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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS REFORMA DO ESTADO E MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA SÃO PAULO 2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

REFORMA DO ESTADO E MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA

SÃO PAULO

2012

Mário Henrique Farbelow

REFORMA DO ESTADO E MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, para a obtenção do Certificado de Pós-Graduação Lato Sensu. Prof. Orientador: Prof. Dr. Wagner Tadeu Iglecias

SÃO PAULO

2012

i

AGRADECIMENTOS

Agradeço:

À minha família, em especial a meus pais, Sônia e Amauri, e a meu irmão,

Marcus, por terem sempre me incentivado e apoiado.

Ao TCESP, pela oportunidade e apoio financeiro, e à ECP, pela estrutura

disponibilizada para realização do curso.

Ao Diretor da DCG - Dr. Abílio Licínio dos Santos Silva e demais colegas,

especialmente a Lílian, pela cooperação constante.

Ao meu orientador, Prof.Dr. Wagner Iglécias, pelo apoio e dedicação.

E, finalmente, à Fernanda, pelo amor e pelo companheirismo que nos une.

ii

RESUMO

O presente trabalho teve por objetivo explorar a literatura relativa às

transformações de que o Estado foi objeto ao longo do século vinte, detendo-se

especialmente nas propostas de reforma que se iniciaram na década de oitenta e,

parece-nos, permanecem em curso até o momento, questionando de que maneiras tais

reformas tem lidado com a questão do aprofundamento das relações democráticas no

âmbito da Administração Pública, em um contexto que se caracteriza pelo deterioração

da política como esfera legítima de resolução de conflitos.

A primeira grande reestruturação dos padrões de atuação estatal foi

precipitada pela grande crise da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, que

implicou a superação do chamado Estado Liberal clássico, e deu início ao

desenvolvimento do Welfare State, nos países da vanguarda capitalista, e do Estado

Desenvolvimentista, nos países latino-americanos. Ambos se caracterizaram pelo

alargamento do âmbito da atuação do Estado, que passou a assumir a realização de

uma série de atividades antes exclusivamente relegadas à iniciativa privada. Ademais,

especialmente no caso dos Welfare States, assistiu-se a ampliação acentuada da

quantidade de benefícios sociais distribuídos pelo Estado, a ponto de, em alguns

países, o sistema de proteção social aproximar-se da chamada desmercantilização da

mão de obra, isto é, a supressão da necessidade imperiosa dos trabalhadores

venderem sua força de trabalho no mercado como única forma de sobrevivência. Os

sucessos econômicos registrados durante essa fase estimularam o crescimento

desmedido dos aparatos estatais, provocando, por volta de meados da década de

setenta, severas crises fiscais, que solaparam a capacidade de investimentos dos

Estados em quase todo o mundo. Tratou-se, a partir de então, de submetê-lo a um

novo ciclo de reformas profundas. Num primeiro momento, orientadas pelas teorias

neoliberais, que preconizavam o desmonte inconsequente dos aparatos estatais de

seguridade social e a redução de sua atividade regulatória. Logo a seguir, tendo em

vista o aprofundamento das desigualdades sociais em praticamente todo o mundo, as

reformas foram redirecionadas no sentido do fortalecimento da capacidade de ação do

Estado, sem, contudo, reconduzi-lo ao padrão de intervenção que o caracterizou

durante a vigência do Welfare State. O presente trabalho teve por objetivo explorar a

literatura relativa às transformações de que o Estado foi objeto ao longo do século

iii

vinte, detendo-se especialmente nas propostas de reforma que se iniciaram na década

de oitenta e, parece-nos, permanecem em curso até o momento, questionando de que

maneiras tais reformas tem lidado com a questão do aprofundamento das relações

democráticas no âmbito da Administração Pública, em um contexto que se caracteriza

pelo deterioração da política como esfera legítima de resolução de conflitos. É

importante salientar que estas reformas concentraram-se quase exclusivamente nos

aspectos econômico-financeiro e institucional-administrativo, descurando-se quase

inteiramente da dimensão política, a despeito da inegável crise que assola os sistemas

políticos em praticamente todo o mundo, que os expõe de maneira incontornável à

limitações dos mecanismos da democracia representativa em face das transformações

econômica, sociais e políticas provocadas pela globalização. A teoria da democracia

que predominou ao longo de todo o século vinte encerra, nesse sentido, um importante

obstáculo à renovação das práticas políticas, pois, segundo seus principais

formuladores, ela se resume, basicamente, a um mecanismo de seleção de elites

dirigentes, que competem entre si no mercado eleitoral. Apesar disso, observa-se, a

partir da década de setenta do século passado, um movimento contra-hegemônico de

resgate dos conteúdos substantivos da democracia, que procurou instituir novos

espaços de deliberação pública, onde os diversos interesses sociais são confrontados

como parte do processo de construção de compromissos coletivos. Em linha com

essas teorias, surgiram diversos mecanismos de participação social na gestão das

políticas públicas, dois dos quais são brevemente examinados na parte final deste

trabalho: o Orçamento Participativo e os Conselhos gestores.

Finalmente, elaboramos algumas conjecturas acerca das oportunidades de

interação entre os fóruns participativos e os Tribunais de Contas, as quais ensejariam,

em tese, por um lado o fortalecimento do controle social da Administração Pública e,

por outro, o aperfeiçoamento das avaliações de natureza operacional empreedidas

pelas cortes de contas.

Palavras chave: Welfare State, Reforma do Estado, Teorias da Democracia,

Participação social.

Sumário

Introdução .......................................................................................................................... 1 Capítulo 1 - Crise do Liberalismo ..................................................................................... 4 Capítulo 2 - Políticas Keynesianas e Consolidação do Welfare State .......................... 9 2.1. - As Políticas Sociais e a Desmercantilização da Força de Trabalho ......................... 13

Capítulo 3 - A Crise do Welfare State e dos Estados Desenvolvimentistas ............... 20 Capítulo 4 - Crise dos sistemas políticos ...................................................................... 28 4.1. - Vozes Dissonantes ................................................................................................... 37 Capítulo 5 - A Ofensiva Neoliberal ................................................................................. 42

Capítulo 6 - A Reforma do Estado nos Anos 90 ........................................................... 47 Capítulo 7 - Teorias da Democracia e Elitismo Democrático ...................................... 64 7.1. - A Democracia Ateniense .......................................................................................... 64

7.2. - Teorias Elitistas e Democracia ................................................................................. 69 7.3. - Recuperação da Esfera Pública ............................................................................... 78 7.4. - A Contra-hegemonia Democrática ........................................................................... 84 Capítulo 8 - Mecanismos de Participação Política: Obstáculos e Possibilidades ..... 89

8.1. - Orçamento Participativo: a Experiência de Porto Alegre .......................................... 92 8.2. - Conselhos Gestores de Políticas Públicas ............................................................... 97

Considerações Finais: o Tribunal de Contas e os Conselhos Gestores de Políticas Públicas .......................................................................................................................... 109 Bibliografia ..................................................................................................................... 114

1

Introdução

As transformações engendradas ao longo das últimas décadas em virtude

dos processos de globalização, que fortaleceram o papel desempenhado pelas

grandes corporações multinacionais na economia mundial, têm implicado em profundas

reestruturações dos Estados Nacionais em todo o mundo. A primeira delas, e

possivelmente a mais evidente, decorre do comprometimento de sua soberania, já que

as possibilidades de controle de diversos fenômenos socioeconômicos, que se

desenvolvem no interior de suas fronteiras, dificilmente podem se sujeitar às injunções

dos mecanismos de suas políticas públicas. Além disso, a complexidade das

sociedades ocidentais atuais, expressa, entre outros fatores, pelo surgimento de

diversos grupos organizados em torno de demandas específicas, concorre para a

definição dos contornos de outro desafio fundamental aos estados democráticos: sua

incapacidade de satisfazer grande parte dos anseios de sua população, cujas

reivindicações crescem em ritmo muitas vezes superior às possibilidades financeiras e

operacionais das organizações públicas satisfazê-las minimamente.

Estes fenômenos estão na raiz da crise de credibilidade e de legitimidade

dos sistemas políticos contemporâneos. De acordo com Castells, “podem-se identificar

manifestações de crescente alienação política em todo o mundo, à medida que as

pessoas percebem a incapacidade do Estado solucionar seus problemas, e vivenciam

o instrumentalismo único praticado por políticos profissionais” (Castells, 2002, pg. 404)

Ao contexto brasileiro acrescem-se, ainda, as vicissitudes de um processo de

maturação das instituições democráticas extremamente recente, se comparado à

trajetória observada nos países onde a democracia liberal se consolidou primeiramente

(casos de Estados Unidos, Inglaterra e França). Para Teresa Caldeira (2000), o caso

brasileiro caracteriza-se, ainda, pelo que ela denomina “democracia disjuntiva”, pois,

malgrado os movimentos sociais que eclodiram nas grandes cidades brasileiras nas

décadas de setenta e oitenta do século passado, cujo poder de pressão permitiu-lhes,

após longo período de rigorosa censura às liberdades individuais e políticas no país,

influir nos rumos das políticas promovidas pelos governos municipais, obtendo

melhorias expressivas das condições de existência urbana das áreas periféricas destas

cidades – a despeito desta importante experiência popular de participação, a sociedade

2

brasileira permanece atravessada pelo seguinte paradoxo: se, por um lado, as

estruturas jurídicas e institucionais garantem, formalmente, o regime democrático; por

outro, as relações sociais cotidianas permanecem marcadas por práticas

extremamente autoritárias, em decorrência das quais as liberdades civis e políticas são

sistematicamente desrespeitadas sob o consentimento – ora velado, ora deliberado –

não apenas das elites econômicas e sociais que tradicionalmente ocupam os principais

posto de comando do Estado, mas até mesmo de grande parte da população sobre a

qual recai o peso das estruturas repressivas das instituições responsáveis pela ordem

(cap. IV). Neste panorama, parece-nos especialmente relevante que mecanismos e

práticas voltados à disseminação de valores relacionados à democracia, assim como a

ampliação do âmbito das discussões e deliberações relativas a assuntos de interesse

coletivo, sejam prestigiados pelas políticas promovidas nas três esferas de governo.

Tendo em vista estas considerações, o presente trabalho procurou

compreender as principais transformações que marcaram a evolução do Estado ao

longo do século vinte, de sorte a problematizar, em perspectiva diacrônica, as

propostas de reforma de que tem sido objeto nas três últimas décadas. As

reestruturações experimentadas pelas organizações estatais refletem, em grande

medida, as orientações propaladas pela chamada Nova Gestão Pública (New Public

Management), que enfatizam os aspectos econômico-financeiros e institucional-

administrativa da organização do Estado, prescrevendo medidas destinadas a torná-lo

menos oneroso (através da realização de severos ajustes fiscais), a reduzir o âmbito de

suas intervenções na economia e a induzir o desenvolvimento de uma cultura gerencial

nas organizações públicas. Esta cultura traduz-se, grosso modo, na adoção de

estratégias e mecanismos voltados fundamentalmente à obtenção de resultados – em

contraposição à observância estrita dos procedimentos prévia e exaustivamente

fixados em regulamentos. Nesse sentido, as reformas empreendidas durante a década

de noventa em praticamente todo o mundo representaram um consistente ataque ao

modelo burocrático de administração. Como observa Creveld (2004),

“Max Weber [considerou] a administração estatal a personificação da „racionalidade voltada para fins‟,

hoje talvez não reste sequer um indivíduo no mundo que acredite serem esses seus atributos. Na

verdade, é o contrário. Em sucessivos estudos apresentados a partir da década de 1960, as burocracias

estatais foram descritas como infinitamente exigentes (a solução burocrática de qualquer problema é

3

mais burocracia), egoístas, propensas a mentir para encobrir suas gafes, arbitrárias, caprichosas,

impessoais, mesquinhas, ineficazes, resistentes a mudanças e desalmadas” (p. 584/585)

Sem embargo da importância dessas medidas, há uma terceira dimensão

que tem sido frequentemente negligenciada pelos planos de reforma do Estado, os

quais ou a ignoram deliberadamente, ou somente a enfrentam no plano do discurso.

Trata-se da dimensão sociopolítica, que se refere aos padrões de relacionamento entre

Estado e sociedade, e que se remetem aos canais efetivos de participação política

franqueados à população, os quais objetivam afastar o insulamento burocrático dos

núcleos que controlam o processo decisório das organizações públicas. Nesse sentido,

interessa-nos especialmente explorar este aspecto das relações entre Estado e

sociedade, inquirindo-nos a respeito das causas da crise que se abateu sobre os

sistemas políticos contemporâneos – que, em última análise, comprometem a

legitimidade da atuação estatal. Ao final, procuramos explorar, ainda, algumas virtudes

e limitações inerentes a alguns mecanismos de participação sociopolítica, além de

esboçarmos as possibilidades de integração institucional entre os conselhos gestores

de políticas públicas e os Tribunais de Contas.

***

O estudo da Gestão das Políticas Públicas envolve, pelo menos, quatro

áreas do conhecimento que, a despeito dos muitos pontos de contacto entre si,

encerram campos de produção acadêmica distintos. São eles: a Economia, o Direito, a

Administração e a Ciência Política. O presente estudo vincula-se principalmente a esta

última, embora incursione brevemente por questões afetas às outras três áreas –

sobretudo à Economia. O presente trabalho buscou desenvolver, exclusivamente por

meio de pesquisa bibliográfica, diversos assuntos abordados ao longo deste curso de

pós-graduação em GPP – alguns dos quais figuraram no programa de mais de uma de

suas disciplinas – tais como a reforma do Estado, as teorias da democracia, as formas

de organização estatal, etc. Parece-nos que o estudo em profundidade dessas

questões é essencial para que desenvolvamos um nível mais aprofundado de

compreensão dos fenômenos com os quais nos defrontamos diariamente, não apenas

como profissionais do controle externo, mas sobretudo como cidadãos.

4

Capítulo 1 - Crise do Liberalismo

O final do século XIX caracterizou-se pelo predomínio das concepções

liberais de organização econômica, tal como as engendraram autores clássicos como

Adam Smith e David Ricardo, cujas obras serviram de esteio à condução das políticas

macroeconômicas dos governos nacionais – ao menos nos países da vanguarda

capitalista – e à definição dos padrões de intervenção estatal na economia. Esse

período, que assistiu à consolidação definitiva da esfera pública burguesa,

correspondeu à vulgarização da crença na infalibilidade dos mercados como

mecanismo de alocação dos recursos disponíveis, sempre escassos e insuficientes à

satisfação das demandas materiais do conjunto da população. Adotado como dogma

pelas correntes de pensamento predominantes da época, o mercado assomava como

entidade cujas regras de funcionamento não decorriam do engenho de nenhum

indivíduo, grupo social ou regime político; sua dinâmica respondia, antes, a princípios

universais que lhes são imanentes, sendo contraproducentes quaisquer tentativas

exteriores de disciplinar seu desenvolvimento. Como observa Bento, o mercado era

representado como um “espaço neutro em relação ao poder e emancipado quanto à

dominação” (Bento, 2003, p. 03). Dessa forma, a perseguição dos interesses

individuais e egoísticos produziria, em qualquer situação, as melhores condições

sociais possíveis, ainda que os termos desta assertiva pareçam encerrar um paradoxo.

As interferências do poder estatal orientadas à promoção de uma distribuição mais

equânime dos recursos sociais existentes, de sorte a beneficiar grupos marginalizados

do sistema produtivo hegemônico, provoca invariavelmente distorções que, no limite,

agravam ainda mais as condições daqueles que se pretendia beneficiar (Raichelis,

1998).

De acordo com esta perspectiva, “os problemas sociais não ocorreriam por

falhas no sistema, mas como consequência da falta de motivação e de poupança

individual” (Zimmermann & Silva, 2009, p. 349); ou seja, os responsáveis pelas

condições de miserabilidade a que estão submetidos amplos contingentes

populacionais não são outros senão os próprios miseráveis, os quais se furtam a

envidar os esforços necessários à superação das restrições que os afligem. Como se

pode ver, o liberalismo minimiza as variáveis estruturais e conjunturais na definição das

possibilidades de inserção dos indivíduos no sistema produtivo; as desigualdades de

5

riqueza são consideradas meros reflexos dos talentos e dos esforços individuais,

estando ao alcance de qualquer um a fruição das benesses proporcionadas pelo

universo do consumo. Exclusão e pobreza não são, portanto, produtos das dinâmicas

intrínsecas à reprodução do capital, ao contrário: o desenvolvimento das forças

capitalistas, emancipadas das amarras dos estados paternalistas, proporciona as

condições indispensáveis para que todos alcancem patamares mais elevados de bem-

estar social.

A forma de organização política congruente com os princípios acima

expostos se materializa, em primeiro lugar, através da constrição do âmbito de atuação

estatal, circunscrito a um conjunto de funções voltadas fundamentalmente a garantir a

propriedade privada e a remover eventuais embaraços ao funcionamento do mercado e

à acumulação do capital. Sob esta perspectiva, ao Estado cumpre prover, unicamente,

a administração da justiça – entendida como a observância das normas jurídicas em

vigência –; a promoção da ordem pública, por meio do emprego de forças policiais; e a

submissão às obrigações contratuais ajustadas entre os particulares; subtraindo-se das

demais esferas da vida social, sobretudo daquelas associadas às dinâmicas que

regulam a distribuição das riquezas socialmente produzidas.

Em segundo lugar, a vitalidade do funcionamento do liberalismo econômico

depende da permeabilidade do sistema político à participação popular. Ou seja, o livre

mercado tende a manifestar-se de forma mais cristalina, ao abrigo de manifestações

exaltadas de populismo econômico, sob regimes oligárquicos. As democracias

constituídas ao longo do século XIX, surgidas na voga da chamada primeira onda de

democratização (Huntington), caracterizavam-se pela elevada seletividade dos

indivíduos admitidos à comunidade política de suas nações. Em todos os casos, afora

a interdição generalizada à participação das mulheres, as possibilidades de votar e ser

votado eram condicionadas à percepção de determinado nível de rendimentos anuais,

elevado o bastante para excluir os não proprietários das disputas políticas

institucionalizadas. Nestes casos, a democracia reduzia-se a um mero mecanismo de

seleção de elites dirigentes, depurada dos conteúdos substantivos que a singularizam

na história do pensamento político ocidental1.

1 As formas de manifestação dos regimes democráticos serão abordadas com maior profundidade em

6

Em razão do filtro censitário, a classe política caracterizava-se por um

elevado nível de homogeneidade social e, consequentemente, pela identidade quase

irrestrita de interesses. A reduzida margem de dissenso resultante permitiu a

disseminação de uma representação ideológica cujo prestígio perdurou por mais de

cento e cinquenta anos – desde as revoluções burguesas do século XVIII, na Europa,

até a segunda metade do século seguinte –, a despeito das críticas marxistas terem

desnudado a falácia dos pressupostos sobre os quais repousava. Nesse momento,

cada ocupante dos cargos eletivos do Estado apresentava-se não como o

representante dos seus próprios interesses individuais, ou dos interesses da classe

social a qual pertencia. Nos discursos do período, os dirigentes políticos ostentavam a

imagem de representantes de toda a nação, cujas fraturas e contradições, decorrentes

sobretudo das posições ocupadas no sistema produtivo, eram escamoteadas sob a

sombra projetada pela bem-sucedida manobra de identificação dos interesses

burgueses aos das demais classes sociais. Este contexto permitiu a instrumentalização

do Estado em favor das necessidades de reprodução do capital e, ao mesmo tempo,

repeliu as reivindicações dos demais segmentos populacionais, esquivando os

governos da adoção de políticas que representassem o comprometimento da lógica de

funcionamento dos mercados.

É importante notar, ainda, que os cânones do liberalismo econômico clássico

encerram, ainda, outro importante obstáculo ao aprofundamento das relações

democráticas, que, aliás, ainda hoje reverbera nos discursos de diversos políticos e

tecnocratas contemporâneos2. Ora, se o mercado, conduzido pela chamada “mão

capítulo dedicado às teorias da democracia.

2 Um dos últimos eventos de grande repercussão que exemplifica, mais uma vez, a noção da suposta inevitabilidade da adoção de medidas econômicas prescritas por tecnocratas foi o dos pacotes de ajuda econômica à Grécia, em 2011. A proposta do primeiro-ministro Georges Papandreou de submeter a referendo popular a aceitação das condições impostas pela União Europeia para a obtenção dos empréstimos que ajudariam a livrar o estado grego da falência, alcançou repercussão internacional extremamente negativa. A expectativa era que a população do país, caso tivesse oportunidade de se manifestar, rejeitaria integralmente o pacote de ajuda, já que este previa uma série de medidas deveras impopulares, como cortes drásticos no orçamento de programas sociais e a demissão em massa de funcionários públicos. Papandreou, acossado por forte pressão internacional, recuou, tornando sua permanência à frente do governo grego insustentável. A despeito dos acirrados protestos que se seguiram, o programa de saneamento das contas públicas foi implantado de acordo com as prescrições impostas inicialmente. O argumento que justificou a rejeição da vontade popular foi o de que não se tratava de um processo que admitia soluções de natureza política, mas unicamente a aplicação do receituário elaborado por técnicos altamente experimentados, cujo domínio de sofisticadas ferramentas econométricas permitia-lhes oferecer os melhores caminhos para a superação

7

invisível”, opera segundo regras que emanam de sua própria natureza, e sua vitalidade

tende a recrudescer na medida em que são eliminadas as resistências ao seu livre

funcionamento, a condução das políticas econômicas nacionais não pode ser objeto de

discussões de natureza política, já que se trata de uma questão estritamente técnica

em relação à qual não há alternativas viáveis – assim o garantiam, pelo menos, as

mais avançadas lucubrações das ciências econômicas do período. Os ideólogos

liberais foram extremamente hábeis em despolitizar a economia, qualificando como

irracionais os argumentos dos que se arvoravam contra os princípios e as concepções

que defendiam.

Os primeiros anos do século XX já apresentavam sinais bastante evidentes

de desgaste dos fundamentos que sustentavam o liberalismo econômico clássico. Os

exemplos de distorções provocadas pelo livre funcionamento dos mercados se

tornavam cada vez mais abundantes, embora para grande parte dos economistas do

período talvez fosse particularmente difícil interpretá-los. A prescrição de ferramentas

eficazes à eliminação dessas instabilidades envolvia a superação de dificuldades ainda

maiores do que as relacionadas à identificação de suas causas subjacentes, porquanto

os dogmas da não intervenção estatal e da capacidade de autorregulação dos

mercados encerravam barreiras cuja transposição a elite política do período não

parecia disposta a ousar. Entretanto, a marcha triunfante do laissez-faire foi

abruptamente interrompida com o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, que deu

início a uma crise econômica de escala planetária, cuja magnitude jamais foi igualada

por nenhum dos ciclos recessivos que se seguiram durante o século XX – e início do

seguinte.

A acentuada retração da atividade econômica, bem como o crescimento em

escala geométrica do número de desempregados, provocou o agravamento das

condições sociais de enormes contingentes de trabalhadores, ensejando instabilidade

social generalizada – ao menos nos EUA e em países da Europa ocidental –, além de

devastar o clima de otimismo que caracterizou o período imediatamente anterior, no

qual a atividade especulativa nas bolsas de valores americanas atingiu níveis

da greve crise da economia grega. Evidentemente, os cálculos desses eminentes economistas nem sempre consideram o “custo humano” implicado na adoção das medidas que prescrevem.

8

espetaculares, valendo-se da virtual ausência de controles estatais sobre o fluxo das

transações financeiras. Riquezas exponenciais forjadas durante os primeiros anos da

década de vinte fundavam-se unicamente em conjecturas acerca da produtividade de

empresas americanas cujas condições objetivas de operação e lucratividade, em geral,

distanciavam-se deveras das expectativas sobre elas projetadas.

É possível afirmar que, nesse período, as negociações de papeis nas bolsas

ocorriam completamente à margem de considerações fundadas acerca das injunções

efetivas do desenvolvimento econômico do país, fazendo com que essas operações

sucumbissem a uma dinâmica absolutamente autônoma em relação às realidades que,

em última análise, deveriam refletir. O estoura da bolha especulativa, insuflada ao

longo de toda uma década, reduziu a pó diversas fortunas e lançou os Estados Unidos

em uma espiral recessiva sem precedentes em sua história, arrastando consigo, em

pouco tempo, todo o mundo ocidental, inclusive os países periféricos, como o Brasil,

cuja retração econômica, ao contrário do que vulgarmente se supõe, não poupou

sequer seu nascente complexo industrial. Possivelmente em intensidade ainda maior

do que a da euforia precedente, o pessimismo que se seguiu aos acontecimentos

dramáticos de 29 feriu gravemente o prestígio desfrutado pelos princípios capitalistas

de organização econômica junto à população de diversos países, criando

oportunidades políticas favoráveis à disseminação das ideias socialistas e ao

recrudescimento da militância dos partidos de esquerda, os quais acenavam com a

possibilidade de superação das contradições e das desigualdades inerentes ao

movimento de reprodução do capital. Neste sentido, as teorias macroeconômicas

formuladas por Keynes não se traduziam simplesmente em um conjunto de medidas

destinado a reverter o quadro recessivo e a reorganizar a economia norte-americana;

tampouco objetivavam, prioritariamente, “humanizar” o capitalismo, impondo limites à

concentração de renda e às condições aviltantes de trabalho de diversos segmentos da

população. O keynisianismo foi, antes de tudo, um esforço desesperado para proteger

o capitalismo contra o avanço socialista, cuja ameaça ganhava, na ocasião, contornos

bastante nítidos, não apenas pela sedução que seus princípios exercem sobre os que

se veem, repentinamente, lançados à miséria, mas sobretudo pelo surgimento de um

regime político de inspiração comunista no Leste europeu, trazido à lume pela

Revolução de 1917, na Rússia.

9

Capítulo 2 - Políticas Keynesianas e Consolidação do Welfare State

De acordo com Keynes, a crise econômica do período foi provocada pela

insuficiência crônica da demanda agregada, ou seja, por um processo de acentuada

retração do mercado consumidor, cujo ápice foi apoteoticamente simbolizado pela

quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. O momento caracterizou-se, portanto, pela

existência de capitais abundantes que, ante a perspectiva de retornos pouco

compensadores, foram subtraídos ou desviados das atividades produtivas. Diversas

fábricas norte-americanas passaram a funcionar com apenas parte de sua capacidade

operacional, enquanto outras tantas encerraram suas atividades definitivamente. De

maneira esquemática, pode-se dizer que a diminuição da demanda ensejou o

esfriamento das atividades produtivas, provocando a demissão de amplos contingentes

de trabalhadores, os quais, uma vez privados de sua principal fonte de rendimentos,

foram forçados a restringir seu padrão de consumo, tornando ainda mais drástica a

retração da demanda agregada. A sequência descrita encerra um movimento cíclico e

autoreiterativo, cuja solução dificilmente poderia emergir das iniciativas de seus

próprios elementos, arrebatados por uma espiral recessiva vertiginosa. Tais

acontecimentos tornaram indisfarçáveis as fragilidades da teoria do laissez-faire, cujo

arcabouço teórico não admitia a formação de monopólios – isto é, o surgimento de

agentes capazes de absorver toda a concorrência e controlar completamente a oferta

de certos produtos, determinando seus preços de forma artificial e arbitrária. Ao

concentrar suas preocupações quase exclusivamente nas intervenções “indevidas” dos

estados paternalistas, o liberalismo econômico permaneceu cego aos aspectos

destrutivos inerentes ao próprio funcionamento dos mercados. Além disso, as

impropriedades desta perspectiva foram expostas também pela chamada teoria das

externalidades, segundo a qual “os atos praticados pelos agentes econômicos no

mercado produzem consequências imprevistas por estes ou até mesmo indesejáveis,

devido à complexidade extrema da estrutura da cadeia causal das relações de troca

generalizada. A ocorrência dessas externalidades serve para denunciar as falhas da

mão invisível, o mau funcionamento do mercado, cujos atores podem produzir decisões

racionais localmente e curto prazo, porém aberrantes e desastrosas quando situadas

numa perspectiva mais abrangente” (Bento, 2003, p. 03 e 04).

