que surge Pedro Boleeiro

conduzindo o cabriolé (carruagem que serve, no contexto da obra, de símbolo do

antigo poder do senhor das terras do Santa Fé) do coronel Lula de Holanda que,

desta vez, ia vazio para o Pilar. Em conversa curta com o condutor do carro, o

mestre toma conhecimento de que D. Amélia, esposa do coronel, estava doente há

dias e, por este motivo, é que seu Pedro estava indo à estação buscar um médico

para vê-la.

Após a partida do boleeiro, o mestre fica a pensar na enferma. Bastou isto

para que sua alegria se esvaísse, pois D. Amélia era uma pessoa benquista, não

havia quem não a associasse aos tempos áureos daquele engenho no tempo de seu

pai, o capitão Tomás Cabral de Melo, fundador do Engenho Santa Fé. A doença de

D. Amélia selava definitivamente a decadência e o fim do Santa Fé, um engenho

movido a bestas quando todos os outros já tinham se modernizado. Vejamos:

D. Amélia, não havia quem não pensasse nela e não visse os tempos do capitão Tomás, as festas do Santa Fé, os dias de mocidade do engenho da várzea. Era pequeno, mas dava para um homem viver, e dar grandeza a sua família. Cinquenta escravos lavravam as terras do Santa Fé. Tinha uma fortuna em negros, o capitão Tomás. Agora era aquilo que se via, um engenho de duzentos pés, moendo cana, puxado a besta. Toda a alegria do seleiro se pondo como um sol em dia de chuva. Todo ele enroscava-se outra vez, fechava-se em sombras. E a cara dura, os olhos inchados, a tristeza íntima, eram outra vez o mestre José Amaro (REGO, 1997, p. 70-71).

Mas, o que causara no mestre tamanha melancolia? Por que a doença de D.

Amélia lhe causara tamanha comoção? Seria ela a grande responsável pela

saudade (no mestre) de um tempo que não mais voltaria? Ou seria a consciência do

seleiro fustigando-lhe, na alma, a amargura que era sua vida? Metido em seus

pensamentos mais sombrios, o mestre observa a filha que volta, com seu passo

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lerdo, da beira do rio. Tomado novamente por um achaque de agressividade, o

seleiro, impulsivamente, expressa um violento desejo de bater-lhe, cujo intuito era

quebrar-lhe todos os ossos do corpo. Pronto, mais uma vez, tinha o mestre José

Amaro a alma carregada de intolerância e terrível inconformismo.

Passado algum tempo, o mestre volta a trabalhar. Novamente fica a pensar

no cangaceiro e nos serviços que prestara ao mesmo. Agora, o seleiro se vê como

um homem importante. Sentado em seu tamborete, num dia de domingo, o mestre

trabalhava para atender a mais um pedido de Alípio em favor do capitão: meia dúzia

de alpargatas. Com toda a sua alma e de forma caprichada, ele cortava solas para o

“redentor dos pobres”. Agora, ele trabalhava para o bando do homem mais poderoso

que já se vira. Não era apenas um velho oficial de beira de estrada, morador de

terras alheias a fazer selas para qualquer um. Ele se via como um homem livre que

fazia serviços para “cabras machos” que sabiam, desde cedo, “morrer no rifle”.

Reparemos:

(...) o mestre retornou a vida que alimentava, aos homens que precisavam dos seus serviços. Agora não estava consertando arreios de um velho doido, não estava fazendo sela para um camumbembe qualquer. Trabalhava para o grupo de Antônio Silvino. Cortava solas para cabras que já sabiam morrer no rifle, para gente que tinha sangue de macho. Não era um pobre seleiro de beira de estrada, era mais que oficial de bagaceira de engenho (REGO, 1997, p. 77).

Assim ficou o artesão, absorto em seus pensamentos. Sem dúvida que o

capitão saberia que o mestre José Amaro era homem de confiança. E, pensando

nisto, a cada tira de sola que cortava – para calçar os pés daqueles bravos homens

– o seleiro mais se convencia de sua importância e da justiça iminente. Tomado de

estranha satisfação, o mestre sente em sua boca o gosto da vingança. Observemos

o trecho:

O capitão Antônio Silvino saberia de seu nome (...) Que fossem para o inferno os grandes da terra. Para ele só havia uma grandeza no mundo, era a grandeza do homem que não temia o governo, do homem que enfrentava quatro estados, que dava dor de cabeça nos chefes de polícia, que matava soldados, que furava cercos, que tinha poder para adivinhar os perigos. A quicé chiava na sola branda. Faria alpercatas fortes para romper a terra dura das caatingas, os espinheiros, as pedras, o barro quente. (...) Se um dia visse o capitão Antônio Silvino seria um homem feliz. A sua mulher viera falar em medo. Não tinha medo, não deixaria de fazer o que fazia agora para o bando por preço nenhum (REGO, 1997, p. 77).

É interessante se fazer um comentário sobre um dos procedimentos utilizados

por José Lins do Rego nesta narrativa, em especial, a interação da natureza (local)

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com a personagem em destaque. Como já foi citado anteriormente, nota-se clara

evidência quanto a isto, porém, desta vez, mais poética. Em quase todos os

momentos em que os sentimentos – de nostalgia – do mestre José Amaro são

apresentados, surge um “canário” a cantar na biqueira. E, ao som deste canto, o

mestre tece profundas reflexões, como a mostrar que aquele cantar tanto servia

para aliviar suas tensões quanto para apurá-las. Em alguns momentos os dois

fazem uma espécie de duo, onde o som canoro da ave harmoniza-se ao som do

bater do martelo do mestre na sola. Outras vezes, o malho canta mais alto,

destoando do trinado do pássaro que foge, como a mostrar que “havia dentro dele

uma noite soturna” e o quão insuportável era a sua dor (REGO, 1997, p. 60).

E, neste intervalo de comunicação musical em que se encontrava o mestre,

seus pensamentos foram atravessados pelos gritos de sua mulher a pedir-lhe

respeito ao dia de guarda, falando-lhe de castigo divino. Aborrecido pelo fato de

Sinhá tê-lo trazido para a realidade concreta, o seleiro – que não acreditava em

Deus e em santos – sente, em seu coração amargurado, que Deus não queria saber

de pobre nenhum e que não havia maior castigo do que ter aquela filha. E, estando

assim, o mestre “batia as brochas nas alpargatas com uma fúria de desespero”

(REGO, 1997, p. 78) e, como a tarde já se avizinhava, resolveu parar o trabalho para

evitar os transeuntes que voltavam da feira. Não queria falar com ninguém.

Estava assim o mestre, metido em seus pensamentos, quando os mesmos

são, novamente, interrompidos, só que desta vez por Irineu, amigo de Alípio, que lhe

trazia um novo recado em nome do capitão Antônio Silvino. Dessa vez, os

mantimentos eram em maior quantidade: uma manta de carne, vários maços de

cigarros e farinha. Dada a mensagem, o porta-voz combina o dia da entrega e dá ao

seleiro uma nota de cem mil-réis, – dinheiro do capitão – que, de “tão novinha,

estalava”. O mestre fica com o coração tomado de apreensão. Como fazer para não

chamar a atenção do “bodegueiro” Salu? A cabeça do seleiro estava a rodar em

busca de um bom plano. Por este motivo, “saiu para ver a noite, para sentir-se só na

noite que era de lua cheia” (REGO, 1997, p. 79).

Mais uma vez, o mestre interage com a natureza. É a noite que lhe dá vida e

que apazigua o seu coração; é o seu mundo particular, onde tudo acontece de forma

íntima e aprazível. É no isolamento da noite que ele se encontrava, pois é assim que

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sente sua vida: solidão, frio e sombra. Quando deu por si, estava pisando as terras

do homem que mais odiava neste mundo, o coronel José Paulino. A paz, que há

pouco reinava, teve fim:

Pisou nas terras do velho que odiava. Viu os partidos de cana gemendo na ventania, o mar de cana madura com os pendões floridos. Era toda a riqueza do velho, era o seu mundo que ele tocava. Quantas vezes não tivera vontade de sacudir fogo naquela grandeza. Era besteira. Outra vez as terras dariam aqueles mesmos partidos, o massapé encheria a barriga do ricaço. Tinha até raiva de olhar aquelas coisas (REGO, 1997, p. 79).

Tudo no mestre soava forte como a pancada de seu martelo na malha.

Pensou na situação do engenho Santa Fé e no senhor das terras onde morava e

concluiu que o coronel Lula era homem sem ganância, sem fôlego; um homem de

pouca vontade. Como não tinha como comparar equilibradamente o poder dos dois

coronéis – já que os engenhos se encontravam em situações econômicas

completamente diferentes –, recorre à lembrança do capitão. Ele, sim, é que era

homem de fibra. Ele era tudo aquilo que o seleiro não poderia ser, mas que gostaria.

Reparemos:

Agora não tinha mais raiva dos partidos do Santa Rosa. Ele trabalhava para um homem que era maior que o coronel José Paulino, que era dono de todos os partidos, senhor de todos os senhores de engenho. O que o capitão Antônio Silvino queria, fazia como era de seu gosto. Meteu a mão no bolso e sentiu a nota nova, o papel duro, a riqueza do seu homem. (...) Agora tinha um motivo para os restos de seus dias. Pouco se importava que a filha fosse um fracasso, que a mulher não lhedesse coisa alguma (REGO, 1997, p. 79).

E pensando em sua vida o mestre sente, com toda a consciência, a dor

dilacerante de sua impotência frente a tudo que odiava. É o fracasso que

nitidamente se cristaliza em seu mais alto grau. Não podia contar com ele mesmo.

Não podia contar com Deus ou com santos, pois não nutria crença por nada disto.

Não podia contar com a sua família que, a esta altura, eram apenas restos humanos

vivendo sob o mesmo teto. Não tinha um filho homem para lhe defender. Não podia

contar com aqueles que tinham a lei do seu lado e que, ao invés de fazê-la valer,

cometiam atrocidades. Não podia se valer do poder do coronel das terras onde

morava, pois há muito elas não tinham a grandeza das terras do coronel José

Paulino. Sua vida era feita de negativas. O que fazer? Só lhe restava acreditar no

homem que podia lhe dar algum sentido para continuar vivendo. No único homem

que poderia fazer a sua existência valer alguma coisa. No homem que investia

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contra os grandes em nome de desvalidos como o mestre. No homem que resumia

toda a sua esperança, bem como de todos aqueles que vivem nos subterrâneos em

meio aos escombros de uma sociedade prestes a ruir:

Só agora depois de velho era que pudera compreender aquela beleza de uma noite, a paz da noite, sem agressividade da luz quente. Aquela luz fria da lua entrava-lhe de carne adentro. Sentia solidão. O que ele queria era viver só. Tudo o que ligava à casa, à vida de sua casa, lhe doía, era como uma facada que lhe entrava no corpo. Porque não tivera um filho, porque não fora como seu pai, capaz de matar, de ser um homem de coragem, de espírito pronto. (...) nunca pudera ser mais do que aquele seleiro da beira da estrada, com uma filha velha, com uma mulher que lhe tinha ódio, como medo de fazer o que lhe viesse à cabeça (REGO, 1997, p. 79-80).

Pensando em tudo isto, o mestre fica parado por algum tempo. Novamente,

suas atribulações mentais foram interrompidas por conversas próximas ao rio.

Escondendo-se mato adentro, o seleiro presenciou a pescadora Margarida – a

primeira pessoa da várzea a espalhar o boato de que o artesão era um lobisomem –

dando informações aos integrantes de uma tropa policial sobre o paradeiro do

capitão Antônio Silvino. Após a conversa, o grupo toma o caminho rumo à estrada

de ferro. Era o caminho certo para chegar ao capitão que, no seu descanso, nada

sabia. O mestre sobressaltou-se. Teria que fazer algo para avisá-lo do perigo. Era o

mínimo que poderia fazer para ajudar aquele em quem depositava toda a sua fé. Só

que o seleiro não contava com mais um agravante em sua vida: sua saúde. Quis

correr, mas as pernas não tinham forças. Seu corpo foi ao chão. Sofrera o primeiro

ataque de epilepsia. Vejamos o trecho que descreve a agonia do mestre:

Nunca sentira aquilo que estava sentindo. Quis correr, e o seu coração batia como martelo. Era um baticum que lhe tomava o fôlego. (...) Não teve força para levantar-se do chão molhado de orvalho em que se deitara. As pernas inchadas eram como se fossem um molambo. Sentiu uma coisa fria na ponta dos pés, uma dor que lhe quebrava o corpo em dois. Quis gritar e teve medo de atrair a força. Curvou-se para agüentar o ímpeto da dor terrível. A cabeça encostada na terra; mordia a terra, mordia a terra que ele nunca amara. Os dentes se enterravam no chão, no barro que dava a cana do coronel José Paulino. (...) Com um pouco mais, tudo ficou como de noite profunda. Só sentiu que lhe voltava a luz dos olhos com o calor na cara. Havia gente, por perto, falando. Era de um mundo de mil léguas distantes (REGO, 1997, p. 80).

É importante atentar para a progressão do fracasso em José Amaro ao longo

da narrativa. Gradativamente, o malogro fica mais e mais evidente, como, por

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exemplo, no excerto em destaque. Mesmo estando o mestre tomado pela dor física

e pelo sentimento de impotência por não ter como avisar ao capitão do que

sucedera, ele, ainda assim, deixa evidente que a aversão ao coronel José Paulino é

maior do que tudo. A passagem acima é crucial para se verificar o fato. Mesmo com

a boca “cheia de terra”, o que ele sente não é o sabor do massapê que alimenta os

pés de cana-de-açúcar que davam lucro e poder ao coronel das terras do Santa

Rosa. É mais do que isto. O que ele sente é o gosto do ódio (em toda a sua

essência) e do seu desprezo por aquele que um dia lhe humilhou com gritos.

Nesta cena, a ira de José Amaro é tão intensa que chega a transfigurar o

significado da própria palavra ódio, transformando-a numa das mais completas

metáforas quanto à representação deste sentimento no âmago de uma personagem.

Uma metáfora com feição de sinestesia, já que o mestre consegue sentir,

fisicamente, o sabor da ira, não só em sua alma, como em sua boca, de tal modo

que a sua própria vida parece resumir-se a este sentimento, confirmando, portanto,

a sua ruína existencial.

De volta à vida e já em sua casa, o mestre seleiro toma conhecimento de tudo

que se passara. Logo que recupera a consciência dos fatos passados, o artesão

procura saber, de imediato, sobre o tenente Maurício e sua tropa. Como sua mulher

achou que o marido delirava por estar sob o efeito do “passamento” na beira do rio,

não deu importância. O mestre cansado busca descansar em sua rede até que

escuta o negro José Passarinho, vindo este avisar a Sinhá que o aguardenteiro

Alípio estava à procura do mestre. Mesmo não aprovando a relação do marido com

o cangaceiro, Sinhá dá o recado. Diante disto, o mestre entrega a sua mulher a nota

de cem mil-réis e pede para ela comprar os mantimentos necessários na venda de

Salu, inventando, para isto, uma mentira.

Como estava com o corpo todo frágil, o mestre volta a descansar até que

outro fato inusitado acontece para tirar o sossego do mestre. O portador do

desassossego era Pedro Boleeiro, que trazia um recado do coronel Lula para que o

seleiro fosse à sua casa, pois queria falar-lhe. Mediante isto, Sinhá entra no quarto

para ver o marido, tendo ela uma imaginaria visão, acredita ter visto o diabo

incorporado em José Amaro. A “canalha” da bagaceira vencera. A mente de Sinhá

sofria o efeito das conversas que ouvira sobre o mestre, como insinuações de que

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ele era “uma criatura das trevas”, correndo feito doido nas noites de lua cheia. Sua

mente estava tomada de pavor ao marido. Estava firmado para o seleiro mais um

degrau para a decadência de sua vida. Agora, sua mulher não lhe tinha somente

ódio, mas também, medo. Vejamos:

A velha Sinhá chegou ao quarto para ver o marido. Dormia de boca aberta, com os olhos semicerrados. Foi procurar um lençol para cobri-lo. A filha Marta, naquele dia, voltava a ficar outra vez com a agonia desesperada. E ali, em frente do marido, que ela temia como a um duro senhor, sentiu-se mais forte, mais dona de sua vida. Zeca abriu os olhos, olhou para ela como se quisesse esmagá-la, com uma raiva de demônio. Deu um grito, e correu para a cozinha. Vira na cara do marido a cara do diabo (REGO, 1997, p. 83).

Após o ataque do mestre na beira do rio, a situação piorou. A conversa se

espalhava entre a população da várzea como confirmação de que o seleiro era, de

fato, um lobisomem. As más línguas festejavam; e o sofrimento na casa do mestre

aumentava cada vez mais. Quando a amiga da velha Sinhá, d. Adriana, soube do

acontecido por meio da boca dos que ali moravam, logo se apiedou dos compadres,

pois sabia que uma conversa daquelas nunca mais deixaria de existir. O mestre e

sua família estavam desgraçados para sempre:

Era no seu compadre que pensava. Viu-se na situação da comadre Sinhá, e teve pena dela. Quando o povo pegava um cristão para uma coisa desta, não largava mais. Pobre do seu compadre que não teria descanso! Seria toda a vida, até a morte, o lobisomem, o temor de todo o mundo, o monstro que saía de noite para desgraçar os viventes (REGO, 1997, p. 84).

Pensando em ajudar aos amigos, d. Adriana toma como destino a casa dos

seus compadres. No percurso, pode perceber as proporções que tomaram os boatos

sobre o seu compadre. Numa conversa ligeira com um dos moradores locais, d.

Adriana escuta da boca do velho Lucindo a história:

(...) fui eu mesmo que encontrei o mestre como morto. Que cara, sinhá Adriana. Ele estava com os dentes trincados, com a boca toda melada de terra. Pensei que estivesse acabado. Tanto que nem toquei nele. Fui chamar a velha, e o povo todo que fui encontrando. Coitado do mestre José Amaro! O povo fala dele, conta o diabo. As minhas irmãs não gostam nem de falar o nome do mestre. Não sei não sinhá Adriana. Sou homem velho, estou nesta idade e nunca vi uma criatura assim como o mestre. É um gênio terrível, é um falar duro com todo mundo. (...) o mestre José Amaro está fazendo medo ao povo. A negra Margarida tem visto ele solto, pela noite, desarvorado como um demente. O que quer um homem assim, nas caladas

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da noite? (REGO, 1997, p. 84-85).

