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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

CARLA CRISTINA OLIVEIRA DE ÁVILA

"Corpografias Afro-orientadas e Ameríndias" : cartografias

de processos de criação em Dança Teatro Brasileira

VOLUME 1

SÃO PAULO

2018

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CARLA CRISTINA OLIVEIRA DE ÁVILA

"Corpografias Afro-orientadas e Ameríndias": cartografias

de processos de criação em Dança Teatro Brasileira

VOLUME 1

Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas

Área de Concentração: Teoria e Prática do Teatro

Orientadora: Profa. Dra. Sayonara Pereira

São Paulo

2018

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na PublicaçãoServiço de Biblioteca e Documentação

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São PauloDados inseridos pelo(a) autor(a)

Elaborado por Sarah Lorenzon Ferreira - CRB-8/6888

Ávila, Carla Cristina Oliveira de"Corpografias Afro-orientadas e Ameríndias": cartografiasde processos de criação em Dança Teatro Brasileira. / CarlaCristina Oliveira de Ávila. -- São Paulo: C. C. O.Ávila, 2018.3 v.: il. + inclui Pencard.

Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em ArtesCênicas - Escola de Comunicações e Artes / Universidade deSão Paulo.Orientador: Sayonara PereiraBibliografia

1. Dança/Teatro 2. Contextos etnorraciais em arte 3.Processo de criação 4. Corpo e ancestralidade 5. Memóriacultural I. Pereira, Sayonara II. Título.

Versão Corrigida (versão original disponível na Biblioteca da ECA/USP)

CDD 21.ed. - 700

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Nome: ÁVILA, C. O.

Título: "Corpografias Afro-orientadas e Ameríndias": cartografias de processos de criação em Dança Teatro Brasileira.

Tese apresentada à Escola de Comunicação e Artes. Programa de Pós-Graduação em Teoria e Prática do Teatro para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Aprovado em: 26/07/2018

Banca examinadora:

Presidente e orientadora:

Nome: Profa. Dra. Sayonara Pereira: Instituição: Universidade de São Paulo – Escola de Comunicação e Artes

Julgamento:

Membros titulares:

Nome: Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos SantosInstituição: UNICAMPJulgamento:

Nome: Profa. Dra. Verônica FabriniInstituição: UNICAMPJulgamento:

Nome: Profa. Dra. Márcia StrazzacappaInstituição: UNICAMPJulgamento:

Nome: Profa. Dra. Luciane SilvaInstituição: Acervo AfricaJulgamento:

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Para as mães...

Para minha mãe Jany Ávila Para minha sogra Dora (in memorian)

Para Mãe Terra.

Para as mães ancestrais.

Para as mães africanas.Para as mães indígenas.

Para as mães brasileiras.Para as “mães acadêmicas”.

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AGRADECIMENTOS

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“QUEM ELEGEU A BUSCA NÃO PODE RECUSAR A TRAVESSIA”

(BOSI, A.2010)

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Resumo

O presente trabalho é composto por três volumes. O primeiro fabula a invenção do Brasil, reconta nossa história ancestral de formação pelo viés das corporalidades e apresenta os fundamentos desta proposta de criação. O segundo volume narra toda a caminhada cartográfica e autoetnográfica dos processos de ensino, pesquisa e extensão em nossas ações teórico-práticas , com a finalidade de contextualizar o leitor em direção à perspectiva em rede e sistêmica deste processo de criação. Por fim, no terceiro volume será apresentada a estrutura final desta proposta de criação, suas especificidades e os relatos orais e escritos, em formato de cartas, dos integrantes afro-brasileiros e ameríndios, artistas e pesquisadores membros desses processos artísticos e culturais vivenciados em mais de dez anos de trabalho. Um dos objetivos desta tese é de apresentar um registro cartográfico, além de uma reflexão teórico-artística de uma longa caminhada de formação no campo das artes cênicas em relação aos povos tradicionais afro-orientados e ameríndios, os quais podem ser reconhecidos como potências culturais e autoetnográficas disparadoras de uma proposta para processos de criação em Dança Teatro brasileira. A pesquisa instiga o pensamento e enraíza-se a partir do território e suas potências culturais, corpográficas, a fim de se criar uma urdidura complexa, malha viva de experiências estéticas, simbólicas e míticas, por meio de: rituais, oralidades, memórias, cantos, danças, teatralidades, bibliografias e cosmogêneses. Por esse motivo, esta investigação é composta de diversas camadas de comunicação, as quais são apresentadas em textos formais, acadêmicos, poéticos, cartas, visualidades, oralidades, trilhas sonoras, vídeos, fotografias, gravuras, bordados, entre outros. Todas essas camadas são representatividades dos percursos metodológicos desta pesquisa que também se firma em revisões bibliográficas, entrevistas semiabertas, questionários semiestruturados e reflexões sobre matérias jornalísticas, além das vivências e pesquisas de campo, que são a matéria-prima para a proposição do processo de criação aqui apresentado.Neste sentido, utiliza-se da cartografia no universo de toda a pesquisa e tem como base a proposta metodológica do “Corpo e Ancestralidade” (SANTOS,1996) em diálogo com a cultura e corpografias afro-orientadas e ameríndias como possibilidade de construção de uma rede sistêmica e intercultural para vivências de ensino, extensão e pesquisa acadêmicas que convirjam para processos de criação artísticos, estéticos e poéticos de uma Dança Teatro brasileira e que intente ampliar as reflexões sobre corpo e cultura, desviados de um olhar eurocêntrico, para que possamos nos focar em contextos decoloniais para as artes. Aplicabilidade que se deu na produção artística, acadêmica e social dos grupos Gengibre - Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Arte e Extensão sobre Cultura Popular junto aos povos quilombolas da Região que se situa na Zona da Mata, em Minas Gerais (2004 - 2009) e Grupo MANDI´O – Grupo de Pesquisa, Arte e Extensão sobre a cultura ameríndia, com os povos Guarani e Kaiowá, em Mato Grosso do Sul (2010 - 2017).

Palavras-chave: Dança Teatro; Processo de criação; contextos etnorraciais em arte; Corpo e Ancestralidade;Memória e Cultura

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Abstract

This is a three-volume PhD dissertation. The first one narrates the invention of Brazil, retells our ancestral history of formation through the bias of corporality and presents the fundamentals of the present project of creation. The second volume narrates a cartographic as well as ethnographic journey across our theoretical-practical activities such as processes of teaching, researching and extension. This will contextualize the reader towards a systemic and networking perspective of this creative process. Finally, the third volume presents this project final structure of this project creation, with its specific oral and written reports, composed as letters by the Afro-Brazilian and Amerindian participants, artists and researchers along more than ten years of artistic and cultural processes experienced as group members. One of this PhD dissertation objectives is to present a cartographic register, besides theoretical-practical reflection upon a long way in the field of performing arts education in relation to traditional peoples, Afro-oriented and Amerindian, who may be recognized as cultural and ethnographic sources of creative processes in Brazilian Dance- Theatre. This research instigates thinking and grounds itself on territory and its cultural potentialities, corpographic, in order to create a complex texture, weaved by a live net of aesthetic, symbolic and mythical experiences by means of rituals, oralities, memories, chants, dances, theatricalities, bibliographies and cosmogenesis. Therefore, this research is composed by diverse layers of communication, each one of them representing methodological choices and instruments necessary to approach the theme by several perspectives. Then, the text brings together a multitude of text genres such as : academic papers, poetic texts, bibliographical review, reflection about journalistic articles, letters, photography, soundtracks, videos, embroidery, engravings, interviews, questionnaires, field research and experiences, which are the raw materials of the creative process presented here. In this sense, the research work is based on cartography, and relies on “Body and ancestrality”( Santos, 1996) as its methodological foundation, in dialogue with Afro-oriented and Amerindian culture and corpography . This may indicate a possibility of the construction of a systemic and intercultural network of experiences in academic teaching, researching and extension activities which converge to Brazilian Dance Theatre poetic, artistic and aesthetic creative processes, away from Eurocentric views, in order to focus on decolonial contexts for Arts. Artisitc, as well as academic and social works were produced by two groups: Gengibre - Interdisciplinary Research, Art and Extension about Popular Culture within Quilombolas peoples from Zona da Mata, Minas Gerais (2004-2009) and Group MANDI’O – Research, Art and Extension about Amerindian Culture, with Guarani and Kaiowá peoples in Mato Grosso do Sul (2010-2017).

Palavras-chave: Dança Teatro; Processo de criação; contextos etnorraciais em arte; Corpo e Ancestralidade;Memória e Cultura

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SUMÁRIO- VOLUME I

Prólogo...........................................................................................................................................................Guardiões da Memória ( Fala do SR Jorge Indígena/ Fala Sra Quininha NEGRA)............................................Peço Licença...................................................................................................................................................

CARTOGRAFIAS UTÓPICAS DESDE FORA

1. UTOPIAS DE SOLITUDES BRASIS...........................................................................................................1.1 Terra ameríndia de pindorama..............................................................................................................1.2 Fabulações de (re)invenções...................................................................................................................1.3 Diásporas negras....................................................................................................................................

2. SOBRE O CAOS UTÓPICO DO AGORA......................................................................................................2.1 Na face do outro.....................................................................................................................................2.2 “Devassa do desassossego ao sul ou.... epistemologia da inquietação.................................................2.3 Desassossegos móveis da pesquisa.......................................................................................................

CARTOGRAFIAS UTÓPICAS DESDE DENTRO

3. ENTRE CÉU E TERRA..............................................................................................................................3.1 A miragem do indivíduo ........................................................................................................................3.2 Ovo-semente-cosmo corpo..............................................................................................................

4. (RE)MITOLOGIZAR FUNDAMENTOS........................................................................................................4.1 Fundamento vida....................................................................................................................................4.2 Fundamento verbo..................................................................................................................................4.3 Fundamento sonho...................................................................................................................................4.4 Enlaçando fundações..............................................................................................................................4.4.1 Enlaçando Fundações das cartografias desde fora.............................................................................4.4.2 Enlaçando Fundações das cartografias desde dentro........................................................................

Bibliografia - Volume I....................................................................................................................................

SUMÁRIO- VOLUME II

CARTOGRAFIAS UTÓPICAS DESDE DENTRO

5.HIEROFANIAS DA TERRA MANIFESTA.....................................................................................................5.1 Cartografias da terra ancestral manifesta; raízes familiares e formação cultural/gestual..................5.1.1 Cartografias das diásporas familiares: Entrecaminhos do Atlântico a América do Sul...........................5.1.1.1 Familia Hereman (origem da vó materna).....................................................................................5.1.1.2 Família Barbosa de Oliveira (origem do avô materno)...................................................................5.1.1.3 Familia materna.............................................................................................................................

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5.1.1.4. Família Domingues (origem avó paterna).......................................................................................5.1.1.5 Família Ávila (origem do avô paterno).............................................................................................5.1.1.6 Familia Paterna................................................................................................................................5.1.1.7 Meu núcleo Familiar.........................................................................................................................5.1.1.7.1 Caminhos de mãe e filha.............................................................................................................

5.1.2. Cartografias do Corpo e da Dança: Entrecaminhos da formação acadêmica e artística.....................5.1.2.1 Entrecaminhos da América e do Atlântico: memoriais viajantes....................................................5.1.2.2 Entrecaminhos da Dança e Educação: CALEIDOS Cia de Dança e SIA- Semi Internato Alternativo.......5.1.2.2.1 Nas imagens do Caleidos..............................................................................................................5.1.2.2.2 Nos desenhos do Semi Internato Alternativo (SIA) - Colégio Doctus Campinas...................

5.1.3 Cartografias das fronteiras dos EUA; Entrecaminhos de Boston MA a Maui- HI...................................5.1.3.1 Submergir das Paisagens de Boston- Massachussets.......................................................................5.1.3.2 Paisagens submersas de Maui –Hawaii............................................................................................

5.1.4 Cartografias de montanhas, campinas e fronteiras; Entrelugares da lapidação acadêmica e os primeiros passos com os povos afro-ameríndios..........................................................................................................5.1.4.1 Lapid(ações) entre Docência na UFV e Mestrado UNICAMP.............................................................5.1.4.2 Tr(ama) da Docência na UFGD e doutorado na USP.......................................................................

5.2 Cartografias do lugar da memória do corpo: Reflexão Memorial Auto-etnográfica..............................

CARTOGRAFIAS DESDE FORA

6. HORIZONTES DE SOLO E O OVO-SEMENTE-COSMO: DISPOSITIVOS DE “DENTRO PARA FORA E DE FORA

PARA DENTRO”..........................................................................................................................................6.1 Dimensões dos horizontes de solo e sua importância para o ovo-semente-cosmo.................................6.2 Dispositivos de “dentro para fora e de fora para dentro”: Corpo e Ancestralidade e seu desdobramento na carreira docente............................................................................................................................................6.3 Platôs de terra e Corpo aprendizagem: transmutando vida.....................................................................6.4 Platôs de terra e sementes; Desdobramentos teórico-artístico-pedagógico ou do “Corpo e Ancestralidade” ao “Corpo Semente Cosmo”..........................................................................................................................6.5 Cartografias expandidas entre Corpo e Ancestralidade e Corpo Semente Cosmo.........................................

7. CARTOGRAFIAS DO ENSINO NOS CAMPOS DA DANÇA E TEATRO: PROCESSOS PEDAGÓGICOS NO

CORPO EM TERRITÓRIOS AFRO- ORIENTADOS E AMERÍNDIOS....................................................................7.1 Paisagens sócio-culturais de Viçosa, Minas Gerais e Dourados, Mato Grosso do Sul e suas projeções nas pesquisas do grupo Gengibre MG e Mandi´o MS.....................................................................................7.1.1 Paisagens sócio-culturais de Viçosa, Minas Gerais................................................................................7.1.2 Paisagens sócio-culturais de Dourados, Mato Grosso do Sul..............................................................

7.2 Cartografias do ensino de Dança e Técnicas e Poéticas do Corpo para a Cena: ovo-semente-cosmo e horizontes de solo desvelados........................................................................................................................7.2.1 Cartografias do ensino de Dança, Teatro; TPP1- REAL........................................................................7.2.2 Cartografias do ensino de Dança, Teatro; TPP2- RITUAL....................................................................

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7.2.3 Cartografias do ensino de Dança, Teatro; TPP3- VIRTUAL.................................................................

8. PROJETOS DE EXTENSÃO DOS GRUPOS GENGIBRE E MANDI´O; POTÊNCIAS PARA OS PROCESSOS DE

CRIAÇÃO EM ARTES DA CENA....................................................................................................................8.1 Projetos de Extensão Gengibre: Quilombos, Congados, Comunidades Rurais e Universidade...............8.1.1 Eventos de extensão; Moringa, Batizado na Capoeira Alternativa e Rádio Itinerante no Ar................8.1.1.1 Evento: “Moringa - bebendo das tradições nas águas da contemporaneidade” (2005-2009).........8.1.1.2 Evento: Batizados da Capoeira Alternativa (2007-2009)................................................................8.1.1.3 Evento:Rádio Itinerante no AR (2007-2012)...................................................................................

8.1.2 Projetos de Extensão e Oficinas..........................................................................................................8.1.2.1 Projeto de extensão: Entre Sons e Gestos: Rádio Itinerante Cultural Palmares na difusão da identidade Africano-brasileira e seus desdobramentos.............................................................................

8.1.2 Projeto de extensão e oficinas Gengibre............................................................................................8.1.2.1 Extensão: O Jogo entre a Universidade e a Identidade na Roda da Cultura: Grupo Capoeira Alternativa.................................................................................................................................................8.1.2.1.1 Oficinas da Capoeira alternativa..............................................................................................

8.1.2.2 Projeto de extensão e Oficinas de Dança “Entre sombra e gestos a re-construção da identidade afro-brasileira no grupo Ganga Zumba, Ponte Nova – MG..........................................................................8.1.2.3 Extensão Gengibre: Guardiões da Memória tradição e identidade compartilhadas por congadeiros de Cachoeirinha, Paula Cândido, Ponte Nova e São José do Triunfo (2008-2010)......................................

8.1.3 Práticas de extensão em Artes; Companhia de Dança Teatro “ Hera terrestre”...................................8.2 Projetos de Extensão Mandi´o.................................................................................................................8.2.1 Projetos de Extensão e Oficinas...........................................................................................................8.2.2 Eventos de extensão; Sarau Assent´Arte, Tapekurusu e Festival de Cantos e Danças Guarani Kaiowá................................................................................................................................................................8.2.3 Práticas de extensão em Artes: Vivências no Tamboca e Cia Mandio......................................................

9. PROJETOS DE PESQUISA DOS GRUPOS GENGIBRE E MANDI´O; POTÊNCIAS DO CAMPO PARA OS

PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM ARTES DA CENA...........................................................................................9.1 Projetos de Pesquisa Gengibre..................................................................................................................9.1.1 “Grupo de Pesquisa Gengibre; pesquisa afro-orientada das manifestações tradicionais da Zona da Mata Mineira”..............................................................................................................................................9.1.2 “Grupo de Pesquisa em Dança, Teatro Hera-Terrestre”.....................................................................9.1.3 Projeto de pesquisa “Guardiões da Memória”.....................................................................................

9.2 Projetos de Pesquisa Mandi´o.................................................................................................................9.2.1 “Grupo de Pesquisa Interdisciplinar sobre culturas tradicionais Ameríndias e as Artes da Cena - Mandi´o”.....................................................................................................................................................9.2.2“AOCA- Ateliê e Observatório Corporal e Artístico - Grupo Mandi´O”................................................

10. ENREDANDO CARTOGRAFIAS DE VIDAS ACIMA E ABAIXO DA TERRA; ENSINO, EXTENSÃO PESQUISA E

ARTE..........................................................................................................................................................Biblliografia - Volume II.................................................................................................................................

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SUMÁRIO- VOLUME III

CARTOGRAFIAS DESDE DENTRO PARA FORA E DE FORA PARA DENTRO

11. DO OVO SEMENTE COSMO PARA O “ARVORESCER” NA CENA: EMERGIR EM CRIAÇÃO DAS “CORPOGRAFIAS

SISTÊMICAS”..............................................................................................................................................11.1 Visualidade da proposta de criação corpográfica sistêmica..................................................................11.2 Descrição Cartográfica Criativa; Arborescências do Processo de Criação Sistêmico, Autopoiético Enraizado nas Culturas Africanas e Ameríndias............................................................................................11.3 Descrição das Arvorescências para o Processo de Criação....................................................................11.3.1 CORPOgrafias....................................................................................................................................11.3.2 Artivismo e autoetnografia.................................................................................................................11.3.3 Jogos corporais entre Dança, Teatro e grupos Afro-Ameríndios............................................................11.3.4 Urdiduras Poéticas e Cênicas............................................................................................................

11.4. Descrição Cartográfica Criativa: Arborecências das Imagens..............................................................

CARTOGRAFIAS DESDE FORA PARA DENTRO E DE DENTRO PARA FORA

12. VEREDAS ENSAÍSTICAS; PANORÂMICAS DOS PROCESSOS DE CRIAÇÃO...............................................12.1 Gengibre – Arte.....................................................................................................................................12.1.1 Rosarina...........................................................................................................................................12.1.2 Guardiões da Memória; Exercício Cênico.........................................................................................12.1.3 Terra Preta.........................................................................................................................................

12.2 Mandi´o - Arte......................................................................................................................................12.2.1 “JAHA” Exercício cênico......................................................................................................................12.2.2 “Ara Pyahu; Des-Caminhos Do Contar-Se”........................................................................................12.2.3 “APYKAI”: Devolutivas para os grupos indígenas Guarani e Kaiowá parceiros................................12.2.4 Pachamama Guarani Kaiowá.............................................................................................................

12.3 Terra e céu (Horizontes de Solo e Ovo-semente-cosmo); vozes detentoras das sementes...................12.3.1 Congado de SJO................................................................................................................................12.3.2 Ganga Zumba.....................................................................................................................................12.3.3 Farinhada.........................................................................................................................................12.3.4 Ita´y.................................................................................................................................................12.3.5 jaguapyru.........................................................................................................................................12.3.6. Guyrakamby´ e Panambizinho........................................................................................................

13- SEMEADURAS PARA ENTREMEAR CÉU (OVO-SEMENTE-COSMOS) E TERRA (HORIZONTES DE SOLO);

PALAVRAS, ARTES E CAMINHOS..................................................................................................................

Bibliografia Volume III....................................................................................................................................

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PRÓLOGO

Inspirada nos mitos e oralidades tradicionais das culturas originárias e

seus desdobramentos para as artes da cena dança, teatro e performance, apresento a substância fundante de que é feita esta tese. São estruturais em seu formato muitas imagens simbólicas, relatos orais e textuais, vivências e sentimentos. Mas, além dessa narrativa, pretende-se, em sua materialidade dramatúrgica, guiar o leitor por diferentes camadas sensíveis, como platôs de distintos campos dos saberes a narrativa vai se formando, atravessando, espiralando, perfurando (como semente germinada com vontade de enraizar), dimensões territoriais, geográficas, étnicas, sociais, culturais, políticas, simbólicas, estéticas em agenciamentos ancestrais, etnográficos e midiáticos artísticos que se complementam e dialogam entre si. Propondo uma densidade de conteúdo, que propicie ao leitor, uma interação efetuada pelas linguagens com esses contentos, deixando a possibilidade deste ser parte desta soma de entendimentos construída nessa tessitura de registros.

Em uma tentativa de colocar no formato estético da tese um modo de fazer/pensar decolonial e artístico, este trabalho acadêmico pretende refletir os moveres artísticos coletivos e teóricos realizados ao longo desta pesquisa de doutorado.

E sendo assim, não há como construir a tese sem ter a consciência de que o alicerce de minhas falas são as artes da cena como

forma de (re)existência diante da dor e o genocídio de povos indígenas e negros colonizados e escravizados. Para tanto é impossível escrever um texto de formato asséptico, a proposta reflexiva e de criação que apresento é suja de terras pretas e vermelhas, baseada no pensamento e nas culturas deste povo originário brasileiro, que muitas vezes são tidos como menores, inferiores ou menos inteligíveis, “mulatos”, “bons selvagens”, “mestiços”, “caboclos” menos nobres, colonizados, pacificados, escravizados, invisibilizados por uma sociedade discriminatória e materialista.

É da cultura e dos corpos desses povos que elaboro em linhas de fuga um pensamento decolonial para um processo de criação que reflita nas artes da cena e no texto acadêmico modelos de fazer menos “higienizados a moda colonial acadêmica”. Não há como não transgredir essa ordem posta pelos sistemas coloniais e da modernidade, a qual segue impondo e reproduzindo um sistema opressor, para que nós mesmos subjetivemos essa forma de viver e fazer pesquisa-arte como mentes e corpos colonizados no hegemônico patriarcal.

Nesta tese, os gestos e movimentos artísticos-teóricos gritam por uma revolução desses fazeres, a começar pela tentativa descritiva, ensaística e estética das ideias aqui apresentadas. Não há como negar este saber/pensar eurocêntrico e neoliberal arraigado em nossos fazeres cotidianos e acadêmicos,

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nas artes e na forma de ensinar e pesquisar, impondo-nos uma escolha ética-estética que reproduz estes mesmos fazeres.

Atenta a essas dinâmicas e sedenta pela quebra dessas estruturas de poder, opressoras e por vezes limitantes, buscamos em nossas subjetividades compor esta tese na força e na perspectiva do fazer comunitário, nas vozes indígenas, negras, europeias.

Para tanto, no texto outrora duro e formatado, apresento muitas camadas fluidas de visões e vozes que ecoam a construção desta pesquisa, o texto como conhecemos será atravessado e de certa forma (des)construído com cartas, cantos, reflexões, frases, vozes dos sujeitos aqui contemplados e cartografias atravessadas por linhas coloridas no primeiro instante, para depois tornarem-se vermelhas como veias que pulsam a vida e a trajetória deste trabalho e como o sangue derramado por tantos para que a (re)existência justifique esse trabalho.

Apresentarei também textos históricos, jornalísticos, acadêmicos, literários que relatam e denunciam as diversas perspectivas da formação da cultura brasileira, da cultura Ameríndia, cultura Negra brasileira, sua interculturalidade e suas relações com o campo das artes cênicas.

A tese se apresenta em três volumes, cada qual tem em si camadas específicas de diferentes momentos desse processo de pesquisa e criação.

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Para complementar a proposta sensorial a qual a tese se propõe, em cada volume um pencard com acervos audiovisuais comporá as nuances dos caminhos vividos, trazendo-nos sonoridades e imagens que agregam e ampliam as reflexões textuais.

