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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DCV5917-4 O Novo Código Civil: Proposta de Emendas e Revisões I Ricardo Nicotra (Mestrando) Nº USP 1902001 Orientadora: Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima Professores Regentes: Prof. Titular Carlos Alberto Dabus Maluf Prof. Titular Rui Geraldo Camargo de Viana Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima Profa. Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DCV5917-4

O Novo Código Civil: Proposta de Emendas e Revisões I

Ricardo Nicotra (Mestrando)

Nº USP 1902001

Orientadora: Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima

Professores Regentes:

Prof. Titular Carlos Alberto Dabus Maluf

Prof. Titular Rui Geraldo Camargo de Viana

Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima

Profa. Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf

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Direitos da Personalidade na Era Tecnológica

Privacidade na Sociedade Digital

1. Sumário

2. Introdução.................................................................................................................. 3

3. Direitos da Personalidade .......................................................................................... 4

Evolução Histórica ........................................................................................................ 4

Conceito ........................................................................................................................ 6

Teorias .......................................................................................................................... 8

Características ............................................................................................................... 8

Direitos da Personalidade e Direitos Humanos .......................................................... 10

A Possibilidade de Limitação Voluntária ................................................................... 10

4. Direito à Privacidade e à Intimidade ....................................................................... 11

Conceito ...................................................................................................................... 11

Evolução no Conceito de Intimidade .......................................................................... 13

Limitações ................................................................................................................... 13

Formas de Tutela e Sancionamento ............................................................................ 14

5. Privacidade na Sociedade Digital – Internet e Redes Sociais ................................. 15

Fatores de Vulnerabilidade ......................................................................................... 16

Direito ao Esquecimento ............................................................................................. 18

Interações no Espaço Virtual ...................................................................................... 20

Impactos da Violação dos Direitos da Personalidade ................................................. 21

6. Legislação Relacionada ........................................................................................... 22

Marco Civil da Internet ............................................................................................... 22

Anteprojeto de Lei para a Proteção de Dados Pessoais .............................................. 24

A Diretiva 95/46/CE ................................................................................................... 25

7. Conclusão ................................................................................................................ 26

8. Bibliografia.............................................................................................................. 27

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2. Introdução

O dinamismo nas estruturas e formas de relacionamento social faz com que determinados

temas do direito ganhem importância em certos momentos da história.

Assim como o direito à propriedade ganhou destaque por ocasião das revoluções liberais

no final do século 18, posteriormente, por ocasião da revolução industrial, enfatizou-se a

importância dos direitos sociais.

No momento em que vivemos hoje, caracterizado por inegável desenvolvimento

tecnológico fomentador da dinâmica no fluxo informacional, coloca-se na pauta de

discussões o tema da proteção dos direitos da personalidade. De forma mais específica,

com a difusão dos recursos de armazenamento e comunicação de dados trazidos pelo

desenvolvimento telemático, suscita-se a discussão sobre a vulnerabilidade da

privacidade e intimidade.

Entende-se que o desenvolvimento tecnológico, ao facilitar a captação, armazenamento e

distribuição de dados e informações pessoais1, colocou os direitos da personalidade,

mormente aqueles referentes à privacidade e intimidade, numa posição de grande

vulnerabilidade, razão pela qual faz-se mister o aprofundamento de estudos científicos

que tenham por objeto estes direitos e suas formas de tutela.

Observe-se, como motivação do estudo e elemento potencializador da referida

vulnerabilidade, a possibilidade da replicação, através de conversão em formato digital,

de atributos pessoais que são projeções da existência humana e, portanto, considerados

objetos de direito da personalidade. Dentre estes atributos podemos citar a voz e a imagem

passíveis de digitalização, a conduta privada do indivíduo passível de registro em vídeo

digital, o fruto da criação do indivíduo como, por exemplo, obras literárias e musicais

também passíveis de conversão para o formato digital.

Qualquer aspecto da vida humana, qualquer atributo individual considerado uma projeção

de sua existência e, portanto, qualificado como direito de personalidade, se passível de

codificação para o formato digital torna-se potencialmente vulnerável dada a facilidade

de captura, armazenamento e distribuição em âmbito internacional com velocidade

1 Neste trabalho, à expressão “dados e informações pessoais” deve ser dada uma interpretação no sentido

amplo. Isso significa que qualquer reprodução de aspectos pessoais em meio digital deverá ser considerada

no conjunto de “dados e informações pessoais”. Isso inclui fotos, vídeos, produção autoral, voz, dados

pessoais no sentido estrito (endereço, telefone, saldos bancários).

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instantânea e de efeitos irreversíveis.

O limitado controle estatal sobre o poder das novas tecnologias de captura,

armazenamento e distribuição de informação, torna a questão ainda mais perturbadora.

Embora o Estado possa estabelecer normas que coíbam o abuso e violações nesta seara,

a ação estatal atualmente está mais ligada a uma atuação reativa do que a um controle

preventivo. Via de regra lança-se mão das normas de direito civil e penal para

responsabilizar o ofensor e indenizar a vítima, mas pouco se oferece no sentido de

prevenir ou evitar a lesão.

3. Direitos da Personalidade

Evolução Histórica

A história dos direitos da personalidade confunde-se com a história da proteção da pessoa

humana.

Todas as civilizações da antiguidade de certa forma estabeleceram normas de proteção ao

ser humano com vistas à preservação da sociedade.

O Professor Rui Geraldo Camargo Viana em obra escrita em conjunto com a Professora

Cíntia Rosa Pereira de Lima relembra que “a origem dos direitos da personalidade

remonta, de forma embrionária, ao Código de Hamurabi (1690 a.C.) que tutelava a honra

(art. 12), sobrepondo-se ao direito à vida do ofensor, punindo com a morte.”2

Na Grécia, a contribuição foi dada pela filosofia que colocou o homem como origem e

finalidade do direito. Por influência de Aristóteles, passa-se a considerar a igualdade entre

os homens e a lei (nomos) como regra de conduta. Também é na Grécia que exsurge o

conceito do direito natural (Sófocles e Antígona) que posteriormente contribuirá para o

desenvolvimento do jusnaturalismo, base filosófica para as declarações dos direitos.

Em Roma, no período clássico, não havia uma proteção sistemática à pessoa, mas leis

isoladas que protegiam determinados aspectos que hoje entendemos como direitos de

personalidade3. No período pós-clássico, por influência do Cristianismo, houve uma

evolução no sentido da proteção do ser humano observável, por exemplo, na atenuação

2 LIMA, 2014, p. 237.

3 A Lex Aquilia tutelava a integridade física da pessoa, a Lex Cornelia protegia o domicílio contra invasões

e a Lex Fabia estabelecia meios processuais para a defesa de direitos da personalidade

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da condição dos escravos.