10

As propostas de recuperação econômicas formuladas por Keynes

objetivavam, portanto, restaurar a capacidade de consumo da população, fomentar os

investimentos produtivos e, consequentemente, ampliar a oferta de trabalho, reduzindo

a massa de desempregados a uma estreita faixa residual (pleno emprego). Para tanto,

as políticas keynesianas lançaram mão, basicamente, de três estratégias

complementares. A primeira delas concretizou-se por meio de alterações expressivas

nas políticas fiscais até então assumidas por praticamente todos os estados europeus

e o norte-americano, aumentando a carga tributária por meio da aplicação de elevadas

alíquotas aos impostos incidentes sobre grandes fortunas e heranças. Dessa forma,

buscava-se, por um lado, desencorajar o entesouramento de capitais, forçando seus

detentores a aplicá-los em atividades produtivas ou diretamente no consumo, e por

outro, o ampliação da capacidade de investimento do próprio estado. A segunda

estratégia materializou-se através da implantação de um vasto programa de concessão

de empréstimos públicos a juros baixos – significativamente menores do que os

praticados no mercado, mais uma vez almejando estimular a recuperação do consumo

e a retomada dos negócios, além de tornar pouco recompensadora a atividade

especulativa e a aplicação de capital no mercado financeiro. Sem embargo da

congruência entre as duas medidas adotadas e os objetivos que visaram satisfazer,

seus efeitos não poderiam provocar transformações expressivas de forma imediata, tal

como o exigia a gravidade do momento, seja em razão das limitações inerentes ao

metabolismo que preside a efetivação de alterações dessa magnitude, seja em virtude

das dificuldades de uma economia praticamente arruinada responder aos estímulos

que lhes eram dirigidos. Destarte, a superação da crise não poderia prescindir da

adoção de medidas mais agressivas. Este imperativo foi resolvido pelo programa de

intervenção kaynesiano – a terceira estratégia a que se fez referência anteriormente –

mediante a realização de um programa de investimentos públicos de grande

envergadura, que previa a execução de diversas obras, como a construção de pontes,

estradas, prédios públicos, etc., e que exigiam o emprego de grandes contingentes de

trabalhadores. Como se vê, a resposta à crise desencadeada a partir de 1929, nos

Estados Unidos, envolveu a redefinição do padrão de participação estatal na economia

– e em outras esferas da vida social também. Se, até esse momento, ao estado

atribuía-se um restrito espectro de funções, a maioria das quais destinadas a garantir o

11

livre desenvolvimento dos negócios privados, os acontecimentos ulteriores

patentearam a necessidade da adoção de diversos mecanismos de intervenção estatal

no concerto das relações de mercado, cuja dinâmica, ao contrário do que se pensava,

não produz, necessariamente, as melhores condições de desenvolvimento econômico

e bem-estar social. As políticas econômicas de estado abandonam a passividade que

as caracterizaram por mais de um século e assumem a tarefa de controlar diretamente

o nível da demanda agregada, cuidando, por um lado, para que o seu declínio não

importe em crises de superprodução e, por outro, para que seu superaquecimento não

desencadeie surtos inflacionários.

Além disso, o redirecionamento do escopo das políticas econômicas foi

acompanhado pela emergência do chamado estado previdência, ou Welfare State, que

passou a garantir uma série de direitos sociais destinados a amparar a população

contra as incertezas da vida social e a proteger os trabalhadores dos excessos da

exploração capitalista. Malgrado os êxitos registrados pela economia americana, que

alcançou, em pouco tempo, índices de recuperação extremamente expressivos – os

quais restituíram-lhe a pujança alquebrada pela crise financeira de 29 –, as teorias

keynesianas e, sobretudo, o Welfare State conheceram ampla difusão somente a partir

do final da Segunda Guerra mundial, quando praticamente todos os países da Europa

ocidental, além dos EUA, os implementaram, sem embargo das assimetrias nos

resultados econômicos e na extensão dos direitos sociais garantidos pelos diferentes

estados nacionais. De qualquer maneira, as três décadas que se seguiram foram

marcadas pelo elevado e ininterrupto crescimento econômico, acompanhado de

extraordinária ascensão do padrão de consumo de toda a população – ao menos,

repitamos mais uma vez, nos países da vanguarda capitalista. Esses resultados

infundiram uma confiança quase irrestrita no papel do estado como fiador do

desenvolvimento econômico e social, em intensidade semelhante à que caracterizou a

crença amplamente difundida, até o início do século XX, na capacidade do mercado

garantir os mesmos resultados. Como observa Tony Judt (2008):

“O Estado, era crença geral, sempre seria mais eficaz do que o mercado que operasse sem restrições:

não apenas ao fazer justiça e proteger a nação, ou a distribuir bens e serviços, mas ao criar e aplicar

estratégias de coesão social, amparo moral e vitalidade cultural. A noção de que era preferível deixar tais

questões o exercício do interesse próprio esclarecido e do funcionamento do livre-mercado, para bens e

12

ideias, era considerada nos círculos hegemônicos europeus (políticos e acadêmicos) uma exótica

relíquia da era pré-keynesiana: na melhor das hipóteses traduzia a incapacidade de aprender com a

Depressão; na pior, tratava-se de um convite ao conflito e um apelo velado aos instintos humanos mais

reles” (p. 368)

É importante registrar, entretanto, que o surgimento e a extensão de uma

série de direitos sociais não podem ser creditados, unicamente, às estratégias de

recuperação da capacidade de acumulação do capital, urdidas pelos grupos políticos e

acadêmicos identificados com as classes proprietárias. Não há como minimizar a

importância dos movimentos sociais nas conquistas desses benefícios, bem como na

democratização do acesso aos cargos eletivos do Estado. A integração das camadas

populares à comunidade política dos países europeus transferiu para as casas

parlamentares os conflitos políticos que se manifestavam de forma fragmentada e

difusa no seio da sociedade, jogando por terra definitivamente as representações que

alçavam os congressos nacionais à condição de representantes de toda a nação, como

se os interesses antagônicos que a atravessavam inexistissem ou representassem

meras excrescências de importância marginal. As massas assalariadas emergem,

nesse contexto, como uma força política cuja vitalidade não podia mais ser ignorada ou

reprimida por meio da coerção física, a exemplo do tratamento dispensado à questão

social nas décadas que se seguiram aos primeiros impulsos da industrialização

europeia. O fato de todos os segmentos sociais, independentemente do padrão de

rendimentos ou da posse de propriedade privada, poderem se organizar e exigir dos

poderes públicos a satisfação de seus interesses, dadas as oportunidades de

participação política franqueadas pelo adensamento do jogo democrático, fez com que

a legitimidade dos governos eleitos estivesse estreitamente vincula à sua capacidade

de atender as demandas que se lhe apresentavam, fossem elas oriundas do grande

empresariado ou dos movimentos sociais de trabalhadores. Destarte, é possível flagrar

uma relação de dependência subjacente entre o reconhecimento do status político de

agentes antes totalmente alijados dos processos decisórios e o desenvolvimento do

Welfare State – isto é, o crescimento das burocracias públicas e das despesas estatais

com programas de bem-estar social.

13

2.1. - As Políticas Sociais e a Desmercantilização da Força de Trabalho

O Estado previdência pode ser considerado, em grande medida, como o

resultado de um pacto político que garantiu, por um lado, a retomada da estabilidade

necessária à acumulação capitalista, e, por outro, a promoção de uma série de direitos

sociais que, no limite, implicavam a desmercadorização das relações de trabalho. Ou

seja, na medida em que se estruturavam os diversos serviços públicos oferecidos pelo

estado – geralmente previstos nos próprios textos constitucionais e, portanto, alçados à

condição de direitos juridicamente garantidos – as reivindicações das classes

trabalhadoras deixavam progressivamente de se dirigirem aos empregadores e recaem

sobre as burocracias estatais. O surgimento da previdência estatal atenuou

sobremaneira os atritos entre capital e trabalho, preservando o primeiro das formas

mais acirradas de contestação, que se traduziam na disseminação de ideias socialistas

e anarquistas, e na ocorrência de ações diretas, como greves e sabotagens da

produção. Além disso, a oferta ampliada de serviços permitiu, em última análise, o

recrudescimento da produtividade da força de trabalho, porquanto a rede pública de

saúde possibilitava o rápido restabelecimento dos trabalhadores adoecidos, enquanto a

educação pública universal e gratuita elevava as capacidades intelectuais da

população em geral, o que assumia caráter especialmente estratégico para os setores

mais avançados da produção capitalista, tendo em vista a incorporação cada vez mais

acelerada de novas tecnologias aos processos produtivos. Portanto, ao contrário do

que à primeira vista os elevados dispêndios com programas de proteção social

sugerem, o Estado de Bem-Estar Social não se constituiu em detrimento ao Capital,

representando meramente um ônus que absorveu parte expressiva da lucratividade

das empresas privadas.

Por outro lado, a ampliação dos direitos sociais, materializada em programas

governamentais cujos benefícios – seja pela amplitude de sua cobertura, seja pelos

valores distribuídos à sua clientela – permitiram a elevação da qualidade de vida de

amplos segmentos populacionais, sobretudo daqueles alijados do mercado de trabalho.

Evidentemente, o sistema de proteção social consolidado pelos países da vanguarda

capitalista (basicamente Europa Ocidental, Estados Unidos e Canadá), a partir da

segunda metade do século XX, normalmente classificados pela literatura especializada

como Welfare States, não encerravam uma realidade homogênea, havendo, ao

14

contrário, diferenças acentuadas nas características e na abrangência das políticas de

bem-estar social promovidas pelos mesmos. As disparidades observadas ensejaram

diversas tentativas de definição de critérios que permitissem classificar os Estados

como efetivos Welfare States, em oposição àqueles cujos padrões de atuação

permaneciam predominantemente orientados pelas disposições do liberalismo

econômico, que predominaram até o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido,

Gosta Esping-Andersen, sociólogo dinamarquês da Universidade de Pompeu Fabra,

introduziu um modelo de análise da atuação estatal que logrou grande projeção

internacional, alcançando o status de principal referência no estudo dos chamados

Estados Previdência. O autor propôs a classificação das políticas sociais de acordo

com o nível de desmercantilização da força de trabalho que proporcionam. Em outras

palavras, as análises realizadas por Esping-Andersen almejavam determinar se os

serviços públicos oferecidos pelo Estado permitiam a autonomia de seus beneficiários

em relação ao mercado, isto é, se constituíam uma alternativa viável à venda da força

de trabalho como forma de garantir a sobrevivência material dos indivíduos e suas

famílias.

O desenvolvimento das forças capitalistas provocaram, a longo prazo, o

esboroamento das formas pré-mercantilizadas de proteção social, comprometendo, por

um lado, o papel desempenhado pelos grupos familiares durante o período medieval –

no qual cada domicílio constituía uma célula econômica semiautônoma, que contava

ainda com o auxílio paternalista dos senhores em cujos domínios se localizava; e, por

outro, esgarçando os arranjos assistências proporcionados pelas corporações de ofício

citadinas, que garantiam amparo a seus membros contra a ocorrência de eventos que

os incapacitassem – temporária ou permanentemente – para o exercício de suas

atividades profissionais. Ora, a eliminação gradual dos esteios tradicionais de

sustentação material, compeliu os trabalhadores do período, cada vez mais despojados

da propriedade dos meios de produção, a oferecerem sua força de trabalho no

mercado como única forma de obterem rendimentos – o salário. Destarte, a

sobrevivência de grande parte da população dos países da Europa setentrional,

durante os séculos XVIII e XIX, permaneceu totalmente à mercê das flutuações do

mercado, num período em que a abundância da mão de obra disponível rebaixava o

15

padrão de remuneração a níveis que comprometiam a própria reprodução da força de

trabalho.

Neste estágio do desenvolvimento capitalista, o Estado liberal absteve-se de

instituir regulamentos que refreassem a superexploração da massa assalariada, já que

as relações de produção, segundo os parâmetros de organização social instituídos pela

ordem burguesa, pertenciam exclusivamente à esfera privada, permanecendo ao

abrigo das intervenções dos poderes públicos. Ademais, este período caracterizou-se

pela inexistência de políticas estatais destinadas a mitigar as dificuldades enfrentadas

pelos indivíduos não absorvidos pelo mercado – seja pela restrição estrutural da oferta

de postos de trabalho, seja pela debilidade física provocada por doenças ou pela

velhice. Os casos mais graves de penúria social eram aliviados, quase exclusivamente,

pela caridade privada, normalmente prestada por organizações de benemerência

religiosas.

Como se vê, durante mais de dois séculos o mercado de trabalho constituiu-

se na única fonte de sobrevivência para amplos segmentos populacionais. A formação

dos Welfare States correspondeu, portanto, ao processo de socialização dos riscos

inerentes à vida social, efetivado por uma série de programas assistenciais, como o

seguro-desemprego, a prestação gratuita de serviços de saúde, a previdência social,

etc., cuja instituição respondeu, na maioria dos países considerados, às exigências

expressas nos respectivos textos constitucionais, o que significa que tais benefícios

foram alçados à condição de direito social, não podendo sofrer soluções de

continuidade sob pena de responsabilização jurídica do Estado. Ora, na medida em

que permitem ao conjunto de seus cidadãos desfrutar de padrões de existência

material socialmente aceitáveis, independentemente da inserção no mercado de

trabalho, ou da proteção oferecida por outros mecanismos tradicionais de assistência

privada – como a família e as associações religiosas – as políticas de bem-estar social

promoveram, em alguma medida, a desreificação da força de trabalho, que deixou de

ser uma mera mercadoria, tal como o fora durante o período de apogeu do Estado

liberal.

De acordo com Esping-Andersen, a mensuração de algumas variáveis

fundamentais permite indicar em que medida as políticas sociais promovidas por um

16

determinado Estado logram desmercatilizar a mão de obra. A consecução deste

objetivo depende, essencialmente, da extensão dos benefícios concedidos e da

qualidade dos serviços públicos oferecidos à população. Esquematicamente, podemos

subdividir as dimensões analisadas pelo sociólogo dinamarquês em três grupos. O

primeiro deles diz respeito aos requisitos cuja satisfação condiciona o acesso aos

benefícios oferecidos pelo Estado, ou seja, em que medida os critérios de elegibilidade

dos programas sociais representam obstáculos à extensão de seus produtos a todos os

interessados em usufruí-los. Assim, “um programa garante um grau elevado de

desmercantilização, se o acesso ao programa for fácil e se o direito a um nível de vida

adequado estiver garantido, independentemente de o indivíduo ter trabalhado, ter tido

carteira assinada, ou ter contribuído financeiramente para a previdência social”

(Zimmermann & Silva, 2009, p. 353, grifo dos autores).

Além disso, o segundo grupo se refere à importância dos valores concedidos

aos beneficiários – seja por meio da transferência direta de renda, como ocorre no

seguro-desemprego, seja por meio da qualidade e da extensão dos serviços públicos

disponibilizados. Em outras palavras, a apreciação desta dimensão objetiva determinar

se as políticas sociais garantem um padrão de existência material similar ao que é

proporcionado pela média salarial praticada no mercado – ou, pelo menos, ao que é

considerado socialmente aceitável. Quando os recursos concedidos pelo Estado se

situam aquém dos rendimentos necessários à manutenção de um padrão mínimo de

consumo, ou são oferecidos por um período excessivamente curto, ocorre um

acentuado comprometimento da autonomia dos trabalhadores em relação ao mercado.

O mesmo pode ser dito nos casos em que a qualidade dos serviços públicos oferecidos

não proporciona a satisfação das necessidades básicas do público ao qual se

destinam, comprometendo sensivelmente a qualidade de vida de seus usuários.

Por fim, a última dimensão de análise proposta por Esping-Andersen se

baseia na amplitude dos diretos sociais satisfeitos pelas políticas públicas, isto é, as

situações de risco social cuja eliminação – ou mitigação – é deliberadamente assumida

pelo Estado. Alguns países capitalistas contemporâneos, por exemplo, estendem o

atendimento integral e gratuito à saúde a todos os seus cidadãos. Outros, porém,

relegam grande parte deste tipo de assistência à iniciativa privada. Naturalmente,

17

quanto maior a cobertura dos direitos sociais garantidos pelo Estado, maior a

autonomia dos indivíduos em relação ao mercado de trabalho.

A observação das variáveis indicadas acima revela que mesmo entre os

Estados normalmente caracterizados como Welfare States é possível identificar

divergências pronunciadas. Os países anglo-saxões, especialmente a Inglaterra e os

Estados Unidos, distinguiram-se ao longo do período pela influência do pensamento

liberal na organização do Estado e da economia, prevalecendo os princípios

associados ao laissez-faire em detrimento da ampla extensão dos mecanismos de

proteção social custeados pelo Estado. A força da crença na capacidade de

emancipação dos mercados jamais foi significativamente alquebrada nesses países,

mesmo após a grande Crise de 29 e os resultados econômicos logrados pelas políticas

de pleno emprego promovidas logo a seguir. Dessa forma, a despeito do crescimento

acentuado da intervenção estatal tanto na economia, como em outras esferas da vida

social, a montagem dos sistemas de previdência social realizou-se sob a perspectiva

de que os problemas de subsistência individual devem ser solucionados

exclusivamente através dos mercados, os quais transformam em mercadoria inclusive

a cobertura dos riscos a que qualquer indivíduo está exposto ao longo da vida (serviços

de seguridade privada). Ainda de acordo com o pensamento liberal, a promoção de

políticas sociais abrangentes, distribuidoras benefícios generosos a largos contingentes

populacionais, solapam os estímulos ao trabalho e enfraquecem o espírito de iniciativa

– tão caro ao sistema capitalista –, proporcionando “corrupção moral, desperdício,

ociosidade e incentivo aos vícios, como o consumo de bebidas alcoólicas” (Idem, p.

349). Portanto, em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, o desenvolvimento

do Estado de bem-estar social alcançou extensão bastante limitada, cingindo-se a

garantir benefícios pouco significativos, destinados exclusivamente aos segmentos

populacionais mais pobres – os quais eram (e ainda são) submetidos a rígidos

procedimentos de demonstração de sujeição às condições que autorizam sua

percepção.

No outro extremo situam-se os países europeus que adotaram a via política

da socialdemocracia, que trouxeram para o âmbito das responsabilidades estatais a

satisfação de um amplo espectro de direitos sociais. Conquanto não tenham alcançado

a completa desmercantilização da força de trabalho – atingi-la significaria, no limite, a

18

derrogação do sistema capitalista – tais países engendraram complexos sistemas de

proteção social, capazes de garantir a fruição de condições materiais de existência

bastante semelhantes às que desfrutam os indivíduos plenamente integrados ao

mercado formal de trabalho. Os países escandinavos foram os que mais se

aproximaram dessa realidade. De acordo com a classificação elaborada por Esping-

Andersen, Suécia, Noruega e Dinamarca, nessa ordem, atingiram os maiores níveis de

desreificação da mão de obra, superando, inclusive, as principais potencias

econômicas da Europa continental, como França e Alemanha.

Os debates acerca dos Welfare States e da desmercantilização envolveram,

ainda, o questionamento dos efeitos da ampliação das políticas sociais sobre o

adensamento da participação política dos setores mais empobrecidos da população.

Ora, uma vez emancipadas das dificuldades mais básicas de sobrevivência, cuja

superação monopolizava, até então, quase todas as suas atenções, as classes

trabalhadoras mais espoliadas, bem como os grupos marginalizados do sistema

produtivo hegemônico, podiam enfim emergir no cenário político como uma força capaz

de contrabalançar o poder exercido pelas elites econômicas e burocráticas. Em outras

palavras, segundo diversos analistas, ao proporcionar a elevação do patamar de bem-

estar social de sua população, favorecendo as condições objetivas de mobilização dos

segmentos até então alijados dos processos públicos de tomada de decisão, o Welfare

State forjou condições propícias à pulverização do poder político em escala jamais

observada na história moderna. Por outro lado, para alguns autores marxistas, os

benefícios proporcionados por este tipo de Estado representam, em última análise,

uma acomodação do Capital às pressões exercidas pelos diversos movimentos

populares – especialmente operários –, que durante as primeiras décadas do século

XX, lograram significativa projeção social, a despeito da acirrada repressão de que

foram alvo, a ponto de ameaçar a reprodução do sistema capitalista. Dessa forma, ao

invés de ampliar suas possibilidades de participação, os programas de mitigação dos

riscos sociais objetivavam, na verdade, desmobilizar a classe trabalhadora, desviando-

a de sua luta pela distribuição equânime das riquezas socialmente produzidas. Esta

interpretação permanece aferrada ao ortodoxismo da luta de classes, o qual, ante a

progressiva marginalização do setor industrial nas economias contemporâneas, tem

perdido cada vez mais o prestígio acadêmico e político que desfrutou outrora.

19

Por fim, é importante enfatizar que no Brasil, como de resto em toda a

América Latina, jamais se constituiu um verdadeiro Welfare State, mesmo se

considerarmos exclusivamente os padrões pouco exigentes do sistema de proteção

social instituído pelos países liberais. Aqui, o estatuto da cidadania permaneceu – e

ainda permanece – ao alcance de uma reduzida parcela da população, enquanto

amplos contingentes permanecem à sombra das garantias jurídicas e sociais que

caracterizam o Estado de Direito. Tal realidade não se refere apenas aos rincões

economicamente menos desenvolvidos do país, marcados pela produção agrícola de

subsistência e distantes centenas de quilômetros das principais capitais; as periferias

dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, congregam milhões

de indivíduos que, além da exclusão do mercado formal de trabalho, permanecem

alijados do usufruto de diversos direitos sociais básicos, como saúde, educação, lazer,

etc., embora estes tenham sido assegurados pela Carta Constitucional de 1988.

Ademais, esses indivíduos são amiúde vitimados pelas arbitrariedades perpetradas por

diversas autoridades públicas, que abusam impunemente das prerrogativas inerentes

aos cargos que ocupam.

A assistência social no Brasil enfrenta historicamente grandes dificuldades

em converter-se em políticas públicas garantidoras de direitos sociais. Aqui, a

assistência esteve relegada historicamente à prestação de auxílios emergenciais em

situações de penúria social extrema, normalmente levada a cabo por grupos privados,

sobretudo as congregações religiosas, cuja tradição remonta às ordens de

benemerência portuguesas do século XVIII. Dessa forma, suas práticas permaneceram

submetidas à lógica do assistencialismo e não da satisfação de direitos de cidadania. O

estado brasileiro jamais assumiu um verdadeiro compromisso de erradicação da

miséria e da mitigação das desigualdades sociais, concentrando suas energias, antes,

no atendimento dos interesses ligados à acumulação capitalista – caráter residual da

assistência social no Brasil (Demo, 1988). Além disso, é importante notar que

assistencialismo é uma prática que se encaixa perfeitamente à cultura política do favor,

da apropriação privada dos bens públicos. Na medida em que transforma a distribuição

de determinados benefícios, normalmente custeados por fundos públicos, em ato de

generosidade dos que viabilizam sua concessão, o assistencialismo reforça o sistema

de trocas clientelísticas que ainda grassa no tecido social brasileiro.

20

Capítulo 3 - A Crise do Welfare State e dos Estados Desenvolvimentistas

As três primeiras décadas que se seguiram ao término da Segunda Guerra

Mundial evidenciaram a importância da atuação estatal na coordenação

macroeconômica e na indução do desenvolvimento das forças produtivas nacionais.

Sem embargo do papel predominante dos mercados na execução desta tarefa,

realizada essencialmente por meio de trocas entre os particulares – que atuam

impelidos pelo princípio da maximização de seus interesses privados – os méritos da

participação subsidiária do Estado tornou-se, durante o período mencionado, cada vez

menos objeto de controvérsias, tanto nos meios políticos, como nos acadêmicos – nos

quais as correntes de pensamento ultraliberais permaneceram marginalizadas até, pelo

menos, o início dos anos setenta. Nesse sentido, as políticas públicas estatais

objetivam, basicamente, efetuar transferências de recursos a setores que os mercados

não remuneram suficientemente, seja em razão de seu comportamento eventualmente

anômalo, seja em virtude do descompasso entre a valoração determinada pela

dinâmica concorrencial e a decorrente do julgamento político da sociedade.

Ora, com base nas afirmações acima, é possível concluir que as causas

profundas das grandes crises econômicas no capitalismo associam-se,

necessariamente, à exacerbação das deficiências que caracterizaram, em um

determinado momento histórico, a atuação de um desses dois agentes fundamentais

de coordenação econômica – se não de ambos, simultânea e cumulativamente. Se a

Crise de 29 pôde ser creditada aos mercados, abandonados a suas próprias

deficiências inatas, à margem de quaisquer instrumentos efetivos de regulação, o

agravamento das condições macroeconômicas que assolou praticamente todos os

países ocidentais no início da década de oitenta, foi diagnosticado como uma crise

provocada pela deturpação do padrão de intervenção estatal nos domínios privados,

ocasionando retração acentuada das taxas de crescimento econômico (em alguns

casos recessão), elevação das taxas de desemprego e crescimento dos índices

inflacionários (Pereira, 1997).

As crises do Welfare State e dos Estados desenvolvimentistas tornaram-se

eminentes em função da intersecção de dois processos distintos, que concorreram

21

para o engessamento da capacidade de investimento das organizações estatais, além

de inviabilizarem a continuidade dos programas sociais de grande envergadura. O

primeiro deles se refere à aceleração dos processos de globalização, que não se

restringiram, como vulgarmente se imagina, ao âmbito econômico, repercutindo,

outrossim, em diversas outras esferas da vida social. Ainda que as origens do

fenômeno possam ser flagradas já nos primórdios do expansionismo europeu da Idade

Moderna, como sugeriram Paul Hirst e Graham Thompson, a globalização recebeu

impulsos sem precedentes a partir da segunda metade do século XX, em virtude da

produção vertiginosa de novas tecnologias, sobretudo nas áreas da comunicação e do

transporte, inaugurando um novo estágio do desenvolvimento capitalista global. Entre

as transformações associadas a esses eventos, gostaríamos de destacar dois fatores

fundamentais, em razão dos desafios que encerraram – e ainda encerram – para a

reorganização dos Estados nacionais e para a redefinição de suas relações com a

sociedade civil:

1) Com as novas tecnologias de comunicação e de transmissão de dados por

meios eletrônicos, os fluxos do capital financeiro adquiriram a capacidade de se

movimentar ao redor do mundo em frações de segundo, em busca das melhores

oportunidades de rentabilidade e liquidez, provocando desequilíbrios cambiais

nas economias de diversos países e condicionando a oferta de crédito para a

realização de investimentos produtivos;

2) A redução do tempo de deslocamento, associada ao barateamento dos custos

de transporte de cargas e pessoas em escala planetária, ensejaram uma nova

etapa da internacionalização da produção industrial, viabilizando a transferência

de parques industriais inteiros de países da vanguarda capitalistas para países

periféricos, onde os padrões salariais são significativamente inferiores aos

praticados no mercado de trabalho dos primeiros. A este fator associam-se,

ainda, outras importantes vantagens, tais como a desregulamentação das

relações trabalhistas, a desoneração da carga tributária, a fragilidade da

organização sindical dos trabalhadores, entre outros, que propiciam, a um só

tempo, a elevação dos patamares de lucratividade e o incremento da

competitividade dessas empresas no cenário internacional.

