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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES PROGRAMA DE MEIOS E PROCESSOS AUDIOVISUAIS PHILIPPE BARCINSKI A dialética narrativa do cinema de montage e de découpage - das vanguardas do cinema mudo ao filme de suspense e terror contemporâneos - São Paulo 2015

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UNIVERSIDADEDESÃOPAULOESCOLADECOMUNICAÇÕESEARTES

PROGRAMADEMEIOSEPROCESSOSAUDIOVISUAIS

PHILIPPEBARCINSKI

Adialéticanarrativadocinemademontageededécoupage

-dasvanguardasdocinemamudoaofilmedesuspenseeterrorcontemporâneos-

SãoPaulo2015

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PHILIPPEBARCINSKI

Adialéticanarrativadocinemademontageededécoupage

-dasvanguardasdocinemamudoaofilmedesuspenseeterrorcontemporâneos-

DissertaçãoapresentadaaoProgramadeMeioseProcessosAudiovisuaisdaEscoladeComunicaçõeseArtesdaUniversidadedeSãoPauloparaaobtençãodotítulodeMestreemCinema

Orientadora:Profa.Dra.MariaDoraGenisMourão

SãoPaulo2015

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Autorizoareproduçãoedivulgaçãototalouparcialdestetrabalho,porqualquermeioconvencionaloueletrônico,parafinsdeestudoepesquisa,desdequecitadaafonte.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Barcinski, Philippe

A dialética narrativa do cinema de montage e de découpage: das vanguardas do cinema mudo ao filme de suspense e terror contemporâneos / Philippe Barcinski. -- São Paulo: P. Barcinski, 2015.

100 p.: il. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos

Audiovisuais - Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Orientadora: Profa Dra Maria Dora Genis Mourão Bibliografia

1. Direção Cinematográfica 2. Linguagem Cinematográfica 3. Montagem Cinematográfica 4. Decupagem Cinematográfica I. Mourão, Maria Dora Genis II. Título.

CDD 21.ed. - 791.43

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Nome:BARCINSKI,Philippe.

Título:Adialéticanarrativadocinemademontageededécoupage-dasvanguardasdocinemamudoaofilmedesuspenseeterrorcontemporâneos.

DissertaçãoapresentadaaoProgramadeMeioseProcessosAudiovisuaisdaEscoladeComunicaçõeseArtesdaUniversidadedeSãoPauloparaaobtençãodotítulodeMestreemCinema.

Aprovadoem:

BancaExaminadora:

Prof.Dr.: ______________________________________ Instituição:______________________________Julgamento: ______________________________________ Assinatura:______________________________Prof.Dr.: ______________________________________ Instituição:______________________________Julgamento: ______________________________________ Assinatura:______________________________Prof.Dr.: ______________________________________ Instituição:______________________________Julgamento: ______________________________________ Assinatura:______________________________Prof.Dr.: ______________________________________ Instituição:______________________________Julgamento: ______________________________________ Assinatura:______________________________

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Agradecimentos

Aminhaesposa,FabianaWerneckBarcinski,peloestimuloparaestudar,sempre.

Aminha orientadora, Profa DraMaria Dora GenisMourão, pela paciência comminhatrajetóriaerrática.

Aos membros da banca de qualificação, Prof. Dr. Ismail Xavier e Prof. Dr. RobertoMoreira,pelapertinênciadoscaminhosindicados.

AosamigosAndréBarcinski,FernandoTosteeLuizCarlosOliveiraJr,pelas indicaçõesdefilmeselivrosemminhaentradanouniversodocinemadesuspenseeterror.

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RESUMO

BARCINSKI,Philippe.Adialéticanarrativadocinemademontageededécoupage-dasvanguardasdocinemamudoaofilmedesuspenseeterrorcontemporâneos.2015.100f.Dissertação(Mestrado) –EscoladeComunicaçõeseArtes,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2015

Estadissertaçãoanalisaosconceitosdecinemademontage(herançadeprocedimentosde montagem do cinema de avant-garde dos anos 1920) e cinema de découpage(herança do estabelecimento de cenas contínuas a partir do início do cinema falado),conformedesenvolvidopeloteóricoamericanoDavidBordwell.Adissertaçãoelenca,aolongodahistóriadocinema,algunsdosprincipaiscineastasque,dentrodeumcinemanarrativo de ampla difusão, equilibraram esses dois procedimentos. A trajetóriaproposta conduz ao cinema contemporâneode terror e suspense, sustentando a idéiaque estes são alguns dos gêneros mais propícios para o equilibrio de montage edécoupage. Paralelamente, a dissertação analisa a trajetória dos filmes de seu autor,Philippe Barcinski. De seus primeiros curta-metragens (exercícios de montage)passando pelo seu primeiro longa-metragem (exercício de equilíbrio de cenas demontageededécoupage),adissertaçãocriaumabaseteóricaparaseupróximolonga-metragem, em desenvolvimento, uma adaptação literária de um filme de suspense eterror.

ABSTRACT

BARCINSKI,Philippe.Narrativedialecticoffilmofmontageandofdécoupage–fromsilenteraavant-gardetocontemporaryhorrorandthrillermovies.2015.100f.Dissertação(Mestrado)–EscoladeComunicaçõeseArtes,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2015

This work analyzes David Bordwell’s concepts ofmontage (legacy of procedures ofavant-gardecinemaofthe1920s)anddécoupage(legacyofproceduresofestablishingcontinuity scenes from the beginning of the talkies). The text searches, throughoutdifferentmoments of filmhistory, someof themaindirector that, in narrativewidelydisseminated films, arranged those two procedures. The proposed path leads to thecontemporary cinema of horror and suspense, supporting the idea that these genresnaturallybalancesmontage anddécoupage scenes.At thesametime, the textanalyzesthetrajectoryofitsauthor,PhilippeBarcinski,asafilmmaker.Fromhisearlyshortfilms(montage exercises) through his first feature film (which balances scenes ofmontageand découpage), the text proposes a theoretical basis for his next feature film indevelopment,aliteraryadaptationforathrillerandhorrormovie.

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SUMÁRIOPARTE1–INTRODUÇÃO1.1.Doiscurtas.1.2.Definindoconceitos:MontagemeMontage;DecupagemeDécoupage.1.3.Docurtaparaolonga-metragem.PARTE2–OCINEMADEMONTAGEEOCINEMADEDÉCOUPAGE2.1.OCinemaMudoeamontage.2.2.OCinemaFaladoeadécoupage.PARTE3–DIALÉTICANARRATIVA–COEXISTINDOMONTAGEEDECOUPAGE3.1.AdialéticanarrativadeRenoireWelles.3.2.Refinandonossofoco.PARTE4–NOVOSCAMINHOSLIBERTÁRIOSPARAAMONTAGE4.1.Ocinemamodernista:NouvelleVague,outroscinemasnovoseosfilmesdearte.4.2.Afronteiraentrecinemacomercialedearteeocontrabando.4.3.NewHollywoodeocasoScorsese.PARTE5–AEXPLOSÃODAMONTAGE(FORADOCINEMA)5.1.Videoclipeetelevisão.5.2.TestemunhodetendênciasdofinaldoséculoXX.PARTE6–APERSISTENCIADAMONTAGENOCINEMADESUSPENSEETERROR6.1.Oscontrabandistasdosanos1940.6.2.OitotiposdecenasdeAnnabelle.PARTE7–CONCLUSÃO7.1.Retomandoaperspectivapessoal emmeio a consideração finais sobremontage egênero.

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PARTE1–INTRODUÇÃO

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1.1.Doiscurtas

Emagostode1994,dirigimeuprimeirofilmedecurta-metragem,AEscada1,comoparte

deumexercício curriculardo cursode cinemadaEscoladeComunicações eArtesda

UniversidadedeSãoPaulo.

Ofilmeapresenta,em4minutosemeio,asingelasituaçãodeumhomemsubindouma

escadaria.Suasubidaémostradaemenquadramentosfechadosquerevelamdetalhesde

seucorpocomênfaseemseuesforçosemcontudorevelarsuaexataposiçãonaescada.

Emdeterminadomomento, o homemparaparadescansar, olha emvolta, e umplano

com enquadramento um pouco mais aberto revela sua localização: o patamar

intermediário da escadaria no exato meio da subida. O homem retoma a subida e a

decupagemdo filme, novamente, restringe-se a planos fechados que não revelam sua

posição.Atéqueumasegundapausaparadescansarrevelaumasurpresa:apesardeter

sedeslocadoapósaprimeirapausa,aposiçãodohomemcontinuaamesma.Ohomem

retoma a subida e o jogo demontagemprossegue em subidas e atémesmo descidas,

todasmalsucedidas.Ohomemérefémdaescada.Edamontagem.

AEscadateveboaacolhidanocircuitodeexibiçãodaépoca,recebendoelogioscríticose

prêmios em festivais. Um dos grandes valores do filme é sua construção

cinematográfica.Ocurtatratadeumasentimento:prisõesinternas,fracasso,impotência

frenteaomundo-aexatainterpretaçãodequalsentimentoficaàcargodoespectador.E

estesentimentoéapresentadona telaemconstruçãocinematográficapelaarticulação

deseusenquadramentosnamontagem.

O último filme de curta metragem que dirigi, em 2002,A Janela Aberta2, novamente,

articula imagens e sons de forma livre para mais do que narrar, passar sensações à

plateia.Há simhistórianosdois filmeseelaestáemprimeiroplano, afinal são filmes

claramente narrativos. Mas, em ambos os casos, tão importante quanto narrar com

clareza,aformanarrativaseprestaatrazeràtona,noespectador,umasensação.

No caso de A Janela Aberta, a sensação é a de um portador de transtorno obsessivo

compulsivo.Ofilmesegueofluxodepensamentodeumhomemquenãose lembrase

fechouounãoajaneladasaladesuacasaantesdedeitar-seemseuquarto.Ohomem,1Ofilmepodeserassistidoemhttps://vimeo.com/436260562Ofilmepodeserassistidoemhttps://vimeo.com/43940758

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nacama,passaabuscarnamemóriaelementosqueoajudemaselembrarseelefechou

a tal janela,comoaroupaqueelevestiaquando fechoua janela,ouoqueele fez logo

antesdisso.Otextodeseuspensamentossegueemvoiceoverenquantoaimagemilustra

asaçõesrecordadas.Aospoucos,entende-sequeestaéumaatividadecotidiana,queo

homem ritualiza seus atos para poder lembrar-se depois, em uma prática típica dos

portadores de TOC. A montagem, em sintonia com o sentimento de transtorno do

personagem,entreemumtorvelino.

Novamente,ofilmeapresentaumaconstruçãocinematográficaquenarraumahistória

mascujamontagemseprestaa,alémdenarrar,passaràplateiaumasensaçãoligadaao

estado de espírito da personagem. No primeiro filme, enquanto a personagem busca

algo (subir uma escada), a montagem gera desorientação espacial. No segundo,

enquantoapersonagembuscaalgo(lembrar-sesefechouounãoajanela),amontagem

criadesorientaçãomental.

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1.2.Definindoconceitos:MontagemeMontage;DecupagemeDécoupage

Todaamontagemcinematográficaajudaapassarumasensação.Masemalgunscasos,

ela assume um protagonismo maior. Nessa dissertação, chamaremos esse tipo de

montagem-protagonista demontage, com a grafia em francês. É a notação que David

BordwellassumeemSobreaHistóriadoEstiloCinematográfico.Eminglês,montagemé

editing.Masagrafiafrancesa,montage,éutilizadapeloautoramericanoparaapontara

visão danouvellecritique, o grupo de jovens críticos franceses dos anos 1940 e 1950

lideradosporAndréBazinsobreamontagemdocinemamudo.

Bordwell(2013ii,p.81)aponta:

EmFrancês,montage denominaedição cinematográficaemgeral. Paraos autores desse período [da nouvelle critique], porém, montagetambém sugeria um tipo de corte abstrato, conceitual ou rítmico.Usandoamontage,odiretor juntaumatotalidadesignificativaapartirdastomadasfragmentárias.

Nessesentido,oscurtas-metragensAEscadaeAJanelaAbertapodemserchamadosde

filmedemontage.

Ousodotermomontage,contudo,sópodeserplenamentecompreendidoemoposição

aocinemaseguinte,dosprimeirosanosdocinemafalado,quefoidenominadotambém

pelaNouvelleCritiquedecinemadedecupagem.Estadissertaçãosereferiráaoconceito

de cinema de decupagem empregado por Bordwell com a mesma notação da edição

brasileiradeseulivroemportuguês:grifandodécoupage,emfrancês.

NoBrasil,entende-seotermodecupagemcomoumaetapatécnicadapreparaçãodeum

diretor para filmar, seu planejamento sobre onde colocar a câmera. O termo vem do

francêsesignificarecortar.Empregadoemcinemadesdeosanos1910(Aumont,2012,

p.71), foidefinidoporNoelBurchcomoaoperaçãoqueconsisteemrecortar(decupar)

demodomaisoumenospreciso,antesdafilmagem,umaaçãoemplanos.(1969,p.23).

O diretor, como um encenador (metteur-en-scene), deve cuidar damovimentação dos

atores no espaço. Aomesmo tempo, deve saber como recortar/decupar essa ação em

váriosângulos,parainstruiràequipedefilmagemocomportamentodacâmerafrenteà

encenação.

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O procedimento de decupagem é um prática de análise, no sentido de separação.

Decupar é separar, analisar, quebrar uma ação contínua descrita em uma página de

roteiroemumasériedeplanosnapreparaçãoparaumafilmagem.Jáamontagemsedá

apenasapósadecupagemeafilmagem.Elacorrespondeàsíntese,nosentidodejunção.

Uma junçãocomplexamasqueencerraumapropostaquese iniciounadecupagem.O

que foi separado na decupagem, executado na filmagem, agora é juntado, organizado,

sintetizado,namontagem,nailhadeedição.Processualmente,decupagememontagem

são etapas muitos distintas, mas que, no fundo, fazem parte da mesma atividade: a

construçãovisualdeumacena.

JáoconceitodaNouvelleCritiquededécoupageémaisespecíficoqueodapráticatécnica

dedecupagemcontemporânea3.

Bordwell(2013ii,p.81)apontaque:

Naproduçãocinematográfica,adecupageméadecomposiçãoemplanosouroteirodefilmagemqueprecedeafilmagem.Paraanouvellecritique,découpage tambémdesignavao tipodemontagemquedisseca a cena,decompondo a ação em planos breves. Ao contrário damontage, quereúnefragmentosheterogêneos,adécoupagedecompõeumtodoespaçotemporalemvistasmaispróximas. (…)NosanosposterioresàGuerra,oscríticos franceses frequentemente identificavamaediçãodocinemamudo comomontage e os cortes do cinema sonoro como découpage.Astruc,porexemplo,argumentouqueofilmemudoconseguiaosefeitospoéticosapartirdeumamontagede imagensdíspares,aopassoqueofilme sonoro era dominado pela découpage, uma técnica “não maispoéticamas teatral, nãomais um confronto forçado,mas uma ligaçãoorganizada”.

As noções de cinema de montage e cinema de découpage serão aprofundadas nos

capítulos2.1e2.2destadissertação,respectivamente.

3UmadefiniçãomaisnucleardotermodécoupagepertenceaGeorgeSadouleéapontadaporBordwell(2013ii,p.119):aalternânciadeprimeirosplanoseplanosdeconjuntonamesmacenaéoprincípiodadécoupage.(GeorgesSadoul,Histoiredel’artducinémadesoriginesànousjours(Paris,Flammarion,1949)

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1.3.Docurtaparaolonga-metragem

Em minha trajetória pessoal, após dirigir curtas-metragens, migrei para o formato

narrativo de longa-metragem. E sinto que há uma analogia possível entre a

contraposiçãodocinemamudodemontagecomocinemafaladodedécoupageedemeu

trabalhoemcurtas-metragenscomoqueeubuscoemlongas-metragens.

Após A Janela Aberta, iniciei o desenvolvimento de meu primeiro filme de longa-

metragem,NãoPorAcaso. E com ele, tinha o desejo de prosseguir com a pesquisa de

linguagem iniciada com os curtas: narrar valendo-me da montagem para criar, na

plateia,sensaçõesemsintoniacomoqueoprotagonistavivenatela.

Em longa-metragem, a tarefa me parece mais complexa. Júlio Cortázar produziu um

aforismoparacompararocontoaoromanceemumametáforacomalutadeboxe:No

combate entre um texto e seu leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o

contodeveganharpornocaute.4Amesmametáforapoderiaseaplicaradiferençaentre

curtaelonga-metragem.5

Umcurta-metragempodeconquistarseuespectadorpornocaute.Umamontage,de5ou

10 minutos, narrando a simples história de um homem subindo uma escada ou se

lembrando se fechou ou não uma janela é material suficiente para se construir uma

sensação. No entanto, não basta para sustentar a atenção de um espectador por 90

minutos.Aatençãodoespectadordelongas-metragensseconquistapelaconstruçãodo

personagemprincipal.