Na Idade Média, sem a noção de individualidade, o terreno não foi fértil para o

desenvolvimento do conceito dos direitos da personalidade. No entanto o Professor Rui

Geraldo Camargo Viana e a Professora Cíntia Rosa Pereira de Lima destacam a

importância da doutrina de São Tomás de Aquino, como contribuição do Direito Natural,

na qualificação dos direitos da personalidade como direitos inatos.4

No início da Idade Moderna (séculos XV a XVI), época das Grandes Navegações,

Reforma e Renascimento, observou-se uma alteração na concepção do homem. A

doutrina dos direitos humanos encontrou um terreno fértil naquela sociedade influenciada

pelo antropocentrismo e humanismo estabelecidos com base no racionalismo. Admitiu-

se, então, a primazia do direito natural – o jusnaturalismo com método racional – e o

reconhecimento de direitos inatos, originários e irrenunciáveis.

Já nos séculos seguintes (XVII e XVIII) houve o fortalecimento da burguesia e dos ideais

liberais. Com os movimentos revolucionários surgiram as diversas Declarações de

Direitos. Nestas declarações universais, entendidas como aquelas aplicáveis a todos os

homens, os direitos individuais preexistentes eram reconhecidos. Observou-se, neste

contexto, a tomada de medidas legais para a abolição da escravatura, atenuação das penas

corporais e equiparação entre gêneros. Surge, na mesma época, o Constitucionalismo

moderno com seus direitos fundamentais em defesa dos homens contra a opressão do

Estado.

No século 19, no âmbito do direito civil, observou-se o movimento de codificação e

sistematização. Destaque-se o Código Francês (1804) como o grande diploma civilista do

início deste século. No entanto, a ênfase deste código estava na tutela do patrimônio e não

da pessoa razão pela qual a evolução dos direitos da personalidade neste século deu-se

por trabalho dos tribunais e da doutrina. Destacaram-se duas escolas: A Escola Histórica

do Direito e o Positivismo Jurídico. Alguns doutrinadores – Savigny e Escola Histórica –

negavam a existência dos direitos da personalidade sob a argumentação de que o homem

não poderia ser o próprio objeto do direito. Isto conduziria a possibilidades inadmissíveis

como, por exemplo, a disposição do próprio corpo e o suicídio. Por outro lado, para

aqueles da escola positivista tais direitos só poderiam ser admitidos se estivessem

4 LIMA, 2014, p. 237.

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positivados – negavam, portanto, que se tratavam de direitos inatos.

As teorias negativas foram posteriormente afastadas na medida em que foi possível

observar graves agressões aos direitos dos indivíduos. Inicialmente, na ausência de

normatização civil, a efetiva tutela destes direitos se deu através de sanções penais.

Ainda no século 19 o direito alemão, austríaco e suíço reconheceu um único e genérico

direito da personalidade, mas que após a entrada em vigor do BGB não encontrou espaço

no sistema. Neste século, o código que deu maior importância aos direitos da

personalidade foi o Código Civil Português de 1867, porquanto tratou dos denominados

“direitos originários”.

No Brasil, no início do século passado, o Código Bevilácqua, por seu caráter

patrimonialista, não trouxe disciplina sobre os direitos da personalidade. Entendia-se que

o sujeito de direito não poderia ser, ao mesmo tempo, o objeto do direito. Evolução

legislativa foi observada no Código Civil italiano de 1942 que trouxe uma disciplina

parcial da matéria. Este código serviu de modelo, neste aspecto, para alguns códigos como

o Código Civil português de 1966 e o Código Civil brasileiro de 2002.

No entanto, foram os trágicos episódios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial que

chamaram a atenção para a necessidade de uma disciplina mais bem estruturada na seara

dos direitos da personalidade. A Carta das Nações Unidas promoveu o respeito aos

direitos humanos, às liberdades fundamentais e colocou em evidência a necessidade de

respeito à dignidade da pessoa humana. Novos diplomas se seguiram com um teor

destinado a reforçar a matéria: Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e

a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)

de 1969.

Conceito

A lei civil brasileira não conceituou os direitos da personalidade embora tenha dedicado

um capítulo para dispor a respeito do tema5. Coube à doutrina trazer uma variedade de

conceitos que nem sempre ficaram imunes às críticas.

Há os que conceituam os direitos da personalidade com base em suas características

como, por exemplo, a extrapatrimonialidade, e o fato de se tratar de direitos absolutos e

5 O capítulo II (“Dos Direitos da Personalidade”) do título I (“Das Pessoas Naturais”) contêm 11 artigos

(arts. 11 a 21) que disciplinam a matéria dos direitos da personalidade.

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indisponíveis. No entanto, preferimos não confundir o conceito de tais direitos com as

suas características. Sobre estas, trataremos posteriormente.

Alguns autores como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho conceituam tais

direitos com base no seu objeto entendendo que tais direitos são “os que têm por objeto

os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”.6

Washington de Barros Monteiro identifica os direitos da personalidade com “as

características que a distinguem como ser humano” e que são “pressuposto da própria

existência da pessoa”.7

Carlos Alberto Bittar define os direitos da personalidade como aqueles “reconhecidos à

pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade”8.

O professor Bittar utiliza-se da expressão “reconhecidos” por entender que os direitos da

personalidade são inatos ao homem e, portanto, não são direitos concedidos pelo Estado,

mas tão somente reconhecidos e declarados pelo ordenamento jurídico dado que tais

direitos sempre existiram, ainda que não positivados.

Estes direitos estão relacionados a atributos intrínsecos e indissociáveis da vida e

existência humanas. Por tais razões são também ditos “direitos essenciais”.

As “projeções na sociedade”, expressão utilizada pelo professor Bittar, são as diversas

formas através das quais um indivíduo exterioriza sua existência no meio em que vive.

As possíveis projeções pressupõem a existência de dimensões ou âmbitos de atuação do

ser humano: físico, mental, moral, espiritual, etc. As qualidades humanas em todas estas

dimensões expressam-se, ou projetam-se, na sociedade. Por exemplo, na dimensão física

o indivíduo projeta-se através de sua imagem, da sua voz, da sua energia e saúde. Sob

estes elementos, intrínsecos à existência humana, o indivíduo exerce direito subjetivo,

qualificado como direitos da personalidade. Tais direitos são poderes que o homem exerce

sobre sua própria pessoa, sobre elementos ou atributos intrínsecos a sua natureza.