Tais proposições pretendem refletir o processo de alteridade, interculturalidades e sensibilidades vividas no contexto diário da pesquisa, assim sendo a própria materialidade deste trabalho pretende ser comunitária, muitas pessoas presentificadas, muitas vozes, suas ideias e contribuições se materializam como as dinâmicas dos grupos de artistas de Dança e de Teatro e das próprias comunidades em seus fazeres rituais e artísticos.

Porque a comunidade é uma forma solidária de vida, a qual cada vez que há o encontro com esses povos aprendo mais, ali é possível sonhar com utopias, revoluções e mudanças de paradigmas.

Por isso, essas pessoas que passaram por este processo, deixaram suas marcas e profundas colaborações no modo de pensar e fazer arte, que bebe da fonte de nossas brasilidades.

São festas negras e rituais ancestrais indígenas vivenciados em campo, são laboratórios artísticos de criação com atores/atrizes e bailarinos/bailarinas pesquisadores, são quilômetros de diferentes territórios brasileiros percorridos, são ensaios em que nos deparamos com nossas limitações e transcendências vividas nos

corpos e transpostas para a cena, nesta dinâmica, todas estas vozes se uniram fazendo o público se integrar nesses sentires e moveres.

Assim, este formato de tese busca também metaforizar as muitas vozes comunitárias que foram ouvidas nas tradições, nos cantos, danças ancestrais, nas falas emocionadas dos pesquisadores e artistas que contribuíram ao longo desses quase quinze anos de trabalho.

A fim de reconhecê-los e valorizar suas representatividades fizemos questão de que estas identidades apareçam como camadas de conteúdos em textos que se articulam e se apresentam em diferentes referenciais estéticos, poéticos e teóricos. As cartas, citações, ilustrações, inspirações simbólicas, linhas e pontos, imagens descritivas e fotografias que datam desde a constituição histórica de nosso território brasileiro são como paisagens e territórios a serem visitados pelo leitor para a constituição dos pensares refletidos no texto acadêmico em si com sua estrutura metodológica.

Logo, as emoções vividas e valorizadas pelos membros das comunidades parceiras e dos artistas-pesquisadores dos grupos envolvidos são encarnadas no corpo da escrita. Portanto, pretende-se na “dramaturgia” desta tese, no próprio formato estético da apresentação em si, demonstrar pistas e rastros da construção coletiva, poética e memorial de nossas pesquisas, extensões, artes e corpografias brasileiras decoloniais.

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Imagem 1 - Ilustração Paikuará

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GUARDIÕES DA MEMÓRIA

1 Fala de Sr. JORGE, Cadernos de campo 2014 (Rezador e Liderança Kaiowá) Aldeia Jaguapiru - Dourados –MS.

“A terra é o corpo do Índio”1

Senhor Jorge proclama na palavra que para os povos Guarani Kaiowá o corpo do índio é a própria terra. Se pensarmos poeticamente que a mãe é a própria terra, o corpo não podia ser outra coisa senão a terra.

A importância da palavra para o Guarani Kaiowá está na constituição dos seres, a palavra é sagrada porque a palavra tece seus próprios caminhos, nesta cosmologia quando a mãe engravida, ocorre ao homem ou a mulher que os mesmos “sonham a palavra”.

Desde a concepção até a morte da pessoa, este conceito é fundamental no pensamento tradicional Kaiowá[...]A vida do ser humano começa com esse ato onírico. O humano é “a palavra sonhada”. Dessa palavra se diz que se ́ faz para si um assento ‘onemboapyka ñeê’, no ventre da mãe e na própria criança. É a palavra que chama à existência o novo ser.

Mas a palavra ou alma não é um bem que se recebe

pronto; de forma plena. Ela é um impulso inicial que deve desenvolver-se ao longo da vida, através da dedicação e do esforço pessoal, para ir formando o indivíduo e conformando-o a comunidade (CHAMORRO,2017, p. 205).

Tal cosmologia indígena brasileira é também elemento fundante dessas reflexões e pensamentos transformados em palavras nesta tese, que mais do que letras unidas em uma frase expressando conceitos, tem em seus princípios visibilizar utopias selvagens, que tem o ato onírico como mito fundador. Assim como palavras sonhadas as ideias e relatos aqui nascidos não estão prontos em sua plenitude, são o impulso inicial de um esforço pessoal e coletivo rumo a caminhos de desejos, de transformações nas artes da cena.

Imagem 2 – Foto: Raique Dias, Pés Kaiowá, Ita´y MS, 2014.

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“Esse mundo é cheio de viravorta, cheio de viravorta,[...] o mundo mudou, só nóis num viu. ce sabe Deus é Deus, né? Ele tem poder pra tudo. O mundo mudou só nóis é que num viu. Nessa ocasião a terra era preta”. 2

Outra escuta de campo marcante, transformadora e fundadora deste trabalho desde o princípio desta pesquisa, refere-se ao contato com o povo Negro de Minas Gerais, entre estes áudios, são gravadas a fundo em nosso inconsciente a corporeidade, expressividade e as falas de Dona Quininha senhora muito idosa liderança negra e forte, Rainha de Congo de Ponte Nova, Minas Gerais, quando em uma das inúmeras conversas base de nossas pesquisas ela nos olhava nos olhos e contava sobre sua vida, o nascimento de seus filhos no meio da casa e do cafezal, contou da saudade de seus pais, das histórias da escravidão e das festas negras nas minas dos tempos antigos. Nos ensinou sobre fé e resistência, ensinou sobre respeito e dignidade.

Em suas falas registradas junto a orientandos em projetos de pesquisa e extensão, durante os anos em Minas ao ouvi-la ainda nos emocionamos e seguimos aprendendo. No livro Guardiões da Memória – Lembranças de Congado, fruto de nossas ações em Ponte Nova, Dona Quininha relata uma das muitas memórias compartilhadas.

Em outra ocasião, a terra

2 Fala de Dona Quininha, rainha Conga de Ponte Nova – anotações do cadernos de campo 2007 Vídeo Documentário 49`19 apud LUCHETE, 2008.

era preta. Como se o adubo e o esterco já estivessem nela mesma. A terra era fértil, dava milho, arroz, verdura, mais de uma vez ao ano. Às vezes nem era necessário se preocupar em fazer a colheita, porque ainda havia sobrado um rebarbozinho da anterior. A medicina também vinha da terra: folhas e raízes eram usadas para curar doenças. Não havia esse negócio de comprar remédio na farmácia, nem de consultar seu doutô. Nessa ocasião, só se encontrava terra vermelha no cemitério. Entre as cruzes, as flores e as mensagens de despedida, era possível ver o solo com aquela superfície de cor diferente, mais clara, bonita. Meu Deus, que terra bonita a terra de cemitério, admirava-se a pequena menina, nos tempos em que andava vestida por aí com roupa de algodão, de pezinho no chão, sem se preocupar se os outros julgavam sua aparência (LUCHETE,2008, p. 175).

[...] O mundo é cheio de viravolta. Cheio de viravolta. Nas vias e nas encruzilhadas, muitas coisas deixaram de

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34existir, como a escravidão e a terra preta, ou estão quase acabando, como as parteiras, as benzedeiras e as assombrações. Outras ainda continuam [...] (LUCHETE, 2008, p 192).

Com sua simplicidade e experiência fala das reviravoltas do mundo, da rapidez dos acontecimentos da vida e nas profundas concepções culturais que atravessam os corpos e as memórias de um povo. No seu viver ensina também sobre a fé no mito feminino da grande mãe, na liderança comunitária e na partilha em situações de muito pouco recurso material, mas de abundância rural. No seu pequeno jardim em sua casinha simples no alto do morro do quilombo urbano, periferia de Ponte Nova e nas memórias das roças vividas em seu imaginário com os antepassados, nos conta sobre o contato e sabedoria do corpo com a terra, conta-nos sobre o poder das plantas que alimentam e curam e com sua voz enfraquecida mas profunda e forte nos canta o sagrado.

3 Canto de Dona Quininha e tia Efigênia Catarina no Congado de Ponte Nova, registrado em entrevista de campo com Àvila e Luchete (2008).

Se a morte não me matar, tamborimSe a terra não me comer, tamborimAi, ai, ai, tamborimPara o ano nós voltaremos, tamborim3

Todos esses ensinamentos mais uma vez são elemento fundante dessa trajetória proposta em forma de tese, das muitas vozes encontradas e de percursos sensíveis e artísticos construídos na coletividade reflexo das comunidades negras, dos fazeres culinários, das partilhas do pão e do sorriso largo, do canto alegre e quase sempre festivo, mesmo em meio a tanta dor e injustiças.

Nestes anos de caminhada de nossas palavras, com os vários projetos, grupos de pesquisa e arte que construímos trouxemos da vivência com povo negro, ensinamentos de sempre ter uma mão amiga disposta a ajudar, de como ser forte sem perder a doçura, como ser firme sem sangrar, e como lutar dançando e cantando, aprendemos que nos toques dos tambores se propaga o amor e o pulso da vida e do sagrado que alimenta a comunidade.

Imagem 4 - Foto: Paulo Sacramento Missa Negra QUILOMBO Ganga Zumba- Ponte Nova, 2007

Imagem 3 Foto: Paulo Sacramento QUILOMBO Ganga Zumba, Ponte Nova MG, 2007.

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PEÇO LICENÇA...

Peço licença as culturas originárias desta terra, em especial aos parceiros de

caminhada, os povos indígenas Guarani Kaiowá da reserva de Dourados Jaguapiru, Panambizinho, Lagoa Rica, Ita´y e Guiracambi´y, no Mato Grosso do Sul e aos quilombos de Ponte Nova, comunidade negra de São José do Triunfo, Aerões, Cachoeirinha, povos Negros de Congo da Zona da Mata de Minas Gerais, brasileiros e mestiços que tanto nos ensinaram a caminhar e a fazer palavras; palavras cantadas, palavras dançadas e palavras sonhadas.

Ao relembrarmos essas boas palavras a nós instruídas, neste tempo de abertura desta escritura, confirmo que além da gratidão pelas belezas oferecidas e partilhadas durante esses anos de pesquisa e arte, registro aqui também os ensinamentos vindos pela dor que também presenciamos em campo; atos

de preconceito, racismo, injustiças sociais, miséria, conflitos, violências e genocídios que mesmo profundamente doídos nos ensinaram a sermos mais fortes, e a refletir mais e nos educaram a saber de nosso próprio preconceito velado, das intenções inconscientes da alma colonizadora que habita em nós e que constantemente precisa ser advertida, para que se liberte para sua real alma brasileira que a todos nós habita.

Assim, na gratidão, no respeito e na eterna admiração e cumplicidade por esses povos, pedimos permissão para abrimos esta narrativa, arcabouço poético memorial de reflexões e imagens, fruto dos pensares, relatos dos sentires, construções de quereres manifestos, documentos em letra, verso, linha e traço, registros de formas sensíveis, memórias das artes vividas e manifestos de epifanias possíveis!

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CARTOGRAFIAS UTÓPICAS DESDE FORA

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Imagem 5 - Autora: Jany Ávila. Título: Ovo preto sobre branco. Trabalho de técnica mista: crochê e aquarela sobre papel. 2017.

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Sempre em movimento, galáxias cinéticas, os astros circulares se movem, a Terra gira em torno de si mesma, as marés vão e vem, água para nascer tem que brotar movimento, fluir rios, natureza caça jeito, já dizia Manoel. Os filhos do planeta nascem e os povos vão e vem como marés, se deslocam pelo globo, crescem e morrem. De mortes matadas ou morridas. Conquistadores e conquistados, governantes e governados, opressores e oprimidos, somos muitos, no caminhar quebram-se os binarismos e seguimos trans...Precisamos nos alimentar e seguir nutrindo tecidos, células, epidermes, sangue, gestos...

A certeza é que estamos sempre em movimento, nada é estático, tudo é mover, coração, pulso, ar que entra nos pulmões, enche e esvazia, seguimos nos reinventando observando maneiras de sobreviver, caminhando pelos caminhos do tempo resistimos, perpetuações. Pura cinestesia.

(Caderno de Campo 2014- Carla Ávila)

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1. UTOPIAS DE SOLITUDES BRASIS

4 Alma Brasileira é o título do livro do psiquiatra Roberto Gambini, onde em seu capítulo de abertura “ A identidade Brasileira e seu drama oculto”, discorre sobre as ausências de nossas constituições identitarias, onde neste tópico nomeia e apresenta a tese central de seu livro, sobre a formação identitária a partir de uma alma ancestral do Brasil. Gambini (2000, p.19).

“A coisa mais importante para os brasileiros é inventar o Brasil que

nós queremos!”

Darcy Ribeiro

Sobre (re)invenções diárias é que o mundo segue movendo.

Nas palavras de Darcy Ribeiro, em “o Povo Brasileiro” , observa-se a reivindicação, desde 1964, da (re)invenção de nós mesmos enquanto Povo. Mas na alma continuam a se ecoar perguntas: Diante do momento atual o qual vivemos, neste agora da terra Brasil, nas profundezas ancestrais, de qual Brasil nos referimos? Quem somos? De que corpos e culturas são feitos esse “nós brasileiros”? Que invenção (re)inventada faremos de nós mesmos? Já temos nos (re)inventado? E o que de novo se constituiu?

Para nos (re)inventarmos o inventado neste chão é preciso ter em mente, primeiramente, o que já foi posto nessa terra, que caminhos já foram pisados, que trilhos, que picadas de chão nesses territórios socioculturais já foram abertos, rompidos em sangue e dor, e depois seguir a caminhada com olhos, coração, e braços bem abertos, com sonhos e desejos diários para pequenas revoluções, na busca incessante por soluções transformadoras e relações mais justas e igualitárias, utopias cotidianas sempre no mover, no dançar ancestral do que poderia vir a ser uma alma brasileira e seus dramas ocultos.4

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1.1 Terra ameríndia de Pindorama

Imagem 6 - Autora: Jany Ávila Trabalho de técnica mista; Linha sobre papel e mapa. 2017. Mapa referente a presença de povos indígenas no Brasil, na época do descobrimento.

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CANTO GUARANI KAIOWÁ

5 Ojoetéguipo é um canto Heno’ã Kaiowa Kuéra Tekoharã Itaypegua Mborahéi – Eis os cantos da comunidade kaiowa do Itay – Casa de Reza de Mereciana, registrado também no CD ÑEMONGO’I UFGD/PROEX/PROJETO ARTE CULTURA/CANTOS E DANÇAS (Tradução Professora Dra. Graciela Chamorro).6 Karai indica aqui o nome indígena, o nome verdadeiro dos Kaiowa, o corpo batizado.

Ojoetéguipo5

Ojoetéguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x

Ojokotýguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojojeguakáguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojoku’akuaháguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojokotýguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojokaraíguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Oñoñe’engatuguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojokoty ru’ãguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Ojohu’ãva ru’ãjuguipo tatapyryrýi rerosyrýny (2x)

Papa moro’ysãma ichupény (2x)

Do nosso mutuo corpo tira o calor abraçador

Do nosso mutuo corpo tira o calor abraçador

Do mutuo enfeite da nossa cabeça tira o calor abraçador

Da interior de nosso mutuo corpo tira o calor ardente

Do nosso mutuo nome verdadeiro6 , tira o calor abraçador

Da nossa boa palavra tira o calor abraçador

Do topo do interior de nossa cabeça tira o calor abraçador

Do topo de nossa cabeça tira o calor abraçador

Conta-se que já o fez esfriar

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Imagem 7 (A esquerda) – Autora: Carla Ávila. Título: Kunhã Apó – Mulher raiz. Trabalho de técnica mista; bordado, aquarela, terra e pigmentos sobre papel e fotografia. 2017. Fotografia Mulher Asurini, referência Vidal, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. Studio Nobel. FAPESP: Editora da Universidade de São Paulo. SP. 2000.

A terra de Pindorama, “terra das árvores altas” ou “terra das palmeiras” era assim

nomeada pelos povos indígenas tupi-guarani, que habitavam o litoral do que se entende hoje por Brasil. Ao longo da América do Sul outros povos indígenas também eram habitantes dessas terras antes da chegada dos Europeus. Eram povos que caminhavam no interior das localidades e ao longo do litoral sul-americano, estes eram seminômades que se deslocavam ao longo da costa se estabelecendo de tempos em tempos em diferentes regiões vivendo da caça, pesca, da coleta e agricultura.

Entre os estudos sobre a procedência dos grupos guarani, a Amazônia figura como provável lugar de origem. Segundo essa hipótese, o crescimento da população tupi nesse lugar durante os dois mil primeiros anos da sua história teria ocasionado a expansão do grupo, a diversificação da protolíngua tupi e a modificação da cultura em geral, chegando à incorporação da agricultura - plantação de tubérculos - e da cerâmica (CHAMORRO, 2008, p. 37).

Estes povos foram nossos primeiros habitantes e, ao longo do continente viviam também de maneira nômade e buscavam sua alimentação na caça e na coleta de frutos e raízes. Viviam em equilíbrio com a natureza,

retirando desta o que a mesma oferecia e apenas o que era necessário, à medida que determinado território já estava bastante utilizado, migravam para que a terra se reestabelecesse. Os diferentes grupos se relacionavam entre si e com a natureza de formas distintas, de acordo com seus próprios códigos e organizações; homens e mulheres tinham papéis diferentes dentro dos grupos e, não raramente estes grupos guerreavam entre si. A guerra era uma constante entre estes, o que trazia aos homens guerreiros certa honra.

Neste deslocar-se eles também buscavam, e ainda buscam, a Terra sem Males, que em cada grupo indígena é compreendido em suas especificidades, mas de maneira ampla apenas para uma compreensão genérica neste momento. É um lugar idílico onde a caça e a coleta são fartas e a prática da agricultura é possível, um espaço onde não existe sofrimento e para onde finalmente os grandes guerreiros são transportados após a morte. Era latente a crença de que este lugar mítico poderia ser encontrado ainda em vida, e tal ideal era estimulado pelos pajés, rezadores que sustentavam esses grupos espiritualmente até hoje. No entanto, vários teóricos consideram infundadas a associação entre “migração” e “terra sem males” como se uma fosse pressuposta da outra. Neste ínterim, entre os argumentos etnográficos está a constatação entre o povo Mbyá, de que a chegada a “Terra sem males” se dá “sem a necessidade da migração terrena”, e na

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44arqueologia, em que a migração é mais uma herança que ficou como imaginário dos grupos indígenas e menos um Habitus dos grupos Tupi-guarani. NOELLI (1999); CHAMORRO (2008); BROCHADO (1984); CADOGAN(1959).

Nas culturas indígenas na terra de Pindorama, as artes faziam parte da vida diária desde o âmbito espiritual até nos afazeres diários, que na prática não se separavam, eram expressões da vida social e cultural, manifestada no modo de viver, em seus cantos, danças, feitas essencialmente por artefatos naturais, o que demonstrava a importância do meio ambiente para esses povos. E a terra, como já apresentado por seu Jorge (rezador Kaiowá) desde os tempos imemoriáveis para os povos indígenas, é corpo. A terra como corpo murmura palavras. Chamorro (2008).

É na forma de conceber o mundo que se enraíza uma das grandes diferenças entre os indígenas e as culturas chamadas ocidentais. Nestas, a tendência é relacionar-se com a natureza seguindo as pautas das leis da física. Os seres humanos são, nestas culturas, uma força da natureza mas exterior a ela, portanto com capacidade para agir sobre ela como quiser. As sociedades indígenas, ao contrário, concedem à natureza características humanas e incluem-na num sistema social único. Assim, para os grupos indígenas aqui estudados, a terra tem as faculdades dos

humanos. É como um corpo murmurante, que se alarga e se estende. Ela vê, ouve, fala, sente e é enfeitada. É viva! (CHAMORRO, 2008, p.161).

E é nesta dinâmica viva que os nossos ancestrais indígenas, primeiros habitantes dessa terra entendiam-na, como corpo vivo, e sobre ele este povo originário vivia sua identidade de forma plena em seus saberes e dinâmicas culturais sem a interferência do europeu.

A questão da identidade brasileira, fundamental para uma compreensão correta de nosso papel no presente visando a construção do futuro, deve ser colocada a partir de sua verdadeira origem, ou seja, o reconhecimento da existência de uma alma ancestral do Brasil. E o que quer dizer isso? Quer dizer tudo aquilo que foi perdido no processo civilizatório que se instalou em nossa terra a partir do contato com o europeu.

A grande pergunta que devemos ousar fazer é: qual a qualidade distintiva de nossa consciência coletiva moderna se desde seu nascedouro, no século XVI, uma parte preciosíssima foi deixada de lado por ter sido negada? Que efeitos essa negação eventualmente tem sobre a estruturação de nosso modo de ser, pensar

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45e agir contemporâneos? (GAMBINI,2000, p 19).

Gambini nos traz para a consciência de que há um passado vasto e amplo dos povos originários que aqui habitavam e tinham seus moveres, suas sabedorias, suas complexidades e corporalidades instituídas, há muitos milhões de anos, antes da chegada dos portugueses na Bahia. E ele afirma que neste passado habita a alma do que realmente pôde vir a ser, este elo perdido identitário brasileiro. Fala-nos da condição histórica inicial ser sentida como uma grande perda, e mais do que isso uma dissociação. Assim sendo, afirma que nossa identidade e consciência foram construídas em um plano racional, faltando uma dimensão não da razão, que nos restitua esta base perdida.

Gambini (2000), afirma também que a alma indígena da terra de Pindorama ainda habita em nós, de um modo ou de outro e que,

“somos fruto de um processo que estruturou uma consciência, um modo de ser, pensar e agir, da qual somos portadores e representantes, queiramos ou não, e da qual um passado riquíssimo foi extirpado, dissociando-se de

um todo do qual, no entanto, deveria fazer parte integral e complementar. Isso nos leva a uma posição peculiar com relação ao nosso passado, porque este, ou é um nada ou é algo ignoto, uma vergonha ou um buraco negro, como dizem os astrônomos contemporâneos, um fenômeno estranho do qual é melhor afastar-se, porque suga energia, consciência, identidade... (GAMBINI,2000, p.25).

De certa forma, tal estranho fenômeno também se apresenta nos contextos das artes da cena, optar por se trabalhar com temas originários discutidos na cena, muitas vezes despende a nós, artistas-pesquisadores, muita energia, desgaste, tristezas, por ser esse terreno movediço, de memórias dolorosas e lacunas de esquecimento e genocídios imensos na constituição de nossa identidade, que é perpetuado com o colonialismo que Fanon (2008) tanto se refere sobre os “danados da terra”. A mistura étnico-racial que se sucede entre indígenas, negros e europeus promove uma tentativa de “embranquecimento” segundo Gambini (2000) e também uma sobreposição e um apagamento identitário de nossa história pregressa.

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1.2 Fabulações de (Re)invenções

Imagem 8 - Autora: Carla Ávila. Título: Descobrimentos?. Trabalho de técnica mista; bordado e sobre papel e mapa. 2017.Mapa referente a viagem de ida e volta de Cabral às Índias e com escala no Brasil, na época do descobrimento.

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47Fabulando sobre (re)invenções, o autor

Gambini (2000) aponta que uma das primeiras ideias que deveriam ser revistas é a farsa do descobrimento. Esta palavra, segundo ele, se insidiou e se infiltrou de tal forma em nossa estrutura mental, que criou-nos uma certa “aura mágica” fantasiosa e poética ao sermos “descobertos”, como se o nosso surgimento fosse consequência de um efeito extraordinário. Assim, quando estudamos as fundações de nossa identidade já começamos com essa história fantástica. De um feito extraordinário; na fuga de calmarias letais, navegadores heroicos acabaram chegando a terras nunca antes visitadas...

Tal descrição de Gambini (2000) é fascinante, porém, pode ser uma inverdade. Mas como de certa forma é um fato quase fundante, original nacional, mítico, nos faz parecer únicos e merecedores de uma história sem par. “Parecia que toda aquela terra, natureza e gente estavam postos ali a espera de serem descobertos, estáticos e plácidos”. E é essa a história mítica originária, fundadora do solo brasileiro que em pleno séc. XXI segue sendo ensinada, e apresentada em livros didáticos de nossas crianças, na maioria das escolas deste território, seguida de imagens de caravelas e desenhos de nossa costa e mata atlântica gloriosa.