22

Os fatores sucintamente descritos – aos quais certamente poder-se-iam

acrescer muitos outros – estão estreitamente imbricados ao crescimento espetacular

do comércio internacional verificado nas últimas décadas – o que significa, de maneira

geral, a intensificação dos fluxos de capitais e de mercadorias ao redor do mundo. Tais

fatores concorreram ainda para o comprometimento da autonomia dos Estados

nacionais, já que as possibilidades de controle de diversos fenômenos

socioeconômicos, que se desenvolvem no interior de suas fronteiras, dificilmente

podem se sujeitar às injunções dos mecanismos de suas políticas públicas. Conforme

salienta Lúcia Gomes da Costa:

“Os espaços econômicos não mais coincidem com os espaços nacionais. A soberania política foi, em

grande medida, suplantada pela soberania econômica internacionalizada. Nesse amplo processo de

redefinição da produção capitalista, o Estado-nação é progressivamente corroído pela

internacionalização que desloca a produção, a base da criação do valor, para espaços supranacionais,

aliando-se a um sistema financeiro internacional que detém um fluxo de capital volátil que não está sob o

comando de nenhum banco central, de nenhum governo. Esse capital, livres das amarras nacionais

busca taxas de lucro mais atrativas e cria um tensionamento na economia nacional.” (COSTA, 2006, p.

86)

O outro processo a que se fez referência anteriormente, diz respeito ao

crescimento exacerbado dos Estados nacionais a partir do final da Segunda Guerra

Mundial, insuflado pelos êxitos das políticas macroeconômicas de inspiração

keynesiana, os quais proporcionaram, além da reversão dos processos recessivos

associados à desregulamentação dos mercados, o recrudescimento da qualidade de

vida de grande parte da população – sobretudo na Europa Ocidental, EUA e Canadá. A

partir desses primeiros resultados – e da já mencionada crença quase irrestrita na

capacidade dos Estados garantirem permanentemente o progresso material das

sociedades – seguiu-se um gradual, mas ininterrupto, processo de alargamento do

âmbito de atuação das organizações estatais, que passaram não só a garantir uma

gama cada vez maior e complexa de direitos sociais, como também a atuar na esfera

empresarial, explorando diretamente alguns segmentos econômicos considerados

estratégicos para o desenvolvimento nacional, como, por exemplo, a extração e a

comercialização de minérios indispensáveis ao desenvolvimento de diversos

complexos industriais (ferro, petróleo, etc.), bem como a realização de investimentos

em setores cuja exploração permanecia negligenciada pela iniciativa privada, seja

23

porque os dispêndios iniciais implicavam o desembolso de quantias excessivamente

elevadas, seja porque o retorno dos investimentos não se efetivava senão após o

transcurso de um período de tempo excessivamente longo, tornando a atividade

economicamente pouco atraente.

O Welfare State e os Estados desenvolvimentistas passaram, portanto, a

realizar vultosas transferências de rendas entre diversos segmentos econômicos,

logrando substituir os mecanismos de regulação inerentes ao mercado, avançando

sobre áreas que, até então, tinham permanecido inteiramente à mercê das dinâmicas

das trocas privadas. Evidentemente, a promoção deste novo padrão de atuação exigiu,

por um lado, o aumento das fontes de financiamento das despesas estatais, que se

efetivou por meio da espetacular elevação da carga tributária3 e do recurso permanente

ao mercado financeiro; e, por outro, do crescimento exponencial da burocracia pública,

face às necessidades de planejamento e execução dos programas e ações

introduzidos pelo Estado. Contudo, a marcha ininterrupta de ampliação dos aparatos

estatais avançou para além dos patamares que permitiam a manutenção do equilíbrio

entre Estado e mercado na coordenação das economias nacionais, em detrimento do

papel que a este segundo cumpriria desempenhar, tendo em vista que a eficiência de

seus mecanismos de alocação de recursos transcende, na maioria dos casos, a

capacidade de planejamento das burocracias públicas, já que operam de maneira

automática e espontânea. Se a ausência de Estado, ou seja, a inexistência de

controles que obliterem os vícios responsáveis pela perversão dos princípios da livre

concorrência (monopólios, trustes, economias externas, etc.) e refreiem as

externalidades negativas que o desenvolvimento capitalista acarreta – enfim, se a

omissão do Estado demonstrou ser, em médio prazo, ruinosa para a sustentabilidade

do crescimento econômico e para a elevação dos padrões gerais de bem-estar social,

o excesso de intervenção estatal não provou ser uma via mais apropriada para a

consecução dessas finalidades. Talvez o exemplo que melhor ilustre esta afirmação

tenha sido a dramática dissolução do Estado soviético, no final da década de oitenta do

século passado, que tonou manifesta a fragilidade das tentativas de substituir os

3 De acordo com Bresser Pereira, a carga tributária de diversos países saltou dos 5 a 10% praticados

pelos Estados Liberais de início do século vinte, para pelo menos 30% do Produto Interno Bruto nos Welfare States, chegando, em alguns casos (países escandinavos) a aproximadamente 60%. (Pereira, idem, p. 13)

24

mercados pelos planos de coordenação e integração econômicas elaborados pela alta

cúpula do Partido Comunista local. Em nenhuma outra região do planeta a crise do

Estado se abateu de maneira mais virulenta do que no Leste Europeu, deixando um

rastro de desemprego, pobreza e criminalidade.

Na maioria dos países ocidentais, por outro lado, a esclerose dos Estados

de bem-estar social e desenvolvimentista manifestou-se, a princípio, como uma aguda

crise fiscal, produto de reiterados desequilíbrios orçamentários. Ou seja, a arrecadação

tributária dos Estados, a despeito de sua elevação progressiva, foi incapaz de suportar

o aumento explosivo dos gastos públicos, obrigando os governos a recorrerem ao

mercado financeiro para cobrir seus déficits crescentes. Logo, porém, o prolongamento

desta situação acarretou a retração dramática do crédito público, sujeitando a

Administração a taxas de juros extremamente elevadas, as quais, se por um lado

proporcionavam alívio momentâneo para as dificuldades financeiras mais prementes,

por outro, pavimentavam o caminho que conduzia à insolvência incontornável das

organizações públicas. Além disso, a crise fiscal ensejou a banalização dos episódios

inflacionários – sobretudo nos países da América Latina – em virtude, basicamente, de

dois fatores: 1) a demanda estatal por bens e serviços pressionava acentuadamente

diversos segmentos econômicos, cuja capacidade produtiva era insuficiente para

satisfazê-la sem descurar do abastecimento dos setores privados, resultando em

aumento generalizado de preços; 2) os governos nacionais buscaram contornar o

colapso de suas finanças mediante o aumento não lastreado da oferta de moeda, ou

seja, através do incremento de sua emissão não obstante a ausência do

desenvolvimento econômico do país. É importante notar que esta segunda estratégia

reveste, em última análise, as características de um imposto, já que transfere para o

setor privado – em função da utilização de moeda “sem valor” e, consequentemente, do

aumento dos índices inflacionários – de parte do ônus decorrente das aquisições de

bens e serviços pelo Estado.

Bresser Pereira ressalta, ainda, que as crises dos anos oitenta revelaram o

esgotamento do modelo burocrático de funcionamento da máquina pública. O modelo

weberiano de organização da burocracia representou um consistente ataque às

relações patrimonialistas e clientelistas que caracterizaram a administração pública dos

25

Estados Liberais, na qual grassavam práticas corruptas ou abertamente orientadas à

satisfação de interesses particulares, em detrimento da promoção de valores

republicanos. O modelo burocrático clássico visava, fundamentalmente, a

despersonalização do desempenho das atividades públicas, mediante a formalização

dos objetivos a serem perseguidos, bem como dos meios mais eficientes para

concretizá-los, orientando-se pela seleção meritocrática dos quadros funcionais do

Estado. Embora esta forma de organização tenha logrado apreciável êxito – sem,

contudo, extirpar completamente o fisiologismo da Administração – dela decorreu

também a multiplicação exacerbada de procedimentos legais, em cuja correta

observância, muitas vezes, se esvaíam as energias e os recursos empregados por

diversas instituições públicas, independentemente dos resultados afinal obtidos. Além

disso, este enrijecimento operacional mostrou-se especialmente refratário à realização

dos ajustes exigidos pelas transformações sociais e econômicas engendradas de forma

cada vez mais célere pelos processos de globalização, solapando a capacidade das

organizações públicas responderem minimamente aos anseios e expectativas da

população, em um contexto de ampliação das reivindicações populares dirigidas às

organizações estatais. É bem verdade que o modelo burocrático de administração não

alcançou o mesmo nível de desenvolvimento em todos os países que o adotaram;

tampouco eliminou completamente outras formas de dominação concorrentes. No caso

do Estado brasileiro, conforme se verá mais adiante, a administração burocrática –

associada à gramática política do universalismo de procedimentos (Nunes, 2010) –

alcançou projeção bastante restrita (se comparada à que se observou em países

economicamente mais desenvolvidos), circunscrevendo-se, na prática, a alguns

setores da Administração pública, normalmente considerados estratégicos para o

desenvolvimento econômico do país. As práticas clientelistas, que caracterizam tanto o

período imperial quanto a chamada Primeira República, continuaram extremamente

presentes no cotidiano das relações políticas e na atuação de grande parte das

instituições públicas, a despeito dos esforços para debelá-las envidados pelo programa

de modernização da Administração implantado durante o Estado Novo.

Os argumentos apresentados acima, que enfatizam os aspectos estruturais

e econômicos na explicação da crise dos Estados de bem-estar social e

Desenvolvimentista, são os mais frequentemente invocados pelos estudiosos que se

26

debruçaram sobre o fenômeno. Entretanto, gostaríamos ainda de mencionar

brevemente a interpretação proposta por Pierre Rosanvallon, não apenas em razão da

projeção que o autor alcançou nos debates acerca do Welfare State, mas sobretudo

em virtude de sua originalidade. Rosanvallon defende que as causas profundas para o

colapso do padrão de intervenção estatal predominante nas últimas três décadas não

podem ser surpreendidas por análises de cunho meramente econômico: a experiência

expôs o malogro dos diversos acadêmicos que procuraram determinar “cientificamente”

os limites para o crescimento das despesas públicas. A maioria dos tetos propostos foi

amplamente suplantada sem o comprometimento significativo dos padrões de

desenvolvimento econômico alcançados anteriormente – em alguns casos, inclusive,

observou-se o recrudescimento das taxas de crescimento após o incremento das

despesas públicas. Destarte, conclui o autor, a crise do Estado de bem-estar social

decorre de fatores socioculturais. Rosanvallon afirma que as políticas sociais

introduzidas nesse período lograram ultrapassar o limite de igualdade que a maior

parte da sociedade considera aceitável. Não a igualdade jurídica, esta sim

irrestritamente desejável, mas a que se refere ao padrão de fruição material desfrutado

pelos diversos segmentos populacionais. O recrudescimento dos níveis de equidade

econômica promove, no limite, o solapamento da alteridade social ao disseminar quase

ilimitadamente os bens materiais e simbólicos que até então exerciam a função de

signos distintivos para diversos grupos sociais, ou seja, ressignificavam os elementos

materiais que amparavam as identidades forjadas pelos agrupamentos humanos,

esvaziando-os dos sentidos que até então orientaram os comportamentos sociais e os

relacionamentos intersubjetivos (Bento, 2003).

A interpretação proposta por Rosanvallon reveste caráter extremamente

polêmico, sendo difícil comprovar a validade de seus argumentos. Além disso, referem-

se exclusivamente aos países da vanguarda capitalista, sobretudo aos que adotaram o

modelo socialdemocrata de organização política, que, como já mencionado acima,

lograram os maiores índices de desmercatilização da força de trabalho. No caso dos

Estados Desenvolvimentistas sul-americanos, o poder explicativo das teses de

Rosanvallon é praticamente nulo, porquanto os países deste continente caracterizam-

se justamente pela profunda dessimetria entre os segmentos mais abastados e os

grandes contingentes populacionais que se situam abaixo da linha da pobreza – com

27

especial destaque, neste particular, para o Brasil, que ocupava, até 2005, a oitava

posição no ranking internacional de desigualdade social elaborado pela ONU – com

base no índice de GINI4 – à frente apenas da Guatemala e de outros seis países

africanos, como Botsuana e Suazilândia. A despeito desta importante limitação, a

relevância da obra do mencionado autor reside justamente no fato de ter explorado

outras dimensões do fenômeno, cuja complexidade torna inverossímil qualquer

interpretação que pretenda explicá-lo por meio da identificação de uma única causa.

Ademais, representa uma alternativa às explicações de cunho meramente econômico

e, nessa medida, distancia-se sobremaneira da inclinação sempre presente – e

particularmente acentuada durante o período de hegemonia do pensamento neoliberal

– para o economicismo, o qual mantém à sombra outros fatores cuja significância,

muitas vezes, suplanta os estritamente associados àquela esfera da vida social.

4 Informação publicada na página eletrônica do Jornal Folha de São Paulo em 07 de setembro de 2005, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112798.shtml. De acordo com o IBGE, o índice de GINI pode ser definido como a “medida do grau de concentração de uma distribuição, cujo valor varia de zero (perfeita igualdade) até um (a desigualdade máxima).” Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conceitos.shtm

28

Capítulo 4 - Crise dos sistemas políticos

As crises que se abateram sobre praticamente todo o mundo nas décadas

de setenta e oitenta do século passado não se restringiram aos abalos provocados no

sistema econômico global. Tampouco se limitaram, de um lado, a expor de maneira

incontrastável a inadequação dos mecanismos de administração racional-burocráticos

frente às vicissitudes inerentes aos processos de globalização, e, do outro, a reclamar

a redefinição dos padrões de intervenção estatal dos domínios econômico e social. A

corrosão dos Estados de bem-estar social foi acompanhada por um proeminente

movimento de desgaste dos sistemas políticos em praticamente todo o mundo

ocidental, alcançando tanto países que revestem larga tradição democrática, quanto os

de democratização recente – e cuja trajetória ao longo do último século caracterizou-se

pela persistente instabilidade de seus regimes políticos, intercalando-se frágeis

episódios de pluralismo eleitoral a duradouros períodos autoritários, com marcante

presença militar à frente dos principais postos de comando civil. Sintomer (2010)

ressalta o crescimento sem precedentes da desconfiança do eleitorado acerca do

sistema representativo em geral, e da classe política em particular, a ponto de alguns

autores predizerem, de maneira um tanto hiperbólica, o declínio da era da política,

contra o qual as experiências forjadas sob o influxo das teorias da democracia

deliberativa, bem como dos novos mecanismos de participação direta da população na

elaboração e implantação de políticas públicas, não seriam capazes de, à margem de

outras transformações culturais de grande envergadura, fecundar novamente os

sistemas políticos a partir da transmissão das dinâmicas cívicas existentes. O autor

ressalta que a literatura especializada tem sublinhado seis causas principais

responsáveis pelo desgaste acentuado dos alicerces sobre os quais se sustenta a

democracia representativa contemporânea:

1) O desengajamento das classes trabalhadoras que, com o aprofundamento da

complexidade das relações econômicas, deixaram de se caracterizar pelo elevado grau

de homogeneidade cultural e política que manifestaram ao longo do período de

organização fordista de produção industrial. A superação deste modelo, sucedido por

técnicas mais flexíveis e complexas de organização do trabalho, concomitantemente ao

adensamento da tecnologia incorporada aos processos produtivos, redundou em uma

29

profunda diferenciação no interior das massas assalariadas, fazendo com que as

diversas possibilidades de inserção no mundo do trabalho – entre as quais a dicotomia

entre formalidade e informalidade representa apenas o nível mais elementar –

condicionassem a emergência de estilos de vida sensivelmente distintos e,

consequentemente, perspectivas, ambições e padrões comportamentais divergentes.

Em outras palavras, as transformações econômicas e sociais produzidas pelas novas

etapas do desenvolvimento capitalista favoreceram a desagregação dos elementos

identitários – forjados em torno do mundo do trabalho – que aproximaram as massas

assalariadas durante, pelo menos, a primeira metade do século XX. Ante o

estilhaçamento das identidades coletivas das massas assalariadas, o acordo sobre o

bem público e sobre as formas mais adequadas para atingi-lo torna-se extremamente

instável, afetando a legitimidade de diversas políticas públicas e da atuação estatal em

geral.

2) As sociedades pós-industriais caracterizam-se, cada vez mais, como

“sociedades de risco”: expressão que designa o fato de as forças postas em movimento

pelas novas tecnologias desencadearem consequências cuja previsibilidade escapa às

possibilidades preditivas da própria ciência. De acordo com Ulrich Beck (2011),

influente sociólogo alemão responsável pela disseminação do conceito:

“enquanto na sociedade industrial a „lógica‟ da produção de riqueza domina a „lógica‟ da produção de

riscos, na sociedade de risco essa relação se inverte. Na reflexibilidade dos processos de modernização,

as forças produtivas perderam sua inocência. O acúmulo de poder do „progresso‟ tecnológico-econômico

é cada vez mais ofuscado pela produção de risco. (...) Com sua universalização, escrutínio público e

investigação (anticientífica), eles [os riscos] depõem o véu da latência e assumem um significado novo e

decisivo nos debates sociais e políticos (...). No centro da questão estão os riscos e efeitos da

modernização, que se precipitam sob a forma de ameaça à vida de plantas, animais e seres humanos.

Eles já não podem – como os riscos fabris e profissionais no século XIX e na primeira metade do século

XX – ser limitados geograficamente ou em função de grupos específicos. Pelo contrário, contém uma

tendência globalizante que tanto se estende à produção e reprodução como atravessa fronteiras

nacionais e, nesse sentido, com um novo tipo de dinâmica social e política, faz surgir ameaças globais

supranacionais e independentes de classe” (p. 15 e 16, grifos do autor).

Ou seja, em contraste com as sociedades industriais da primeira

metade do século vinte, nas quais as circunstâncias que reclamavam a intervenção

estatal encerravam, quase sempre, realidades mensuráveis e passíveis de tratamento

estatístico, permitindo o emprego de mecanismos de seguridade altamente eficazes; na

30

sociedade pós-industrial – ou reflexiva, segundo a terminologia empregada por Anthony

Giddens – as implicações dos novos fenômenos se mostram refratários às tentativas

de determinação de suas consequências, bem como de mensuração e mitigação de

seus impactos. Talvez o processo que melhor ilustre estas afirmações seja a

intensificação da degradação ambiental provocada pelo desenvolvimento da

microeletrônica e, sobretudo, das tecnologias de aproveitamento da energia nuclear.

Grande parte da repercussão alcançada pela obra de Beck, sem embargo de suas

qualidades intrínsecas, deveu-se à catástrofe nuclear ocorrida em Chernobyl

aproximadamente na mesma época de lançamento do livro, que escancarou a

fragilidade dos instrumentos mobilizados pelo Estado – e pela própria ciência – para o

enfrentamento de situações-limite como essas. Quase três décadas depois, um novo

acidente nuclear, desta vez na usina de Fukushima, no Japão, provocou novo mal-

estar internacional, reeditando ao menos parte a perplexidade provocada por

Chernobyl, já que o desenvolvimento tecnológico ocorrido nesse período não foi capaz

de produzir mecanismos eficazes de combate aos efeitos da radiação nuclear liberada.

É importante observar que a legitimidade dos Estados de bem-estar

social e Desenvolvimentista baseou-se, fundamentalmente, na racionalidade técnica

potencializada pela especialização do trabalho e pelos métodos burocráticos de

organização (de acordo com o tipo ideal formulado por Weber), que buscaram reservar

o poder decisório das instituições públicas exclusivamente aos experts e à classe

política, estreitando significativamente as possibilidades dos cidadãos comuns – isto é,

os não versados nas técnicas administrativas do Estado – influírem nos rumos políticos

da nação e, mesmo, dos municípios onde residem. Ora, a percepção das limitações da

ciência como instrumento capaz de oferecer respostas adequadas aos novos

fenômenos produzidos pelas sociedades de risco, bem como o acúmulo de exemplos

que manifestam a fragilidade das representações que sustentam a neutralidade da

técnica – isto é, que comprovam a existência de um núcleo irredutível que testemunha

as relações de força por trás de seu desenvolvimento e utilização social – representam

um enorme desafio aos sistemas políticos contemporâneos, pressionando por novos

mecanismos de tomada de decisões políticas.

31

3) Outro fator fartamente apontado pela literatura especializada é o esgotamento

dos padrões racional-burocráticos de atuação estatal, cuja racionalidade, tal como já

mencionado acima, mostrou suas fragilidades e sua incapacidade de garantir

resultados sociais compatíveis com as expectativas dos públicos-alvo das políticas

públicas. Ao arrepio da sistematização teórica de Weber, os burocratas não se

submetem facilmente ao papel que devem desempenhar nas organizações públicas, ou

seja, não afinam seu comportamento aos parâmetros de neutralidade técnica prescritos

pelo sociólogo alemão, afastando da esfera de sua atuação profissional suas

inclinações políticas e demais disposições pessoais. Ou seja, estes servidores

provaram-se refratários à condição de meros instrumentos da organização

administrativa e frequentemente se imiscuíram em questões de natureza política,

solapando a objetividade que deveria pautar o desempenho de suas incumbências

profissionais. O modelo weberiano, segundo o qual os políticos tomam as decisões e

os burocratas as implementam de maneira isenta, empregando as melhores técnicas

disponíveis, revelou-se amplamente ilusório. Além disso, o século XX produziu

inúmeros exemplos da tendência das burocracias públicas encerrarem-se sobre seus

próprios interesses coorporativos, autorreferentes. Há que se destacar, ainda, sua

propensão ao insulamento, de modo a manterem-se ao abrigo das pressões exercidas

pelos movimentos sociais e pela participação direta dos cidadãos na definição dos

contornos das políticas públicas, sob a alegação de que estes não estão aptos a

interferir em questões cuja complexidade torna insubstituível a atuação exclusiva de

especialistas altamente qualificados.

4) Há, ainda, uma dimensão ideológica para a crise dos sistemas políticos.

Conforme salienta Sintomer, “a mobilização dos cidadãos não envolve apenas a lógica

utilitária da defesa dos interesses próprios; ela depende amplamente de ideais capazes

de construir elementos de identificação e de uma crença na possibilidade de um mundo

mais justo” (2010, p. 34). Nesse sentido, a traumática dissolução da União Soviética,

que ao longo de aproximadamente cinquenta anos figurou como uma alternativa

aparentemente viável ao capitalismo, representou um duro golpe contra os movimentos

socialistas no mundo todo, precipitando o descrédito que atualmente pesa contra as

chamadas metanarrativas (entra as quais o marxismo foi, sem dúvida, a mais

influente), que ofereciam explicações teleológicas para a evolução dos conflitos sociais,

32

dotando de sentido as ações e os projetos políticos de diversos grupos organizados.

Estes acontecimentos, que culminaram com o final da Guerra Fria e a supremacia

inconcussa dos Estados Unidos no cenário internacional, permitiram a Francis

Fukuyama, economista e cientista político nipo-estadunidense – e um dos principais

arautos do neoconservadorismo da era Reagan – a proclamar, em tom triunfante, o “fim

da história”, tendo em vista a consolidação inexorável (segundo o autor) das “vitórias”

do capitalismo e da democracia liberal em todo o mundo, cuja força centrípeta

absorveria inescapavelmente os países que ainda relutavam em reorganizarem-se

segundo os princípios desses dois modelos de organização econômica, política e

social.

Por fim, resta destacar que o nacionalismo também viu seu apelo ideológico

decrescer acentuadamente ao longo do século XX em virtude, por um lado, dos

traumas decorrentes dos conflitos armados que apelaram aos sentimentos

nacionalistas como fatores de mobilização e de acirramento de rivalidades entre as

nações beligerantes, e, por outro, pela diluição das fronteiras nacionais provocada pela

globalização.

5) A despeito do crescimento econômico alcançado nas últimas décadas, a política

tradicional não tem sido capaz de dirimir alguns problemas sociais persistentes, como a

elevação dos índices de criminalidade, a baixa qualidade da educação pública e do

atendimento em postos de saúde e hospitais públicos, entre outros. Na Europa, “pela

primeira vez em muito tempo, as novas gerações ingressam na vida ativa com

perspectivas mais sombrias do que as de seus pais” (idem, p. 29), sobretudo em

decorrência do crescimento das taxas de desemprego que, em alguns países, como a

Espanha e a Grécia, já atinge aproximadamente 50% dos jovens com até 25 anos5.

Notícia recente, amplamente divulgada na imprensa, dá conta de que o número de

desempregados na Espanha ultrapassou, pela primeira vez em sua história, a barreira

dos cinco milhões de indivíduos, perfazendo, ao final de 2011, um índice de 22,85% da

população economicamente ativa do país6. Embora a Espanha encerre uma situação-

5 Conforme notícia publicada em 02 de abril de 2012 no portal eletrônico Estadão. Disponível em

http://blogs.estadao.com.br/radar-economico/2012/04/02/desemprego-entre-jovens-na-espanha-supera-50-pela-1%C2%AA-vez-desde-1986/ (consulta realizada em 17 de abril de 2012) 6 Conforme notícia publicada em 27 de janeiro de 2012 no portal de notícias G1, disponível em

http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/01/numero-de-desempregados-na-espanha-chega-527-

33

limite, diversos outros países de economia capitalista desenvolvida debatem-se contra

a significativa redução dos postos de trabalho dentro de suas fronteiras, em parte

devido às tecnologias poupadoras de mão de obra, mas sobretudo – como ressaltado

anteriormente – em razão da migração dos complexos industriais de empresas

nacionais para países em desenvolvimento.

Atualmente, já há diversos estudos que demonstram o agravamento das

desigualdades sociais provocado pelas políticas neoliberais adotadas em praticamente

todo o mundo ocidental, desigualdades que não se restringem ao aprofundamento das

dissimetrias entre países do norte e países do sul, mas também entre segmentos

sociais de uma mesma nação. Além disso, se de fato, como a ideologia neoliberal

vulgarizou nas últimas décadas, os diversos fenômenos socioeconômicos que se

desenvolvem no interior de suas fronteiras não podem mais ser completamente

controlados pelos Estados nacionais, é natural que o interesse pela participação

política reflua, ainda que esta assertiva esteja ancorada em um economicismo

reducionista pouco convincente. Como ressalta Diniz, “a globalização não está

comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclusivamente por relações e

processos de natureza econômica. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política, que

por sua vez, tem a ver com relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre

as potências em escala mundial” (Diniz, 2001, p.14).