Uma etapa muito valiosa do processo de roteirização do Não Por Acaso foi um

laboratórioderoteirosdoInstitutoSundance,nosEstadosUnidos,queparticipeicomo

filme e tive como consultores dois grandes expoentes do roteiro cinematográfico

contemporâneo:GuillermoArriaga(AmoresBrutos)eDavidBenioff(GamesofThrones).

O tratamento do roteiro (diferente do de filmagem) que levei ao workshop foi

escrutinadopelosdoisroteiristasqueforamunânimesemseuspareceres:haviamuito

frescor(“freshness”)einteresse,masnãoeraumroteirodeumlonga-metragemesimde

4“Lanovelaganasiempreporpuntos,mientrasqueelcuentodebeganarporknockout”.(Cortázar,1971,p.403)5AassociaçãodoaforismodeCortázarcomacomparaçãodecurtaselongas-metragensfoipropostaemtextosjornalisticosedeblogpelocríticoLuizZaninOricchio

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um curta-metragem de 90 minutos. Faltava, segundo eles, character development,

desenvolvimentodospersonagens.

Partedomeuaprendizadoemdramaturgialongaéqueaadesãodoespectadoraolonga-

metragemnãosedápeloencantamentocomoefeito,maspelaprojeçãodoespectador

no personagem central. O protagonista é o carrinho da montanha russa na qual o

espectadorentraparaseguirumajornadadealtosebaixos.Eissosustentaseuinteresse

pelotempomaisextensodaprojeção.

EmmeuregressoaoBrasil,retrabalheioroteirodeNãoPorAcaso.Convideimeusdois

colaboradoresàépoca,FabianaWerneckBarcinskieEugênioPuppo,parareescrevero

roteiro comigo na condição de coautores. Deixamos de lado todo jogo de linguagem

proposto em detalhadas rubricas acerca de cenas de trânsito e de sinuca que

representavamestadosmentaisesensíveisdospersonagem(deacordocomasquestões

dahistóriadecadaumdelesnofilme).Enosconcentramosnodesenvolvimentodesses

personagens, criando seus perfis detalhados, e elaborando cenas de relacionamento

entreeles.

Não Por Acaso narra a história de dois homens, Ênio (Leonardo Medeiros) e Pedro

(RodrigoSantoro).OprimeirotrabalhacomocontroladordetrânsitodacidadedeSão

Paulo,eosegundoéjogadordesinuca.Emcomum,seuscaráteresobsessivoscomsuas

profissões e o desejo de controle. Assim como Ênio domina o fluxo dos carros para

escoarotrânsitodacidade,Pedrocontrolaporcompletoocomportamentodasbolasna

mesadesinuca.Uminesperadoacidenteenvolvendoaex-mulherdeÊnioocolocafrente

a frente comuma filha comquemelenão tinha contato.Omesmoacidentevitimizaa

namorada de Pedro que, após atravessar um período de luto, passa a tentar se

relacionarcomoutramulher.Ambososhomensrepetemnasrelaçõespessoaiscomas

novasmulheresqueentramemsuasvidas,ospadrõesobsessivosdecontroledeseus

trabalhos.Nãodácerto.AsaproximaçõesdeÊniocomsuafilhaedePedrocomanova

namoradarevelamque,navida,nãosepodecontrolarcomonotrânsitoounasinuca.A

jornada de Ênio e Pedro os conduz a um novo equilíbrio de suas obsessões em suas

vidas.

NãoPorAcaso,emsua formafinal,orquestradois tiposdecenas:Cenasdedécoupage,

comfoconaperformancedosatoresenotexto,filmadasdeformaclássica,valendo-se

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demaster shots, continuidade demovimentos, raccords, coberturas, campos e contra-

campos; E há cenas demontage em que o filme assume a voz do pensamento ou a

sensaçãodeumpersonagemeassocia imagens livrementeproduzindo jogoscênicose

demovimentação.

Sãocenasemmeioaotrânsitoousobreumamesadesinucaque,atravésdamontagem,

transformamoestadodeespíritoepensamentodosdoishomensobsessivosemmatéria

cinematográfica.

Como realizador, considero Não Por Acaso um filme muito feliz no sentido dele

corresponder plenamente, em seu produto final, ao que foi idealizado em sua

roteirização e preparação. O filme joga com o sutil balanço entre narrativa e

experimentação de linguagem. Ao mesmo tempo em que é aberto a um público

relativamenteamplo,umdosfocosdalinhadefilmesqueanalisaremosnoscapítulos3.2

e4.2destadissertação.

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PARTE2–OCINEMADEMONTAGEEOCINEMADEDÉCOUPAGE

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2.1.OCinemaMudoeamontage

Ocinemanasceusemmontagem6.Osprimeiros filmes,deLumière, sãoplanosúnicos,

independentes, em sua maioria registrando situações domésticas ou paisagens, as

chamadasdevistasanimadas.

EmGramáticadoCinema,Morin eBriselancenarram,passo apasso, anos após ano, a

construçãodaformanarrativacinematográficaapartirdasexperiênciasdedecupagem

emontagem dos pioneiros do cinema. Primeiro plano, close, planomédio,montagem

paralela,panorâmicas,campoecontra-campo,sãoexperimentadosporcineastascomo

D.W. Griffith e Edwin Potter e, entre erros e acertos, vão acumulando-se em uma

gramáticabásicadocinemaqueseestabelececomo focoprincipaldenarrarhistórias

paraumaplateiapopular.

Nos anos 1920, no clímax da eramuda, esta gramática estava bem definida. É o que

Bazin chama de decupagem clássica7 , Burch define como grau zero da escritura

cinematográfica8eBordwellcomoversão-padrãodahistóriabásicadocinema9.Trata-se

de uma linguagem ilusionista, invisível, na qual a narrativa pode se desenvolver,

evitando qualquer opção mais brusca ou difusa da forma fílmica que possa causar

rompimentocomaplateiaemocionalmentecativa.

Fora incipientes experiências de elipses e flashbacks, a codificação da montagem

cinematográfica ergueu-se no início dos anos 1920 em três procedimentos sólidos:

cenas em continuidade temporal e espacial com cortes analíticos para planos mais

fechadosdeobjetosereaçõesquandoessesprecisavamservistosemmaiordestaque;

cortesemcontinuidadeentreespaçosdiferentesunidospelomovimentodealguémque

saideumambienteeentraemoutro(passagemporportasecenasdeperseguiçãoem

exteriores,porexemplo);e,ainda,montagemparaleladedoiseventossimultâneosem

lugaresdistintos.

6Considerandoaquioconceitodemontagemcomouniãodeplanosdistintos.HáautorescomoAndré Gaudreault (1997, pag 73) que questionam esta definição, ampliando o conceito demontagem ao considerar o enquadramento ou o movimento de câmera como parte doprocedimentodamontagemdeumasituação.7Aumont(p.71)apudBAZIN8Burch,p36.9Bordwell(2013ii,p.29)

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Issoeraosuficienteparasenarrarhistórias.Ecriou-se,então,umalinguagempadrão.

NaspalavrasdeDavidBordwell(2013,p.696-697):

(...)oestilodecontinuidadetornou-seumestilopadronizadoemqueosdiretores de estúdios de Hollywood utilizavam quase queautomaticamente para criar relações coerentes de tempo e espaço nanarrativa. (...) Ao final da era muda, o cinema clássico de Hollywoodhavia se transformadoemummovimento sofisticado,mas aproduçãoeranotavelmentepadronizada.

Em contraposição a essa tendência, nas décadas de 1910 e 1920, algunsmovimentos

desafiavamasconvenções.Algunsdiretoresbuscavamumamontagemmaisexpressiva

doqueocorretoerecéminstauradosistemadecontinuidade.

Na França, um grupo de cineastas como Abel Gance e Jean Epstein, apontados como

impressionistas, buscou fazer filmes comerciais, narrativos, mas que utilizassem o

potencial do cinema para além de narrar, passar sensações através da linguagem,

imprimindo na tela, de forma subjetiva, o estado de espírito dos personagens.

Equilibrava-senarrativacomexperimentação.Essalinhadefilmesteveêxitocomercial

até o final do cinema mudo quando, por motivos econômicos, as empresas que

produziamessescineastasencerraramsuasatividadesnadispendiosatransiçãoparao

cinemafalado.

Umdos ápicesdessemovimentoéo filmeARoda (1923), deAbelGance, quenarra a

história de uma ciranda de paixões entre quatro personagens com consequências

trágicas. Em determinadomomento, o protagonista, ummaquinista, leva sua filha de

tremparaentregá-laemcasamentoaumhomemqueochantageia.Najornadadetrem,

comasemoçõesà flordapele,omaquinistaacelerao tremematitude suicida.Gance

rompe a narrativa convencional criando uma montagem rítmica. São planos do

maquinistanocontroledotrem,desuafilhanovagãoeoutros8enquadramentosfixos

(rodas,chaminé,caldeira,trilhos,manivelas,ponteiros,etc)quesãomontadosdeforma

crescente chegando ao limite de poucos fotogramas entre cada corte. A extensa e

complexamontagemdacenadecercadeimpressionantesoitominutosdeduraçãotem

efeitovertiginosoatéparaosdiasdehoje.AintençãodeGancecomessamontagemnão

era apenas narrar a situação da cena, mas criar um torpor compatível com o drama

internodospersonagens.

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Figura01–FotogramasdasequênciadotremdeARoda(1923)deAbelGance.

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Outro movimento que se aventurou no cinema como representação do estado de

espiritodospersonagensfoioExpressionismoAlemão.Ofilmefundadordomovimento,

OGabinete doDr. Caligari “convenceu os críticos de que o cinema podia representar

estados mentais com a força perturbadora da pintura e do teatro contemporâneo.”

(Bordwell,2013,p.34).

Ao final da Primeira Guerra Mundial, em meio à turbulenta economia da época, o

governoalemãoapoiouo fortalecimentoda indústriado cinemacoma criaçãodeum

grande grupo empresarial cinematográfico, a UFA10. Havia um claro foco no retorno

comercialdosfilmesparaoreestabelecimentodaindústriacinematográficaalemã.Em

1920, uma produtora de Berlim11obteve grande sucesso comCaligari e a inesperada

associaçãodeumfilmedezumbicomaestéticadapinturaedoteatrodaépoca.Foio

disparadorparaumasériedefilmesqueseguiramamesmaestética.

OExpressionismoAlemãotornou-seumgêneroqueprosperounomercadoalemãoatéo

derrocadafinanceiradaUFA,em1927,comMetrópolis,triunfoartísticodeFritzLang.

Apesar de marcante na história do cinema, o Expressionismo, de modo geral,

notabilizou-semais pela cenografia,maquiagem e iluminação do que pelamontagem.

NaspalavrasdeBordwell:emcontrastecomoImpressionismoFrancês,quebaseavaseu

estilo principalmente na cinematografia e na montagem, o expressionismo alemão

dependiafortementedamis-en-scene.12(2013i,p.699).

Salvo alguns casos notáveis de Fritz Lang e Murnau, os filmes expressionistas pouco

desafiavaalinguagempadrãoquantoaformadesedecuparemontar.

UmadessasexceçõesdignasderegistroéM–OVampirodeDusseldorf (1930)deFritz

Lang.O filmenotabilizou-se comoumdosprimeirosusos sofisticadosdopensamento

sonorointegradoàlinguagemcinematográfica.

Emumadesuasprimeirascenas,acompanhamosemmontagemparaleladuassituações:

umamãequeaguardasuafilharetornardaescolaemumcrescentedeangustia;esua

filhasendoabordadanaruaelevadapeloVampirodeDusseldorf,umpedófilo.Oclímax

10UnivesumFilmAktiengesellchaft.11Decla-BioscopAG,quenoanoseguinteaproduçãodeCaligarifoiincorporadaàUFA.

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dessacenasedácomamãegritandoseunome–ElsieBeckman–pelajanelaenquantoa

imagemapresentaumasériedeplanosdelocaisporondesuavozecoa.

Figura02–Fotogramas damãe chamandoa filhaem M–OVampirodeDusseldorf (1930)deFritzLang.

OImpressionismoeoExpressionismoencontramnoseiodaindústria,pelobreveperíodo

que prosperaram, terreno para desenvolver linguagens distintas da padrão instituída

pelo cinema industrial. Já outros movimentos, também libertários, criaram nichos

artísticosparaprosperarnaproduçãoeexibiçãodeseusfilmes.

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Financiadosprincipalmentepormecenato,artistasdasvanguardasdasartesvisuaisem

Paris absorveramo cinema comomídia artística e campode experimentação. A Paris

dosanos1920foiumcaldeirãoculturalcomumaintensidadesingular.Eranaturalque

movimentosdevanguardaabsorvessemasedutoramáquinadecaptaçãoereprodução

derealidadeparausarateladocinemacomoumaopçãoàseuscanvas,adicionadada

dimensãodotempo.

O surrealismo valeu-se de cortes de imagens distintas para representar os obscuros,

tortuososeassociativoscaminhosdamenteedossonhos.Talvezumdeseuscortesmais

conhecidossejaodaprimeiracenadeUmCãoAndaluz(1929)deLuisBuñueleSalvador

DaliquandoopróprioBuñuel,comoator,afiaumanavalhaecortaumolho.Amontagem

propõeamuito significativaassociaçãoda imagemdanavalha cortandooolhoparaa

imagemdeumanuvemdeslizandosobrealuacheia.

Figura03–CorteentredoisplanosdeUmCãoAndaluz(1929)deLuisBuñueleSalvadorDali.

Outros movimentos da vanguarda também absorveram o cinema para ampliar suas

pesquisas estéticas. Em 1924, o pintor cubista Fernand Léger dirigiu o filme Ballet

Mecaniquenoqualplanosdemáquinas,rostosecorpossãoassociadosporpadrõesde

formaseritmos,criandoumaobrasintonizadacomospreceitosdomanifestofuturista13

queapontavabelezanavelocidadeenomaquinaria.

13ManifestodopoetaitalianoFilippoTommasoMarinetti,publicadoem1909.

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Figura04–FotogramasdeBalletMecanique(1924)deFernandLéger

Os diversos possíveis efeitos da associação de planos através da montagem ganhou

alguma análise teórica de intelectuais envolvidos em cada um desses grupos. No

entanto, o primeiro estudo realmente detido e aprofundado sobre montagem

cinematográfica se deu a partir do início da década de 1920, na Rússia, quando

Eisenstein, Kulechov, Vertov e Pudovkin fizeram suas primeiras experiências,

publicaramseusartigoseproduziramseusfilmes.

DzigaVertov experimentaradiversas formasde associaçõesdeplanosnos cinejornais

Kino Pravda no início dos anos 1920. Seus experimentos se expandiram nos

documentários longos seguintes comoOHomemcomaCâmeradeCinema, de1929.O

filmemostraavidadepessoasemcidadesrussas,especialmenteMoscou,emumúnico

dia,doamanheceraopordosol,montadodeformarítmica.Nofilme,oprópriofilmeé

exibido dentro de uma cinema. E sua feitura é vista acompanhando-se o trabalho do

cinematógrafo(ocameraman)edomontador.

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Figura05–FotogramasdeOHomemcomaCâmeradeCinema(1929)deDzigaVertov

OHomemcomaCâmeradeCinemainicia-secomoseguintetextoescritonatela:

Atenção, espectadores: Este é um filme experimental na forma decomunicaçãocinemáticadeventosreaissemaajudadeintertítulos.Sema ajuda de uma história. Sem a ajuda do teatro. Este trabalhoexperimental busca a criação de uma linguagem verdadeiramenteinternacionaldocinemabaseadanaabsolutaseparaçãodas linguagensdoteatroedaliteratura.

Trata-sedeum filme-manifestoqueapontaoefeitodamontagemcomoaessênciado

cinema, o específico fílmico, aquilo que o difere de todas as artes, especialmente da

literaturaedoteatro.

Uma das ideias mais difundidas do cinema soviético dos anos 1920 é o conceito de

montagem de atraçõesdeEisenstein. Segundo Eisenstein, cada plano representa uma

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atração(no sentido de um sketch cômico ou número demúsica ou dança, típicos dos

espetáculos teatraisdevariedadesdaépoca).Ograndevalordocinema,segundoesse

pensamento, não está na montagem convencional em continuidade, mas no jogo de

associaçõesdediferentesplanos,cadaumrepresentadoumaatraçãodiferente.

Há inúmeros exemplos montagem de atrações de cunho ideológico na obra de

Eisenstein. Em Outubro (1928), ao cortar da imagem de um ator representando

Kerensky,Ministroda Justiçadogovernoprovisórioapósaquedadosistemaczarista,

para a imagem de um pavão mecânico, cria-se um novo sentido que não havia nos

planosindependentes.Osentidodofilmeprecisaserprocessadopeloespectador.Éem

suamentequeeleseforma,emumprocedimentochamadodemontagemintelectualpor

Eisenstein.

Figura06–CortedeOutubro(1928)deSergeiEisenstein.