Imagem 9 – Reprodução do quadro de Oscar Pereira da Silva, o original se encontra no Museu do estado de São Paulo, Primeiro desembarque de Pedro Alvares Cabral no Brasil.

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CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA7 8

7 Tomo a liberdade de colocar alguns fragmentos da carta de Pero Vaz de Caminha, endereçada ao Rei de Portugal, Dom Manuel I, datada de 01/03/1500, que integralmente é bastante extensa. Aqui os coloquei com recortes específicos que dialoguem com pontos de vista importantes para a construção dialética desta tese, por isso realizo grifos meus ao longo do texto com o intuito de explicitar as reflexões que se seguem.8 MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro.

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49Sabemos que muito se tem escrito sobre a

carta de Pero Vaz de Caminha, a mim não cabe aqui postulações históricas e geográficas, sociológicas, antropológicas porque estão longe de meu ínfimo conhecimento.

Mas a escolha desta leitura se dá para acessarmos as utopias da constituição dessa alma brasileira a que Gambini (2000) se refere ao povo brasileiro tão estudado por Darcy Ribeiro (1995) em relação às artes da cena a que esta pesquisa se debruça. Na carta, se desenham paisagens imemoriais desse momento histórico entre nossas culturas formadoras, no que tange a ideia do encontro das corporeidades e dos universos culturais, além das artes primitivas ou além mar, que se materializam no corpo e nos objetos dos personagens presentes na descrição do texto. Por isso a teimosia em inserir a carta nesta pesquisa, embora já amplamente divulgada na literatura primeira do Brasil recém-colonizado. No entanto, era necessário trazer a voz, os sotaques portugueses à tona, e as paisagens descritas pelos mesmos nos primeiros dez dias em terras brasilis.

Destacamos ainda que ao nos atentarmos sobre essa leitura, desejamos sensibilizar o leitor para os pensares envolvidos em nosso “mito de formação histórico” e não necessariamente o “mito fundador ontológico” pregresso a esse encontro com os europeus. Nos focamos na gênese do encontro entre europeus e indígenas habitantes dessas terras e no tom deste registro quase “dramatúrgico” textual dos portugueses, atravessado por imagens simbólicas das raízes coloniais na formação de nossa “alma brasileira” que há muito nos interessa. Para tanto, destaca-se

fragmentos dessa narrativa que contemplam os contextos do corpo, cultura, “exotismo/estereótipos”, identidades, relações de poder e artes manifestadas na maneira de existir de cada um dos povos que na carta se apresentam. Nas imagens presentes na contracapa do livro de Darcy Ribeiro (1995) observa-se a seguinte passagem:

Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos, em ouro e glórias. Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver. Este foi o encontro fatal que ali se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos, escalavrados de feridas de escorbuto, olhavam o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os Índios, esplêndidos de vigor e de beleza, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar.

Pena não termos uma carta da versão indígena sobre este encontro, Darcy Ribeiro, no texto acima, parece imaginar como teria sido e nos dá rastros do pensamento “selvagem”. Sabemos, no entanto, das tradições orais em contextos indígenas, e que

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50tal carta seria impossível em 1500, mas nos provoca o imaginário para pensarmos como seria esta réplica.

Voltando ao foco desta pesquisa, e as provocações imaginárias iniciais, falamos de um lugar de anunciação atual e de utopias que tem no cerne de seu processo de criação artístico nas artes da cena, a concepção das relações “entre mundos”, (que nos contextos artísticos poéticos seriam tarefa infinita pontuá-los), mas que neste trabalho específico, dentre muitos “mundos”, cartografamos o universo fundador de nosso povo brasileiro e as primevas relações de alteridade, dominação e genocídio, que seguem se reproduzindo no agora. Esses são temas limiares desta cartografia e por isso o recorte inicia sobre o pensamento dos corpos, como se apresentam naquele tempo e no agora. Porque o corpo, seus gestos e moveres são o fio condutor, a narrativa e a coluna de toda a sustentação deste processo.

Esta pesquisa lida diretamente com múltiplas diásporas, ou seja, com os deslocamentos livres ou forçosos de se chegar a um “outro”, que neste caso pode ser referente a nós mesmos, nossa biografia, as potências artísticas que habitam nossos corpos e ancestralidades, além da consciência de como acessá-las dentro de nossos universos e recursos das artes cênicas, assim como no “outro” que existe nas culturas múltiplas originárias de nossas brasilidades. Mas especificamente nesta pesquisa, escolhemos, dentro da multiplicidade formadora de nosso povo, o universo Negro e Indígena.

Retomando as imagens da carta e, para

pontuarmos mais claramente as imagens fundadoras do encontro de nosso lugar de anunciação, gostaríamos de falar do deslocamento de um (des)cobrimento do Brasil não como o conhecemos e fomos ensinados culturalmente a entender este encontro em nosso processo educacional, mas sim com uma visão de amplitude das perspectivas da ideia do “achamento” desta nova terra.

Os portugueses, ao avistarem a terra com montes altos e redondos, com uma vegetação densa, de pronto já a batizam, lhes dão nome. Nesse sentido lhe dão palavra, professam seu nome (lembrando a potência da palavra na cosmologia Kaiowá), os portugueses mal tocam seus pés em terra e já a proclamam “ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz” Caminha (1500).

Posteriormente, há o avistamento de corpos masculinos nus, a beleza de suas manualidades, artesanais, artes plumárias, pinturas corporais, e ao avistarem as mulheres indígenas nuas, são atribuídas a elas uma beleza das formas, o tom avermelhado das peles e o impacto da apresentação de seus cabelos, as visualidades expressas naqueles corpos chamavam a atenção e causam assombro devido a exótica beleza desconhecida para os portugueses, e este estranhamento os impactava profundamente no que tangia seus referenciais estéticos-culturais europeus.

Aliás, não era somente como os corpos se apresentavam esteticamente que lhes causava o espanto, mas, sobretudo, como os mesmos se moviam, sua naturalidade e inocência ao

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lidarem com sua nudez. Tais condições são tão evidenciadas na carta que nos deixam pistas do quão fascinados e surpresos os portugueses ficaram ao constatar expressos nos corpos indígenas os hábitos de higiene, das ausências de pelo no corpo todo, inclusive nas partes íntimas, demonstrando a eles (europeus) corpos saudáveis e belos.

Tal encontro e necessidade de falar do “achamento” na carta os faz buscar maneiras de identificação para a novidade que lhes eram aqueles corpos, e ao compararem com o repertório que tinham dos povos das Índias, da Guiné, Negros Africanos, em nada tinham como referenciá-los, diziam serem pardos, porém um pouco avermelhados.

Este espanto perante a novidade das criaturas com as quais os portugueses entram em contato é reforçado no relato da ida dos indígenas à presença de Pedro Álvares Cabral, à qual já se fez referência. O quadro é claramente teatral. Cabral está sentado, em pose, rodeado da gente da sua nau, e de alguns capitães. Quando os índios entram em silêncio, um deles, apontando para o colar de ouro que o capitão tem ao pescoço e para um castiçal de

prata, faz vários gestos, que os portugueses interpretam como indicativos de que em terra há ouro e prata. Nesse momento, mostram-lhes vários animais: perante um papagaio, a reação é positiva, mas não ligam a um carneiro, e muito menos a uma galinha, perante a qual manifestam espanto. Dão-lhes então de comer e de beber, com resultados negativos. Um deles repara nas contas de um rosário e no colar do capitão. Terminam deitando-se, completamente à vontade, e adormecem. [...] Para ambos os capitães, as populações com as quais entram em contacto são novas, desconhecidas, têm que ser identificadas. Nos dois casos, à primeira vista, parece ser notória a inexperiência dos portugueses, resultante da ausência de coordenadas em função das quais organizar o relacionamento humano com as populações locais. Mas é mais do que isso: estamos perante um típico exemplo do modo como a compreensão implícita condiciona o diálogo cultural (FONSECA, 2000, p.41).

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As teatralidades advindas deste “diálogo cultural” observadas na carta, também estão na base desse encontro, o episódio citado acima, a realização de uma primeira missa, celebrada em latim, em meio a portugueses e indígenas, todos misturados, a ausência nesse primeiro momento de um conflito com derramamento de sangue, mas em vez disto, a presença de instrumentos ritmados, cantos e danças. Em determinado momento da carta afirmam “[...]E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço”. Continuam “ [...]Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram

e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus”. Afirmam ainda da partilha do quanto comeram e beberam juntos [...]“Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber”.

Ironicamente, nesses primeiros dias do encontro entre “mundos” há cantos, danças, música, comida, celebração, tudo mediado só e somente pelas corporeidades, pelos gestos e moveres. Não há palavras comunicáveis, não há diálogos racionalizados, apenas e somente a presentificação do corpo.

Não nos parece emblemático esse encontro de alteridades desta “crônica do nascimento do Brasil”, conforme mencionou Silvio Castro (2000), ainda que nesta ínfima parte inicial do mito originário de fundação da cultura brasileira, se presentifiquem imagens e narrativas tão aproximadas de nossos fazeres cênicos corporais diários (rito, canto, dança, visualidades, expressividades, comidas e bebidas).

Para além dessa crônica referente ao “nascimento do Brasil” em devaneio, sabemos que a “tal descoberta” não se esgota aqui, e estes momentos descritos na carta em nada se sustentam posteriormente com o que se sucedeu, o processo civilizatório devastador se construiu e constrói em uma longa história de conquistas, opressões e genocídios que infelizmente duram até os dias de hoje.

Nessa nova terra ignota e “descoberta” que não era de ninguém que além do

Imagem 10 – Ilustração “Nau de Cabral”, mostrando a visita dos indígenas na Nau de Cabral, como descrita na carta de Caminha, Museu Aberto do Descobrimento Disponível em : http://www.portocidade.unisanta.br/fotos/descobrimento/g/naudecabral.jpg.

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53mais recebe a projeção do paraíso sobre si, constitui-se dessa forma a matriz de uma consciência para a qual é possível e desejável apropriar-se da cornucópia e sugar para sempre como eternos filhos que nunca cresceram, o leite de um seio inexaurível.[...]o desfalque e o ataque a natureza são os nossos sinais de batismo, como o é também a posse da mulher índia pelo branco invasor, de cujo acasalamento resulta, nas reveladoras palavras de Darcy Ribeiro, a protocélula do povo brasileiro: a criação de um híbrido que nunca saberá quem é, porque nem pai nem mãe lhe servirão de espelhos ou modelos de identidade.[...]Essa legitimação do ato de apropriar-se do bem não reconhecido como alheio, que a projeção do Paraíso instituiu na cabeça do invasor, faz com que a alma ancestral se transforme num objeto a ser apropriado ou dispensado (GAMBINI,2000, p. 22-23).

Esses pequenos grupos de europeus que aportam em nossas terras, ao verificarmos outros documentos, constatamos que em nada se manteve amigável, como indica a farsa narrada na dramatúrgica carta acima exposta. E a tal utopia, projeção do paraíso, nunca aconteceu.

Nada disso sucedeu. O

que aconteceu, e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introdução no seu mundo de um protagonista novo, o europeu. Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmente como uma infecção mortal sobre a população preexistente delibitando-a até a morte (RIBEIRO, 1995, p.30)

Suas estratégias de domínio, extrativismo das riquezas naturais e dizimação dos povos indígenas eram perversas e cruéis. E se davam ou pelo corpo ou pela alma, ou seja, ou os escravizavam e/ou os catequizavam, retirando deles toda a cosmologia e crenças identitárias de seu corpo.

Neste processo de colonização das Américas já se anunciavam o poderio do Norte contra o Sul, que transparece até nos mapas na visão cartográfica de cima para baixo. “A visão setentrional voltada para baixo, para o Sul, o fim do mundo. Aí está retratada a superioridade europeia, a postura de cima para baixo - como se a geografia necessariamente espelhasse poder”(GAMBINI,2000, p.48).

Em 1534, a coroa tenta impor algumas estruturas ao caos tropical ao criar o regime das Capitanias hereditárias.

A coroa portuguesa traçou as linhas horizontais a partir da costa, única realidade

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54tangível e povoada de índios, avançando para oeste rumo ao desconhecido, talvez até onde se encontrasse o Paraíso.[...] A terra imemorialmente possuída já estava assim mapeada à distância, com suas linhas de corte cirúrgico, mas os índios não sabiam de nada. Essas linhas invisíveis eram tão poderosas como a nova consciência que logo se apossaria deles (GAMBINI, 2000, p.48).

As mesmas linhas invisíveis poderosas que se apossariam da consciência deles, também se apossa da corporeidade indígena, impondo-lhes as invisibilidades de suas corporeidades, expressões, seus cantos e danças, enfim, o colonizador também pretendia capitanear com “cortes cirúrgicos” suas culturas e obter total controle sobre seus corpos e os modos de existir até nos dias de hoje.

Ao retornamos ao início desta reflexão apresentada por Gambini (2000), dada a fundação de nossos corpos nascedouros indígenas, vê-se que uma parte preciosa dessa cultura foi deixada de lado por ter sido negada, que efeitos esses “cortes cirúrgicos”, negações, tem sobre a estruturação de nosso modo de ser, pensar e agir no hoje? Racionalmente é impossível dizer, mas artisticamente podemos viver utopias da presença das ausências destas corpografias no imaginário de nossa alma ancestral. E é sobre isso que refletiremos nos capítulos a seguir.

Imagem 11 - Autora: Carla Ávila. Título: Cortes cirúrgicos de Pindorama. Trabalho de técnica mista; bordado e terra sobre papel e mapa. 2017. Mapa referente as capitanias Hereditárias e o Tratado de Tordesilhas.

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1576 Pero de Magalhães GandavoIn: Tratado da terra do Brasil

(...)A língua deste gentil toda pela costa é uma; carece de três letras-scilecet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

Estes índios andam nus, sem cobertura alguma, assim machos e fêmeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu.

(...)Finalmente estes índios são muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos(...) Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver(...)

(...) Estes índios vivem muito descansados, não tem cuidado de coisa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso não são muito gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer coisa, comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente.

(...)Desta maneira vivem todos esses índios sem mais terem outras fazendas entre si, nem granjearias em que se desvelem, nem tampouco estados nem opiniões de honra, nem pompas para que hajam mister; porque todos (como digo) são iguais em tudo tão conformes nas condições que ainda nesta parte vivem justamente e conforme a lei da natureza.

Gandavo, Pero Magalhães. Tratado da terra

do Brasil.[S.I.]: Fundação Biblioteca Nacional,

s.a(1576).

Disponível em: http://objdigital.bn.br/ Acervo_Digital/livros_eletronicos/tr

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1.3 Diásporas Negras

Imagem 12- Autora: Carla Ávila. Título:Veias marítimas da escravidão. Trabalho de técnica mista; bordado sobre papel e mapa. 2017. Mapa do fluxo dos mercadores de escravos entre Europa, África e as Américas.

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W

9 Música disponível na playlist do pencard volume 1.

YÁ YÁ MASSEMBA9 Compositor: Roberto Mendes/capinam

Que noite mais funda calungaNo porão de um navio negreiroQue viagem mais longa candongaOuvindo o batuque das ondasCompasso de um coração de pás-saroNo fundo do cativeiroÉ o semba do mundo calungaBatendo samba em meu peitoKawo Kabiecile KawoOkê arô okeQuem me pariu foi o ventre de um navioQuem me ouviu foi o vento no vazioDo ventre escuro de um porãoVou baixar o seu terreiroEpa raio, machado, trovãoEpa justiça de guerreiroÊ semba êSamba áo Batuque das ondasNas noites mais longasMe ensinou a cantarÊ semba êSamba á

Dor é o lugar mais fundoÉ o umbigo do mundoÉ o fundo do marÊ semba êSamba áNo balanço das ondasOkê aroMe ensinou a bater seu tamborÊ semba êSamba áNo escuro porão eu vi o clarãoDo giro do mundo

Que noite mais funda calungaNo porão de um navio negreiroQue viagem mais longa candongaOuvindo o batuque das ondasCompasso de um coração de pás-saroNo fundo do cativeiroÉ o semba do mundo calungaBatendo samba em meu peitoKawo Kabiecile KawoOkê arô okeQuem me pariu foi o ventre de um navio

Quem me ouviu foi o vento no vazioDo ventre escuro de um porãoVou baixar o seu terreiroEpa raio, machado, trovãoEpa justiça de guerreiroÊ semba ê ê samba áé o céu que cobriu nas noites de friominha solidãoÊ semba ê ê samba áé oceano sem, fim sem amor, sem irmãoê kaô quero ser seu tambor

Ê semba ê ê samba áeu faço a lua brilhar o esplendor e clarãoluar de luanda em meu coração

umbigo da corabrigo da dora primeira umbigada massemba yáyámassemba é o samba que dáos meu camaradas!

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Imagem 13 (A esquerda) – Autora: Carla Ávila. Título: Calunga Gbongbo “Mulher raiz fugida”. Trabalho de técnica mista; bordado, aquarela, terra e pigmentos sobre papel e fotografia, 2017.

Mais uma vez nossa história originária da mescla dos povos que compõem nossa terra em sua história colonial se dá primeiramente na costa, nos mares e embarcações na mistura de corpos e culturas, alteridades, invasões, violências, injustiças e opressões.

No contexto cultural negro, há muitos pesquisadores e publicações que legitimam e dão a possibilidade de representatividade das questões e problemáticas relacionadas às africanidades, por isso, optei neste tópico fazer apenas breves parágrafos de meus pensamentos em relação às vozes negras que falam do lugar de anunciação dos estudos africanos, afro-orientados e afro-brasileiros.

A África é o terceiro maior continente do planeta. Com cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados, cobrindo 20,3 % da área total da terra firme do planeta, com diversos povos, reinos, idiomas e culturas. E mais uma vez, ao ensinarem sobre a chegada dos povos negros às terras brasileiras, aprendemos na escola conteúdos que superficializam a dimensão do sofrimento e das injustiças cometidas contra os negros no Brasil durante os quase 350 anos de escravidão. E aos negros não são reconhecidos o tamanho de sua colaboração para a formação de nossa sociedade e cultura brasileira.

10 Porque o discurso do colonizador é sórdido e se esconde no inconsciente mais profundo, em pequenos atos e palavras acometendo até mesmo a nós, pesquisadores empenhados, e que partilham das causas negras e indígenas, atos falhos, frutos de uma educação fiel ao sistema do colonizador que ainda hoje nos escraviza. Isto se reflete em uma naturalização desses deslizes, a qual não comungamos de maneira nenhuma nesta pesquisa, mas que também não estamos totalmente livres de cometê-los.

As diásporas negras são tão, ou mais dolorosas que a história do constante genocídio indígena, não há como quantificar dores, e talvez por isso, para esta pesquisa seja um tema muito desafiador e complexo para pesquisar e escrever sem que cometamos erros inconscientes à sombra de nossa educação colonizada.10

O professor Kabengele Munanga afirma:

Temos, todas e todos, como pesquisadoras e pesquisadores, a consciência de nossos limites e nossas dúvidas sobre a compreensão das questões das sociedades. Neste sentido, nossos discursos são até certo ponto sempre provisórios e sujeitos à crítica e autocrítica, além de exigir uma aproximação interdisciplinar com as áreas afins. O historiador das questões do negro no Brasil não escapa a essa regra, da mesma maneira que os sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, educadores, entre outros, devem sempre recorrer à história, pois tudo é história e tudo tem uma história.

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60No entanto, não devemos fazer confusão entre a história do problema e o problema da história (MUNANGA, 2015, p. 30).

Por isso mesmo, não sendo pesquisadores deste campo específico de conhecimento, nos dispusemos a pontuar o lugar e a dimensão da importância da história da cultura negra e diásporas negras na formação das corporeidades e cultura brasileira, por meio desta visão destacando sim a história dos problemas, mas também o problema das histórias.

Tal perspectiva redimensiona esta pesquisa no que tange ao corpo e as culturas para o trabalho artístico que desenvolvemos, assim assumimos o campo interdisciplinar das humanidades e estudos culturais como matéria essencial para a compreensão desta tese.

Ponto bem esclarecido pelo autor a seguir:

[...] a história de um povo é o ponto de partida do processo de construção de sua identidade, além de outros constitutivos como a cultura, os comportamentos coletivos, a geografia dos corpos, a língua, a territorialidade etc. Não é por acaso que todas as ideologias de dominação tentaram falsificar e destruir as histórias dos povos que dominaram. A história da África na historiografia

colonial foi negada e quando foi contada o foi do ponto de vista do colonizador. Da mesma maneira, a história do negro no Brasil passou pela mesma estratégia de falsificação e de negação e quando foi contada o foi do ponto de vista do outro e de seus interesses. (MUNANGA, 2015, p.31).

Daí a problemática de narrar a trajetória das diásporas negras, da escravidão e violência extrema contra os corpos negros, e todo o processo longo e doloroso dos povos negros aqui expatriados - , que neste território fugiram, lutaram em Palmares e nos quilombos espalhados pelo Brasil. E, muitas vezes em parceria com brancos lutaram pelas ações abolicionistas. É uma história complexa e documentada de múltiplas perspectivas, sem necessariamente ter o ponto de vista dos negros oprimidos e que foram subjugados a tamanho sofrimento. A citação a seguir bem resume os fatos históricos e, em nossa perspectiva, de maneira acertiva, enfatizando a dimensão mais realista e irônica dos registros do conquistador ao contar sobre nossa constituição enquanto brasileiros:

[...] África surge na estrutura curricular num recorte historiográfico nada singular: os portugueses circunavegam o continente etíope em busca do Oriente. Mas os africanos vendem escravos e os portugueses viajam para comprá-los. O mundo atlântico faz o resto: capitalismo,

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61escravidão, tráfico de gente, Brasil. Os séculos coloniais, ontogênese de homens de fino trato, plasmariam, até que enfim, uma “doce escravatura”, terminada pela generosa mão de uma não menos encantadora e alva princesa, em maio de 1888. Aqui, o teor africanista sai da cena da história: fim da escravidão, proclame-se então o branqueamento. A República, velha ou nova, não tratará dos negros. Esta dramática questão étnica, que atravessa a educação republicana, tem um pouco da construção e da prática historiadora em torno do “mito da democracia racial no Brasil”. Cabe ressaltar que o mito das três raças (democracia racial) não está só no nosso panteão de mitologias políticas, pois ele se encontra enraizado com o mito da tropicologia (por natureza, o Brasil é um paraíso) e com o mito do populismo (a politicagem como destino manifesto). Os dois primeiros, cheios de positividades intrínsecas, e o último, carregado de uma maldição que não cessa, um passado que não passa (FLORES, 2006, p. 68).

Mais uma vez, temos aquele mesmo tom fundante do colonizador, que dá uma métrica original nacional, mítico, e sendo assim, nos

11 Ver: “Vidas negras”. Disponível em: https://nacoesunidas.org/vidasnegras/. Acesso em: 14 fev. 2018.

faz parecer únicos e merecedores novamente de uma história sem par.

Sabemos que não se trata disso, sabemos o quanto os corpos negros foram ridicularizados, menos prezados, torturados, subjugados, estuprados, explorados, abandonados e toda sorte de injustiças e violências foram acometidas a esse povo. Não muito diferente do que continua acontecendo com a juventude negra nas favelas e periferias deste país, os quais são diariamente mortos e silenciados pela grande mídia, que, muitas vezes, não enxerga a problemática que permeia o genocídio de grupos já tão marginalizados pela sociedade. Ao ponto de ser necessário criarem campanhas, como por exemplo a da ONU Organização das Nações Unidas11 “Vidas Negras” para que o genocídio de jovens negros e negras acabe. Assim, observa-se que a ferida aberta na história ainda sangra e continua velada. O genocídio da juventude negra no Brasil é só mais um exemplo das atrocidades que ocorrem cotidianamente na vida das comunidades negras, não basta termos jovens negros e negras brilhantes, trabalhadores e estudiosos, estes, na calada da noite provavelmente não serão respeitados como jovens brancos de classe média, mas sim reconhecidos e julgados apenas por sua aparência como um negro “possível marginal” que estava na hora e local errado, fazendo parte assim do rol dos dizimados pela sociedade a qual pertence. Neste contexto, vê-se que os mitos e arquétipos pejorativos construídos socialmente, ainda pairam sobre o povo negro como um estereótipo cruel e perverso, isto em diferentes contextos sociais

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62e acadêmicos:

[...] Hegel, considera que na África negra, a unidade entre Homem, Deus e Natureza ainda não foi rompida e que o Homem só é Homem quando sabe distinguir o Bem do Mal. Dessa forma, depreende que o espírito do africano é bem singular, pois pratica a magia no lugar da religião e da consciência da existência de um Ser Superior absoluto; o qual pratica o fetichismo e que coloca “forças” em quaisquer coisas que imaginam ter força sobre eles, tais como as árvores, pedras, figuras em madeiras... além de comer carne humana (MUNANGA, 2015, p.26).