6) Por fim, a crise dos sistemas políticos está umbilicalmente associada à

deterioração da função dos partidos políticos como instrumentos de mediação entre a

sociedade civil e o Estado, fato que aponta, em última análise, para a debilidade dos

mecanismos clássicos da democracia representativa, a qual, como se verá adiante, é

amiúde identificada como a “própria democracia”, a despeito de sua cada vez mais

pronunciada incapacidade de corresponder às exigências de manifestação da

soberania popular – conforme a interpretação dada a este conceito por autores

clássicos como Rousseau e Tocqueville. Homero da Costa, a partir de trabalhos de

Hanna Pitkin e Juan Carlos Monedero, afirma que:

“a representação refere-se ao ato mediante o qual um representante – governador ou legislador – atua

em nome de um representado para a satisfação, pelo menos em teoria, dos interesses deste, ou seja, „a

representação aqui significa agir no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles‟

milhoes.html (consulta realizada em 17 de abril de 2012)

34

“Nesse sentido, os representantes devem ter o direito e a possibilidade de controlar e exigir

responsabilidades ao governante (...). Ou dito em outras palavras: a representação supõe uma relação

social em que existe um dominante que atua em nome de um dominado, na qual o representado pode

controlar o representante não apenas e exclusivamente através de eleições periódicas” (Costa, 2007, p.

73)

Neste contexto, aos partidos políticos – entidades que detém o monopólio da

representação e, por extensão, da formação dos governos – compete a essencial

tarefa de canalizar e articular as demandas da sociedade civil, agregando-as em planos

de ação cuja execução possa ser viabilizada mediante a mobilização dos aparatos

estatais. Ora, é justamente a respeito do cumprimento desta missão que grassa no seio

do eleitorado a percepção – amplamente confirmada por pesquisas acadêmicas – da

inadequação dos partidos políticos contemporâneos. Ao invés de atuarem como elos

de transmissão entre os anseios forjados pelos diversos segmentos sociais e o Estado,

os partidos converteram-se, sobretudo a partir da segunda metade do século passado,

em verdadeiras “máquinas eleitorais”, voltadas fundamentalmente à conquista do poder

político, não mais em razão dos compromissos assumidos junto às bases sociais que

os sustentam e legitimam, mas tão somente como forma de instrumentalizar as

posições estratégicas do aparelho de Estado em benefício dos interesses corporativos

e fisiológicos do próprio partido, ou de lobbies cujos interesses conflitam abertamente

com a promoção dos valores republicamos.

Este processo foi acompanhado, ainda, pela perda da densidade ideológica

dos partidos políticos, cujas propostas passaram a apresentar contornos cada vez mais

fluidos e indistinguíveis em relação às de outros grupos concorrentes. O aumento da

complexidade social promovido principalmente pela globalização, que importou no

surgimento de diversos movimentos sociais já não mais associados ao mundo do

trabalho (como os movimentos feminista, de defesa do meio ambiente, contra o

preconceito racial, etc.), concorreu de maneira decisiva para o aprofundamento dos

processos mencionados. Ora, o sucesso eleitoral tornava-se praticamente inviável a

partidos que focalizassem seus programas políticos em função dos interesses de

apenas um determinado segmento populacional – tal como era possível fazer, por

exemplo, durante o período em que a classe operária caracterizou-se por um elevado

nível de coesão social. Desde então, as propostas partidárias passaram a costurar,

35

muitas vezes de maneira difusa e pouco coerente, elementos oriundos das

reivindicações de diversos grupos de pressão organizados, esforçando-se por assumir

a dimensão de um discurso em nome de “todo o povo” (Costa, idem), fazendo tábula

rasa dos conflitos que atravessam as sociedades contemporâneas. Dessa forma, as

alianças eleitorais que reúnem partidos a princípio posicionados em extremidades

opostas do espectro político-ideológico são urdidas a cada novo processo eleitoral, ao

sabor de conveniências meramente pragmáticas, e há muito tempo deixaram de causar

qualquer espanto ou indignação por parte do eleitorado.

Além disso, a burocratização das estruturas partidárias, se em momento

algum deixou de caracterizar a organização dessas entidades, foi elevada a níveis

paroxísticos nas últimas décadas. Nesse movimento, os partidos políticos assumiram

progressivamente as características de corporações privadas cujos vínculos com as

dinâmicas da sociedade civil tornaram-se cada vez mais débeis, encerrando-se quase

exclusivamente sobre os seus próprios interesses corporativos. O círculo da alienação

partidária completou-se, logicamente, através da supressão do caráter democrático dos

processos de tomada de decisão internos, monopolizados por um número

extremamente reduzido de afiliados – os chamados “políticos profissionais”, geralmente

ocupantes de postos eletivos na Administração pública –, que obliteram o concurso de

praticamente todos os demais membros da legenda, esgarçando os liames entre a

máquina partidária e as bases que outrora lhe infundiram vida e sentido.

No caso do Brasil, historicamente os partidos políticos sempre foram

constituídos de cima para baixo, ou seja, sua criação decorreu quase invariavelmente

de manobras encetadas pela própria elite política, respondendo antes às vicissitudes

das disputas internas pelo poder, ao invés de exprimir a maturação política de

movimentos orgânicos da sociedade7. Talvez o único partido de relevância eleitoral que

7 Último partido político legalmente constituído no Brasil (a aprovação de seu registro nacional pelo TSE

ocorreu em setembro de 2011), o Partido Social Democrático (PSD) representa mais um episódio desta persistente característica da vida político-partidária nacional. A despeito dos esforços para justificar a manobra, envidados por Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo e principal responsável pela criação da legenda, é inegável que o PDS surge como um mero instrumento destinado a viabilizar os projetos de poder de políticos que, em seus partidos de origem, não encontravam ambientes favoráveis à satisfação de suas ambições. Nesse sentido parece-nos flagrante a ausência de qualquer fundamentação ideológica que sustente o surgimento da sigla. Conforme reportagem publicada no site do jornal “O Estado”, em 28 de setembro de 2011, “em março [de 2011], com o partido ainda em fase de formação, Kassab afirmou à Rádio Estadão ESPN que o PDS seria independente e não respondeu qual seria a

36

não se enquadre nessa moldura seja o Partido dos Trabalhadores, originado das

greves operárias no ABC paulista do final da década de setenta e inicio da seguinte.

Entretanto, sua evolução recente reproduziu os caminhos percorridos pela maioria

partidos socialistas europeus: o abandono da consistência ideológica em virtude da

adoção de estratégias abertamente orientadas as conquistas dos principais postos dos

Executivos federal, estadual e municipais.

Os processos comentados brevemente acima têm provocado o crescimento

da desconfiança popular sobre os partidos políticos, em geral, e sobre os “políticos

profissionais”, em particular. Desconfiança que se projeta, ainda, sobre outras

instituições vitais para a vida democrática, como o Poder Judiciário e outras

organizações que integram a Administração pública. De acordo com José Álvaro

Moisés, não é possível subestimar os riscos e as consequências sociais decorrentes

deste descrédito generalizado. Segundo o autor:

“No entanto, a desconfiança em excesso e, sobretudo, com continuidade no tempo, pode significar que,

tendo em conta as suas orientações normativas, expectativas e experiências, os cidadãos percebem as

instituições como algo diferente, senão oposto, daquilo para o qual existem: neste caso, a indiferença ou

a ineficiência institucional diante de demandas sociais, corrupção, fraude ou desrespeito de direitos de

cidadania geram suspeição, descrédito e desesperança, comprometendo a aquiescência e a submissão

dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social” (Moisés, 2005, p. 34)

Ademais, os estudos realizados por diversos cientistas políticos europeus e

estadunidenses são praticamente unânimes ao apontar o aprofundamento da apatia

política da sociedade civil em seus países, que se manifesta fundamentalmente pela

dramática diminuição do comparecimento às urnas nas eleições para cargos

executivos e legislativos8, pelo decrescente número de filiações aos partidos políticos e

pelo estreitamento das fileiras de outros veículos tradicionais de participação política,

orientação da legenda. „É um partido que terá um programa a favor do Brasil‟, disse na ocasião”. Disponível em http://blogs.estadao.com.br/radar-politico/2011/09/28/com-psd-aprovado-kassab-reve-orientacao-do-partido/. Consulta realizada em 17 de abril de 2012 8 Nas eleições espanholas de 2011, apenas 57,6% dos espanhóis com direito a voto registraram suas

preferências nas urnas (conforme notícia do portal eletrônico do jornal Diário de Pernambuco, disponível em http://www.diariodepernambuco.com.br/nota.asp?materia=20111120170118). Já nas eleições para o Parlamento Europeu, realizada em junho de 2009 na cidade de Bruxelas (Bélgica), “o comparecimento às urnas foi de 43%, o nível mais baixo já registrado. Nas eleições de 2004, 45,47% votaram”, conforme noticiou o portal G1, disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/europa-se-inclina-direita-em-eleicoes-para-parlamento-3195972. Consulta realizada em 18 de abril de 2012

37

como sindicatos, associações de bairro, movimentos vinculados a organizações

religiosas, etc. Na América Latina são igualmente notórios os altos níveis de

alheamento da população em relação aos processos político-partidários. Após um

breve período de euforia, engendrado pelos episódios que precipitaram a falência dos

regimes ditatoriais que dominaram o cenário político da região nas décadas de

sessenta e setenta, a persistência dos escândalos de corrupção, o decepcionante

desempenho econômico, o aprofundamento das desigualdades sociais, entre outros

fatores, frustraram as expectativas sob os regimes democráticos recém-instalados,

lançando grande parte de suas populações à letargia que a caracterizou no período

anterior.

Diante desse quadro, sem embargo da importância que essas instituições

ainda preservam nos regimes democráticos, a complexidade das sociedades atuais,

convulsionadas pelas mundializações econômica, política e cultural, expõe de maneira

bastante nítida as limitações dos partidos políticos – organizados nos mesmos moldes

que os caracterizaram ao longo do século passado – como instrumentos de

representação dos interesses forjados pelos diversos segmentos sociais. Ante este

quadro, a democracia reclama a adoção de novos mecanismos de participação

popular, que contribuam para a correção das distorções inerentes aos sistemas

representativos contemporâneos e reforcem a legitimidade dos governos eleitos.

4.1. - Vozes Dissonantes

A despeito da farta literatura referida acima, Wanderley Guilherme dos

Santos – um dos mais eminentes cientistas políticos brasileiros da atualidade – rechaça

as teses que diagnosticam o surgimento de crises na democracia representativa no

Brasil. O autor contesta todas as supostas evidências apontadas como prova do

desgaste dessa forma de organização política no país. Ao contrário da percepção

amplamente difundida pela imprensa e por grande parte da literatura especializada,

tanto o Congresso, quanto os partidos políticos em geral, alvos privilegiados de

insatisfação e de descrédito da opinião pública, funcionam de maneira relativamente

adequada, ou, pelo menos, de forma bastante aproximada ao que se observa em

países desenvolvidos, amiúde considerados modelos a serem perseguidos pelas

instituições políticas nacionais. O autor argumenta que os partidos apresentam elevado

38

grau de coerência e disciplina, e repele as interpretações que os caracterizam como

meras legendas eleitorais sem consistência programática e ideológica – e cujos

membros atuam exclusivamente segundo seus próprios interesses particulares,

assumindo posições políticas de maneira casuística, ao sabor das oportunidades de

ampliação de suas bases eleitorais, independentemente das implicações ideológicas

que esses posicionamentos encerram.

Em flagrante oposição às imagens predominantes nas representações sobre

o jogo parlamentar brasileiro, “investigações contemporâneas têm buscado avaliar as

provas em que tais juízos se sustentam, com o surpreendente resultado, para alguns,

de que praticamente a metade do tempo e da iniciativa dos deputados é dedicada a

promover regulamentos que atendam ao interesse geral da comunidade.

Evidentemente, tal como se comportam os políticos em qualquer democracia, buscam

também atender às demandas de seu eleitorado principal, pois, repetindo, é, em

princípio, para isso que são eleitos, e é esse o significado amplo de democracia

representativa” (Santos, 2007, p. 109). Destarte, o descrédito que abala o sistema

partidário no país não corresponde à realidade objetiva do desempenho de grande

parte das casas legislativas, mas à atuação de um grupo de políticos numericamente

pouco representativo, cujas práticas, orientadas pela gramática clientelística,

concorrem, por metonímia, para o aviltamento da política, normalmente associada, no

imaginário social, à corrupção e à defesa de interesses coorporativos, em prejuízo do

ideal republicano e democrático.

Além disso, Santos contesta as análises que apontam distorções

pronunciadas na representatividade dos diversos segmentos sociais no congresso

brasileiro, afastando a percepção já cristalizada de que as casas legislativas

permanecem pouco permeáveis ao ingresso das camadas mais empobrecidos da

população. A análise sociológica da composição das câmaras de deputados, federal e

estaduais, revela a presença tanto de indivíduos com alto nível de instrução

acadêmica, como pessoas consideradas analfabetas funcionais; tanto de empresários

da indústria e do setor de serviços, como de trabalhadores manuais e sindicalistas;

desde grandes proprietários rurais, até pequenos agricultores e integrantes de

movimentos sociais que lutam pela reforma agrária. A suposta falácia do controle

39

oligárquico da política brasileira, após a redemocratização ocorrida na década de

oitenta, torna-se ainda mais patente quando considerado somente o preenchimento

dos cargos eletivos da administração pública municipal; neste nível, mais do que nos

dois outros da Federação, a presença predominante de indivíduos oriundos das

classes trabalhadoras torna ainda mais insustentável o argumento da exclusão das

camadas populares dos embates políticos travados nos espaços democráticas

institucionalizados. Santos afirma que,

“Salvo oscilações, a pluralidade da representação é uma realidade palpável. Do total de prefeitos e

vereadores eleitos em 2000, o maior contingente foi constituído por trabalhadores agrícolas, já chegando

a 15,8% e ultrapassando a representação dos comerciantes, firme em 2º lugar, com 10,2% do total de

eleitos. Vinham a segui os funcionários públicos (8,4%), os profissionais liberais, professores e

advogados, com 6,9%, e, na rabeira, os proprietários agrícolas, com 3,2% do bolo” (p. 106)

Tendo em vista os argumentos esboçados acima, o autor considera que a

propalada crise dos sistemas democráticos dos países ricos é totalmente estranha à

realidade brasileira, onde os cidadãos não manifestam o desalento que caracteriza a

postura política dos europeus. No Brasil o comparecimento às urnas é expressivo – e

não declinante, como ocorre, por exemplo, na Espanha e na Grécia. Embora as

eleições realizadas na década de noventa tenham registrado um discreto decréscimo

do percentual de eleitores que participaram da votação, o pleito de 2002 voltou a

registrar um patamar semelhante ao de outras eleições livres no Brasil, como a de

19829. Santos argumenta, ainda, que apesar de existir uma inegável relação positiva

entre nível educacional e participação política, válida para todos os países, ela não

explica as oscilações dos votos nulos e brancos ao longo do tempo nas eleições

brasileiras, já que estes ora recrudescem, ora refluem, ao passo que a taxa de

alfabetização tem crescido ininterruptamente no país ao longo das últimas décadas.

Santos defende que os traços de apatia política manifestados pelos

brasileiros – que se expressam, entre outras evidências, pela fragilidade da vida

9 Parece-nos que o fato de o voto no Brasil ser obrigatório, enquanto na maioria dos países europeus

não o é, representa uma divergência de condições que mitiga a utilização das taxas de comparecimento às urnas para demonstrar a vitalidade do regime democrático brasileiro. Qual seria a taxa de comparecimento caso o pleito fosse facultativo? As pessoas votam por convicção, ou para evitar os transtornos burocráticos que incidem sobre os que têm de justificar sua abstenção? Estas questões parecem-nos relevantes, embora Wanderley Guilherme dos Santos não as discuta em seu livro.

40

associativa e pelo elevado nível de alheamento em relação à atuação dos governos

dos três níveis federativos – não podem ser interpretados como evidências do mesmo

descrédito que pesa sobre o regime democrático em diversos países do hemisfério

Norte. Aqui, o problema deve-se, na verdade, a causas mais profundas, que envolvem

aspectos estruturais da configuração social brasileira. Para o autor, o país ainda é

constituído por amplos contingentes populacionais cujas condições socioeconômicas

os situam aquém de um certo limiar de sensibilidade social, abaixo do qual as

vicissitudes que abalam a sociedade não são suficientes para disparar os processos de

aguçamento das percepções de privação relativa. Em outras palavras, as severas

condições de marginalização que assolam grande parte da população brasileira

encerram uma barreira que não a permite desenvolver, por um lado, a percepção

aguçada da injustiça imanente às desigualdades objetivas que a separa dos setores

mais abastados da população, e, por outro, a perspectiva de que a superação das

restrições que a aflige encontra-se de fato ao alcance de suas forças (o horizonte do

desejo a que se refere o título do livro de Santos).

Além disso, o limiar referido acima diz respeito, igualmente, às punições que

normalmente recaem sobre os que fracassam em suas lutas pela efetivação dos

direitos sociais. No Brasil, os riscos e os custos do associativismo são extremamente

elevados para a população pobre, sobretudo à luz das chances reais de suas

mobilizações atingirem os objetivos desejados, o que a desencoraja a recorrer a estas

formas de atuação política. Destarte, Santos conclui que:

“O horizonte do desejo é algo móvel e o que o impulsiona é a relativa segurança de que o fracasso na

tentativa de alcançá-lo cobrará custo tolerável, quando a situação em que se recairá é, em si mesma, já

confortável. O limiar de sensibilidade social é definido, por conseguinte, como a pior punição possível

caso alguém ouse desejar hobbesianamente e fracasse. No caso brasileiro, o custo do fracasso consiste

em desemprego prolongado, afastando do processo produtivo, violência institucional e marginalização.

(...) Aqui, o horizonte do desejo ainda é puro desejo, sem horizonte” (p. 176).

Os apontamentos de Wanderley Guilherme dos Santos têm o mérito de

registrar alguns avanços expressivos da vida política nacional, normalmente

subestimados pela literatura especializada no assunto, ao mesmo tempo em que

chama a atenção para fatores que não se associam exclusivamente às dinâmicas

político-partidárias. De qualquer maneira, parece-nos inegável que práticas autoritárias

41

e clientelísticas ainda vicejam no tecido social brasileiro, imprimindo sua marca não

apenas no âmbito das disputas políticas, mas também em outras esferas da vida

social, tornando o estatuto da cidadania um mero simulacro de si mesmo. Por esse

motivo, ainda que os diagnósticos que apontam para a crise aguda da democracia

representativa no Brasil revelem, acima de tudo, a influência acrítica de interpretações

pertinentes a realidades distintas das que se observa no país, parece-nos que os

mecanismos de participação direta da população na gestão das políticas de Estado

permanecem fundamentais à construção de uma cultura pública renovada, congruente

com os princípios inerentes à concepção substantiva da democracia, a despeito dos

riscos – sempre presentes – de que estes canais sejam açambarcados pela lógica da

apropriação privada dos espaços públicos. Há experiências que apontam justamente

para a direção oposta, ou seja, para o recrudescimento da participação dos segmentos

mais pobres da população nos processos decisórios do Estado, bem como para o

aprofundamento do controle social exercido sobre o desempenho dos agentes políticos

e da burocracia estatal – a exemplo do que ocorreu nos Orçamentos Participativos de

algumas prefeituras municipais brasileiras.

42

Capítulo 5 - A Ofensiva Neoliberal

As correntes de pensamento neoliberal ganham força a partir das evidências

de esgotamento do modelo de intervenção estatal praticado durante o período de

hegemonia dos Estados de bem-estar social e desenvolvimentista. Sua ofensiva

avassaladora beneficiou-se, outrossim, do colapso da União Soviética e,

consequentemente, do descrédito generalizado que se abateu sobre o socialismo como

forma de organização política viável. Destarte, a necessidade de o Capital proporcionar

condições de vida superiores às desfrutadas no regime soviético, como forma de

legitimar seu desenvolvimento e desencorajar movimentos políticos que questionassem

seus fundamentos, foi repentinamente suprimida. Ante a falta de modelos que

pudessem, de fato, rivalizar com o capitalismo, era chegada a hora do desmonte dos

onerosos aparatos de seguridade social forjados pelo Welfare State, que importavam a

redução significativa das margens de lucro das empresas devido à absorção de parte

significativa de seus resultados pela pesada carga tributária necessária ao custeio de

programas universais de previdência social. Esta operação contou por fim – como

indicado no capítulo anterior – com a desmobilização da classe trabalhadora, que

perdeu a identidade que a caracterizou durante as primeiras décadas do século

passado e cujos arremedos de organização ainda remanescentes não tiveram força

suficiente para opor-se ao avanço irresistível das reformas do aparelho de estado

inspiradas pelo neoliberalismo.

Diante desse quadro, o laissez faire ganhou novo impulso e, mais uma vez,

foi utilizado como bússola da reestruturação das economias combalidas do início da

década de noventa. A crença na capacidade dos mercados se auto-regularem

espontaneamente, ao largo de mecanismos estatais de coordenação, durante mais de

três décadas estigmatizada como excentricidade associada ao datado período de

apogeu dos Estados Liberais, recuperou gradualmente seu prestígio acadêmico e

tornou-se a panaceia da recuperação do desenvolvimento econômico global. É

importante ressaltar, entretanto, que esta corrente do pensamento econômico, a

despeito do semiostracismo a que esteve relegada, continuou arregimentando adeptos

durante esse período, os mais influentes dos quais se reuniram em 1947 – isto é, no

período de maior prestígio da obra de John Maynard Keynes, com a qual pretendiam

43

polemizar – no Hotel de Mont Pelèrin, localizado na Suíça, dando origem à chamada

Sociedade de Mont Pelèrin. O objetivo deste primeiro evento, que contou com a

participação de 37 economistas – assim como das demais reuniões que se seguiram

desde então – foi a promoção de debates acadêmicos e a elaboração de estratégias

voltadas à disseminação da superioridade dos mecanismos regulatórios do mercado

frente aos instrumentos de coordenação econômica mobilizados pelo Estado. Ou seja,

Mont Pelèrin não se cingiu a promover o livre desenvolvimento de ideias e teorias de

inspiração liberal, como também articulou movimentos de expansão acadêmica e de

persuasão de políticos e burocratas de alto escalão no mundo todo. Theotonio dos

Santos salienta que, atualmente, a Sociedade “é um típico grupo de pressão, que

garante a seus membros ótimos empregos, prêmios Nobel e outras „pequenas‟

compensações” (Santos, 1999, p. 130).

Dentre os integrantes de Mont Pelèrin, Friedrich Hayek e Milton Friedman,

economistas austríaco e estadunidense, podem ser considerados os nomes mais

influentes do neoliberalismo, não apenas em razão da densidade teórica de suas

obras, mas também pelas atuações políticas e acadêmicas que desenvolveram ao

longo de suas carreiras. Ambos lecionaram na Universidade de Chicago, ou

simplesmente, Escola de Chicago (também conhecida como Escola Monetarista), que

desenvolveu, a partir dos anos cinquenta do século passado, sólida reputação no

campo do pensamento econômico ultraliberal, tonando-se a principal referência

acadêmica desta corrente teórica.

Em seu principal livro, O Caminho da Servidão, publicado ainda em 1944,

Hayek, além de esquadrinhar questões de natureza estritamente política, assumindo,

muitas vezes, as características de um libelo contra os regimes totalitários de que

davam testemunhos, naquele momento, países como Alemanha, Itália e União

Soviética, apresenta um arrazoado em favor da livre regulação da economia pelos

mercados, tendo em vista que as burocracias estatais, ainda que reúnam os

profissionais mais capacitados, amparados pelas mais sofisticadas ferramentas de

análise econômica, são incapazes de processar a quantidade de informações

necessárias ao eficiente planejamento centralizado das economias nacionais, dada a

incomensurável complexidade que caracteriza a dinâmica dos fluxos de capitais e a

44

alocação espontânea dos recursos econômicos existentes. Destarte, restaria aos

Estados rechaçar o padrão intervencionista implantado a partir da Crise de 29,

restringindo seu âmbito de atuação às funções básicas de manutenção da ordem

interna, defesa nacional e garantia dos contratos privados, aproximadamente como o

fizeram os Estados Liberais do século XIX.

De acordo com Friedman, “o Estado existe para assegurar e maximizar a

liberdade” e, consequentemente, a autodeterminação dos agentes econômicos

constitui um fim em si mesmo, não podendo ser submetido a escrúpulos de equidade

ou solidariedade social. Para o autor, a intervenção estatal representa uma ofensa de

ordem moral, pois restringe a autonomia dos agentes privados, cujos espíritos de

iniciativa e empreendedorismo passam a ser refreados pelos inúmeros

constrangimentos interpostos arbitrariamente pelo Estado. Além disso, compromete a

liberdade política, pois inibe a formação de posicionamentos autônomos pelos

beneficiários dos programas sociais, tendo em vista que a construção de convicções

políticas informadas exclusivamente por argumentos racionais e “científicos” decai ante

os compromissos implícitos que decorrem da participação em políticas sociais que

garantem o bem-estar material de seus beneficiários.

A projeção internacional desses autores e, especialmente, das doutrinas

difundidas pela Sociedade de Mont Pelèrin e pela Escola de Chicago, a partir dos anos

setenta, pode ser atestada pela criação de inúmeros institutos de análise econômica

alinhados aos princípios propalados por aquelas instituições, inclusive nos países do

Leste Europeu, que ainda há pouco permaneciam submetidos a regimes autoritários de

economia planificada. Além disso, a partir de Hayek, laureado com o Nobel de

economia em 1974, outros sete membros da Sociedade obtiveram esta prestigiosa

premiação: Milton Friedman (1976), George Stigler (1982), James Buchanan (1986),

Maurice Allais (1988), Ronald Coase (1991), Gary Becker (1992) e Robert Lucas (1995)

(Santos, 1999, p. 128)10

10

Evidentemente, como o texto do qual esta relação foi extraída data do final da década de noventa, é possível que outros integrantes à Sociedade de Mont Pelèrin tenham recebido o Nobel de economia nesta última década.

45

Já no plano das políticas macroeconômicas, a doutrina neoliberal se difundiu

mundo afora a partir dos governos Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth

Thatcher, na Inglaterra, conduzidos ao poder no início da década de oitenta. Ambos se

notabilizaram pela introdução de um amplo programa de corte de gastos nas áreas

sociais e de desoneração da carga tributária incidente sobre o capital, objetivando

introduzir o chamado downsizing, ou seja, o Estado mínimo11. Sem embargo do

protagonismo internacional que estes dois países exerceram nesse processo, é

importante destacar que as políticas econômicas implantadas pelo governo chileno do

General Augusto Pinochet foram pioneiras na aderência aos princípios neoliberais,

antecipando-se aproximadamente uma década em relação aos primeiros esforços

encetados por norte-americanos e ingleses – e logo em seguida por praticamente todo

o mundo ocidental. Não por acaso, Milton Friedman foi um dos principais conselheiros

para a área econômica do mandatário chileno; além disso, diversos ministros de

Estado do governo Pinochet passaram pelos bancos do curso de economia da Escola

de Chicago. As medidas antipopulares prescritas pelas correntes neoliberais, como a

dramática redução dos gastos em programas sociais, foram facilitadas, nesse caso,

pelo regime autoritário vigente no Chile, que reprimiu violentamente a oposição,

enfraqueceu os movimentos das classes trabalhadoras e restringiu drasticamente as

demandas sociais dirigidas pela sociedade civil ao Estado.

No Brasil, as primeiras iniciativas no sentido da liberalização da economia

nacional foram iniciadas pelo curto e tumultuado governo do presidente Fernando

Collor, abruptamente interrompido em virtude do processo de impeachment a que foi

submetido. Este primeiro período de reestruturação do Estado pode ser considerado

uma fase meramente negativa, pois se limitou a desconstruir os aparatos

característicos do Estado Desenvolvimentista (ou do Welfare State, nos países

desenvolvidos), ao largo de propostas efetivas de reformulação dos mecanismos

estatais de intervenção social e econômica, além de negligenciar totalmente as

11

Entretanto, a despeito dos discursos que fundamentaram as estratégias adotadas por Reagan e Thatcher, o já mencionado estudo de Theotonio dos Santos procura demonstrar que em ambos os casos não ocorreu, de fato, uma diminuição das despesas Estatais em relação ao PIB dos dois países. Ao invés disso, os gastos públicos foram subtraídos das políticas de seguridade social em favor, sobretudo, dos investimentos na área militares e da concessão de subsídios a diversos segmentos econômicos, o que contraria, evidentemente, o princípio da não intervenção estatal na economia, tão caro aos economistas da Escola de Chicago (idem, 1999).