Na construção de uma teoria geral dos direitos da personalidade há diversas dificuldades

que ficam evidentes quando observamos a divergência doutrinária a respeito de

6 GAGLIANO; FILHO, 2008, p. 136.

7 MONTEIRO, 2011, p. 106.

8 BITTAR, 1989, p. 1

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determinados aspectos como a natureza de tais direitos, seus limites e sua especificação.

Teorias

Diversas teorias foram desenvolvidas para tratar dos direitos da personalidade.

A teoria negativista, já mencionada anterioremente, foi apoiada por juristas franceses e

italianos como Savigny e Ravá. Eles negavam a existência dos direitos da personalidade

por entenderem que o titular do direito não poderia se confundir com o próprio objeto do

direito. Esta confusão implicaria em situações contrárias ao direito como, por exemplo, a

possibilidade de disposição do próprio corpo e da vida.

A teoria monista ou unitária foi defendida na Alemanha por Karl Larenz. De acordo com

esta teoria haveria apenas um direito da personalidade específico, o nome (BGB §12), e

um direito geral de personalidade (BGB §823).

A teoria pluralista tenta remediar a confusão observada pelos defensores da teoria

negativista. Afirmam que o objeto não se confunde com a pessoa. Tutelar os direitos da

personalidade é proteger apenas alguns aspectos da pessoa (vida, integridade física,

honra, vida privada, nome, etc...) e cada um destes aspectos goza de total autonomia em

relação à própria pessoa.

Características

A análise das características dos direitos da personalidade presta-se à determinação dos

poderes jurídicos do sujeito titular destes direitos. O tema tem, portanto, implicações

práticas.

O artigo 11 do Código Civil brasileiro menciona apenas duas características dos direitos

da personalidade: são eles intransmissíveis e irrenunciáveis.

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são

intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação

voluntária.

Em decorrência do desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do tema, outras

características são admitidas. Entende-se que os direitos da personalidade são absolutos,

extrapatrimoniais, inatos (ou originários), vitalícios (ou perenes), necessários (ou

imprescindíveis), indisponíveis, inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis,

impenhoráveis, inexpropriáveis e imprescritíveis.

A análise crítica pormenorizada de cada uma destas características transcende os limites

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deste trabalho, razão pela qual limitar-se-á à breve análise dos aspectos mais relevantes.

A absolutidade está vinculada ao fato de tais direitos serem oponíveis erga omnes.

Durante algum tempo entendia-se que apenas os direitos reais eram absolutos neste

sentido, sendo relativos os direitos de crédito, de natureza obrigacional. Hoje entende-se

que direitos imateriais como os da personalidade são absolutos. Isso implica num dever

geral de abstenção, de não intromissão. Não se deve confundir, neste ponto, com outro

sentido dado à expressão “direitos absolutos”, qual seja, o sentido de que o direito não

admite ponderação em face de colisão de direitos. Sob tal sentido nenhum direito é

absoluto e sempre estará sujeito à análise de ponderação aplicando-se os critérios de

proporcionalidade em face do caso concreto.

Entende-se que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque não são

suscetíveis de valoração econômica. No tocante à extrapatrimonialidade há relação íntima

com outras características destes direitos tais como a indisponibilidade, a

intransmissibilidade, a impenhorabilidade, a inrenunciabilidade e a imprescritibilidade.

Isso porque entende-se que os direitos patrimoniais geralmente gozam de disponibilidade,

transmissibilidade, renunciabilidade e prescritibilidade. Observar-se-á adiante que,

apesar de serem tais direitos extrapatrimoniais, sua violação pode ensejar a necessidade

de reparação convertida em pecúnia.

São também irrenunciáveis pois nem mesmo o próprio titular pode eliminar tais direitos.

Há, no entanto, a possibilidade de mitigação destas limitações. Seu titular pode deles

dispor de forma limitada como, por exemplo, na concessão temporária de licença para

uso de imagem ou de voz.

Tais direitos são ditos vitalícios e necessários pois acompanham o titular enquanto viver.

Neste caso melhor seria dizer que são direitos perenes uma vez que há direitos que

subsistem após a morte.

Sobre as características de serem tais direitos inatos ou intrínsecos à existência humana,

cabe a observação de que tais direitos não se limitam àqueles já existentes no indivíduo

por ocasião de seu nascimento, mas há direitos da personalidade que vão se agregando à

pessoa como fruto e expressão de sua existência. Um exemplo neste sentido é o direito

moral do autor, pois a obra criativa do gênio humano torna-se extensão da sua

personalidade.

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Direitos da Personalidade e Direitos Humanos

Diferencia-se a categoria de direitos de personalidade da categoria de direitos humanos

(ou direitos do homem) em função do agente potencialmente violador do direito.

Enquanto os direitos humanos estão identificados com os direitos protegidos

constitucionalmente contra as arbitrariedades do Estado, os direitos da personalidade

estão relacionados com a proteção contra seus semelhantes no âmbito privado.

Orlando Gomes afirma que “os direitos da personalidade são os próprios direitos do

homem encarados sob outra perspectiva. Como direitos do homem são direitos públicos,

como direitos da personalidade são direitos privados. Os direitos individuais são

atribuídos, na esfera política, para proteger a personalidade contra o arbítrio do Estado,

enquanto a esses mesmos direitos, na esfera privada se concede a proteção para resguardá-

los de atentados a que está exposta pela ação inconsiderada de outro indivíduo”.9

De qualquer forma, tal distinção atualmente é flexibilizada na medida em que admite-se

para os direitos fundamentais a eficácia horizontal e vertical, ou seja, em face dos

particulares e em face do Estado.

A Possibilidade de Limitação Voluntária

Muito já se discutiu sobre a possibilidade de limitação voluntária dos direitos da

personalidade. Admitida em tese tal possibilidade discute-se a extensão da limitação.

O artigo 11 do Código Civil brasileiro dispõe que, em regra, o exercício dos direitos da

personalidade não pode sofrer limitação voluntária excetuando-se os casos previstos em

lei. Tal dispositivo legal mereceu uma interpretação mais flexível pela doutrina.

O enunciado 4 do CJF aprovado na 1ª Jornada de Direito Civil, por exemplo, admite tal

flexibilização nos seguintes termos: “O exercício dos direitos da personalidade pode

sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.”. Note-se que ao

entender que a limitação não pode ser geral nem permanente, coloca-se limites à limitação

[sic]: um limite de ordem temporal (não pode ser permanente) e um limite de ordem

objetiva (não pode ser geral).