OsescritosdeEisensteinaprofundam-senasquestõesdapercepçãodamontagem.EmA

DramaturgiadaFormadoFilme(2002,p.58),eledescreveosdiferentesconflitosqueo

choquedosplanospodemproduzir:conflitosgráficos,deplanos,devolumes,espacial,

deluz,detempo,eassimpordiante.EmMétodosdeMontagem(2002,p.77),Eisenstein

apontaosdiferentesmétodosdemontagem:métrica,rítmica,tonaleatonal,propondo

relaçõesentreaimagem,otempoeamúsica.

Sãodiferentesabordagensmasque,emcomum,reafirmamaideiadequeograndevalor

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docinemaestavanamontagem.NaspalavrasdeEisenstein,(2002,p.52)

Plano emontagemsãoos elementosbásicosdo cinema.Montagem foiestabelecidapelocinemasoviéticocomoonervodocinema.Determinaranaturezadamontageméresolveroproblemaespecíficodocinema.

O cinemademontagem fluída, invisível,docinemaconvencional,nãocondizia comos

conceitosdeEisenstein,conformeeleexpõe,emumacríticaaomodelodemontagemde

Pudovkin:

Os primeiros diretores conscientes, e nossos primeiros teóricos docinema, consideravam a montagem uma forma descritiva em que secolocava planos particulares um após o outro, como tijolos deconstrução.Omovimentodentrodessesplanos-blocosdeconstruçãoeoconsequente comprimento das partes componentes, era entãoconsideradoritmo.

Umconceitototalmentefalso!

(...) Emminha opinião, porém, amontagem é uma ideia que nasce dacolisão de planos independentes – planos até opostos um ao outro: oprincipiodramático.

Em 1929, a montagem do cinema estava fervilhante de ideias e possibilidades.

Conviviamcomo cinemanarrativomelodramática clássicohollywoodiano com regras

estritas demontagem outras propostas de associação de planos de ordem ideológica

(Eisenstein), onírica (Buñuel), estética (Léger), e de representação de estados de

espírito (Gance).O sentidovariadeumgrupoaoutro,masa ideiade associarplanos

distintos, independentes,buscandoefeitossensoriaise liberdadenarrativaécomuma

todos.

É o triunfo da montage, como descreve o já citado Bordwell, um procedimento de

montagemquenãoevocaalinguagemclássicamasvale-sedeumtipodecorte“abstrato,

conceitualourítmico”(2013ii,p.81).

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2.2.OCinemaFaladoeadécoupage

Em1929,achegadadosomaocinemamudouporcompletoessepanorama.

Amecânicadaproduçãodeumafilmesonoronaquelesanoseratremendamentemais

complexadoqueadeumfilmemudo.Ascenaspassaramaserfeitasnecessariamente

emestúdio (nãoporacasochamadosdesoundstagenaépoca);ascâmerascresceram

muitodetamanhopoispassaramaserblimpadas,envoltasemuma“casca”deproteção

acústica.Alogísticatodadeproduçãotornou-semaiscomplexaeoscustosdeprodução

dispararam.

As produtoras francesas responsáveis pelo cinema impressionista francês e a UFA,

responsávelpelamaiorpartedoexpressionismoalemão,fecharamasportas.Ocinema

devanguardaparisienseavançoudeformabemmaistímidanocinemafalado.

Poucos anos após o iníciodo cinema falado, em1936, a IIGuerraMundial eclodiuna

Europa.Amaiorpartedocinemaqueseproduzianovelhocontinentereverteu-seem

peçasdepropaganda.Osistemaindustrialamericanoprosperoumundialmente.

Osanosde1930a1948correspondemachamadaeradeourodosestúdiodecinema

americanos14.Há,evidentemente,muitainvençãonosfilmesdeterrordaUniversal,nos

policiais daWarner Brothers e nos luxuosos produtos daMGM.Mas, grossomodo, o

espaço de invenção dos cineastas trabalhando dentro dos grandes estúdios nesse

períodoconcentrava-semaisnahistória,naatuação,nacenografiaecinematografiado

que na decupagem e na montagem. Filmes como Frankstein (1931) da Universal, ou

RelíquiaMacabra(1941) daWarner, são obras de referência como consolidadoras de

gêneros, especialidade de cada estúdio na época. No entanto, apesar de serem filmes

notáveisna construçãodeclimaepersonagens, sãoconvencionais, clássicos,quantoa

decupagememontagem.Osanos1940representamoplenoestabelecimentodoestilo

clássicodesefilmaremontar.

Os primeiros filmes do pós-guerra a apontar, com força, uma caminho alternativo ao

cinema clássico americano foram os neorrealistas italianos. A decupagem dos filmes

neorrealistas, em algumas ocasiões, integravam-se à formas documentais. E suas

14PeriododefinidoporThomasSchatzemOGêniodoSistemadosurgimentodofaladoatéoParamountCase.

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narrativas duras estabelecidas na Itália destruída pela guerra, suas atuações hiper-

realistas à época e todo o seu visual de vida-real (locações, figurinos, etc) destoavam

radicalmentedouniversoilusionistahollywoodiano.Filmadoemlocações,diferentedos

filmes americanos, o som era gravado como guia e posteriormente dublado, com um

padrãotécnicodesincroniamuitoinferioraoamericano.

No entanto, apesarde tantasdiferenças, a gramática cinematográficadedecupageme

montagem dos filmes neorrealistas, de modo geral, seguia a forma clássica, padrão,

americana: A ação desenvolvia-se em articulação de planos abertos e fechados, de

acordocomagradaçãodaênfasedanarrativa;ehaviaasensaçãodecontinuidadecom

eixosdeaçãoeraccordsdemovimento.

O sistema de continuidade, da montagem invisível, tornou-se mais forte ainda. A

montage,oscortes“abstratos,conceituaisourítmicos”pareciamterficadoparatrás,em

umcinemadopassado.

Bordwell (2013 ii, p.35-36) faz um apontamento de diversos filmes e cineastas, de

exceção,queincluíramelementosdasvanguardasnosprimeirosanosdocinemasonoro:

RenéClaircrioufantasiasmusicaiscomoSobostetosdeParis(Sous lestoitsdeParis,1930).EmHollywood,ErnstLubitchmisturouconvençõesdeoperetascomritmosdemontagemmaiscinematográficosemMonteCarlo (Monte Carlo, 1930), assim como fez Rouben Mamoulian emAmam-me esta noite (Love Me Tonight, 1932). Para muitosobservadores, os desenhos de Walt Disney mostraram que o cinemasonoropodiaintegraradequadamenteodinamismopictóricodocinemamudoemumaunidadeaudiovisual.

Esses filmes de Clair, Lubitch, Mamoulian e assim como alguns dos primeiros filmes

sonoros de Walt Disney15e outros animadores como Max Fleischer e Hans Richter,

incorporam ao seu estilo algumas experimentações de montage em seus trabalhos

sonoros.

15FilmescomoSteamboatWillie(1928)ouasériedeanimaçõessobremúsicaSillySimphonies(1929-1939)

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Noentanto,comoapontaBordwell:Notodo(...)aHistóriaBásica16afirmaqueosfilmes

sonoros provocaram uma reversão aomodo teatral do cinema e uma perda de valores

visuais.

O cinema americano dos grandes estúdios dos anos 1930 e mesmo os filmes

neorrealistasitalianosrepresentavamocinemadecontinuidade,delinguagemclássica,

dedécoupage,naterminologianaNouvelleCritique.

O pós-guerra na Europa abriu espaço para um novo boom da cinefilia e crítica

cinematográfica. Os filmes americanos que estavam banidos da França durante a

RepúblicadeVichy(períodoemopaísfoidominadopelaAlemanha),aportaramtodos,

de uma só vez, em 1945 e 1946, em meio a euforia da libertação. Houve uma

proliferaçãoderevistassobrecinemaecineclubes.

Em1945e1946,ocinemafalado,sobretudoamericano,estavaplenamenteestabelecido

comercialmente em sua linguagem clássica. O pensamento cinematográfico, contudo,

estavadefasado.Enquantoa linguagemdos filmesdemontage do cinemamudohavia

produzidoextensaeaprofundadareflexãosobreseucarátercinematográfico,ocinema

faladoaindanãopossuíafortunacrítica.

Possivelmente o filme de maior impacto nessa geração emergente de cinéfilos foi

CidadãoKane (lançado em 1941 nos Estados Unidos e em 1946 na França). O filme,

juntamente com filmes de Jean Renoir e William Wyller ampliaram a gramática do

cinema da linguagem clássica por meio do uso da movimentação de câmera e da

composiçãodoquadro.

Gregg Toland, diretor de fotografia deCidadãoKane, havia desenvolvido uma técnica

chamada,naépoca,depanfocus.Comela,controlava-secomprecisãooqueestavaem

foconaimagem,podendoestendê-lodoprimeiroaoúltimoplanofocal.

Um dos planosmais celebrados desse período está na cena em que Kane arromba a

portadeseuquartoportaeencontrasuaesposa,Susan,nacama,agonizandoemuma

tentativadesuicídioaoladodeumcopodeveneno.Aoinvésdenarraressasituaçãoem

vários planos ou com movimentos de câmera que ordenassem e hierarquizassem os

16BordwellempregaoconceitodeHistóriaBásicacomoaquelaque“acompanhaosurgimentodocinemacomoartedistinta”.(2013ii,p.30)

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elementos, Welles o fez em uma única imagem. O copo de veneno está em primeiro

plano; um pouco mais atrás, o vulto arfante de Susan; e, ao fundo, a porta que é

arrombada.

Figura07–FotogramadofilmeCidadãoKane(1941).

Bazin(p156),analisandoesteplano,afirma:

Longe de ser (...) uma redescoberta do teatro filmado, o plano-sequência deWelles é uma etapa decisiva na evolução da linguagemcinematográfica, a qual, depois de ter passado pela montage doperíodo do filmesmudo e peladecupagem dos talkies, tende agora areverter ao plano estático, mas por um processo dialético queincorpora todas as descobertas da decupagemao realismodoplano-sequencia.

Astruc(p323)afirmaque

Aprofundidadedecampoobrigaoolhardosespectadoresafazerasuaprópria découpage técnica, isso é, encontrar por simesmo na cena as

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linhasdeaçãogeralmentedelineadapelosmovimentosdecâmera.

David Bordwell (2013ii, p. 90) contextualiza o pensamento do grupo sob o viés da

evoluçãodalinguagem:

Astruc e Bazin (...) acreditavamque as descobertas deWelles eWylertinham concluído o desenvolvimento estilístico do cinema. Depois damontage e da retificação estética da imagem silenciosa, depois dadécoupageedaconsolidaçãodatécnicatransparentedocinemasonoro,chegada aprofundidadedecampo e a tomadalonga (plano sequência).Estesrecursostornavamocinemaummeiodeexpressãoartisticamenteplenamenteflexível.

De fato, a profundidade de campo foi incluída na gramática do cinema. Aos poucos,

lentesmaisdesenvolvidaspermitiampassagensde focodecenasduranteoplano.Ea

decupagemqueatéentãotratavaoespaçodeformamaissimples,passouaincorporar

umsensomaiordeespacialidadequeaumentouolequedepossibilidadedosdiretores

naconstruçãodecenaseemseudesenrolarnoespaço.

Ousodessetipodecenaemplano-sequênciacatalisououtradiscussãomuitoprofícua

daquelemomentoligadaaorealismodaimagemcinematográfica.Enquantoadécoupage

eamontagetratavademanipularotempo,oplano-sequência,respeitavaotemporeale

aproximavaofilmedarealidade.

A questão do realismo da imagem é central no pensamento de Bazin que credita o

nascimentodocinemaàobsessãodehomensembuscadacapturadomovimentoedo

tempo.EmOntologiadaImagemFotográfica(1991,p.24),eleafirma:

O cinema vem a ser a consecução no tempo da imagem fotográfica. Ofilme não se contenta mais em conservar para todos nós o objetolacradonoinstante,comonoâmbarocorpointactodosinsetosdeumaera extinto. (...) Pela primeira vez, a imagem das coisas é também aimagemdaduraçãodelas.

A visão de Bazin do plano-sequência vai de encontro ao sentido do cinema como

capacidadederegistrarummomentoreal.EmAMontagemProibida(1991,p.54),Bazin

defendequemuitasvezesumaaçãonãopodesercortadaemváriosplanos,masprecisa

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sermantidaemumplanoúnicoparaseateraoreal.

O sensode realismo e, aomesmo tempo, umamais complexamanipulaçãodo espaço

colocaram em evidência um cinemamais distante dos procedimentos demontage. O

cinemademontageviralinguagemdopassado.

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PARTE3–DIALÉTICANARRATIVA–COEXISTINDOMONTAGEEDECOUPAGE

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3.1.AdialéticanarrativadeRenoireWelles

Cidadão Kane é um filme que catalisa muitas questões discutidas no cinema de seu

tempo.Sua forma fragmentária temcomo foconarrativoapesquisaqueum jornalista

faz sobre Charles Foster Kane. O jornalista busca o significado da enigmática última

palavraqueomilionáriosdascomunicaçõessussurrouemseuleitodemorte,“rosebud”,

botão de rosa. Tem-se a impressão que se o jornalista descobrir este significado, ele

desvendaráKane.Ofilmesegueestefluxo,dedepoenteemdepoente,mostrandopontos

devistadiferentessobreomesmohomem.

Esta estrutura tremendamente mais complexa que a forma narrativa dos filmes

contemporâneosaKaneeacentralidadedadiscussãosobreoquantoumpersonagem

pode ser desvendado é, possivelmente a maior qualidade do grande clássico, muitas

vezesapontadocomoumdosmaisinfluentesdahistóriadocinema.

Além das questões de forma narrativa e de complexidade de construção de um

personagem,easquestãoapontadasnocapítuloanteriorrelativasaorealismodoplano

sequênciaeàmise-en-scèneemprofundidadedecampo,outraquestãoformaldofilmede

OrsonWellesmereceuatençãoàsuaépoca:ainserçãodecenasdemontageemmeioa

cenasdedécoupage.

Ofilmecomeçacomumasériedeplanosdeassociaçõesgráficasdedetalhesepaisagens

Xanadu, palácio onde Kane refugia-se no final de sua vida. Ao adentrarmos nos

aposentosdeKane,ofilmedispõeosseguintesplanosnaseguinteordem:nevedentro

deumbrinquedodeglobodeneve;globodeneveemumamão;lábiosquebalbuciamas

últimaspalavrasdomoribundoKane;ogloborolapelaescadaeseespatifanochão;a

enfermeiraentranoquarto,vistapeloreflexodeumcacodevidrodogloboquebrado.

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Figura08–FotogramasdacenainicialdeCidadãoKane(1941).

Aolongodofilmeoutrascenasdemontagesearticulamemmeioàscenasdedécoupage.

Essecaráterfragmentáriodeurdircenasdenaturezasdiferentes(montageedécoupage)

causouestranhezaemsuaépocaefoidenominadaporBazincomodialéticanarrativa17.

Bazin, apesar de aguerrido defensor do realismo, apontou acreditar em um possível

equilíbrioentrecenasdasduasnaturezas.Emsuaspalavras(p.78):

Não que Welles se proíba de recorrer aos procedimentosexpressionistas da montagem, mas justamente a utilização ocasionaldeles, entre os planos-sequencias em profundidade de campo, lhesconfereumsentidonovo.

Essamisturadecenasdemontagecomcenasdedécoupagenãoeraalgosimplesdese

entendernaépoca.GeorgeSadoul(1946,p.9),oautordomaisinfluentelivrodehistória

17Bordwellaponta(2013ii,p.96):“EmCidadãoKane,ele[Bazin]assinala,Wellesmisturatomadaslongasque“cristalizam”otempodraméaticoesequenciasdemontagemquerepresentamumaduraçãomaisconceitual.Wellescriaassimumadialéticanarrativa[dialectiquedurécit].

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do cinema dos anos 195018, apresentou uma visão negativa de CidadãoKane em sua

primeiraapreciaçãocrítica.Pareele,ofilmeera:

um excesso de frágeis reminiscências assimiladas. O filme é umaenciclopédia de velhas técnicas, (...) misturas demontages aceleradasqueeramaúltimamodanosanos1920.

Naturalmenteocinemanarrativo faladotendiaacenasdedécoupageemcontinuidade

dramática. Mas cineastas que buscavam equilibrar narrativa clássica com

experimentação encontravam formas de valer-se da riqueza das possibilidades da

montage,emmeioaproduçãodealgunsfilmesnarrativosindustriais.

Outro nome que se destaca ao integrar inserções demontage em meio a filmes de

découpage, é JeanRenoir. Seunomeé comumenteelencandoao ladodeOrsonWelles

como um dos pilares do cinemamoderno no final nos anos 1930 e início dos 1940,

momentoemqueocinemafaladoatingiusuamaturidadeartística.

ARegradoJogode1939éumfilmenotávelnessesentido.Ofilmenarraosencontrose

desencontros amorosos de um grupo de personagens em uma casarão aristocrático

ondeconvivemdoisgrupossociais-odospatrõeseodosempregados–emumretrato

amoralportrásdovernizdojogosocialnaFrançaàsvésperasdaIIGG.