Após o duro impacto sofrido por meio das palavras proferidas por seu

Lucindo, sinhá Adriana fica a par do motivo que levara o coronel Lula de Holanda a

mandar chamar o mestre à sua casa. Já não bastassem os últimos acontecimentos,

o mestre José Amaro, seleiro dos velhos tempos, morador das terras do Santa Fé

desde os tempos de seu pai, seria posto para fora de sua casa pelo proprietário do

engenho. Assim, nada mais faltaria acontecer na vida do mestre para que esta se

transformasse em completo fracasso. Vejamos como seu Lucindo noticia o motivo

do chamado do coronel ao mestre:

Ouvi dizer que o coronel Lula de Holanda anda furioso com o mestre. Pode ser até intriga. Foi o negro Floripes que conversou com a minha irmã. Disse o negro Floripes que o coronel vai pedir a casa ao mestre. É pena. Conheci o pai do mestre. Era eu menino quando ele chegou de Goiana para a Ribeira. Era homem respeitado. Tinha uma morte nas costas. Não era de falar assim como o filho. Será possível, sinhá Adriana, que não exista um homem bom para o mestre José Amaro? (REGO, 1997, p. 85).

Ainda mais preocupada com os seus compadres, ficou sinhá Adriana após

saber que o mestre seria posto para fora das terras do Santa Fé. Apressou o passo

e, ao aproximar-se da casa, quis desviar o caminho, pois sentiu receio de entrar.

Tudo ali era de completo silêncio, tudo ali era tristeza. Viu sua comadre no chiqueiro

de porcos. Resolveu aproximar-se e o que viu desenhado na cara de sua amiga foi o

contorno do desgosto e, todo ele, preenchido pela desilusão. Vejamos quais as

razões para tamanha desilusão:

- Há duas noites que não durmo, comadre. A menina deu outra vez para a tristura e a doença de Zeca é uma coisa que não sei o que é. Avalie que ele deu agora para sair de noite, como um maluco, com a friagem da tarde e, transanteontem, me chegou o seu Lucindo com a notícia da morte do Zeca. Estava morto numa touceira de cabreira na beira do rio. Encontrei o homem quase que defunto. E o povão que acudiu! E o falaço do povo. Eu sei que estão falando de Zeca como lobisomem. É uma desgraça. Estão falando da menina também (REGO, 1997, p.87).

Não podendo conter as lágrimas que corriam dos seus olhos, quando

perguntada pela boa amiga sobre as suas atribulações, a velha Sinhá, num soluço

comprimido, corta o silêncio da casa com um grito. A comadre deixa passar o

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momento de desespero para ouvi-la com toda a atenção. Sinhá prossegue:

- Minha comadre, muito sofre uma mãe com uma filha, com uma doença de cama. Mas este sofrer não é nada comparado com o meu. Veja, comadre, a pobre Marta com esta agonia, com desespero. Parece que a pobre está tirando um castigo de Deus. E agora apareceu essa coisa em Zeca. A comadre sabe o que o povo anda dizendo. Eu fico até com vergonha de botar a cabeça fora de casa. Outro dia na beira do rio uma menina do Riachão sem me conhecer foi me dizendo tudo. (...) - Eu não tenho com quem me abrir. Vivo nesta casa sem uma criatura que me console (REGO, 1997, p. 87).

A visita ouvia todo o desabafo e sentia dó da velha Sinhá. Estavam nesta

confissão quando ouviram um gemido baixo vindo do quarto de Marta. Sob o forte

clima de grande tensão, a mulher do seleiro revela a amiga o seu mais profundo e

vergonhoso segredo: o temor ao marido. Com a voz trêmula, a velha Sinhá

confessa:

- Estou com medo do Zeca. - Estou falando porque preciso tirar isto de dentro de mim. Eu quero que isto desapareça de uma vez, suma-se da minha mente. A senhora não avalia o meu sofrimento. É esta filha doente, é este marido. - Zeca deu para sair de noite, e quando ele volta, só queria que a senhora visse como entra. Vem como se tivesse um ente dentro dele. Vira na rede, fala só, dá grito no sono. Ele não era assim, comadre. E no outro dia é um gritar de doido. Briga com a filha, descompõe-me. É outra criatura. (...) Quando ele botou aqueles olhos em mim, saí correndo, correndo como se tivesse visto o demônio. Felizmente que Marta não viu nada (REGO, 1997, p. 88).

A revelação de seu pavor se caracteriza como uma amostra de que o

fracasso também a tomava. Em meio a tudo isto, o mestre recebe uma notícia que o

reanima. Outra vez, prestará serviço ao capitão Antônio Silvino. Por sentir-se melhor,

resolve ir ao encontro com o coronel Lula de Holanda no dia seguinte. Só que o

seleiro não contava com mais uma desgraça que estava por acontecer em sua

família. Naquela mesma noite, sua filha enlouquecera de vez. Enfurecida, ela dava

gritos medonhos que, na visão do mestre, só se curariam com uma boa surra. Por

isto, preparou a sola e correu para bater-lhe sem clemência. Neste episódio, pode-

se verificar de forma nítida a dissolução total e absoluta da família do mestre. No

seio de sua família, habitava o fracasso. Vejamos:

A velha Sinhá abraçou-se com ela que dava risadas, que gritava cada vez

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mais. (...) E o mestre José Amaro, com um pedaço de sola na mão, chegou para perto da filha e começou a sová-la sem piedade. Gritava a velha Sinhá (...) E ele forte, com os olhos esbugalhados: - Deixe, mulher, que eu mato esta ira. Marta, no chão, chorava como uma menina. O mestre Amaro caíra para um canto, ofegante. (...) O soluçar de Marta descia e subia como um canto de carro de boi. - Homem infeliz – gritou a velha. Tudo parara na casa do mestre José Amaro (REGO, 1997, p. 93).

Tomado de profunda dor, o mestre sente o fim de sua família. A mulher para

um canto a maldizê-lo, com a filha em seus braços. O seleiro sente, pela primeira

vez, seus olhos tomados por lágrimas. Envergonhado, desvia o olhar para a parede

e, neste momento, na penumbra – em que sempre viveu – vê, projetada na sombra

a deformidade do seu corpo e da sua vida; uma representação figurativa de sua

ruína interior transcendendo à sua decadência exterior:

Na parede, a sua sombra era como de um monstro, as pernas enormes, tremendo com a oscilação da lamparina, com as pernas pesadas, com o corpo doído, o mestre José Amaro caminhou para a mulher. Havia nele um desejo vago de ternura, um sentimento que nunca estivera na sua vontade. Era fraco, perdera qualquer coisa de seu tempo, uma moleza envolvera-o da cabeça aos pés (REGO, 1997, p. 93-94).

Repare que a narrativa cria uma gradação da imagem do mestre. Sai-se dos

falatórios para um fato concreto que, por sua vez, será mal interpretado – o “ataque”

– para o reconhecimento através da sombra da monstruosidade da figura do mestre.

Outra forma de figurativização na narrativa do fracasso na vida do mestre

Amaro,são as risadas medonhas de sua filha Marta que, após enlouquecer de

vez,cortam frequentemente a casa do velho seleiro, o que causa desespero na velha

Sinhá e, mais uma desilusão no peito do mestre. Diante de sua impotência

existencial, o seleiro conclui que não pode mais com aquela situação e, por não

compreender bem o que está acontecendo, resolve sanar o problema do seu jeito

batendo em sua filha para tentar curá-la, o que agrava ainda mais a sua situação

junto à sua mulher, Sinhá.

Igualmente ao seu marido, Sinhá se vê diante de uma realidade sem solução,

por isto, decide abandonar o marido, levando consigo apenas a filha. O repúdio que

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já sentia pelo marido, intensificou-se, ainda mais, com suas últimas atitudes. A sova

que ele dera em sua filha produziu em seu coração um efeito devastador. Era o que

faltava para pôr fim ao seu casamento fracassado. Como no começo do casamento,

a única coisa que sentia por ele era nojo. Não tinha mais nenhuma razão para

continuar presa à vida infeliz que levava:

Não pôde chegar-se para perto do marido. Aquele cheiro de sola, aquela inhaca dos princípios do casamento encheu a casa inteira. Um nojo terrível tomou conta dela. Era como se estivesse pegada a um defunto fedendo. E começou a engulhar com uma violência que não podia conter. Os soluços do marido, a cara horrorosa, as lágrimas, tudo para ela tinha um cheiro que matava. (...) O estômago doía-lhe muito forte, os vômitos amargavam-lhe na boca (REGO, 1997, p. 95).

Após a recuperação do abalo pelos acontecimentos, e inocente sobre a

decisão de sua mulher em abandoná-lo, o mestre José Amaro vai ao engenho Santa

Fé saber o que o coronel Lula de Holanda queria com ele. Novo abalo. Lá chegando,

logo toma conhecimento de que terá que deixar as terras do Santa Fé. Expulso de

sua casa, uma das poucas coisas que ainda lhe dava alguma posição de homem

“livre” e digno, o mestre Amaro vê-se numa situação de grande humilhação. Afinal,

ele residia nas terras do Santa Fé desde sua fundação em 1850 – época em que

seu pai por lá chegou como morador deste engenho. Tomado por grande ira, pensa

em vingança contra aquele que fizera a cabeça de Lula contra ele, o negro Floripes.

Vejamos o impacto descrito pelo narrador, das palavras do coronel Lula sobre o

mestre:

Aquilo fora como uma bofetada na cara. (...) estava com os olhos esbugalhados, com um nó na garganta. (...) – Não sou cachorro, coronel Lula. Não sou cachorro. (...) Não podia compreender que tivesse sido jogado para fora do Santa Fé. Aquela casa que tinha sido do seu pai, onde nascera, onde aprendera o ofício, seria de outro, somente porque um negro mexeriqueiro fizera uma intriga. E a sua mulher, e a filha doente? Como encontraria um lugar como aquele para viver o resto dos seus dias? (REGO, 1997, p. 110-111).

O mestre caminhava rumo àquela que fora sua casa desde o tempo de seu

pai. Na sua cabeça as coisas se passavam como uma tempestade. No caminho, em

conversa com um dos filhos de seu Lucindo, o seleiro fica sabendo que o cego

Torquato fora preso pelo tenente Maurício. Com mais um tempo, seria ele o próximo

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a ser preso. Mais uma preocupação toma o pensamento do velho José Amaro. Para

piorar de vez a situação, ao chegar à sua casa, toma conhecimento da decisão de

sua mulher de deixá-lo, e da internação de sua filha, Marta, na Tamarineira –

hospício situado em Recife. Ouviu a tudo calado, pois há muito que não mais se

considerava pai da filha louca. Mas para ele ainda existia uma esperança, ainda

tinha ao seu lado, o capitão Antônio Silvino.

Passada a euforia da crença no cangaceiro, o mestre se vê sozinho no

mundo. Abandonado por Sinhá para sempre, estando ele em sua rede, o velho José

Amaro sente, em seu peito toda a amargura que era a sua vida. Ninguém podia

imaginar o que se passava dentro dele; a escuridão tomou conta de sua alma. Nas

trevas do seu quarto, o mestre viu seu pequeno mundo desmoronar:

Tinha parado o mundo para o mestre. (...) Ele bem sabia que era mais que morto para a sua mulher. Mas ficara triste. (...) Só, na casa que fora do pai, onde vivera e trabalhara a vida inteira, era agora mais desgraçado do que imaginara. (...) O povo o odiava, via na sua cara a cara do monstro noturno que era obra do diabo. (...) A sua casa se destruíra para sempre. (...) Na sala escura a tenda parada. Nem o cheiro de sola nova enchia a casa com aquela catinga que era a sua vida. Olhou para os utensílios, para os seus instrumentos de trabalho, e, vendo-os para um canto, ainda mais se sentiu um inútil, perdido para sempre. Não tinha mais gosto de fazer o que sempre sonhara e amara fazer. Lembrou-se (...) do capitão. Ele ainda podia dar uma ajuda de grande ao vingador dos pequenos. (...) Pelo menos isto ainda lhe sobrara, aquela vingança de um homem poder mais que o senhor de engenho (REGO, 1997, p. 235).

Absorto em seus pensamentos, tomados por completa desilusão, o velho

seleiro ouve algo que o traz, novamente, para a vida: um grito mandando-o abrir a

porta. Como previra o mestre, a força do tenente Maurício deu ordem de prisão ao

seleiro, que não reagiu. Em seus pensamentos ele não havia feito nada para

merecer tudo aquilo. Sentiu-se desprotegido. “Só esperava alguma coisa do capitão

Antônio Silvino, que só ele era homem para ajudar um pobre em sua situação. Onde

estaria àquela hora?” (REGO, 1997, p. 237).

Convicto de que podia se valer do cangaceiro, o mestre José Amaro

aguentou, com grande coragem, o “cipó de boi” em suas costas, esperando o

momento da grande vingança. Só que ela não veio. O capitão Antônio Silvino, o

homem que mais admirava no mundo, o mais corajoso de todos que já tinha

conhecido, o justiceiro dos desvalidos, a sua última esperança contra os grandes

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daquele lugar, aquele que iria vingá-lo de todas as injustiças que sofrera, lhe dera as

costas. O que restava para o mestre nesta vida? Somente a dor da consciência de

seu infortúnio e a amargura de sua situação.

Após sair da prisão por meio de sua amizade com Vitorino – que era primo

do coronel José Paulino –, o mestre caminha, desolado, para sua casa. Queria vê-la

pela última vez. Ao abrir a porta, sente o cheiro de podridão. Os pedaços de sola, os

arreios velhos por todos os lados, a velha tenda para um canto na escuridão. Aquilo

era a síntese de sua vida. Podridão e destroços. E, diante de todo o caos de sua

existência, lembrou-se da velha companheira de todas as horas, a quicé. Seria ela,

sua única e verdadeira companheira, a merecedora de sua última investida. E lá

mesmo, em meio aos destroços, o mestre José Amaro enterrou-a fundo no peito. No

velho peito onde jazia um coração vazio, tomado pela desilusão e pela amargura.

Um coração de um homem fracassado.

III - O ENGENHO DE SEU LULA: O PODER ARRUINADO

Neste capítulo, analisamos a segunda parte do romance Fogo Morto, que tem

como personagem nuclear o “senhor” das terras do engenho Santa Fé, o coronel

Luís César de Holanda Chacon, mais conhecido por Lula. Tal personagem é

construída a partir da representação da aristocracia canavieira arruinada que perdeu

o poder econômico, mas não o orgulho senhorial – feudal e despótico – de sua

casta.

Incapaz para os trabalhos no campo, Lula arruína o Santa Fé depois de tomá-

lo de sua sogra, d. Mariquinha, após a morte de seu marido e primeiro senhor

dessas terras, o capitão Tomás Cabral de Melo. Não aceitando as novas

transformações sociais impostas à sua linhagem, refugia-se em Deus como assíduo

expectador de missas no Pilar, como fuga da situação, bem como no amor ao

passado e, como os seus pares, busca resistir a tudo isto, não abandonando as

ambições e vaidades.

Humilhado diante da decadência e sofrendo as pressões do cangaço, acaba

se confinando em total isolamento. Simboliza a recusa ao progresso e, por isto,

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sublima seu orgulho em um misticismo supersticioso que acaba por refletir no trato

com aqueles que vivem sob o poder de seu braço e de seu domínio territorial, tais

como a família e os moradores de suas terras.

Cortando as estradas, sempre em seu “cabriolé”, símbolo da riqueza de

outrora, preocupa-se em aparentar o que não é mais, agarrando-se a uma rotina que

lhe parecia confortadora e impondo o poder (que não mais existe) aos que vivem

sob sua custódia, reiterando as relações de vassalagem que se mantiveram no

Nordeste açucareiro por meio de sua classe social. Justamente por constituir um

símbolo da aristocracia rural nordestina falida, torna-se clara a sua relevância no que

tange à proposta desta dissertação, uma vez que representa o poder fracassado.

Após um breve desenho dos elementos configuradores do fracasso nesta

personagem, faz-se necessário, antes de tudo, verificarmos um fato curioso,

etimologicamente falando, quanto à redução dada ao nome desta personagem em

estudo.

No Nordeste, “Lula” é um modo carinhoso de se referir às pessoas que têm

por identidade o nome Luís. Até aí, nada em especial. Porém, se buscarmos

compreender a origem desta palavra, verificar-se-á, claramente, a construção

poética dada ao protagonista do romance, objeto de estudo deste capítulo.

Luís5 é uma palavra de origem alemã, cujo significado quer dizer: combatente

invicto. No decorrer do processo de leitura, percebemos uma clara contradição

quanto ao sentido dado aos que atendem por este nome, pois, como se sabe, não

era do temperamento de um senhor de terras a fraqueza e a covardia, e são

justamente estes os adjetivos que qualificam a personagem Lula de Holanda na

obra.

Apesar de ter herdado, através dos laços matrimoniais, o engenho Santa Fé

em plena produtividade, mostra-se desenxabido em manter e dar continuidade ao

trabalho do sogro. Porém, como já foi dito, gostava de manter as aparências,

gastando até a última moeda de ouro deixada pelo pai de sua mulher, Amélia. E,

nesta conduta, fazia questão de não pedir dinheiro emprestado aos grandes da

5Nome de origem germânica significa “combatente glorioso”, “guerreiro famoso” ou mesmo “famoso

na guerra”. Vem do germânico Chlodovech, composto pelos elementos hlud, que significa “fama” e wig, “guerreiro”. A língua francesa transformou esse nome em Louis, que por seu lado originou as versões em portugues e espanhol, “Luís” (WWW.dicionariodenomesproprios.com.br/luis/ acesso: 27 de setembro de 2012 às 21h e 38min.).

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terra, mesmo estando o engenho em decadência, após passar ao seu comando;

além de fazer questão de que a família não saísse de casa sem as suas joias, como,

por exemplo, na passagem abaixo:

Depois da missa, o cabriolé saía a vibrar as suas campainhas pela rua maior do Pilar. O boleeiro subia até a casa da Câmara, e de lá voltava com a carruagem fazendo uma manobra bonita. O coronel Lula de Holanda, de preto, com a mulher e a filha, sobranceiro, decabeça erguida, mostrava-seà canalha de olhos compridos, com a família na seda. Lá estavaNeném, amoça mais bonita da várzea, e Amélia coberta de ouro, de trancelins, de anéis no dedo para fazer inveja aos que pensavam que ele, Lula de Holanda, não era nada. Era maior do que todos. Disto estava certo (REGO, 1997, p. 159).

Como podemos perceber, o orgulho senhorial acompanhava seu Lula, bem

como sua família. Mesmo que ele não demonstrasse este sentimento quanto ao

engenho, como o fazia seu sogro, Tomás Cabral de Melo na lida do dia-a-dia junto

aos trabalhadores, cujo intuito era tornar o pequeno Santa Fé em um engenho de

respeito em meio aos outros engenhos da região, seu Lula o demonstra na

ostentação de suas joias como forma de mostrar-se diferente quanto a todas as

outras pessoas que, a seu ver, eram inferiores:

Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo (HOLANDA, 1995, p. 80).