Na 3ª Jornada de Direito Civil editou-se o enunciado 139 que impôs a observância de

determinados princípios na limitação dos direitos da personalidade: “Os direitos da

9 GOMES, 1965, p. 131-133.

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personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei,

não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé

objetiva e aos bons costumes”.

Com relação às lesões aos direitos da personalidade perpetradas post mortem, o

entendimento doutrinário é no sentido de que embora os legitimados para pleitear a tutela

dos direitos do falecido a exerçam por direito próprio (Enunciado 400 do CJF), tais

poderes “não compreendem a faculdade de limitação voluntária” (Enunciado 399 do

CJF).10

4. Direito à Privacidade e à Intimidade

Conceito

Há dificuldades para estabelecer com precisão o conceito sócio-jurídico de privacidade e

intimidade. Nos EUA este direito foi originalmente denominado de “right to be alone”.

Na Itália “diritto alla riservatezza”. Estas denominações demonstram o que se entendia

originalmente por intimidade. Este conceito estava relacionado ao isolamento, à vedação

da invasão da esfera privada. Tratava-se geralmente do direito de impedir que terceiros

conseguissem acesso a aspectos da vida privada. Hoje, com o avanço tecnológico, o

direito à intimidade ganhou novos contornos. Busca-se também impedir que tais aspectos

pessoais e reservados sejam divulgados ao público. Há, portanto, dois momentos: o do

acesso aos elementos da esfera privada do indivíduo e o da publicação ou divulgação

destes aspectos a terceiros.

José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, adota a definição

de J. Matos Pereira para privacidade. Trata-se, no seu entendimento, do “conjunto de

informações acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle,

ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser

legalmente sujeito”.11

O direito à intimidade é classificado por Carlos Alberto Bittar como um direito psíquico

10 Enunciado 399: Os poderes conferidos aos legitimados para a tutela post mortem dos direitos da

personalidade, nos termos dos arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do CC, não compreendem a

faculdade de limitação voluntária.

Enunciado 400: Os parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 asseguram legitimidade, por direito próprio, aos

parentes, cônjuge ou companheiro para a tutela contra lesão perpetrada post mortem.

11 AFONSO DA SILVA, 2002, p.205.

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e que está relacionado ao resguardo da privacidade em seus múltiplos aspectos: pessoais,

familiares e negociais.12

Pontes de Miranda caminha no mesmo sentido ao associar o direito à intimidade ao

“resguardo dos sentidos alheios, principalmente da vista e dos ouvidos dos outros”13,

associando este direito com o segredo.

Marcel Leonardi menciona quatro conceitos de privacidade já produzidos pela doutrina e

jurisprudência14: (1) o direito a ser deixado só, (2) o resguardo contra interferências

alheias, (3) o segredo ou sigilo e (4) o controle sobre informações e dados pessoais. Este

último aspecto será destacado ao se abordar acerca da privacidade na sociedade digital.

Embora o tema seja de grande relevância, observa-se certa divergência nas tentativas de

se definir o que seja exatamente o direito à privacidade. Autores que distinguem

privacidade de intimidade geralmente classificam esta como espécie daquela sendo,

portanto, a privacidade direito de natureza mais ampla abarcando os acontecimentos e

comportamentos atinentes às relações pessoais em geral. A intimidade refere-se ao

mesmo objeto, mas em relação a um círculo mais restrito que envolva, por exemplo,

relações familiares e amizades próximas.

Reconhece-se, através do direito à privacidade, o direito da pessoa impor restrições ao

acesso e publicação de outros direitos pessoais tais como imagens, vídeos, voz,

informações pessoais e produção autoral. Washington de Barros Monteiro menciona um

rol exemplificativo de elementos referentes à vida privada e à intimidade da pessoa que

encontram-se protegidos pela legislação civil: “O gosto pessoal, a intimidade do lar, as

amizades, as preferências artísticas, literárias, sociais, gastronômicas, sexuais, as doenças

porventura existentes, medicamentos tomados, lugares frequentados, as pessoas com

quem se conversa e sai, até o lixo produzido, interessam exclusivamente a cada indivíduo,

devendo ficar fora da curiosidade, conhecimento, intromissão ou interferência de quem

quer que seja.”15

12 BITTAR, 1989, p. 102.

13 MIRANDA, 2012, p. 196.

14 LEONARDI, 2012, p. 52.

15 MONTEIRO, 2011, p. 114.

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Evolução no Conceito de Intimidade

Antes a intimidade era entendida como “o direito de ser deixado só” (direito ao

isolamento, à reclusão), direito baseado em valores individualistas. Hoje ninguém mais

está só – observa-se grande dinâmica nos relacionamentos, principalmente por meios

virtuais, e, consequentemente, grande fluxo de dados e informações pessoais. Portanto,

hoje a violação da privacidade se dá mais frequentemente com a divulgação de dados e

informações pessoais e não meramente com a invasão do espaço privado da pessoa.

É possível afirmar que o direito à intimidade é um direito negativo: proíbe-se a exposição

de aspectos privados da personalidade a terceiros. O direito de divulgação cabe ao titular

do direito. É possível, no entanto, a divulgação por terceiros se autorizada expressamente

pelo titular em documento hábil.

Há mitigação desta regra em determinadas situações. Quando a informação a ser

divulgada tiver relação com o interesse público entende-se que sua publicação

independerá de anuência. A privacidade de pessoas públicas como políticos, atletas e

artistas, acaba sofrendo limitação em razão do interesse público em determinados

aspectos da personalidade de tais atores. Mesmo assim, ainda persiste, nestes casos, um

limite à confidencialidade. Aspectos familiares e das correspondências, por exemplo,

ficam fora do que se considera “interesse público” e, portanto, são preservados da

publicidade.

Limitações

A vida em sociedade e a existência de outros princípios que, no caso concreto, venham a

colidir com o direito de privacidade, obstam a pretensão de se dar a este direito um caráter

absoluto.16

Reconhece-se que interesses públicos podem limitar o direito de evitar a publicação e

divulgação de acontecimentos ou comportamentos ocorridos no âmbito privado do

indivíduo. São situações em que a ponderação de valores e aplicação dos critérios de

proporcionalidade privilegiam o direito à informação em detrimento da privacidade e

intimidade.

16 Não se deve confundir com o sentido de direito absoluto dado ao direito na seção que tratou das

características dos direitos da personalidade. Naquele contexto o sentido dado ao termo “absoluto” estava

relacionado à sua oponibilidade contra todos.