46

questões relacionadas, por um lado, à participação popular nos processos decisórios

das organizações públicas e, por outro, à ampliação dos mecanismos de accountability,

isto é, de controle social e responsabilização dos gestores públicos. Bento conclui que,

neste momento, as propostas neoliberais buscaram “aliviar o sistema político do

volume crescente de demandas sociais que exigem maior intervenção, delimitando,

ainda que de forma negativa – através das atividades com as quais o Estado não deve

se envolver – o núcleo essencial das políticas públicas” (Bento, 2003, p. 49)

O direcionamento e o alcance dessas reformas foram predeterminados pelas

condições impostas por dois organismos multilaterais de ajuda financeira aos quais

praticamente todos os países latino-americanos recorreram, durante os anos oitenta,

como forma de mitigar os efeitos da crise fiscal que os assolava. Trata-se do Banco

Mundial e, especialmente, do Fundo Monetário Internacional (FMI), ambos

instrumentalizados por Washington para pressionar os Estados à beira da falência a

alinharem-se às novas diretrizes neoliberais, segundo os interesses do capital

financeiro internacional. Conforme observa van Creveld, “Com um quadro de pessoal

adepto da nova economia da oferta, as duas instituições [Banco Mundial e FMI]

forneceram a seus protegidos empréstimos imensos, dos quais esses países

precisavam muito. Em troca exigiram reformas abrangentes. Entre essas reformas,

sobretudo, o fim dos gastos deficitários, o desmantelamento pelo setor estatal ou

controlado pelo Estado e a liberalização dos mercados financeiros. Além disso, tinham

de criar moedas estáveis, afrouxar as rédeas dos recursos naturais, permitir a entrada

de capital estrangeiro e lhe oferecer diversos privilégios, começando pelo direito de

repatriar os lucros livremente e acabar com a instituição de „livre comércio‟ especial,

isto é, zonas isentas de impostos.” (van Creveld, 2004, p. 539)

Diante do receituário indicado acima, os Estados nacionais latino-

americanos adotaram políticas macroeconômicas destinadas a garantir amplos

superávits em moeda estrangeira, de sorte a provê-los dos recursos necessários ao

pagamento dos escorchantes juros das dívidas públicas. Em um momento de profunda

estagnação econômica, a consecução deste objetivo sustentou-se, basicamente, na

redução drástica das importações e no incentivo às exportações, viabilizados por meio

da política alfandegária e pela distribuição de subsídios aos segmentos econômicos de

47

maior inserção no mercado internacional. Não obstante os superávits das balanças

comerciais registrados nesse período, é importante observar que, no caso das

importações, sua acentuada retração não se limitou a reduzir a entrada de bens de

consumo, atingindo, inclusive, os chamados bens de capital, isto é, os insumos

requeridos por diversas cadeias produtivas, contribuindo para a redução dos

investimentos e, consequentemente, o aumento das taxas de desemprego. Além disso,

tendo em vista as pronunciadas limitações dos complexos industriais de alguns países,

a restrição da oferta até então sustentada pelas importações não pôde ser

compensada pelo incremento da produção nacional, provocando o encarecimento do

custo de vida e a elevação dos índices inflacionários. Por outro lado, o incremento das

exportações também concorreu para este resultado, já que a direção dos esforços

nacionais no sentido do crescimento da produção de bens voltados à satisfação dos

mercados internacionais se realizou às expensas do atendimento das demandas

internas, tornando escassos alguns produtos básicos da lista de consumo das famílias

(Costa, 2006).

Como se vê, o pacote de reformas neoliberais além de não proporcionar a

recuperação econômica dos países que o implementaram, como previam seus

principais ideólogos, proporcionou o agravamento das condições sociais dos setores

mais espoliados da população, aprofundando os contrastes entre estes e as elites

econômicas e políticas desses países. Ora, tais fracassos não podem ser creditados

unicamente à miopia das entidades que elaboraram tais pacotes de auxílio econômico.

Na verdade, as agendas das reformas neoliberais não objetivavam fecundar

novamente a capacidade de desenvolvimento de Estados à beira da falência, mas

antes preservar os interesses do capital financeiro internacional, ameaçados com o

risco iminente de insolvência generalizada dos países do Sul. Na verdade, este

processo representou apenas mais um episódio da “ascensão do capital financeiro e da

transferência de riqueza da esfera produtiva de cada país para um setor comandado

pelo capital financeiro internacional” (Costa, 2006, p. 88), solapando a capacidade dos

Estados realizarem os investimentos estruturais indispensáveis ao desenvolvimento

dos setores produtivos nacionais.

Capítulo 6 - A Reforma do Estado nos Anos 90

48

Os primeiros resultados sociais colhidos a partir da abertura comercial e de

outras formas de desregulamentação da economia, expuseram, mais uma vez, a

fragilidade dos discursos que defendiam a retração excessiva do âmbito de intervenção

do Estado. Se as estratégias associadas ao downsizing mostraram-se especialmente

favoráveis ao capital financeiro internacional e ao livre jogo especulativo, evidenciaram,

por outro lado, sua incapacidade de combater a retração dos setores produtivos e o

aumento da concentração de renda, tornando ainda mais críticas as condições sociais

de amplos segmentos populacionais em praticamente todo o mundo. Os eventos que

se seguiram à primeira fase de reformas dos Estados de bem-estar e

desenvolvimentista, caracterizadas pelo desmonte das políticas de seguridade social e

de intervenção estatal em domínios anteriormente reservados à iniciativa privada,

expuseram de maneira incontrastável a imprescindibilidade do Estado no

desenvolvimento econômico e social nacionais. Evidentemente, já não se tratava de

retornar aos padrões anteriormente vigentes, mas de instituir novos mecanismos de

atuação capazes de restaurar a eficiência e a eficácia das políticas públicas, além de

aprofundar a legitimidade das instituições estatais por meio de sua abertura à

participação popular nos processos de tomada de decisões. Como salienta Leonardo

Bento, esse novo Estado “é chamado a desempenhar a dupla tarefa de criar condições

atrativas para as inversões estrangeiras e de mobilizar e coordenar elementos

endógenos da economia em torno de uma estratégia de desenvolvimento. A ideia de

soberania, por sua vez, transforma-se radicalmente, ou até mesmo se inverte: de uma

barreira defensiva contra ameaças de fora, passa a constituir-se num conceito

ofensivo, que traduz a capacidade de inserção competitiva de um mercado nacional no

exterior” (idem, p. 78). Nesse contexto, a década de noventa testemunha uma nova

onda de reformas, desta vez não mais orientada pelo signo negativo da retração

inconsequente dos aparatos públicos, mas pelo surgimento e pela implantação de

novas propostas de reformulação institucional, calcadas na necessidade de fortalecer a

capacidade de ação do Estado e, ao mesmo tempo, torná-lo menos oneroso, de sorte a

não comprometer a competitividade das empresas nacionais no mercado mundial.

Primeiramente, é necessário distinguir reforma do Estado de reforma do

aparelho de Estado. A primeira se refere à organização do regime político e almeja

incrementar a governabilidade do sistema político, ou seja, destina-se a ampliar as

49

bases da legitimidade e das condições gerais de angariar cooperação social e política

para a execução dos programas e ações governamentais. A segunda diz respeito ao

aparelho administrativo da máquina estatal, ferramentas técnicas e de gestão por meio

das quais a Administração logra efetivar suas políticas, fazendo-as produzir os

resultados sociais que motivaram sua elaboração; trata-se, enfim, de uma reforma de

caráter estritamente institucional. Evidentemente, embora possam ser tratadas

didaticamente como esferas distintas, há uma relação bastante estreita entre ambas, já

que os programas executados pelo Estado podem cumprir todas as metas previamente

estabelecidas sem, contudo, satisfazer às necessidades e expectativas do público para

os quais se destinaram. Nesse caso, a alta capacidade gerencial das organizações

públicas não afasta a ilegitimidade de suas ações.

Por outro lado, mesmo que as políticas assumidas pelo Estado

correspondam fielmente aos anseios de toda a população, as limitações operacionais

de suas agências executivas podem determinar a consecução de resultados

sensivelmente inferiores aos programados, comprometendo, igualmente, a legitimidade

do governo responsável. Portanto, o sucesso de qualquer reforma depende da forma

como enfrenta ambas as questões. Como veremos adiante, o plano de reforma do

Estado adotado no Brasil concentrou-se quase exclusivamente na dimensão gerencial

e administrativa da máquina pública, negligenciando os aspectos relacionados à

participação social e ao aprofundamento da transparência dos processos decisórios

das secretarias responsáveis pela elaboração das políticas públicas, conquanto os

discursos oficiais referendem o compromisso de enfrentamento dessas questões.

A esse respeito, especificamente, é preciso ressaltar que a reestruturação

encetada nos anos noventa reedita, em grande medida, as duas experiências

anteriores de reforma institucional do Estado brasileiro, realizadas ao longo do século

vinte. A primeira delas ocorreu durante o primeiro Governo Vargas (1930 a 1945), no

qual foram envidados esforços no sentido da modernização da Administração pública

federal através da constituição de uma burocracia de tipo racional-legal, ou seja, de um

corpo de servidores altamente qualificados cuja atuação estivesse orientada

exclusivamente por critérios técnicos, segundo procedimentos previamente fixados e

exaustivamente regulados. Além disso, o período singularizou-se pela promulgação de

50

uma legislação trabalhista que objetivava controlar os movimentos operários por meio

da sujeição dos sindicatos de trabalhadores aos propósitos traçados pelo Ministério do

Trabalho.

A segunda experiência foi levada a cabo pelos governos do período militar,

duas décadas após a primeira reforma, e tal como esta concorreu para a acentuada

hipertrofia do Executivo em relação aos demais poderes da República, além de lançar

mão do insulamento de diversos segmentos da burocracia federal, alocadas em áreas

consideradas estratégicas para o crescimento econômico do país, devendo – segundo

o entendimento desposado pelos mandatários do período – permanecer ao abrigo das

pressões políticas e das dinâmicas das trocas clientelísticas.

Em comum entre os casos comentados acima, o fato de ambas as reformas

terem sido empreendidas por governos autoritários, o que ajuda a explicar a omissão

das dimensões relacionadas à esfera democrática. A respeito destes dois períodos,

Diniz conclui que:

“o ponto convergente do esforço reformador está relacionado à dimensão especificamente administrativa

da reforma do Estado, que envolveu questões relativas ao grau de centralização da máquina burocrática,

à hierarquia entre as várias unidades integrantes do aparelho estatal, à articulação entre as diversas

agências do poder Executivo, á definição dos órgãos normativos e fiscalizadores ou ainda à classificação

de cargos e carreiras. Não se verificou uma preocupação com o aperfeiçoamento dos demais poderes e,

sobretudo, com a questão fundamental num regime constitucional, qual seja, a articulação e o equilíbrio

entre os três poderes, atribuindo-se ao Executivo e às agências administrativas um amplo espectro de

prerrogativas no que concerne à formulação e implantação de políticas públicas. Aliás, a trajetória do

Estado no Brasil revela a precedência das burocracias militar e civil, que, historicamente, foram

estruturadas e definiram suas identidades coletivas antes da institucionalização, em âmbito nacional, do

sistema de representação política.” (Diniz, 2001, p. 17)

A reforma do Estado dos anos noventa foi encampada pelo Governo do

presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual criou em seu primeiro mandato o

Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE), cuja direção foi confiada a

Luiz Carlos Bresser Pereira, principal mentor intelectual do Plano Diretor de Reforma

do Estado, apresentado em 1995. A proposta contida neste documento baseou-se

fundamentalmente na chamada New Public Management, ou Nova Gestão Pública

(NGP): movimento iniciado em países anglo-saxões (sobretudo Inglaterra, Nova

51

Zelândia e Austrália) nas décadas de setenta e oitenta do século passado, que buscou

transferir às instituições estatais diversas ferramentas gerenciais empregadas na

iniciativa privada. Contudo, é necessário enfatizar, desde já, que a adoção dessas

ferramentas nem sempre foi acompanhada da indispensável adaptação às

peculiaridades do setor público, reproduzindo acriticamente no âmbito da prestação de

serviços públicos as relações de consumo que caracterizam a esfera das trocas entre

agentes econômicos. Em outras palavras, diversas práticas alardeadas pelo

gerencialismo identificado à NGP negligenciam a dimensão de cidadania que subjaz às

relações entre Estado e sociedade, reduzindo os beneficiários das políticas públicas à

condição de meros consumidores, aos quais se assegura apenas a prerrogativa de

selecionar os serviços que melhor atendem a suas necessidades estritamente

individuais, e oferecer à Administração críticas e sugestões quando os benefícios

obtidos não satisfazem suas expectativas. O conceito de cliente encerra uma

perspectiva extremamente individualista, ao passo que ao Estado compete prover os

as necessidades e os interesses coletivos, definidos a partir do embate transparente e

inclusivo de razões públicas.

Além disso, as propostas da Nova Gestão Pública envolviam, ainda, a

prescrição de severos ajustes fiscais e, consequentemente, da redução do custo de

manutenção da máquina pública: tarefas cuja execução, sob os influxos das

instituições multilaterais de auxílio financeiro (FMI e Banco Mundial) e da truculência

diplomática de países como os Estados Unidos, fora iniciada – mas não concluída –

durante o governo Collor.

Justamente um dos principais desafios com que se depararam os

movimentos de reforma na década de noventa foi a delimitação do alcance dos

mecanismos regulatórios dos Estados nacionais. Não há, evidentemente, nenhuma

fórmula “científica” que permita determinar, em um dado caso concreto, qual o nível

ideal de intervenção estatal, garantindo-se o máximo de desenvolvimento econômico e,

ao mesmo tempo, o mínimo de externalidades sociais e ambientais negativas. A

decisão acerca de quais áreas devem ser objeto de regulação, e qual a extensão das

restrições e condicionantes interpostos pelo Estado, dependerá invariavelmente de

acordos de natureza política, permanecendo permanentemente sujeitos a revisões em

52

face do movediço jogo de forças políticas que de debatem em torno da questão. É

importante salientar, entretanto, que o ponto ótimo de regulação, seja ele qual for,

situa-se ao longo de uma escala de grande amplitude, limitada, em umas das

extremidades, por um padrão excessivamente interventor, que exerce forte pressão

sobre os custos operacionais das empresas nacionais e inviabiliza sua competitividade

no mercado internacional12; e na outra, a total desregulamentação das atividades

econômicas e sociais, responsável pela cristalização de um ambiente de

competitividade feroz que, no limite, ameaça bens públicos fundamentais (direitos

sociais, sustentabilidade ambiental, etc.) e põe em cheque as bases que sustentam o

próprio mercado, dando livre curso a suas tendências autofágicas (formação de trustes,

monopólios, etc.).

A interpretação acerca do projeto político e social da modernidade, sugerida

pelo influente sociólogo português Boaventura Souza Santos, remete-se justamente à

tensão entre esses dos princípios fundamentais e contraditórios: emancipação e

regulação. Segundo o autor, o “melhor dos mundos” é aquele que permite, por um lado,

o gozo das garantias proporcionadas pela regulação das relações sociais, que

asseguram previsibilidade e segurança no plano dos intercâmbios intersubjetivos; e por

outro, não estabelece obstáculos à livre expressão das vontades individuais,

mantendo-as imunes às pressões exercidas por quaisquer aparatos coercitivos. Como

se vê, os princípios mencionados encerram disposições ontologicamente conflitantes.

Santos acredita que o desenvolvimento do Estado ao longo do século vinte pode ser

interpretado à luz do jogo de forças travado em torno de ambas. Assim, no período de

florescimento e consolidação do liberalismo clássico, o princípio da emancipação

logrou grande projeção, impulsionado pela crença na capacidade de autorregulação

dos mercados. Por outro lado, o Welfare State surgiu como resultado dos esforços

voltados ao fortalecimento dos mecanismos regulatórios (Estado, comunidade, etc.),

comprometendo, em alguma medida, a liberdade de iniciativa dos agentes econômicos.

Nesta perspectiva, as propostas contemporâneas de reforma do Estado tencionam

12

Além disso, não é possível minimizar, nessas condições, os riscos dos mecanismos de regulação serem instrumentalizados em benefício de grupos de pressão socialmente pouco representativos, atendendo a interesses estritamente privados, em detrimento da satisfação do interesse público.

53

restabelecer o equilíbrio entre os princípios mencionados, dando curso a acirradas

controvérsias teórico-conceituais e acerbas disputas ideológicas (Bento, 2003).

Na tarefa de definição do nível adequado de intervenção estatal na

economia, a teoria da escolha racional foi fartamente mobilizada durante os anos

noventa, contando entre seus defensores diversos autores que alcançaram grande

projeção nas discussões sobre as reformas. Esta teoria distingue-se por desconsiderar

“a importância teórica dos outros tipos de ação em favor de um tipo específico

denominado de ação racional com relação a fins, e de outros padrões de racionalidade

em nome da racionalidade instrumental-cognitiva” (idem, p. 97). De acordo com esta

perspectiva, a busca pela maximização dos interesses individuais, orientada pelo

pragmatismo instrumental face às conjunturas que se apresentam aos agentes, é o

princípio fundamental que determina os comportamentos tanto no âmbito da economia

quanto no da política e, portanto, a dicotomia entre Estado e mercado encerra, na

verdade, um epifenômeno. Destarte, a verdadeira questão resume-se a encontrar o

desenho institucional “ideal”, cujas implicações e desdobramentos subjacentes

estimulem a adoção de comportamentos socialmente desejáveis, tendo em vista que

os indivíduos atuam invariavelmente de forma racional. Isto significa, em última análise,

a instituição de incentivos e punições a determinados comportamentos, fazendo com

que as decisões racionalmente mais congruentes do ponto de vista individual sejam

também as que promovam o maior bem-estar possível, sem o comprometimento das

liberdades econômicas. A principal limitação deste tipo de argumentação, a par do

aviltamento de outras formas de racionalidade (talvez tão significativas quanto a

instrumental), reside na pouca atenção dada às profundas assimetrias de acesso a

informações fundamentais para as ações dos agentes individuais, o que compromete

sobremaneira a “racionalidade” das decisões assumidas.

Bresser Pereira, por sua vez, propôs definir o âmbito das regulações estatais

a partir dos diversos mecanismos de controle e coordenação econômicos e sociais

presentes nas sociedades contemporâneas. O próprio autor denominou sua proposta

de “lógica do leque de mecanismos de controle”. A partir da perspectiva funcional,

Bresser identificou “três formas de controle: o controle hierárquico ou administrativo,

que se exercer (sic) dentro das organizações públicas ou privadas, o controle

54

democrático ou social, que se exerce em termos políticos sobre as organizações e os

indivíduos, e o controle econômico via mercado.” (Ibidem, p. 37). A partir daí, o autor

estabeleceu uma hierarquia entre essas dimensões, elegendo como preferenciais as

formas de coordenação que se efetuam da maneira mais automática e difusa possível

e que, por esse motivo, prescindem da mobilização de instrumentos onerosos tanto do

ponto de vista econômico quanto do político – ou, em outras palavras, que dispensem a

adoção de políticas que consumam elevadas quantias de recursos públicos e/ou

produzam desgastes políticos aos governos responsáveis. A aplicação deste critério

resultou na seguinte classificação: “(1) mercado, (2) controle social (democracia direta),

(3) controle democrático, (4) controle hierárquico gerencial, (5) controle hierárquico

burocrático e (6) controle hierárquico tradicional” (p. 37).

Portanto, para Bresser Pereira, o mercado assoma, na maioria das

oportunidades, como o melhor mecanismo de regulação das relações econômicas e

sociais, devendo ser preterido somente quando valores fundamentais estranhos à

lógica da busca pela eficiência econômica estiverem ameaçados, como por exemplo, a

satisfação de um patamar mínimo de justiça distributiva, o atendimento das

necessidades materiais básicas de segmentos excluídos do sistema produtivo, entre

outros. A seguir, o autor considera o controle social o mais adequado ao

condicionamento das ações – e omissões – dos Estados, materializando-se, sobretudo,

a partir da organização da sociedade civil em associações e movimentos sociais que

defendam tanto prerrogativas exclusivamente corporativas, quanto interesses de

natureza geral. Não nos interessa, neste momento, discorrer sobre cada um dos

demais níveis de regulação indicados acima, mas apenas chamar a atenção para o

arcabouço teórico que orientou a elaboração e a implantação das reformas no Brasil.

O Plano de Reforma do Estado introduzido por Bresser Pereira pode ser

compreendido a partir de algumas definições básicas, que orientaram os novos

formatos institucionais propostos pelo autor. Primeiramente, Bresser definiu três áreas

distintas de atuação às quais o Estado se dedicou ao longo da segunda metade do

século vinte: “(a) as atividades exclusivas do Estado; (b) os serviços sociais e

científicos do Estado; e (c) a produção de bens e serviços para o mercado” (Pereira,

97, p. 22). Em relação a esta última, depois dos acirrados debates sobre a pertinência

55

da privatização de diversas empresas estatais nos anos noventa, observa-se

atualmente amplo consenso a respeito da subtração de atividades dessa natureza do

âmbito das competências do Estado. Assim, quaisquer atividades cuja receita obtida

mediante a venda de seus produtos – bens e/ou serviços – permita a cobertura integral

dos investimentos e dos custos operacionais incorridos em sua produção, devem ser

transferidas à iniciativa privada, que tende a desempenhá-las de maneira muito mais

eficiente do que o fizerem as organizações estatais nas últimas décadas. Nestas, a

administração dos negócios frequentemente se sujeitou a critérios de natureza política,

incompatíveis com a busca pelos melhores resultados econômicos. No contexto

brasileiro, as indicações para os principais cargos de direção das empresas estatais

foram usualmente envolvidas na lógica das trocas clientelísticas, destinadas a costurar

alianças políticas e a distribuir benefícios a apaniguados, em prejuízo da eficiência

técnica e econômica. É importante observar, porém, que esta tendência permanece

solidamente amalgamada à vida política nacional, a despeito da privatização de

diversas empresas públicas. No presidencialismo de coalização praticado no Brasil, em

que os presidentes eleitos conquistam uma votação significativamente superior ao total

de votos que sua coligação partidária obtém nas eleições para o Congresso Nacional, a

construção da governabilidade – isto é, da obtenção do apoio político necessário à

concretização de seus programas de ação – é efetuada mediante a farta distribuição de

cargos em órgãos e agências estatais a partidos que, em troca, passam a integrar a

chamada base aliada do governo (Limongi & Figueiredo, 1998). A magnitude desta

estratégia pode ser atestada pelo total de cargos comissionados que integram o quadro

funcional da União, conforme indicado na tabela abaixo:

Quadro de Referência do Poder Executivo Federal

Descrição Indicadores

Cargos de Direção e Assessoramento Superior - DAS 21.281

Percentual de DAS sem vínculo com o Estado 27,50%

Total de Cargos Comissionados 23.874

Total de Cargos e Funções de Confiança e Gratificação 81.820

Total de Servidores Públicos do Executivo Federal na ativa 869.752 Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Boletim Estatístico de Pessoal. Março de 2010 (Benini & Benini & Novaes, 2011, p. 227).

56

Estes números contrastam fortemente com padrões observados

internacionalmente. “Alguns estudiosos apontam que na média, em países como

França, Alemanha e Inglaterra, considerados países desenvolvidos e com uma

considerável rede de proteção social, os cargos de livre provimento do executivo

federal não passam de 500, enquanto que no Brasil estamos na ordem de 23 mil”

(Benini, idem, p. 228). Como se vê, o controle de cargos pelo Executivo federal,

instrumentalizado em função de interesses estranhos às exigências de eficiência e

eficácia administrativas, constituiu-se em um bastião em que os esforços reformistas

não lograram penetrar, a despeito de seu discurso em defesa do fortalecimento do

princípio meritocrático no âmbito da Administração pública. Os efeitos destes arranjos

para a racionalização dos serviços públicos e para o desenvolvimento de uma cultural

gerencial nas instituições estatais não podem ser subestimados. Édi Benini, Élcio

Benini e Henrique Novaes salientam que:

“tal „meritocracia‟ invertida é fonte de desmotivação, perplexidade e principalmente de alienação do

trabalho, dessa forma, há pouco ou mesmo nenhum incentivo a ideias inovadoras, impedindo o

crescimento profissional de quem poderá ser, sob a lógica de „cargos de confiança‟, uma futura ameaça

ao seu status” (p. 230).

As privatizações realizadas ao longo dos governos Fernando Collor e

Fernando Henrique Cardoso alienaram diversas empresas estatais, transferindo à

iniciativa privada a exploração de uma série de serviços de interesse público – como o

fornecimento de energia elétrica, de serviços de telefonia, bancos, etc. – e a extração

de recursos naturais. Em razão da grave crise fiscal que o acometia nesse período, o

Estado não dispunha de recursos para investir no incremento da produtividade e da

qualidade desses serviços. Por outro lado, à privatização de boa parte do patrimônio

público correspondeu, consequentemente, a criação de agências estatais destinadas a

regular e a controlar as empresas que assumiram a exploração comercial das

atividades mencionadas, de sorte a garantir a expansão das operações e a

observância de padrões de qualidade previamente definidos, bem como a regulação da

comercialização de produtos decorrentes de monopólios naturais, já que, nesses

casos, a formação de preços não se submete a regime concorrencial.

57

Em relação às funções que permanecem sob responsabilidade do Estado,

Bresser subdividiu-as em dois grupos distintos, conforme já indicado acima. As

atividades exclusivas do Estado são as que se submetem a regime de monopólio, ou

seja, que não admitem concorrência. Tratam-se, portanto, de atividades cuja execução

não pode ser realizada por entidades privadas, mesmo que não tenham finalidade

lucrativa e se destinem à satisfação de interesses públicos. A este grupo pertencem,

grosso modo, as funções associadas ao Estado liberal clássico, tais como: “poder de

definir as leis, poder de impor a justiça, poder de manter a ordem, de defender o país,

de representá-lo no exterior, de policiar, de arrecadar impostos, de regulamentar as

atividades econômicas, fiscalizar o cumprimento das leis” (Pereira, idem, p. 23).

Além destas, compete exclusivamente ao Estado a elaboração e a avaliação

de políticas econômicas, sociais e científicas, atividades confiadas a secretarias que

integram o chamado núcleo estratégico do Estado. Na área econômica, suas funções,

segundo Bresser Pereira, concentram-se, sobretudo, na adoção de estratégias que

garantam a estabilidade da moeda. Normalmente, na maioria dos países capitalistas,

esta incumbência é confiada aos Bancos Centrais: agências com elevado grau de

autonomia que regulam a oferta de moeda segundo as oscilações das taxas de

crescimento das economias nacionais, além de controlarem a disponibilidade de

moeda estrangeira no país, o que, eventualmente, exige a realização de intervenções –

como a compra ou a venda em grande escala de dólares – destinadas a conter

desequilíbrios acentuados no valor relativo das moedas. Ademais, os Bancos Centrais

atuam na regulação e controle dos sistemas financeiros nacionais, visando impedir o

desenvolvimento de bolhas especulativas ruinosas não apenas para as economias dos

países diretamente envolvidos, como também para todo o sistema financeiro

internacional. As duas últimas décadas foram pródigas em exemplos de eventos dessa

natureza.