Seu orgulho vai além de sua condição de senhor de engenho – mesmo que

arruinado; podemos percebê-lo, por exemplo, quanto à sua origem enquanto homem

branco que veio da cidade, e não da Várzea, como a maioria dos que lá viviam,

inclusive, os poderosos da região, fato que ele fazia questão de citar sempre que

tinha oportunidade. Orgulhava-o sentir-se diferente daquela “gentalha”, como lhe

parecia o povo que habitava a região. Era a soberba de sua casta latejando dentro

dele.

Ademais, como bom representante de seus pares, combatia a liberdade,

tratando com requintes de crueldade seus escravos, os quais, depois da Abolição,

abandonaram o engenho e o seu senhor sem olhar para trás:

67

Chegou a abolição e os negros do Santa Fé se foram para os outros engenhos. Ficara somente com seu Lula o boleeiro Macário, que tinha paixão pelo ofício. Até as negras da cozinha ganharam o mundo. E o Santa Fé ficou com os partidos no mato, com o negro Deodato sem gosto para o eito, para a moagem que se aproximava. Só a muito custo apareceram trabalhadores para os serviços do campo. (...) O povo cercava os negros libertos para ouvir histórias de torturas (REGO, 1997, p. 148).

Como se pode perceber, o senhor das terras do Santa Fé não tinha tino, nem

para o trabalho do campo e nem para lidar com pessoas. Suas ações serão mais

tarde, responsáveis pela decadência total do engenho, ou seja, é ele que colocará o

mesmo na situação de “fogo morto”.

Ao cabo de suas atitudes, verificaremos que tanto as sombrascoletivas

quanto as individuais, que transitam em toda a obra, são, sobremodo, autoria de

Lula. Sua inadaptação ao trabalho rural faz dele responsável por parte do malogro

na vida de todos aqueles que sobreviviam deste modelo econômico ou,

simplesmente, residiam nos arredores das grandes fazendas de cana-de-açúcar.

Por este motivo, nota-se uma intersecção entre o senhor e os moradores de suas

terras no que tange à situação de decadência que os projetam como seres

fracassados em meio a um sistema social falido.

Como forma de corroborar a observação anterior, coloquemos em confronto

com o coronel Lula de Holanda o mestre José Amaro. Mesmo pertencendo a lugares

sociais distintos, os dois se irmanam em vários pontos na obra. Suas tragédias

pessoais equivalem-se em muitos momentos; por este motivo, buscaremos elencar

as mais significativas para esta análise.

Primeiramente, ambos atuam como personagens, cujos casamentos foram

arranjados pelas suas famílias; ao invés de um filho homem possui cada um deles

uma filha – solteira, mesmo tendo idade para se casar e gerar filhos –; vivem de um

passado que não mais existe e, por isto, buscam refúgio, cada um ao seu modo,

para ausentar-se da dura realidade: o primeiro tem como evasão a religião; já o

segundo, busca refúgio na justiça, não de Deus, e sim de homens, como o

cangaceiro Antônio Silvino; o orgulho e a teimosia são traços evidentes nos dois,

além da rigidez nas palavras e no trato para com os que com eles convivem; são

taciturnos e, por isto, voltados para dentro de si mesmos, macerando, a todo o

instante, suas aflições.

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É claro que existem diferenças no modo como cada um deles expressa e

executa as suas angústias pessoais, pois devemos atentar para o fato de que

ambos possuem compreensões destoantes quanto aos seus verdadeiros lugares

sociais. Como vivem presos a um tempo passado, veem-se com o mesmo valor

social que lhes era conferido tempos atrás, mas, como se pode perceber, há muito,

deixou de existir. Por isto, se veem perdidos em face das transformações sociais

que destroem seu antigo mundo, o que repercute, muitas vezes, no comportamento

angustiante (de ambos), bem como na busca incessante por uma auto-afirmação.

Porém, como não a encontram no plano do presente, recorrem ao passado. E, nesta

busca inglória, ambos expõem seu orgulho pelos pais, considerados, por eles, como

gente de alto valor, pessoas totalmente diferentes daquela “canalha” que habitava

aquelas cercanias.

Em muitos momentos da narrativa, Lula reitera – orgulhoso e convicto – o fato

de o pai, Antônio Chacon, ter sido morto, como herói, por defender, em combate na

revolução de 1848, Nunes Machado:

Lula, quando falava do pai, enchia os olhos claros de lágrimas. Morrera pelo parente Nunes Machado, assassinado pela tropa do governo. (...) trouxera o retrato em ponto grande do pai. Estava ele ali na parede da sala de visitas, com aquelas barbas como as do filho, e um olhar de homem duro (REGO, 1997, p. 134).

Já o mestre José Amaro, por outro lado, orgulhava-se pelo fato de seu pai, o

velho José Amaro, artesão de ofício, ter chegado até aquelas terras por causa de

um crime que cometera no passado, provando, com isto, ser um homem de grande

coragem.

Além destes elementos reveladores de suas vaidades pessoais, Lula

orgulha-se por ser homem branco, de não ter descendência interiorana e de

pertencer a uma família de pessoas ilustres em Pernambuco: “falava de sua família

de Pernambuco com soberba (...) gente que sabia entrar e sair, gente de trato, sem

aquela bruteza dos engenhos” (REGO, 1997, p. 149).

José Amaro regozija-se por ser branco e oriundo de uma família cujo

patriarca teve seu trabalho reconhecido por gente de trato – refere-se a um dos

trabalhos artesanais, mais especificamente, uma sela que foi dada de presente ao

imperador pelo barão de Goiana.

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Faz-se necessário uma observação quanto ao comportamento das duas

personagens em relação aos seus genitores. Toda esta vaidade esvai-se, no nível

da consciência, pois, passado algum tempo, ambos perceberão que nada do que os

seus pais usufruíram pertence a eles. O que antes era orgulho e autoafirmação

transforma-se em mágoa, desgosto profundo e reafirmação do fracasso em suas

vidas. Vejamos como este sentimento de impotência, perante a figura do pai,

repercute na configuração do malogro na personagem Lula de Holanda:

Lula parecia humilhado. Não pôde dormir. Dentro da mataria mexiam bichos, gemiam as vozes da noite. (...) Veio-lhe então a lembrança do pai, noites e dias no meio das matas de Jacuípe, vivendo como um animal, assassinado, por fim, como um bandido perigoso. Morrera, pelo chefe Nunes Machado. Então, seu Lula, naquele ermo do sertão, por debaixo do umbuzeiro, com os negros e o sogro deitados na mesma terra, viu que não era nada, que força nenhuma tinha para ser como fora o pai, Antônio Chacon. O que ele fora até ali? Nunca que um pensamento assim o perseguisse como aquele, naquele isolamento (REGO, 1997, p. 137).

Diante disto, é interessante verificarmos mais de perto, não somente alguns

destes elos entre as duas personagens em destaque, bem como os recursos

estilísticos utilizados por José Lins do Rego, dando especial importância à

comparação.

Esteticamente, a comparação se faz importante nesta obra, já que, em todo o

enredo, as personagens são postas, pelo próprio narrador, em conflito constante. O

intuito é aumentar o clima de tensão que percorre toda a narrativa, afinal, trata-se de

uma obra que busca projetar a decadência econômica de uma classe social –

acostumada ao poder – cuja repercussão sobrecai, com força total, por toda uma

sociedade e, consequentemente, nos que nela buscam sobrevivência.

Além disto, tal recurso reforça, também, o grau de inferioridade social e

individual de alguns personagens na narrativa, ou seja, é por meio da comparação

que o romancista realça o fracasso mediante toda a (im)possibilidade existencial

destas.

Para tanto, comecemos por destacar o tempo utilizado por José Lins do Rego

na segunda parte da obra em estudo. Destoando da primeira e terceira partes que

constituem a obra Fogo Morto nas quais opta o narrador pelo tempo presente, a

porção do enredo que compete à personagem Lula de Holanda se faz a partir do

tempo passado, no que tange ao seu início, quando se fala da origem do Santa Fé.

70

Por isto, o autor paraibano foge um pouco da técnica da onisciência – predominante

na narrativa de Fogo Morto – e, utiliza-se do narrador observador, contando, ao

leitor, o nascimento do engenho Santa Fé, seu apogeu e seu declínio:

O Capitão Tomás Cabral de Melo chegara do Ingá do Bacamarte para a Várzea do Paraíba, antes da revolução de 1848, trazendo muito gado, escravos, família e aderentes. Fora ele que fizera o Santa Fé. Havia aquele sítio pegado ao Santa Rosa, e como o velho senhor de engenho, o antigo Antônio Leitão, não quisesse ficar com aquelas terras, ele ali se fixara. Era homem de pulso, de muita coragem para o trabalho. Ele mesmo dera ao engenho que montou o nome de Santa Fé. Tudo se fizera a seu gosto (REGO, 1997, p. 122).

O romancista recua o tempo cronológico, levando o leitor ao ano de 1850 –

ano de fundação do Santa Fé –, para que o mesmo possa, não só fazer a devida

apreciação de todo o processo pelo qual passara este engenho, bem como sentir,

de forma impactante, toda a ruína em que se encontram estas terras, aguçando, no

mesmo, indagações e respostas para esta nova condição. Este recurso utilizado por

José Lins do Rego é colocado por Normam Friedman em O ponto de vista na ficção

– O desenvolvimento de um conceito crítico6, onde ele conceitua sumário narrativo e

cena. Este recuo de José Lins do Rego pode, portanto, ser enquadrado em sumário

narrativo, por meio do qual os acontecimentos vão sendo relatados ao longo do

período sem entrar em maiores detalhes, o que difere da cena, em que o narrador

se demora na narração dos fatos. Logo, “o sumário narrativo é uma apresentação ou

relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensão de tempo e

uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples de narrar”

(FRIEDMAN, 2002, p. 172).

Este ponto de vista sobre sumário narrativo (resumo breve e geral dos feitos),

fica bem marcado na passagem abaixo quando o autor, num discurso indireto-livre,

apresenta ao leitor o pensamento do fundador e proprietário das terras do Santa Fé,

o coronel Tomás Cabral de Melo, acerca do seu engenho:

Aquele Santa Fé, que montara com tanto cuidado, com toda a sua alma, parecia um anão comparado com os outros engenhos de perto. (...) Tivera que lutar no princípio com toda dificuldade. Nada sabia de açúcar. (...) Para ele, porém, não havia empecilhos. Levantou o engenho, comprou moenda, vasilhame, e dois anos após a sua chegada ao Santa Fé, tirara a primeira

6 Friedman, Normam. O ponto de vista na ficção -O desenvolvimento de um conceito crítico. Revista

USP, São Paulo, n.53, p.166 – 182, março/maio 2002.

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safra. O povo, a princípio, não levava a sério o Santa Fé. Viam aquele homem de fora, com jeito de camumbembe, trabalhando para ele mesmo, com as suas próprias mãos, nos trabalhos de casa, e não acreditava que nada daquilo desse certo. (...) A casa-grande subiu a cumeeira (...) o engenho subia as paredes, e com pouco o Santa Fé criava o seu corpo, era como gente viva, com os partidos de cana acamando na Várzea (REGO, 1997, p.122).

Entendemos que este processo de recuo no tempo, além dos efeitos citados

anteriormente, também se configura como uma das formas que o autor da obra

encontrou para nos mostrar, de forma sucinta, qual das personagens estava mais

presa ao passado. E, para o leitor atento, fica evidente o efeito deste recurso, pois

das três personagens decadentes em destaque, Lula é a única delas que, de fato,

perde o poder. Vejamos por que.

Membro de uma família tradicional de Pernambuco, ele vai até a Várzea

paraibana para contrato matrimonial com a prima, Amélia. Inclusive, esta prática era

muito comum entre os membros da sociedade oligárquica canavieira, pois, era uma

das formas encontradas, pelos mesmos, para concentrar a economia em suas mãos

e, consequentemente, manter-se no poder por longos anos (ALBUQUERQUE,

2006).

Como em toda sociedade patriarcalista, as consequências deste ato são

bastante positivas para os homens, mas, para as mulheres, nem tanto. Fadadas aos

casamentos arranjados, muitas vezes sem amor, elas se sentiam obrigadas a casar,

em tempo hábil, como mandam as tradições locais interioranas, para satisfazer

apenas uma obrigação que sua classe social exigia, além de ter que produzir filhos

do sexo masculino para suceder o pai no comando dos engenhos, o que não deixa

de ser uma forma de violência contra sua condição existencial. Com isto, passam de

esposas a vítimas (ALBUQUERQUE, 2006).

Mesmo sendo Lula integrante da mesma casta que a prima Amélia, ele nutria

certo desprezo pelo povo da várzea, por considerá-lo de origem inferior. Lula de

Holanda sentia-se superior a todo aquele povo do Santa Fé, inclusive à família de

sua esposa. Dentro do velho preconceito que orientava os que vêm da cidade para a

zona rural, Lula acreditava que o povo da ribeira era gente rude, sem modos e sem

prestígio algum junto à sociedade. Por isso, também, não aprovava que sua filha,

Neném, se casasse com algum descendente local, preferia vê-la morta a aceitar

semelhante coisa:

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(...) Ouvia bem as palavras de nojo de seu Lula. - Namorar um camumbembe, uma filha minha na boca da canalha do Pilar. Isto eu não permito, Amélia. (...) - Chama esta menina aqui. Neném surgiu na porta da sala, com a cabeça baixa, ainda aos soluços. - Por que tu choras, menina? Por que este choro, hein? Quem te bateu, menina? Não me casa com camumbembe, hein? Prefiro a tua morte (REGO, 1997, p. 160-161).

Preconceito gera preconceito. Mediante tanta indiferença, o povo da várzea

paraibana reage, desprezando o coronel Lula, por julgá-lo um homem orgulhoso e

que vivia de fachada. A população local sabia muito bem que todas aquelas rezas e

jejuns eram pura hipocrisia, pois no fundo, o senhor das terras do Santa Fé era um

homem mau que batia nos negros, sem dó nem piedade, além de negar, ao povo da

Ribeira, madeira e os potes de mel de furo que, na época do capitão Tomás, eram

doados aos pobres que por ali habitavam. Na verdade, era um homem de “alma

miserável”, como acreditavam os moradores do Santa Fé. Observemos estes

movimentos discursivos por meio da visão do coronel Lula:

Aquela canalha do Pilar não lhe perdoava o desprezo que ele lhe tinha. Quando morreu o sogro, pensaram que fossem continuar a desfrutar o Santa Fé, como propriedade, a mandar pedir carga de lenha, potes de mel, e tudo o mais que o capitão Tomás dava, de besta que era. Tudo ali era seu, só seu e nada fazia para agradar aquele povo de pedintes. Gente ordinária. Ele bem sentia o ódio que conservavam por ele, bem sabia o que aqueles olhos queriam dizer. No dia do ataque na igreja, soube que correram dele como de um leproso. Só a senhora do juiz tivera a coragem de aproximar-se, de fazer alguma coisa para ajudar a Amélia (REGO, 1997, p. 158).

Como se pode perceber, Lula também passa a ser alvo do preconceito por

parte do povo da Ribeira, que via nele e em suas atitudes soberbas uma forma de

humilhá-los e, por isto, desprezava-o com todas as suas forças. Ademais, viam que

o senhor de terras buscava ostentar o luxo e o poder até mesmo na hora em que o

momento exigia resignação e contrição, como, por exemplo, nas missas dominicais

do Pilar, onde ele buscava deixar bem claro, para os pobres da ribeira, sua

superioridade de classe e de “alma”:

O boleeiro vinha deixar as almofadas de seda para os joelhos da família do Santa Fé. O negro entrava na igreja com orgulho, com ufania. Ajoelhava-se no altar-mor, e depois de deixar no ladrilho as três almofadas, voltava para a porta de entrada, e de longe, (...) assistia à missa. Os senhores ficavam

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mais perto de Deus. Eles é que podiam ter aquele luxo, aquela intimidade de mais perto com o Todo-Poderoso, com o grande do céu. Seu Lula ouvia a missa inteira ajoelhado, batendo com os beiços, com o rosário entre as mãos. (...) O povo achava tudo aquilo uma hipocrisia. Era ele o maior unha-de-fome da várzea, o senhor só dormia bem quando tinha negro no tronco, que derramava sangue de negro nas pisas de arrancar o couro, que vinha rezar daquele jeito, como um puro, um coração limpo, uma alma de santo (REGO, 1997, p. 158-159).

A partir da percepção desta construção, observa-se, ainda, na segunda parte

do romance, a relação de coerência entre a decadência do engenho Santa Fé

associada à composição física do protagonista, Lula de Holanda. O narrador, ao

relatar o percurso da vida e da morte deste engenho, o faz a partir de núcleos

encadeados, como já presenciamos, como, por exemplo, nas relações entre este e

algumas das personagens mais importantes desta narrativa.

É imprescindível perceber, também, que o nome dado ao romance é uma

referência aos engenhos que não mais produzem. Só que, para esta fazenda chegar

a essa situação, foram necessários alguns anos e, nesta trajetória, Lula de Holanda,

além de ser o responsável pela situação de “fogo morto” em que se encontra seu

engenho, sofre alterações físicas, além de comportamentais consideradas

importantes para esta análise. Vejamos algumas delas.

Tanto Lula quanto o engenho Santa Fé fundem-se na representação do outro.

Enquanto o Santa Fé produzia, Lula ostentava a riqueza que usufruía. Quando o

engenho entra em declínio, Lula também declina, entrando em sua insanidade

religiosa, e nos seus ataques epilépticos. Porém, de forma semelhante ao

procedimento utilizado por José Lins do Rego na primeira parte do livro,

especificamente na construção física da personagem José Amaro, o coronel Lula de

Holanda sofre mudanças em sua configuração estética. E, da mesma sorte, declina.

Neste ponto, chamamos a atenção para a barba de Lula, como forma de

representação metaforizada do processo de decadência do engenho Santa Fé e,

consequentemente, de sua ruína pessoal.