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Exemplo comum são as revistas em bagagens efetuadas por profissionais de segurança

em aeroportos. Tal limitação da intimidade é justificada pelo interesse público na

informação com vistas à preservação da segurança coletiva.

É evidente que tal limitação deve ser analisada no caso concreto em função de um

conjunto de circunstâncias sob o ponto de vista subjetivo e objetivo – quem é a pessoa

sobre a qual pretende-se publicar informações? É uma celebridade? Qual é a finalidade

da divulgação? Como a informação foi obtida? A ponderação de valores tem sido a saída

adotada pelo judiciário e recomendada pela doutrina nos casos de colisão de direitos.17

Formas de Tutela e Sancionamento

A vida privada e a intimidade são direitos da personalidade que gozam de proteção

constitucional bem como são tuteladas pela lei civil. A Constituição Federal brasileira de

1988 dispõe no artigo 5º, X que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a

imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente

de sua violação”. Além da possibilidade de indenização, a Constituição Federal assegura,

em casos de dano moral, “o direito de resposta, proporcional ao agravo” (art. 5º, V da

CF/88) que consiste numa reparação de caráter não patrimonial. Já o Código Civil de

2002, em seu artigo 21, vai além da previsão de indenização ou direito de resposta em

caso de violação do direito: a lei civil dá ao juiz a possibilidade de aplicar medidas

destinadas a impedir ou cessar a violação:

Art. 21 do CC: A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do

interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário

a esta norma.

Perceba-se que enquanto a Constituição Federal prevê indenização para os casos de

violação dos direitos aqui referidos, adotando uma postura reativa, o Código Civil, em

contrapartida, adota uma postura preventiva ao dar ao juiz poderes para impedir ou fazer

17 Enunciado 274 do CFJ: Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código

Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da

Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode

sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação.

Enunciado 279 do CFJ: A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente

tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em

caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a

veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica),

privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.

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cessar a lesão.

Na prática observa-se que o problema da violação destes direitos é geralmente tratado a

posteriori pela via da indenização. Deve-se ressaltar, no entanto, que há ferramental

processual disponível para a tutela preventiva. Um exemplo é a antecipação de tutela num

pedido que consista em obrigação de fazer ou de não fazer, o que no novo diploma

processual é conhecido como tutela de urgência.

A proteção apriorística confere maior eficácia à norma fundamental. Esta tutela tem

caráter inibitório. Objetiva impedir a prática das violações, interromper o ilícito e não

objetiva a reparação do dano.

De qualquer forma o diploma civil não ignora a possibilidade de atuação reativa através

de indenização. O artigo 12 do Código Civil faz esta previsão nos seguintes termos:

“Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar

perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.

A questão da tutela da privacidade e intimidade ganha vulto quando discute-se acerca das

violações perpetradas por meio virtual. Marcel Leonardi afirma que “a arquitetura da

Internet dificulta a obtenção de uma tutela perfeita, pois ela foi originalmente projetada

para permitir o compartilhamento livre de informações, ainda que ofereça alguns

mecanismos de controle”18.

Por criar uma sociedade mundial, em muitas situações o Estado tem dificuldades em

aplicar a lei nacional para tutelar as violações dos direitos ocorridas na Internet. A lei,

segundo Lawrence Lessig, é dada não pelas normas emanadas do poder legislativo, mas

pelo código de máquina das aplicações: “code is law”, afirmou.

5. Privacidade na Sociedade Digital – Internet e Redes Sociais

Como visto anteriormente, o conceito original de direito à privacidade estava relacionado

ao direito de ser deixado só. No entanto, o avanço tecnológico expandiu este conceito. Já

em 1890, há 125 anos, Samuel Warren e Louis Brandeis publicaram na Harvard Law

Review um artigo intitulado “The Right to Privacy”19 onde demonstram preocupação com

a proteção dos direitos da personalidade em face da evolução tecnológica que, à época,

18 LEONARDI, 2012, p. 338.

19 WARREN; BRANDEIS, 1890.

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demonstrava-se através da criação e difusão da fotografia.

“Recent inventions and business methods call attention to the next step which must

be taken for the protection of the person, and for securing to the individual what

Judge Cooley calls the right "to be let alone". Instantaneous photographs and

newspaper enterprise have invaded the sacred precincts of private and domestic

life; and numerous mechanical devices threaten to make good the prediction that

"what is whispered in the closet shall be proclaimed from the house-tops." For

years there has been a feeling that the law must afford some remedy for the

unauthorized circulation of portraits of private persons; and the evil of invasion

of privacy by the newspapers, long keenly felt, has been but recently discussed by

an able writer.” (grifou-se)

De fato, o texto escrito há 125 anos demonstrou uma tendência que se concretizou

agravada pelos fatores de vulnerabilidade dos direitos da personalidade que passaremos

a expor.

Fatores de Vulnerabilidade

O rápido desenvolvimento tecnológico observado nas últimas décadas promoveu o

desenvolvimento e a popularização de ferramentas e infraestrutura que permitem a

captação e registro de dados e informações pessoais que refletem e caracterizam o

indivíduo em várias dimensões de sua personalidade.

Já em 1980, durante a guerra fria, René Ariel Dotti afirmou que “a evolução dos

mecanismos técnicos que tornaram possível o aproveitamento da informática criou no

homem uma necessidade de reação contra algo de extraordinário que há bem pouco tempo

não passaria de ficção, mas que hoje ameaça gravemente o desenvolvimento natural da

personalidade. Não se trata apenas da existência de meios capazes de levar à destruição

material da humanidade, mas também, e fundamentalmente, da colocação à

disponibilidade de certos órgãos, instrumentos tecnológicos aptos, por si só, a reduzir o

homem à qualidade de simples peça de uma máquina de produção burocrática”20.

As projeções da personalidade humana na sociedade em suas várias dimensões são

facilmente capturadas e reduzidas a uma sequência de bits e bytes, gerando registros de

aspectos privados e íntimos de sua vida particular. Em suma, a realidade hoje é facilmente

20 DOTTI, 1980, p. 256.

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capturada e registrada de forma digital. Atualmente é possível codificar digitalmente a

voz, a imagem, vídeos de fatos e circunstâncias da vida privada bem como o resultado da

produção autoral.

A facilidade na captação destes aspectos pessoais e a possibilidade de conversão para

código digital é apenas o primeiro dos fatores que tornam vulneráveis os direitos da

personalidade. Estes aspectos da vida humana (imagem, voz, vídeo, etc) uma vez

capturados e codificados por dispositivo tecnológicos de certa forma se perpetuam sob o

acesso alheio porquanto aquele que violou a privacidade obtendo imagens, sons ou

qualquer outra reprodução da personalidade alheia torna-se possuidor do referido registro

podendo acessá-lo quando bem entender.