E continua:

[...]Partindo desses diferentes traços que determinam o caráter dos negros, Hegel conclui que a África é um mundo histórico não desenvolvido, inteiramente preso ao espírito natural e por isso mesmo se encontra ainda no começo da história universal. E como se encontrava ainda no começo da história universal, isto é, da história geral da Humanidade a África foi rechaçada fora dela. No esquema da leitura da evolução da história feita por Hegel, a consciência

da temporalidade é um dado imediato da consciência. É por conta da dimensão temporal da existência humana que Hegel não nega expressamente as sociedades negras da África. Mas para ele, este nível é quase sem valor filosófico, porque a natureza orgânica não tem história (MUNANGA, 2015, p.26).

Logo, é nítido na perspectiva do professor Kabengele Munanga que aos negros não lhes cabe viver na história e ter consciência de viver na história, porque isto são duas coisas distintas e bem diferentes. Para ele, ao ter consciência de viver na história, Hegel atribui este privilégio próprio ao Homem que tem liberdade. Assim sendo, se apropria da razão em sua determinação temporal e espacial, historicizando um pensamento, cujo sentido só é decifrável pela razão. Semelhantemente, Fanon (2008) problematizava em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas” o caráter racial da epistemologia eurocêntrica, que constrói o negro como não-ser, desprovido de humanidade.

Felizmente trabalhos realizados por pesquisadores pioneiros rompem com o pensamento hegeliano.

[...] Leo Frobenius, Maurice Delafosse e Arturo Labriola ilustram a ruptura com o pensamento hegeliano. Na filosofia da história, as obras de Michel Foucault: Histoire de La Folie à l´âge Classique (1961) e Les mots et les choses (1966),

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63oferecem alguns exemplos dessa ruptura epistemológica. A obra História Geral da África reverteu também o esquema da filosofia hegeliana, provando que o privilégio do ser humano em ter consciência de viver na história não é reservado à única humanidade europeia. Esta obra desenterrou algo incontestável no passado negro-africano que foi escondido: a África como berço da humanidade, recolocando-a na origem da própria história da humanidade (MUNANGA, 2015, p.27).

Infelizmente esta naturalização ocorre em nosso país, os negros, aqui recém-chegados, também “não tinham história” e, mesmo depois de tantos anos após a finalização da escravatura, esses ideais seguem se materializando na cultura e nas práticas sociais, culturais e escolares colonizadas do Brasil.

[...] Apesar de a cultura negra ser a energia que dá ritmo à vida nacional, considerando ainda a dívida imensa do Brasil para com a África, não se observa uma equivalência desses pesos na vida e na política. Não é um exagero considerar um escândalo a ignorância em relação à África. (...) a grande maioria dos brasileiros considera o continente africano

12 Senzala: conjunto de alojamentos destinados aos escravizados no período da escravidão no Brasil.

como um bloco homogêneo: tudo igual e todos negros. Quando muito, separam a África do Norte, que é árabe, daquela situada abaixo do deserto do Saara, também chamada África Negra (SANTOS, 2001, p.247).

O mesmo pensamento é recorrente quando pensam na escravidão no Brasil e a vida nas senzalas12. É sabido que muitos povos negros de África, diferentes em suas etnias, culturas fundadoras, conviviam juntos no mesmo espaço, falando diferentes línguas. E de maneira geral, o povo brasileiro imagina os escravizados negros do Brasil, sequestrados de África, como se não tivessem memória, famílias, territórios próprios, desumanizando-os e desistoricizando suas vidas. O descaso com as culturas e as línguas também nos demonstra o movimento de apagamento das memórias e contribuições que os africanos aqui chegados nos deixaram.

[...]Mas aos cientistas pátrios, o interesse do estudo das línguas africanas faladas no Brasil se oferece sob aspectos diversos, entre os quais se salientam o do conhecimento científico dessas línguas, o da indução que elas permitem tirar para conhecimento das nações negras que as falavam, o da influência por elas exercida sobre a língua portuguesa falada no Brasil. O Dr. Sílvio Romero lamentava que no

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64Brasil se houvesse descurado completamente do estudo das línguas africanas faladas pelos escravos pretos. “Nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa como inúteis e iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos africanos que se falam em nossa senzala [...]O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e mau grado sua ignorância, um objeto de ciência. Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangues... vão morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benéfica extinção do tráfico. Apressem-se, porém, senão terão de perdê-lo de todo. E todavia, que manancial para o estudo do pensamento primitivo! Este mesmo anelo já foi feito quanto aos índios. É tempo de continuá-lo e repeti-lo quanto aos pretos” (RODRIGUES, 2010, p.23).

Esse “descuido”, desinteresse e ignorância pela cultura negra, se perpetuava em nossa sociedade até poucos anos atrás,

13 A Lei estabelece que as diretrizes e bases da educação nacional devem incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, incluindo o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

sem políticas públicas efetivas para que essas injustiças e toda a sorte de racismo se eternizasse em nosso meio. No entanto, mesmo com a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 200313 , a qual abriu espaços de discussões sobre a história da África, dos africanos e seus descendentes nas escolas brasileiras, ainda há muita ignorância e preconceitos velados dentro das próprias instituições de ensino, que deveriam ser o espaço de emancipação e transformação de nossa sociedade.

A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Parte-se do pressuposto de que os cursos de graduação em História teriam a obrigação de ofertar disciplinas, tópicos especiais e seminários referentes à História da África e do africanismo para que o espírito da lei se torne uma prática curricular. Para que isto seja levado adiante, as bases curriculares dos cursos de História devem ser pensadas com ênfase nas espacialidades e nas durações históricas e não exatamente nas linearidades cronológicas. Decerto que a institucionalidade do processo

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65não acaba com a lei na sala de aula, entretanto, contribui na construção da negritude e avança sobre os referenciais curriculares da etnicidade na história que se afirma no tempo presente como diversidade cultural. Trata-se de um programa em que o ensino da matriz cultural africana se constituiria numa barreira propedêutica contra o racismo à brasileira. Portanto, caberia à comunidade de historiadores uma maior contribuição para a superação de se pensar a África e o africanismo nos limites de um antropologismo tardio (FLORES, 2006, p.67-68).

Tal afirmação exemplifica a dimensão da reverberação do pensamento colonial sórdido, mesmo dentro de uma perspectiva afirmativa da cultura negra. E nos exorta a pensar a dimensão da cultura e da educação que se corporificam nas ações dentro da sociedade brasileira, transcendendo estereótipos e dicotomizando os saberes, como mais nobres ou menos nobres. Os saberes negros na roda dos preconceitos contra as culturas tendem a serem compreendidos pela massa da população como inferiores ou menos importantes, perspectivas reforçadas pelo ranço colonizador que nos persegue.

A cultura, seja na educação ou nas ciências sociais, é mais do que um conceito acadêmico. Ela diz respeito às vivências concretas

dos sujeitos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, às particularidades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social. Os homens e as mulheres, por meio da cultura, estipulam regras, convencionam valores e significações que possibilitam a comunicação dos indivíduos e dos grupos. Por meio da cultura eles podem se adaptar ao meio mas também o adaptam a si mesmos e, mais do que isso, podem transformá-lo (GOMES,2003, p.75-76).

Pode-se dizer que, ao compreendermos a dimensão da cultura de forma menos superficial, podemos atribuir a ela potências cartográficas do comportamento de um indivíduo em sua vida social, Rodrigues (1986), e por sua vez ao viver os moveres de uma cultura corporificada imprimimos esse agir no mundo.

Esse mapa é puramente convencional, e por isso não se confunde com o território. Ele é uma representação abstrata do território, submetida a uma lógica que permite decifrá-lo. Dessa forma, ao refletirmos sobre o que é viver em sociedade e produzir cultura, entenderemos a complexidade dessa situação: significa que vivemos sob a dominação de uma lógica simbólica e que as

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66pessoas se comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência. Podemos então inferir que a vida coletiva, como a vida psíquica dos indivíduos, faz-se de representações, ou seja, das figurações mentais de seus componentes. Os sistemas de representação são construídos historicamente; eles originam-se do relacionamento dos indivíduos e dos grupos sociais e, ao mesmo tempo, regulam esse relacionamento. É a seguinte afirmação de José Carlos Rodrigues que se torna imprescindível para o campo educacional. Segundo ele, “o fato é que, uma vez constituídos, os sistemas de representações e sua lógica são introjetados pela educação nos indivíduos, de forma a fixar as similitudes essenciais que a vida coletiva supõe, garantindo, dessa maneira, para o sistema social, uma certa homogeneidade” (RODRIGUES, 1986, p. 11).

Tal homogeneidade, assim como o capitalismo e a globalização, pode ser bastante perigosa para as manutenções das culturas e identidades dos povos tradicionais. Assim, reconhecer que a África e os afro-brasileiros tem história, é também um ato de resistência, porque na manutenção da cultura as relações sociais entre negros e brancos seguem reproduzindo os sistemas introjetados de representações do colonizador/colonizado,

garantindo as práticas racistas e excludentes em nossa sociedade.

Reconhecer que a África tem história é o ponto de partida para discutir a história da diáspora negra que na historiografia dos países beneficiados pelo tráfico negreiro foi também ora negada, ora distorcida, ora falsificada. Como é que os negros da diáspora poderiam ter uma história e uma identidade se o continente de onde foram oriundos não as tinham? A abolição da escravatura no Brasil e em outros países das chamadas Américas, foi primeiramente um ato jurídico pelo qual os próprios escravizados, com a solidariedade dos abolicionistas lutaram em defesa de sua liberdade e dignidade humanas. Por que o Brasil levou tanto tempo para resgatar a memória da escravidão? A abolição da escravatura no Brasil em 1888 (quarenta anos depois da França e 24 anos depois dos Estados Unidos), não foi uma ruptura, pela sua incapacidade em transformar as profundas desigualdades econômicas e sociais, pois não se organizou uma resposta ao racismo que se seguiu para manter o status quo. Nessa manutenção, a relação mestre/escravo se metamorfoseou na

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67relação branco/negro, ambas hierarquizadas (MUNANGA, 2015, p.28).

Tais relações são evidenciadas na sociedade por meio do poder econômico, divisão das classes sociais e, sobretudo, ao que se manifesta em relação ao corpo negro (ou indígena). Para Gomes (2003), “o corpo é uma entidade biológica, sendo o mais natural e o primeiro instrumento do homem. Por isso, ele encontra-se submetido a algumas imposições elementares da natureza, colocando a todos nós em uma mesma e única condição”, ou seja, a priori somos todos humanos dotados de um corpo que tem em sua base biológica os mesmos preceitos, mas o autor destaca que “[...] em contrapartida, é preciso considerar que o corpo é objeto de alteração exercida pela cultura, sendo por ela modelado e modificado. Temos então, expressos no corpo, os aspectos universais e as particularidades da cultura”.

Nesta pesquisa entendemos que os corpos inseridos em uma cultura tradicional viva, ativa em suas práticas, com povos falantes de suas línguas originárias e ou seus dialetos, que realizam ações comunitárias afirmativas, mobilizados pelas artes tradicionais em contextos contemporâneos, com seus cantos e danças, tem em seus corpos e moveres rastros manifestados de suas culturas originárias e, consequentemente, de suas ancestralidades. No entanto, muitas vezes ao tornar visível no agora e no seu corpo sua cultura silenciada, muitas vezes este indivíduo é alvo de preconceitos, injustiças e racismos.

[...] Em cada uma dessas

técnicas corporais está presente uma confluência de forças sociais, em relação às quais a base física do corpo não é senão a matéria sobre a qual essa convergência se aplica. Mauss percebe que o social se faz presente nas menores ações humanas. Nas diferentes culturas, as práticas que, a princípio, podem parecer insignificantes, traduzem mensagens, normalmente inconscientes, sobre o que é certo e o que é errado, o que é considerado “coisa dos homens” e o que é “coisa dos bichos”, o que é igual e o que é diferente, o que é respeitoso e o que é profanação, o que é nobre e o que é indigno, o que é considerado feio e o que é bonito, entre outros. O efeito conotativo de tais práticas vai muito além do que se poderia esperar do seu fraco poder denotativo (RODRIGUES, 1986, p. 96-97).

Também em outros casos, os estereótipos associados a cultura e ao corpo negro (ou indígena), os quais foram construídos socialmente frutos das desigualdades e do “status quo”, são preconceituosos e fazem do corpo alvos de chamamentos e de expressões que rotulam sua corporeidade e modo de ser no mundo de maneira cruel, racista e opressora.

[...]A memória da

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68escravidão no Brasil é ora esquecida ou negada, ora descrita negativamente como uma simples mercadoria ou uma força animal de trabalho sem habilidades cognitivas. A construção da memória da escravidão começa por justificativas ideológicas. Estas apresentam a escravidão como um gesto civilizador para integrar o africano na “civilização humana”. E para justificar essa missão era preciso atribuir ao africano “abstrato” as qualidades tais como a preguiça, libidinagem, vagabundagem, deslealdade etc. que apenas o chicote da escravidão poderia corrigir. Esse retrato depreciativo forjado contra os escravizados foi por força da pressão psicológica introjetado pelos sujeitos escravizados que acabaram por aceitá-lo como que fazendo parte de sua natureza humana negra (MUNANGA, 2015, p.29).

Diante disso, quanto a ideia de natureza humana negra e a condição da cor da pele negra e sua corporeidade, Fanon em seu livro14 discute profundamente essas ideias e suas vivências no Capítulo cinco - “A experiência vivida do negro” e ali explicita para o leitor não negro a dimensão das realidades enfrentadas em sua vida e carreira as quais só ele, na pele, emoções e no corpo negro pode nos ensinar

14 FANON, Franz. Pele Negra, máscaras Brancas. 1ª edição. EDUFBA, 2008.

da complexidade e sordidez do racismo e seus desdobramentos. Trazendo tais reflexões como um recorte para a tal consciência da sociedade brasileira sobre o corpo negro na trajetória histórica de nosso território e nas diásporas negras, percebemos que há ainda um longo processo de construção, porque é como se vivêssemos uma defasagem temporal em nossos discursos sobre as heranças negras e o racismo no Brasil.

A defasagem temporal obriga-nos a olhar num espelho que reflete uma imagem distorcida, o contorno do futuro é fugidio, nele a identidade laboriosamente construída nas entranhas do nacional é confrontada ao Outro, o alter ego inalcançável. Afinal, toda identidade é relacional, integra algo que contrasta com sua diferença: as outras nações. Por isso a temática da imitação do estrangeiro é uma constante no debate sobre cultura brasileira. Não qualquer estrangeiro, claro, mas aquele que em princípio teria realizado os ideais da civilização ocidental. Dirá Sílvio Romero: A nação brasileira não tem em rigor uma forma própria, uma individualidade característica, nem política, nem intelectual. Todas as nossas escolas (científicas e literárias), numa e noutra esfera, não tem feito mais em geral do que

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69glosar, em clave baixa, as ideias tomadas da Europa (ORTIZ, 2013, p.618).

Por fim, para enlaçar esse primeiro bloco de temas negros, porque ao longo do texto virão outros, recorro a Fanon (2008) novamente quando este conclui que a luta do negro contra o racismo e o colonialismo é pela conquista do reconhecimento de sua essência humana, e não de uma suposta essência negra: o branco deve reconhecer a humanidade do negro. Deve haver um reconhecimento recíproco entre os diferentes grupos humanos Pede-nos que o consideremos a partir de seu desejo, de sua existência humana, afastando para além da coisificação, exige ainda que levemos em consideração sua atividade negadora, à medida que ele luta pelo nascimento de um mundo humano, isto é, um mundo de reconhecimentos recíprocos.

Será que o que está posto nessa fragmentada linha temporal do agora é um mundo de possibilidade de um reconhecimento recíproco?

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Roberto SchwarzIn: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social

nos inícios do romance brasileiro(...) Sobre as parcelas de terra, erguidas por

escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em industrialização. Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se os motivos arquitetônicos greco-romanos – pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. – com perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local.

(...) Matéria solene, mas igualmente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República, escrita em 1890 pelo poeta decadente Medeiros de Albuquerque. Emoções progressistas a que faltava o natural: ”Nós nem cremos que escravos outrora/Tenha havido em tão grande país!” (outrora dois anos atrás, uma vez que a Abolição é de 88).

Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo

social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2000 (1977),pp.22-24

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Imagem 14- Autora: Jany Ávila. Título: Platôs de poder cirúrgicos. Trabalho de técnica mista; bordado sobre papel e cartografia. 2017. Mapa do capital contemporâneo.

2. SOBRE O CAOS UTÓPICO DO AGORA

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DENÚNCIAS INDÍGENAS

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DENÚNCIAS NEGRAS

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2.1 Na face do outro, eu. Na minha face, outro

15 Saberes do Norte refere-se a ideia cunhada pelo professor Dr. Boaventura de Sousa quando fala sobre a linha invisível que separa o mundo em países desenvolvidos, subdesenvolvidos e evidencia as dominações econômicas, políticas e culturais, traduzidas por apenas o lado da cultura hegemônica dominante que por seu poder financeiro cria uma hierarquização dos saberes. Para o sociólogo, pensamento abissal é uma característica da modernidade ocidental, que consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente diferentes. O lado de cá da linha, correspondendo ao Norte imperial, colonial e neocolonial, e o lado de lá da linha corresponde ao Sul colonizado, silenciado e oprimido. Essa linha é tão abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Este lado colonizado não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do Norte, operacionalizados na apropriação e na violência. O que caracteriza este pensamento abissal é a impossibilidade de copresença entre os dois lados referidos. No domínio do conhecimento, a ciência e o direito constituem as manifestações mais bem-sucedidas deste pensamento abissal na medida em que definiram, do ponto de vista científico, a distinção entre verdadeiro e falso e, do ponto de vista jurídico, a distinção entre legal e ilegal, impondo, internacionalmente, esta diferenciação através do direito internacional. (Palestra proferida por Boaventura de Sousa na Escola Nacional de Saúde Pública em São Paulo, dia 27/07/2010. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/22407. Acesso em: 03 out. 2007.

“Não basta não ser racista é preciso ser antirracista”

Angela Davis

Não é preciso refletirmos muito para compreender a dimensão da situação

dos povos indígenas e negros apresentados desde o começo da colonização em nosso continente, além de suas batalhas e lutas para conseguirem ascender e terem seus direitos à humanidade resguardados até aqui.

Sabemos, ao ler algumas notícias atuais, que a maioria dos povos afro-brasileiros e indígenas, de diferentes etnias, ainda continuam a enfrentar condições drásticas de desrespeito a seus direitos, exposição

profunda a injustiças sociais, violências das mais diversas e genocídios.

Não basta sabermos que todos esses corpos foram severamente violentados, física, emocional e, porque não espiritualmente, no período da colonização, mas ainda no agora, estas gerações destes corpos historicamente colonizados pelo chicote, o ferro, o fogo e o açoite seguem tendo que lidar com temas similares ao tempo de conquistas pelos saberes do Norte.15

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75 É latente termos em mente que os saberes

do Norte não podem, nem devem seguir oprimindo os saberes do Sul, como se nós não tivéssemos repertórios e conhecimentos próprios em nossos contextos.

[...] não se despreza a cosmologia moderna que moldou valores tais quais liberdade, igualdade, democracia ou os direitos humanos ou propõe um saber dos povos do sul contra os saberes produzidos no mundo do norte, mas exige, de um lado, a contextualização das categorias explicativas (e normativas) até então naturalizadas como absolutas, exibindo a necessidade de sua tradução para os novos cenários cujos agentes, portadores de outros repertórios, virão ressignificar seus conteúdos; de outro lado, a crítica pós-colonial verifica, na cosmovisão moderna hegemônica, suas contradições, camufladas e desastrosas. Percebe nesta as operações de exclusão e desumanização mediante a produção da diferença colonial. Sabe que o discurso da emancipação colou-se a práticas seculares de violenta dominação sobre os povos colonizados de maneira que a colonialidade – algo mais que a colonização política – não é ainda uma história passadista. Os neocolonialismos persistem na divisão internacional do

trabalho e dos bens do trabalho na era da globalização liberal. Aníbal Quijano (2010) permite-nos atentar ainda para a racialização das relações de poder e para a internalização da subalternidade nas estruturas subjetivas do colonizado cujos efeitos não poderiam ser mais objetivos, a exemplo das desigualdades de gênero, do disciplinamento dos corpos, da sujeição dos saberes, em pleno século 21, a uma lógica moderna hegemônica de classificação do mundo e das pessoas no mundo (MIGLIEVICH, 2014, p.68-69).

Essa lógica hegemônica de classificação do mundo e das pessoas é o mote que se segue, de muita dor e injustiça, ausência de perspectivas para os povos negros e indígenas brasileiros. O que mantém os grupos que se encontram nessa situação de descaso na sociedade brasileira com os quais trabalhamos, é seguir na fé, na luta e nas esperanças da união dos saberes e fazeres coletivos. O que não necessariamente é sinônimo de sucesso.

Falamos de um recorte vivido e específico de terras negras e vermelhas deste Brasil. Nesses locais encontramos e convivemos com diversas histórias de vidas espelhadas nos tempos remotos e das memórias coloniais de seus antepassados escravizados e indígenas, suas oralidades, narrativas de seus deslocamentos, diásporas, perdas e dores até a chegada naquele corpo que o narravam. Corpo este que tem em sua

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76identidade cultural16 a mesma sina de não esmorecer nas lutas diante de tanta violência em tempos de modernidade.

Importante destacar ainda que a maioria dos grupos que pesquisamos vivem em contextos interculturais, imersos em seus universos cosmológicos, rituais e culturais, mas que também estão expostos ao mundo do branco por meio dos serviços do capital, escolas que falam português como primeira língua (no caso indígena) e/ou escolas que pouco ou nada tocam nos conteúdos culturais das africanidades (no caso afro-brasileiro).

Sabemos que em tempos de pós-modernidade as identidades são móveis e fluidas, e que a identidade, a princípio, pode ser concebida “a partir de um sentimento de pertencimento de realidades” e um “conjunto de significados compartilhados” (BAUMAN, 2005; CANCLINI, 1995; HALL, 2001; KELLNER, 2001; SILVA, 2014). Assim, neste aspecto, a identidade pode ser entendida como uma formação cultural, uma escolha, um posicionamento e não necessariamente uma essência conectada a discussão de identidades culturais, nacionais e as que possam vir a ser construídas por sentidos que se transformam constantemente nas rotinas do sujeito (HALL, 1996).

Bourdieu classifica a identidade no sentido do lugar da sua origem, ou seja, como um caso de “conservação ou a transformação das leis de

16 “As identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da história” (HALL, 1996, p. 70).

formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objetivas e intencionais) da identidade social” (2003, p. 124). No entanto, as identidades sociais podem ser conflitantes, pois um sujeito pode possuir duas ou mais identidades, entrando em contradição devido às relações de poder na sociedade (FOUCAULT, 2000). Kathryn Woodward (2014), em um capítulo do livro “Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais”, fundamenta a ideia de que a identidade é dependente de outra identidade para sua existência. A identidade é relacional, ou seja, depende de algo exterior a ela para existir, de uma identidade que ela não é, logo, diferente da mesma (WOODWARD, 2014, p. 09). Para a autora, a identidade, portanto, é marcada pela diferença que pode ser mais importante que outras, de acordo com casos e/ou grupos particulares (MORESCO; RIBEIRO, 2015, p.172).

Essa diferenciação identitária marca as exclusões de um sujeito para outro, o que explicita os contextos em que se dão as questões étnico-raciais no Brasil, há uma realidade que se repete marcada pelas

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77diferenças e, sobretudo, pelas mentalidades colonizadas que insistem em repetir concepções eurocêntricas em cenário de América do Sul.

Assim, reproduzindo tais pensamentos, o racismo segue velado, e oprimindo os desvalidos, porém, é nos movimentos sociais e de afirmações raciais que se encontra vazão para que estes sejam vistos e legitimados, empoderando suas comunidades e grupos negros e indígenas para que estes sigam abrindo brechas, vãos onde se possa enraizar e fazer brotar um mundo menos desigual.

Boa parte deste desejo e força vem das tentativas de se decolonizar o pensamento, o gesto e nossos corpos aprisionados nas normatividades patriarcais do colonizador. E por que não também descolonizar os pensamentos nos contextos das artes?