Ao ser apresentado, pela primeira vez à prima Amélia, Lula mantinha uma

feição de moço de trato, tanto nos modos, quanto na aparência. Era o que se

poderia chamar de “um rapaz cerimonioso, de boa aparência, trato fino” (REGO,

1997, p. 126), justamente o que procuravam os pais de Amélia para desposá-la. Um

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homem que fosse diferente daquela gente rude da Várzea e, consequentemente,

merecedor de sua filha. As aparências contavam muito naquele ambiente:

O primo Lula tinha aquela barba negra de estampa, de olhos azuis, o ar tristonho, a fala mansa. A velha olhava-o para sentir bem o genro que viera de longe para fazer de Amélia uma criatura feliz. Nunca aquele piano falara com tanto sentimento. Amélia dedilhava como uma fada: o capitão ficava em silêncio, escutando a filha, que dava a sua alma ao primo Lula, nas músicas do coração que tocava (REGO, 1997, p. 126-127).

O casório se realizou como era da vontade de todos. Porém, Lula de Holanda

não mostrou nenhum tipo de entusiasmo pela nova vida de senhor de engenho.

Passava longas horas do dia deitado na rede no alpendre da casa ou ao lado da

esposa, exercendo, por assim dizer, os seus próprios modos senhoriais que, por

serem totalmente diferentes dos costumes da casa-grande, aguçavam, no seu

sogro, a desconfiança quanto à competência do genro para comandar, no futuro, o

Santa Fé:

O diabo era a vida descansada do genro, aquele paradeiro, aquela distância da terra. Tinha terra gorda para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e ficava dentro de casa, naquela leseira, naquela preguiça sem fim. Como podia um homem com uma manhã de maio, com os negros cavando cova de cana para o plantio, ficar dentro de casa? Como podia um homem não tomar gosto pela lavoura crescendo na terra, com um engenho moendo, num bonito safrejar de 24 horas? O cheiro do mel, o cheiro da terra molhada, a chuva, o sol, os lagartos, as cheias do rio, nada daquilo valia para o seu genro? (REGO, 1997, p. 134-135).

Lula é a representação, portanto, de uma aristocracia atrasada, apegada a

uma tradição que cultua títulos e “foros” de linhagem, segundo a qual o trabalho

manual com a terra era uma ocupação indigna. Sérgio Buarque de Holanda em seu

livro Raízes do Brasil afirma:

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido expressamente considerado, já em outras épocas, como pertinentes aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o nome de liberais dado a determinadas artes, em oposição às mecânicas, que pertencem às classes servis (HOLANDA, 1995, p. 83).

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O que o capitão Tomás Cabral de Melo não conseguira entender é que o seu

genro viera da cidade e, não acostumado à lida com a terra, mantinha um

comportamento senhorial de modo diferente do seu. Já para as negras da casa

grande, bem como para d. Mariquinha, mãe de Amélia, aquilo é que era homem de

verdade, pois além de bonito, era de fino trato:

A mãe achava bonito tudo aquilo. Assim devia ser um marido, homem que vivesse perto da mulher, como gente, sem aquela secura, aquela indiferença de Tomás. Felizmente que a sua Amélia encontrara um homem de uma natureza tão boa, tão amorosa. As negras elogiavam os modos do jovem senhor. Parecia uma estampa de santo, com aquela barba negra de são Severino dos Ramos, com aqueles modos de fidalgo, todo pegado com a mulher como só se via na história de príncipes e princesas. O capitão era que não podia entender o gênio daquele rapaz (REGO, 1997, p. 131).

A barba negra e bem tratada mantinha-o diferente dos homens da várzea.

Não bastassem tantos “requififes”, Lula manda buscar no Recife o seu cabriolé. O

capitão Tomás era homem simples, mas, no seu orgulho senhorial, gostou de poder

fazer a diferença entre os senhores da região que o julgavam um camumbembe –

devido a sua dedicação braçal no engenho, o que destoava do comportamento de

um verdadeiro senhor de terras –, além do que, muitos destes preconceituosos

ainda levavam sua família em carros de boi para as festas no Pilar:

Agora ia à missa do Pilar montado na carruagem. (...) O primo Lula era homem de gosto. Fizera bem em dar-lhe a filha para esposa. Era homem fino. Via-o com aquela barba preta tão bem tratada, com o jeito de falar, as maneiras de homem que podia sentar-se na mesa do barão de Goiana sem fazer vergonha. (...) O cabriolé dera muita importância ao Santa Fé. A família do capitão Tomás, quando entrava na vila, chamava a atenção do povo da rua. E ele gozava, de verdade, a importância que lhe vinha de tudo. (...) O capitão se enchia com a grande figura que a carruagem do genro fazia. Tinha piano em casa. Só ele tivera coragem de mandar uma filha para colégio de freira. Montado no cabriolé olhava para o mundo cheio de satisfação (REGO, 1997, p. 132-133).

Enquanto o engenho Santa Fé era comandado pelo braço do dedicado

Tomás Cabral de Melo, o novo senhorzinho apenas desfrutava dos benefícios

destas terras. Fisicamente, sua aparência é sempre bem cuidada e os seus modos,

refinados. Porém, seriam mesmo tanta delicadeza e ostentação por parte de

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Lulagarantias de um bom senhor de engenho para o Santa Fé e para o seu povo? O

tempo foi passando e o genro passou a “cair em tentação”. Não tinha tino algum

para tratar de assuntos servis. E, o que antes era alegria, transformou-se em grande

preocupação: “O que fariam os negros com um banana na casa-grande, ouvindo

piano, lendo jornais, tratando da barba?” (REGO, 1997, p. 134).

A preocupação do capitão Tomás tinha, de fato, fundamento, pois, na

sociedade patriarcalista da qual fazia parte, o homem é quem deveria tomar as

rédeas dos negócios, e não a mulher. Como o sucessor era o genro e este se

mostrava indisposto, mesmo depois de tanto tempo casado com Amélia, era o

mesmo que validar, antecipadamente, o fim do Santa Fé e do fruto do trabalho de

toda uma vida:

Aquela terra que ele moldara ao seu gosto, que ele povoara, tratara, lavrara, talvez que, com a sua morte, voltasse ao que fora, a um pobre sítio, a uma pobre terra sem nome. Não acreditava no genro. E tudo isto o consumia. Era bonito andar na carruagem com a barba preta, luzindo com o porte de senhor fidalgo. Era muito bonito. Para ele, para o pai que lhe dera a única filha, tudo aquilo era festa somente para os olhos. (...) Compreendia que tudo que levantara podia cair (REGO, 1997, p. 134).

A aparência de Lula serviu como sinal de um bom caráter. A barba negra,

sempre bem escanhoada, seus modos delicados, principalmente para com sua

esposa, chamavam a atenção dos que ali viviam, sobremodo, das mulheres da casa

– acostumadas às atitudes grosseiras dos homens –, como, por exemplo, em d.

Mariquinha, sua sogra. Porém, com o passar do tempo, as coisas foram mudando e

o primo Lula passou a mostrar de fato quem ele era: um homem cruel.

Completamente diferente do que aparentava ser, como, por exemplo, no episódio

que envolveu um de seus escravos, o Nicolau, surrado a mando do genro:

Não havia quem dissesse que aquele homem que ela via tão pacato, a ler jornais, tivesse vocação para mandar meter a peia num pobre negro como Nicolau. Dissera-lhe o mestre de açúcar que lhe falara sem termo, em tom de desaforo. Nicolau viera com Tomás de Ingá, e era negro de estima da casa. Depois dos bolos, adoecera de vergonha. Fora ela mesma à senzala falar com ele. E teve pena. Lágrimas correram dos olhos de Nicolau. - Minha senhora, o seu negro não presta mais para nada (REGO, 1997, p. 141).

Após a conversa com o mestre de açúcar, Nicolau, d. Mariquinha começa a

perder toda a admiração que sentia pelo genro, pois “o povo de seu marido era de

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gente de muito bom juízo, de homens que morriam em cima do trabalho, dando tudo

o que tinham aos seus, até o último esforço da vida”. Conclui que era preciso falar

sério com o genro, porém, ao procurá-lo com este propósito, toma conhecimento de

outras atrocidades do senhorzinho:

Soubera que um moleque de Goiana fora também castigado. O genro lhe falara da desgraça de Tomás como resultado de tolerância para um escravo ordinário. Negro só mesmo na peia. Pediu-lhe, então, para que abandonasse aquele sistema de trato. Não queria que o Santa Fé criasse a fama do Itapuá do major Ursulino. D. Mariquinha começara a perder todo aquele encanto que lhe dera o primo Lula. Começava a vê-lo como um impiedoso, um desalmado. A negra Germana, chorando, lhe dissera: - Sinhá, Chiquinho não fez nada. Seu Lula gosta de dar em negro, sinhá. Aquelas palavras da negra a impressionaram. Gostar de dar em negro (REGO, 1997, p. 141).

O Lula, marido carinhoso de outrora, que enchia seus olhos de contentamento

pelos desvelos imprimidos à sua filha, Amélia, já não existia mais; e, pensando em

sua filha, d. Mariquinha teme por ela e pelos negros de seu engenho. Como o seu

marido estava debilitado, e consequentemente impossibilitado de tomar conta das

terras como fazia outrora, ela mesma resolve tomar o comando da situação, bem

como, de sua propriedade, mesmo sendo uma mulher. O genro, enquanto homem,

ao tomar conhecimento das decisões da sogra, não concordou com o fato, o que

gerou discórdia entre as duas partes envolvidas, culminando num ódio mútuo:

(...) em sua casa, enquanto fosse viva, ninguém faria de seus negros o que o major fazia dos seus. Nicolau voltara para o trabalho com a sua proteção. O genro amuara-se. Amélia viera com queixas. Repeliu as suas reclamações. Não permitiria que se mandasse bater em negro sem razão. A filha sentiu-se com as suas palavras. (...) Depois daquele incidente, seu Lula deixou de falar com a sogra. (...) Tinha pena da filha. (...) Agora sabia que não seria feliz com aquele homem. (...) Aquele Lula, todo de mesuras, todo não-me-toques, tinha gênio perigoso. Muito sofria uma mulher casada com um marido assim. (...) A casa-grande do Santa Fé vivia assim, cada vez mais triste (REGO, 1997, p. 142).

Após a morte de seu sogro, Lula de Holanda se viu detentor do poder

conferido pela sociedade. Não aceitou, sobremodo, que a sogra, d. Mariquinha,

tomasse conta dos negócios como era de seu interesse, uma vez que a mesma não

dava crédito ao genro pelo fato deste, além de se mostrar incompetente para lidar

78

com as atividades do engenho, ainda tinha o péssimo hábito de mandar castigar em

demasia sua escravatura que, desde o tempo do seu marido, nunca sofrera tanto.

A situação entre Lula e d. Mariquinha vai parar na justiça. Toda a população

local ficou contra o novo senhor de engenho, além da própria família que não queria

brigas por questão de dinheiro. Até o juiz de direito, o dr. Gouveia, velho magistrado,

não deu direito algum ao ambicioso Lula. Todos ficaram contra e, por isto, ele teve

que ceder à pressão. O povo, que já o via como a um “demônio” devido à

repercussão dos maus tratos para com os negros do engenho, além da mesquinhez

de suas atitudes, passou a vê-lo com maior ojeriza:

Nos dias de domingo o cabriolé saía com seu Lula e a mulher para a missa do Pilar. Olhava-se para ele como para um ambicioso. Viera para se casar com o dinheiro do capitão, queria roubar a viúva. Era um infeliz. (...) O cabriolé do genro começou a fazer mal ao povo. Bastava ouvi-lo, com as campainhas, para que a imagem do genro sem coração, do genro cruel, aparecesse para toda gente (REGO, 1997, p. 143).

Resolvida a questão, seu Lula, com a alma ferida, por entender-se humilhado,

acreditava ter direito aos bens materiais deixados pelo sogro, já que era casado com

uma de suas filhas. E, o que antes era calmaria, transforma-se em verdadeira

tormenta, o que leva d. Mariquinha à morte por desgosto do genro. Veio a Abolição e

as coisas tomaram proporções devastadoras na vida dos habitantes da casa-grande.

Abandonado pelos negros e inconformado com a nova ordem das coisas, o

novo senhor de engenho sofre o seu primeiro ataque epiléptico: “sofria de gota, de

doença que pegava como visgo”, ficando, com isto, mais distante “do povo do Pilar e

da gente da várzea”; e, a barba de seu Lula, que antes era bem cuidada e de um

preto reluzente comparada à de São Severino, “perdera o negrume de antigamente,

pontilhava-se de fios brancos”. Era a decadência que vinha a galope bater à porta do

Santa Fé (REGO, 1997, p. 152).

Na ruína em que se encontrava, o senhor de engenho pensava na filha,

Neném, como a única razão para sua existência decadente. Nada mais lhe

agradava. Somente ela é que lhe dava segurança e alguma felicidade. Por pensar

assim, seu Lula começa a macerar conjecturas sobre a quem daria a mão de sua

única filha que, a seu ver, era a mais formosa e mais prendada de toda a região,

79

com aquela “pele cor de leite, de olhos azuis, de cabelos louros como os de sua

gente do Recife” (REGO, 1997, p. 152).

Tendo o pensamento totalmente voltado para solucionar a questão, o coronel

Lula de Holanda perguntava-se a todo instante quem seria digno, naquela várzea de

casar-se com a sua única filha.E, em suas indagações sobre o assunto, não

conseguia ver o pretendente certo, pois, a seu ver, aquilo era uma “laia, sem

educação, sem finura para marido de moça que era da mais fina, da mais rara

formação” (REGO, 1997, p. 153). Ademais, casar uma filha naquelas condições

financeiras em que se encontrava o engenho não seria fácil. O dote teria que ser à

altura de um bom partido para contrair matrimônio com a mesma. Afinal,

O Santa Fé não era engenho de grandes cabedais; não era homem rico, como o velho José Alves, capaz de casar, por causa da fortuna, como o José Paulino, do Santa Rosa, enchendo os genros de dádivas. Educara Neném para um grande futuro. (...) Neném não era criatura para ligar-se a qualquer camumbembe formado (REGO, 1997, p. 153).

Como não encontrava alguém à altura de sua filha única, o proprietário do

Santa Fé passa a impor sua autoridade de pai, cometendo, contra a moça,

atrocidades, como, por exemplo, repreendendo-a contra qualquer interesse da

mesma por quem quer que fosse, resultando, com isto, o recolhimento de Neném

em seu quarto e, consequentemente, o distanciamento da mesma em relação ao

povo e à própria família.

Marcada com o ferro da violência patriarcalista da sociedade em que vivia,

Neném, semelhante à Marta, filha do seleiro José Amaro, torna-se reclusa às

pessoas, inclusive, as de sua própria casa. Mais um ponto favorável à ruína iminente

no seio da família de seu Lula que, indiferente às safras que reduzem a cada ano,

busca conservar a postura senhorial da casa-grande e de todos que nela reside,

mantendo a aparência dos tempos idos, como se estivesse tudo em ordem, fingindo

possuir os mesmos recursos de outrora e a mesma gravidade de sempre. “E o Santa

Fé foi ficando assim o engenho mais sinistro da várzea”, com todos envelhecendo

rapidamente e sem alegria, distantes do mundo lá fora, como se o tempo não

passasse (REGO, 1997, p. 147).

Diante de tanta penúria em que se encontrava o engenho de seu pai, d.

Amélia “refletia no destino de sua gente com amargura crescente”. Agora mais velha

80

do que nunca, mantinha a casa às escondidas do marido, vendendo ovos para o fiel

e discreto comerciante, Manuel Paca. Somente ela é que vivia a dura realidade.

Todos os outros membros de sua família buscavam refugiar-se da situação cada um

a seu modo. E, pensando no passado, “voltavam-lhe imagens que eram a grandeza

de sua vida. Tudo se fora”. E a barba de seu Lula que fora de um preto retinto,

“estava branca” e sua “voz que fora terna”, tornara-se “rude”. Era a ruína abatendo a

todos (REGO, 1997, p. 154-155).

Mais uma vez, usando de procedimentos estéticos baseados em

contrapontos, José Lins do Rego, em sua dialética, traça uma intersecção entre a

vida da senhora da casa-grande, d. Amélia, e a senhora da casa de taipa, Sinhá

Velha – mulher do seleiro Amaro – no que diz respeito às impressões das mesmas

em relação aos seus respectivos maridos.

Ultrapassando os ditames dos lugares sociais de cada uma destas mulheres,

o romancista da várzea da Paraíba nos apresenta o drama das esposas de maridos

autoritários e ensimesmados que, com o passar do tempo, sofrem alterações, tanto

comportamentais, quanto físicas, o que leva suas mulheres a acreditarem que estes

são qualquer coisa, menos seres humanos.

O drama pessoal de Sinhá Velha, neste sentido, encaminha-se para a crença

de que o marido era um lobisomem; já em d. Amélia, o fato se consuma quando esta

passa a ver o marido, Lula de Holanda, após os ataques de epilepsia, como algo

diabólico:

Um homem podia mudar de alma, mais do que de corpo. A alma de Lula não era a mesma. Na tarde do primeiro ataque, pensou que ele estivesse com o diabo no corpo. Rezara aos pés de Nossa Senhora pedindo pela alma do marido. Aquele jeito da boca, aquele tremor dos braços, das pernas, aquela cara sinistra não eram de gente da terra (REGO, 1997, p. 155).

Nota-se, sobremodo, que José Lins do Rego foi de fato um grande contador

de histórias e lendas, pois, sempre que possível pára para tecer registros das

crenças populares em elementos místicos.

Realçando a convicção sobrenatural do povo na obra em estudo, as esposas

dos protagonistas da primeira e segunda partes do romance Fogo Morto apelam

para as coisas “lá do céu”, evocando Deus, bem como todos os santos de sua fé,

quando se sentem em perigo ou quando elas mesmas não podem resolver o

81

problema. Este traço cultural é tão forte que atinge tanto as pessoas analfabetas,

pouco esclarecidas das coisas, como a Sinhá Velha, bem como pessoas ilustradas

como d. Amélia, por exemplo.

Neste intervalo de impressões de d. Amélia sobre o seu marido, um fato

inusitado acontece com a família do Santa Fé. Este engenho entrara numa briga

com um “catingueiro” que se tornara senhor de terras ao comprar o Engenho Velho.

O problema é que o novo proprietário de terras, munido de escritura, resolvera

procurar o coronel Lula para tratar dos limites de sua fazenda, alegando a este que o

Santa Fé estava excedendo quanto à demarcação de suas terras, ou seja, estava

adentrando às terras do Engenho Velho.

Sentindo-se afrontado pela suposta insinuação de “ladrão de terras”, Lula de

Holanda não aceita acordo nenhum por julgar-se honesto e, principalmente, por

achar-se desfeiteado, na sua autoridade de senhor de engenho, por um cabra, um

“catingueiro” que nada valia, segundo sua opinião.