O avanço tecnológico permitiu a criação de bancos de dados de alta capacidade de

armazenamento para hospedar as reproduções digitais da personalidade humana. Este é o

segundo fator de vulnerabilidade dos direitos da personalidade na sociedade digital: a

altíssima capacidade de armazenamento de informação. O que no passado era registrado

na pedra, no barro, no papiro e no papel, mídias onde o armazenamento de informação

era limitado, hoje é gravado num pen-drive, num disco rígido ou em bases de dados de

alto poder de armazenamento. Recentemente criou-se um novo conceito de

armazenamento denominado cloud computing (“computação na nuvem”) que facilita não

apenas o armazenamento destes dados e informações, mas também seu processamento e

compartilhamento com o consequente risco de replicação indiscriminada.21

O terceiro fator de vulnerabilidade é justamente este último ponto citado na esteira da

tecnologia cloud: a facilidade de replicação dos dados e informações armazenados em

meio digital. Se na idade média eram necessários copistas versados nas letras medievais

para que se replicasse o conteúdo de um papiro, hoje um documento em meio digital pode

ser replicado milhares de vezes em poucos segundos resultando numa publicação de

efeitos irreversíveis.

O quarto fator de vulnerabilidade dos direitos da personalidade é a facilidade de

divulgação das informações utilizando-se dos meios e ferramentas de disseminação

disponíveis na sociedade digital. Tome-se como exemplo as redes sociais largamente

21 Armazenamento em nuvem (cloud computing) refere-se à possibilidade do detentor dos dados armazená-

los num computador remoto (servidor) transmitindo os dados pela internet e possibilitando o futuro acesso

de qualquer dispositivo conectado à rede mundial (PCs, celulares, tablets, etc...). A tecnologia cloud,

ademais, permite facilidade no compartilhamento dos dados armazenados neste ambiente remoto.

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difundidas e sobre as quais não há um controle de conteúdo feito a priori. Cada usuário

administra como bem entender o conteúdo que publica. Fotos, fatos, vídeos, sons que

podem refletir a projeção da personalidade de outras pessoas podem ser publicados sem

a autorização dos seus titulares.

O quinto e mais importante fator de vulnerabilidade dos direitos da personalidade é o que

integra todos os anteriores com a agravante da organização de dados para a facilidade de

busca: trata-se da possibilidade de indexação dos dados pessoais. Estivessem todos os

dados disponíveis na gigantesca base de dados da rede mundial de computadores mas sem

organização, o potencial de lesão seria ínfimo porquanto o acesso a um dado específico

seria tão difícil quanto encontrar uma agulha no palheiro. No entanto a tecnologia de

busca permitiu o desenvolvimento de ferramentas que incessantemente rastreiam os

dados da internet e os colocam num índice possibilitando que qualquer usuário encontre

rapidamente o que se procura. Atualmente o mecanismo de busca mais difundido é aquele

disponibilizado pelo Google. Quando um usuário busca algo no Google não está

buscando na internet – o que levaria horas e talvez dias – mas está buscando a informação

nas bases de dados indexadas do Google.

Todos os fatores de vulnerabilidade mencionados acima aliados ao poderosíssimo

mecanismo de indexação possibilitam o escrutínio da vida pessoal de cada um de nós. Há

uma biografia não autorizada da cada um de nós sendo construída nas bases difusas da

grande rede cujo rápido acesso é possível graças ao processo de indexação.

Direito ao Esquecimento

Da associação de todos os fatores de vulnerabilidade mencionados acima decorrem uma

série de questões práticas com implicação jurídica. Uma delas têm sido objeto de extensas

discussões no Brasil e no exterior: trata-se da questão do direito ao esquecimento.

O direito ao esquecimento, no âmbito das relações digitais, é o direito subjetivo do

indivíduo de impedir que determinados dados ou informações pessoais armazenadas em

servidores da internet sejam capturados e processados por sistemas de indexação e

exibidos publicamente como resultado de buscas feitas a partir do nome do autor.

A questão tornou-se paradigmática a partir do caso de um espanhol, Mario Costeja

González, que propôs uma ação em face do jornal espanhol “La Vanguardia” em

litisconsórcio passivo com o Google da Espanha. O autor alegou que quando o seu nome

era introduzido no sistema de busca do Google, a primeira referência que retornava no

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processo de busca era um link para uma notícia do jornal litisconsorte cujo conteúdo fazia

referência a um leilão de uma casa do autor perdida em 1988 por endividamento. Sem

dúvida, tratava-se de uma referência constrangedora sobre o autor a respeito de um

processo que já havia sido extinto e cuja dívida já havia sido paga.

O autor pleiteou que quando o nome dele fosse inserido como critério de busca no referido

motor de busca, tal referência desabonadora não deveria constar dentre os resultados do

processamento.

A Google Spain e a Google Inc. consideram que, por força do princípio da

proporcionalidade, qualquer pedido de eliminação de informações deve ser dirigido ao

editor do sítio web em causa, porquanto é este que assume a responsabilidade de tornar

as informações públicas, que está em condições de avaliar a licitude dessa publicação e

dispõe dos meios mais eficazes e menos restritivos para tornar essas informações

inacessíveis.

O caso chegou à Corte Europeia que, com fundamento na diretiva 95/46/CE, que dispõe

sobre o tratamento de dados pessoais na União Europeia, entendeu que determinadas

informações disponibilizadas na rede, embora tenham sido consideradas compatíveis com

a diretiva, podem tornarem-se incompatíveis com o tempo. Desta forma a Corte entendeu

que no caso deveria prevalecer o direito ao esquecimento, ou seja, a referência à

informação sobre o leilão não deveria retornar como resultado da busca efetuada tendo

como parâmetro o nome do autor.

A doutrina brasileira mantém um entendimento no mesmo sentido. O CJF, nas Jornadas

de Direito Civil, exarou o seguinte enunciado com a respectiva justificativa:

Enunciado 531: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da

informação inclui o direito ao esquecimento.

Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-

se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem

histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante

do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de

apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a

possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais

especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

Desta forma, entende-se que o direito deve tutelar a dignidade do indivíduo que se vê

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envolto com informações sobre fatos ocorridos em tempos pretéritos recuperadas através

dos sistemas de indexação e busca dos search engines dos quais o mais famoso é o

Google.