Aaçãotranscorreamaiorpartedotempodentrodocasarão,sobretudoemplanoscom

a câmera em constantemovimento integrado àmovimentação dos atores. Em alguns

momentos,contudo,integram-secenasdemontageemmeioàscenasdedécoupage.

Nofilme,emdeterminadomomento,patrõeseempregadossaemparacaçarnocampo.

Éopontodepartidaparaumacenadecercade2minutosdeaçãosemdiálogos.Nela,

articulam-se: planos dos empregados batendo com cajados em árvores para fazer os

coelhoseasaves fugirem;planosdospatrõesatirandoemtodasasdireções;eplanos

dos animais correndo e sendo abatidos. Trata-se de uma montagem de cunho mais

sensorial do quenarrativa que cria umefeito estético elevando a simples situaçãode

umacaçaesportivaaumametáforadojogo(tambémdecaça,emcertosentidofigurado)

entre os personagens. O tempo e articulação de cada plano ao longo da extensa cena

18HistorieGénéraledoCinema,publicadaemdiversosvolumesapartirde1946.

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atende não apenas à demanda narrativa, mais confere a ela uma fluida sensação

cinemáticadametáforaproposta.

Figura09–FotogramasdacenadacaçadeARegradoJogo(1939)deJeanRenoir.

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CidadãoKaneeARegradoJogo são filmesquetrabalhamcomumapalhetaexpandida

das potencialidades do cinema: há movimentação de câmera; há contemplação; há

complexidadedemis-en-scene emencenações comusodaprofundidadede campo;há

momentosderitmoforteehámomentosderitmolento;hádramaehumor;hápulsões

variadasdemontagem;Sãofilmesvibrantesquemanipulamotempoeapercepçãode

formasdiversaseexercemmuitocontrolesobresuaplateiaaomesmotempoquesão

“abertos”aela.

Acimade tudo,parao focodeatençãodessadissertação,CidadãoKane eAsRegrasdo

Jogosãofilmesquepropõeumequilíbrionaatéentãopolarizadadiscussãoentrefilmes

demontageefilmesdedécoupage.Adialéticanarrativa,propostaporBazinpropõeum

jogoentreasduasformasdecinema.

Retomomeuolharpessoalsobremeuprópriotrabalhodecineastacomoapresentadona

introdução dessa dissertação. A experiência relatada na introdução trata da minha

passagem dos curtas-metragens demontage para longas-metragens que lidem com a

dialéticanarrativa,oequilíbrioentreaslinguagensdedécoupageedemontageemum

filmecomunicativo.

Comocineastainteressadoemfilmesquelidamcomamontageeadialéticanarrativade

Bazin, foco esta dissertação no cinema onde essas elementos prosperaramno cinema

queseseguiuaosdiasdehoje.

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3.2.Refinandonossofoco

O termo cinema demontage refere-se primordialmente ao cinema de vanguarda dos

anos1920 e ganhou significâncias diferentesnosdiversosmomentos aqui analisados.

Trata-se de um termo que abrange um “guarda-chuvas” amplo de tipos de cortes

acondicionadossoboconceitojácitadodeBordwellparamontage:umprocedimentode

montagemquenãoevocaalinguagemclássicamasvale-sedeumtipodecorte“abstrato,

conceitualourítmico”(2013ii,p.81).

Devidoaoaltocustoecomplexidadetécnica,achegadadosomem1929arrefeceuouso

damídia cinematográficapelas vanguardasque efervesciamnos anos1920.O cinema

narrativo comercial imperou.Aindaassim,háumahistoriografiapossíveldosgrandes

experimentadoresdamontageapartirdosanos1930.

Nos anos 1940, a russa naturalizada americana Maya Deren, residente de Greenwich

Village, em Nova Iorque, onde uma cena artística prosperava, comprou uma câmera

bolex16mmefilmouasimesmoemontouofilmeTramasdoEntardecer(Meshesofthe

Afternoon), um filme narrativo impressionista repleto de experimentações formais

própriasdocinemademontage.

TramasdoEntardecernarraahistóriadeumamulherqueadormeceesonhaperseguir

umafiguraencapuzadacomespelhonolugardorosto.Sonhoerealidadesemisturam

quandoelaprópriaapareceemseusonhoe,emmeioaperseguiçãodafiguramascarada,

entraemsuacasaesevêadormecida.Umaestruturaemabismo,comsonhosdentrodos

sonhoseelementosdocotidianoqueserepetem, levaanarrativaadiante.Trata-sede

um exercício demontage, de associações livres de planos, produzindo a sensação de

imersãoonírica,emespecialdeumuniversofemininoesensível.

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Figura10–FotogramasdofilmeTramasdoEntardecer(1943)deMayaDeren

Seguiram-seaMayaDerennomescomoJonasMekaseStanBrakhage.Apartirdosanos

1960,grandepartedacenaexperimentalmigrouparaabitolaSuper8,edepoisparao

videotape,nosanos1970,consolidando-secomoumcircuitodevideoartecomexibições

principalmenteemgaleriasdearteemuseus.

Hátodaumahistoriografiapossíveldoaudiovisualquebuscaumaradicalidademaiore

por isso é não encontra seu nicho dentro da indústria do entretenimento das salas

comerciais. Apesar dessa linha ser rica emmontage, convém apontar nosso foco no

cinemamaiscomunicativo.

Emalgunscasos,comonocircuitodevideoarte,éfáciltraçarumalinhadivisóriaentreo

produto de circuito comercial (longas no cinema) e produto do circuito de arte

(videoarteegaleria),noentanto,comoveremosnocapítuloaseguir,nemsempreessa

fronteiraémuitobemdelimitada.

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PARTE4–NOVOSCAMINHOSLIBERTÁRIOS

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4.1.O cinemamodernista:NouvelleVague, outros cinemasnovos e os filmesde

arte.

Possivelmente o ponto demaior fricção entre narrativa clássica e experimentação de

linguagem em um cinema influente com distribuição em sala em todo omundo foi a

NouvelleVague.Em1954,FrançoisTruffautapontouemumartigodaCahiersDuCinema

intituladoUmacertatradiçãodocinemafrancêsqueocinemadeseupaíseradominado

peloroteiristaenãopelodiretor,queos filmeseramconvencionaisna formaedeum

realismo poético sem valor artístico. Truffaut é explícito ao afirmar não acreditar na

coexistênciapacíficadatradiçãodequalidade19edeumcinemadeautores(1954,p.254).

Ofilme-manifestodogrupodecincocineastasecríticosdaCahiersDuCinema(Godard,

Truffaut,Romer,ChabroleResnais)quepostulouessemovimentoderadicalizaçãoda

linguagem,rompendocomasnormasrígidasdocinemanarrativoclássico,foiAcossado

deGodard,em1960.

Paranarrarararefeitahistóriadeumvigarista(interpretadoporJean-PaulBelmondo)

que comete pequenos crimes e é perseguido pelo assassinato de um policial, Godard

vale-sedeumaliberdadeformalsemprecedentesnocinemanarrativosonoro.Nãopor

acaso,Godardforma,maistarde,umcoletivocomoutrocineasta,Jean-PierreGoran,eo

batizadeGrupoDzigaVertov,emhomenagemaomaisradicaldosdiretoresdemontage

doconstrutivismorussodosanos1920.

A cena da morte do policial em Acossado, central na trama, é construída em uma

montage de 6 planos independentes. Os elementos centrais da narrativa dessa cena

simplesmentenãosãomostrados,maselididosnocorte.Nãosevê: aaproximaçãodo

guardadesmontadodamotocicleta;oimpactodotiro;areaçãodobaleado;areaçãode

atirador;oqueopersonagemdeBelmondofezcomseucarroecomocorpodopolicial

apósocrime;assimcomosuatomadadedecisãodefugirapé.Todosessesmomentos-

chavedanarrativa,provocativamente,nãosãoexibidosnamontagede formaclássica.

Nesteprocedimento, o estilo é tão importantequeapróprianarrativa.Oqueestá em

jogonãoéapenasoacontecimento,masasensaçãodoacontecimento.Narrativamente,

compreende-sequesetratadeumassassinatodopolicial.Oplanodaarma,oruídodo19Tradiçãodequalidadeentendidaaqui comoaexpressãocorrenteàépocadoartigoqueerabem aceito pela crítica mas que foi antagonizado por Bazin como um cinema sob grandeinfluêncialiteráriaepoucovalorcinematográfico.

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tiro,aquedadocorpodopolicialeafugadoassassino,deixaminequívocaquetrata-se

deumhomicídiodopolicial.Masmaisdoqueveroacontecimento,acenapropiciasentí-

lo.

Figura11–FotogramasdacenadoassassinatodopolicialemAcossadodeJLGodard(1960).

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Esse grau de liberdade formal que, de modo geral, havia sido deixado para trás no

cinemadesdeapassagemparasonoroéretomadacomânimonãoapenaspelosjovens

dogrupofrancês.Emcompassolibertáriocomosaresdacontraculturaearevoluçãode

costumesdosanos1960,essecinemaprosperaegerminaemtodooglobo.

No Brasil, o cinema novo assume essa herança. Glauber Rocha - que já havia

experimentadoumaconexãodiretacomoestilodaavant-gardedosanos1920comseu

curta-metragemOPátio – explode, por exemplo, com amontagem livre no clímax de

TerraemTranse(1967).Noápicedofilme,asdiversaslinhasnarrativassecruzamem

uma montagem ágil e simbólica. As trajetórias do intelectual revolucionário

(interpretado por Jardel Filho), do governador progressista e populista (interpretado

por José Lewgoy) e o senador conservador (interpretado por Paulo Autran) são

mostrados em quadros rápidos e alegóricos que culminam com o assassinato do

intelectualemumamontagequeremeteàmortedopolicialemAcossado.

Figura12–FotogramasdacenafinaldeTerraemTranse(1967)deGlauberRocha.

Ainda no Brasil, nomesmo período, eclodia o cinemamarginal, movimento de filmes

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radicaisqueexploravamdiversosprocedimentosdemontageemfilmescomoAMargem

de Ozualdo Candeias eOBandidodaLuzVermelhade Rogério Sganzerla. O primeiro,

produzido por um artista intuitivo, com cortes brutos, descontínuos e associativos

remetemàs vanguardasnos anos1920. O pesquisador Jean-ClaudeBernardet (2002,

pag33)atestaqueissodedeusemqueoautortivesseconsciênciadofato:

Os aspectos de que gostavame sugeriram uma relação com filmes davanguarda francesa dos anos 20. (...) Essa possível afinidade com avanguarda francesa foi o que comentei com Candeias, para a maiorsurpresa de sua parte, pois ignorava que tal relação pudesse serestabelecida, como também, acredito, desconhecia sua existência. Derepente,Candeiaseeunosencontramosemdoisuniversosculturaisquenãosecomunicavambem.Candeiasnãoentendiaarelaçãoqueeufazia,mas achava ótimo. E eu ficava sem entender como este cineasta tinhachegadoaumtalfilmeinaugural,quenãoseencaixavaemlugaralgum.O que revelava a força de Candeias, seu excepcional talento visual erítmico, que ele tirava de si próprio e não de uma formaçãocinematográfica que lhe teria proporcionado uma filmografia a que sepudessefiliarAmargem.

Já em O Bandido da Luz Vermelha, Rogério Sganzerla (2000, pag 52), tem plena

consciênciadeseudiálogocomdiversosmovimentosestéticos,incluídooscapitaneados

porGodard e Eisenstein. Ao lançar este que foi seu primeiro longa-metragem, aos 22

anosde idade,ocineastapublicouummanifestotão furiosoquantosepróprio filmee

quecolocaemseu liquidificador tropicalistamaisdeumadezenadeautoresalémdos

doiscitadosacima:

Meu filmeéumfar-westsobreo IIIMundo. Istoé, fusãoemixagemdevários gêneros. Fiz um filme-soma; umfar-westmas também musical,documentário,policial, comédia (ouchanchada?)e ficçãocientífica.Dodocumentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência(Fuller);dacomédia,oritmoanárquico(Sennett,Keaton);dowestern,asimplificação brutal dos conflitos (Mann). (...) Jean-Luc Godard meensinou a filmar tudo pelametade do preço. (...) Fuller foi quemmemostrou como desmontar o cinema tradicional através damontagem.(...)NuncaseesquecendodeHitchcock,EisensteineNicholasRay.

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Na Polônia, Tchecoslováquia e Hungria diversos cinemas novos emergem

simultaneamente. Andrej Wajda, Milos Forman, István Szabó, respectivamente,

destacam-se em um extenso grupo de cineastas que incluem invenção (e conteúdo

político)nofazercinema.

Nomundotodo,oconsumode filmesdearteemmaiorescalaprosperaporumbreve

momento.Fellini,Antonioni,Bergman,Pasolinitornam-seícones.

Na abertura de 8½, Federico Fellini coloca na tela um pesadelo de seu protagonista

(interpretado por Marcelo Mastroianni) que parte voando de um engarrafamento de

trânsito, flutua docemente sobre as nuvens, até ser laçado com uma corda por seu

advogado que o faz despencar no mar. Trata-se de uma sequência de 10 planos em

associaçãopormontage.

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Figura13–Fotogramasdosonhonacenainicialde8½(1963)deFedericoFellini.

Os anos 1960 e os primeiros anos da década de 70 são o período de maior triunfo

comercialdosfilmesdearte.Emmeioaocaldeirãodarevoluçãodecostumesdaépoca,

grandes cineastas-autores como Fellini, Pasolini, Visconti, Antonioni e Bergman

ganharam distribuição mundial em salas de cinema com pesquisas de linguagens

radicais.Osconceitosdecinemadearteecinemacomercialembaralharam-se.

Umamarcodaabsorçãodofilmedeartepelomainstreamfoiocontratodeproduçãode

três filmesamericanosdaMetroGoldwynMayerdeMichelangeloAntonioni, o radical

mestre do existencialismo, da incomunicabilidade e do silêncio, predicados que não

costumam fazer parte do cinema americano de ampla distribuição mundial. Mas a

revolução de costumes e a busca da indústria por se realocar em um mundo em

transformação criou a condição para Antonioni dirigir Zabriskie Point, em 1970,

narrando a história do encontro de um rapaz e umamoça, às bordas domovimento

estudantiledacontracultura,emplenoDeathValley,acadeiarochosadesérticanooeste

americano.Ofilmeérepletodecenasdemontage.Nacenadesexodocasal,aimagem

restringe-seaplanosfechados,quaseabstratos,queseconfunde-secomcenasdeoutros

corposdeoutroscasaisegruposquetambémtransameseabraçamemplenaareiado

deserto. A coreografia de corpos emmovimento e emmontage tem seu ápice emum

único plano geral que revela mais de uma dezena de corpos enlaçados em diversos

cantosdovale.

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Figura14–FotogramasdacenadetransanodesertodeZabriskiePoint(1970)deMichelangeloAntonioni.

A cena começa como uma representação, até certo ponto realista, do casal. Do sexo,

passa-se à abstração dos corpos diversos e paisagens. E da abstração assume-se a

alegoriadequeaquela“transa”éa“transa”demuitasoutraspessoasegrupos.Éuma

cenademontagede7minutosaosomdamúsicaoriginaldeJerryGarcia.

ZabriskiePointtemoutraimpactantecenademontageemseudesfecho.Apósamortedo

rapaz, a moça segue seu destino como funcionária de uma companhia de

empreendimentosimobiliários,eamantedeseuchefe.Ouniversoemqueapersonagem

do chefe circula possui uma incômoda atmosfera corporativa. A moça volta à uma

reuniãodaempresa,maspoucoavontade,foge.Jánaestrada,elaparaocarro,descedo

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veículoeolhaparatrás.Amoçaeopúblicoassistem,emumdelírio,acasadaempresa

explodirdemúltiplosângulos.Sãocercade15minutosdeplanosdeexplosõesdacasae

deoutrosíconesdoconsumo:umarmárioderoupas,umatelevisão,umageladeiracheia

deprodutosindustrializados.Tudoexplodeemcâmeralenteaosomdalisérgicamúsica

de Pink Floyd. O tempo narrativo abre espaço para devaneios, alegorias, sensações e

mergulhosestéticos.

Figura15–FotogramasdacenafinaldeZabriskiePoint(1970)deMichelangeloAntonioni.

ZabriskiePointfoiumfracassodebilheteria.Suavisãocríticaaosgruposdeesquerdae

de direita, posicionou o filme em um limbo ideológico e o afastou de sua plateia. No

entanto,oprimeiroeoúltimo filmesda trilogiaamericanadeAntonioni (BlowUp em

1966eProfissão:Repórterem1975)obtiveramgrandeêxitocomercial.

EmNouvelle Vague eGodard, Michel Marie compara (p.60) os sucessos e fracasso de

bilheteriadoscineastasda“antigageração”francesa(Carné,Clouzot,etc)eosda“nova

geração”(Vadin,Godard,Truffaut)naFrançadosprimeirosanosdadécadade1960e

chegaaconclusãoque“osresultadosobtidospelosnovoscineastassão(...)ligeiramente

inferioresaosdageraçãoprecedente,masadiferençaémínima”.