Imaginemos uma escravidão que durou 350 anos no período colonial, mas que ainda apresenta seu julgo e rastro nos corpos negros e indígenas aos quais nos relacionamos dia a dia? Será que os reconhecemos ou inconscientemente os invisibilizamos? Será que nossas artes por vezes também não invisibilizam tais pensamentos?

O colonialismo17 está na modernidade e assume uma face abominável e execrável, está por todos os lados, na maneira com que nos privamos de reconhecer a condição do outro, na falta de empatia, sensibilidades,

17 O colonialismo se refere ao processo e aos aparatos de domínio político e militar que se exercem para garantir a exploração do trabalho e das riquezas das colônias em benefício do colonizador (GROSFOGUEL, 2008 b).

nas mídias golpistas, nas cotas para negros e indígenas que estão sendo ocupadas, muitas vezes, pelos brancos. Quantos negros ou indígenas vemos como presidentes, chefes de grandes empresas, médicos, juízes, professores universitários, gerentes de banco, protagonistas de filmes, artistas, estudantes universitários? Eles ainda são minoria em um país que apresenta, em sua maioria, um contingente negro bem maior que outros grupos étnicos. Aqueles poucos que conquistam lugares de protagonismo social, o fazem debaixo de muita opressão, dificuldades e racismos. Há sempre um movimento subterrâneo que insiste em oprimir e controlar as culturas e o corpo negro e indígena, os diminuindo e tentando despotencializá-los. E nas próprias produções artísticas tais questões são ainda pouco levantadas e problematizadas diante da dimensão dos tratamentos desiguais e preconceitos vividos no dia a dia por muitas pessoas, consideradas minorias.

Nessa perspectiva, há fronteiras raciais cotidianas a serem transpostas mais arduamente por esses povos, essas fronteiras são invisibilizadas e engendradas pela normatividade do capital e das modernidades. Para Santos (2001), a teoria da crítica moderna “concebe a sociedade como uma totalidade e como tal propõe uma alternativa total a sociedade que existe”. Esta não respeita as realidades multiculturais, porque em seus propósitos a ideia é ser sempre universalista e totalizante. Essa Visão de mundo, proposta

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78por Boaventura, conduz a duas distinções fundamentais: de um lado, conhecimento científico e senso comum e, de outro, natureza e pessoa humana (SANTOS, 2001, p. 12).

Assim, ao pensar um país como o nosso, com tamanha extensão territorial, tantas maneiras de se expressar as culturas advindas das mestiçagens à brasileira, tantas maneiras de viver em solo brasileiro, é preciso pensá-lo não como uma totalidade, um bloco de culturas compactadas, mas é preciso estar sensível a suas especificidades, identidades e regionalismos. Mas tampouco não se pode fazer pesquisa coisificando uma determinada tradição ou região, criando um “extrativismo” da cultura regional, sem que haja uma relação digna de alteridade, uma relação construída no processo de trocas e partilhas de conhecimento, uma postura por parte do pesquisador que dignifique e proporcione de fato uma visibilidade do sujeito e cultura em questão sem “coisificá-lo” como simples “objeto” de pesquisa.

Assim sendo, pesquisadores que desenvolvem suas pesquisas com essa perspectiva, como nós, precisam ter em mente o conhecimento como uma forma de emancipação, para que, nas palavras de Santos (2001) haja um conhecimento-reconhecimento, pautado na solidariedade, que abnegue-se do individualismo moderno, e que retome a ideia de aproximação entre sujeito e “objeto”, que busque um novo estatuto para as ciências, regulamento esse que parta do pressuposto que impossibilite a coisificação do outro enquanto meros objetos de estudo.

Da mesma maneira, esse reconhecimento do outro, enquanto outro, no encontro no campo das alteridades, nos ajuda a compreender os nossos próprios limites, e estas ações, segundo Santos (2001), são o fundamento primeiro de um ambiente democrático que respeita todas as formas de ver o mundo e se relacionar nele.

Destaca-se que assim, como indica o autor Boaventura de Souza (2001, p.27) que “Não há agentes históricos nem uma única forma de dominação.[...]Sendo múltiplas as faces de dominação, são múltiplas as resistências e os agentes que as protagonizam”. Logo, não há um único princípio de transformação social, mas muitos, assim como não há uma única forma de resistências, mas muitas, das quais encontramos em nossas andanças pelo Brasil. Assim, como há essas múltiplas possibilidades de transformação, há também muitas formas de abordagem e construção dessa relação de alteridade genuína entre pesquisador e seu campo.

Da mesma forma, este reconhecimento do outro, enquanto outro, nos possibilita um constante rever de nossas ações para com o campo de pesquisa, esta postura nos ajuda a perceber o quanto do pensamento colonial está engendrado em nossa cultura de formação social e acadêmica, e o quanto devemos estar constantemente alertas para não cometermos deslizes que atravessam nossos discursos enquanto colonizadores do pensamento dessas comunidades. É preciso se ter uma postura honesta, um olhar amoroso para com as comunidades e para conosco, para poder perceber por onde passam tais relações de dominações, que podem ser muito

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79sutis, mas que fazem tamanha diferença na qualidade da construção de uma alteridade mais justa. É preciso ter consciência do processo de agenciamento e desdobramentos para a pesquisa e para a comunidade. É preciso reconhecer que o outro, assim como você, é produtor de conhecimento e que estes carregam em si sabedorias que nós não dominamos e muitas vezes não compreendemos.

Para Santos, (2001, p. 30), [...] a primeira dessas implicações concentra-se na observação de que, como já mencionado, a obtenção da solidariedade ocorre através do reconhecimento do outro, na medida em que este outro também é produtor de conhecimento, fato que concede ao conhecimento-emancipação uma vocação multicultural, sendo assim a relação desta pesquisa se enraíza nesta dimensão, onde a solidariedade e o reconhecimento do outro é o princípio fundador, posteriormente é necessário que se reconheça o outro como um universo de sabedorias próprias nos

possibilitando uma relação de conhecimento-emancipação que é desenvolvida ao longo dos anos de parceria e produções referentes ao fazer artístico-acadêmico junto com as comunidades.

Para Santos, sua proposta de teoria crítica, pretende realizar um discurso multicultural que tem como foco reunir muitas formas de saberes distintas, muitas delas que foram destruídas pela ciência moderna em favor da ideia de um conhecimento universal. Para realização de tal proposta, segundo o autor, é necessário a participação de uma nova teoria de tradução, capaz de perceber as diferenças entre várias formas de produzir saberes. Rejeitando quer uma concepção utópica, quer uma concepção distópica da ciência moderna, Santos contrapõe uma concepção contra-hegemônica que a insere em constelações epistêmicas pluralistas, por si cunhadas de “ecologia de saberes” (SANTOS, 2006, p. 143), as quais discutiremos mais a frente na relação com esta pesquisa.

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2.2 “Devassa do desassossego ao sul ou... epistemologia da inquietação”18

18 Título e ideia criados e desenvolvidos por mim no trabalho final da disciplina de pesquisa qualitativa em artes cênicas, primeiro semestre de 2015, ECA-USP.

Ao escolhermos tais posturas diante da pesquisa é evidente que o tema decolonial

se materialize em nossas práticas nesta tese e, por isso, faz parte do conceito analítico dela, assumirmos os contextos territoriais e culturais distintos a que estivemos sujeitos, e também acolhermos as diversidades corporais e identitárias encontradas nessas relações e nas práticas do fazer artístico, que também tem em seu cerne uma postura não hierarquizada, não opressora, contra-hegemônica, que se dá na coletividade e na partilha, que constrói, discute, pensa e repensa as diferenças e nossas afinidades com as comunidades; bem como desestabiliza a lógica metodológica, tradicional acadêmica em prol dos saberes e subjetividades encontradas nestas comunidades ao sul da cena, ao sul dos saberes. Fabrini (2013) salienta que:

O uso do sul é antes metafórico do que geográfico, nos levando a pensar que existe um sul dentro do norte, e ainda “deixar a imagem sonhar”, como diria a poética do devaneio de Gaston Bachelard, e indagar qual seria o sul da cena ou qual seria o sul do corpo. Temos uma pista que Boaventura nos sugere: o

sul é antipatriarcal (portanto, resiste ao falocentrismo), anticolonial e antiimperialista (resiste às invasões predatórias). Que este sul alimenta-se das epistemologias feministas (que fizeram a crítica da produção da ciência e da filosofia, mostrando os preconceitos de gênero) e das novas epistemologias reveladas pelo pensamento pós-colonial. Enfim, para que possamos pensar o teatro em sua complexidade temos que assumir e gozar a existência da infinidade de saberes que foram excluídos dos saberes validados pelas ciências ou pela racionalidade filosófica – ou pelo pensamento ortopédico e a razão indolente, para usar os termos de Boaventura – gerados e dominantes no Norte (FABRINI, 2013, p.15-16).

O sul da cena e o sul dos saberes estão presentes nesta pesquisa nos fazeres sensíveis dos grupos de artistas a serem aqui apresentados, que estão dispostos a imergirem nestas realidades outras, respeitando nossas diferenças e as perspectivas históricas não

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81eurocêntricas das comunidades e, por sua vez, das artes por elas refletidas. Libertando-nos das práticas de inferiorização e desumanização em relação às normatividades.

[...] o projeto decolonial reconhece a dominação colonial nas margens/ fronteiras externas dos impérios (nas Américas, no sudeste da Ásia, no norte da África), bem como reconhece a dominação colonial nas margens/fronteiras internas dos impérios, por exemplo, negro e chicanos nos Estados Unidos, paquistaneses e indianos na Inglaterra, magrebinos na França, negros e indígenas no Brasil etc. Na década de 1960, essa diferença colonial nas fronteiras internas dos impérios foi conceituada por Pablo Gonzales Casanova de colonialismo interno em que, sobretudo, o eixo racial estabeleceu uma divisão de privilégios, de experiências e de

19 (BERNARDINO; GROSFOGUEL, 2017, p. 20). 20 Epistemologias do Sul, [...] partem do pressuposto de que é necessário ampliar simbolicamente as ideias que emergem dos contextos subalternizados [...] criando para tanto procedimentos de criação e validação do conhecimento a partir da perspectiva daqueles que sofreram sistematicamente as destruições e exclusões causadas por colonialismo, capitalismo e sexismo, sendo necessário empreender o que chama de sociologia das ausências: tornar visível o que foi produzido como invisível ou como não existências. Considerando que as epistemologias do norte criam distâncias entre o conhecimento legitimado e os outros considerados menores ou da esfera da subjetividade, o autor afirma que “a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófico ocidental conhece e considera importante[...], e que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo” (ibid. p. 778-779) [...] O conceito das epistemologias do Sul coloca no centro da discussão a hegemonia do projeto moderno de matriz eurocêntrica apontando os efeitos das persistências coloniais, patriarcais e capitalistas e da necessidade de

oportunidades entre negros e brancos, populações indígenas e brancos, tal como exemplifica a história do Brasil [...].19

Ao escolhermos estar nas “margens”, fora dos grandes eixos da indústria cultural do Brasil, afastados de referenciais hegemônicos e discursos de produtividade acadêmica nas áreas de artes, para além das performances cotidianas, nos enraizamos nas fronteiras ao “sul da cena e ao sul dos saberes” do Brasil, no calor do cerrado, nos assentamentos e acampamentos indígenas, nos aldeamentos novos e antigos, nas montanhas de Minas Gerais, nos quilombos escondidos entre as serras e montanhas, nas nascentes de minas, “brenhas” da cultura negra. E, sobretudo, levamos em consideração a existência e o desfrute da infinidade de saberes vindos desses grupos desvalidos de nossa sociedade brasileira.

Buscamos a referência das Epistemologias do Sul20 e a consciência decolonial em nossos fazeres, assumimos alteridades, representatividades, interculturalidades,

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82transculturalidades. Assumimos a insurjeição, local de enunciação periférica, popular, pobre socialmente falando, mas infinitamente rico em vidas, humanidades. Por meio de multiplicidades de respostas crítico-criativas, interdisciplinares, pretendemos tecer transformações sensíveis em territórios áridos diante da opressão do colonizador. Para Maldonado e Torres (2007) “Enquanto a consciência moderna encarrega-se de afiançar as bases das linhas seculares e ontológicas moderno-coloniais, a consciência decolonial busca decolonizar, des-segregar e des-generar o poder, o ser e o saber”.

Encena-se, no projeto decolonial, um diálogo entre povos colonizados ou que vivenciam a colonialidade21. A transmodernidade é o projeto utópico que Enrique Dussel propõe para ir além da versão eurocêntrica da modernidade. Em vez de uma única modernidade, centrada na Europa e imposta ao resto do mundo como um desenho global, Dussel propõe que se enfrente a modernidade eurocentrada através de uma multiplicidade de respostas

voltarmos a percepção para aquilo que as sociedades do Sul promovem enquanto visões arternativas para os dilemas do séc XXI (SILVA, 2017).21 [...] A colonialidade é um fenômeno histórico muito mais complexo que se estende até nosso presente, e que se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas que possibilitam a re-produção (sic) de relações de dominação; este padrão de poder não só garante a exploração pelo capital de alguns seres humanos por outros em escala mundial, como também a subalternização e obliteração dos conhecimentos, experiências e formas de vida daquelas pessoas que são assim dominadas e exploradas (QUIJANO, 1989).

críticas decoloniais que partam do sul global, escutados não apenas aqueles que se encontram geograficamente ao Sul, mas aqueles povos, as culturas e os lugares epistêmicos que foram subalternizados pelo projeto eurocêntrico da modernidade (Grosfoguel,2009, p. 408). Esse projeto oferece a possibilidade de constituir uma rede planetária em favor da justiça, da igualdade e da diversidade epistêmica.[...]Dentro desse projeto utópico, deparamo-nos não mais com o uni-versalismo, senão com o pluri-versalismo como convite à produção de um saber decolonial rigoroso, não provinciano (GROSFOGUEL, 2012).

Acreditamos que esse referencial de Dussel nos provoca a pensar nossas posturas como criadores de artes da cena no Brasil. Nos faz questionar o que se tem produzido no Teatro, na Dança e nas performances artísticas do Brasil, mesmo dentro da academia.

O teatro, domesticado pela academia depois de haver

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83sido fagocitado por ela, não estará perdendo sua dimensão verdadeiramente artística, poética e transformadora, a dimensão polivalente e irradiadora das imagens, das metáforas? Não estaria perdendo sua dupla natureza de matéria e imaginação? (FABRINI, 2013, p.14).

Essa ausência de sua dupla natureza de matéria e imaginação, além da domesticação a que estamos submetidos, nos ameaça enquanto artistas que refletem seu contexto e suas ações no mundo, por isso constantemente há questionamentos nesta investigação , com análises e reflexões, além de interrogações na própria pesquisa, buscando dialogar constantemente com as perspectivas dos discursos decoloniais na e para a cena.

A seguir, apresento algumas destas questões que são a força motriz de nossos pensares, para a construção desta pesquisa:

• Quanto e como nós artistas em contextos da modernidade temos discutido e refletido em cena as questões sociais, os embates raciais e de classes dos territórios e regionalidades brasileiras?

• Como de fato são construídos e debatidos tais temas?

• Com que técnicas e com quais dramaturgias? Vindas de onde? Trabalhadas nos corpos dos intérpretes sobre quais perspectivas e “treinamentos”?

• Os Corpos, Ancestralidades e os contextos culturais dos intérpretes são levados em consideração na construção da obra artística?

• Qual tom se utiliza em nossos fazeres cotidianos no campo das artes em relação às comunidades?

• Estas comunidades tem oportunidade genuína de troca, de partilha com o processo de criação? Ou estas são só a matéria-prima a ser estratificada?

• Quais os princípios de solidariedade que são construídos no processo de criação junto às comunidades de fato?

• A recepção do público e seus contextos culturais também são levados em conta no processo de criação e na proposta final a serem apresentadas?

• O que move tais utopias, por quê?

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84Como é possível observar, são muitos

os questionamentos que tem nos movido em busca desta proposta de criação com matrizes/motrizes brasileiras afro-ameríndias e a perspectiva dos discursos decoloniais para a cena. Nos próximos volumes serão apresentadas as narrativas que foram nossas tentativas e buscas por respostas à algumas dessas ideias.

Sabemos, de antemão, que não há respostas certas, nem tampouco uma metodologia hermética, porque a nosso ver o conhecimento está em constante transformação e movimento. Para Santos (2008) o próprio conhecimento em si está em falência e por isso não há como haver receitas prontas, sobretudo quando se trabalha nessa dimensão democrática do outro e de uma “ecologia dos saberes”22, somado a isto destacamos que o teatro, a dança e a performance, de certa forma, acompanham tais ideais e por isso buscamos em nossa arte um ato utópico de resistência e do desejo de mudanças de paradigmas ampliando as visões de mundo e, consequentemente, o respeito e a dignidade entre mundos, sobretudo na cena.

Boaventura nos mostra a falência do conhecimento em não poder resolver os grandes problemas de justiça social global (e aqui é fundamental que pensemos no teatro como

22 A ecologia de saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clama sê-lo são as menos neutras; 2) a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais (SANTOS, 2006, p.154).

inseparável da sociedade) sem que haja uma justiça cognitiva global. Em outras palavras, para o sociólogo o problema contemporâneo não é de ordem social ou política, mas cultural e epistemológico – e isso diz respeito diretamente ao teatro e, especialmente, ao teatro na academia. Afirma Boaventura que não pode haver justiça social global sem uma justiça epistemológica global. O sociólogo propõe, a partir da diversidade do mundo, “um pluralismo epistemológico que reconheça a existência de múltiplas visões que contribuam para o alargamento dos horizontes da mundaneidade, de experiências e práticas sociais e políticas alternativas” (FABRINI, 2013, p.14).

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2.3 Desassossegos móveis da pesquisa

Num mundo caótico, em crise, e racional em que vivemos, esta tese se volta

radicalmente para uma narrativa que tem seu foco nas questões simbólicas, poéticas e inconscientes, conscientes do sistema sociocultural brasileiro e seus povos formadores, busca dizer não ditos que a teoria em pesquisa insiste em desejar enunciar. A proposição desta investigação é de atravessarmos diversos portais metafóricos e poéticos, por isso a necessidade de cartografarmos brevemente nossa formação originária brasileira e introduzirmos a ideia de “alma brasileira”, Gambini (2000); e seus desdobramentos no agora, como um primeiro portal platô de sustentação para as discussões a seguir. A pesquisa busca articular tais indagações ao conhecimento refletido durante os treze anos de trabalho, e as relações de alteridade com as comunidades parceiras dos projetos de pesquisa, extensão e arte apresentados aqui. Tal proposta decolonial busca na prática da própria escritura o exercitar da investigação qualitativa, a quebra de paradigmas epistemológicos em busca de inquietações que transcendam o que já está posto nos contextos da cultura, sociedade e das artes.

Logo, o estímulo para este doutorado nasce das compreensões decoloniais ao sul da cena e da legitimação no meio acadêmico e artístico das culturas ditas populares ou originárias dos saberes locais e do processo de construção identitária, de alteridade advindo destes, para que, posteriormente,

os mesmos tornem-se matrizes/motrizes inspiradoras para a criação de um processo cênico contemporâneo, que reflita não só a construção artística de referenciais culturais brasileiros, mas sobretudo o seu entorno, ou seja, as suas relações com os povos afrodescententes da Zona da Mata Mineira e os Indígenas Kaiowá do Mato Grosso do Sul, somando-se as suas respectivas culturas, seus fazeres, seus pensares e, como os mesmos se observaram refletidos em um espetáculo e atuando no mesmo.

A proposta dos Grupos GENGIBRE-MG e MANDI´O-MS é que as comunidades Afros Ganga Zumba, de Ponte Nova, MG e os grupos indígenas Kaiowá, do MS, sempre participem opinando, sugerindo e afirmando-se por meio das montagens cênicas, utilizando-as não só como linguagem artística, mas também, como ferramenta para um discurso crítico-reflexivo de suas vivências e relações interculturais, tanto com os artistas-pesquisadores como com a sociedade contemporânea a que estão inseridos.

Esta pesquisa evoca os campos híbridos fronteiriços e étnico-raciais da brasilidade no campo das artes cênicas, assume um lugar sem delimitar fronteiras entre Dança, Teatro e performance, borrando as margens entre linguagens num processo de compreensões do existir e fazer em arte. Esta perspectiva é recorrente no trabalho, tanto no que tange ao fazer em Dança, Teatro e atuações performáticas, quanto no

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86campo entre comunidades afro-ameríndias e os bailarinos-atores e vice-versa, ou seja, a proposta é descolada do entendimento clássico e tradicional do que se afirma e compreende por limite no campo dessas linguagens e da etnografia tradicional. O estudo também considera, portanto, esta rede intercultural e ecologia de saberes23, onde as interculturalidades, transculturalidades e o corpo acompanhado de seu existir, assumem papel de alteridade protagonistas no processo de criação do estado da arte deste trabalho.

Tal rede constrói uma malha sitêmica da vida que momentaneamente se sintetiza na cena contemporânea, com os corpos dos atores-bailarinos, comunidades afro-ameríndias abordadas e o público. Fazendo com que esse percurso criativo em rede se expanda por meio da fruição, apreciação, diálogos entre elenco e o público, das questões levantadas na cena, propondo uma compreensão e reflexão dos temas ao final de cada apresentação.

É importante destacar que a presente pesquisa é um relato, registro e sistematização

23 Quando falo de ecologia dos saberes, entendo-a como ecologia das práticas dos saberes. [...] O meu ponto de partida é que a modernidade ocidental se constituiu na base de duas epistemologias que tenho designado por conhecimento-regulação e conhecimento-emancipação (2000, p.78-81) [...] enquanto no conhecimento- regulação a ignorância é concebida como caos e o saber como ordem; no conhecimento-emancipação a ignorância é concebida como colonialismo e o saber como solidariedade. Na medida em que a modernidade ocidental, enquanto paradigma sociocultural, reduziu as possibilidades de emancipação às compatíveis como capitalismo, o conhecimento-regulação adquiriu uma total preponderância sobre o conhecimento-emancipação e neutralizou-o convertendo a solidariedade numa forma de caos e , portanto, de ignorância e o colonialismo numa forma de saber, e portanto de ordem. Neste processo, a ciência moderna, inicialmente um tipo de conhecimento entre outros, assumiu uma preponderância total, reclamando para si o monopólio do conhecimento válido e rigoroso, o que ocorreu com a consagração da epistemologia positivista e a descredibilização de todas as epistemologias alternativas. (SANTOS, 2006, p. 154-155).

de treze anos de pesquisa e criação, além da somatória de diversas vivências nesses contextos afro-ameríndios brasileiros na Universidade Federal de Viçosa UFV (MG) e Universidade Federal da Grande Dourados UFGD (MS).

Em Minas Gerais, tivemos atuação mais intensa nos anos de 2003-2009, com povos afro-brasileiros vinculados ao curso de graduação em Dança-UFV. E de 2010 em diante atuamos mais intensamente com populações indígenas associados ao curso de Graduação em Artes Cênicas - Teatro – UFGD.

Para elaboração, implementação e sistematização de tal proposta, orientei e coordenei dois grupos de pesquisa, o primeiro na UFV – MG, no curso superior de Dança, chamado Grupo Interdisciplinar sobre cultura popular GENGIBRE, e o segundo na UFGD-MS, no curso Superior de Teatro, denominado Grupo Interdisciplinar sobre cultura popular ameríndia MANDI´O, ainda em atividade. O Grupo GENGIBRE na atualidade tem seus desdobramentos rizomáticos em funcionamento no Estado de

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87Kaiowá e atores-dançarinos de Dourados (MS). Logo, é no seu fazer cotidiano uma pesquisa de caráter decolonial e transdisciplinar, em que cada integrante seja artista-acadêmico, ou, que cada integrante das comunidades estejam juntos, ativos em seus desassossegos e nas construções de suas epistemologias de inquietações. E é neste sentido que Torres argumenta que:

O caráter fronteiriço do pensamento decolonial também aponta para seu caráter transdisciplinar: o projeto e a atitude decolonizadora leva o sujeito cognoscente que emerge da zona do não ser a alimentar-se do ativismo social, da criação artística e do conhecimento (em algum caso também da espiritualidade) em vias de revelar, desmantelar e superar a linha ontológica moderno-

colonial. O encontro de fronteiras entre o conhecimento que se impõe a partir da zona do ser com a experiência e o conhecimento que se dão na zona do não ser e simultaneamente o encontro entre as distintas esferas do pensamento, da ação e da criação, onde se encontra o sujeito em processo de decolonização, desafiam a rigidez das disciplinas e seus métodos. O que esta atividade de transgressão de fronteiras exige é uma consciência diferencial (diferential consciousness), como um manejo versátil e criativo de tecnologias de emancipação em vias de decolonização [...] (SANDOVAL, 2000, apud TORRES, 2016, p.94).