Como era de se esperar, o novo senhor do Engenho Velho levou o caso à

justiça, o que mobilizou todos os senhores de engenho da várzea a ficarem do lado

do velho Lula de Holanda. Afinal, a desfeita, de certo modo, atingia a todos eles. E

em sua necessidade por manter o poder senhorial intacto, os proprietários de terras

não aceitaram, em hipótese que um sujeito daquela estirpe, chegasse por ali e

quisesse mandar mais do que um coronel.Abrir espaço para um qualquer era o

mesmo que abrir para todos os outros e ali, na Ribeira, não era lugar pra

“camumbembe” fazer o que bem entendesse. Era a hora propícia para mostrar quem

é que mandava por ali:

Via-se então o seu Lula criar alma nova para lutar pela terra. O homem calado, taciturno, deu para andar pelo Pilar, pelo Itambé, pela Paraíba, com uma energia que não se esperava dele. Não era um ladrão de terra (REGO, 1997, p. 156).

Sentindo-se “perseguido pelos senhores da várzea”, o “catingueiro” resolveu

publicar um artigo no jornal O Norte, solicitando justiça ao governador. Em defesa de

seu nome e de todos os senhores de terras, seu Lula rebateu o artigo, falando “em

Nunes Machado, na família dos homens sérios, na miséria da injustiça” (REGO,

1997, p. 156).

82

Tanta desavença gerou algo que os poderosos não esperavam. O cabra do

Engenho Velho tentou agredir seu Lula no cartório local quando aquele tentou falar

com este que, por sua vez, lhe deu as costas. O ato surtiu o efeito de uma bomba.

E, por toda a “várzea correu a história como um crime. Tinha querido dar no senhor

de engenho do Santa Fé” (REGO, 1997, p. 156).

Como representante do alto poder local, o coronel José Paulino, em nome de

todos os senhores de terras, tomou a questão para si e comprou do “catingueiro” o

Engenho Velho dando ao amigo, Lula, as escrituras da propriedade, “dando pelas

terras mais do que elas valiam para que ali na várzea não existisse um cabra

atrevido que ousasse fazer aquilo que estava fazendo com o Santa Fé”. Era o poder

dos grandes da terra sobrepondo-se à gente miúda (REGO, 1997, p. 156).

Depois de eliminada a questão e dos devidos agradecimentos, “seu Lula de

repente sentiu-se coberto de vergonha”, pois, qual seria, de fato, sua força diante do

poder (legitimado) do coronel José Paulino? Nenhuma. “Era um medroso, era um

homem sem força, no meio dos outros”. Com certeza não era um verdadeiro “senhor

de engenho” (REGO, 1997, p. 157).

Melancólico por suas conclusões, Lula de Holanda, em sua consciência

denunciadora, se vê, mais uma vez, como um ser impotente. Pois, um verdadeiro

senhor de engenho resolveria, sem pedir ajuda a ninguém, uma causa que era só

sua. E, diante dos números incrustados no frontão do engenho que fora construído

pelas mãos de seu sogro, seu Lula observa “a força do capitão Tomás. 1850. Tempo

de fartura, de força”. E, na réstia de sua mísera existência ele se vê como um

homem completamente fracassado (REGO, 1997, p. 157).

Tomado pelo sentimento de impotência, diante de um poder que nunca fora

seu, o homem branco, filho de um “herói de guerra” e de gente importante do Recife,

sente “a sua vista escurecer” e “um frio de morte varar-lhe o coração”. E, de

encontro à sua dura realidade, vai ao “chão”, “estrebuchando”. Era o ataque. Era a

consciência de sua total ruína (REGO, 1997, p. 157).

Diante de sua vida mal sucedida e de seu ódio pelos homens – que julgava

maus e injustos –, Lula de Holanda, em seu desespero pessoal, busca consolo em

Deus, agarrando-se ao plano espiritual, entregando-se a Ele com fervor, de corpo e

alma:

83

Seu Lula rezava e não sabia de mais nada. Agora era assim. O amor de Deus o absorvia inteiramente, naqueles instantes. Quando o cônego Frederico elevava ao Senhor o cálice de ouro, e as campainhas ressoavam na igreja, ele sentia-se uma vítima dos homens. (...) Baixava a cabeça e batia nos peitos. Tinha sido roubado. Mataram-lhe o pai, roubaram-lhe o que era de sua mãe, roubaram-lhe os negros com a lei. E a figura do vizinho, o rico José Paulino, (...) comprando terras para livrá-lo de uma questão perigosa, (...) que aos outros poderia parecer uma grandeza d‟alma, doía-lhe como ofensa, como ultraje. Estava reduzido a nada. Mas o Deus que ali estava, naquele instante, o Deus que dera o corpo e o sangue para salvar o mundo, vingava-se de todas as dores de seu corpo com a ressurreição. Os soldados caíram para um lado, aterrorizados, quando o corpo de Deus subiu para os céus (REGO, 1997, p. 159).

É interessante atentarmos para o comportamento do coronel Lula de Holanda

quanto à sua busca por justiça, sobremodo no que diz respeito ao semelhante

procedimento do mestre seleiro, José Amaro.

“Detentor” do poder na terra, o dono das terras do Santa Fé busca amparo no

poder sobrenatural; já o oficial artesão, que, como os seus pares, manteve-se

distante de todo e qualquer poder na terra, e não encontrando respostas palpáveis

por crenças no plano celestial, busca conforto na coragem e na valentia de homens

como o cangaceiro Antônio Silvino. Mais um curioso contraponto presente na

narrativa de Fogo Morto, entendido neste estudo como demonstração de revolta e,

consequentemente, de não aceitação de suas respectivas situações, o que

ocasionou, sobremaneira na fuga de suas realidades decadentes.

Entendemos também que existe uma diferença apenas no modo como esta

negação se dá entre os protagonistas das duas primeiras partes da obra analisada,

ficando mais evidente em José Amaro, que desenvolve certo ceticismo por ter os

seus direitos sempre renegados pelos poderosos, como, por exemplo, o dono das

terras do Santa Fé, que, segundo a igreja, estavam predestinados a serem

detentores do poder e da riqueza, usufruindo, portanto, do paraíso na terra, bem

como no céu; sobrando para os da iguala do seleiro Amaro, submissão e pobreza,

que seriam recompensadas, no reino dos céus, post mortem.

Desolado pelos fatos ocorridos, pela doença e pela infelicidade que o cerca,

seu Lula, cada vez mais, afasta-se de tudo e de todos, entregando-se à religião com

loucura, esquecendo-se de suas obrigações como senhor de um engenho que está

prestes a ruir.

84

Não bastasse tanto infortúnio, o coronel Lula de Holanda passa a servir de

chacota ao povo da várzea devido a um fato ocorrido, envolvendo sua filha e o dr.

Carvalhinho, filho de um alfaiate, que se engraçara de Neném.

Em sua louca desconfiança de traição por parte de todos, Lula acredita que d.

Amélia está a acobertar a fuga de sua filha com o tal “doutorzinho”. Ao ouvir passos

em sua varanda, arma-se de clavinote, e, ao abrir a porta, atira no possível

oportunista. Só que não era o pretendente à Neném, mas, sim, uma das bestas do

engenho que se soltara de uma das almanjarras e que veio ao chão após o disparo.

Seu Lula matara um pobre animal por puro engano. Foi o que precisava o povo da

várzea para tirar proveito de forma vil da figura do coronel Lula, ridicularizando-o

pelo acontecido.

Abatido pelo ocorrido, o coronel Lula “sumia-se para a vida como um

caramujo”. O silêncio domina todos os compartimentos da casa-grande, concorrendo

com o mofo que toma conta dos velhos móveis da época do capitão Tomás. E o

Santa Fé, lá fora, com os partidos de cana-de-açúcar tomados pelo mato e “o bueiro

do engenho, com a boca suja de fumaça velha, o telheiro encardido de lodo”

caminha, cada vez mais veloz, para a ruína iminente (REGO, 1997, p. 161).

Enquanto todos os outros engenhos da várzea acompanhavam as

transformações que se sucediam, botando máquinas a vapor, o Santa Fé continuava

a moer a minguada cana-de-açúcar por meio das antigas almanjarras puxadas por

bestas esquálidas. “Na casa de purgar ficavam os cinquenta pães de açúcar, ali

onde, mais de uma vez, o capitão Tomás guardara os seus dois mil pães, em

caixões, em fôrmas, nas talhas de mascavo seco ao sol” (REGO, 1997, p. 167).

Ninguém parava à porta do engenho para oferecer algum produto de venda

ou mesmo fazer uma simples visita aos seus moradores. E a barba de seu Lula,

além de completamente branca, estava enorme, indo até a altura de seu peito. O

zelo de outrora havia mudado, porém, a postura senhorial dos proprietários do

engenho se mantinha de forma honrosa:

Seu Lula já estava velho, d. Amélia era aquela criatura sumida, mas sempre com seu ar de dona, Neném uma moça que não se casava, d. Olívia falando, falando as mesmas coisas. Esta era a casa-grande do Santa Fé. (...) A carruagem rompia as estradas com o povo mais triste da várzea indo para a missa do Pilar, para as novenas, arrastada por cavalos que não eram mais nem sombra dos dois ruços do capitão Tomás. (...) Seu Lula, porém, não devia, não tomava dinheiro emprestado. Todas as aparências de senhor de engenho eram mantidas com dignidade (REGO, 1997, p. 166).

85

Sempre remoendo os seus problemas de ordem existencial e sem encontrar a

real resolução para os mesmos, seu Lula passa os dias inteiros pensando no

passado, nos tempos áureos da juventude e nos parentes importantes do Recife;

buscando meios para fugir de suas responsabilidades de senhor de terras,

abandonando o Santa Fé à própria sorte.

Compadecendo-se da situação do amigo e vizinho, Lula, o coronel José

Paulino faz-lhe uma visita, cuja intenção era oferecer-lhe um cargo político –

presidente da Câmara do Pilar.

Por mais de uma vez, o proprietário do Santa Rosa buscou recursos para

fazer seu Lula interessar-se por política, não obtendo sucesso em suas empreitadas.

Por isto, estava ele ali, mais uma vez, buscando fazer do coronel Lula de Holanda

um homem dos negócios públicos.

Como era previsto, o dono das terras do Santa Fé ouviu a tudo calado, depois

agradeceu, mas não aceitou, alegando que “não ia com a República”. Lembrou o

episódio da Abolição, alegando que “apesar do 13 de maio” e de ter sido roubado

por João Alfredo, “ele não se esquecia do imperador”, pois compreendia que a

monarquia é que era “regime de homens sérios, de gente de vergonha” (REGO,

1997, p. 169).

Diante de tanta veemência, José Paulino desiste de sua tentativa, pois sabia

que o coronel Lula era homem de não voltar atrás. Mesmo não tendo conseguido o

que queria, a proposta feita por José Paulino surtiu efeito positivo em seu Lula que,

diante de tão ilustre visita,

(...) sentiu-se um pouco superior a tudo o que o cercava. Viera ali o homem mais rico da várzea pedir-lhe para ajudá-lo na sua política e ele negou-lhe auxílio. Não era nada para aquela canalha do Pilar, mas para os maiores da terra era homem que merecia consideração. (...) Viera à sua casa pela segunda vez o coronel José Paulino, atrás da sua contribuição para a sua política no Pilar, e mais uma vez não aceitara posições ao seu lado (REGO, 1997, p. 169).

Envolvido em suas crenças e ilusões, o coronel Lula de Holanda, com a barba

toda branca – comprida até a altura do peito –, o engenho com almanjarras puxadas

por bestas na fabricação de míseros cinquenta pães de açúcar, com os partidos

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tomados pelo mato e o cabriolé com o correame todo podre, pensava em todo o

poder que ainda tinha consigo, seguro de que “todos estavam enganados com ele” e

de que “ninguém estaria acima de seu nome, de homem de gente da melhor de

Pernambuco” (REGO, 1997, p. 169).

Semelhante à sua dedicação a Deus, “o orgulho de Lula era uma doença que

nem a devoção curaria” (REGO, 1997, p. 172). Por isto, todos os domingos, quando

saía com a família para ir a missa no Pilar, exigia que d. Amélia e Neném usassem

as joias, como faziam há anos. E,

d. Amélia, de cima de sua carruagem, enfeitada de trancelins, com os dedos duros de anéis de ouro, sentia o abandono da terra de seu pai, como se visse um filho no desamparo. (...) via subir no meio do mato verde o bueiro sujo do engenho. Fumaçara anos e anos; perderam-se pelo céu azul, pelas nuvens brancas, os rolos de fumo do bagaço queimando nas fornalhas. Lá estava a casa-grande. E a figura do capitão Tomás tomava conta da tristeza da filha. 1850, número que ela desde menina guardava como do tempo da grandeza. (...) Queria ter aquela distância que Lula guardava das coisas, aquela fé de Deus que lhe dava um mundo para ele viver (REGO, 1997, p. 174).

Assistindo a todo o malogro que abatera a família, d. Amélia é a única que de

fato sente toda a ruína que chegara para todos do Santa Fé. Seu marido, doente

para um canto, a filha cada vez mais distante, repelindo-a sempre que tentava

aproximar-se, sua irmã, Olívia, caminhando de um lado para outro sempre a falar,

evocando nomes do passado:

Dentro de sua casa havia uma coisa pior do que a morte. Não havia vozes que amansassem as dores que andavam no coração do seu povo. Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus, com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais pesada que a de Neném. Acabara-se o Santa Fé (REGO, 1997, p. 178).

E todo o poder de uma sociedade senhorial, feudal e despótica, representada

neste capítulo pelo proprietário das terras do Santa Fé, o coronel Lula de Holanda,

chega a seu fim, trazendo consigo todo o fracasso, como um imenso buraco negro

que a tudo e a todos arrasta.

87

IV - CAPITÃO VITORINO: A SAGA DE UMA ILUSÃO

Vitorino Carneiro da Cunha é o personagem central do terceiro capítulo desse

romance triangular. De início, nos é apresentado segundo o ponto de vista de seu

compadre José Amaro como ser fracassado, digno de piedade, por não adquirir nem

o respeito dos “negros” daquela região, quanto mais dos poderosos. Tal desrespeito

se configura no apelido “Papa-Rabo”, tantas vezes repetido de forma irônica pelos

adultos e pelas crianças da bagaceira nas estradas do Santa Fé, como a passar de

geração para geração.

Transitando entre os dois universos sociais formados por senhores e

dependentes, a personagem simboliza a justiça num mundo em que a lei é a do

mais forte. Sua busca por valores tais como honra, coragem, bondade e lealdade, o

torna uma espécie de cavaleiro errante no sertão nordestino. Uma espécie de herói

estabanado e ridículo ostentando um poder e uma dignidade que está longe de

possuir, o que o aproxima do herói de Miguel de Cervantes, na obra Dom Quixote,

sendo, portanto, considerado um herói quixotesco (CÂNDIDO, 1987, p. 395-396).

Assim como as duas personagens analisadas anteriormente, o capitão

Vitorino vivia em uma realidade muito diferente da que tenta aparentar.

Curiosamente, é ele quem estabelece os elos entre todas as personagens, servindo

como ponto central da narrativa e, por isto, importante para esse estudo.

Porém, antes de adentrarmos na análise desta personagem, faz-se

necessário discutir aspectos quanto à construção do romance enquanto

representação do mundo moderno e, consequentemente, burguês, por meio das

reflexões do teórico húngaro, Georg Lukács. Para tanto, tomaremos como referência

inicial as propostas deste estudioso contidas em seu texto O romance como epopeia

burguesa, publicado pela primeira vez no ano de 1935.

Em seu estudo, Lukács discute sobre a forma romanesca em diversos

momentos históricos. De início, observa que, nas civilizações do antigo Oriente, da

Antiguidade e da Idade Média, já havia produções literárias que em muitos aspectos

se assemelhavam ao romance. Este, por sua vez, só adquire forma definitiva na

sociedade burguesa, por refletir todas as suas contradições sociais, bem como os

88

elementos específicos de sua arte. Consoante aquele, as modificações sofridas nas

produções literárias anteriores ao romance foram tão profundas que se poderia falar

em uma nova forma literária.

Em consonância com sua teoria, uma produção mais elaborada surge

somente na segunda metade do século XIX, pois é exatamente nessa época que o

romance passa a servir como representação da consciência burguesa na literatura,

adquirindo, segundo Lukács, o encargo de produção artística mais representativa

dessa classe social. Isso fez com que as tentativas difundidas nos séculos

anteriores, mais especificamente nos séculos XVII e XVIII, para fazer ressurgir a

epopeia “sobre a base da moderna civilização”, fossem finalmente cessadas, o que

pode ser notado, de acordo com ele, na superação do “drama” enquanto gênero

textual (LUKÁCS, 1935, p. 88-89).

Lukács constata que a irregularidade no desenvolvimento dessas teorias

sobre o gênero romanesco tem tudo a ver com as profundas transformações sociais

pelas quais passara a sociedade da segunda metade do século XIX. A título de

exemplo, ele observa que essa espécie de produção narrativa serviu, ao mesmo

tempo, de “fundamento teórico ao „novo realismo‟”, que, por sua vez, viu o “romance

distanciar-se das grandes tradições e conquistas clássicas revolucionárias”, o que

ocorreu no início do desmembramento desse tipo de produção literária como

resultado (necessário) do declínio geral da “ideologia burguesa” (LUKÁCS, 1935, p.

89).

Lukács afirma que:

Quando Hegel define o romance como “epopeia burguesa”, coloca uma questão que é estética e histórica: ele considera o romance como gênero literário que no período de desenvolvimento da burguesia corresponde à epopeia (LUKÁCS, 1935, p. 89).

Mediante seu ponto de vista acerca do idealismo clássico como pioneiro das

discussões sobre a teoria do romance, Lukács apresenta a ambivalência desse

gênero literário, pois, “o romance apresenta, de um lado, as características gerais da

grande poesia épica; de outro lado, sofre as modificações trazidas pela época

burguesa, cujo caráter é extremamente original” (LUKÁCS, 1935, p. 89).

89

Segundo ele, foi justamente por meio dessa condição ambivalente que o

romance conquistou o seu lugar em meio aos gêneros literários, uma vez que “deixa

de ser um gênero „inferior‟” e, por isso, passa a ser “dominante na literatura

moderna”, tendo como resultado ser “inteiramente reconhecido” (LUKÁCS, 1935, p.

89).