As atividades que se associam à dimensão social e científica da atuação

estatal são objeto de políticas que se destinam a financiar serviços de saúde,

educação, assistência social, preservação do meio ambiente, previdência social, etc. A

prestação desses serviços não reveste o mesmo caráter monopolista que caracteriza

as atividades anteriormente mencionadas, já que a outras entidades – inclusive as que

58

almejam lucros – é facultada a possibilidade de oferecê-los. Entretanto, o fato de se

inserirem em ambiente concorrencial não dispensa a participação do Estado na

provisão desses benefícios para grande parte da população, cujas condições

econômicas inviabilizam o recurso ao mercado para a satisfação de suas

necessidades. Ademais, a atuação estatal responde a duas ordens de objetivos

essenciais, quer sejam: 1) por um lado, os serviços oferecidos satisfazem uma série de

garantias sociais intrinsecamente vinculados aos chamados Direitos Humanos

Fundamentais, cuja negligência avilta a própria dignidade das pessoas que deles se

encontram privadas, além de rebaixar o patamar civilizatório das sociedades que não

os proveem a todos os seus membros; 2) e, por outro, a fruição desses benefícios pelo

conjunto da população produz externalidades positivas essenciais ao desenvolvimento

socioeconômico do país. Como exemplo, é possível afirmar que a elevação do nível

cultural de todos os segmentos sociais, através do incremento da qualidade da

educação pública e da promoção de programas de apoio à produção científica e

cultural, eleva os níveis de produtividade do país, garantido maior competitividade de

suas empresas no mercado internacional.

Nesse ponto, Bresser Pereira introduz uma das mais importantes – e

controversas – inovações de seu Plano de Reforma. Como mencionado acima, a

atuação social do Estado se desdobra na prestação de diversos serviços, muitos dos

quais, mesmo não dispensando o afluxo dos fundos públicos, não precisam ser

executados diretamente por organizações estatais, já que não apresentam os

caracteres que distinguem as funções típicas do Estado liberal clássico. Por outro lado,

não convém que sejam confiados exclusivamente à iniciativa privada, já que se tratam

de bens cuja pura e simples mercantilização implicaria a exclusão de diversos

segmentos populacionais, que não possuem recursos suficientes para acessá-los via

mercado; por esse motivo, os serviços sociais e científicos do Estado, na maioria dos

casos, não podem ser objeto de privatização. A Nova Gestão Pública preconiza a

transferência da responsabilidade pela execução de tais atividades a organizações

sociais sem finalidades lucrativas – que recebem o título de organizações sociais (OS).

De acordo com Bresser Pereira:

59

“Se o seu financiamento [atividades das áreas social e científica] em grandes proporções é uma

atividade exclusiva do Estado – seria difícil garantir educação fundamental gratuita ou saúde gratuita de

forma universal contando com a caridade pública – sua execução definitivamente não é. Pelo contrário,

estas são atividades competitivas, que podem ser controladas não apenas através da administração

pública gerencial, mas também e principalmente através do controle social e da constituição de quase-

mercados” (idem, p. 25)

Este processo foi denominado “publicização”, de sorte a diferenciá-lo das

privatizações e terceirizações que também caracterizaram os movimentos de reforma

do Estado da década de noventa. Os ajustes que estabelecem os compromissos entre

a Administração e as organizações sociais assumem a forma jurídica de Contratos de

Gestão, nos quais são definidas as unidades de serviços, as metas de desempenho, os

padrões mínimos de qualidade e, inclusive, as áreas de flexibilização dos

procedimentos empregados na prestação dos serviços contratados.

As justificativas apresentadas por Bresser para a adoção deste tipo de

arranjo se remetem a uma segunda ordem de conceituações teóricas fundamentais à

sua argumentação. O autor insiste no caráter público dessas entidades – ainda que

sejam reguladas pelo Direito Privado – pois suas finalidades resumem-se à promoção

de interesses estritamente públicos. Ou seja:

“se definirmos como público aquilo que está voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que é

voltado para o interesse dos indivíduos e suas famílias, está claro que o público não pode ser limitado ao

estatal, e que fundações e associações sem fins lucrativos e não voltadas para a defesa de interesses

corporativos mas para o interesse geral não podem ser consideradas privadas” (ibidem, p. 25/26)

A partir das assertivas acima, Bresser Pereira sugere uma terceira forma de

propriedade no capitalismo contemporâneo, que se distingue das duas outras formas já

consagradas pela literatura especializada, ou seja, as propriedades privada e pública

(esta considerada como sinônimo de estatal). Trata-se da propriedade pública não

estatal, que se remete, evidentemente, às entidades que integram o terceiro setor.

De acordo com os defensores da publicização, ela oferece diversas

vantagens em relação à prestação direta de serviços pelas instituições estatais, tais

como:

60

1) As organizações sociais, tendo em vista a abrangência geograficamente

localizada de sua atuação, tendem a responder mais adequadamente às

necessidades específicas dos públicos por elas beneficiados, em oposição ao

distanciamento das administrações centralizadas, alheias às realidades objetivas

das localidades em questão. A centralização burocrática logrou apreciável êxito

durante o período que correspondeu ao apogeu da organização fordista de

produção, enquanto o elevado grau de homogeneidade social admitia a

produção massificada de bens e serviços – tanto pela indústria quanto pelas

organizações públicas. Ora, o adensamento da complexidade social observado

na segunda metade do século passado concorreu para a multiplicação das

identidades sociais e, consequentemente, para a diversificação das demandas

dirigidas ao Estado. Este é um dos fatores que tornam a descentralização uma

das questões menos controversas entre propostas concorrentes de reforma do

Estado, ainda que outras justificativas sejam complementarmente invocadas,

segundo a coloração ideológica de seus defensores;

2) A proximidade entre os prestadores de serviços e o público beneficiado enseja o

adensamento do controle social exercido sobre as entidades do terceiro setor

contratadas, cujos Conselhos de Administração contam, em tese, com a

participação de representantes dos próprios beneficiários, aos quais é facultado

o acompanhamento concomitante das despesas incorridas no custeio dos

serviços;

3) A administração interna e os procedimentos operacionais adotados pelas

organizações sociais não estão submetidos às injunções legais que engessam

as entidades estatais, o que as permite atuar com muito mais flexibilidade,

amoldando-se com maior celeridade às vicissitudes dos ambientes sociais onde

desempenham suas responsabilidades. Dessa forma, podem realizar a

demissão e a contratação de novos funcionários, remanejá-los internamente,

adquirir bens e serviços emergenciais, entre outras medidas administrativas, em

um prazo de tempo significativamente inferior ao que incorreria quaisquer órgãos

do Estado, vinculados aos morosos – e dispendiosos – procedimentos exigidos

por lei;

61

4) E, por fim, a consolidação de quase mercados, decorrente da criação de

ambiente competitivo entre as diversas organizações sociais existentes, que

disputam entre si o acesso às fontes de financiamento disponíveis, dentre as

quais os recursos oriundos dos fundos públicos são, de longe, os mais

significativos. A reprodução das condições de competitividade que caracterizam

o mercado das trocas privadas objetiva induzir a elevação dos padrões de

qualidade dos serviços prestados, além de estimular o surgimento de inovações

que concorram, a um só tempo, para a redução dos custos operacionais e para

o aumento da satisfação dos usuários. Aliás, a insatisfação destes, manifesta

por meio de reclamações dirigidas aos canais de ouvidoria da Administração e

por pesquisas de opinião, pode precipitar a rescisão do contrato firmado entre a

entidade em questão e o Poder Público, o que, no limite, ameaça a continuidade

das operações da primeira.

O último argumento apresentado é, sem dúvida alguma, bastante

problemático, porquanto não há garantias – tendo em vista a ainda frágil cultura

participativa que caracteriza o ambiente sociopolítico brasileiro – que as dinâmicas de

seleção e celebração de parceiras com as organizações sociais não sejam arrebatadas

pela força centrípeta das lógicas clientelísticas e de apropriação privada dos bens

públicos. Na verdade, as constantes denúncias de fraudes a procedimentos licitatórios,

geralmente com a participação de servidores públicos, tornam duvidosa a existência de

um autêntico mercado competitivo até mesmo nas contratações de bens e serviços

oferecidos por empresas privadas. Além disso, os interesses que se consolidam em

torno destas entidades tendem a se concentrar, acima de qualquer compromisso com a

satisfação do interesse público, na perpetuidade da própria instituição – e, num

segundo momento, na ampliação do raio de suas atividades. Esta tendência choca-se,

em grande medida, com a necessidade de torná-las permeáveis à participação popular

e de sujeitá-las ao controle social de suas operações financeiras. Neste contexto, as

práticas de publicização aproximam-se excessivamente da pura e simples terceirização

dos serviços públicos, pondo por terra as motivações que animaram o recurso às

entidades do terceiro setor.

62

A participação social que, em tese, deveria ocorrer por meio do recurso às

entidades do terceiro setor circunscreve-se, na prática, à transferência de

responsabilidades pelo desempenho de funções de natureza meramente gerencial,

destituídas de qualquer dimensão propriamente política. Bento, comentando algumas

experiências de participação comunitária inspiradas pelo gerencialismo em países

anglo-saxões, afirma:

“Neste contexto, descarta-se a busca por politizar a administração pública e a prestação de serviços.

Embora os objetivos declarados dessas iniciativas da nova governança revelem preocupação com a

qualidade de seus produtos, com a eficiência gerencial, com a reversão da cultura auto-refente da

burocracia, com o incremento da propriedade pública e com o estímulo à autoajuda, na realidade a

participação é funcionalizada em relação aos interesses da administração, a qual determina as opções,

os critério de seleção e mesmo as oportunidades para a participação. Noutro plano, traduzem a

colonização burocrática sobre a participação, transformando os cidadãos em agentes administrativos,

atribuindo-lhes um papel técnico senão mesmo econômico em vez de político.” (p. 223)

Além disso, no caso brasileiro, Ana Paula Paes de Paula (2005) salienta que

as reformas não atingiram de maneira significativa o insulamento burocrático dos

chamados núcleos estratégicos do governo, que permaneceram altamente refratários à

participação popular no processo de elaboração das políticas públicas. A autora conclui

que a dimensão sociopolítica foi quase totalmente negligenciada pelas reformas

levadas a cabo pelos três últimos governos federais, que se concentraram

principalmente na dimensão econômico-financeira. Por esses motivos, urge “pensar a

reforma do Estado a partir do arcabouço teórico-conceitual fornecido pelas formulações

da teoria democrática contemporânea, segundo a qual as eleições são instrumentos

necessários, mas não suficientes para garantir o controle dos governantes pelos

governados (...) Em consequência, a ênfase desloca-se para a necessidade de criar e

fortalecer novos arranjos institucionais que possibilitem o funcionamento da democracia

nos intervalos entre as eleições” (Diniz, 2001, p. 19)

Por fim, é importante registrar que, a despeito de alguns êxitos inegáveis (do

ponto de vista do plano original da reforma), sobretudo no campo da implantação de

mecanismos gerenciais e na celebração de parcerias com as organizações sociais, a

reestruturação organizacional planejada pelo MARE, não logrou atingir grande parte de

suas metas. Tal insucesso pode ser creditado basicamente a dois fatores:

63

1) Predominância da necessidade de ajuste fiscal, o qual – acreditavam diversos

atores com poder de veto no governo FHC – colidia com a reestruturação

organizacional planejada, não apenas porque esta demandava, em algumas

oportunidades, o dispêndio recursos indisponíveis no momento, tendo em vista o

caráter imperativo concedido ao reequilíbrio orçamentário e ao cumprimento das

obrigações financeiras contraídas junto aos organismos multilaterais de ajuda

financeira; mas porque a descentralização da execução das políticas públicas

dificultava o controle centralizado das burocracias pelos núcleos estratégicos do

governo. Como salienta Fernando Rezende, “a descentralização da gestão –

especialmente de orçamentos e de gestão de pessoal – visando a autonomia

decisória, responsabilização burocrática e accoutability de resultados não se

sintonizou com os propósitos de equilíbrio fiscal” (Rezende, 2009, p. 354). Este

obstáculo evidencia, ainda, as limitações da dimensão política da reforma do

Estado no Brasil, que não foi capaz de reverter o insulamento que caracterizam

as principais instâncias decisórias do governo federal;

2) O outro fator diz respeito às resistências internas interpostas por diversos

segmentos do funcionalismo público, preocupados com a repercussão das

novas ferramentas gerenciais sobre suas carreiras e sobre os privilégios

desfrutados até então. Reformas muito profundas, como as que pretendia

implementar o MARE, costumam despertar resistências acerbas, tendo em vista

a profunda instabilidade e as incertezas que despertam; destarte, quanto mais

drásticas as mudanças programadas, maiores as chances de insucesso.

Rezende conclui, em seu estudo, que:

“A questão dos controles assume o foco principal da resistência organizada. (...). Embora a

elevação da performance seja a motivação básica para a reforma,o modo específico pelo qual os

diversos atores percebem e calculam os custos e os benefícios gerados pela mudança da

estrutura de organização do controle, é fundamental para explicar o problema da falha no plano

da implementação. Quanto mais uma dada política de reforma propõe alterar radicalmente a

forma de controle que regula a relação entre implementação e formulação das políticas públicas,

maiores as chances para o insucesso das reformas administrativas, sobretudo aquelas em

contextos democráticos, de elevada fragmentação e descontrole, bem como marcados por um

legado de reduzida performance como ilustra o caso brasileiro” (idem, p. 360/361)

64

Capítulo 7 - Teorias da Democracia e Elitismo Democrático

7.1. - A Democracia Ateniense

A democracia surgiu há cerca de dois mil e quinhentos anos, na Grécia

Antiga, mais especificamente na cidade de Atenas, tendo se consolidado plenamente

sob o comando de Péricles, comumente apontado como o principal artífice desta forma

de organização política (Mossé, 2008), embora sua gestação e amadurecimento devam

ser associados a um complexo feixe de processos iniciados, pelo menos, algumas

décadas antes do início da carreira pública de Péricles, os quais, sem conduzirem

teleologicamente para os resultados que enfim se concretizaram, prepararam as

condições socioeconômicas que permitiram à polis ateniense trazer à luz um regime

político altamente revolucionário. Se analisada sob a perspectiva da longa duração

histórica, segundo o esquema interpretativo introduzido por Braudel, a aventura da

democracia antiga pode ser caracterizada como um fenômeno efêmero, além de

circunscrito a limites geográficos extremamente modestos, a despeito da notável

influência exercida por Atenas sobre as demais cidades-estados durante todo o período

denominado Antiguidade Clássica. Entretanto, desde seu surgimento, a democracia

tem provocado reações violentas, inflamando a imaginação política tanto dos que, ao

longo da história, esforçaram-se por recuperar e reintroduzir no ordenamento político

os princípios que a singularizaram, quanto dos que buscaram obstinadamente afastar

sua implantação, ressaltando as contradições internas que a tornam um regime

ingovernável e incapaz de garantir os bens políticos e sociais que fundamentaram seu

prestígio, passando ainda pelos que, extraindo de seu arcabouço principiológico alguns

elementos fundamentais, invocaram-na como forma de justificar e legitimar seus

projetos de poder.

A democracia ateniense assentou-se, fundamentalmente, no princípio da

soberania do demos; isto significa que a titularidade do poder político era atribuída ao

conjunto dos indivíduos alcançados pelo estatuto da cidadania, que a exerciam senão

de maneira plenamente congruente com suas exigências, ao menos em intensidade

jamais igualada por nenhum outro regime democrático na história. Na Atenas de

Péricles, a representação política, base das democracias contemporâneas, cumpria um

papel apenas marginal no sistema de administração pública da polis, já que era

65

facultado a qualquer cidadão manifestar suas inclinações diretamente acerca de uma

ampla variedade de assuntos, garantindo-se inclusive o direito à palavra nas

assembleias em que se deliberavam as decisões mais importantes da cidade.

O órgão máximo da vida política ateniense era denominado Bule, ou Conselho dos

Quinhentos, de cuja composição participavam cinquenta membros de cada uma das

dez tribos que dominavam a cidade. Este grupo de indivíduos era selecionado por meio

de sorteio, ao qual estavam aptos a participar todos os cidadãos com idade superior a

trinta e cinco anos. De forma a garantir a simetria política entre as tribos, o ano era

dividido em dez períodos de igual duração, conhecidos como pritanias; a

responsabilidade pela condução dos assuntos cometidos à assembleia era confiada a

cada uma das tribos, alternadamente, pelo intervalo de uma pritania. A sequência que

determinava a sucessão desses grupos à frente do Conselho era obtida por sorteio,

repetido ao final de cada ciclo anual. Este mesmo método era empregado diariamente

para a seleção do presidente da Bule.

As decisões proferidas pelo colegiado eram obtidas por meio de consultas

diretas a seus membros, que manifestavam sua posição erguendo as mãos, após

discussões que admitiam a participação de quaisquer cidadãos, e não apenas dos

membros do colegiado. As questões menos controversas podiam ser rapidamente

apuradas, pois as posições predominantes eram facilmente conhecidas através da

observação geral da assembleia nos momentos de votação. O mesmo não ocorria

quando os partidos em disputa congregavam números similares de defensores, tendo

em vista que cada votação poderia reunir milhares de participantes. Nesses casos,

“cumpria não negligenciar nenhuma das opiniões expressas, pois a decisão era tomada

pela maioria”. Esta forma de manifestação da soberania do demos ensejava, nas

disputas mais acirradas, diversas controvérsias, havendo registros de votações cujos

desfechos foram contestados pelas partes derrotadas (Mossé, 2008, pg. 71). Além

dessas desses pleitos abertos, mais frequentemente utilizadas, em alguns casos

específicos – como, por exemplo, os que envolviam a condenação ao ostracismo – a

manifestação das decisões individuais eram registradas em cacos de cerâmica,

recolhidos posteriormente para apuração do resultado final.

66

As atribuições do Conselho envolviam, ainda, o acompanhamento e o

controle da atuação dos diversos magistrados encarregados da execução das decisões

proferidas por aquele colegiado, assim como de outras atividades inerentes à

administração da cidade. O provimento dos cargos de magistrado ocorria de duas

maneiras distintas: na maioria dos casos, o método adotado era o sorteio, a exemplo

do que se observava nos demais postos diretamente vinculados à vida política da

cidade; em outros, porém, seus ocupantes eram selecionados através de eleições.

Estas exceções ocorriam apenas para atividades que não podiam ser desempenhadas

satisfatoriamente por leigos, isto é, por indivíduos que não dispunham dos

conhecimentos técnicos e da experiência profissional indispensáveis à consecução dos

objetivos inerentes à função; da administração financeira da cidade, por exemplo,

incumbiam-se magistrados admitidos por meio de eleições, exclusivamente (Raichelis,

1998).

Por fim, da organização da administração política em Atenas participava,

ainda, a Helaia, órgão incumbido do desempenho de atribuições judiciais, cuja

composição reunia aproximadamente seis mil cidadãos simultaneamente. A Helaia

normalmente era subdividida em câmaras, às quais era confiada a apreciação de

conflitos de natureza específica, de sorte a garantir maior agilidade ao julgamento das

questões que se lhe apresentavam. Mais uma vez, a seleção dos membros deste

importante órgão efetivava-se por meio do sorteio, cujas regras não admitiam a

discriminação de nenhum grupo pertencente à comunidade política; ou seja, a qualquer

cidadão assistia o direito de ser sorteado para integrar os quadros da Helaia,

inexistindo quaisquer exigências de natureza censitária ou nobiliárquica. Seus

integrantes se desincumbiam de suas atribuições no órgão ao final de um ano, sendo

substituídos por outros cidadãos também admitidos por sorteio.

Tendo em vista que o número de indivíduos considerados cidadãos era

relativamente pequeno – os milhares de estrangeiros residentes em Atenas, os

escravos e as mulheres pertencentes a quaisquer grupos étnicos permaneceram à

margem da vida política ateniense durante todo o período –, associado ao fato de que

o provimento dos cargos e das funções encarregadas das questões políticas e

administrativas da polis se dar quase exclusivamente por meio de sorteio, sendo

67

vedado a qualquer indivíduo exercer mais de dois mandatos em praticamente todos os

postos existentes – enfim, esse conjunto de circunstâncias permitia a todos os

cidadãos participar ativamente das discussões e das deliberações políticas da cidade,

de sorte que eram raros os membros da comunidade que, ao longo da vida, não

exerceram ao menos um dos cargos acima mencionados.

A Grécia antiga foi a primeira organização política a estabelecer uma

distinção clara entre as esferas pública e privada (a exposição da maneira e dos

significados dessa cisão no mundo grego é fundamental à compreensão da esfera

pública burguesa, que serviu de base à proposta de Habermas de recuperação da

democracia contemporânea). Em Atenas, a polis era considerada o reino da igualdade

e da liberdade, onde os cidadãos podiam discutir livremente junto a seus pares as mais

variadas questões de interesse geral. Neste espaço, como já indicado acima, o nível de

riqueza dos indivíduos não condicionava a influência que cada um exercia na definição

das questões de natureza pública; a força dos argumentos defendidos durantes as

discussões revelava-se, antes, como o fator determinante na formulação das decisões

coletivas. Ao invés da riqueza, ou de quaisquer outras características distintivas, o

elemento valorizado, nesse contexto, era a capacidade de persuasão, que trazia fama

e posteridade aos grandes retóricos, dentre os quais Péricles foi o mais célebre, sem

dúvida. Em contraposição, o universo do lar era caracterizado como o espaço das

necessidades, da ausência de liberdade, onde os homens permaneciam cativos de

suas necessidades de sobrevivência material. Segundo esta concepção, liberdade e

necessidade formam pares antagônicos; a existência de um implica, necessariamente,

a exclusão do outro. A reprodução econômica da sociedade ateniense era relegada ao

âmbito do oikos (do lar), confiada à exploração da mão de obra escrava e ao trabalho

das mulheres. Circunscritas à esfera privada, as dificuldades inerentes à obtenção do

sustento dos grupos familiares não figuravam, em hipótese alguma, entre as matérias

consideradas de interesse público e, portanto, jamais eram trazidas à discussão

pública. Destarte, a condição de cidadão, isto é, o exercício pleno das liberdades

cívicas, pressupunha a superação das restrições que caracterizavam o mundo do

oikos. Em outras palavras, aqueles cujas necessidades econômicas não estivessem

plenamente garantidas, dispensando-os da luta diária pela sobrevivência, não podiam

ser considerados livres e, portanto, não integravam a comunidade política da cidade.

68

Este entendimento radica-se na ideia de que a isenção necessária à participação

política não é possível senão aos que prescindem do auxílio alheio para seu próprio

provimento, permitindo-lhes assumir seus posicionamentos em razão exclusivamente

de convicções urdidas de forma racional a partir de amplos debates públicos, e não sob

a coação de compromissos contraídos junto a seus patrocinadores. Evidentemente, a

dependência econômica aqui considerada não abrange a que vincula o chefe do oikos

à sua parentela, porquanto nesta esfera as relações são marcadas pela desigualdade –

mais uma vez em oposição ao que se observa na polis –, estando as mulheres e os

escravos, responsáveis diretos pela produção econômica, submetidos à condição de

inferioridade e dependência em relação ao chefe do grupo (RAICHELIS, 1998, cap. I).

A despeito das inegáveis assimetrias que caracterizavam o universo social

ateniense, a descrição realizada anteriormente buscou chamar a atenção para os

arranjos institucionais forjados pela democracia de Péricles, que lograram dar

concretude ao ideal da igualdade política entre os cidadãos, impedindo que o poder se

concentrasse na mão de qualquer grupo ou indivíduo, malgrado as diferenças materiais

que os singularizavam. É bem verdade que contra esta afirmação pesa o fato de o

círculo de indivíduos que desfrutavam dos direitos de cidadania ser constituído por uma

minoria, dele estando excluídos os estrangeiros residentes em Atenas – embora

durante alguns breves períodos o benefício tenha sido estendido a muitos deles – os

escravos e as mulheres, as quais estiveram manietadas, durante todo o apogeu da

democracia ateniense, às injunções da reprodução material da sociedade e,

consequentemente, indisponíveis para o exercício das liberdades cívicas. É certo que

tais circunstâncias não podem ser minimizadas; entretanto, se considerada apenas a

sociedade política da polis, que congregava um número muitas vezes superior ao que

se observava nas elites das demais formas de organização política conhecidas, é

forçoso reconhecer que a pulverização do poder político alcançou níveis dificilmente

superáveis, sendo garantidas a cada cidadão as mesmas possibilidades de influir nas

decisões que afetavam os destinos da coletividade, fossem eles grandes proprietários

terra ou não, gozassem eles de conhecimentos especializados em quaisquer áreas ou

não.

69

7.2. - Teorias Elitistas e Democracia

O elitismo surge como resposta ao recrudescimento da visibilidade política

dos movimentos sociais – especialmente do movimento operário – que, a partir do

século dezenove, começaram a questionar os privilégios até então desfrutados pelas

aristocracias europeias. O acirramento dos conflitos de classe minou, gradualmente, as

hierarquias sociais que caracterizaram o Antigo Regime, solapando o prestígio dos

discursos que naturalizavam as diferenças entre os homens e justificavam, por um

lado, a dominação exercida por um seleto e restrito grupo de indivíduos e, por outro, a

sujeição pacífica de amplos segmentos sociais. Este período assistiu a universalização

do voto masculino e adulto em diversos países da Europa ocidental, bem como o

reconhecimento da igualdade jurídica entre todos os cidadãos pertencentes à nação,

independentemente do nível de rendimentos auferidos por cada um. Cerca de um

século antes, Tocqueville, ao analisar a sociedade estadunidense recém emancipada

da dominação inglesa, previra que o avanço da democracia – e da igualdade que a

fundamenta – representava um movimento irresistível, fadado a abater-se sobre toda a

Europa inexoravelmente. Este é, portanto, o contexto de surgimento e consolidação do

elitismo, cuja projeção acadêmica deveu-se, num primeiro momento, à influência

exercida pelas obras de três pensadores sociais do início do século passado: o

sociólogo franco-italiano Vilfredo Paretto, o cientista político italiano Gaetano Mosca e o

sociólogo alemão Robert Michels. A reação aos “perigos” intrínsecos à emergência das

classes subalternas, recebia, com esses autores, a “roupagem asséptica” da ciência.

Antes, porém, de comentarmos brevemente os principais argumentos da

chamada trindade do elitismo, cumpre-nos indicar que a repulsa frente ao surgimento

das massas no cenário político recebeu densidade filosófica através da obra de

Friedrich Nietzsche, já no final do século XIX. A obra do pensador alemão caracteriza-

se, em primeiro lugar, pelo recurso insistente ao irracionalismo, como forma de recusa

ao projeto iluminista de libertação do homem por meio da Razão. Em seu combate

contra o obscurantismo e o misticismo que predominavam na produção intelectual e na

organização social da Alta Idade Média, o Iluminismo acreditou que o cultivo da razão

poderia libertar a humanidade de toda a opressão que até então a subjugara. Ao final

do século dezenove e início do seguinte, entretanto, avultavam-se os episódios em que

argumentos perfeitamente racionais se tinham prestado a legitimar atos de flagrante

70

injustiça social, impondo sofrimentos atrozes a diversos indivíduos considerados

inocentes. Ora, frente a tais acontecimentos, em que medida a razão pode ser

considerada, de fato, superior a seu oposto, o irracionalismo? Eis a pergunta que

atravessa a maioria das elucubrações de Nietzsche e que dá a tônica de sua obra

filosófica, especialmente em livros como Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia

da Moral (1887).