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88É também a partir de

uma consciência decolonial, comprometida com a decolonização como projeto e orientada pela atitude decolonial, que as disciplinas e seus métodos aparecem como tecnologias a serem desmanteladas, criticadas e usadas em um projeto de maior envergadura do que a simples acumulação do conhecimento e a consolidação da linha secular moderna. Isto tem prioridade epistêmica, ética e política sobre as artes liberais, sua atitude e seu projeto (TORRES, 2016, p.95).

Assim, pretende-se olhar para essas produções em Dança, Teatro e performances mestiças e borradas em suas fronteiras com o foco nas relações, nos planos simbólicos e arquetípicos por meio do percurso criativo dessas montagens; na voz dos povos afro-ameríndios brasileiros, no processo de criação desses grupos de artistas e nas montagens cênicas advindas destes como instrumentos de uma Dança, Teatro e performances mestiças que pretendem se expandir para além da cena e para além das artes.

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CARTOGRAFIAS UTÓPICAS DESDE DENTRO

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Imagem 15- Autora: Carla Ávila. Título: “Ovo Branco em fundo negro”. Trabalho de técnica mista; bordado sobre papel, 2017.

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3. ENTRE CÉU E TERRA

24 No texto optei pela expressão “Terra/ terra”, Terra com consoante maiúscula referindo-me a ideia de planeta, nossa casa mundo e “terra” com consoante minúscula associada a ideia de território chão. No texto virão sempre juntas para explicitar a potência e as duas dimensões apresentadas.25 Segundo a pesquisadora Andréia Silva (2015, p.375) “Devido à complexidade histórico-cultural da noção de Pachamama, e sua representação do tudo-todo é necessário que sua terminologia seja compreendida na sua totalidade, caso contrário, haverá sempre perda de significação acompanhada de certo reducionismo.” Consciente desta ideia no presente texto estabelecemos o recorte de que ao nos referirmos a Pachamama estamos nos referindo a ideia do antropólogo Angel Yujra (2009), quando apresenta uma definição um pouco mais direta, ele explica que a palavra Pachamama vem de dois vocábulos aymaras e quéchuas. “Pacha com seu significado de tempo, espaço e representação do todo, e Mama como a representação da categoria superior entre as mulheres, o mais alto cargo espiritual, político e de autoridade dentro de uma cultura ou confederação de nações”. Kaijser (2014) amplia essa definição, sem fugir dos elementos comuns, como espaço, tempo, mulheres, situcionalidade, entre outros. Assim, espaço e tempo abrangem “o que é, tudo que existe no universo, realidade, [...]. Mama pode significar mãe, mas é também uma forma cortês de se dirigir às mulheres,[...] Também pode se referir a uma fonte de fertilidade” a autora entende ainda que Pachamama “representa uma noção holística do mundo, abrangendo

O presente trabalho tem os pés arraigados no chão, enraizado na “Terra” planeta e

na “terra” espaço geográfico e de vida, e neste lugar tem a base central de suas potências. Quando me refiro a “Terra/terra”24, o discurso aqui aponta para perspectivas diversas: as características da terra enquanto território, local de habitação, nacionalidade, o lugar de onde nascemos, de onde viemos de onde estamos. Refiro-me a qualidade do solo, local de nutrientes base para vida, lugar

onde habitam raízes, árvores, alimentos e biodiversidades, onde é a casa dos lençóis freáticos, águas que nutrem a vida em todo seu ciclo. Mas me refiro também a casa mundo e, sobretudo, as imagens recorrentes a nossa nave planeta Terra, que os povos indígenas e negros verbalizam ao referenciarem suas terras de origem como terra Mãe. Ao que na perspectiva do que se refere a “Terra” os povos indígenas da América Latina chamam de Pachamama25 - Mãe Terra, arquétipo da

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92grande mãe e no que se refere a “terra” nas diásporas negras a Mama África26, grande terra, mãe originária, mães ancestrais.

Neste sentido, utilizo esta imagem não somente como figura literária ou expressiva da condição “Terra/terra”, mas sim como metáfora de um discurso poético deste conceito, esta imagem-metáfora27 rechaça a ideia de coisificação do mundo natural, associando-o a ideia de recurso, ou objeto a ser aproveitado, explorado, mas sim a imagem de um organismo vivo, imagem da mãe que traz vida ao mundo, cria, ampara, alimenta, a mãe natureza, a qual devemos respeito e que por meio deste arquétipo propõem trazer à tona as qualidades poéticas de “criação de novos

todos os seres vivos, incluindo os humanos, e denota “a terra como fundação para a vida”. Nas definições das sociedades tradicionais Incas, a Pachamama também carregava em si carcterísticas do tipo Andrógeno, no entanto o pesquisador Husain (2001) afirma; “los aspectos benignos de la Pachamama Suelen combinar-se com la Virgem Maria y com frecuencya la denominan Santa Tierra, si bien reconocen que es necessário rendirle el mismo culto a su faceta desctrutiva. As vezes és canibal característica que comparte com outros espiritus femininos pre-colombinos, [...]. Este rasgo de la diosa tambien es corriente em la zona amazônica.”26 Santos Donizete (2012, p.68) diz que “A ideia de uma África configurada como mãe e terra foi um resgate promovido pelo Pan-africanismo, no final do século XIX e início do século XX, das tradições culturais pré-coloniais africanas, em um momento histórico em que o negro voltava-se para a descoberta de sua origem. Esse resgate promovido pelo Pan-africanismo foi consolidado pelos movimentos culturais a que ele deu origem (Renascimento Negro norte-americano, Indigenismo haitiano, Negrismo cubano e Negritude francófona), transformando a Mãe-África em uma das principais recorrências temáticas presentes nas literaturas africanas e afro-americanas27 Ao longo da tese trabalharemos com inúmeras imagens-metáforas (palavras, poesias, cartas, ilustrações, fotos, colagens, desenhos, aquarelas, linhas pontos, diagramas entre outros) registros das intuições, reflexões e do processo de criação. Estas imagens metáforas pretendem elucidar melhor a poética e os sentidos teóricos e estéticos que estão por trás (ou a frente) das ideias aqui desenvolvidas e carregam em si potências da narrativa visual tão relevantes quanto a narrativas textuais.28 Etimologicamente a palavra cosmogonia vem do grego cosmos, que significa mundo, e gonia, que quer dizer geração, nascimento. O Dicionário Houaiss (2001) apresenta três definições para o termo, a saber: 1. princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupa em explicar a origem, o princípio do universo; 2. conjunto de teorias que propõe uma explicação para o aparecimento e formação do sistema solar; 3. qualquer fundamento teórico que busque explicar a formação das galáxias a partir de um princípio primordial

mundos” para se “fazer perceber”, inspiradas no símbolo de uma Mãe que é Terra e vida.

Esta imagem da “Terra/terra” ao qual este projeto foi semeado tem suas compreensões (apreendidas junto às comunidades negras e indígenas) de que esta mãe não pode ser vendida nem explorada, não se estratifica uma mãe, a ela se respeita, pois é por meio de seu corpo que se alimenta os inícios da vida e se sustentam a perpetuação destas vidas. E é também nela que se erguem nossas corporeidades e nutrimos nossos corpos e culturas advindas destes.

Na perspectiva cosmogônica28 dos povos indígenas originários da América Latina,

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93também estamos afirmando que toda vida da natureza, suas árvores, rios, animais e seres são nossos irmãos porque viemos de uma mesma mãe originária - Pachamama. Assim, esse Corpus da Mãe natureza e os nossos corpos estão profundamente conectados, semelhantemente a ideia de como os Kaiowá entendem que “a terra é o corpo do índio”. Leonardo Boff (2002, p100), afirma: “Somos seres humanos nascidos do húmus, somos a própria terra, os seres humanos são uma única realidade complexa, não vivemos sobre a terra, somos a própria terra, aquela que chegou a sentir, a pensar, a amar, e hoje está alarmada”.

Ao nos referirmos a terra como a imagem arquetípica da grande mãe- Pachamama e Mama África, a qual este trabalho está profundamente ligado, assumimos a ideia de conexão de corpo com o todo, com a perspectiva de irmandade, união, que somos parte integrante de uma totalidade em meio as nossas individualidades.

É assim que este trabalho se estrutura enraizado na terra por meio das corporalidades, da consciência de si e a presença e relação de alteridade com os outros, num trabalho constante de compreender que tudo que fizermos ao outro faremos a nós mesmos em uma ciranda que busca refletir múltiplos processos de representatividades sócio-culturais-artísticas por que, afinal, somos todos um.

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Gandavo, Pero Magalhães. Tratado da terrado Brasil.[S.I.]: Fundação Biblioteca Nacional,

s.a(1576).

Disponível em:http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/tratado.pdf4

1576Pero de Magalhães GandavoIn: Tratado da terra do Brasil

(...)A língua deste gentil toda pela costa é uma; carece de três letras-scilecet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

Estes índios andam nus, sem cobertura alguma, assim machos e fêmeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu.

(...)Finalmente estes índios são muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos(...) Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver(...)

(...) Estes índios vivem muito descansados, não tem cuidado de coisa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso não são muito gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer coisa, comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente.

(...)Desta maneira vivem todos esses índios sem mais terem outras fazendas entre si, nem granjearias em que se desvelem, nem tampouco estados nem opiniões de honra, nem pompas para que hajam mister; porque todos (como digo) são iguais em tudo tão conformes nas condições que ainda nesta parte vivem justamente e conforme a lei da natureza.

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Imagem 16 - Autora: Jasciara Marschener Título: “Pachamama Kaiowá”. Trabalho de aquarela sobre papel, 2017.

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PACHAMAMAOração dos povos Andinos para Pachamama

“Madre tierra Diosa de la Naturaleza

que creas cada cosa y siempre haces que el Sol

reaparezca como un regalo para las personas

protectora del cielo del mar y de todos los espíritus

en ti que fluye toda la naturaleza

que nos brindas la alegría de la luz de los días

y que mantienes tu promesa de darnos los nutrientes.

Nosotras retornamos a ti en forma de espíritus

al final de nuestra vida que es el comienzo en ti.

Te damos los agradecimientos por tu benevolencia.

Yo me inclino ante tu divino nombre

y con la mayor dignidad imploro

que nos concedas los dones de tu misericordia.

Te agradezco por todo lo que haces por

nosotras quiénes tenemos fé en tus divinos deseos”

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“Com pés descalços pisados em tantos territórios; chãos de concreto, de asfaltos, de praias, dos quintais e terreiros de terras batidas, das salas de aula de dança e teatro, dos palcos, ou ainda aqueles de povos esquecidos que vivem as margens, nas divisas, nos abismos, nas fronteiras. Nesses chãos sempre descubro o esquecimento. (Des)cubro, (des)velo o que era calado e na ação de (re)velar o esquecido encontro as sementes da lembrança do que sou.”

(Caderno de Campo 2015 - Carla Avila)

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3.1 A miragem do indivíduo

29 Para NUNES R. (2007, p. 1) o haikai originou-se do tanka, um tipo de poema curto que predominava na arte poética do Japão do século XVI. [...] A forma poética do haikai obedece a essa composição fixa de três linhas, através da combinação rítmica somando 17 sílabas. Matsuo Bashô (1644-1694), Buson (1716-1784) e Kobayashi Issa (1763-1828) são alguns dos mais importantes nomes dessa poesia japonesa. Nas traduções para o português, muitas vezes, este número se perde, dando lugar a diferentes interpretações dos tradutores [...] Um haikai traduz uma ideia ou um momento de transitoriedade, com economia verbal e objetividade. Trata-se de

“Eu não procuro descobrir algo novo, mas algo esquecido”

Jerzy Grotowski (p. 1. 1987)

Ao afirmar tais lembranças refiro-me muito ao chão, a terra que vivo como artista,

mulher, mãe, docente e pesquisadora das artes da cena. Nas experiências de viver uma vida viva, repleta de arte, escutas, oralidades, memórias, aberta para trocas, nos processos metodológicos das disciplinas de dança e teatro que ministro em universidades federais brasileiras, e também no processo de criação proposto nestas breves linhas, em todos esses territórios contextos crio minhas escutas, interações com diversos grupos; acadêmicos, quilombolas, indígenas, aldeias, acampamentos, artísticos, atores-bailarinos e suas memórias, corporalidades, emoções, moveres e criações. Topografias identitárias, cartografias das memórias de quem somos feitos, lembranças plenas de vida e do frescor da novidade antiga. Assim sigo (des)velando ancestralidades do agora.

No outro extremo está o céu, o espaço da criação artística, infinito azul de nuvens e levezas, sinônimo de poéticas do intangível, fronteira invisível com o cosmos, simbólico,

mítico, líquido, fluído, mas também forte como os trovões que ali habitam com imprevisíveis nuvens obscuras e intempestivos vendavais. Este céu é parte dessa minha composição como mulher, mãe, extensionista e artista-intérprete-criadora; fluxo de atravessamentos poéticos, simbólicos e emocionais. Por meio de danças, cantos, paisagens, traços, fotografias, cenários, instalações, objetos cênicos, maquiagens, pinturas corporais, cerâmicas, culinárias, sabores e saberes elevam-se na imensidão de levezas e vazios de sentido. Acredito que as imagens “céu de nuvens e território terra chão” não são opostas e não são apenas complementares, mas gosto de imaginar o céu e a terra redondos, circulares, como nosso pequeno planeta na imensidão do cosmos alimentados nas potências poéticas de Pachamama em relação as energias pulsantes da vida e dos ciclos infinitos do universo.

Como um haikai29 imagético, estão contidos nesta proposição, a potência de um

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99ovo-cosmo-semente que gera vida corpo, terra e é em si ambivalência Corpo/Terra, que por sua vez poeticamente expressão a ideia de ser um grão de areia e um cosmos, nos trazendo dimensões de expansão e dos eternos fluxos do universo, dentro e fora, morte e vida.A partir desta perspectiva, o chão-terra e o céu nuvem tornam-se apenas linhas circulares de uma extensa malha de relações que gera vida ovo e sementes morte-vida.

Mas por que iniciar com chão e céu, terra e nuvem, ovo-semente?

Estas ideias, que para mim não são opostas e sim complementares, são conceitos de ciclos que se complementam, reflexo do movimento cíclico, fluxos de vida, elementos da natureza, sólido, líquido, gasoso, ordem e caos todas presentes nas mitologias e na mítica inicial das criações do mundo.

Nos princípios quase sempre era a imensidão do vazio e, em seguida, a criação da matéria. Na Bíblia, nos mitos Guaranis, mitos Orientais, nos contos Africanos e Nórdicos, na Grécia antiga entre tantas outras culturas; o início se dá em meio à amplitude, há um foco e na base de formação há algo firme,

um poema conciso, que aborda temas simples, muitas vezes ligados à natureza.

concretizado por um ato de criação.

Este ato de criação materializa-se nesta fala com a imagem de um ovo, que a princípio me acompanhou em sonhos os quais não compreendia bem, mas que, à medida que escrevia o texto para a qualificação, tornavam-se mais recorrentes, apareciam de todas as formas, cósmicos, terrosos, realistas, tais imagens ovais fizeram morada em meu imaginário e mesmo sem entender bem do que se tratava considerei importante e os desenhei, bordei e elaborei a iconografia desses ovos imagéticos para o texto da qualificação. Mesmo ainda sem ter certeza do que se tratavam tais imagens em relação direta com as questões levantadas nesta pesquisa.

Após passada a qualificação da tese e a contínua leitura, acompanhada de reflexões dos signos e símbolos que os ovos carregavam em contextos míticos, percebi que aquela imagem era habitada por diversos clichês, como um simbolismo geral que liga o ovo a gênese do mundo e diversas culturas, e que o mesmo traz a realidade primordial, que contém a multiplicidade dos seres.

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Imagem 17 - Autora: Jany Ávila. Título: “Ovo-mundo” Trabalho de bordado em tecido, 2017.

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101 Para Chevalier e Gheerbrant (2016) o ovo

é um símbolo universal e explica-se por si, o nascimento de um ovo é uma ideia comum em diversas culturas, mas destaca que esse simbolismo geral, que liga o ovo à gênese do mundo e a sua diferenciação progressiva, merece ser aprofundado. Até aí, ficava claro para mim que o ovo é uma imagem primordial, que contém o gene da multiplicidade dos seres.

Mas fui em busca de aprofundar a ideia primordial do ovo em outras culturas, para compreender se encontrava rastros da razão daquela imagem manifestada em meu inconsciente.

Neste mesmo sentido, na Índia, por exemplo, segundo Chandogya Upanixade,

[...] o ovo nasceu do Não Ser e engedrou os elementos: No começo só havia o Não Ser. Cresceu e transformou-se num ovo. Repousou durante todo um ano, depois quebrou-se. Dois fragmentos de casca de ovo apareceram - um de prata e um de ouro. O de prata a terra; o de ouro o sol. A membrana externa, as montanhas; a membrana interna as nuvens as brumas; as veias, os rios; a água da bolha, o

30 A teoria do Big Ban se refere a possível grande explosão que originou nosso mundo, pertence a cultura geral de nossa época; porém poucos sabem que foi proposta inicialmente por George Lamâitre, físico e sacerdote católico. Lemâitre foi capaz de chegar a esse modelo cosmológico graças a sua adesão a uma filosofia realista e para a qual ele sabia como combinar os raciocínios teóricos com as observações astronômicas.[...] O modelo cosmológico do Big Bang se formou na primeira metade do séc. XX, e influenciou todas as áreas do conhecimento. No campo das artes, por exemplo, se romperam os moldes clássicos para chegar a pintura não figurativa, o teatro do absurdo e a música atonal. (ARTIGA, 1995 p. 7).

oceano (SOUN,1959, p.354).

Assim também, para o astrofísico belga Georges Lemâitre30 , o universo surgiu de uma “singularidade” a qual chamou de “hipótese do átomo primordial”, também conhecido como “ovo cósmico”, que depois foi melhor elaborada por outros pesquisadores. Lemâitre considerava que o ovo eclodiu depois de um longo período de repouso ou caos, o que poderia ser as forças criativas no interior do ovo que estariam em repouso, imagem esta paralela a ideia que se tem hoje sobre o vácuo absoluto e as forças energéticas que teriam criado o Big Bang.

Chevalier e Gheerbrant (2016), citam o mito do ovo cósmico entre os dogons e os bambaras (povos primitivos) de Mali na África.

Ovo cósmico, para os bambaras, é o espírito. É o espírito primeiro, produzido, no centro da vibração sonora, pelo redemoinho desta. Assim esse ovo se concentra e pouco a pouco, se separa da vibração, incha, emite um som confuso, mantem-se sozinho no espaço, eleva-se e rebenta [...] (DIEB, 1951, p.38).

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102 Para os povos Incas, no grande templo

Coricancha, em Cuzco, Chevalier e Gheerbrant (2016) afirmam haver o signo do ovo cósmico, segundo registros de arqueólogos houve um ornamento principal uma placa de ouro em forma oval, ladeada por efígies da Lua e do Sol. Lehman Nitszche vê nela a representação da divindade suprema dos Incas – Huiracocha, sob a forma do ovo cósmico.

Assim são conhecidos em inúmeras culturas, em registros arqueológicos diversas esculturas em formato de ovos que podem vir a retratar os mitos de fundação no mundo, contendo nelas inúmeros arquétipos fundadores, esses são recorrentes também na Grécia antiga, na China, no Egito, entre os Celtas e por todo o mundo antigo.

31 Um homem pássaro divino, talvez o deus criador Make, segurando o ovo de onde saiu o universo. Pigmento em pedra, provavelmente entre finais do séc XVIII e meados do século XIXd.C. Orongo , Ilha de Páscoa (Rapa Nui), Polinésia. Klobler F. e Murr K. (2012, p.14).

31 Logo o ovo é uma representação do poder criador da luz. Chevalier e Gheerbrant (2016) afirmam que o ovo é o germe de todas as possibilidades, símbolo da renovação periódica da natureza, o eterno retorno, ressurreição, para Bace (1942, p.51-130) [..] o ovo participa igualmente do simbolismo dos valores de repouso, como a casa, o ninho, a concha , o seio da mãe. Mas no interior da concha, como no seio, simbólico da mãe, funciona a dialética do ser livre e do ser aprisionado.

O ovo também torna-se símbolo dos conflitos interiores e da transmutação:

Como nas cosmogonias, o ovo psíquico encerra o céu e a terra, todos os germes do bem e do mal, bem como a lei dos renascimentos e do desabrochar das personalidades [...] É igualmente à ideia de germe, mas germe de uma vida espiritual, que a tradição alquímica do ovo filosófico se refere. Núcleo do universo, ele encerra na sua casca os elementos vitais, assim como o vaso hermeticamente fechado contém o composto da obra. O vaso que seja matraz, aludel, cucurbita ou coniforme, devia como o ovo ser chocado para que seu composto pudesse se transformar-se.[...]Dos produtos do composto... deve

Imagem 18 - Autor desconhecido, sem título, pigmento sobre pedra.31

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103nascer o filho da filosofia, isto é, o ouro, ou seja, a sabedoria. Van Lennep (1966, APUD CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 675).

Assim, após mergulhar em tantos significados e leituras a ideia do ovo começou a clarear em minha mente, e passou a ser o ato fundador do pensamento de sustentação

desta tese, o qual descreverei a seguir. A imagem que primeiro era um ovo passa a compreender a potência contida nos mitos, na semente detentora da vida e na ideia de um ovo-cosmo, tais imagens recorrentes ao meu ver repetem um ato instituidor pulsante em constante fluxo de vida, arquétipo fundador da criação, assim como proposta de criação apresentada no decorrer desta.

Imagem 19 - Autora: Jasciara Marschener. Título: “ Ovo Guyrá/pássaro mítico kaiowá”. Trabalho de aquarela e colagem sobre papel, 2017.

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Bachelard (1948,p327) La terre et les rêveries de la volonté.

Sonhar o orvalho como germe e semente é participar do fundo de seu ser no devir do mundo. Então fica-se certo de viver o ser-no-mundo, já que se é o ser-tornando-se-odevir-do-mundo. O alquimista vem ajudar o mundo a devir, vem concluir o mundo. É um operador do devir do mundo. Não só colhe o orvalho, mas também o escolhe. Necessita do “orvalho de maio”. E esse orvalho de maio, o universo não entrega ainda suficientemente puro. Então o sonhador paradoxalmente o concentra para exaltá-lo, destila-o e cooba-o para que ele rejeite o que lhe resta de supérfluo, para que se torne germe puro, puramente germinativo, força absoluta.

Que o orvalho desça realmente do céu, ou, mais exatamente, dos céus mais elevados, é do que não duvida um médico alquimista como de Rochas. A chuva, diz ele, vem da condensação dos vapores, “mas as (águas realmente) celestes vêm em forma de Orvalho, que os verdadeiros filósofos chamam de suor do Céu e saliva dos Astros: o Sol é o pai, e a Lua, a mãe”. Eis-nos assim imediatamente colocados diante dos caracteres cósmicos de uma substância de universo. A educação moderna nos afasta de tais imagens. As pessoas cultas às vezes não gostam de que se lembre o sucesso evidente dessas imagens no decorrer dos séculos. Mas quem quer conhecer a imaginação deve ir à extremidade de todas as linhas de imagens [...]

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3.2 Ovo-semente-cosmo ----> corpo

32 As palavras em negrito, ovo, semente, cosmo e corpo, neste tópico, tem o intuito de criar para o leitor uma unidade e conexão conceitual para a ideia da construção dessa metáfora imagética.

O signo fundador ao qual cito anteriormente, trata-se da primeira imagem-metáfora

apresentada aqui, a imagem que transmutou-se do simples ovo do momento da qualificação, para um ovo-semente-cosmo que contém em si um eu ou outro que está prestes a eclodir.

A imagem carrega os signos e símbolos do ovo32, já apresentados, mas também carrega em si uma imagem simbólica de uma semente que gesta um corpo potência.