Lukács percebe que Hegel, de modo semelhante ao que fizeram outros

teóricos, tempos antes, relaciona a formação da epopeia com a fase inicial do

desenvolvimento da humanidade, inserindo-a no período dos grandes “heróis”, ou

seja, em um momento em que as “forças sociais” não haviam adquirido autonomia e

independência enquanto indivíduos, até porque tais palavras são representativas

dos valores burgueses e, consequentemente, do mundo moderno. Por esse motivo,

estes dois pensadores, Lukács e Hegel, entram em choque, uma vez que a poética

épica, de ordem patriarcal, heroica, expressou-se de “maneira típica nos poemas

homéricos” e se fez a partir da “espontaneidade dos seus indivíduos” (LUKÁCS,

1935, p. 89).

Sobre os heróis épicos e modernos, Lukács conclui que os homens da

modernidade, ao contrário dos homens da antiguidade configuram-se por meio de

valores voltados para o seu universo meramente humano, do qual, a individualidade

e a mortalidade fazem parte, contrastando, portanto, com os valores universais

agregados ao culto da imortalidade e, consequentemente, da perfeição que, na

sociedade moderna, seria inconcebível, uma vez que os seus indivíduos, sendo

“mortais”, tornam-se seres fadados às causalidades de sua própria condição, ou

seja, seres frágeis, angustiados, portanto, fracassados, jogados à própria sorte.

Reafirmando seu ponto de vista, Lukács diz que, “aquilo que o indivíduo faz com

suas próprias forças o faz só para si e é por isso que ele responde apenas pelo seu

próprio agir e não pelos atos da totalidade substancial à qual pertence” (LUKÁCS,

1935, p. 90).

Com isso, Lukács afirma que a “contradição” da forma romanesca se instala

especificamente no fato de que o romance, como epopeia da sociedade burguesa, é

a epopeia de uma sociedade que “destrói as possibilidades da criação épica”. O

teórico revela ainda que é essa mesma circunstância a grande responsável pelos

“defeitos artísticos” do romance em relação à epopeia, porém, coube à narrativa

90

romanesca abrir as portas para um novo surgimento da epopeia, de “cuja dissolução

ele nasce”, revelando novas possibilidades artísticas, que eram, por sua vez,

desconhecidas dos versos homéricos (LUKÁCS, 1935, p. 95).

Todas essas discussões feitas sobre o romance como epopeia do mundo

moderno obrigou os teóricos desse gênero narrativo a algumas indagações mais

específicas. Afinal, quem seria esse “herói” presente nos versos narrativos de

Homero? E quem seria esse “herói” que está à vista da narrativa romanesca

moderna? Esta problemática, aos olhos de Lukács, assim ficou definida:

Ambos devem revelar as peculiaridades essenciais de uma dada sociedade por meio da representação de destinos individuais, das ações e dos sofrimentos de seres humanos individualizados. Nas relações do indivíduo com a sociedade, no destino individual, manifestam-se os traços essenciais do ser histórico-concreto de uma determinada forma social. Mas no estágio superior da barbárie, no período homérico, a sociedade estava ainda relativamente unida. O indivíduo, colocado no centro da narrativa, podia ser típico exprimindo a tendência fundamental de toda a sociedade e não a contradição típica no interior da sociedade (LUKÁCS, 1999, p. 95).

Em conformidade com o seu pensamento, Lukács aponta que a “ação” da

narrativa homérica é tracejada pela “luta de uma sociedade relativamente unida, de

uma sociedade enquanto coletividade contra um inimigo externo” (LUKÁCS, 1999, p.

95). Observa ainda que, com a dissolução da “sociedade tribal”, esta forma de

exposição da ação “não pode senão desaparecer da epopeia, uma vez que ela

desapareceu da vida real da sociedade”(LUKÁCS, 1999, p. 95). Ademais, o teórico

húngaro corrobora suas conclusões acerca do romance e de seu herói observando

que “é a sociedade capitalista que cria a base econômica” e, consequentemente,

passa a ser responsável pelos seus indivíduos, sendo, esse herói, “produto social” e,

por esse motivo, “original”, não “imitativo”, não “mecânico do „phatos‟ da arte antiga

e da estética antiga”, uma vez que é conduzido pelas “forças sociais”(LUKÁCK,

1999, p. 95).

Seguindo o curso de suas investigações, observa-se que na sociedade

Antiga, os heróis configurados nas grandes narrativas épicas assumiam e/ou

incorporavam as crenças míticas desta sociedade, agregando seus valores,

sobremodo, em detrimento dos poderes divinos, como por exemplo, as entidades

mitológicas, ficando, deste modo, a cargo destes heróis “perfeitos” – uma vez que

91

eram deuses ou semideuses – buscar sanar as situações mais contundentes em

nome do bem-comum, ou seja, da coletividade.

Já na modernidade, mais especificamente em seu segundo momento –

século XVII – período de consolidação dos ideais antropocêntricos, portanto,

humanistas, a sociedade passava por profundas transformações que irão, por sua

vez, repercutir em toda e qualquer manifestação artística. Devemos atentar, em

especial, para a situação da arte como representação literária, sobremodo neste

período. Expliquemos.

Anteriormente à produção ficcional romanesca na Idade Moderna como

representação dos ideais burgueses (materiais e egocêntricos), as expressões

artísticas configuravam-se por meio dos valores espirituais, sobremodo na

teocêntrica Idade Média. Tanto é assim que as Novelas de Cavalaria tiveram o

cavaleiro como seu herói pelo fato deste estar a serviço da Igreja, caracterizando-se,

por isto, como um símbolo neste contexto histórico.

Em contrapartida a estas convenções, nasce a obra Dom Quixote, do

espanhol Miguel de Cervantes, publicada em duas partes, sendo a primeira em

1605, sob o nome de As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la

Mancha; e a segunda, publicada em 1615, dando continuidade às aventuras do

herói da “Triste Figura” – expressão com que ficara conhecido na literatura.

Considerado o pai do romance moderno de acordo com Lukács,D. Quixote

insere alguns elementos “estranhos” às narrativas ficcionais da cavalaria medieval,

por exemplo, quanto à construção estrutural – mais complexa –, bem como de seu

herói, o fidalgo Quijano, mais conhecido por D. Quixote que, montado em seu

cavalo, na verdade um pangaré, Rocinante, buscava salvar as virgens e frágeis

donzelas, bem como exercer os seus ideais altruístas, quase sempre impregnados

dos mandamentos bíblicos, conforme a sociedade medieval teocêntrica.

Valores como honra, coragem, bondade e lealdade eram executados

sobremodo pelos cavaleiros deste período histórico que, em nome da Igreja,

buscavam limpar o mundo das atrocidades advindas daqueles que não seguiam os

bons ensinamentos do Todo Poderoso. De acordo com Lukács essa prática

constituía uma “irracionalidade segura e íntegra de todo o cosmo”, onde esse Todo

92

Poderoso “não pode ser concebido nem classificado, e, portanto não pode ser

revelado como deus” não sendo assim possível “descobrir e descortinar” a partir de

deus uma unidade que constitui toda uma existência (LUKÁCS, 2003, p. 105).

Conforme Lukács é contra essas narrativas de cavalaria que a obraDom

Quixote investe, com a diferença de que Cervantes o faz num momento em que a

sociedade não mais acreditava tão fortemente em tais valores como antes e, por

isto, o “Cavaleiro da Triste Figura” – como ficara conhecido – assume a condição de

herói ridículo por acreditar e tentar pôr em prática estas convicções que, há muito,

não mais se identificavam com os preceitos da nova ordem social.

Por causa desta nova ordem social humanista, o herói literário deixa de ser o

elemento divinizado, passando à condição humana, consequentemente, com suas

fraquezas, manias e incertezas, ou seja, uma personagem ficcional humanizada. Eis

que surge o chamado herói demonizado, abandonado por Deus, ou o herói

problemático.

De acordo com Lukács, este ser demonizado ou inadequado às novas

propostas do mundo, torna-se uma espécie de indivíduo mutilado, preso em uma

concha pequena demais para o seu tamanho (ou será sua vontade?). Para tanto,

deixemos que o próprio teórico explique:

O abandono do mundo por Deus revela-se na inadequação entre alma e obra, entre interioridade e aventura, na ausência de correspondência transcendental para os esforços humanos. Essa inadequação tem grosso modo dois tipos: a alma é mais estreita ou mais ampla que o mundo exterior que lhe é dado como palco e substrato de seus atos (LUKÁCS, 2003, p. 99).

Como se pode perceber, este “estreitamento” do indivíduo perante as forças

externas ocasionou uma série de consequências que, por sua vez, repercutiram na

literatura. Lukács os chama de indivíduos demonizados que, largados no mundo

sem o amparo divino, tornaram-se seres problemáticos. E serão, especificamente,

estes indivíduos que, como anjos decaídos, jogados à própria sorte por todos os

cantos da terra, habitarão e representarão o homem moderno, um homem

abandonado por Deus e renegado pelo mundo, ou seja, demonizado, que o anula

como ser “perfeito”, confinando-o à sua própria interioridade, cuja sentença é o

fracasso configurado em várias instâncias.

93

Diante dessas discussões acercado herói problemáticopropostas por Lukács,

investigaremos, sobremodo, a personagem Vitorino, alvo de análise neste capítulo,

por acreditarmos que o mesmo assume esta condição na narrativa de Fogo Morto.

Sempre guiado por suas crenças e ações nada convencionais à sociedade em que

vive, Vitorino é uma personagem idealista, ou seja, toma para si valores

considerados irracionais e, por isso, passa a ser visto como ridículo e, portanto,

desacreditado por todos, exceto por ele mesmo. Como a personagem caracteriza-

se, aos olhos da sociedade, por valores “arbitrários”, utilizaremos como

embasamento teórico o idealismo abstrato, do crítico húngaro, por meio do seu livro

A teoria do Romance, escrito no início do século XX e publicado posteriormente no

ano de 1965. Contudo, adotaremos, mais uma vez, o procedimento de

entrecruzarmos as personagens protagonistas de Fogo Morto, citando-as quando

necessário, visando dar maior consistência à análise proposta.

Comecemos por averiguar o nome da nossa personagem principal. Vitorino

provém da palavra vitória7, ou seja, triunfo ou êxito brilhante em qualquer terreno, o

que já constitui um diferencial frente, por exemplo, ao mestre Amaro, seu compadre,

que já traz como marca a amargura intrínseca no próprio nome, de modo que o

mesmo justifica boa parte de seu comportamento sombrio, sofrido e impotente

perante os problemas que tem que enfrentar. Além disto, o sobrenome Cunha8

caracteriza-se pela força, uma vez que esta palavra tem por significado peça de

ferro que serve para abrir fendas em pedras ou serve de calço, em situações de

necessidade.

Semelhante ao procedimento utilizado por José Lins do Rego na construção

dos outros dois protagonistas analisados nos capítulos anteriores, Vitorino segue a

mesma dialética, ora se aproxima, ora se distancia destes. Comecemos a

investigação em detrimento ao seu compadre José Amaro que, por pertencer ao

mesmo lugar social que Vitorino, e com ele trocar várias informações, passa a ter

maior significância para este estudo.

7Ato ou efeito de vencer o inimigo ou competidor; triunfo. (...) Triunfo ou êxito brilhante em qualquer

terreno. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Século XXI: O dicionário da línguaportuguesa/Aurélio Buarque de Holanda Ferreira; coordenação de edição, Margarida dos Anjos, Marina Baird Ferreira; lexicografia, Margarida dos Anjos... [et.al.]. 4. ed. rev. ampliada. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 715) 8 Peça de ferro ou de madeira que se introduz numa brecha para fender pedras, madeira, etc., ou

servir de calço, etc. (op.cit. p. 198)

94

Principiemos, pois, no que tange à idade cronológica entre Vitorino e o mestre

Amaro. Ambos são velhos. Porém, quanto à aparência, distanciam-se. Mesmo que

ambos sejam “brancos”, o primeiro manifesta certa “graça” aos olhos de quem o

observa. Parecia “um palhaço sem graça”, com “a cara larga, toda raspada” e com

“os cabelos brancos saindo por debaixo do chapéu de pano sujo” (REGO, 1997, p.

24). Por este motivo, caracteriza-se como uma personagem que é a um só tempo

engraçado e trágico, ou seja, tragicômico; já o segundo, apresenta-se fisicamente

como um homem doente, com os seus imensos olhos amarelos, a barba enorme e a

cara inchada, portanto, caracterizando mais traços trágicos na personagem.

Como podemos perceber, já de início, a personagem Vitorino no romance

Fogo Mortoassume a condição de herói nada convencional. Sua aparência “ridícula”

já denuncia o valor social de rebaixado que o mesmo toma para si, mesmo que ele

próprio não tenha consciência disso. Essa “ilusão” criada pelo herói acerca de si, no

mundo em que habita, gera uma incompatibilidade de interesses aos seus anseios

que, segundo Lukácso define como problemático, ou seja, o herói que se manifesta

por meio do demonismo, cuja mentalidade:

(...) tem de tomar o caminho reto e direto para a realização do ideal; que em deslumbramento demoníaco, esquece toda a distância entre ideal e ideia, entre psique e alma; que, com a crença mais autêntica e inabalável, deduz do dever-ser da ideia a sua existência necessária e enxerga a falta de correspondência da realidade e essa exigência a priori como o resultado de um feitiço nela operado por maus demônios, feitiço que pode ser exorcizado e redimido pela descoberta da palavra mágica ou pela batalha intrépida contra os poderes sobrenaturais (LUKÁCS, 2003, p.100 ). (...) A alma é algo que repousa, para além dos problemas, na existência transcendente por ela atingida; nenhuma dúvida, nenhuma busca, nenhum desespero pode nela surgir a fim de arrancá-la para fora de si e pô-la em movimento, e os combates inutilmente grotescos por sua realização no mundo exterior tampouco podem afetá-la: em sua certeza íntima nada pode abalar, mas isso somente porque ela está enclausurada nesse mundo seguro, porque é incapaz de vivenciar seja lá o que for (LUKÁCS, 2003, p. 101-102).

Como podemos perceber, Vitorino assume a identidade da personagem que é

movido pela “ilusão” e, por meio desta, cria o seu próprio universo, este, por sua vez,

paralelo à realidade. Por isto, todas as suas ações, bem como os seus

pensamentos, são expostos por ele, com o intuito maior de exercer a benevolência,

isto aos seus olhos, ou seja, para ele mesmo, pois, em quase toda a sua

95

participação na obra, é visto como um indivíduo ridículo, portanto, sem nenhuma

credibilidade junto àqueles que busca defender, inclusive, sua própria família. É o

que podemos perceber na passagem em que sinhá Adriana, esposa de Vitorino,

analisa o comportamento do mestre José Amaro, seu compadre, e o do seu marido,

o que a faz pensar, também, em sua vida e na de seu filho, Luís:

Ele fala assim de todo o mundo. É um homem de muito falar. Quisera eu que o meu marido Vitorino fosse como ele. Não estou me lastimando, não. Vitorino é homem de bom coração mas vive uma vida que dói na gente. Não tem jeito, não! É Aquilo mesmo, quer chova quer faça sol (FM, p. 38). Lembrou-se então de seu filho Luís que o mestre José Amaro apadrinhara nas missões. Estava longe daquela vida, da desgraça do pai. O menino era tão diferente de Vitorino, tão calmo, tão cheio de carinho para com ela. Quis que ele fosse para a Marinha para que não sofresse com o pai que tinha (REGO, 1997, p. 40-41).

Quanto a esta conduta idealista de Vitorino, que aos olhos de sua própria

família, é estabanada e ridícula, podemos considerar as palavras de Georg Lukács

acerca do herói problemático:

A absoluta ausência de uma problemática internamente vivida transforma a alma em pura atividade. Como ela repousa intocada por todos em sua existência essencial, cada um de seus impulsos tem de ser uma ação voltada para fora. A vida de semelhante homem, portanto, tem de torna-se uma série ininterrupta de aventuras escolhidas por ele próprio. Ele se lança sobre elas, pois para ele a vida só pode ser o mesmo que fazer frente a aventuras (LUKÁCS, 2003, p. 102).

É visível, portanto, que a caracterização feita por Georg Lukács do idealismo

abstrato pode ser verificada, sem dúvidas, no romance Fogo Morto, sobretudo na

personagem em estudo. Este, por sua vez, busca corrigir tudo o quanto considera

injustiça, afrontando, desse modo, o poder legitimado, não se adequando,

consequentemente, à realidade, conforme podemos observar na passagem abaixo:

Vinha na égua magra, com a cabeça ao tempo, toda raspada. Saltou para uma conversa e estava vestido como um doutor, de fraque cinzento, com uma fita verde e amarela na lapela. O mestre José Amaro olhou espantado para a vestimenta esquisita. - Estou chegando compadre do Itambé. O doutor Eduardo tinha um réu para defender e me mandou chamar no Gameleira para ajudá-lo. Lourenço, o meu primo desembargador, me disse: “Olhe, Vitorino, você para ir à barra do tribunal do júri precisa desse fraque.” E me deu este. É roupa feita do Mascarenhas, de Recife. Botei bicho. Então meu primo Raul me chamou

96

para um canto para dizer que eu precisava cortar os cabelos. O desgraçado do barbeiro da Lapa tosquiou-me a cabeleira, o jeito que tive foi de raspar tudo. Raul passou-me a navalha na cabeça. Me disseram que era moda do Recife para advogado. Quando cheguei no Itambé o júri já tinha se acabado. O doutor Eduardo ficou muito triste, mas me deu duas causas para defender no Pilar. Ele mesmo me disse: “Vitorino, você fala melhor que Manuel Ferreira.” Eu disse a ele: “Não é vantagem. O Manuel Ferreira é mais burro que o doutor Pedro de Miriri.” Pois é isto, meu compadre, estou com estas vestes de doutor. Querendo os meus serviços é só mandar me chamar (REGO, 1997, p. 100).

Vê-se, portanto, em Vitorino, o ideal de fazer justiça na cidade do Pilar.

Vestido com seus trajes formais acredita ser visto agora como um “doutor”,

merecedor do respeito e da confiança de todos que “precisam” de sua “força” e de

sua “coragem”. Para Vitorino, estar vestido em um fraque significava que estava

pronto para a batalha contra todos os tipos de atrocidades, defendendo os

desvalidos em nome da justiça.

A “burra” de Vitorino, adquirida em troca de sua égua rudada na feira de

Itabaiana por um cigano, se apresenta como mais um sinal de seu fracasso, pois,

considerando a ideia que ele faz disto como uma “boa troca”, já que sua nova

montaria era um animal muito valorizado, inclusive por alguns dos grandes da

região, como, por exemplo, o seu Augusto do Oiteiro – o que não era verdade –, o

narrador mostra ao leitor o quão Vitorino é sonhador. Dessa forma, o modo como ele

adquire o animal é a prova viva de sua ingenuidade e de sua inadaptação à

realidade concreta, uma vez que “ciganos” são conhecidos pela esperteza,

principalmente, quando o assunto são negócios:

A burra velha batia o rabo com as moscas que lhe cobriam a anca em ferida. - É um animal de primeira ordem. Apanhei na feira de Itabaiana. Um cigano pensou que me enganava. Dei-lhe a minha égua e ele em troca passou-me esta burra. Tem baixo, e é animal de fôlego duro. Não troco por muito cavalo que anda por aí com fama de bom. O diabo do cigano levou uma tabacada dos diabos. Meu compadre, Vitorino Carneiro da Cunha tem quengo. E riu-se às gaitadas (REGO, 1997, p. 190-191).