A ideia de um cinema de rompimento de linguagem é dominante na época. E, nesse

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período, amontage encontra espaço em meio a uma dramaturgia que é aceita pelo

públicosessentista.

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4.2.Afronteiraentrecinemacomercialedearteeocontrabando.

Apartirde1967,Godardradicalizaamontageemsuaobraemoutrasformas.AChinesa

éumfilmenarrativo.Mostraosembatesdecincoestudantesemumacélulamaoísta.O

filmeéestruturadoemumasériedeencenaçõesnãorealistasdosdebates.Eécomum,

nalinguagemdofilme,entrecorta-selongascenasdediálogospolíticoscomimagensde

ilustrações comunistas buscandoum choquena construção visual e o rompimentodo

ilusionismodasuspensãodadescrença.

NamaiorpartedaobradeGodardqueseseguiu,elenãoapenasradicalizouoconteúdo

político de seus filmes mas fechou-se em filmes livres na forma, mais próximos do

formato ensaístico do que narrativo ficcional. O filme-ensaio é um gênero a parte do

cinema. Há toda uma historiografia possível que passa por Dziga Vertov, Joris Ivens,

Jean-LucGodard,AgnèsVarda,ChrisMarker,AlexanderKluge.Umalinhagemquesegue

até o dias de hoje e tende a aumentar exponencialmente emnossa cultura visual por

contadaaberturaalinguagemmashupedoityourselfdainternet.

Nofilme-ensaio,amontageélinguagempadrão.Ofilme-ensaionãovisacontarhistórias

masconstruirpensamentosvalendo-sedacontraposiçãodeimagensedesituações.São

filmesessencialmentedemontagem,masquefogemdoescopodenossaatençãonessa

dissertação.

Não apenas Godard, mas a sociedade toda, atravessou os anos 1960 e 1970 com a

fronteiraentrecinemacomercialecinemadeartemaisdifusa.Masapartirdofinaldos

anos 1970, com o fim da contracultura e dos demaismovimentos sociais do período,

umanovapolarizaçãoentrearteeindústriaseinstaurou.

Aconhecidabrigapúblicadosex-grandesamigoseparceirosGodardeTruffautéuma

polaridade potente a partir de 197320pois simboliza o desejo de rompimento com a

montagedeGodardeatentativadeequilíbriodaformadeTruffaut.

AtrajetóriadeTruffautéopostaadeGodard.Depoisdeuminíciomaisradicaldesua

filmografiacomOsIncompreendidos,AtirenoPianistae JuleseJim,Truffautaospoucos

20EspecialmenteapartirdareaçãodeGodardaolançamentodoromânticoemuitobemsucedidofilmeNoiteAmericanadeTruffaut.

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começa a fazer filmesmais comportados na forma e de relacionamento em ambiente

burguês.

MartinScorsese,emsuasériedocumentalUmaViagemPessoalcomMartinScorsesepelo

Cinema Americano21 propõe uma arguta catalogação das possíveis posturas de um

cineasta americano frente aos estúdios. Para Scorsese, os cineastas podem ser, entre

outrascategoria22:contadoresdehistórias(storytellers);iconoclastas;oucontrabandistas.

NaclassificaçãodeScorsese,Truffautseriaclaramenteumcontadordehistória,membro

do grupo de cineastas que focam na narrativa em primeiro plano. Godard seria

incontestavelmenteum iconoclasta comsuavervepordemoliras regrasestabelecidas

praticamentesemseimportarcomasconsequências.MayaDeren,JonasMekasestariam

juntosdeGodardnessegrupo.

Masmaisinteressantedoqueaoposiçãoentreiconoclastasecontadoresdehistóriaséa

entreiconoclastasecontrabandistas.

Dentrodocomplexojogodeequilibrarcriaçãoe indústria,Scorsese identifica-secomo

contrabandista, integrando o grupo de cineastas que se infiltram nas “brechas” do

sistema para “introduzir toques incomuns, tramar enredos inesperados e às vezes

transformar um material muito mais rotineiro em uma expressão mais pessoal”

(Scorsese,1994,p.113).

ScorseseéumconfessoadmiradordeHitchcock23,talvezomaiormestrecontrabandista

do cinema. Hitchcock e Scorsese ganharão atenção em capítulos específicos nessa

dissertação.

Hitchcock foi capaz de narrar de forma clássica e inequívoca para uma plateia ampla

filmes muito envolventes mas profundamente radicais na forma. Foi capaz matar a

aparenteprotagonistanoprimeiroato(Psicose);filmarempraticamenteumúnicoplano

21Lançadoem1994peloBFIemcomemoraçãodos100anosdecinema(emumaocasiãoquecontribuiramcomoutrosfilmesdocumentaiscineastasdeoutrascinematografiascomoNelsonPereiradosSantoseStephenFrears),asériedecercadequatrohorasdeduraçãoencontraumaversãoeditadaemlivroporMichaelHenryWilson.Apesardeserumavaliosareferência,olivrotraz os conceitos aqui apontados de forma simplificada. Para ummaior aprofundamento nosconceitosdeScorsese,recomenda-seassistirasérie.22CompletaaindaostipodecineastasclassificadosporScorsese,osilusionistas,aquelesquesefocamnaconstruçãodofilme-espetáculo.23SeufilmeIlhadoMedoéumaclarahomenagemaocineastasinglês.

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(FestimDiabólico);tercomoplotcentraloataquedepássarossemaparenteexplicação

(OsPássaros).

O desafio do contrabandista não se restringe ao cinema. Um caro professor de

dramaturgia, Flávio de Campos 24 , apontava como um dos maiores atributos da

genialidade de William Shakespeare sua capacidade de equilibrar narrativa e

experimentaçãoformal.Flávioapontavaemsuasaulasaradicalidadedadramaturgiade

algumas peças célebres do bardo inglês: EmRicardo III, o vilão é o protagonista; Em

Macbeth, o rei agemas é LadyMacbeth quem tem as pulsões; EmRomeu e Julieta, o

conflito não se dá pela guerra mas pelo amor, uma vez que a condição inicial da

narrativaéabrigaentreasfamílias;EmHamlet,oprotagonistaquestionasuaessência.

Cada uma dessas formas dramáticas que hoje são quase triviais representavam uma

inversãodeumpadrãonarrativodaépoca.

Shakespeare comHitchcock se dá no sentido que são ambosmestres em sua arte de

equilibrarnarrativaenvolvente,abertaaopúblico,esubversãodaforma.

Ofocodessadissertaçãoestánosfilmesquetratamdesseequilíbrio.Aopesquisarfilmes

demontage (oucenasde filmes)nosdeparamoscomtodaumahistoriografiapossível

sobre a experimentação de linguagem “fechada”, aquela destinada a um nicho muito

pequenodepúblico.

Retomando o trilho demeu posicionamento pessoal com cineasta apontado na parte

introdutóriadessamonografia,entendoNãoPorAcasocomoumfilmedecontrabando.

Elebusca,emmeioaumanarrativaemprimeiroplano,equilibrarjogoscênicosecenas

demontage.Eeu,comocineasta,buscoemmeuspróximos longasseguirequilibrando

esseselementoscomoutrascombinaçõesepossibilidades.

Essamonografiasegueomeuolhardecinéfilo.Noscapítulosaseguir,elencareialguns

filmesqueequilibraramexperiênciasdemontageemmeioanarrativascomunicativas,

quevaleram-sedecortes“abstratos,conceituaisourítmicos”,naspalavrasdeBordwell

(2013ii, p. 81), em meio a uma história aberta ao público. Busco apontar como, em

períodos diferentes, alguns cineastas jogaram esse jogo, e onde amontage encontrou

24InstrutordedramaturgiadaRedeGlobo,formadoemBerkeley(Califórnia).

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espaço para se colocar em meio a filmes comunicativos. O alinhamento dos filmes

apontaparameuspróximosprojetosquecomentareinapartefinaldotrabalho.

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4.3.NewHollywoodeocasoScorsese

AenormeaberturadoespectrodalinguagemcinematográficanaEuropanosanos1960

e do início dos anos 1970 ecoou para os Estados Unidos em um momento que os

estúdios estavam em decadência, sem conseguir se comunicar com o público em

transformação, e uma “turma” de novos e jovens cineastas tomaram de assalto

Hollywood.Trata-sedomovimentoconhecidocomoNewHollywood,queseráanalisada

nocapítuloaseguir.

Nos Estados Unidos, emmeio ao caldeirão cultural nos anos 1960, a dificuldade dos

grandesestúdiosemconectar-secomumpúblicoemtransformaçãoabriuespaçopara

umageraçãodenovosdiretoresinfluenciadospelosentidodeautoriadanouvellevague.

OlivroEasyRiders,RagingBullsdePeterBiskindnarracomosucederam-seemposição

de prestigio na indústria, seguido quedas, os cineastas Dennis Hopper, Peter

Bognadovich,WilliamFriedkin,MartinScorseseeMichaelCimino,muitossobasasasda

principalliderança,quasefamiliar,deFrancisFordCoppola.

Os filmesda chamadaNewHollywoodmarcaramépocaporumsensode realismo, em

grandeparteinfluenciadopeloestilodocumentaldecinemadireto,emvoganaépoca,e

pelotrabalhodoprecursordocinemaindependente,JohnCassavetes.Nodocumentário

TheKidStaysinThePicture,oprodutorRobertEvans,afirmater“vendido”àParamount

onomedeCoppolacomoodiretordeOPoderosoChefão(1972)prometendoqueofilme

dirigidopeloítalo-americanoseriatãoautênticoqueaplateia“poderiasentirocheirode

spaghetttinatela”

Omesmo realismo, de formamais crua, pode ser encontrado em CaminhosPerigosos

(1973)deScorsese.Ofilmemostraodomíniodeseudiretornareproduçãodoambiente

dapequenamáfia ítalo-americananobairrodeLittleItalyemumaNovaIorque,sujae

perigosa,anterioràsuarevitalizaçãoanosmaistarde.

OrealismodosfilmesdaNewHollywoodnãoserestringiuaogêneropolicial.OExorcista

(1973),deWillianFriedkinalcançouumacredibilidaderaraaogêneroterroraoretratar

apersonagempossuídaemtempodilatadoefocaremocionalmentenahistóriadamãe,

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eminterpretaçãomarcantedeEllenBurstyn.Omesmograurealismopodeserapontado

emoutrosgêneroscomoodramadesarjetadePerdidosnaNoite(1969)ouofilmede

guerraemOFrancoAtirador (1978).Estápresentetambémna formamuitoparticular

deRobertAltmanfilmardiálogoscomcâmeraeatoreslivresdemarcasepausas.

Junto ao realismo, outrograndemarcodesse grupode filmes éo foconos anti-heróis

comoprotagonistas.BonnieeClyde,SemDestino,TaxiDriver,TouroIndomável,Perdidos

naNoitesão,todos,filmesconduzidosporperdedores(loosers),emoposiçãoaocinema

dosvencedores(winners)queimperounadécadaseguintecomobemapontadoporJohn

Taylorreferindo-seavisãodoprodutorDonSimpsonsobreocinemaqueseseguiuna

décadade1980.

Em relação especificamente a linguagem, esse grupo de filmes de anti-heróis hiper-

realistas setentistas, criou um ambiente de abertura ao experimental, que era mais

tímido na configuração anterior da indústria. Nos anos 1970, os “iconoclastas” e

“contrabandistas”–aplicandoostermoscunhadosporScorsese-assumiramopoder.

O livro de Biskindmostra ummovimento que se repetiu com personagens distintos.

Hopper, Bognadovich, Friedkin e Scorsese, todos eles tiveram seu ciclo de sucesso,

megalomania,excessodedrogasedecadência.Oúnicoquesereergueuesaiucomoum

autorativoeconstanteapósadécadade1970foiScorsese.

OsfilmesdeScorsesesãonotáveisaoequilibrarnarrativaejogodelinguagem.Amesma

dualidade pode ser vista em relação ao equilíbrio entre o registro hiper-realista do

roteiro,daatuaçãoedaarte(cenáriosefigurino)comoaltograudeestilizaçãonouso

de enquadramentos, movimentação de câmera, trilhas sonoras não convencionais e

montages.

Seu curta-metragem de ficção, de 15 minutos de duração, produzido como parte do

curso de cinema da New York University, It’s Not Just You, Murray! (1964) tem sua

narrativa quase que integralmente conduzida pormontage de situaçõesmuito curtas

sob a narração em voice over do protagonista, usando uma “técnica muito nouvelle

vague”,segundoScorsese(Schickel,p.97).Outrocurta-metragem,dirigidoanosdepois,

Italianamerican(1974),mostra a intimidade hiper-realistas de um lar italoamericano.

SãoexemplosdosdoisextremosdoestilodeScorsese:estilizaçãoehiper-realismo.

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Seuprimeiro longa-metragemWho’sThatKnockingonMyDoor (1967)éuma filmede

produçãoconturbada25eresultadoirregularmasmuitoembrionáriodoqueveioasero

cinemamaduro de seu autor. O filme joga com essa dualidade de estilo: há cenas de

montagecomcortesrápidos,brutaiseagressivos,própriasdeGodardeoutrasdeclara

influência de Cassavetes: diálogos longos com o frescor levemente improvisacional e

câmeravivatípicadocinemadiretomasqueerararonocinemacomercialdeficção.

Scorsese(Schickel,p.129)buscava

equilibraraformatradicionaldesefilmarcomumanovaforma.Porexemplo,usaracâmeranamãodeum jeitoquenãoseusava.Naquelaépoca,usava-semuita câmeranamãopara cenas de ação ou cenas de luta.Mas euusei paracenasquetinhatrepidaçãomaisemocional,cenasdediálogo.

OgrandereconhecimentodeScorseseveio,poucosanosdepois,comTaxiDriver(1976).

Éo filmedematuridadedo equilíbrio entre: narrativa e jogo cênico; hiper-realismoe

esteticismo;cinemadedécoupageedemontage.

O filme apresenta diversas cenas em registro realista, de tempo contínuo e foco nas

nuancesdaatuaçãoedotexto.Há,emespecialduascenasdediálogoslongos,sentados,

filmadas de forma clássica, em duas cafeterias. Na primeira, o taxista Travis Bickle

(Robert De Niro) busca proximidade com a bem nascida e elegante Betsy (Cybill

Shepherd),personagemdeumuniversoculturaldistintodoseu.

Acenaédecupadaemumplanogeralquelocalizaocasalnamesadocaféeemplanos

médiose closescruzadosemcampoecontra-campo.Acenasustenta-secombaseem

atuaçõesetextosimpecáveispor3minutosemeio.

25Ofilme,sobcomandodosprodutores,foifilmadoemtrêsetapas:em16mm,aparteprincipalde Harvey Keitel; em 35mm a parte com seu par em cena, Zina Bethune, uma atriz maisconhecida à época; e uma cena de fantasia sexual foi inserida anos depois, filmada emAmsterdam,Holanda.

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Figura16–FotogramasdeTaxiDriverdeMartinScorsese(1967).

Mais para adiante, após a rejeiçãodeBetsy, Travis aproxima-sede outrapersonagem

feminina,ajovemprostitutaÍris(JodieFoster)destavezcomposturapaternalfrentea

sua interlocutora. Travis busca resgatar amenina domundo selvagemdanoite nova-

iorquina.Segue-seoutrodiálogodecupadodamesmaformaacadêmica(planogeralfixo

eplanosmédioseclosesemcampoecontra-campocruzados),novamentecomfocoem

textoeinterpretação.Acenaduraimpecáveis4minutosemeio.

Cenas dessa natureza são sucedidas e intercaladas por grande blocos impressionistas

que nos colocam em uma atmosfera sensorial junto com o personagem. Travis não

consomedrogas–abemdaverdadeopersonagemseposicionadeformacontráriaàs

drogas – mas sua visão da realidade é diferenciada, filtrada por sua psicopatia,

transtornodeguerraeausênciadesono.

Ofilmeinicia-secomumplanomuitoimpactante:otaxiemslowmotion,câmerabaixa,

irrompendoemcenaemmeioa fumaçada rua. Segue-seaesteplanoumclosemuito

fechadodosolhosdeTravis,aovolante,sob luzescoloridas.Emseguida,vê-seatravés

do para-brisamolhado do veículo, as luzes da desfocadas da cidade e imagens quase

abstratasdepessoasnarua.

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Figura17–FotogramasdacenainicialdeTaxiDriverdeMartinScorsese(1976).

Apósesteprólogo (sobreoqualdispõe-seos créditos), o filme segue comumdiálogo

filmado de forma acadêmica em que Travis emprega-se como taxista. O chefe da

garagemperguntaporqueTravisquerdirigirumtaxi.Oprotagonistarespondequenão

conseguedormirequerapenastrabalharpormuitashorasànoite(“Ijustwanttowork

longhours”).

Entrecortadocomessesdiálogoseoutrosqueseseguirão,ofilmeavançaemcenasde

montage.Aosairdoescritóriodochefe,porexemplo,umalongapanorâmicaàesquerda

demaisde180grausacompanhaBrikleganhandoarua;umplanodeteleoacompanha

narua;eoutralongapanorâmica,agoraàdireita,descrevesuacasaemergulhaemum

diárioquerevelaseraorigemdesuavoiceover.