O ovo-semente é apresentado porque este não é chocado como os demais ovos, mas simbolicamente será plantado nos territórios culturais aqui apresentados. A força da ideia de uma semente, que para a biologia é definida como um óvulo maduro e fecundado, contendo em seu interior uma planta embrionária, protegidas por um ou dois invólucros, aqui transcende ao conceito biológico expandindo-se mais ao que tange ao simbolismo poético da semente.

[...] uma vez que a semente incuba invisivelmente na terra escura, tem, desde tempos antigos, captado a projeção do fruto “morto” que renasce no ciclo do eterno regresso da natureza. Se o grão de trigo lançado “a terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto” (João 12, 24).

Do mesmo modo, a alquimia via a “parte morta” da matéria apodrecida e enterrada no chão como sendo a concepção do ouro que era objetivo do opus. No entanto a semente nunca chega realmente a morrer. Preservada em secagem, está apenas adormecida e sem usar oxigênio, num estado de animação suspensa. Mas a semeação não é realmente “plantar” mas o ato de espalhar sementes e esperar pelo futuro – que estes germes de vida criem raízes em solo receptivo (KLOBLER; MURR,2012, p.14).

Esta imagem carrega arquétipos de vida e morte, porque a semente, para germinar, precisa “morrer” para brotar, o ovo precisa se quebrar para trazer vida. Se for pressionado oprimido de fora para dentro quebra e morre, se as potências da existência forem respeitadas e ele expandir de dentro para fora, nasce em vida e força.

A imagem ovo-cosmo, o Cosmo ou cosmos (do grego antigo κόσμος, transl. kósmos, “ordem”, “organização”, “beleza”, “harmonia”) é um termo que designa o universo em seu conjunto, toda a estrutura universal em sua totalidade, desde o microcosmo ao macrocosmo, Sagan (1980).

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106Então essa imagem refere-se ao cosmo como a totalidade de todas as coisas deste Universo ordenado, desde as estrelas, até as partículas subatômicas. A palavra “cosmo” na atualidade é utilizada como sinônimo para “Universo”, por isso a compreensão que o ovo-semente-cosmo a que me refiro além de trazer a poética da semente e do plantio e sua potência vital, é um cosmos ovo pronto para (re)nascer, um universo corpo no sentido do microcosmo ao macrocosmo.

Se pensarmos nas práticas artísticas e os entendimentos do fazer corporal, compreendemos que o corpo em si é um “universo”.

Para o astrônomo Carl Sagan (1980) o termo cosmos pode ser definido ainda como sendo “tudo o que já foi, tudo o que é e tudo o que será”, tal poética nos aproxima também das perspectivas das ancestralidades e da conexão passado, presente e futuro nesta matéria corpo, ovo-semente-cosmo, que em tudo se conecta com esta pesquisa-arte.

Ao falarmos de cosmos em contextos ancestrais conectamos as ideias míticas das diferentes culturas, seus mitos e seus relatos de criação de mundo. Para Chevalier e Gheerbrant (2016) o que viria a ser a cosmogonia é que toda criação de mundos exige princípios organizadores e um esquema humano da ação, onde os homens concebem o desdobramento da energia e segundo o qual eles se esforçam para realizar seus projetos.

A cosmogonia, é o modelo exemplar de toda a espécie de fazer. Não só por ser o Cosmo

o arquétipo ideal ao mesmo tempo de toda situação criadora e de toda a criação. Mas por ser uma obra divina. O Cosmo é então santificado na sua própria estrutura. Por extensão, tudo o que é perfeito, pleno, harmonioso, fértil, em uma palavra, tudo o que é concebido como um cosmo, tudo o que se parece a um cosmo, é sagrado. Fazer bem feita qualquer coisa, obrar, construir, estruturar, dar forma, informar, formar, tudo isso se resume em dizer que se faz com que alguma coisa comece a existir, que se dá vida a alguma coisa e em última instância, que se faz com que alguma coisa se assemelhe ao organismo harmonioso por excelência, o Cosmo. (SOUD,1963, p.474-475).

Seguindo este pensamento, a ideia ovo-semente-cosmo transmutando-se para o corpo, que é em si mesmo um cosmo “santificado” (como afirma a citação acima) que por sua vez, dá origem a “proposta cosmogônica” do princípio fundador deste trabalho. Esta imagem-metáfora é a gênese do relato da tentativa e do desejo de criar por meio das artes da cena e os seus diálogos com os povos tradicionais e originários brasileiros “novos mundos” no universo das artes.

Assim, no centro da origem da criação deste mundo (esta pesquisa-arte) está o ovo-semente-cosmo que carrega em si o Corpo, as potências do humano que em sua

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107complexidade existencial é em si mesmo um outro universo. Um corpo, semente que carrega em si as potências de um cosmo, - e um cosmo que, por sua vez, é semente de um outro corpo. Genealogias, ancestralidades, mortes e nascimentos poéticos de galáxias.

Na gênese da miragem do ovo-semente-cosmo está amalgamado os ciclos de morte-vida, que contém em si a imagem poética de uma urna funerária, um invólucro, um processo ritual de morte que simbolicamente renasce, este processo é vivenciado artisticamente na pesquisa em vários momentos.

Nas culturas indígenas sul-americanas, observamos recorrentemente a existência de urnas funerárias, panelas, cerâmicas de barro feitas em formato circulares, ovaladas e uterinas, os povos indígenas originários das Américas eram geralmente enterrados secundariamente nestes objetos. Seus grupos de origem os reverenciavam, cerimoniavam rituais de morte e nutriam seus mortos para que seus caminhos para passagem fossem iluminados, cuidavam da manutenção do fogo e dos objetos pessoais (colares, tambetá, conchas entre outros) que iam dentro das urnas enterradas.

Imagem 20 - “Ovo cósmico/galaxia”. Fotografia: Autor: NASA. Disponível em: https://www.space.com/21832-amazing-andromeda-galaxy-stargazer-photo.html, 2017.

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108Importante destacar ainda que cada

sociedade indígena tem um padrão fixado para lidar com a morte. Assim como a morte nunca é semelhante, a maneira de compreendê-la também quase nunca é igual. Braun (1981). No entanto, o uso de utensílios cerâmicos e de urnas funerárias é recursivo nas Américas e existem os pressuspostos de que as populações pré-coloniais do Pantanal tinham a prática de sepultar seus mortos na terra e a entendiam como um lugar de repouso e segurança. SANTOS (2009).

Já no contexto indígena Guarani Kaiowá há funerais que, segundo Borba (1908, p. 58, apud CHAMORRO, 2015, p.141)

Os mortos eram enterrados em “covas fundas, feitas junto de grandes árvores”. Eles eram carregados até a fossa na rede em que morreram. O cadáver era sepultado envolto nessa rede, de tal forma que não tocava o fundo da fossa. Por cima do morto era posto um forro de paus roliços, para evitar o contato com a terra.

E há outras variações nos ritos fúnebres onde a terra aparece como eixo fundamental;

O enterro que consiste em enterrar a pessoa morta em posição sentada, debaixo de uma grande vasilha de barro ou igabaça de boca para baixo. Naquela época, muitos pesquisadores interpretavam esse costume como se a vasilha de barro fixasse o espírito do morto a terra, impossibilitando sua aparição sobre a superfície. Konigswald (1908, p. 381 apud CHAMORRO, 2015, p.142).

Corpos vindos da terra, entendendo-se como corpo terra e entregue a esta em um invólucro de barro, útero de lama, de novo a terra assumindo seu lugar de mãe, que dá a vida, nutre, acolhe e depois nos leva de volta às origens terra. Esta procedência relacional com a terra, a cultura que os ancestrais nos deixaram e a relação com as ideias de morte-vida estão presentificadas profundamente nesta pesquisa.

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109 E aqui se dá a gênese primordial desta proposta de criação, somos corpos, cosmos, vidas criativas em potencial, assim como sementes levadas pelo vento, algumas caem em terra são esfoladas pelo tempo e com força própria abrem-se de dentro para fora e germinam, corpo-terra fundador de vidas, culturas e ancestralidades, outras mesmo depois da ação do tempo e da interação com

o meio não se abrem ficam dormentes ou morrem, não experienciando a potência do (re)existir (porque de alguma forma existem).

Tal gênese é a base desta pesquisa para os processos pedagógicos de formação e de criação em artes da cena, que dialogam interculturalmente com os contextos Afro-ameríndios a serem aqui apresentados.

Imagem 21 - Bricolagem / Fotos: Tay Petelin. Sem título. Laboratórios corporais do grupo Mandi´o, MS e Urnas funerárias tupi-guarani, 2003.

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Imagem 22 - Foto: Tai Petelin. Atriz: Isis Anunciato - Grupo Mandi´o. Processo de criação Jaha, 2012.

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Entrevista de Bill Moyers com Joseph CampbelMOYERS: E o que acontece quando uma sociedade não adota mais uma mitologia poderosa?

CAMPBELL: Acontece isso que temos nas mãos. É como eu digo, se você quer saber o que significa uma sociedade sem nenhum ritual, leia o “New York Times”.

MOYERS: E o que a gente encontra? CAMPBELL: As notícias do dia. CAMPBELL: Guerras. CAMPBELL: Jovens não sabem se comportar numa sociedade civilizada. Creio que 50% de todos os crimes são cometidos por jovens entre 20 e 30 e poucos anos que se comportam como bárbaros. Ninguém lhes deu um ritual para que eles se transfor-mem em membros da sociedade. CAMPBELL: Nenhum ritual. Foram cada vez mais reduzidos. Mesmo na Igreja Católica eles traduziram a missa da linguagem ritual para uma linguagem que tem uma porção de associações domésticas. Cada vez que eu leio a missa em latim volto a sen-tir aquela sintonia que ela provoca; é uma linguagem que nos tira do campo doméstico. O altar é colocado para que o padre nos dê as costas e junto com ele você se volta para fora. Agora eles viraram o altar ao contrário; parece uma garota-propagan-da numa demonstração na TV; tudo é caseiro e familiar.

MOYERS: Eles até tocam violão. CAMPBELL: É. Esqueceram de qual é a função do ritual: de ele-var, tirar fora; e não aconchega-lo de volta no mesmo lugar onde você sempre esteve.

MOYERS: Quer dizer: um ritual que antes transmitia uma reali-dade interior hoje é uma mera formalidade, tanto nos rituais da sociedade como nos ritos pessoais do casamento e da religião?

CAMPBELL: O ritual deve manter-se vivo; e grande parte está morta.CAMPBELL: É muito interessante ler sobre as culturas primiti-vas, elementares e ver como as histórias populares, os mitos estão sempre se transformando em função das circunstâncias

desses povos. Por exemplo, um povo mudava-se, saía de uma área onde a vegetação era o principal meio de sustento e ia morar na planície. A maioria dos índios das planícies americanas do período em que eram cavaleiros eram originários da cultura do Mississipi. Antes viviam ao longo do rio Mississipi em aldeias fixas, baseadas na agricultura. Daí receberam o cavalo dos es-panhóis e com isso puderam se aventurar nas planícies e se dedicar as grandes caçadas de manadas de búfalos. E assim a mitologia se transforma: passa de vegetação para búfalos. Ain-da notamos a estrutura das antigas mitologias de vegetação na mitologia dos índios Dakota, Pawnee, Kiowa e outros.

MOYERS: É o meio ambiente que dá forma às histórias? CAMPBELL: As histórias respondem ao meio ambiente. Mas ve-jamos nós temos uma tradição que vem do primeiro milênio a.C., vem de um outro lugar e ainda lidamos com ela. Ela não se alterou nem assimilou as qualidades de nossa cultura, as novas possibilidades, a nossa visão do universo. É necessário mantê-la viva. E as únicas pessoas que podem mantê-la viva são os artistas.

MOYERS: Os artistas?

CAMPBELL: Sim, a função dos artistas é a mitologização do ambiente e do mundo.

CAMPBELL, Joseph, MOYERS, Bill,. O Poder do Mito: Os Primeiros Contadores de Histórias. Ep 03 California:

Apostroph S Productions, 1988, vídeo documentário 38´03-41´54 .

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-ERgME9hfR0&t=2315s Acesso em: 03 nov. 2017.

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4. (RE)MITOLOGIZAR FUNDAMENTOS

Os fundamentos aqui apresentados partem de pressupostos de que a consciência do

indivíduo contemporâneo em relação a essa ideia de “vida plena”, conectada interligada com o passado-presente-futuro que o ovo-semente-cosmo implica, está cada vez mais distante, desconectado do cosmo interno e externo da condição de si no mundo. Esse ser contemporâneo é refém de si mesmo e da ausência da consciência, de seu corpo, sua cultura e suas ancestralidades.

Nas palavras de Joseph Campbell (2000, p. 368):

Em sua forma-vida, o indivíduo é necessariamente mera fração e distorção da imagem total do homem. [...] ele não pode ser tudo. Por conseguinte, a totalidade – a plenitude do homem – não se acha no membro separado, mas no corpo da sociedade como um todo; o indivíduo pode ser, tão somente, um órgão. Do seu grupo ele derivou suas técnicas de vida, [...]. Se se atrever a apartar-se, por meio de ações ou em termos de pensamento e sentimento, ele apenas romperá o vínculo com as fontes de sua existência.

Assim, a maioria das pessoas na contemporaneidade não tem entendimento

de seus vínculos, suas culturas, de sua cosmogonia, dos mitos originários dos cantos e danças rituais de seus povos. Geralmente é atropelado pelo sistema de consumo e não tem mais o hábito de estar junto de sua comunidade partilhando oralidades, ritualizando a vida. Não que isto tenha que ser a condição sem a qual não possamos ser no mundo. Mas somado a isso, o homem contemporâneo em suas derivas, entende que a fonte de sua existência está somente vinculada às dinâmicas das informações e das tecnologias, do capital ao seu redor, e acredita que é preciso dominar as mídias, se fazer presente nas mesmas, é preciso ter acesso a tudo. Nesse fluxo absurdo de consumo e de informações intensas, o homem perde a capacidade de absorção, e submerge em tais conteúdos sem nenhum tipo de seleção, porque o mesmo não tem capacidade de fazer uma triagem de conteúdos essenciais, uma vez que no coletivo não aprendeu a incorporar valores de sua comunidade.

Na sociedade ocidental atual, o ritmo acelerado do trabalho urbano somado a facilidade e rapidez dos meios de comunicação (criadas pelos constantes avanços tecnológicos) colocam o homem comum frente a uma quantidade avassaladora de informações. Tais fatos criam para o homem contemporâneo quase a obrigação de consumir

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113a informação de forma acrítica, sem maior cuidado seletivo, perdendo-se, portanto, uma das mais importantes funções da memória humana – a capacidade seletiva – que é o PODER de escolher aquilo que deve ser preservado, como lembrança importante e aqueles fatos e vivências que podem e devem ser descartados. A perda do exercício desse poder de seleção nas sociedades atuais constitui o fator fundamental para a formação do que os profissionais da informação chamam de sociedades do esquecimento (VON SINSOM, 2006, p.02 grifo nosso).

O fluxo dessas derivas das sociedades do esquecimento são tão intensos e avassaladores, tão des-mitologizados que mesmo em espaços contemporâneos onde se repetem arquétipos fundadores do viver, os sistemas do capital, da modernidade, os captam, tornando-os “performances” conhecidas e vendáveis, facilmente assimiláveis, algo familiar que não nos causa assombro ou um arrebatamento, como na dimensões humanizadas, rituais ou míticas.

Para Campbell (2008) uma das funções mais importantes dos mitos é a de auxiliar as pessoas em suas travessias em suas jornadas pessoais, a fim de que estas consigam em suas vidas atingir a realização plena. Jung (1991) também busca a relação do homem no entre mundos, ou seja, utiliza-se do termo Deus para que façamos a ponte entre o mundo interno e

Imagem 23 - Bricolagem de fotos de camisetas, 2017.

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114externo, as imagens e os símbolos, as ações e as intuições e que estas se dinamizem e façam-se comunicar na existência do indivíduo.

Estas dinâmicas condensam narrativas míticas, estes mesmos mitos originários que dizem respeito às jornadas da humanidade como um todo, hoje reduzem-se a imagens individuais, e o ser humano em seu viver cotidiano tem cada vez menos mitos e rituais fundadores, menos consciência de suas travessias, aliás o ser contemporâneo em sua maioria, não aceita sequer envelhecer. Logo, o indivíduo ocidental no agora, tem boa parte de seu contato com o universo mítico, arquetípico por meio de um inconsciente coletivo.

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal

consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos[...] O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência. Jung (2000, p.53-54).

Assim trava-se uma relação constituinte entre a metáfora ovo-semente-cosmo do indivíduo seus contextos da condição do si/mundo, nas sociedades do esquecimento e na relação que este estabelece com o inconsciente coletivo, uma vez que a própria memória individual não necessariamente é constituída por meio de suas vivências ancestrais;

Para relacionar mais diretamente com a pesquisa e aprofundar a ideia de que é preciso (re)mitologizar fundamentos, apresentamos a seguir os seguintes tópicos:

• Fundamento vida (cultura e ancestralidade /ovo);

• Fundamento verbo (corpo e ação/semente);

• Fundamento sonho (visibilidade e inconsciente coletivo/cosmo).

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4.1 Fundamento vida

Retomando os arquétipos fundadores, os mitos de criação, penso no fazer da escrita

como um gesto fundador. E não seria a escrita, o relato, a narrativa de tantas vivências e reflexões um ato de possibilidade de criação de mundos? Ao menos é o que tentarei relatar com as práticas, reflexões, as pesquisas de campo e as constituições da cena e a fruição de obras de artes inspiradas em contextos brasileiros e de-coloniais, como possíveis formas de criação de mundos e de utopias tangíveis.

Em minhas trajetórias, a terra e o céu estiveram sempre presentes de forma empírica, na prática, na relação e como uma sustentação de nossos corpos, alongamento de nossas perspectivas, para que tomemos consciência de como nos movemos e para onde nos movemos.

Tal relação abre os caminhos e nos serve como base de nossas experiências empíricas, composições de horizontes e paisagens, ou seja, a soma deste ambiente entre terra e céu, as relações entre corpo (ovo-semente-cosmo) e seus moveres (germinações ou dormências) advindas destas conexões, para mim é a cultura que nos rodeia e nos atravessa e nos compõem e nos faz compor.

Para explicitar melhor a ideia, apresento uma das definições sobre cultura, a qual muito me interessa. Sabemos que há inúmeras definições e modos de compreender a Cultura, mas esta foi a que escolhi dentre tantas por

dialogar com os contextos teóricos da Livre Docente, professora Inaicyra Falcão dos Santos (2009), e sua proposta metodológica de corpo e ancestralidade, a qual me aprofundarei a seguir.

A cultura compreendida por Bosi, então, é em seu sentido mais amplo “tudo aquilo que está acima e abaixo da terra”, e nesse sentido, inclusive nossos mortos.

Mas nem toda definição de cultura vem da Antropologia. O estudioso brasileiro Alfredo Bosi, por exemplo, em Dialética da colonização, define cultura a partir da linguística e da etimologia da palavra: cultura, assim como culto e colonização, viria do verbo latino colo, que significa eu ocupo a terra. Cultura, dessa forma, seria o futuro de tal verbo, significando o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar, e não apenas em termos de agricultura, mas também de transmissão de valores e conhecimento para as próximas gerações. Nesse sentido, Bosi afirma que cultura é o conjunto de práticas, de técnicas, de símbolos e de valores que devem ser transmitidos às novas gerações para garantir a convivência social. Mas para haver cultura

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116é preciso antes que exista também uma consciência coletiva que, a partir da vida cotidiana, elabore os planos para o futuro da comunidade. Tal definição dá à cultura um significado muito próximo do ato de educar. Assim sendo, nessa perspectiva, cultura seria aquilo que um povo ensina aos seus descendentes para garantir sua sobrevivência.33

33 In: Dicionário de Conceitos Históricos - Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva – Ed. Contexto – São Paulo; 2006.

Nossos antepassados, aqueles que nos ensinaram o que era o firmamento o céu estrelado, as estrelas os astros, o entardecer e o amanhecer, aqueles que faziam nascer e ritualizavam o morrer, são também aqueles que nos ensinaram o que é o plantio, os ciclos das sementes, plantações e colheitas. Ensinaram-nos como plantar e quando colher, além de como cuidar, estocar e processar e cozinhar todo o alimento produzido. Nos ensinaram os gestos. Ensinaram-nos, também como resistir. Nestes fazeres ancestrais, sempre estão presentes os cantos, danças, mitos, símbolos, arquétipos e signos de determinados territórios e os modos de ser e de viver. Diria modos de corporificar a experiência, corporificando por sua vez a própria cultura. Assim, os mesmos ancestrais que nos ensinaram as técnicas corporais do viver e morrer, também nos deixaram de certa forma as poéticas corporais da vida.

O corpo que é o ovo-semente-cosmo carrega em si suas potências, fundamentos do viver nas corporeidades antepassadas e estas por sua vez serão nutridas em contato com sua terra originária, pelo seu território poético, social, ritual, mítico, suas raízes culturais, cosmogônicas e ancestrais. Assim, o fundamento vida sintetiza-se em tudo que esta acima e abaixo, ao redor, para trás e para além, é toda a ancestralidade e cultura que se reconhece, que cria e se (re)cria no agora, é o real que se vive no tempo-espaço presente, reconhecendo o passado e germinando o futuro.

Imagem 24 - Autora: Jasciara Marschener .Título: “ ovo-semente-cosmo ” Série 1 . Trabalho de aquarela e linha sobre papel, 2017.

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Imagem 25 - Autora: Jasciara Marschener. Título: “ ovo-semente-cosmo ”. Série 2 . Trabalho de aquarela e linha sobre papel, 2017.

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ORACIÓN ANCESTROS34

34 Oração para os ancestrais, do livro- Northern Tradition for the Solitary Practitioner, de Galina Krasskova y Raven Kalde, 2009, Ed New page books, NJ – EUA.

Respeto a mis Ancestros

“Hail a aquellos que han pasado a través del velo

de la vida a la muerte, de la tierra al aliento.

Hail a aquellos que sufrieron para darme su sangre.

Hail a aquellos que sobrevivieron para darme su cuerpo.

Hail a aquellos cuyas canciones me dieron su inspiración.

Hail a aquellos que conocí y amé en la vida.

Aquellos cuyo recuerdo llevo conmigo como una palabra de consuelo.

Hail a aquellos que dejaron esta tierra hace mucho tiempo,

cuyos nombres honro como una palabra de esperanza.

Vivo y amo porque vosotros vivisteis y amasteis

Hablo y lucho porque vosotros hablasteis y luchasteis.

Ustedes viven en mí, así que yo viviré en aquellos que vengan después de mí.

Concededme la paciencia, oh mis queridos muertos,

para ver a largo plazo y recordar que lo que hago

afecta a millones y millones de almas que nunca conoceré”

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4.2 Fundamento verbo“No príncipio era o verbo e o Ver-

bo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [..]

Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se

fez.[...]

E o verbo se fez carne e habitou en-tre nós”

I Joao

Pensar que nossas ancestralidades se corporificam dentro do território em que

foram geradas suas raízes culturais, de certa forma é afirmar, o ato sagrado de nossas ações em que estas se fazem carne, corpo, mover. É como pensar que o verbo se transmuta em carne, e a carne gera verbo, nos constantes ciclos do viver e do morrer. A ação do mover, gesto fundador de sobrevivências, sagrado por perpetuar toda a genealogia ancestral dos antepassados que habitam em nós, e mais uma vez, o verbo se faz carne e (re)habita em nós, num constante (re)ritualizar-se.Para Mauss (1974) no século passado a história acumulada de uma sociedade deixa as marcas no corpo

e por sua vez nos ensina como as pessoas podem utilizar ou desenvolver maneiras de se moverem para conquistarem determinadas ações, por ele chamadas técnicas corporais. Ainda, Mauss (2005) indica que, “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem [...], o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo o meio técnico do homem é seu corpo”, porém esse corpo está enraizado em um território social e cultural e nele serão inscritos todas as regras, as normas e os valores de uma sociedade. Já para Daólio (2011), a própria memória individual e coletiva é gerada também por esses moveres.

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120 Neste ovo-cosmo-semente, casa corpo,

está instaurado o contato primário do indivíduo com o ambiente e suas primeiras inscrições e memórias nesse pequeno cosmo.35

35 Referência de VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. Studio Nobel. FAPESP: Editora da Universidade de São Paulo, SP, 2000. Em VIDAL, Lux. Grafismo Indígena (2000).