O filósofo alemão rechaça, ademais, a possibilidade de existência da

verdade, imutável e objetiva: “os conhecimentos, as crenças, as instituições e os

discursos são apenas interpretações da forma que a vida adota para fazer experiências

sobre si mesma (afirmar-se, diversificar-se, modificar-se ou... negar a si mesma)”

(Choulet, 1996, p. 381). Portanto, as busca por verdades absolutas não podem resultar

senão em construções parciais e precárias, já que as coisas refletem, inevitavelmente,

as conjunturas e as relações de poder imanentes ao próprio processo de construção do

conhecimento.

Para Nietzsche, o princípio da vontade de poder, o desejo de sobrepor-se

sobre os demais homens, ocupa a centralidade que, no discurso iluminista, fora

reservado à Razão. Analisando sua obra, Luis Felipe Miguel (2002) salienta que, para o

pensador alemão, “o objetivo que guia a ação dos organismos vivos – ou das

sociedades – não é a mera autoconservação, como muitos pensaram, mas a busca

pela própria superação, o „tornar-se mais‟” (p. 488). As hierarquias sociais baseiam-se,

portanto, na vontade de poder que cada indivíduo manifesta, existindo naturalmente um

pequeno contingente de homens em que esta qualidade atinge patamares

sensivelmente superiores ao da vontade medíocre das massas. É este fator que lhes

concede o “direito” de assumir os principais postos de comando da sociedade e do

Estado. De acordo com Nietzsche, a organização social deve arquitetar-se de modo a

garantir condições favoráveis para que as pulsões de dominação desses indivíduos

não encontrem obstáculos, permitindo-lhes realizar obras extraordinárias, condizentes

com a magnitude de suas vontades de poder. Os grandes homens jamais refreiam

suas ambições pessoais em virtude de escrúpulos de piedade ou altruísmo; a

voracidade de seus desígnios não pode ser mitigada por obstáculos de natureza moral,

a qual se presta exclusivamente a disciplinar o comportamento da plebe ignara, cujo

71

“instinto de rebanho” a predispõe naturalmente à subserviência, à sujeição ao comando

exercido pelos grandes homens. Por essas razões, o filósofo conclui que a sociedade é

inexoravelmente dividida “em vencedores e perdedores, e a democracia é uma

aberração, uma „decadência ou diminuição‟ do homem” (idem, p. 489).

Nietzsche entende que o principal problema da segunda metade do século

dezenove é, justamente, a banalização dos episódios de insubmissão das massas ao

comando dos homens superiores, ou seja, a contestação das hierarquias sociais que

emanam, em última análise, da própria natureza das sociedades humanas. Os

movimentos da classe trabalhadora, ao rejeitarem o papel que lhes cabia

desempenhar, colocavam em risco a própria continuidade da civilização ocidental.

Diante desse quadro, restava às elites reunirem forças para repelir definitivamente a

chamada “rebelião dos escravos”, que tencionava manietá-la à mediocridade de sua

moralidade covarde.

Apesar da violência de sua argumentação e do estimulo anárquico e obscuro

de suas obras, Nietzsche granjeou diversos simpatizantes, não apenas entre filósofos e

cientistas sociais, como também entre poetas, políticos, artistas, entre outros

igualmente seduzidos pela ideia de que a posição social privilegiada de que

desfrutavam não podia ser atribuída à conjugação venturosa de circunstâncias

aleatórias, mas às suas próprias qualidades intrínsecas. A obra do filósofo alemão, tal

como a dos elitistas que se lhe seguiram, ofereciam subsídios intelectuais e científicos

para a legitimação das relações de dominação que caracterizavam as sociedades do

período.

Dentre as obras associadas ao elitismo político que obtiveram maior

repercussão, a primeira delas, Sociologia dos Partidos Políticos, de 1911, foi escrita por

Robert Michels, autor cuja trajetória política iniciou-se, paradoxalmente, como militante

do partido socialdemocrata alemão (SPD), de orientação socialista, no qual exerceu

atuação destacada em diversos de seus congressos. Sua obra clássica dedica-se,

justamente, a analisar a estrutura interna do PDS, levando-o a concluir que qualquer

movimento político, ao organizar-se, conduz-se necessariamente à burocratização e à

centralização do poder nas mãos de um pequeno número de associados, afastando os

demais membros dos processos decisórios da instituição. Para o sociólogo alemão, as

72

demandas por eficiência administrativa pressionam no sentido da especialização das

funções internas de qualquer associação política, o que resulta na constituição de um

pequeno comitê diretivo e a criação de um corpo funcional exclusivamente dedicado às

necessidades operacionais da organização, rigidamente estruturado segundo níveis

hierárquicos. Se, por um lado, estes processos permitem o adensamento da

capacidade de ação dos partidos, alavancando sua visibilidade e seu sucesso eleitoral,

por outro, concorrem para a formação de um núcleo dirigente que, gradualmente, se

descola das bases sociais que sustentavam o partido. Os membros desse núcleo

desenvolvem interesses vinculados às posições que ocupam nas estruturas

burocráticas, que já não mais coincidem com os interesses dos segmentos sociais aos

quais deveriam servir. Líderes e demais funcionários da organização partidária passam

a atuar fundamentalmente em favor da preservação do status e dos privilégios que sua

nova condição lhes assegura, sufocando as possibilidades de participação dos demais

membros do partido, que veem como uma ameaça a seus propósitos conservadores.

Este processo foi denominado por Michels como a “lei de ferro das oligarquias”. O

desalento que se abateu sobre o autor a partir do resultado de suas pesquisas, fê-lo

abandonar os ideais democrático e socialista, além de aproximá-lo do fascismo italiano,

país onde construiu a maior parte de sua carreira acadêmica.

Embora tenha atribuído a suas descobertas a dimensão de uma regra

categórica e inexorável, é importante ressaltar, mais uma vez, que as generalizações

Michels fundamentam-se exclusivamente na experiência do partido socialdemocrata

alemão. As duas últimas décadas têm assistido, por outro lado, o surgimento de

diversos movimentos sociais que se distinguem justamente pela rejeição do modelo

burocrático de organização; ao invés das rígidas estruturas hierárquicas e da

especialização das funções administrativas, observa-se cada vez mais a adoção de um

padrão horizontal de relacionamento entre os membros do movimento, o qual, na

maioria das vezes, sequer possui um líder formalmente constituído. Os movimentos de

protesto contra a globalização econômica que se manifestam nos países

desenvolvidos, sobretudo durante encontros que reúnem lideranças governamentais de

diversos países, costumam assumir esta nova configuração. De qualquer maneira,

como salienta Miguel (idem), “Michels tocou em um ponto crucial para a implementação

da democracia, que é a relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil

73

para analisar o desgaste atual dos partidos, que pode ser creditado aos vícios que ele

descreveu” (p. 497).

O segundo autor de grande projeção do elitismo político foi Vilfredo Pareto,

cuja principal obra, Tratado de Sociologia Geral, foi publicada pela primeira vez em

1916. Pareto objetivava, fundamentalmente, inaugurar uma verdadeira ciência da

sociedade a partir do modelo fornecido pela Química; em outras palavras, sua principal

ambição era identificar os elementos fundamentais que explicavam a organização e as

transformações das sociedades humanas, tal como o comportamento e as

propriedades de átomos e elétrons permitiam compreender os fenômenos estudados

pela Química. Um dos pressupostos básicos defendidos pelo autor defende que as

ações humanas têm, quase sempre, caráter irracional. As motivações apresentadas

pelos agentes são, na verdade, construções a posteriori – denominadas por Pareto de

derivações – que não presidiram efetivamente os acontecimentos que visaram

justificar. O que determina, de fato, o comportamento humano são partículas eternas e

imutáveis da personalidade, chamadas de resíduos, as quais se combinam de variadas

maneiras em todos os indivíduos.

O sociólogo franco-italiano identifica um total de 52 resíduos, os quais, após

classificá-los e agrupá-los em grupos distintos, resultam em dois padrões fundamentais

de personalidade: a que define os indivíduos integrantes da Classe I e a que determina

o pertencimento à Classe II. O primeiro grupo caracteriza-se pela argúcia e pela

flexibilidade de seus membros, o que os tornam hábeis negociadores, capazes de

costurar compromissos políticos favoráveis a seus projetos de poder. Já os do segundo

grupo, ao contrário, mostram-se particularmente refratários a arranjos dessa natureza e

apresentam comportamentos frequentemente violentos e intransigentes. “Assim, o

modelo „científico‟ de Pareto reduz-se ao velho tropo das raposas e dos leões, presente

no pensamento clássico e retomado na Renascença, entre outros por Maquiavel”

(idem, p. 492).

Outro aspecto relevante da obra ora comentada diz respeito à interpretação

que seu autor faz acerca do conceito de elite. Para Pareto, cada ramo da atividade

humana possui uma elite, que é constituída pela reunião dos membros que a exercem

com o mais elevado grau de excelência. O pertencimento à elite não está condicionado

74

à influência que seus membros exercem sobre seus pares, ou sobre a sociedade de

maneira geral, como vulgarmente se imagina. Na verdade, basta que o indivíduo

desempenhe suas atribuições profissionais e/ou intelectuais de acordo com os mais

altos padrões de qualidade que são exigidos em seu ramo de atividade. O autor insiste

que toda e qualquer atividade humana possui sua própria elite, independentemente do

prestígio social que o ramo ao qual se dedica desfruta. Congruente com seu

compromisso de neutralidade (pseudo)científica, a teoria de Pareto sequer estabelece

uma hierarquia entre as diversas elites existentes; por esse motivo, a elite dos

financistas se equivale, em termos objetivos, ao grupo dos indivíduos que melhor

desempenham, por exemplo, a atividade de varrição de logradouros públicos. O fato de

o primeiro ramo permitir o acúmulo de riquezas materiais e de amplo reconhecimento

social, não faz com que seus mais destacados integrantes participem de uma “elite

superior” à formada pelos membros mais bem-sucedidos da segunda.

Há, entretanto, uma diferença fundamental entre as elites existentes: a que

separa as governantes das que permanecem alijadas dos mecanismos de dominação

do Estado. A este respeito, o sociólogo franco-italiano ressalta, em primeiro lugar, que

o poder é necessariamente monopolizado por um pequeno grupo dirigente, sendo

ilusórias as pretensões de pulverizá-lo entre os diversos segmentos que compõem o

universo social. A seguir, Pareto introduz sua célebre – e há muito desacreditada –

teoria da “circulação das elites”, segundo a qual a estabilidade dos governos depende

do equilíbrio sempre precário entre a astúcia e a disposição para o emprego da força.

Dito de outra maneira, os governos necessitam de indivíduos de ambas as Classes

anteriormente mencionadas, em composições que se preordenem a neutralizar a

ascendência excessiva de qualquer uma das duas. Entretanto, arranjos deste tipo

estão inexoravelmente fadados a perdurarem por um período limitado de tempo, dando

início a um ciclo de predomínio crescente de indivíduos da Classe I, que, após cooptar

os melhores indivíduos das principais elites existentes, iniciam um processo de

remoção dos membros da Classe II dos principais postos de comando do Estado, já

que estes não se dobram a compromissos políticos e mantêm-se inflexíveis ante as

manobras dos primeiros. Ao verem-se marginalizados dos aparatos do poder estatal,

os leoninos constituem uma contra-elite que, com o passar do tempo, reúne forças

75

capazes de desferir um golpe mortal ao governo das raposas (as revoluções), dando

início a um novo ciclo de circulação das elites.

De acordo com Pareto, este processo é perene e imutável. As roupagens

dos acontecimentos históricos são, de fato, bastante variadas; o motor das grandes

transformações sociais, no entanto, permanece sempre o mesmo: a eterna circulação

das elites. Destarte, as grandes revoluções, em qualquer período histórico e

independentemente do substrato ideológico que as justificaram, não representam

senão mais um capítulo desse movimento eterno. Como podemos observar, o autor

não concebe a possibilidade de o poder político não ser exercido exclusivamente por

uma pequena elite dirigente, além de não conceder qualquer papel relevante à

participação popular nos processos de transformação política, que se devem

exclusivamente a atritos entre elites concorrentes.

Por fim, o último dos autores clássicos do elitismo, Gaetano Mosca, cuja

principal obra é História das Doutrinas Políticas, publicada em 1927, defende que o

domínio de uma minoria sobre todo o restante da população deve-se à sua capacidade

de organização. Ora, o acesso ao poder político exige, necessariamente, a organização

do grupo social que objetiva conquistá-lo, de modo a coordenar e racionalizar suas

ações. Fazê-lo, entretanto, implica necessariamente a constituição de uma pequena

elite dirigente, a qual, ao alcançar os principais postos de comando do Estado,

concentra em suas mãos todo o poder político, dele excluindo inclusive as bases cujos

interesses invocam, apenas no plano discursivo, para legitimar suas manobras. Miguel

observa que “a teria de Mosca também investe contra as „ilusões‟ do movimento

operário, que se propunha reunir a maioria da população e levá-la ao poder.

Impossível, segundo ele, já que a maioria nunca governa, no máximo pode entronizar

outra minoria. Portanto, é uma teoria conservadora” (p. 496).

O elitismo político é importante para o estudo das doutrinas democráticas

porque está umbilicalmente associado à concepção de democracia que se tornou,

desde sua elaboração, hegemônica não apenas nos meios acadêmicos, como também

no plano das representações sociais. Seu principal responsável foi o economista

austríaco Joseph Schumpeter, que, em 1942, veiculou-a em seu livro mais conhecido:

Capitalismo, Socialismo e Democracia. É bem verdade que sua teoria da democracia

76

ocupa apenas três capítulos da obra: o suficiente, entretanto, para revolucionar o

conceito de maneira duradoura, de tal sorte que, a despeito das críticas de que foi

objeto desde então, permanece extremamente influente tanto no âmbito dos debates

filosóficos quanto no da organização das instituições políticas. Para Miguel, esta obra

representa um verdadeiro “divisor de águas, já que, a partir dela, qualquer estudioso da

democracia tem que se colocar, em primeiro lugar, contra ou a favor das teses

schumpeterianas. Entre aqueles que foram influenciados por elas, de diferentes

maneiras, estão nomes do peso de Giovanni Sartori, Robert Dahl e Anthony Downs” (p.

498/99, grifos do autor).

O contexto em que o livro em questão foi lançado – e que certamente

influenciou as idéias nele apresentadas – favoreceu sua rápida difusão, bem como a

entusiasmada acolhida que recebeu em praticamente todo o mundo, porquanto as

ascensões do nazismo e do fascismo italiano eram interpretadas como o resultado do

excesso de participação popular na política. Além disso, tanto a União Soviética,

quanto os Estados Unidos ingressaram na Segunda Guerra Mundial sob a bandeira da

defesa da democracia. Após a vitória dos dois países no conflito, o mundo ocidental

carecia apresentar-se como o verdadeiro promotor deste modelo de organização

política e social. Entretanto, pretendia fazê-lo sem assumir todas as implicações que,

até aquele momento, envolviam o imaginário democrático, pois este, em muitos pontos,

conflitava com as demandas da acumulação capitalista. Ora, o livro do economista

austríaco se presta perfeitamente à realização desta finalidade, qual seja: a de

preservar os aspectos formais dos regimes democráticos esvaziando-os,

concomitantemente, de seu significado substantivo. Em outras palavras, na pena de

Schumpeter, a democracia se resume a um mero mecanismo de seleção das elites

políticas, dispensando permanentemente o concurso da população na administração

dos negócios públicos.

As teses de Schumpeter baseiam-se, inicialmente, na refutação da chamada

“doutrina clássica da democracia”, que, segundo o autor, definia o conceito em questão

como um modelo de organização política voltada à manifestação da soberania popular

e à realização do bem comum. Já nesta primeira aproximação, o economista austríaco

imagina identificar uma impossibilidade insuperável, já que:

77

“não há, para começar, um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou que possa

aceitar por força de argumentação racional. Não se deve isso primariamente ao fato de que as pessoas

podem desejar outras coisas que não o bem comum, mas pela razão muito mais fundamental de que,

para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente significará coisas muito diversas. Esse

fato, ignorado pelo utilitarista devido à estreiteza de ponto-de-vista sobre o mundo dos humanos,

provocará dificuldades sobre as questões de princípio, que não podem ser reconciliadas por

argumentação racional” (p. 301)

Além disso, para o autor, os indivíduos comuns sequer logram formar

opiniões concretas a respeito de assuntos de natureza política. Seu âmbito de

preocupações restringe-se às questões práticas do cotidiano, que se remetem

exclusivamente ao plano de suas relações intersubjetivas e às injunções do mundo do

trabalho. Dessa forma, ainda que lhes fossem garantidas as oportunidades de

manifestarem-se acerca dos grandes desafios enfrentados pelo Estado, os indivíduos

ordinários certamente não as aproveitariam, pois “o cidadão típico (...) desce para um

nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo da política. Argumenta e

analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na

sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente” (p. 313)

Schumpeter chama a atenção, ainda, para o fato de que as massas são

extremamente suscetíveis aos apelos da propaganda política – como o atestam os

sucessos obtidos pela máquina de propaganda do regime nazista. Sem embargo da

racionalidade de que são sujeitos no plano de seus assuntos particulares, os

indivíduos, ao serem absorvidos pela massa, passam a comportar-se irracionalmente,

permanecendo à mercê de paixões e preconceitos subterrâneos; destarte, tornam-se

presas fáceis para os aparatos de manipulação política de massa.

Tendo em vista a incapacidade congênita dos indivíduos comuns para a

compreensão de assuntos de natureza política, Schumpeter propôs reduzir a

democracia a um conjunto de mecanismos eleitorais que não permitem a participação

direta na condução dos rumos políticos da nação, mas tão somente a seleção das

elites que se incumbirão de dirigi-la – estas sim compostas por um reduzido número de

indivíduos cujas faculdades intelectuais superiores os capacitam a dominar os assuntos

de competência estatal. Trata-se da chamada democracia concorrencial, que se

resume a institucionalizar a competição entre grupos políticos rivais no mercado

78

eleitoral. Ora, na prática, a operação intelectual forjada pelo economista austríaco

concretiza engenhosamente a fusão entre o princípio fundamental do elitismo – isto é,

a assertiva de que apenas uma minoria pode governar – e os fundamentos básicos da

organização política democrática, ainda que, para tanto, sacrifique o conteúdo

substantivo que distinguira este tipo de regime na história do pensamento político.

Miguel conclui que:

“o modelo desenhado por Schumpeter é um retrato bastante fiel dos regimes políticos ocidentais, que

permite que eles se apresentem como verdadeiras democracias. Mas é, de fato, um rebaixamento do

ideal democrático. Significa a negação da possibilidade de qualquer forma substantiva de soberania

popular” (idem, p. 502).

7.3. - Recuperação da Esfera Pública

As novas propostas de recuperação do fundamento substantivo da

democracia decorrem, sobretudo, da retomada do conceito de esfera pública, relegada

à marginalidade pelas concepções defendidas por Schumpeter e demais teóricos da

“democracia elitista”. Esta retomada conheceu duas vias distintas; a primeira delas foi

minuciosamente desenvolvida pela filósofa alemã Hannah Arendt, e caracteriza-se,

sobretudo, pela recuperação dos sentidos atribuídos pelos gregos antigos para o

conceito em questão. A outra trilha encontrou seus primeiros desenvolvimentos na

obra clássica do também alemão Jurgën Habermas, Mudança Estrutural da Esfera

Pública, na qual o autor investe na fecundidade da esfera pública burguesa constituída

ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas desfigurada no século seguinte em razão de

progressiva colonização pelos discursos economicista e tecnicista de que foi objeto.

Nos parágrafos seguintes procuraremos esboçar os principais argumentos

apresentados por ambos os autores, centrando-nos principalmente na proposta de

Habermas, já que esta, a despeito das diversas críticas que expuseram suas principais

inconsistências, exerce ainda forte influência sobre os debates contemporâneos acerca

da chamada democracia deliberativa.

Para Arendt, na modernidade, o único elemento comum aos indivíduos é o

fato de que todos possuem interesses particulares, os quais dificilmente aceitam

submeter às restrições e concessões inerentes aos processos de construção de

projetos coletivos. A autora ressalta a profunda atomização social que caracteriza as

79

sociedades capitalistas desde a segunda metade do século passado. Os interesses

particulares sobrepõem-se, invariavelmente, ao bem público, prevalecendo a satisfação

das pulsões de consumo estritamente individualistas. Nesse contexto, “a distinção

entre esfera pública e esfera privada deu lugar à indivisa e monolítica esfera social” (p.

185). A situação descrita por Arendt contrasta frontalmente com a vida política da polis

grega, em que ambas as esferas, como já indicado na parte incial deste capítulo,

apresentavam contorno bastante nítidos, inexistindo pontos de interpenetração entre

público e privado: este circunscrito ao universo doméstico, vinculado à obtenção da

subsistência material dos indivíduos; aquele integralmente dedicado à discussão dos

interesses públicos e, portanto, refratário à manifestação pura e simples de disposições

particulares ou corporativas.

A proposta de Arendt, grosso modo, caminha na recuperação justamente

desta concepção de espaço público, que não admite que interesses particulares,

forjados em razão das condições específicas de inserção dos indivíduos no sistema

produtivo e social, sejam patrocinados em seus fóruns de discussão e deliberação.

Arendt não reconhece a função política como salvaguarda da autonomia

individual contra o poder, tal como preconizado pela ideologia burguesa (anteparo

contra as arbitrariedades perpetradas por agentes públicos, que exorbitam de suas

funções e cometem abuso de poder). O poder não pode ser limitado, segundo a autora.

À primeira vista, esta frase parece associar-se a concepções totalitárias de organização

política. Não se trata disso, evidentemente. Seria certamente bastante surpreendente

que uma pensadora judia contemporânea à Segunda Guerra Mundial e, portanto,

observadora privilegiada do Nazismo e do Holocausto, desposasse posições dessa

natureza. Para compreendê-la adequadamente, é necessário conhecer a concepção de

poder assumida por Arendt.

Para a eminente filósofa alemã (1973), o poder “corresponde à capacidade

humana não somente de agir mas de agir em comum acordo” (p. 123). Nesse sentido,

“poder” foge completamente à esfera privada, adquirindo sentido e significado apenas

na esfera pública. “O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo

e existe somente enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que uma

pessoa está „no poder‟, queremos dizer que está autorizado por um certo número de

80

pessoas a atuar em nome delas. No momento em que o grupo do qual se originou a

princípio o poder (potestas in populo, sem o povo ou um grupo não há poder)

desaparecer, „seu poder‟ também some” (p. 123). Ao contrário do que geralmente se

admite, poder não significa dominação; não se refere às relações hierárquicas de

comando e obediência; não se relaciona umbilicalmente com violência. Pelo contrário.

Segundo Arendt, poder e violência são dois fenômenos não somente distintos mas

também opostos, na medida em que onde uma predomina completamente, o outro está

ausente. A esfera pública não é um espaço de violência, mas de debate e persuasão

por meios não-violentos, o que se coaduna perfeitamente com a definição de

Aristóteles, segundo a qual, o homem é um ser político e um ser dotado de fala.

As principais críticas às concepções de Arendt se referem, nesse caso, ao

fato da autora não admitir que interesses particulares sejam sequer discutidos na

esfera pública. Ela considera que a sociedade civil não pode realizar a devida

mediação entre o Estado e a esfera privada, já que as dissimetrias de poder

subjacentes às dinâmicas das disputas societais jamais permitiriam a satisfação de

interesses efetivamente públicos. Resta, de qualquer maneira, a dificuldade inerente à

definição de quais assuntos envolvem razões essencialmente privadas e, portanto, não

devem ser tratadas nos fóruns de discussão coletiva.

A concepção de Habermas a respeito de uma esfera pública, por sua vez,

baseia-se justamente na experiência burguesa, sobretudo no momento em que a

burguesia logrou separar o Estado da sociedade civil (entre os séculos XVII e XVIII):

esta última formada por indivíduos pensantes que se reuniam regularmente para

discutir assuntos de natureza pública, a partir de procedimentos argumentativos e

racionais. Nesse sentido, sua proposta é diametralmente oposta à apresentada por

Arendt, que utiliza como modelo a esfera pública forjada pelos gregos antigos, tal como

já indicado anteriormente.

O que seduz Habermas é a possibilidade de separação entre Estado e

sociedade civil, o que enseja o “controle sobre a atividade governamental e

administrativa, a crítica e, enfim, demandar legitimidade” (Bento, idem, p. 191).

81

Habermas identifica três níveis distintos de mediação entre Estado e

sociedade civil: a família, a esfera pública literária e a esfera pública burguesa. Os

séculos XVIII e XIX assistiram à consolidação da representação idealizada da família

burguesa como o espaço da intimidade, da solidariedade, onde os indivíduos podem,

enfim, se despir dos papéis que são coagidos a assumir em ambientes públicos. O

universo doméstico assoma como o espaço em que não predominam relações de

dominação, ou seja, onde o poder não é exercido por nenhum de seus membros, que

convivem cotidianamente como iguais, ao contrário do que ocorre no plano das

relações econômicas e políticas. Esta é, na verdade, uma concepção marcada por uma

espessa carga de idealização: tal como se observa no “mundo da rua”, as relações

entre os membros do grupo familiar são caracterizadas por uma profunda assimetria de

poder, ainda que nem os dominadores nem os dominados a percebam. Entretanto, a

representação da não incidência do poder é essencial para a constituição das esferas

públicas burguesas, nas quais se almeja, em última análise, extirpar as relações de

dominação exercidas pelo Estado.

Pode-se afirmar que este processo testemunha o deslocamento do lócus da

liberdade do universo público para o privado, promovendo a completa inversão do

padrão de organização sociopolítico observado na Atenas de Péricles.

De acordo com o pensador alemão, o primeiro elo de transmissão entre a

família e a esfera pública se dá através das discussões literárias, as quais foram

gradualmente deslocando-se da intimidade dos espaços estritamente domésticos, onde

permaneciam confinadas, para os acalorados ambientes dos cafés, solões de literatura,

entre outros espaços públicos que, nesse período, começavam a se vulgarizar nos

principais centros dos países capitalistas da Europa setentrional (sobretudo França e

Inglaterra). Um dos principais temas sobre o qual se debruçou a literatura burguesa do

século dezenove foi justamente a intimidade das relações familiares, contribuindo

sobremaneira para a cristalização (e certamente sendo influenciada por ela) da

representação já mencionada, isto é, da noção de que todos os dissabores

experimentados pelos indivíduos em suas atividades públicas (especialmente as

relacionadas ao universo do trabalho), não o acompanhavam quando, no início da

noite, cruzavam a soleira da porta de casa e, enfim, se entregavam ao aconchego do

82

lar, desfrutando da espontaneidade e da descontração que a rua lhes negara. São

justamente estes temas que são objeto das discussões literárias que ocorrem nos

novos ambientes públicos.

O fundamental, nesse caso, é a atmosfera que prevalece nesses debates,

nos quais predominava a igualdade entre os participantes das “disputas”, conduzidas

segundo a lógica da confrontação entre argumentos racionais, ou seja, pelas tentativas

de persuadir os participantes das discussões exclusivamente em razão da força dos

argumentos defendidos, sem o recurso às relações de poder que predominavam

alhures.