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Figura18–FotogramasdeTaxiDriverdeMartinScorsese(1976).

Travis começaadirigir e suas andançaspela cidade compassageiros são intercaladas

com planos detalhes do carro, do asfalto, do taxímetro, da paisagem humana nas

calçadas da cidade e do veículo em meio à ruas esfumaçadas. A justaposição dessas

imagensconfiguramumamontagesensorialdoveículocruzandoanoitecomoumbarco

navegandonoinferno.

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Figura19–FotogramasdeTaxiDriverdeMartinScorsese(1976).

Ofilmemantémessapulsãoentreorealismoerealidadealterada.Cronologicamente,na

cena seguinte, Betsy é apresentada. Emmeio a imagens em câmera lenta, de grande

angular de passantes na rua durante o dia, ela aparece, linda, suave, de branco. A

imagemfunde-separaocadernoemqueTravisescreveseuspensamentos.

Figura20–FotogramasdeTaxiDriverdeMartinScorsese(1976).

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Essa variação do registro objetivo e impressionista mantém-se por todo filme,

amplificadapelamúsicadeBernardHermannquealternaclaramenteessesdoisestados

de espírito: um jazz sensual é entrecortado por umamarchamilitar tocada com uma

tambor/caixa.

Sobreaatmosferasensorialdeseufilme,Scorseseafirma(Thompson,p.80e87):

Grande parte deTaxiDriver surgiu daminha convicção de que os filmes sãorealmenteumaespéciedeestado-de-sonho,oucomotomardroga.Eochoquedesairdocinemaparaplenaluzdodiapodeseraterrador.Vejofilmesàtodahoraemeésempredifícilacordar.

(...)

Não creio que haja qualquer diferença entre fantasia e realidade quanto amaneira comoambasdeve ser abordadas emum filme.Claroque sevivemosdessemodo somos clinicamente doentes. Mas num filme, posso ignorar essafronteira.

Diversospersonagensdos filmesdeNewHollywood temsuaspercepçõesda realidade

deslocadas construídas em filme.ApocalipseNow (1979) inicia-se com o protagonista

CapitãoWillard(MartinSheen),drogado,olhandooventiladordetetoemseuquartode

hotel barato em Saigon, lembrando-se de helicópteros e bombardeiros de bombas

Napalm. SemDestinoacompanha os doismotoqueiros Billy (Dennis Hopper) eWyatt

(PeterFonda)queatravessampraticamenteofilmeinteirochapadosdemaconhaeLSD.

Eatémesmopersonagensmaispróximosaostablishmentapresentamumdescolamento

sensorial do seu entorno. É o caso do recém formado Benjamin Braddock (Dustin

Hoffman)quevoltaàsuacidadedeorigememAPrimeiraNoitedeumHomem(1967)

após concluir seus estudos universitários. Mike Nichols habilmente filma as cenas

através de enquadramentos e ambientes sugestivos como aquários, piscinas e festas

lotadasemqueninguémdirige-lheapalavra.

Osanosde1960e1970sãoanosdevalorizaçãodapercepçãosensorial,popularização

damaconha,usodeLSD,sexolivre.Talvezessavalorizaçãodapercepçãotenharelação

comasensorialidadedocinemaaceitocomercialmenteemsuaépoca.OcinemadaNew

Hollywood é um claro caso de zeitgeist, em que um conjunto de filmes traduzem, em

linguagem,oespíritodeumaépoca.

Após os turbulentos anos de contracultura dos 1960 e 1970, o cinema comercial dos

grandes estúdios americanos retomou o comando das tendências de consumo

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audiovisualapartirdosanos1980.Nãomaisnovelhosistemadeestúdiodachamada

era de ouro de Hollywood (de 1930 a 1947) mas através de parcerias com atores e

produtores associados que valiam-se do financiamento e da distribuição dos estúdios

quesereerguerameconomicamentenosanos1980.Nessecontexto,ocinemasetornou

maisconvencionalnaformanosanos1980(comparativamentecom1960e1970).Eos

impulsosporrealizaraudiovisualdemontagesãoabsorvidosnasgeraçõesmaisjovens

poroutromeio:atelevisão.

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PARTE5–AEXPLOSÃODAMONTAGE(FORADOCINEMA)

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5.1Videoclipeetelevisão

Criada em 1981, a MTV formou uma nova geração de consumidores de imagem. A

palavra consumidores não é empregada em vão. A relação do público (ou audiência)

com a imagem em movimento mudou nesta década. Até então a televisão era um

aparelhoqueexibiaprogramaslongosentrecortadocomcomerciais.Oconteúdodessa

nova televisão tinha outra dinâmica: videoclipes musicais de cerca de 3 minutos,

entrecortados não apenas por comerciais mais pelos chamados promos, vinhetas

artísticasvariadaselibertáriasnaforma.

A MTV, em sua origem estritamente ligada à exibição de videoclipes, era um canal

estruturadocomooutrocanalqualquer:umaempresacompostapordepartamentosde

recursos artísticos, produção, comercial, etc. Mas a sua estrutura de produção era

radicalmentediferentede todososdemaiscanaisde tv.Oconteúdoaudiovisualqueo

canalproduziadefatonãoeramosvideoclipes(esteseramproduzidospelasgravadoras

dosartistas)masospromos,vinhetasecampanhasinterprogramas.Ospromosnãoeram

apenasumaembalagemmasoprojetoconceitualeformaldocanal.

Os videoclipes dos anos iniciais da MTV eram pouco arrojados mas, aos poucos, se

retroalimentaramdospromosdocanal.Comopassardosanostornaram-semaislivrese

radicaisnaforma.

Quando a MTV iniciou suas atividades no Brasil, em 1991, não havia videoclipes

suficientesparapreenchersuaprogramação.Oprópriocanal,então,abriuumaexceção

em seumodusoperandi e produziu 12 videoclipes de artistas nacionais com estéticas

que os diretores artísticos da MTV da época acreditavam que seriam tendências do

futurodoformato.Osvideoclipesproduzidospelaemissoradeveriamsermaislivresna

formaqueosvideoclipesbrasileirosdeentão,quaseemsuatotalidadeproduzidospela

equipe do programa Fantástico da Rede Globo e dirigidos por Boninho.

Estrategicamente,nomomentodeescolherocastingdosdiretoresdevideoclipes,aMTV

Brasilnãooptouporconvidarcineastasoupublicitáriosparaatarefa.Osdiretoresdos

primeirosvideoclipesdaMTVBrasilforamÉderSantoseSandraKogut,integrantesda

reconhecidaprimeirageraçãodevideoartistasdopaís.

Há uma conexão possível entre o conceito inicial da MTV e o projeto de liberdade,

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pesquisa e revalorização dos aspectos estéticos da articulação de imagem em

movimento da videoarte, que, por sua vez, é uma linhagem de prosseguimento do

cinemaexperimentalqueremonta,na trajetóriaaquiapontada,atéàsvanguardasdos

anos1920.

Esse novo paradigma de liberdade audiovisual dos anos 1980 na televisão vai de

encontroaumajuventudeparaaqualaliberdadeformalconquistadaporGodardnãoé

um ponto de chegada, mas um ponto de partida. É curioso mostrar uma cena de O

AcossadodeGodardparaumaplateiadejovensespectadorescontemporâneoseverque

eles simplesmente não entendem o quanto aquilo já foi revolucionário. É necessário

mostrarparaamesmaplateia,comparativamente,umfilmeclássicohollywoodianodos

anos 1950, com seu o compassomais lento e sua forma rígida, e explicar que todo o

audiovisualconsumidonaquelaépocaeraassim,emummomentoemqueatverapouco

influenteeainternetinexistia.

ApublicidadetambémsealimentoudaMTVepassouaproporcortesmaisrápidos,com

umapresençamaiordecenasclipadasapartirdosanos1980.Odiretordepublicidade

MichaelOblowitz,umsulafricanocomgraduaçãoemfilosofiaemestradoemcinemaem

Columbia(NY),envolvidonacenadeartenovaiorquinanaqueladécada,senotabilizou

nomercadopublicitárioamericanonesseperíodo.Eleafirma:

Euvejomeubackgroundemteoriasemióticacomoaprincipalrazãoquemefezpudercruzardeumaposiçãoradicaldaavant-gardeparaomeiode comerciais (de tv)... Godard encontraMontereyPop(filme-concertode1968dodiretor íconedo cinemadireto,D.A.Pennebacker) éomeuideal.

EssacitaçãoéanalisadaporJohnThorntonCaldwell(1995,P.27):

AreferênciaàsemióticaeGodardénomínimocuriosa.Nãoéotipodereferência intelectualqueseesperaencontrarnotrabalhododia-a-dianaindústriadatelevisão.Adeclaraçãomostra,noentanto,quealgumaspartesdaindústriasãocapazesdeverseutrabalhocomoumprocessodereflexivaestilizaçãoecomoumsistemadecomunicação.

Diretoresdepublicidadeediretoresdecinemaforam,pormuitotempo,profissionaisde

naturezastotalmentemuitodistintas.MarkCousinapontaemsuaportentosaHistóriado

Cinema26(p.300)oinglêsRichardLester-diretordosprimeirosproto-videoclipesdos

26UmaanálisemaisaprofundadadeLesterencontra-senasérietelevisiva:StoryofFilm–AnOdyssey,dirigidaem2011porCousinapartirdeseulivro.

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BeatlesqueposteriormenteprosperoucomodiretordecinemaemHollywood-comoo

primeirocasorelevantedediretordecinemaquefaziapublicidadenosanos1960.

Nos anos 1970, cineastas consagrados como Fellini, Godard e Welles chegaram a

emprestar sua marca visual para campanhas publicitárias. Mas foi a partir dos anos

1980 comRidley Scott e Adrian Lyne na Inglaterra e LucBesson na França que, pela

primeiravez,diretoresbemsucedidosnapublicidademigraramparaocinemalevando

consigo marcas de estilo antes confinadas ao mercado publicitário. Na França, o

movimentoganhouonomecinemadulook27,termoqueapontavacertoconteúdocrítico.

Essamisturadosprofissionaisdevideoclipes, publicidade e cinema comercial ganhou

novos ares em 1992 quando a MTV passou a creditar, com lettering padrão sobre a

imagem, os diretores dos videoclipes junto com os nomes do artista, damúsica e da

gravadora. A autoralidade dessa geração estava assegurada. E nomes como David

Fincher,SpikeJonzeeMichelGondryganharamnotoriedadecomogenuínosautoresem

videoclipes antes de produzirem trabalhos influentes em cinema de longa-metragem.

Em seus trabalhos de direção de videoclipes, eles desenvolveram seus estilos e

construíramumaautêntica“visãodemundo”autoralqueganhoucorpo,clipeapósclipe.

Podemos emular na análise do universo dos videoclipes dos anos 1990 a teoria da

política dos autores que a Cahiers do Cinema apregoou 40 anos antes em relação ao

cinema.Os trabalhosde8diretores foramcompiladosemumasériede luxuososdvds

entituladasDirector’sLabelpelaPalmPicturesapartirde2003.

Na televisão brasileira nos anos 1980, um influente espaço de liberdade formal foi

abertoporGuelArraes–que,bemapropósito,haviasidoassistentededireçãodeJean-

Luc Godard em um projeto emMoçambique - com apoio de Daniel Filho. A chamada

Casa de Criação abriu algumas ilhas de renovação estética na Rede Globo daquela

década,principalmenteapartirdeArmaçãoIlimitada,umamisturapopdaestéticados

videoclipes com dramaturgia de meia hora, conteúdo essencialmente jovem, com

elementosdesurferockn’roll,emmeioatraçosdelinguagemgodardiana.

27A tríadeapontadanoartigoquebatizouo termo(deRaphaëlBassannarevistaLaRevueduCinéma,#448,Maiode1989)eracompostapelosdiretoresLucBesson, Jean-JacquesBeinexeLeos Carax. Besson e Benix eram egressos da publicidade, enquanto o terceiro tinha suaformaçãoemcurtas-metragensenacriticacinematográfica.

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Nadécadade1980,amontageestavamaisnosvideoclipes,napublicidadeenatelevisão

do que no cinema. Salvo exceções, especialmente no cinema de ação, a produção

cinematográficadaquelaépocafaziaoposiçãoaessaestética“clipada”,quepassaaser

tratadacomovulgarpelacríticadaépoca.Montagensmaisassociativase/ouaceleradas

eram facilmente rotuladas como “estética MTV” e consideradas superficiais por seus

excessosepelafaltadereflexãoeconceituação.

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5.2.TestemunhodetendênciasdofinaldoséculoXX

Retomandoa linhapessoaldeminhas impressõescomocinéfiloecineastadocapitulo

introdutório, os anos 1980 são a primeira década cujo cinema consumi em sua

contemporaneidade.

Vivencieioocasodanewhollywood, o surgimentosdos conceitosdeblockbusters ede

filmesdeverão.Viosurgimentodapolaridadedefilmedemercadoedearte.Noladodo

mercadodeexibição,acompanheiofechamentosdassalasderuacompadrãotécnicode

som e imagem precários e a abertura dosmultiplexes com melhor qualidade técnica

porémcomingressosmaiscaros.Emcontrapartidaaoavançodaindústria,presencieia

solidificação de um circuito independente de cinema de arte através do Cineclube

EstaçãoBotafogo,noRiode Janeiro, edoEspaçoUnibanco (depois rebatizadode Itaú

Arteplex),emSãoPaulo.Aaberturadessassalafoiummovimentoglobalquecoincide,

porexemplo,comaaberturadesalascomooAngelikaemNovaIorque.Omercadode

filmes alternativos do então chamado “circuito de arte” floresceu na década de 1990.

Distribuidoras de filmes desse nicho prosperam. Mostras de cinema se tornaram

fenômenosdepúblicoservindodefiltroparaatriagemdosfilmesdeartedeapelomais

amplo.

Nos EstadosUnidos, o cinema industrial em larga escala abriu espaço para uma cena

independentecatalisadapeloInstitutoSundance(queiniciousuasatividadesem1984).

Cineastas como Jim Jarmusch e Hal Hartley despontaram como expoentes da cena

independenteefizeramsucessonocircuitoindependentedeartemundoafora.

Cinematografiasdepaísesque, atéentão,não frequentavamomapamundi do cinema

globalganharamevidência.No iníciodosanos1990,o focoosolhosdoscuradoresde

festivais voltou-se para a China. Em seguida, sucederam-se ciclos de atenção a

cinematografiascomoairaniana.

Noentanto,demodogeral,nemocinemaindependenteamericano,nemoiraniano,nem

nenhuma dessas cinematografias de nicho de arte, primou pela aproximação com a

montage.

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Abemdaverdade,algunsvagoselementoscomunsqueunemessascinematografiasvão

em direção oposta, desenvolvendo-se em tempos largos, muitas vezes através da

aproximaçãocomaformadocumentalepropondoumarevisãodaformadramatúrgica

convencional.

JarmuschnosfezacompanharumaextensaelacônicafugadepresosemDownByLaw

(1986).AbbasKiarostamiexibiulongosplanosestáticosdaspaisagensiranianasecloses

deatuaçãocontidaemAtravésdasOliveiras(1994).OtaiwanêsTsaiMingLiangnarrou

umahistóriaparticularmenteduradeumhomemcomumaenfermidadeemseupescoço

emORio(1997)quasequeexclusivamenteemcontemplativosplanosestáticos.

Evidentemente, há centenas de exceções em uma amostragem tão extensa quanto o

circuitodocinemadearteglobaldofinaldoséculoXXeiníciodoXXI.Masacreditoem

uma tendência dominante do circuito de arte daquele período que apontava para a

dilataçãodostempos,possivelmentecomoumacontratendênciaaotempotelevisivoe

docinemadeação,cadavezmaisenxuto,comoexpostonocapítuloanterior.

Aafirmaçãodessatendênciavaideencontroaoconceitodecinemadefluxodefendido

pela crítica Stéphane Bouquet em seu influente artigoPlanContreFlux (Plano Versus

Fluxo)narevistaCahierduCinemaem2002(Bouquet,2002)emumesforçodeapontar

tendênciasdominantesdesseperíodo.

Luiz Carlos Oliveira Jr em seu belo livro Amise en scene no cinema – do clássico ao

cinemadefluxo,alinhaotextodeBouquetcomoutrosdenomesdepesocomoJacques

AumontePascalBonitzerparareforçarsuavisãodequeosfilmesdocircuitodeartedo

final do século XX buscavam respeitar a ambiguidade do real, explorar o acidental e o

assignificante, não impor ao mundo um sentido, mas aguardar que ele construa sua

próprianarratividade(Oliveira,p.136).

Aperguntaquesecolocaalinhadacomoeixodestadissertaçãoéonde,pois,seaninhou

a montage? Onde essa prática tão identificada com a vanguarda nos anos 1920

encontrouespaçodeatuaçãonofinaldoséculoXX?Umarepostaqueapontonocapítulo

aseguirénocinemadegêneroe,emespecial,nosfilmesdesuspenseeterror,formas

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propícias a retratar na tela um cinemado sonho, do subconsciente, do sentimentode

desorientação,darepresentaçãodotranstorno,dehistóriascomplanosubliminar,com

um lado oculto de causas psicológicas ou sobrenaturais. Climas e expedientes, estes,

atraentesparaousodemontage.