A cultura deixa suas marcas no corpo, nas ações, nos moveres e à medida que o tempo, os territórios e os desafios da vida se modificam, transformam-se também as maneiras como o corpo é movido, é utilizado e se faz mover.

Nossos estilos de vida na contemporaneidade, segundo Bourdieu (1983) expressam um habitus. O corpo então se relaciona com diversas experiências vividas, caracterizando-se também como um fenômeno social, não só representando, mas experienciando o viver, criando memórias desse viver. Este corpo está exposto a mudanças e demandas de suas necessidades básicas, produzindo sua própria maneira de existir ou se adaptando a um determinado modo de vida já existente. Para Almeida (2014) “O corpo ancora-se, portanto, a uma estrutura antropológica que materializa o ser humano”, e neste sentido carrega consigo tanto as técnicas como as poéticas de um determinado contexto cultural. As poéticas manifestadas na forma com que as culturas e corpos revelam-se ao mundo, são na realidade nada mais que o modo de se realizar tais ações gestuais cotidianas, memórias ancestrais de um povo; técnicas corporais assimiladas no verbo encarnado, para que a medida que as mesmas façam sentido no corpo como ato, habitus, possam, imbuídas de sentidos míticos e espirituais, tornarem-se “religare” e assim atingirem determinadas potências, expressividades e memorialidades transcendentes.

Imagem 26 - Meninas Kayapó – Shikrin brincando com bonecas de plástico compradas no comércio de Marabá, devidamente pintadas com jenipapo36.

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121Ao olharmos para a vida neste mundo

contemporâneo, percebemos que nem tudo é poética nos campos de pesquisa sobre o corpo, corporalidades e os estudos culturais, pensar nos fazeres ancestrais contextualizados no agora é pensar nas origens e também como esses moveres ecoam até aqui.

Estes pensamentos sobre o olhar ancestral dos povos tradicionais no passado, faz muito sentido naquele contexto, no entanto se olharmos o fluxo de informações e formas de viver na contemporaneidade, as ideias de técnicas corporais assumem também um outro lugar, onde as ações, os gestos, já não são necessariamente, espaços para também compor as poéticas corporais.

Isto porque se pensarmos num “glossário ritual gestual” de fazeres cotidianos do tempo em que nossos antepassados viviam e os movimentos que vivemos hoje, perceberemos que os realizamos muitas poucas vezes ou desconhecemos muitas ações e memórias relacionadas a estes, tanto no âmbito das técnicas corporais, quanto no das poéticas corporais.

Imagem 27 - Foto: Crianças “brincando” de tirar fotos de si- selfie – Autor desconhecido – Fonte:Google. Disponível em: https://www.facebook.com/luiz.carlos.5473894/posts/1119329541436307. Acesso em: ago. 2016.

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122

caminharlavar

esfregardepenar

depenar

remendarescoar

torrarcercarcavalgar

varrer ralarmoersocarsovar

sovar

lançar

cerzirfiar

plantarpregar

semearsoldarquarar

discar

laçartecer

sacrificarcavocararrebanharpeneirar

passarcoser

cozer estenderpisar

caminhar

escoar torrar

ralarlançarsemear

laçar

arrebanharpeneirar

passarcoser estender

pisar

caminhar

lavar

esfregar

depenarremendar

remendarescoar

torrarcercarcavalgarvarrer ralarmoer

socarsovar

lançar

cerzirfiar

plantarpregar

semearsoldar

quarar

discarlaçar

tecer

tecer

sacrificarcavocar

cavocar

arrebanhar

peneirar

passar

cosercozerestender

pisar

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123

Imagem 28 - Foto: Tai Petelin, 2012 - Caminhadas do Grupo Mandi´o durante laboratórios corporais na antiga Fazenda Coqueiro –Dourados, MS.

São verbos de ações de nossos antepassados, são gestos, que muitos de nós se quer temos registros do que seria tal movimento no mundo atual. Isto porque em nossos contextos contemporâneos um repertório novo de gestos, de certa maneira globais, nos movem, e estes são geralmente ditados pela modernidade, pelo capital e pelas ideias de consumo. Teclar, clicar, dar enter, enviar, zipar, digitar, escanear, fotografar, filmar, gravar, creditar, depositar, são algumas das ações recorrentes que geralmente nossos dedos, cabeça e olhos realizam cotidianamente para existir no agora. Teriam memórias, rituais esses gestos?

Paráfrase para sobrevivência em tempos de modernidade? Talvez.

Sabemos que mesmo em meio a povos originários tradicionais, o uso das tecnologias e bens de consumo se fazem presentes e convivem lado a lado com os cantos e danças rituais. Não há como negar que tais elementos alteram também a gestualidade e maneira de existir desses povos. Logo as técnicas corporais como entendidas por Mauss estão em um constante transformar-se, na contemporaneidade parecem mais ser líquidas e fluídas.

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124No primeiro capítulo de seu livro Técnicas

Corporais, Mauss (1934) afirma compreender técnica corporal como “as maneiras com que os homens, sociedade por sociedade, e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”, ou seja o gesto, o canto, o ritual e seus desdobramentos são todos permeados por técnicas corporais e que geralmente são ensinadas nos contextos desta pesquisa pelos “Griôs” ou “Jaris”36, compondo toda uma complexidade de conhecimentos absorvidos e atravessados pelos corpos da comunidade e de seus membros. Para tanto, é importante destacar que:

“A técnica é um ato tradicional eficaz que não difere do ato mágico, religioso, simbólico, pois é preciso que haja uma tradição – ou padrão instituído – para que existam técnica e transmissão de saber técnico. (...) O ato tradicional de técnicas religiosas é precedido e acompanhado pela crença na eficácia física, moral, mágica e ritual de certos procedimentos, revestindo-se, portanto, de significados partilhados pela crença em questão “ (MAUSS, 1974, p 60).

Tais afirmações me fazem refletir o que seria hoje na realidade pós-colonial, nas modernidades tardias imposta em nossos

36 Aqueles idosos mais sábios e detentores da memória de um determinado grupo. Griô ou “griot” é termo utilizado principalmente para grupos negros e de culturas populares, “Jaris” é termo utilizado essencialmente pelos grupos indígenas guarani Kaiowa, referindo-se as rezadeiras e lideranças mais velhas detentoras da cultura daquele grupo.

corpos (des)ritualizados a maneira tradicional de servir-se de nossos próprios corpos, a que Mauss se refere?

Tal complexidade é ainda mais ampliada quando nos conscientizamos do cenário da mecanização e virtualização da vida em geral, a tecnologia pouco a pouco invade o ambiente, nossos gestos e a maneira com que vivemos. Nosso universo cultural ancestral, antigamente formado pelas camadas míticas, por “palavras encarnadas”, cosmogônicas, rituais, é processualmente dilacerado. E por isso, nos é imposto pelo sistema novas formas de ser e estar no mundo. Para Almeida (2014).

Nesta sociedade povoada de homens e de máquinas, a técnica mediatiza (e, por consequência, modela, “dá forma”) às relações humanas. Não só no mundo do trabalho o homem produz através da máquina, mas também no campo das interações pessoais ou da transmissão cultural, os objetos técnicos são os intermediários entre os homens. O homem está menos presente em suas ações. Definitivamente separado do processo de seu trabalho pela produção industrial, o homem comunica-se a distância através do telefone e cristaliza sua fala e sua imagem em fitas

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125magnéticas, que se transformam em mercadoria consumida por outros homens (BELLONI, 2005, p. 53).

Não é mais somente o corpo que nos repassa as formas de viver a cultura, mas agora as tecnologias, as interações virtualizadas assumem o papel de comunicar e de mediar algumas das relações que antes se davam no estar junto, no movimento, na comunidade, no ato presente do gesto na ação corporal, nos rituais. Assim, esse ovo-semente-cosmo, em contextos de contemporaneidade está semeado em terras bem menos sólidas que

37 O multiculturalismo está posto no âmbito de uma política de reconhecimento e afirmação da diversidade. Essa política preceitua o respeito à diferença como manifestação da dignidade humana. Ela preconiza ir além dos formalismos da lei e da promoção carnavalesca potencializada pela riqueza polifônica de suas cores. A lei per si não é um imperativo de mudança da realidade social. A diferença necessita deixar de ser “silenciada”, “anulada”, “sublimada”. Ou seja, é factível a suplantação das desigualdades por meio da ação pública e do engajamento da sociedade para a transformação. O multiculturalismo afronta as concepções monoculturais em sociedades etnocêntricas. Este fenômeno fortalece o tecido social. O mesmo aponta para uma perspectiva de paz na convivência com a diversidade cultural e a justiça social MELO (2016, p.99).38 [...] interculturalidade é um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença. Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados. Uma tarefa social e política que interpela o conjunto da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade WALSH (2005, p. 10-11).39 [...]transculturalidade é uma transformação das representações culturais, dos modos de pensar e dos comportamentos de cada um. Este processo implica no reconhecimento do confronto entre culturas diferentes, fato que implica em tensões, como conflitos interiores ou exteriores que, positivamente, são considerados como motores de evolução e, ao mesmo tempo, elementos indispensáveis à aprendizagem de outra cultura (BLAISE, 2008). A transculturalidade implica num avanço de si mesmo em relação ao outro, e do outro em relação a si mesmo, uma mudança nessas representações, uma transformação que se opera no processo comum de confronto com a realidade, com outras realidades e às realidades do mundo contemporâneo (PEROZA; AKKARI, 2013, p.446) .

nossos ancestrais, e para realizar sua jornada do enraizar para brotar fora, precisa se fixar para além das formas já postas.

Assim criamos modos de ser tecnológicos que formam nossos gestos e por sua vez criamos tecnologias moldadas por essas técnicas corporais contemporâneas, criando novos campos culturais onde os ovos-cosmos-sementes nascidos no agora poderão germinar (ou não). Tais dinâmicas evidenciam o mundo para lá das culturas tradicionais, e nos expõem a condição de refletirmos a partir dos ideais do multiculturalismo37, da interculturalidade38 e da transculturalidade39

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126no que tange nossas corporeidades e as constituições identitárias e suas relações com a globalização.

Ideais estes que são estruturais na perspectiva desta pesquisa.

Estas perspectivas se dão nos contextos das artes, dos estudos culturais, porém se esgarçamos a reflexão da cultura e os modos de existir na modernidade tardia um pouco mais, ainda há as intervenções que o corpo e, consequentemente, a cultura são entendidos como objeto, produtos de consumo e simulacro de realidades, adotando práticas que buscam extrapolar obstáculos físicos da presença, incorporando a este tecnologias em que as mesmas pretendem buscar a superação do modelo de vida, corpo e cultura que conhecemos hoje. Ideias recorrentes também no campo da performance. Refletindo com Le Breton (2012) sobre o corpo no agora: [...] o corpo é uma espécie de veículo da pessoa, o recinto material de sua interioridade, a relíquia indigna de uma velha humanidade ultrapassada.

Toca-nos a ideia de entender o corpo como uma “relíquia indigna de uma velha humanidade ultrapassada”. Nesta pesquisa, entendemos que é preciso olhar para esse ovo-semente-cosmo como potência viva, uma

relíquia que carrega em si suas verdades ancestrais, nutridas por outros territórios culturais, recinto material e imaterial de sua interioridade e transcendências produzidos por outros ovos-sementes-cosmos sabedores de suas ancestralidades ou não. Falamos aqui de criação de mundos, internos e externos, que veiculam saberes, partilhas, humanidades, responsabilidades e solidariedades.

Tal dinâmica, nestes anos de pesquisa, em nada se assemelha a algo indigno, velho ou ultrapassado, descartável, nem tão pouco, estático e imutável, a presente pesquisa e seus fundamentos falam de vida viva, do verbo ação das potências transcendentes do corpo e suas relações de alteridade em um universo cultural brasileiro.

Assim, no presente texto não se reforçam dicotomias entre indivíduo-sociedade versus natureza-cultura, porque a ideia neste trabalho é que haja uma percepção complementar destes conceitos de práticas. Tal proposta é também apresentada por Foucault, que propõe uma revolução no modo de refletir as construções históricas e uma problematização das tradicionais oposições. O conceito de prática forjado por ele se dá no campo da filosofia da relação, onde ambas (prática e relação) são sinônimas, criadoras de mundos e sentidos.

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127Nessa linha sócio-temporal observa-se

à medida que o tempo vai se constituindo o quanto em cada platô da humanidade as diversas maneiras de existir, formas culturais, se misturam e tomam forças, sobrepondo-se umas às outras num jogo de estratégias de sobrevivências.

A cultura como estratégia de sobrevivência é tanto transnacional como tradutória. Ela é transnacional porque os discursos pós-coloniais contemporâneos estão enraizados em histórias específicas de deslocamento cultural, seja como “meia-passagem” da escravidão e servidão, como “viagem para fora” da missão civilizatória, a acomodação maciça da migração do Terceiro Mundo para o Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, ou o trânsito de refugiados econômicos e políticos dentro e fora do Terceiro Mundo. A cultura é tradutória porque essas histórias especiais de deslocamento — agora acompanhadas pelas ambições territoriais das tecnologias “globais” de mídia — tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por cultura, um assunto bastante complexo (BHABHA, 1998, p.241).

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QUARAR A ALMA – NINA VEIGAUma paisagem nascida de gestos. A provocação de uma memória afetiva por um objeto, por uma palavra: “quarar”. A mão da avó mergulhada no balde. A mão da avó gestuando água sobre os lençóis estendidos no capim crescido do quintal. Uma sensação antiga tenta se superpor à sensação atual e a estende sobre várias épocas ao mesmo tempo. O corpo experimentando à dinâmica da imanência: quarar a alma. A memória implica. Uma estranha contradição entre a sobrevivência e o nada. Nada mais? Só memória? Quarar, um hábito ancestral, praticamente em desuso, é trazido para o presente, proporcionando uma estranha alegria. Uma vez experimentada esta alegria, a qualidade aparece como uma propriedade do objeto que a possui: o gesto visto. Mas, estranhamente, tudo se passa como se esta qualidade envolvesse a alma de um objeto diferente daquele – um signo. Lavar a alma, experiência sutil, acontecimento leve. Como construir um corpo nesta experimentação delicada? Como construir um corpo na elasticidade de tempos de uma sensação? O Tempo, para tornar-se visível, vive a cata de corpos, de gestos, e, mal os encontra, logo dele se apodera, a fim de exibir sua lanterna mágica. Que corpo? Que gestos? Fragmentos de tempos plurais. Memória do corpo. Memória em movimentos fugazes, quase imperceptíveis. Pequenas inquietações moventes. A própria subjetividade passa por ressignificação, gestua entre tempos, sensações, memórias. Gestos: movimentos de um corpo que desenha e redesenha sua forma. Talvez o movimento vá me fazer caminhar para algum lugar. Um lugar, uma paisagem nascida de gestos. Uma estética na produção de existência em corpo-pensamento. Na memória, as afetações a colocar em movimento a vida. Encontros a compor tempos múltiplos, na simultaneidade do gesto. Realidade e poesia, num signo que se revela no gesto artistado da vida.

Veiga, Nina (2015). Fiar a escrita, Políticas de narratividade, exercícios e experimentações entre arte-manual e escrita

acadêmica. Um modo de existir em educações inspirado em uma antroposofia da imanência. Tese de doutorado, UFJF, Juiz

de Fora, MG.

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129

4.3 Fundamento sonho

Nas culturas ditas populares é muito comum ouvir seus membros afirmarem o quanto

o festejo realizado é parte de um sonho coletivo de seus membros, ou ao celebrar a vida nas expressividades e, no prazer do mover dos corpos, as pessoas afirmam parecer um sonho. São nestas dimensões que compreendemos a força do fundamento sonho para esta pesquisa, absorvendo tanto a dimensão do sonho que está no dentro, interna, individual, quanto na dimensão do que esta no fora, externalizado, no coletivo de um determinado grupo.

Fundamento também desse processo de criação, o sonho é registrado aqui como devir, veículo criador de símbolos, imagens, porque carrega em si uma natureza complexa, mas também anímica, representativa imagética, fluída, geradora de mananciais poéticos, vetoriais simbólicos transcendentes do que é absorvido no fundamento vida e gesto.

Para Freud (Freud apud Chevalier, 2016, p.844) “ a interpretação dos sonhos é a estrada principal para se chegar ao conhecimento da alma”. Logo, termos a consciência do potencial criativo que habita o sonho, dimensão idílica, é essencial para este processo de criação que se propõem na alteridade, na escuta, no sentir do interior exterior a construção, nesse caso, de impotências. Estar na condição sonho, perceber invisibilidades, acreditar em utopias é, ao mesmo tempo, ser forte dentro da impotência. Agamben (2015) em “Potência do Pensamento” dilata as ideias de Aristóteles

ao pensar sobre a potência de poder ser e ao aprofundar essa possibilidade de poder não-ser. Por meio deste pensamento Agamben chega a um de seus conceitos seminais; a teoria da impotência. Rodrigo Petrônio nos apresenta resumidamente abaixo a ideia dos princípios da teoria da impotência do autor acima citado, a qual dialogamos nesta pesquisa.

A impotência não é privação ou carência. É o estado mais elevado da liberdade humana, pois é aquele gesto que nos liberta de todas as determinações biológicas, culturais ou teológicas. Liberdade não é apenas poder-ser. Liberdade é acima de tudo poder-não-ser. Não é afirmarmos o que somos, mas podermos renunciar ao que não somos. E nos transformarmos em algo que nem sequer nos imaginávamos capazes. A poesia é uma das supremas formas de impotência. Sendo campo do possível e não do provável, ela desfaz o elo de necessidades potencialmente inscritas em nós (PETRÔNIO,2013, p.02).

Embora tal afirmação, possa parecer uma profanação desta construção, aceitar as invisibilidades como fundamento vivo de nossas praticas é de alguma maneira também

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130libertar-se, é poder não ser.

Para Agamben (2015), após se debruçar sobre a teoria da potência de Aristóteles, há uma necessidade de uma impotência para cada potência, e afirma que esta “impotência não é algo negativo, ou uma inabilidade, passividade, mas é sim uma potência de “não ser” ou “de não fazer”, segundo ele, é um ato de inoperar, e o mesmo ainda afirma que, segundo Aristóteles, toda a potência é articulada, a decisiva é aquela a que o filósofo chama de “a potência de não ser” ou também “impotência”.

Em muitos momentos de pesquisa de campo, e do trabalho corporal, as dificuldades, (des)humanidades, e injustiças são tão avassaladoras que é preciso poder-não-ser, renunciar por um momento nossas crenças históricas e culturais e ser capaz de receber o intangível, o improvável. Uma vez vivida a tal experiência da “impotência”, tornamo-nos mais capazes de nos colocar na condição utópica de “estar” junto com o outro e de “poder não-ser” junto.

Ao convivermos com as culturas originárias brasileiras, nas festas negras e nos rituais guarani, o fundamento sonho está sempre presente e a força da “impotência” se

materializa naqueles corpos.

[...]toda a vida mental dos Guarani converge para “O Além”... O seu ideal de cultura é de outra ordem; é a vivência mística da divindade, que não depende das qualidades éticas do indivíduo, mas da disposição espiritual de ouvir a voz da revelação. Essa atitude e esse ideal é que lhe determinam a personalidade” (SCHADEN; EGON 1954, p.248).

Para nós, artistas-pesquisadores-docentes, fica clara e necessária a urgência dessa atitude de disposição espiritual de ouvir a voz da revelação. E não é nada místico, é preciso “não ser” para encontrar espaços para revelações, é preciso sonho, sensibilidades, sentir o não falado, porém dito nos olhos das crianças e idosos dos grupos dos segmentos excluídos. Ao visitar alguns grupos indígenas e comunidades negras, estes podem nos receber eventualmente com olhares atravessados, incertos de nossa presença naqueles lugares. Neste ato sempre reafirmam o lugar da impotência daquele que “pode não ser”. O encontro nunca é fácil, os estereótipos e o inconsciente colonial estão ali postos. A academia, de alguma maneira,

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131invade mais uma vez aquele espaço de vida e gesto e impõe (por mais que acreditemos estarmos cientes de nosso lugar), sua maneira de ser no mundo.

Assim a promessa que o sonho formula no próprio momento em que se dissipa é a de uma lucidez tão poderosa que nos entrega a distração, de uma palavra tão completa capaz de nos reenviar à infância, de uma razão tão soberana capaz de compreender a si mesma como incompreensível (AGAMBEN, 2012. p.59).

Essa lucidez aprendida com as populações negras e indígenas é que viemos procurar e partilhar no fundamento sonho para a cena, no processo de criação e na academia. Onde a palavra transcenda a forma, as metodologias e epistemologias colonizadas, e que as mesmas busquem a perfeição das invisibilidades dos sonhos e “impotências” postas nas relações comunitárias e nos espaços-tempos novos instaurados pelo ritual decolonial do existir.

A educação dos Guarani é uma educação da palavra e pela palavra, porém, não para aprender ou memorizar palavras já ditas, mas para escutar as palavras que receberá ‘dos de Acima’, geralmente através de sonhos. Os Guarani buscam a perfeição de seu ser na perfeição de seu ‘dizer’, de seu ‘falar’ (SCHADEN; EGON,1954, p.42).

Imagem 29 - Foto: Carla Ávila – Acampamento Guyracambi ý- 2013.

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BACHELARD La poétique de la rêverie. p. 13

Ao espírito resta a tarefa de fazer sistemas, de agenciar experiências diversas para tentar compreender o universo. Ao espírito convém a paciência de instruir-se ao longo do passado do saber. O passado da alma está tão longe! A alma não vive ao fio do tempo. Ela encontra o seu repouso nos universos imaginados pelo devaneio. Acreditamos, pois, poder mostrar que as imagens cósmicas pertencem à alma, à alma solitária, à alma princípio de toda solidão. As ideias se aprimoram e se multiplicam no comércio dos espíritos. As imagens, em seu resplendor, realizam uma comunhão muito simples das almas. Dois vocabulários deveriam ser organizados para estudar, um o saber, outro a poesia. Mas esses vocabulários não se correspondem. Seria vão constituir dicionários para traduzir de uma língua para outra. E a língua dos poetas deve ser aprendida diretamente, muito precisamente como a linguagem das almas.

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133

4.4 Enlaçando Fundações4.4.1 Enlaçando Fundações das cartografias desde fora

Estes três fundamentos só são possíveis tendo a consciência crítica e criativa das

questões raciais e culturais a que estamos inseridos em territórios brasileiros. Para tanto o trabalho leva em consideração toda a trajetória histórica cultural e social a qual fomos constituídos e ainda estamos nos constituindo. É necessário ter em mente a visão do corpo e ancestralidade aliada a proposta de alteridade que assimila postura de solidariedade e sensibilidade para com o grupo de artistas, comunidades e as relações estabelecidas no processo de criação e seus desdobramentos tanto nas artes quanto na própria comunidade. É preciso estar de corpo e sentidos plenos disponível para a ação no campo e percepção e assimilação do vivido, de forma atenta e critica, sempre em perspectiva histórica e desperto para os ideais decoloniais.

Nesta proposta é preciso estar atento aos desassossegos móveis da pesquisa, as questões geradoras que partem desde fora para dentro, e que são processadas e reconhecidas desde dentro para fora, tais conceitos presentes na proposta metodológica de Inaicyra Falcão dos Santos serão desdobrados e aprofundados para esta pesquisa nos volumes seguintes.

4.4.2 Enlaçando Fundações das cartografias desde dentro

A proposta de criação aqui fundamentada passa pelo ovo-semente-cosmo, semeado nos horizontes da cultura a que aquele corpo está inserido e que para germinar será preciso o fundamento da vida que nada mais é do que a sua consciência de sua condição si/mundo, a compreensão e relação com a cultura em que está inserido a pesquisa e compreensão de sua cultura ancestral.

O segundo fundamento passa pelo gesto, pela consciência e o domínio dos movimentos, dos fazeres e ações, verbos que atravessam o corpo tanto no passado com os gestos ensinamentos ancestrais, quando o que se reflete no corpo agora, para que repensemos que ao gerá-los também estamos deixando gestos e saberes para o futuro.

Por fim o terceiro fundamento perpassa os contextos do sonho, onde são postos os níveis de percepção do inconsciente enquanto propulsores de criação, este fundamento chama a consciência do artista para as dimensões utópicas desse processo, para o não dito mas percebido em outro nível que não somente o da razão, o “não ser” enraíza-se na dimensão idílica e brota no desejo de resistência da “ impotência” para a criação de novos mundos, devaneios inconformados para transformações e transcendências.

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134

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