Interações no Espaço Virtual

Em 1990 a Universidade de Stanford e a Xerox criaram um ambiente virtual

LambdaMOO22. A tecnologia MOO envolve banco de dados e linguagem de

programação que cria um ambiente virtual 3D onde habitantes virtuais (avatares)

convivem e se relacionam. As ações ocorridas nestes ambientes podem ter efeitos no

mundo real. Negócios jurídicos são travados neste ambiente. Inúmeras relações sociais e

comerciais são travadas nestes ambientes. Julian Dibbel (1993) relata casos de estupro e

pena de morte neste ambiente, situações que geraram reflexos jurídicos fora do âmbito

virtual.

Atualmente um ambiente multidimensional virtual muito difundido é o Second Life®.

Apesar de ser um ambiente virtual, sua economia e real. A aplicação atrai pesados

investimentos de empresas que vislumbram a concretização de negócios jurídicos neste

ambiente.

Em 2007 o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP, em resposta à consulta de um

advogado, entendeu que não é possível a criação de escritórios de advocacia neste

ambiente virtual com o objetivo de prestação de serviços. Este posicionamento fundou-

se no fato de que os administradores do sistema mantêm registros de todas as ações

perpetradas no ambiente, o que prejudicaria o sigilo das comunicações entre clientes e

advogados. Ademais, as entrevistas e consultas dos advogados aos clientes efetuadas em

ambiente virtual poderiam ser observadas por outros usuários ferindo o necessário sigilo.

Ao tempo desta decisão havia apenas um escritório de advocacia no “Second Life”: o

Opice Blum Advogados Associados. No entanto, seu sócio, Renato Opice Blum afirmou

que embora o escritório exista no ambiente virtual, ele não presta serviços naquele

ambiente e que sua existência no “Second Life” é como uma extensão do website do seu

escritório.

Os direitos da personalidade, entendidos como as projeções do indivíduo nas diversas

dimensões, incluem os direitos relacionados às projeções do indivíduo no meio virtual.

22 MOO refere-se a Multi User Dimension Object Oriented

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Atualmente boa parte das ações humanas se dá em ambiente virtual, razão pela qual os

direitos advindos desta relevante projeção não podem ser desconsiderados. A “presença

na rede” é uma dimensão importante da existência do indivíduo moderno. Portanto, deve

merecer a proteção do Estado em seu aspecto estático (dados e informações) e dinâmico

(relacionamentos e negócios).

Impactos da Violação dos Direitos da Personalidade

Observa-se que a maior parte dos dados e informações pessoais que circulam na rede ou

que estão armazenados digitalmente em bases de dados fora do âmbito de domínio do seu

titular foram disponibilizados pelo próprio titular. Ou seja, houve, em determinado

momento, a concordância do titular do direito no sentido de que os dados e informações

saíssem de sua esfera restrita. Via de regra a violação, nestes casos, se dá em razão da

utilização para fins diversos daqueles originalmente propostos.

Como exemplos é possível mencionar os dados pessoais fornecidos a uma loja que

comercializa produtos na Internet com a única finalidade de constituir o cadastro do

cliente e efetivar a compra. No entanto, a loja virtual comercializa os dados do cliente

capturados durante a compra cedendo-os a uma empresa de mail marketing. Outro

exemplo é o de uma foto de jovens amigas tirada durante as férias de verão na praia e

publicada numa rede social que, após alguns meses, é adulterada através de edição digital

e reproduzida num site de conteúdo adulto. Em ambos os casos a informação foi

originalmente fornecida pelo próprio indivíduo mas, capturada por terceiros, atribuiu a

ela destinação diversa daquela inicialmente pretendida pelo titular.

O problema não se limita ao abuso na obtenção ou publicação não autorizada de dados e

informações pessoais. O dano vai além daquele que decorre da violação da privacidade.

Adicionalmente, a divulgação de dados pessoais cria a possibilidade de julgamento da

pessoa em função destes dados. Dados e informações pessoais publicados em ambiente

digital transformam-se em matéria prima para a tomada de decisões tais como a aprovação

na concessão de crédito, a aprovação para adesão a um plano de saúde e até a contratação

num novo emprego. Tudo sem a oportunidade do contraditório a ser ofertado pelo

indivíduo “sub judice”, titular das informações.

Desta forma, não é apenas a intimidade que se está a violar, mas a própria pessoa, na

medida em que esta pode ser julgada e discriminada em função das informações pessoais

obtidas e publicadas.

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O Estado hoje tem domínio sobre diversos dados e informações pessoais. Por exemplo, o

Banco Central recebe das instituições financeiras informações bancárias de todos os

titulares de contas e investimentos no Brasil. Tal informação pode objetivar o controle

social. As grandes empresas também desejam ter acesso a estas informações. As empresas

de cartão de crédito e as grandes redes de varejo possuem gigantescos bancos de dados

não apenas com os dados pessoais de seus clientes, mas também com suas preferências

de consumo e capacidade financeira.

Estes dados armazenados são matéria prima para a geração de informações mais

elaboradas. Atualmente existem técnicas de elaboração de perfil de comportamento

(profiling).23 Estatísticas, algoritmos, inteligência artificial e data mining estão à

disposição do Estado e das grandes empresas para que elas conheçam detalhes da vida

privada das pessoas num nível maior do que estas pessoas conhecem de si mesmas. Isto

se dá devido ao fato das informações armazenadas e tratadas não contemplarem apenas

informações atuais, mas sim dados históricos. Desta forma episódios do passado ficam

indelevelmente gravados nestes bancos de dados. É impossível começar de novo. Tudo

está registrado. Nunca foi tão fácil encontrar uma agulha no palheiro.

Diante deste cenário medidas legislativas têm sido propostas para proteger o indivíduo

das violações aos direitos da personalidade perpetrados em ambiente virtual, mormente

aqueles relacionados aos dados e informações pessoais.

6. Legislação Relacionada

Marco Civil da Internet

A Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, estabeleceu regras e

princípios a serem observados pelos atores envolvidos na utilização da Internet.

No rol exemplificativo de princípios que disciplinam a utilização da rede, dois deles

dizem respeito ao tema em comento: a proteção da privacidade e a proteção dos dados

pessoais.

Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

II - proteção da privacidade;

III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;

23 DONEDA, 2006, p. 173.

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Posteriormente, no rol de direitos do usuário da rede, é feita referência reiterada a direitos

relacionados com a privacidade e intimidade:

Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são

assegurados os seguintes direitos:

I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano

material ou moral decorrente de sua violação;

II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem

judicial, na forma da lei;

III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por

ordem judicial;

VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão,

e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e

informado ou nas hipóteses previstas em lei;

VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e

proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades

que:

a) justifiquem sua coleta;

b) não sejam vedadas pela legislação; e

c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de

aplicações de internet;

IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados

pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais;

X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação

de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as

hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei; (grifou-se)

Percebe-se, no rol de direitos acima mencionados, ênfase na proteção da privacidade e

intimidade em duas dimensões: proteção das comunicações realizadas pela rede e

proteção de dados pessoais.

Esta dúplice proteção – comunicação e dados pessoais – é detalhada na Seção II do

Capítulo III do referido diploma onde dispõe-se que os registros de conexão e de acesso

a aplicações e o registro das comunicações só podem ser disponibilizados pelo provedor

mediante ordem judicial. Menor grau de proteção é dado às informações pessoais como

qualificação, filiação, endereço do usuário que podem ser disponibilizados a autoridades

administrativas que, na forma da lei, tenham competência para sua requisição.

O Marco Civil da Internet assegura a liberdade de expressão ao tirar do provedor a

responsabilidade de julgar se algo que foi publicado fere algum direito da personalidade.

Se alguém se julgou prejudicado por algum conteúdo postado na internet deve recorrer

ao Poder Judiciário. O provedor de acesso torna-se responsável apenas quando descumpre

a determinação judicial para a remoção do conteúdo.

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Embora tal dispositivo tenha sido alvo de críticas, a lei não poderia dispor de forma

diversa, pois atribuir ao provedor de aplicações a responsabilidade pelo conteúdo postado

por usuários implicaria na concessão de poder ao provedor para eliminar os conteúdos

constituindo clara violação ao direito de manifestação do pensamento. Seria possível

prever uma conduta bastante conservadora dos provedores no sentido de remoção

indiscriminada de conteúdo, caso a lei os considerassem responsáveis pelo material

publicado por terceiros.

Anteprojeto de Lei para a Proteção de Dados Pessoais

Em janeiro de 2015 o Ministério da Justiça lançou uma consulta pública para discutir a

questão da proteção dos dados pessoais. A ideia é que o debate ajude na elaboração de

uma lei de proteção de dados pessoais. Já existe um anteprojeto em discussão que se

fundamenta nos princípios constitucionais da liberdade, intimidade e privacidade. Na

realidade, tal projeto já é previsto pelo Marco Civil da Internet (art. 3º, III, Lei

12.965/2014)

O anteprojeto estabelece princípios para o tratamento de dados (princípio da finalidade,

princípio da adequação, princípio da necessidade, princípio do livre acesso, princípio da

qualidade de dados, princípio da transparência, princípio da segurança, princípio da

prevenção, princípio da não discriminação).

Há uma seção específica para regular a questão do consentimento. O consentimento deve

ser livre e expresso. Pode ser revogado a qualquer tempo. Deve ser destacado das demais

cláusulas contratuais e deve referir-se a finalidades específicas. O titular deve receber

informações sobre o tratamento e destino dos dados.

Inspirado na Diretiva 95/46 da Comunidade Europeia, que será tratada a seguir, o

anteprojeto de lei dá especial atenção e tratamento jurídico ao que denominou “dados

sensíveis”. Estes dados são aqueles identificados como merecedores de especial atenção

por refletirem aspectos demasiadamente íntimos dos indivíduos. Alguns destes aspectos

foram elencados no enunciado 404 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça

Federal:

“A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial,

contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso

consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o

estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnica, as convicções

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religiosas, filosóficas e políticas.”

A Diretiva 95/46/CE

A Diretiva 95/46/CE é o texto de referência do parlamento europeu referente à proteção

de dados pessoais na Comunidade Europeia. O texto regula num nível elevado a captura

e tratamento dos dados pessoais fixando limites para esta obtenção e determinando a

criação, em cada Estado-Membro, de um organismo nacional independente competente

para a proteção destes dados.

A proposta é que a Diretiva constitua um nível mínimo de proteção que pode ser

expandido através da legislação dos estados-membros.

A Diretiva regula não apenas o tratamento de dados feito por meios automatizados e

armazenados em bases de dados digitais, mas também os dados armazenados em meios

não automatizados, arquivos em papel, por exemplo.

O objetivo do texto é a proteção dos direitos e liberdades individuais no tocante aos dados

pessoais e é pautado por princípios que incidem sobre os seguintes aspectos:

1) A qualidade dos dados: os dados devem ser exatos e atualizados.

2) A legitimidade dos tratamentos de dados: os dados devem ser coletados para fins

lícitos e com o consentimento dado de forma expressa e inequívoca do titular dos

dados.

3) As categorias dos dados: há políticas diferentes de tratamento de dados em função

da categoria à qual eles pertencem. Os dados sensíveis como, por exemplo, origem

racial, religião e orientação sexual só podem ser coletados e tratados mediante

permissão expressa em lei.

4) O direito de acesso dos titulares aos seus dados: Todo indivíduo pode ter acesso

aos seus dados e solicitar a retificação, a remoção além de ter direito a saber sobre

o tratamento dispensado aos dados. Daí deriva também o direito de oposição para

impedir que seus dados sejam objeto de tratamento o que inclui a oposição a que

seus dados sejam transmitidos para terceiros.

5) A confidencialidade e segurança no tratamento: o responsável pelo tratamento

dos dados deve garantir a segurança e confidencialidade do processo.

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7. Conclusão

Através deste trabalho, demonstrou-se a mudança de perspectiva em relação ao direito à

intimidade e privacidade motivado pela evolução tecnológica digital. De um direito

entendido anteriormente como a faculdade de permanecer só, o direito à privacidade

ganha novos contornos na sociedade digital alcançando aspectos relacionados com a

comunicação e, principalmente, com o desenfreado fluxo de dados pessoais no âmbito da

Internet.

Nesta sociedade digitalmente conectada, apontou-se como aspectos de vulnerabilidade

destes direitos da personalidade a possibilidade de captação de aspectos pessoais como

imagem, voz, condutas através de vídeo. Além da captação, foram elencados a

possibilidade de digitalização, armazenamento, rápida distribuição e publicação e,

finalmente, a indexação que permite a rápida recuperação destas informações.

Apontou-se como riscos deste novo cenário a possibilidade de ser julgado por tais

informações sem ter o direito ao contraditório.

Finalmente, foram demonstrados os diplomas legislativos que regulamentam a matéria,

principalmente na Europa e o projeto de lei que versa sobre a proteção de dados pessoais.

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