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PARTE6–APERSISTENCIADAMONTAGENOCINEMADESUSPENSEETERROR

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6.1Oscontrabandistasdosanos1940

Retomemos os anos 1940, o momento em que após a dominância do cinema de

découpagedaprimeiradécadadocinemafalado,amontagepassouafiguraremalguns

filmesnachamadadialéticanarrativaapontadaporBazineanalisadanocapítulo3.1.

AomesmotempoemqueRenoireWelles,em1939e1941,jogavamcomamontagena

comédia dramática e no drama, respectivamente, outros cineastas trabalhava mais à

sombra.Scorseseapontaadescobertadeumcampodeinovação,naquelaépoca,paraos

“contrabandistas”:

Quanto menos dinheiro mais liberdade! O mundo dos filmes B eramfrequentementemais livres e propício à experimentação e à inovação.Nos anos 1940, os diretores perceberam que podiam exercer maiscontrole sobre a produção de baixo orçamento do que sobre umprestigiosofilmeclasseA.(p.113)

UmcasocuriosoéodoestúdioRKOque,em1942,vivenciavacomOrsonWellesumdos

maisicônicosconflitosentrecineastaseestúdios. Diretoreestúdiodesentenderam-se

namontagemdeSoberba,segundofilmedeWelles,feitologoapósoestrondososucesso

críticodeKane.

Nomesmoanoda filmagemdocaríssimoSoberba,oestúdioconferiuaoexecutivoVal

Lewton28amissãodeproduzirfilmesbaratosecomerciais.Eoprimeirodessesfilmes,

feito sem muita atenção dos executivos seniors do estúdio, foi Sangue de Pantera,

dirigidopelofrancêsradicadoemHollywood,JacquesTourneur.

Scorsese chega a afirmar que “Sangue da Pantera foi tão importante quanto Cidadão

Kaneparaodesenvolvimentodeumcinemaamericanomaismaduro.”(Scorsese,1994,

p.116).

Éumfilmedesuspenseeterrorpsicológicoquetratadoromanceentreumamericanoe

umamisteriosamulhersérvia,IrenaDubrovna,quepossuiumaestranharelaçãomística

comseusantepassadosdolesteeuropeuediversasconexõessensoriaiscomfelinos.Na

história, o comportamento de Irena conduz o casamento a uma crise. Mas quando o28Uma descrição muito aprofundado dos objetivos e meios de produção de Val Lewton énarrado no documentário: Val Lewton – TheMan in The Shadows,dirigido por Kent Jones eproduzidoenarradoporScorsese.

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maridoaproxima-sedeoutramulher,forçasdoinstintodepanteradeIrenaentramem

cenaeperseguemaoutramulherdotriânguloamoroso.

Emmeio a cenasdedécoupage, Tourneur, desenvolve algumasdemontagenaprática

queapontamosaquicomodialéticanarrativa.

ApósumavisitaaumpsiquiatriaquetentaajudarIrenaatravésdesessõesdehipnose,a

moçatemumsonhoperturbador.Amontagemdacenaarticulaoclosedela,dormindo,

inquieta,comosseguintesplanos:imagensdefelinosandandoemdireçãoàcâmera;um

cavaleiro medieval empunhando uma espada representando o Rei John da Sérvia,

personagemhistóricoqueainfluencia;eachavedajauladapanteranozoológico.

Figura 21 – Fotogramas do pesadelo de Irena em Sangue de Pantera (1942) de JacquesTourneur.

Arepresentaçãodooníricoemumateladecinemasemprefoiumexpedienteatraente.A

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experiênciacinematográficadeumespectadorquesedeixarconduzirporumahistória

audiovisualnaturalmenteapresentaumparalelocomoatodesesonhar.

Buñuel e Dali propuserem um cinema em que o sonho não precisava de qualquer

moldura para irromper em cena. Já seus contemporâneos alemães, O Gabinete do Dr

Caligari eAÚltimaGargalhada, tiveram de colocar, pormotivos comerciais, cenas de

seusprotagonistas,respectivamente,saindodeumtransehipnóticoeacordandodeum

sonho.

A partir dos anos 1940, a popularização da psicanálise, abriu espaço para o cinema

colocar, commaior frequência, a representação de sonhos na tela. AlfredHitchcock é

frequentemente apontado como um dos maiores expoentes a fundamentar sua

dramaturgiaemparadigmasdeperfispsicanalíticos29.

Hitchcockassociou-seaopintorSalvadorDaliparacriarumacenademontagedorelato

deumsonhoemQuandofalaocoração(1946)eaoartistagráficoSaulBassparacriar

uma montage da representação pesadelo de um personagem em Um corpo que cai

(1958).

29ApsicosedeNormanBatesemPsicose(1960);ocomplexodeédipoemOsPássaros(1963);otrauma da protagonista em Marnie, Confissões de Uma Ladra (1964) são exemplos quaseexplicitosdeaplicaçõesdeperfispsicanalíticos(emvoganaépoca)emnarrativa.

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Figura22–FotogramasdopesadeloconcebidoporDalierealizadoporHitchcockemQuandoFalaoCoração(1945).

Figura23–FotogramasdopesadeloconcebidoporSaulBasserealizadoporHitchcockemUmCorpoqueCai(1958).

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Masamontagenosanos1940e1950nãoserestringiuàrepresentaçãodesonhos.No

cinemadeTourneureHitchcock,porexemplo,elaseprestatambémacriarasensação

dedesorientação.

Sangue de Pantera tem outra cena notável. Quando a pretensa amante domarido de

Irenapraticanataçãoemumaacademia,Irenaasegueatéosvestiáriosedesapareceno

escurodocenáriobemcontrastadocomzonasclaraseescuras,típicasdocinemanoir.

Sombrase sons indicamapresençadeumapanteranaacademia.Amulherolhapara

todos os lados mas só consegue ver zonas claras e escuras e reflexos das águas da

piscina no teto e nas paredes do ambiente fechado. Segue-se uma série de 20 planos

montadosdamoçaedecantosdoambientevaziopormaisdeumminutodesilêncioe

tensão.

Trata-sedeumacenademontagequenãorompecomanarrativamasalémdenarrar,

presta-seatransportaroespectadoràcondiçãodedesorientaçãodapersonagem.

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Figura24–FotogramasdecenadeSanguedePanteradeJacquesTourneur(1942).

Possivelmente umamais populares cenas demontage da história do cinema busca o

efeito de desorientação: o assassinato deMarionCrane (JanetLeight) no chuveiro em

Psicose (1960)deAlfredHitchcock.Sãomaisde40planosemmenosde2minutosde

filme que sugerem, através damontage, as estocadas de uma faca sem, no entanto,

mostrarqualquerimagemexplícitadecorteouperfuração.

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Figura25–FotogramasdaicônicacenadoassassinatodochuveirodePsicose(1960)deAlfredHitchcock.

HitchcockconcordacomTruffautemsuacélebreentrevistas(Truffaut,p.281-282)que

esse tipo demontage em meio ao filme de découpage confere a Psicose um caráter

experimental. Em outra entrevista30, Hitchcock vai mais longe e opõe esse tipo de

montageaocinemadecortesdeaçãocontínuadeGriffith:

Montageéajunçãodospedaçosdefilme,quesemoveemumasucessãorápidadiantedosolhos,criandoumaideia.(...)Muitagenteachaqueocorte(cutting),ouamontage(montage)ouajunção(assembly)épegarumhomemdeumlugarparaoutroepularparaumcloseupdele.OqueGriffithinventou,éverdade.Masparamim,vaimaislonge.Comodigo,ofilmePsicose temumaabordagemmuitocinemáticaparaumconteúdobásico. De início, nós temos o assassinato de uma mulher nua no

30paraFletcherMarklen,nasérieTelescopedaCBC,em1964.

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chuveiro.Comosesabe,agentenãopodiapegarumacâmeraemostrarumamulhernuasendoesfaqueadaatémorrer.Nóstínhamosdefazerdemaneira impressionista. Então o fizemos com pequenos pedaços defilme:acabeça,ospés,asmãos,partesdoseutorso,oprópriochuveiro.

O que faz essa cena ser tão notável é que ela atende à diversas demandas:

narrativamente,elacontaahistória;visualmente,elaocultaocorponueasperfurações

da faca; ela confereaindaumcaráterdedesorientação comoasoutrasmontages aqui

analisadas;emais,elacriaumtorpor,envolvendooespectadorsensorialmentecomos

cortes.

Sejapelorepresentaçãodoonírico,oupelacapacidadedeenvolvercomseuscortes,ou,

principalmente como um expediente para criar desorientação, o gênero em que a

montagemais encontrou espaço para se colocar dentro do cinema comercial foi o de

filme policial, mistério, e terror. Os atributos damontage parecem se encaixar com

naturalidadenessesgênerosdocinemanarrativocomercial.

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6.2.OitotiposdecenasdeAnnabelle

Annabelle éum filmede terroramericanoque fezgrandesucessoem2014, figurando

entreas20maioresbilheteriasdoano,sendoumdosúnicos4filmesdessegrupoque

nãoerafilmedesuperheróiouanimaçãoinfanto-juvenil31.

AVariety32apontouque

Ofilmedeterrordebaixoorçamento[Annabelle]atingiuotopodaslistade receita nessa semana [última semana de outubro de 2014],aportando 26.5 milhões de dólares e ultrapassando a marca dos 200milhõesdedólaresacumulados.Produzidocomapenas6,7milhõesdedólares(...)ofilmeatingiuasoberbamarcade11,5milhõesdólaresnoBrasilemapenas3semanas.

Curiosamente, apesar do sucesso, o filme atingiu a fraca marca de 29%33de aprovação no

“tomatômetro” do site rottentomatos.com 34 , referência mundial em reação das plateias

contemporâneas, sobretudo juvenil e de perfil comercial, aos filmes em lançamento. O site

apresentaaindaumaresenhaqueresumeoutras117resenhas35deAnnabelle:

Annabelle pega emprestado, descaradamente, conteúdos de melhoresfilmes de terror, para deixar seus espectadores por um fio, emexpedientebaratoquefalhaemconstruir.

Ou seja,Annabelle é um filme ruimmasde sucesso. Elenarra ahistóriadeum jovem

casal que, durante a gravidezda esposa, decora o quartoda criançapor vir comuma

boneca que esteve presente no assassinato de ummembro de uma seita satânica. Ao

longodofilme,oespíritodomalganhamvidaetentammataramãeeroubaracriança.

Comobemapontoua “resenhadasresenha”dorottentomatos.com,Annabellefunciona

comoumcompêndioderecursoscorrentesdogênerossuspenseeterror.

Na trajetória proposta nesta dissertação, em que passamos por Welles, Godard,

Antonioni,Hitchcock,Tourneur,Scorseseentreoutros,Annabelleéumcorpoestranho.

31http://www.boxofficemojo.com/intl/brazil/yearly/32http://variety.com/2014/film/news/annabelle-foreign-box-office-200-million-1201339672/33Conformeapuraçãoemoutubrode201534http://www.rottentomatoes.com/m/annabelle/35Conformeapuraçãoemoutubrode2015

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O crítico irlandês Mark Cousins apresenta, emHistória do Cinema (p. 11), uma visão

evolutivadocinemabaseadonateoriagenéticadeRichardDawkinsemseulivroOgene

egoísta.Dawkinscriouoconceitodemêmes,unidadesdeculturaanálogasaosgênes,que

são unidades biológicas. Cousins adaptou o conceito ao cinema, postulando que

inovaçõesdelinguagemdecineastas,assimcomogenes,sãoreplicadasoumutadasao

longo dos tempos, de filme em filme. Nesta visão, quando um autor cinematográfico

apresentaumanovidade,possivelmenteeladerivadealgumaoutraobra (mutação), e

quandoesteautoréinfluente,outrosautoresocopiam(replicação).

Annabelle é um bom exemplar de produtos de replicações emutações dosmêmes de

HitchcockeTourneur.

Um estudo mais aprofundado poderia localizar os elementos da trilha evolutiva (no

sentidodeDawkinseCousins)dosfilmesqueligamHitchcockeTourneuràAnnabelle.

EssatrilhapossivelmentepassariaporOExorcista(1973),OMassacredaSerraElétrica

(1974),AProfecia(1976),BrinquedoAssassino(1988)eOChamado(2002).

Saltandocercademeiadécada,deHitchcockeTourneuràAnnabelle,encontramoseste

casedesucessocomercialqueperfilaaolongodeseus100minutos,cercade15cenas

demontage,umaincidênciadedialéticanarrativamaisfrequentequeosdemaisfilmes

analisadosaqui.

A análise de algumas dessas cenas a seguir, reafirma a postulação feita no capítulo

anteriorqueamontagebemseaninhouemfilmesdesuspenseeterroraolevaràtela

um universo de sonho, de representação do subconsciente, do sentimento de

desorientação,darepresentaçãotranstorno,dehistóriascomplanosubliminar,comum

ladoocultoporcausaspsicológicasousobrenaturais.

Lancemosumolharsobre8gruposdessascenas:

a.Estabelecendoumambiente

É prática comum da linguagem clássica a apresentação de ambientes através dos

chamadosstablishingshots,ouplanosdeestabelecimento.Sãoplanosquedefinemum

localantesdeseiniciarumacena.EmRelíquiaMacabra(1941),antesdeseintroduziro

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cenárioemestúdiodoicônicodetetiveSamSpadeinterpretadoporHumphreyBogart,

JohnHouston introduz namontagem 3 planos exteriores da cidade de São Francisco,

ondeaaçãosepassa.Trata-sedeumexpedientemuitocomum,especialmenteemséries

televisivasetelenovelas.

EmAnnabelle, em um dosmomentos em que se retorna à casa onde se passa a ação

quatroplanossãoperfilados:planobemcompostoemligeirateleobjetivadoexteriorda

casa; plano de um relógio em contraplongê em ligeira grande angular; plano de um

móbileemcontraplongêem ligeiragrandeangular;planoda sala comgrandeangular

emplongêcomacâmerapróximaaoteto.

Figura26–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

O corte da normalidadedoplanoda fachada em teleobjetiva (imagemnonível e sem

distorções)paraosplanosforadoníveleemangulardointerior,produzemasensação

deque,apesardeparecerumacasanormal,háalgodeestranhoemseuinterior.

A concatenação de significados das imagens apresentadas (casa, relógio, criança, sala

vazia)apresentaumasíntesedoselementoscentraisdoclimaedanarrativadofilme.

Mais do que simples stablishingshots, esse conjunto é umamontage de associaçãode

planosindependentesconstruindoumsignificadopelasuajunção.

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b.Pessoaseobjetos

Emfilmesdeterrorécomumobjetosganharempesosesignificânciasmaisamplasdo

quesuanaturezadesimplesobjetos.EseguindoalinhadefilmescomoOExorcista,em

que o mal irrompe na vida de uma mãe de família, ações cotidianas convencionais,

quandoganhamoutrassignificâncias,podemgerarempatiacomaplateia.

Emdeterminada cena deAnnabelle, amãe costura na sala enquanto assiste televisão.

Sobre o fogão elétrico desligado da cozinha repousa uma “Jiffy Pop” (kit de se fazer

pipoca em fogão anterior às contemporâneas pipocas de microondas) que o marido

haviadeixadonavéspera.Noentanto,misteriosamenteofogãoéligado.

Acenasemdiálogosde1minutoemeio,perfila50cortesdeenquadramentosdamãe,

datelevisão,dofogãoedeummuitoaflitivoplanoemlentemacrododedodamãejunto

àagulhaemmovimentodamáquinadecostura.

Segue-se um crescendo demontage, com enquadramentos cada vez mais fechados e

cortesmais rápidos que culminam com amãemachucando seu dedo namáquina e a

“JiffyPop”explodindoemlabaredasnacozinha.

Figura27–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

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c.pessoaseambientes

Desde o romance gótico do final do século XVIII e início do XIX36, os locais onde se

desenrolam as histórias de suspense e terror ganharam força expressiva intrínseca à

forma narrativa. Não são apenas ambientes onde se passa a história mas elementos

centraisdaconstruçãodoclimaqueembalaanarrativa.

A tradição de fazer de ambientes, espaços climáticos para o desenrolar da história é

absorvidacom forçapelo cinemadesuspensee terror.Podese fazerumaconexãoda

relevância dos cenários desses romances para a história com o papel das casas de

RebeccaouPsicosedeHitchcock.

EmOMassacredaSerraElétrica,porexemplo,umgrupode jovens ficapresoemuma

fazendanoTexassemgasolinaeéobrigadoapassaranoiteporlá.Umdelesvaiatéum

casarão pedir ajudamas é atacado porLeatherface uma estranha e violenta figura de

rosto deformando coberto por pedaços de pele demortos. Um a um, osmembros do

grupo vão entrando no casarão e sendo atacados. O filme apresenta duas cenas de

montage que se desenrolam quando os visitantes entram dentro do “gabinete de

horrores”nointeriordacasa.Nessemomentomonta-seosplanosdorostodovisitante

comváriosplanosdoambiente.