Também, por meio desta passagem, podemos perceber que as condições em

que a nova montaria do capitão se encontrava se assemelhava à de sua antiga égua

rudada, ou seja, em estado de decrepitude. Porém, para Vitorino, a burra ainda

superava, em muito, cavalo com “fama de bom”. Logo, a burra do cigano, adquirida

97

na feira de Itabaiana, representa, assim, a confirmação, mais uma vez, da ilusão que

configura a construção desta personagem, bem como a pobreza (financeira) em que

o mesmo vive, legitimando, assim, a precariedade da sua condição.

Construído a partir de alguns traços estilísticos de Cervantes9, Vitorino é

marcado pela ação. Ao contrário do mestre José Amaro (voltado para o seu próprio

mundo interior), o capitão “Papa-Rabo” radicaliza seu comportamento em atitudes

momentâneas, espalhafatosas, porém com boa intenção. Caminha de engenho a

engenho montado em sua “égua rudada”, cujos ossos estavam à amostra, cobertos

por uma “sela velha, roída” sobre uma “manta furada” e puxada por “freios de corda”,

discutindo política ou envolvendo-se em encrencas por defender seus ideais de

justiça, sobremodo contra os desmandos dos grandes da terra ou do próprio

governo (REGO, 1997, p. 24).

Em atitudes quixotescas, luta por aquilo em que acredita, mesmo que o

mundo – que tanto busca melhorar – não acredite. E nesta luta incessante, desafia,

sem temor, os poderosos e o próprio governo, sonhando, um dia, tomá-lo sob o seu

comando. Como prova desta descrença, é apelidado de “Papa-Rabo” (alcunha que

muito o enfurece) pelos moleques da bagaceira, bem como pelos pais destes.

Buscando impor-se a todo custo perante a “canalha” da bagaceira, paga a

9Nascido em 9 de outubro de 1547, tentou alcançar a fama como soldado. E quase o conseguiu. Na

infernal batalha naval de Lepanto, de 1571, quando a Cristandade, liderada por D. João D‟Áustria, irmão de Filipe I, recuperou o controle sobre o Mediterrâneo, portou-se valentemente. Só que o tiro do arcabuz de um turco lhe secou a mão esquerda. Na volta para casa infelicitou-se ainda ao passar, depois de capturado, cinco anos como escravo em Argel. O pai o resgatou por 500 escudos, em 1580. Pobre e anônimo jogou-se às letras. Na sua tarefa desmitificadora, foi ajudado por dois acontecimentos colossais: a propaganda da Contrarreforma e a destruição da Invencível Armada em 1588. Doravante o mundo não seria só dos católicos e muito menos dos espanhóis. Calejado pela vida, desconfiado das certezas humanas, forrado em leituras mil, Cervantes foi à luta (...) arquitetou, provavelmente numa prisão em Servilha, ao redor do ano de 1600, em primorosa prosa, aquele que se tornou seu bravo agente para desencantar os encantados: o ilustre fidalgo Don Quijote de La Mancha! Endoidecido pelas leituras dos intermináveis feitos dos cavaleiros andantes da literatura medieval, aquele pobre e provinciano cinquentão também se decidiu por se tornar um justiceiro errante, um peregrino da justiça, a fim de “endireitar os tortos e desfazer agravos e sem-razões”. Para tanto, desenferrujou as armas e a armadura dos seus antepassados, às quais, no caminho para suas aventuras, acrescentou o elmo de Mambrino – uma bacia de barbeiro. Como todo cavaleiro andante vivia montado e acompanhado. Batizou seu pangaré de Rocinante, e tomou por escudeiro um vizinho seu, o simplório Sancho Pança, um gorducho pobre como a terra árida de Castela. Os feitos que esperava realizar, ele os dedicou por antecipação à donzela Dulcinéia Del Toboso, na verdade uma simples camponesa da região em que ele vivia, mas que na sua gloriosa fantasia de doido era a mais digna das damas. Tudo tão irreal quanto o demais. Dom Quixote saiu da Mancha por três vezes para, “coroado pelo braço do seu valor”, conquistar o quimérico império de Trapisonda. (WWW.ebah.com.br/content/ABAAAAmYIAB/cervantes-dom-quixote acesso realizado no dia 28 de setembro de 2012 às 13h e 11min).

98

patente de “capitão”, pois, mesmo sendo branco e possuindo grau de parentesco

com pessoas ilustres daquela localidade, como, por exemplo, o primo José Paulino –

proprietário de nove engenhos, dentre eles, o Santa Rosa, além de grande influência

política na região da Várzea da Paraíba –, caracteriza-se, socialmente, como um

homem decadente, o que se faz notar não só em sua imagem cômica em cima de

sua burra, perseguido pelos gritos de “papa-rabo”, bem como por meio de sua casa

“de taipa, de chão de barro, de paredes pretas” (REGO, 1997, p. 256).

Repare que, a todo instante, Vitorino luta contra o descrédito das pessoas em

torno de sua figura. Em um dos encontros com um dos transeuntes da estrada em

que perambulava a caminho da casa do seu compadre, José Amaro, nota-se clara

evidência desta batalha pessoal:

(...) Passou a pé uma mulher de saia vermelha. - Bom dia, seu Vitorino. - Dobre a língua, não sou de sua laia. Capitão Vitorino. Paguei patente foi para isto. - Me desculpe, seu Vitorino. - Vá se danando. Vá atrás dos seus machos. - Cala a boca, velho debochado. Vitorino quis levantar a tabica agressivamente. A mulher correu para cima do barranco e abriu nos desaforos: - Velho mucufa. Quem é que não te conhece, cachorro velho. - Papa-Rabo – gritaram mais adiante. - É a mãe (REGO, 1997, p. 25).

Repare que, enquanto o capitão Vitorino se via como um homem que

causava admiração por seus “dotes” como, por exemplo, por sua coragem e vontade

de justiça em nome dos desvalidos, além de sua constante luta pessoal em defender

um ideal, as pessoas que viviam ao seu redor o enxergam como uma figura ridícula,

sonhadora, sem rumo, como podemos apreciar por meio da visão do próprio José

Amaro, seu compadre:

Vitorino saltou da égua, amarrou o cabresto na cerca e chegou-se para perto da tenda. O mestre José Amaro olhou-o com desprezo. Sempre lhe causava mal-estar aquela companhia de um pobre homem que não se dava o respeito. Era demais aquela vida sem rumo, aquele andar de um lado para o outro, sem fazer nada, sem cuidar de coisa nenhuma. Era padrinho do filho daquele Vitorino e quando lhe deram notícia de que o menino tinha entrado na Marinha, ficara satisfeito. Pelo menos não se criaria assim como o pai, um bobo pelo mundo afora (REGO, 1997, p. 26).

É interessante perceber que a visão que José Amaro tem acerca do seu

99

compadre Vitorino é a mesma que este tem sobre aquele. Dentro de sua ilusão, o

nosso cavaleiro andarilho enxerga o seu compadre, José Amaro, exatamente do

mesmo modo, ou seja, como um ser inferior. Repare nas passagens abaixo que isto

acontece na mesma situação, quando os dois travam o primeiro diálogo na obra:

Todos que o viam lá vinham com deboche; não era homem para debiques. Era o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de gente muito boa da Várzea do Paraíba. Tivera um primo barão no governo da província. Antes de chegar em casa ia dar uma conversa com o compadre José Amaro. Não era de família como a sua, mas era homem branco, o pai fora filho dum marinheiro de Goiana. O velho Vitorino olhava para o compadre como para um inferior. Era um seleiro, um mestre de ofício que gente branca como ele não devia levar em conta (REGO, 1997, p. 26).

Porém, diferentemente de Vitorino, que vive no mundo da ilusão, acreditando

ser o que de fato não é, José Amaro, consciente de sua condição social e

existencial, consegue, mais tarde, ver o seu compadre Vitorino com admiração, pois

este tinha coragem de falar o que queria sem manifestar preocupação com isto. Um

episódio que favorece a apreciação deste sentimento no mestre seleiro a respeito de

Vitorino foi quando este, após tomar uma surra no Pilar, resolveu gritar, à porta da

cadeia, que ia mandar prender o major Quinca Napoleão, tudo isto, de punhal em

riste, ameaçando, inclusive, furar o atrevido que se aproximasse. Após tomar

conhecimento do ocorrido:

O mestre José Amaro ouvia o compadre sem uma palavra. Parou de trabalhar. Aquele velho era como se fosse uma criança grande, um menino levado dos diabos. No fundo, naquele instante, ele admirava Vitorino. Vitorino dizia tudo o que ele desejava dizer. Tudo que lhe ia na alma sobre os grandes da terra era o que aquele velho desbocado gritava aos quatro ventos, na cara dos poderosos (REGO, 1997, p. 52).

No entanto, é interessante perceber que, mesmo o mestre seleiro tendo

demonstrado certa admiração pelo seu compadre Vitorino, como podemos constatar

na passagem acima, esta disposição afetiva em José Amaro não predomina, pois, o

que fica mais evidente – em quase toda a narrativa de Fogo Morto – é o sentimento

de que o seu compadre é um homem que não se dá o respeito, chegando a vê-lo,

inclusive, como um indivíduo desvairado. Ademais, não era apenas o seleiro que

compartilhava desta ideia, conforme pudemos averiguar em outras passagens

100

analisadas neste trabalho, mas todos que, com ele conviviam, como, por exemplo,

sua esposa Adriana – sempre comentando com José Amaro e Sinhá velha o quão

de desgosto Vitorino lhe dava –, bem como seu filho, Luís, que fugia do pai por ter

vergonha deste:

Luís fugia do pai. Não era por ela não. Era pelo pai. (...) Luís sofrera muito com a vida do pai. Não era para menos. Um pai com um apelido, um pai mangado, servindo de graça para todo o mundo. O mestre José Amaro, o seu compadre, lhe dizia: “Comadre Adriana, um homem como o seu marido dá dor de cabeça.” Mas o que fazer para mudar a via de Vitorino? Tudo o que uma mulher de paciência podia fazer ela fizera. Tinha que trabalhar para sustentar a casa. Vitorino levava dias sem aparecer, sem dar notícias, correndo o mundo, dando desgosto (REGO, 1997, p. 41).

A atitude de Luís, bem como o discurso de José Amaro e a opinião de

Adriana, sua esposa, deixa evidente, mais uma vez, a visão de Vitorino como um ser

fracassado. Além disso, percebemos por meio da consciência apresentada, por

parte de d. Adriana, uma reafirmação daquele como um indivíduo malogrado.

Percebe-se que ela o vê em várias instâncias – marido, pai e homem – e, como

podemos verificar, em todas estas três categorias Vitorino assume a condição de

derrotado. Semelhante as outras pessoas, ela o vê, na maioria das vezes, como

uma pessoa decadente, sentindo, inclusive, alívio pelo fato do filho ter escolhido

uma vida diferente do pai.

Outro aspecto que nos chama a atenção na trama desta narrativa são as

analogias feitas por José Lins do Rego que, como toda obra dialética, ora se

aproximam, ora se afastam. Tomemos novamente as personagens Vitorino e José

Amaro, agora quanto ao tratamento dado às suas respectivas esposas.

Cada um, à sua forma, as destrata por meio de expressões machistas, tais

como “vaca velha” - expressão muito utilizada por Vitorino -, mandando sua esposa

cumprir as obrigações que lhe cabiam, sempre que se sentia incomodado pela

presença da mesma. Além disto, caracterizam-nas como malcriadas, pois, estas,

sempre que podiam, revidavam, com palavras, as asperezas dos seus maridos que,

por serem do sexo masculino, sentiam-se no direito de impor o seu “poder”,

mandando-as calarem suas bocas ou simplesmente voltar às tarefas da cozinha.

Observemos o discurso de Vitorino em uma de suas conversas com o seu compadre

Amaro:

101

- Compadre, eu não lhe quero dizer coisa nenhuma. Mas mulher só anda mesmo no chicote. Isto de tratar mulher à vela de libra, não é comigo. A minha me adivinha os pensamentos. - É preciso paciência, é preciso ter calma. - Que calma. Comigo é no duro (REGO, 1997, p. 188).

Ainda em meio à família, uma diferença também se faz importante mostrar.

Enquanto o mestre Amaro possui uma filha (Marta) que em nada lhe agradava – por

ser, além de mulher, solteirona aos 30 anos de idade – Vitorino possui um filho

(Luís) que, além de ser do sexo masculino – condição bastante valorizada no meio

social em que estas personagens habitam – possui patente de suboficial da Armada

e, ainda por cima, mora no Rio de Janeiro – outra condição que lhe proporcionava

status:

O seu filho Luís escrevera que chegaria na Paraíba, para uma visita à família. Vinha como suboficial da Armada. (...) O capitão preparava-se para ir recebê-lo na capital. O filho não era um camumbembe qualquer. (...) Luís tinha patente, tinha comando. Todo mundo sabia que o seu filho era da Armada. (...) Quando o viu, na farda azul, com os botões dourados, as divisas, o quepe com galões, era como se toda a grandeza do mundo lhe aparecesse de súbito. Era o seu filho (REGO, 1997, p. 210).

No que diz respeito à política, o capitão Vitorino, diferentemente de seu

compadre seleiro, acredita na justiça de homens ordeiros e dentro da legitimidade do

poder, como, por exemplo, o coronel e militar Rego Barros, “homem de dar razão a

quem tem” (REGO, 1997, p. 28). Em seus ideais valorosos, Vitorino acredita que

este será “governador”, porque “ladrão com ele é na cadeia” (REGO, 1997, p. 28).

Já o mestre Amaro, descrente da justiça por parte daqueles que deveriam exercer o

poder em nome dos desvalidos, mas ao contrário, cometem, contra estes,

atrocidades, nutre crença apenas por um homem, o capitão Antônio Silvino que,

diferentemente de Rego Barros, exerce o poder “ilegal” em nome daqueles que,

como o mestre seleiro, se encontram nos subterrâneos da sociedade.

Este comportamento de Vitorino caracteriza-se dentro da perspectiva dos

ideais quixotescos quanto à crença na justiça e na liberdade. Em sua benevolência,

o nosso protagonista busca assumir uma postura condizente com o seu sentimento,

tomando para si as dores do mundo. Quanto a isto, é interessante perceber que, de

início, Vitorino é desacreditado pelo seu compadre José Amaro, bem como por todas

102

as pessoas – grandes ou pequenas – da região. Inclusive, é apresentado ao leitor,

pela primeira vez, por meio justamente desta descrença, quando o mestre Amaro,

numa conversa com o pintor Laurentino, afirma que sua casa não é comandada por

Vitorino Papa-Rabo, mas sim, por um homem. O que mostra, por meio do seu

discurso, o quanto o capitão andarilho, aos olhos do mestre – e das outras pessoas

–, faz-se fracassado.

A intensidade desta descrença, a nosso ver, reside principalmente no que diz

respeito à situação que o mestre José Amaro assume na narrativa. Reparemos que,

tanto Amaro quanto Vitorino, ocupa o mesmo lugar social enquanto seres

“desvalidos”. Porém, o mestre seleiro se vê como alguém de valor, que se dá o

respeito por ter, sua profissão, ser um homem de sua casa e que não vive por ai,

andando sem destino, “pra lá e pra cá”, contando pabulagens, arrumando encrenca

e, ainda por cima, debochado pela canalha do Pilar. Vitorino, por sua vez, vê-se

mais importante do que o mestre por ter patente de capitão e ser primo do coronel

José Paulino, de quem busca ser compadre. Além disto, enxerga-se como um

homem de luta, que não teme a ninguém – vivo ou morto – e, por isto, merece todo

o reconhecimento do mundo pelos seus préstimos.

Sim, era o José Amaro da Silva, eleitor de voto livre, o seu compadre José Amaro. Pelo seu gosto o padrinho do seu filho Luís seria o primo José Paulino. Mas a sua mulher tomou o seleiro. Mulher teimosa, de vontade, de opinião. Queria era chamar, encher a boca com um “meu compadre José Paulino”. O diabo da mulher escolhera o outro. (...) O seu filho Luís estava na Marinha. Seria homem de comando. (...) Todos os viam com deboche; não era homem para debiques. Era o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de gente muito boa da Várzea da Paraíba. Tivera um primo barão no governo da província. Antes de chegar em casa ia dar uma conversa com o compadre José Amaro. Não era de família como a sua, mas era homem branco, o pai fora filho dum marinheiro de Goiana (REGO, 1997, p. 25-26).

Curiosamente, ambas as personagens vivem na sua própria ilusão de que

são, de fato, pessoas importantes: Amaro por ser homem de sua casa, e do seu

ofício, e Vitorino por desafiar os grandes das terras a serviço dos desvalidos. Porém

é necessário distinguir o modo como essa ilusão se apresenta em ambas as

personagens. José Amaro não é tomado por esse sentimento de ilusão, pois esta se

materializa apenas numa situação específica: quando o mesmo se vê como um

homem livre, dono de sua casa e de seu ofício; já em Vitorino, percebe-se,

103

claramente, por meio de suas atitudes disparatadas e de seus discursos utópicos, a

confirmação de sua total ilusão, caracterizando-o, portanto, como uma personagem

idealista.

Novamente, os dois se aproximam cada um à sua forma, por meio dos seus

devaneios, vivendo de uma fantasia que os faz sentirem-se potentes como seres

humanos, fazendo desta crença uma forma de amenização dos seus fracassos

interiores:

Um homem que luta não é desfeiteado. (...) No outro dia sairia pelo mundo para trabalhar pelo povo. Para ele, Antônio Silvino e o tenente Maurício, José Paulino e Quincas do Engenho Novo, todos valiam a mesma coisa. Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores em cima dele. Mandariam abrir as portas da cadeia. Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino seria de estrondo. Ah, com ele não havia grandes mandando em pequenos. Ele de cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho (REGO, 1997, p. 256).

Porém, em relação ao tempo em que vivem, os dois se distanciam. Enquanto

o mestre seleiro vive do passado, remoendo os velhos tempos em que seu pai

morava em Goiana e fazia selas para o Imperador, o capitão Vitorino busca, de

forma visionária, conjecturar sobre o futuro, onde se vê como chefe político, botando

ordem em tudo no Pilar:

Com ele o bicho ia ver. Com ele não haveria manda-chuva querendo passar as pernas nos cofres públicos. Pagaria todos os impostos. A vila do Pilar teria calçamento, cemitério novo, jardim, tudo que Itabaiana tinha com o novo prefeito. Ele era o chefe político, o homem que nomeava amigos, que prendia e soltava. Não cederia, na boca das urnas não havia quem pudesse com ele. E se quisessem na ponta do punhal, não enjeitaria parada (REGO, 1997, p. 254).

Como numa via de mão dupla, o escritor paraibano não só traça o perfil da

sociedade canavieira que, falida, engole a todos como um monstro horrendo, bem

como os seus efeitos sobre os que dela, de alguma forma, sobrevivem. A força

desse romance reside justamente na abordagem dos conflitos psicológicos de seus

atores sociais de modo que, cada um ao seu tempo e a seu modo, configura-se

como seres malogrados, liquidados no mundo que os cerca e de si mesmos,

104

pagando tributo com o fracasso que se evidencia a cada passo dado.

Em José Amaro, vê-se a amargura do velho seleiro que aspira “ser” alguma

coisa (importante) na vida; Lula de Holanda, o senhor de engenho que, por “não

ser”, destrói o engenho herdado do seu sogro, deixando-o de “fogo morto”; e o

capitão Vitorino que, demasiado gigante frente ao mundo em que vive, caracteriza-

se como um ser “deslocado”, com seu imenso coração e ingenuidade, cheio de

aspirações benevolentes para com o povo e a sociedade que o subestima e o

ridiculariza.

Nessa luta constante de intersecções e contrapontos, Vitorino sonha e se

lança aos seus devaneios, buscando, a todo custo, legitimar suas crenças na

construção de um mundo mais justo sob o poder de sua tabica – arma que o

caracteriza como um homem atuante. Conforme o critico literário Antônio Cândido,

em seu artigo Um romancista da decadência, publicado no volume, Brigada ligeira

(1945), tal comportamento se aplica por que:

O delírio de autovalorização é a tábua de salvação de Vitorino. Disse o Sr. Édison Carneiro que ele é um “D. Quixote rural”. Com efeito, o capitão é uma perfeita transposição do herói de Cervantes. Tem o mesmo desprezo pelas condições materiais, a mesma coragem maluca e, sobretudo, a mesma capacidade de ver as coisas segundo a deformação do ideal, e não segundo o que realmente são. São, ou parecem ser, porque, graças à sua obstinação, Vitorino Carneiro da Cunha acaba tendo razão e se impondo (CÂNDIDO, 1987, p. 395-396).

Sempre confiante em si mesmo, o capitão Vitorino almeja justiça a qualquer

preço. Não teme a ninguém, em seu ilusório poder. Denuncia os parentes ricos,

poderosos nos meios políticos e que, por isto, fazem o que querem, isentando-se,

inclusive, de suas obrigações sociais, como, por exemplo, sonegando impostos, bem

como influenciando – por meio do mando – todo o povo da região, o que não abate,

em momento algum, o nosso cavaleiro, que visa, acima de tudo, o bem comum para

todo o povo do Pilar, assim como, para todos os desvalidos. Coloca-se assim como

herói frente às autoridades, legais ou ilegais, passando, assim, de filiado à “alta

casta” – parente do coronel José Paulino – para a condição de membro do povo,

igualando-se a este, em sofrimento e sentimento de revolta.

É interessante perceber que, nesta inversão de papéis, o capitão Vitorino

105

alcança, pouco a pouco, a sua grandiosidade, não só humana, como também na sua

construção enquanto personagem de um romance que trata, sobremodo, da

decadência. Quanto a isto, afirma Antônio Cândido:

Os moleques que lhe gritam – “Papa-Rabo” – são sempre no seu juízo instrumentos da oposição política dos parentes ricos, interessados nos seu descrédito. Mas ele não teme os parentes ricos nem as suas artimanhas. Investe contra eles a palavrão, taca e punhal, como contra os delegados, oficiais, prefeitos, opressores do seu povo, gigantes e mágicos de Dom Quixote. Para ele não se coloca o problema da decadência em que vive, porque é homem de cabeça quente e vive do ideal. Tem a capacidade transfiguradora de ver aquilo que a imaginação e não o que os sentidos mandam (CÂNDIDO, 1987, p. 396).

Sua grandiosidade passa a ser percebida pelo povo da bagaceira, em dois

momentos distintos: o primeiro, quando enfrenta, sozinho, o cangaceiro Antônio

Silvino e seu bando, quando aquele invade a casa do coronel Lula de Holanda; o

segundo, quando enfrenta, também sozinho, a força do tenente Maurício, em defesa

do seu compadre José Amaro, quando este fora preso, acusado de ser espia de

Antônio Silvino, quanto do cego Torquato e do negro Passarinho. No dizer de

Antônio Cândido:

A força do ideal se sobrepõe à realidade da decadência e do ridículo. Redimido pela paranoica heroica, o velho Vitorino se eleva lentamente no conceito público. Os pequenos começam a respeitá-lo. O cego Torquato acha que ele é mandado por Deus. É o único que enfrenta os mandões, castiga os prepotentes, defende os oprimidos. A sua candura e a sua coragem fazem dele um campeão. O único homem da Várzea com sentimento e consciência das necessidades sociais e dos problemas políticos, porque não se aproximou deles com a bruteza dos chefes nem com a malícia habilidosa dos políticos, mas com a direta ingenuidade dos puros, que sentem em si a inspiração e querem realmente servir (CÂNDIDO, 1987, p. 396).

Tomando-se por base as palavras do estudioso, percebe-se que Vitorino, aos

olhos de Antônio Cândido, é uma personagem crescente na narrativa de Fogo Morto

em detrimento das outras personagens que, a seu ver, “declinam e caem,

entregando-se ao desespero”, enquanto aquele, “cresce, avulta” (CÂNDIDO, 1987,

p. 396).

Porém, deve-se acrescer que isto ocorre, a nosso ver, até certo ponto.

Mesmo que o capitão Vitorino alcance, na visão de todo o povo – grande ou

106

pequeno – louvação pelos seus corajosos atos, ele ainda se configura como uma

personagem decadente, uma vez que a sua força motriz reside justamente na

crença ilusória de um mundo melhor, sem injustiças e sem opressão de qualquer

tipo, por exemplo.

Por pensar assim, Vitorino, como um “Quixote”, idealiza por meio de

conjecturas um poder que só ele pensa ter. Tanto é assim que esta personagem

finda na narrativa sonhando comandar o Pilar por meio de sua solidariedade e de

sua “tabica”, onde os grandes da terra, como José Paulino, teriam que cumprir

direitinho as suas obrigações com o município, bem como quanto ao povo

necessitado.

Todas estas fantasias “grandiosas” são projetadas, ironicamente, quando o

mesmo se encontra em sua casa de barro, sob telhas vãs e paredes sujas. Era de lá

que ele comandava, em pensamentos, a terra e o povo que amava:

No outro dia sairia pelo mundo para trabalhar pelo povo. Para ele, Antônio Silvino e o tenente Maurício, José Paulino e Quinca do Engenho Novo, todos valiam a mesma coisa. Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores em cima dele. Dariam vivas, gritando pelo chefe que tomava a direção do município. Mandaria abrir as portas da cadeia. Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino seria de estrondo. Ah, com ele não havia grandes mandando em pequenos. Ele de cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho. (...) E, escorado no portal da casa de taipa, de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino era dono do mundo que via, da terra que a lua branqueava, do povo que precisava de sua proteção. (...) com o corpo doído, continuou a fazer e a desfazer as coisas, a comprar, a levantar, a destruir com as suas mãos trêmulas, com o seu coração puro (REGO, 1997, p. 256).

Note-se que, em nenhum momento, Vitorino põe em prática os seus projetos.

Como um sonhador, projeta-se para o futuro como alguém importante, grandioso e

justo. Para ele, sua “glória” está prestes a ser alcançada, mas, na verdade, nunca se

concretiza no mundo real.

No dizer do crítico literário Eduardo Coutinho, no texto A relação

arte/realidade em Fogo Morto, quanto à personagem Vitorino:

Vitorino Carneiro da Cunha, o eixo-motor da terceira parte de Fogo Morto, é o elemento que servirá de ponte entre os dois espaços onde se desenvolve a narrativa, assumindo diante de cada um deles uma posição crítica. Sem

107

dúvida, ele reúne em si traços de branco pobre e de senhor de engenho e tem sido visto pela crítica como uma espécie de Quixote. Vitorino enfrenta tudo e todos pela palavra e consegue impor-se no final, revestindo-se de grande dignidade, por se manter fiel a seus valores, mas do ponto de vista social sua visão também se revela insuficiente, e sua luta se apresenta como mais uma tentativa mal sucedida de saída (COUTINHO, 1991, p. 438).

Conforme as palavras de Eduardo Coutinho, e as análises apresentadas no

percurso deste estudo, se percebe que Vitorino, assim como as demais

personagens analisadas nos capítulos anteriores deste estudo – Amaro e Lula –,

caracteriza-se, dentro de seu universo ideal, como um fracassado que busca

mudanças, mas, semelhantemente ao mestre seleiro e ao proprietário das terras do

Santa Fé, faz-se impotente perante as adversidades da miséria, social e/ou

existencial, que o aprisiona. Vejamos o que sugere ainda o crítico Eduardo Coutinho:

Do mesmo modo que Lula e José Amaro, Vitorino se acha preso a valores anacrônicos (seu orgulho de ser parente de senhor de engenho, seu preconceito racial e sexista e seu apego a dados aparentes, como a patente que precede seu nome) e, apesar do sonho de justiça que o impele para frente, fazendo-o renascer constantemente das cinzas, falta-lhe uma consciência mais lúcida da problemática socioeconômica da região. A saída que busca é também de ordem individual – ele se bate por um político específico e não por uma mudança efetiva no sistema –, e seu desejo de vitória se encontra comprometido com elementos ideológicos (machismo, violência etc.) que o discurso do narrador vem desnudar (COUTINHO, 1991, p. 438).

Em consonância com o discurso de Coutinho, verifica-se que Vitorino, mesmo

sendo um idealista e um combatente incurável – o que o diferencia dos outros dois

protagonistas de Fogo Morto –, mesmo assim, nota-se que este mesmo sentimento

de benevolência ilusória torna-se o seu próprio algoz, condenando-o a uma espécie

de clausura, onde este vê seus projetos se diluírem na poeira da estrada de uma

sociedade em ruínas, onde os seus valores (conservadores) e a sua própria

existência estão totalmente agregados.

Portanto, por não conseguir desvencilhar-se de tais preceitos (assim como os

demais protagonistas deste romance) também não consegue encontrar saída para

toda esta problemática, configurando-se assim, como mais um ser fracassado a

perambular, a ermo pelas veredas de uma sociedade de “fogo morto”, numa saga

(sem fim) marcada a ferro pela ilusão de um sonho.

108

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra em estudo revela uma vasta possibilidade de investigações quanto à

construção de suas personagens nucleares, em especial, aos procedimentos

estéticos e/ou figurativizadores do fracasso utilizados por José Lins do Rego, mais

especificamente, em meio à decadência econômica que os cerca, motivada, como

se sabe, pela nova ordem social provocada pela mudança do modelo econômico – o

engenho Santa Féainda movido por almanjarras/outros engenhosjá movidos por

máquinas a vapor – e pelas novas relações de poder que se fizeram iminentes no

Nordeste açucareiro, o que gerou um quadro de decadência, não só material, mas,

principalmente existencial. Por este motivo, nosso estudo não se esgota aqui. Ele

representa, antes de tudo, uma pequena parcela de um trabalho futuro. Por isto,

demos ênfase a algumas das situações, quadros e características que julgamos

relevantes.

Para tanto, fizemos um levantamento da configuração do herói na literatura,

desde as grandes narrativas épicas – onde os protagonistas representavam os

valores de uma sociedade mítica, na qual a imortalidade era cultuada, e por isto,

seus representantes não poderiam titubear diante das grandes “provas” impostas

pelos deuses ou pelo destino – até as narrativas romanescas que, por

representarem os valores de uma nova sociedade Moderna e burguesa, buscavam

apresentar seus indivíduos como seres humanos, e, como tal, com suas fragilidades,

manias e incertezas que geravam, por isto, seres fadados ao fracasso e à nulidade,

destoando, por si só, dos valores até então traduzidos pela cultura clássica.

Em alinho com as investigações feitas acerca do herói e de sua performance

nas narrativas em verso (épica) e em prosa (romance), verificamos a entrada destes

protagonistas nas narrativas ficcionais no Brasil, sobremodo, nas produções

regionalistas, desde a proposta estética nacionalista do Romantismo que, no século

XIX, buscava consolidar um projeto de identidade nacional que, por questões

históricas (processo da Colonização), teve como locus o interior e/ou sertão –

guardião das “verdadeiras raízes culturais” – afastando-se dos “romances de

costumes” que buscavam alçar a burguesia citadina e “afrancesada”, bem como o

seu gosto pelo entretenimento e pelas coisas frívolas – até à sua revisitação no

século XX feita pelos Modernistas, mais especificamente, na produção romanesca

109

de 1930, onde verificamos as diferenças entre estes dois movimentos estéticos não

só quanto às paisagens naturais, mas, principalmente, no que se refere a

configuração dos seus heróis, dando relevância, sobremodo à última, pois é nela

que se encontra a obra em estudo.

O regionalismo de 1930, distanciando-se da exaltação feita à natureza –

pitoresca e exótica – desenhada pela literatura do século XIX, busca pouso na

observação e na análise dos seus indivíduos que, penalizados pelas relações

autoritárias de poder mantidas, sobremodo, na sociedade nordestina, ganham

relevância frente às paisagens naturais que assumem, quase sempre, um plano

secundário, servindo, portanto, como cenário onde as ações e situações acontecem.

Dado este interesse, os ficcionistas de 1930 firmavam uma literatura, ao mesmo

tempo, social e psicológica, onde os seus sujeitos ou “flagelos existenciais”

perambulavam, os quais raramente interagiam de modo positivo com o meio quanto

à confissão de suas angústias mais latentes.

José Lins do Rego, como representante desta proposta estética, busca focar

suas observações e análises na região da Várzea da Paraíba, mais especificamente,

nos engenhos de cana-de-açúcar. Filho de uma sociedade patriarcal, despótica e

falida, o autor paraibano usou de seu empirismo para ilustrar, documentar e analisar

o processo de decadência pela qual passara esta sociedade e os seus indivíduos.

Nas investigações feitas acerca do autor e de sua obra Fogo Morto – escopo

deste trabalho –, verificamos que o escritor deu maior ênfase ao humano em suas

diversas instâncias sociais e/ou psicológicas. A natureza, em sua produção ficcional,

se faz importante, mas não imprescindível, uma vez que atua como espaço

geográfico onde os fatos acontecem, servindo, vez ou outra, de efeito confessional.

Isso prova que José Lins do Rego imprimiu, não só um nordeste canavieiro na

literatura, mas, principalmente, os seus indivíduos que, por metonímia – a parte pelo

todo – representam, não só a situação dos que, como eles, ladeiam esse contexto,

bem como, do ser humano de um modo geral, sobremodo, em suas manifestações

várias de fracasso e isolamento nos subterfúgios sociais a que foram condenados,

universalizando a dor de um por meio da dor do outro.

É neste ambiente de decadência e infortúnio, que os protagonistas de Fogo

Morto se fazem produtos de uma sociedade prestes a ruir, cujo fracasso iminente,

figurativiza-se de diversas maneiras e em diferentes graus de complexidade.

110

O mestre José Amaro, velho seleiro, “oficial de outros tempos”, dono de sua

arte, do seu voto e de sua família, não resiste às mudanças econômicas que o

esmagam, transformando-o num simples oficial de “beira-de-estrada”, amaldiçoado

pelo crime de morte que o pai cometera e pela fama de lobisomem que o persegue

através da “boca da canalha”, deixando para este apenas a amargura e o

inconformismo como força que o impele a querer viver só para se vingar – por meio

do cangaceiro Antônio Silvino – dos que o desqualificavam socialmente, bem como,

dos que o aniquilavam existencialmente. Além do que, desiludido da força do capitão

Antônio Silvino que não vem em seu auxílio, seguido da loucura de sua filha e do

abandono de sua esposa para com ele, o mestre seleiro compreende que só lhe

resta algo digno a fazer: atentar contra sua vida maldita. Pensando assim, enterra

bem fundo no seu peito malogrado, a faca (quicé) que tantas vezes serviu, enquanto

ferramenta de trabalho, de materialização de sua liberdade e brio como trabalhador

autônomo em terras alheias.

O coronel Lula de Holanda, senhor das terras do Santa Fé que, impotente

perante o novo poder que se impõe frente à Usina, ausenta-se da realidade por meio

da religião e da loucura que abate, não só o seu mando, enquanto proprietário de

terras, bem como de toda uma classe social senhorial, cujo destino, se resume em

manter as aparências de um passado glorioso que não mais existe, simbolizando,

assim, a recusa ao progresso e o poder arruinado, cortando as estradas do seu

engenho e as ruas da Vila do Pilar, trepado em seu “cabriolé” – símbolo da riqueza

de outrora – que, caindo de tão podre, revela a decadência e o fracasso de toda a

aristocracia canavieira nordestina.

O capitão Vitorino, o “Papa-Rabo”, é a personagem que transita entre os dois

universos sociais formados por senhores (coronéis) e vassalos (trabalhadores).

Perseguido por “inimigos” que na verdade só existiam na sua mente, representa o

fracasso figurativizado nos ideais de liberdade e justiça num mundo onde impera a

lei do mais forte. Sua busca em legitimar tais valores “dignificantes”, caracteriza-se

como um herói “quixotesco”, por acreditar em um mundo utópico e, por isto,

representando a saga de uma ilusão a perambular pelo sertão montado em um

pangaré, velho e magro como sua vida.

Deste modo, chegamos ao cerne deste trabalho, onde o fracasso e a ruína

(social e/ou existencial) se manifestam a cada página lida. Fogo Morto é o romance

da decadência, a começar pelo próprio nome que, no Nordeste, significa “engenho

111

inativo”. Sua inoperância econômica gerou uma série de consequências que se

transformaram em marcas profundas, principalmente, nos que ali (sobre)viviam,

legando a estes, não só o aniquilamento de uma sociedade açucareira, bem como,

de suas próprias vidas malogradas que, com o passar dos anos, se perderam na

poeira do tempo.

112

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