O mesmo acontece em Annabelle em três situações, cada uma com tons e gradações

diferentes.

Há uma diferença sutil entre uma cena de découpage de uma pessoa entrando e

observandoumambienteeoqueascenasdescritasaquiapresentam.Emumacenade

découpage,podemosentrecortardeumcloseparaimagensdoambientecomocampoe

contracampo, ou como plano do personagem seguido de seu ponto de vista. Quando

filmadoemontadodeformalógicaeordenada,essaformapoderetratarumasituação

deformaobjetiva.Noentanto,emtodososcasosaquiapontados,aconstruçãodacena

36EmTheMonk,M.G.Lewisnarraastentaçõesdeummonge-feitasporSatanásemformademulher - no ambiente de uma abadia. Em The Castles of Athlin and Dunbayne, Ann Radcliffconstróisuanarrativaemmeioaruínasdecastelosescoceses.

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rompe com o cartesianismo da construção da découpage e produz um efeito

impressionistademontageparacriarumasensaçãodedesconcertodapersonagemda

qualoespectadorécúmplice.

NaprimeirasituaçãodeAnnabelle,amãenasalacomobebê,ouveobarulhodecadeira

debalançovindodoquarto.Elaentranoambienteenãoencontranada.Éaprimeira

cenadessegrupoeaquemaisseaproximadeumasituaçãodedécoupage.

Figura28–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

Em outromomentomais adiante, objetos na casa começam a semexer, e quando ela

entranoquartoumavitrolacomeçaatocarsozinhaeasbonecasdoquartorevelam-se

manchadasdesangue.Nessemomentoamontagemémaislivre,associativaporclimase

seafastadeumcinemadedécoupageaproximando-sedamontagem.

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Figura29–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

Emseguida,acâmeracomeçaaflutuarmais.Oscortessãomaissoltos.Osângulossão

estranhos e a casa aparece toda pichada. Amontagem não seguemais a objetividade

narrativa, estamos no ambiente de pesadelo e a concatenação das imagens se dá por

montage.

Figura30–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

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d.estadodetorpor

A sensação impressionista pode ir ainda mais a fundo namontage, produzindo um

estadodetorpor.

EmAnnabelle,odisparadordaaçãoéumataquedeumgrupodemaníacos(inspirados

nocélebreemacabrocasoda“famíliaMason”nosanos1960)àcasadosprotagonistas.

Osintegrantesdogrupo(umhomemeumamulher)esfaqueiamaesposa,travamuma

luta comomarido e sãomortos pela polícia. Amorte de ummembro da seita com a

bonecanocoloéodisparadordetodaatrama.

Quandoaesposa,grávida,éesfaqueada,elacainochãoepassaaserumaobservadora

da luta do marido com os agressores, da chegada da polícia e do desfecho de ação.

Grávida e esfaqueada, a personagem desconcertada assiste a ação que passa a ser

filmada com variações de velocidade, lente tilt-focus (que produz desfoque parcial na

imagem)ecabeçadutch(queposicionaacâmeraforadenível).

Amontagedeixadeserumasimplesobservaçãoobjetivaepassaaseraconstruçãode

umestadodetorpor.

Figura31–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

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e.elementossensíveis(fogo,água,ar,etc)

Outra cena que reproduz a sensibilidade da personagemda esposa se desenrola logo

apósoincêndiodapipocanofogãodescritanoitemb.

Quando finalmente a personagem repara no cheiro de queimado, ela sai da sala e

encontraacozinhaemchamas.Aobservaçãodoquesepassanaqueleambientenãoé

filmadaemontadadeformaobjetiva.Éumamontagedeváriosplanosquevalem-sedo

caráterplásticoefluidodoelementofogo.

Figura32–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

f.desconcerto

Odesconcertodapersonagemsegueemumcrescendo.Umdosápicessedáquandoela

desce à lavanderia do prédio mas tem dificuldades em retornar ao piso do seu

apartamentodevidoaumapanenoelevador.

Apersonagempõe-sea subirasescadariasdoprédio sem luz, iluminadasunicamente

pelosraiosqueespocamdoladodeforadoedifício.Elaassusta-secomaimpressãode

estarsendoseguida,deixaalanternacairnochão,epassaasubirasescadasemcorreria

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desesperada.

Os enquadramentos tornam-se quase abstratos, e amontage mantém o leve balanço

entra a objetividade narrativa (moça subindo escada) e a pura sensorialidade das

imagensesuaconcatenação,representandooestadodeespíritodapersonagemdaqual

somoscúmplices.

Figura33–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

g.montagemsubliminar

Noápicedoitemanterior,intercala-seumclosedaprotagonistacomumrápidoflashde

poucosframesdaimagemdeumdemônio.Seráaúnicaapariçãodaentidadeemtodoo

filme.Éumcasodemontagemsubliminar,quandoseinsereumplanotãocurtoquenão

sepermiteumaleituraobjetivadaimagemmasumefeitosubliminar.

Éomesmocaso,porexemplo,dopesadelodopersonagemPadreKarrasnoclássicoO

Exorcista,queatormentadoporterdeixadosuamãesozinhaemseuleitodemorteno

hospital, sonhaque está correndopela rua emdireçãoa suamãeque somedescendo

umaentradadeestaçãodemetrô.Emmeioaessacorrida,odiretor,WilliamFriedkin

intercalaalgunsrápidosequaseimperceptíveisfotogramasdeumrostodemoníaco.

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Figura34–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

h.emulandofilme-ensaio

Porfim,háumacenademontagedignadenotamasquenãorepresentaaconstruçãodo

estadodesubjetividadedaprotagonista.

Apósoataquedaseitaàcasadafamília,ofilmeexibeelementosdereportagenssobreo

ocorrido. Trata-se de uma pontuação de pausa/relaxamento da ação após o ápice do

ataque,aomesmotempoemqueseapresentaarepercussãopúblicadocaso.Nacena,

algumasinformaçõesobjetivassãotransmitidasàplateiasobrequemeramosinvasores,

principalmente para plateiasmais jovens que em suamaioria desconhecem papel de

CharlesMasonnoimagináriocoletivoamericanodosanos1960.

Uma vez que o filme apresenta uma palheta diversa e constante de sensações de

montage,aopçãododiretornãofoicortarparaumareportagemcomaclarezadotempo

real, mas produzir uma montage que transmite uma sensação do conjunto das

reportagensatravésdesuassobreposiçõeseinserçõesderuídosdeimagememmeioà

elas.

Figura35–FramesdecenadeAnnabelle(2014).

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PARTE7–CONCLUSÃO

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7.1 Retomando a perspectiva pessoal em meio a consideração finais sobre

montageegênero.

No capítulo introdutório desta dissertação, relatei minha trajetória pessoal. Meu

trabalhocomodiretoriniciou-seemcurtas-metragensnarrativosmasquesevaliamde

expedientes demontage para alémdenarrar, passar sensações do que o personagem

central–figuradeidentificaçãodoespectador–vivencianatela.

O primeiro longa-metragem que dirigi, Não Por Acaso, investigou como incluir mais

histórianesteprocedimentodelinguagem,equilibrandocenasdedécoupagedecaráter

maisnarrativocomoutrasdemontagecomfinalidademaissensorial.

Osegundolonga-metragemquedirigi,EntreVales,buscououtradireção.Maispróximo

do conceito de cinemade fluxo37, procurou integrar o caráter sensorial das cenas não

pela montage, mas dilatando o tempo, esgarçando a narrativa e apresentando uma

experiênciafísicadoator-protagonista.

Atualmente desenvolvo meu próximo projeto de longa-metragem. Pela primeira vez,

trabalho na adaptação de material literário, no caso, o romance A Extraordinária

TristezadoLeopardodasNevesdeJocaReinersTerron.Éumlivrodemuitasfacetasque,

em sua versão cinematográfica, focará no gênero policial, com mistério e pitadas de

terror.

Parachegaraesteprojeto,ensaieidesenvolverdiversosoutrosquenãoganharamforça

emseuprocessoe,naturalmente,acabaramnãoseguindoadiante.

JáLeopardo (título provisório) aparentemente ganhoumais aderência às questões de

financiamento (o filme tem previsão de filmagem em 2017) e também às questões

artísticas quememotivama assumir a dedicação que umprojeto de longa-metragem

demanda.

37Cinema de Fluxo é abordado por alto no capítulo 5.2. Para uma maior compreensão doconceito recomenda-sea leituradoartigodeStephaneBouqueteadissertaçãodeLuizCarlosOliveiraJunior,ambosindicadosnabibliografia.

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A trama segue um escrivão noturno de uma delegacia que participa de várias

investigações simultâneas. Insone, ele mistura as várias histórias. O filme atende às

demandasdeumfilmepolicial,aomesmotempoemqueproporcionaoretratosensorial

deumpersonageminsoneemmeioaoturbilhãodemulti-plots.

A intenção do projeto é integrar as cenas de découpage e de montage em meio à

investigação do protagonista. Intuitivamente, no processo, fui atraído pelo gênero de

mistério,suspenseeterror,noqualnuncameaventureicomocineasta.

Estadissertaçãoserviu,paramim,comoapoioaoprocessodeseescreveroroteirode

Leopardo.Dissertaçãoeroteiroforamescritosparalelamente.Umainfluenciouaoutra,e

viceversa.

Descrevi, no capítulo introdutório, as questõesdeminha formação como cineasta. Em

seguida, apontei os conceitos de Bordwell de cinema de montage e de découpage,

identificando-osemmeutrabalhopessoal.Pesquisei,então,ondeecomoseequilibrou

esses dois procedimentos ao longo da história do cinema. Analisei, neste caminhos,

cineastasdiversoscomoRenoir,Tourneaur,HitchcockeScorsese.

Seguindo o que acredito ser uma linha “evolutiva” (no conceito de Dawkins-Cousins)

apontei que amontage (e seu equilíbrio com a découpage) encontrou terreno para

desenrolar-se plenamente no cinema de suspense e terror contemporâneos. Em um

filmepopularcomoAnnabelle,porexemplo,oprocedimentoschegaafazer-sepresente

cercaquinzevezes.

Suspenseeterrornãosãoosúnicosgênerosondecabemontage.Aanálisepoderiaser

expandidaparaumguarda-chuvasmaisamplodefilmesqueincluiriamprincipalmente

o thriller psicológico, o filme policial e de ficção científica quando esses gêneros se

aproximamdaexperiênciasensorial.Cineastas-autoresdefilmesdegrandeportecomo

M. Night Shyamalan, David Fincher, Cristopher Nolan, JJ Abrahams, por exemplo,

merecematençãoporseremresponsáveispelapopularizaçãocontemporâneadealguns

dessesprocedimentosemprodutosdemassa.

Meufocoprofissionalprincipalémeutrabalhocomocineasta,aomesmotempoqueme

aproximo do universo acadêmico. Essa dissertação tem como objetivo aprofundar

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minhasreflexõessobrelinguagemeservirdeapoioameutrabalhocomocineasta.

Buscocomestadissertaçãoirmaisafundo–ecommaiorconsciênciademeuspassos–

emminhapesquisapessoal,aomesmotempoquepossibilitoatrocadepensamentose

experiênciascompossíveisleitores.Esperoquetenhasidoumajornadainstigantepara

quemseaventurounessaleituraatéofinal.Possoassegurarqueparamimfoi.

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FILMESESÉRIESCITADOS8½.Direção:FedericoFellini.1963.Acossado.(ÀBoutdeSoufle).Direção:J.L.Godard.1960.Ama-meEstaNoite.(LoveMeTonight).Direção:RoubenMamoulian.1932.AmoresBrutos.(AmoresPerros).Direção:AlejandroGonzálesIñárritu.2000.Annabelle.Direção:JohnR.Leonetti.2014.ApocalipseNow.Direção:MartinScorsese.1979.AtravésdasOliveiras.(Ziredarakhatanzeyton).Direção:AbbasKiarostami.1994.BalletMecanique.Direção:FernandLéger.1924.BandidodaLuzVermelha,O.Direção:RogérioSganzela.1968.BlowUp.Direção:MichelangeloAntonioni.1966.BonnieeClyde.(BoonieandClyde).Direção:ArthurPenn.1967.BrinquedoAssassino,O.(Child’sPlay).Direção:TomHolland.1988.CabinetedoDr.Caligari,O.(DasCabinetdesDr.Caligari).Direção:RobertWiene.1920.CaminhosPerigosos.(MeansStreets).Direção:MartinScorsese.1973.CãoAndaluz,Um.(UnChienAndalou).Direção:LuisBuñueleSalvadorDali.1929.Chamado,O.(TheRing).Direção:GoreVerbinski.2002.Chinesa,A.(LaChinoise).Direção:JeanLucGodard.1967.CidadãoKane.(CitizenKane).Direção:OrsonWelles.1941.CorpoqueCai,Um.(Vertigo).Direção:AlfredHitchcok.1958.Daunbailó(DownByLaw).Direção:JimJarmuch.1986.Empire.Direção:AndyWarholeJonasMekas.1964.EntreVales.Direção:PhilippeBarcinski.2014.Escada,A.Direção:PhilippeBarcinski.1994.Exorcista,O.(TheExorcist).Direção:WillianFriedkin.1973.FestimDiabólico.(TheRope).Direção:AlfredHitchcock.1948.FrancoAtirador,O.(DeerHunter).Direção:MichaelCimino.1978.Frankstein.Direção:JamesWhale.1931.GameofThrones.Criadores:DavidBenioffeD.B.Weiss.2011-GabinetedoDrCaligari.(DasGabinerdesDrCaligari).Direção:RobertWiene.1920.Homem com a Câmera de Cinema, O. (Chelovek s kino-apparatom). Direção: DzigaVertov.1929.IlhadoMedo.(ShutterIsland).Direção:MartinScorsese.2010.It’sNotJustYou,Murray!Direção:MartinScorsese.1964.Italianamerican.Direção:MartinScorsese.1974.JanelaAberta,A.Direção:PhilippeBarcinski.2002.LamentosaFavordeSade.(HowlinginFavorofDeSade).Direção:GuyDebord.1952.M–OVampirodeDusseldof.Direção:FritzLang.1930Margem,A.Direção:OzualdoCandeira.1967MassacredaSerraElétrica,O.(TheTexasChainsawMassacre).Direção:TobeHooper.1974.Metrópolis.Direção:FritzLang.1927.Montecarlo.Direção:ErnstLubitch.1930.NãoPorAcaso.Direção:PhilippeBarcinski.2007.NoiteAmerica,A.(LaNuitAméricaine).Direção:FrançooisTruffaut.1973.Outubro.(Oktyabr).Direção:SergeiEisenstein.1928.QuandoFalaoCoração.(Spellbound).Direção:AlfredHitchcock.1945.Pátio,O.Direção:GlauberRocha.1959.

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Pássaros,Os.(TheBirds).Direção:AlfredHitchcock.1963.PerdidosnaNoite.(MidnigntCowboy).Direção:JohnSchlesinger.1969.PoderosoChefão,O.(TheGodfather).Direção:FrancisFordCoppola.1972.PrimeiraNoitedeumHomem,A.(TheGraduate).Direção:MikeNichols.1967.Profecia,A.(TheOmen).Direção:RichardDonner.1976.Profissão:Repórter.(ThePassenger).Direção:MichelangeloAntonioni.1975.Psicose.(Psycho).Direção:AlfredHitchcok.1960.Rebecca–AMulherInesquecível.(Rebecca).Direção:AlfredHitchcok.1940.RegradoJogo,A.(LaRegleDuJeu).Direção:JeanRenoir.1939.RelíquiaMacabra.(TheMalteseFalcon).Direção:JohnHouston.1941.Rio,O.(HeLiu).Direção:TsaiMingLiang.1997.Roda,A.(LaRoue).Direção:AbelGance.1923.SanguedePantera.(CatPeople).Direção:JacquesTourneur.1942.SemDestino.(EasyRider).Direção:DenisHopper.1969.Soberba.(TheMagnificentAmbersons).Direção:OrsonWelles.1942.SobOsTetosdeParis.(SouslestoitsdeParis).Direção:RenéClair.1930.ShowNãoPodeParar,O.(TheKidStaysinThePicture).Direção:NanetteBursteineBrettMorgen.2002.TaxiDriver.Direção:MartinScorsese.1976.TerraemTranse.Direção:GlauberRocha.1967.TouroIndomável.(RagingBull).Direção:MartinScorsese.1980.TramasdoEntardecer.(MeshesOfTheAfternoon).Direção:MayaDeren.1943.ÚltimaGargalhada,A.(DerIetzteMann).Direção:F.W.Murnau.1924.Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese pelo Cinema Americano. (A PersonalJourneywithMartinScorseseThroughAmericanMovies).Direção:MartinScorsese.1995.Who’sThatKnockingonMyDoor.Direção:MartinScorsese.1967.ZabriskiePoint.Direção:MichelangeloAntonioni.1970.

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