Logo, porém, às controvérsias literárias acrescem-se os debates acerca de

assuntos políticos, abordando tanto as decisões adotadas pelo Estado como o

comportamento de diversas autoridades públicas. A vulgarização deste tipo assunto

não transforma os cafés e os salões literários em plataformas conspiratórias, utilizadas

como base para a elaboração de planos atentatórios aos regimes políticos instituídos.

Na verdade, a esfera pública forjada por essa via não se preordenava à tomada do

poder, à constituição de estratégias para a assunção dos principais postos políticos do

Estado. Tratava-se, antes, de exercer o controle do poder, de sujeitá-lo à crítica,

forçando-o a se justificar perante um público cujas discussões se desenvolviam em

ambientes não atreitos às pressões exercidas por forças coercitivas. Tal como afirma

Bento, “na linha que conduz da família até a esfera pública, tanto literária quanto

política, passando pelas relações econômicas de mercado, um mesmo princípio que se

desenvolve e evolui sem solução de continuidade e que se constitui, segundo

Habermas, o núcleo do ideal da modernidade: a construção de espaços neutros em

relação ao poder e emancipados em relação à dominação, mesmo quando na

sociedade burguesa esse ideal nunca tenha sido realizado plenamente” (p. 220).

É importante salientar que a principal limitação da esfera pública burguesa

se refere à estrita faixa de indivíduos admitidos aos debates. Isto porque a participação

não era viável aos não alfabetizados, já que, em seus primórdios, a esfera pública se

consolidou como um espaço de discussões literárias, e, num momento posterior,

quando a política tornou-se o tema dileto de seus participantes, os debates passaram a

ser alimentados pelos textos da florescente imprensa do período – favorecida pelo

83

desenvolvimento de novas técnicas tipográficas – sobretudo na Inglaterra, onde a

atividade jornalística, a partir do século XVII, não esteve submetida a severos controles

por parte do Estado, o que favoreceu a livre circulação de ideias e de concepções

políticas, ainda que abertamente contrárias às professadas pelos grupos políticos

dominantes.

Além disso, a esfera pública burguesa foi progressivamente tolhida ao longo

dos dois últimos séculos em razão da confluência de dois processos distintos, mas

complementares. Por um lado, verificou-se a “expansão de um estado intervencionista

que assumiu cada vez mais um amplo raio de funções de bem-estar” e, por outro o

“crescimento massivo das organizações industriais que tomaram cada vez mais um

caráter semipúblico” (Thompson, 2002, p. 147). As lógicas subjacentes a esses dois

“subsistemas” (o burocrático e o economicista) colonizaram progressivamente os

espaços de discussões públicas, subtraindo-lhes a espontaneidade e a isenção de

poder inerentes ao chamando “mundo da vida”, isto é, o espaço das tradições, das

concepções não discutidas, do pré-conhecimento implícito, enfim, do pano de fundo

cultural comum a todos os indivíduos. Thompson (ibidem) ressalta que esses

desenvolvimentos:

“fizeram nascer uma esfera social repolitizada, em que os grupos de interesse organizados lutam por

uma fatia mais ampla dos recursos disponíveis, de modo que elimina, em grande parte, o papel de um

debate público permanente entre os indivíduos particulares. Ao mesmo tempo, as instituições que numa

época propiciavam um fórum para a esfera pública burguesa desapareceram ou sofreram uma

transformação radical. (...). A comercialização da comunicação de massa alterou seu caráter de maneira

fundamental: o que tinha sido, numa época, um fórum privilegiado de debate racional-crítico se

transformou em apenas mais um campo de consumo cultural, e a esfera pública emergente se

transformou num mundo fraudulento de poseudoprivacidade que é criado e controlado pela indústria

cultural” (p. 147/48)

Entretanto, a despeito da corrupção de que a esfera pública burguesa foi

objeto, o livro de Habermas chamou a atenção para a possibilidade de constituição “de

uma comunidade de cidadãos” que reuniam-se “como iguais num fórum que fosse

distinto tanto da autoridade pública do estado, como dos domínios privados da

sociedade civil e da fida familiar” para “formar uma opinião pública através da

discussão crítica, da argumentação racional e do debate” (p. 147, grifos do autor). É

84

justamente esta experiência que inspirou as diversas propostas de democracia

deliberativa que surgiram a partir do último quartel do século passado. A esfera pública

burguesa, tal como descrita por Habermas, tornou-se o principal referencial para tantos

quantos defendam o desenvolvimento de uma nova cultura política democrática,

comprometida com a livre confrontação de razões – públicas ou não – em ambientes

institucionais emancipados das lógicas do mercado e da burocratização.

7.4. - A Contra-hegemonia Democrática

Segundo Avritzer e Santos a teoria democrática hegemônica se sustenta em

três ordens de fatores distintas:

1) a primeira delas se refere à redução do ideal democrático à sua dimensão

meramente procedimental, o que dificulta – ou inviabiliza – a expressão da

soberania popular; esta, segundo Schumpeter, como já mencionado

anteriormente, não passa de uma ilusão, já que os indivíduos comuns são

incapazes de tomarem decisões racionais no terreno das grandes questões

políticas. Esta circunstância faz com que a democracia se restrinja a um mero

mecanismo de formação de governos, acessíveis na prática por uma restrita

elite política, com tendência à hereditariedade.

2) O segundo elemento é justamente o fortalecimento das burocracias públicas,

decorrente do adensamento da complexidade tanto da esfera econômica quanto

dos próprios instrumentos de intervenção do Estado, cuja tecnicidade debilita as

possibilidades de controle social.

3) Por fim, o último elemento diz respeito à “percepção de que a representatividade

constitui a única solução possível nas democracias de grande escala para o

problema da autorização” (p. 48). A idéia de representação encontrou em Stuart

Mill o seu principal e mais influente formulador. Mill considerava que era possível

a um parlamento reproduzir, em escala reduzida, o universo de interesses que

se manifestam e se confrontam na sociedade. O problema da democracia, a

partir da aceitação dessa premissa, concentra-se, fundamentalmente, na

elaboração de técnicas que permitam aprimorar a representatividade dos corpos

legislativos, de modo que as leis por eles promulgadas reflitam as relações de

85

força que, de fato, caracterizam o tecido social representado, expressando

efetivamente sua soberania

O problema da autorização implicada no conceito de representatividade –

não o único, mas um de seus mais significativos – se refere à questão da prestação de

contas pelos atos dos governos, que é apresentada, perante o eleitorado, em bloco, ao

final de cada mandato. Ou seja, os eleitores são chamados a avaliar o conjunto das

realizações do Governo, manifestando o resultado final de suas ponderações através

do voto nas eleições majoritárias. Dessa forma, não há espaços institucionais

adequados para que os cidadãos exprimam sua concordância em relação a cada um

dos programas implementados pelos governos – autorizando a continuidade de parte

deles, exigindo a adoção de correções em outros, e determinado a extinção total dos

demais. A despeito da falta de homogeneidade nos resultados logrados nas diversas

áreas de políticas públicas, a democracia representativa “pura”, isto é, depurada de

mecanismos de participação direta da população entre os períodos eleitorais, não

oferece alternativas que compensem a incontornável avaliação global dos governos a

cada quatro anos.

Entretanto, Santos e Avritzer chamam a atenção para o fato de que,

paralelamente à consolidação da hegemonia da teoria democrática elitista, que a

considera, meramente, como um mecanismo de legitimação de governos – e não de

manifestação da soberania popular – forjou-se um arcabouço teórico contra-

hegemônico que, sem romper com o procedimentalismo defendido por Hans Kelsen,

buscou apresentar a democracia como “uma gramática de organização da sociedade e

de relação entre o Estado e a sociedade” (p. 51). A concepção defendida pelos autores

reforça o compromisso com o pluralismo, não à maneira schumpeteriana, que rechaça

a possibilidade de acordos acerca do bem comum (este testemunharia uma relação de

forças entre grupos sociais concorrentes e, portanto, o bem comum não passa de uma

ilusão que dissimula as manobras de poder de alguns segmentos melhor organizados,

controladores de recursos estratégicos – materiais e culturais – para fazerem valer

seus interesses estritamente corporativos. Dessa forma, desigualdades iniciais atuam

no sentido de tornar tais desigualdades ainda mais pronunciadas), mas com um

pluralismo associado à plasticidade das formas de manifestação do “mundo da vida”,

86

ou seja, das dimensões de sociabilidade que permanecem ao abrigo da colonização

exercida pelas lógicas tecnicistas e economicistas.

Os autores reforçam o fato de que a democracia encerra, indiscutivelmente,

a forma de organização política mais apta a absorver e expressar a vicissitudes do

tecido social, cada vez mais céleres em virtude das novas tecnologias de comunicação

de massa. Para tanto, julgam necessário satisfazer duas exigências ainda bastante

negligenciadas: 1) a criação de uma nova gramática social e cultural, isto é, a

consolidação de novas formas de relacionamento social, marcadas pelo

aprofundamento do pluralismo, da tolerância, das disposições participativas, etc.; 2) e a

promoção da articulação entre dinâmicas sociais e inovações institucionais, de modo

que estas permitam a expressão política daquelas.

Destarte, a democracia não se restringe a um conjunto técnicas de

instituição de governos, mas uma forma de relacionamento social, um complexo de

práticas voltadas à tomada de decisões com base na argumentação racional e

inclusiva. Por esse motivo, democracia envolve, antes de tudo, uma dimensão cultural

fundamental, tal como já havia enfatizado Carole Pateman em seu livro clássico,

Participação e Teoria Democrática.

De acordo com Santos e Avritzer, “no interior das teorias contra-

hegemônicas, Jurgën Habermas foi o autor que abriu espaço para que o

procedimentalismo passasse a ser pensado como prática social e não como método de

constituição de governos” (p. 52). Além disso, ambos enfatizam que o princípio

defendido por Habermas segundo o qual “apenas são válidas aquelas normas-ações

que contam com o assentimento de todos os indivíduos participantes de um discurso

racional” – que lhe valeram, inclusive, críticas bastante acerbas – não significa,

necessariamente, que os regulamentos não devam ser promulgados, nem as ações

sociais correspondentes realizadas, enquanto não for objeto da concordância de todos

os possíveis interessados na questão debatida, ou seja, sem que todas as razões –

expressões da pluralidade das sociedades contemporâneas – tenham se manifestado

no debate público. Toda e qualquer norma não pode ser subtraída, em momento

algum, dos influxos de novas razões, as quais podem, eventualmente, derrogá-las ou

alterarem parte de seus conteúdos: eis o caráter inescapavelmente indeterminável e

87

dinâmico da gramática social democrática. A democracia substantiva só ocorre à luz da

livre exposição de razões e do debate entre elas, em um ambiente pluralista e

inclusivo, ao abrigo do exercício da força e da violência (que pode ser física, simbólica,

moral, etc.)

Os movimentos sociais podem ser vistos como instrumentos que concorrem

para o surgimento dessa nova gramática, pois sua atuação pública pode ressignificar

práticas políticas esclerosadas, ampliando, por um lado, os temas trazidos ao âmbito

das discussões políticas e, por outro, a inclusão de novos atores sociais, até então

totalmente alijados dos processos decisórios públicos.

Santos e Avritzer chamam a atenção, ainda, para a permanente tensão

existente entre democracia e capitalismo, já que o primeiro conceito remete-se às

noções de igualdade (não apenas jurídica) e distribuição das riquezas socialmente

produzidas, enquanto o segundo diz respeito à acumulação, à concentração de renda –

e quase inevitavelmente de poder político. É inegável que o confronto entre ambos tem

pendido acentuadamente em favor deste último, graças, inclusive, ao verniz ideológico

que a teria da democracia elitista engendrou a fim de legitimá-lo. As correntes

neoliberais trataram a “questão da nova gramática de inclusão social como excesso de

demandas” (p. 60), desqualificando-a como fator de instabilidade e, no limite, de

ameaça ao sistema capitalista.

É necessário salientar, nesse sentido, que padecem de consistência teórica

e empírica os argumentos que insistem na existência de um trade off entre eficiência e

eficácia administrativa e ampliação dos canais de participação sociopolítica. Leonardo

Bento sustenta que:

“Bons instrumentos de gestão, burocratas especializados e competentes, normas e competências

definidas não asseguram, por si só, a eficiência administrativa. A questão da governabilidade ganha

novos contornos e dimensões, tornando-se bem mais completa. O êxito das políticas governamentais

requer não apenas a mobilização de instrumentos institucionais técnicos, organizacionais e de gestão,

controlados por burocratas, mas também de estratégias políticas, de articulação e de coalizões que

dêem sustentabilidade e legitimidade às decisões, o que deverá ser feito por quem quer que ocupe o

poder, independente do grupo ou partido ou extração ideológica a que se vincule.” (p. 84/85)

88

No campo do Direito Administrativo, a complementaridade entre participação

e eficiência tem sido invocada como fundamento do chamado paradigma da

governança, defendido por diversos administrativistas contemporâneos. Tal paradigma

se remete, entre outros fatores, aos novos processos por meio dos quais são

construídas as decisões relativas às políticas públicas. Seu desenvolvimento está

intimamente imbricado ao reconhecimento da noção de “boa administração” como

direito fundamental. De acordo com a professora Vanice Lírio do Valle (2011), a

pluralidade de objetivos a serem satisfeitos, somada à complexidade inerente às

formas de organização social contemporâneas, reclamam uma capacidade de

antecipação dos efeitos decorrentes da ação pública que, na maioria dos casos,

transcende às possibilidades de planejamento das organizações estatais, sobretudo

quando as questões que requerem sua intervenção não são aquelas com as quais o

Poder Público corriqueiramente se defronta. Neste cenário, as escolhas das

alternativas que melhor promovem a satisfação dos diversos interesses que se

confrontam na esfera pública – e que, portanto, concretizam efetivamente a boa

administração – não podem permanecer cingidas aos altos escalões das burocracias

públicas. Contrariamente, os desafios que se colocam ao Estado atualmente exigem

configurações institucionais que privilegiem os influxos de outros atores sociais,

sobretudo dos destinatários finais dos serviços públicos.

89

Capítulo 8 - Mecanismos de Participação Política: Obstáculos e Possibilidades

Os mecanismos de participação política que caracterizam o arcabouço

institucional do Estado brasileiro encontram sua origem nos diversos movimentos

sociais que eclodiram a partir do início da década de setenta nas principais capitais do

país, e prosseguiram com ainda mais força durante os anos oitenta. O período

caracterizou-se pela severa repressão das liberdades civis e políticas pelos regimes

autoritários do período militar. Além disso, embora os índices de crescimento

econômico alcançassem patamares extraordinários, a concentração da renda nacional

acentuava-se cada vez mais, reduzindo grande parte da população brasileira,

sobretudo na periferia das grandes cidades, a condições de existência material

extremamente precárias. Essas localidades caracterizavam-se pela quase inexistência

de equipamentos públicos fundamentais, como postos de atendimento médico,

escolas, transporte público, etc.

Os primeiros movimentos iniciaram-se através da constituição de

associações de bairro que objetivavam justamente reivindicar perante os Poderes

Públicos a promoção de melhorias urbanas em suas regiões. Neste primeiro momento,

as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica, vinculadas á Teologia da

Libertação, exerceram um papel essencial na organização e direcionamento político

desses movimentos populares, que, pouco depois, passaram a contar ainda com o

apoio de diversas ONGs – geralmente financiadas com recursos provenientes de

fundações sediadas em países ricos – cujos membros, normalmente intelectuais,

assessoravam-nos na formulação de suas estratégias de ação. Neste primeiro período,

a postura das associações de bairro e de outras formas de organização política

distinguiu-se pelo distanciamento em relação aos aparatos estatais, em reação à

postura autoritária e às práticas clientelísticas que há muito caracterizavam as relações

entre o Estado e a sociedade civil. Tratava-se de exigir da Administração a satisfação

de direitos sociais, e não a concessão de benefícios de caráter não público.

Por outro lado, na medida em que a ditadura militar rumava incontinenti para

o seu ocaso, e a vida política brasileira ensaiava a restauração das garantias

democráticas alijadas por mais de duas décadas, os diversos movimentos sociais do

90

período abandonaram, progressivamente, as estratégias assumidas até aquele

momento. Ou seja, deixaram de concentrar suas energias apenas na reivindicação de

melhorias urbanas, exigindo, outrossim, a abertura de canais institucionais para a

participação popular direta na gestão das políticas públicas. Este movimento

testemunhou um salto qualificativo de grande envergadura: as novas demandas não se

restringiam à satisfação de uma série de direitos sociais fundamentais, porquanto

abarcavam, igualmente, a possibilidade de participação democrática nos processos

decisórios do Estado por meio de canais institucionalizados. Esta nova perspectiva

orientou as agitações políticas que se desenvolveram ao longo do período constituinte.

O texto final da Carta Política do país, enfim promulgada em 1988, incorporou diversos

dos mecanismos reclamados pelos movimentos sociais, tais como o referendo, o

plebiscito e a iniciativa popular (art. 14, incisos I, II e III). Além disso, nos capítulos

dedicados aos Direitos e a Ordem Sociais, é possível observar diversos dispositivos

que preveem a participação popular na gestão das políticas setoriais do Estado, como

o fazem, por exemplo, os artigos 20413, 22714 e 23015. Há, ainda, diversas leis

infraconstitucionais que estabelecem canais efetivos de manifestação dos segmentos

diretamente interessados nos programas e ações do Estado, além de permitirem o

aprofundamento do controle social sobre a Administração.

Nos próximos tópicos deste capítulo, analisaremos dois dos principais

mecanismos de participação social existentes no Brasil. O primeiro deles, o Orçamento

13

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

(...) II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e

no controle das ações em todos os níveis. 14

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

(...) § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do

jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

(...) 15

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

91

Participativo, criado em Porto Alegre e posteriormente adotado em diversos outros

municípios do país, é reconhecido internacionalmente como uma das mais importantes

inovações institucionais no campo da democracia participativa, de tal sorte que até

hoje, quase três décadas após sua criação, ele continua a inspirar novas experiências

em todo o mundo. Tanto é assim que a prefeitura de Porto Alegre criou, em 2002, um

departamento exclusivamente destinado a prestar assessoria para as cidades que

manifestassem interesse em reproduzir em seus domínios as técnicas do Orçamento

Participativo (Navarro, 2003).

O segundo deles – os conselhos gestores de políticas públicas – representa

o mecanismo mais importante de democracia deliberativa existente no país, senão pela

densidade participativa que proporciona, ao menos pela quantidade de colegiados

instalados nas mais diversas áreas da atuação estatal, nos três níveis de governo.

Somente na Saúde há, desde 2005, pelos menos um conselho para cada um dos 5.506

municípios brasileiros (Cortes & Gugliano, 2010), o que, em tese, envolve mais de cem

mil representantes de usuários e prestadores de serviços nas discussões sobre os

rumos das políticas públicas do setor.

Os próximos tópicos procuram, além de descrevê-los sucintamente, explorar

algumas potencialidades e limitações tanto do Orçamento Participativo quanto dos

conselhos. Desde já, porém, é importante ressaltar que não se imagina que estes

mecanismos, por mais promissores que sejam, possam substituir totalmente a

democracia representativa clássica: a complexidade, a pluralidade e a dimensão das

sociedades contemporâneas inviabilizam qualquer ilusão de reedição da democracia

ateniense, na qual qualquer cidadão podia manifestar-se sobre todos os assuntos de

interesse público na Ágora. O objetivo que anima a introdução desses instrumentos

deliberativos é justamente o de mitigar as distorções que os sistemas representativos

em vigência provocaram, ensejando, a um só tempo, a renovação da cultura pública, o

aprofundamento da legitimidade dos governos eleitos e, por fim – e talvez mais

importante – a recuperação da política como instância indispensável à resolução dos

conflitos sociais.

92

8.1. - Orçamento Participativo: a Experiência de Porto Alegre

Após as primeiras propostas de participação social ensaiadas pela

administração de Alceu Collares, primeiro prefeito eleito de Porto Alegre após o

encerramento do período militar, o Orçamento Participativo (OP) tronou-se realidade

durante o mandato de Olívio Dutra, do PT, embora sua proposta de governo previra,

inicialmente, a participação popular somente através de conselhos de inspiração

marxista – e não exatamente por meio da discussão sobre os orçamentos municipais.

Na verdade, a criação deste formato institucional deveu-se ao fato de que, naquele

momento, as associações comunitárias porto-alegrenses já haviam adquirido, após

mais de uma década de intensa atividade política, razoável experiência nos debates

sobre os problemas que os afligiam cotidianamente nas periferias urbanas, bem como

no conhecimento dos principais mecanismos administrativos empregados pelo Estado,

a ponto de se aperceberem da centralidade dos orçamentos na execução dos planos

de governo. Era, portanto, no processo de elaboração desta peça de planejamento em

que desejavam adquirir voz ativa.

O funcionamento do Orçamento Participativo divide-se em diversas etapas.

Na primeira delas, são realizadas assembleias regionais, pelo menos uma em todas as

dezesseis regiões em se subdivide o município de Porto Alegre. A participação nesses

eventos, que contam com a presença do prefeito e/ou outras autoridades da

Administração municipal, é franqueada a qualquer cidadão, pertencente ou não a

entidades e associações de bairro, ou qualquer outra forma de organização social. As

decisões são tomadas por maioria de votos, cabendo a cada um dos participantes o

direito a um voto. Além destas. Ocorrem também as assembleias temáticas, que se

debruçam sobre cinco áreas fundamentais da gestão municipal: saúde e assistência

social, transporte e circulação, organização e desenvolvimento da cidade, cultura e

lazer e desenvolvimento econômico. As discussões encetadas nestas primeiras etapas

permitem vislumbrar, anda que maneira não muito nítida, as principais leituras que

seus participantes fazem dos problemas que assolam as regiões onde habitam, bem

como das soluções que imaginam mais adequadas à sua superação – ou, ao menos,

sua mitigação. Nestas primeiras reuniões, é realizada, ainda, a seleção dos delegados

93

regionais que participaram da próxima etapa do Orçamento Participativo: as chamadas

rodadas intermediárias de assembleias locais. A função destas reuniões é a

“hierarquização das prioridades e definição das obras sub-regionais” (Avritzer, 2009,

578). Para tanto, as áreas temáticas das políticas públicas são desdobradas em 12

temas, cinco dos quais eleitas pelos participantes da assembleia como prioritárias para

cada uma das regiões de Porto Alegre. A hierarquização final resulta da mensuração

de três critérios, que são: “o acesso anterior da população ao bem em questão, a

população da região e a decisão da população” (idem, p. 578). Cada um deles confere

pontuação que vai de um a cinco pontos. O primeiro critério mencionado avalia em que

extensão o benefício em questão se distribui entre as diversas sub-regiões. Avritzer cita

como exemplo o asfaltamento de ruas. Neste caso, quando esta benfeitoria é eleita

como prioritária pela população, os investimentos da prefeitura devem recair em

proporção inversa à extensão das vias ainda não asfaltadas nos diversos bairros de

Porto Alegre. O segundo critério objetiva beneficiar as regiões mais densamente

povoadas, já que os investimentos realizados nesses locais tendem a beneficiar um

número maior de cidadãos. Por fim, a pontuação final é complementada atribuindo-se

as maiores notas para os temas que a população elegeu como prioritários: caso a

atenção à saúde tenha sido considerada o principal objetivo a que a população deseja

ver atendido, receberá nota cinco, se for o segundo, nota quatro, e assim

sucessivamente.

Faz parte desta etapa do Orçamento Participativo, a realização de

assembleias sub-regionais, que se destinam a determinar, uma vez definidas as áreas

prioritárias de intervenção, quais obras devem ser realizadas. Assim, caso a educação

figure entre os temas com considerados mais importante naquele momento, restará

definir, por exemplo, se é necessário construir uma nova escola ou reformar as já

existentes, ou ainda, dotá-las de novas instalações de apoio pedagógico, como

quadras e bibliotecas.

As definições formuladas ao longo desta etapa intermediária são ainda

objeto de discussões finais na segunda rodada de assembleias regionais, que podem

referendá-las de maneira irrestrita ou introduzir pequenas alterações antes do

encaminhamento da proposta final ao Gabinete de Planejamento da Prefeitura de Porto

94

Alegre – GAPLAN – órgão responsável pela coordenação e elaboração do orçamento

municipal. Os trabalhos desta assembleia encerram-se enfim após a indicação dos

delegados que integrarão o Conselho de Orçamento Participativo, de cuja composição

participam quarenta e quatro membros: “dois conselheiros por cada regional (32), dois

conselheiros eleitos por cada assembleia temática (10), um representante da União das

Associações de Moradores de Porto Alegre (Uampa) e um do Sindicato dos Servidores

da Prefeitura” (ibidem, p. 579). O conselho tem a incumbência de avaliar a proposta

orçamentária do Executivo, que deve prestigiar todas as prioridades estabelecidas

pelas assembleias do Orçamento Participativo – ou apresentar as justificativas que

expliquem as causas das obras negligenciadas – e acompanhar a execução do plano

de governo, discutindo alternativas quando fatores contingenciais obliterarem parte das

realizações programadas. Este estágio acresce à dimensão deliberativa do OP o papel

de instrumento de controle dos órgãos incumbidos da execução orçamentária no

município. Ou seja, o mecanismo institucional em questão não se restringe a forjar

condições para que a população manifesta suas preferências a respeito da aplicação

dos recursos públicos, já que estabelece também mecanismos de accoutability

administrativa, os quais compelem a burocracia a cumprir suas atribuições de maneira

eficiente e eficaz, de acordo com o plano de intervenções construído através da

participação popular. A importância desta segunda função não pode ser minimizada,

tendo em vista que uma das principais deficiências das democracias elitistas

contemporâneas, sobretudo nos países mais recentemente admitidos ao conjunto das

nações democráticas, é a virtual ausência de controle popular sobre o exercício das

atividades administrativas, que dá azo ao desenvolvimento de práticas corruptas ou,

simplesmente, a sujeição do interesse público às necessidades corporativas e

autorreferentes das próprias burocracias públicas.

Avritzer chama a atenção para o fato de eu o Orçamento Participativo é uma

invenção institucional fortemente amparada nas práticas desenvolvidas pelas

associações de bairro e por outros movimentos sociais que, durante o processo de

redemocratização política do país, forçaram os limites impostos pelos aparatos

repressivos do Estado autoritário, introduziram amplos espaços de discussão dos

problemas locais e forjaram novas práticas de participação política. O OP representou,

portanto, um produto institucional engendrado segundo as novas dinâmicas da

95

sociedade civil que, naquele momento, lutava contra o alheamento estatal em relação

aos problemas dos segmentos sociais mais espoliados da população urbana,

infundindo densidade democrática no concerto das relações políticas brasileiras, até

então coagulado pelas tradições clientelísticas e autoritárias que tornavam a cidadania

apenas uma miragem.

O sucesso do orçamento participativo e a extensão da participação em suas

assembleias dependem de alguns fatores que devem ocorrer concomitantemente. O

primeiro deles diz respeito à eficácia de seus mecanismos de determinação da peça

orçamentária municipal. Os potenciais participantes desses fóruns, ou seja, todo e

qualquer cidadão, somente se motivará a se embrenhar nas discussões do OP caso

haja boas razões para acreditar que as decisões finais não serão ignoradas pelo

Executivo municipal. Em outras palavras, a participação tende a recrudescer na medida

em que o plano de obras aprovado em exercícios anteriores se converta em ações

concretas do Poder Público, em conformidade com as expectativas geradas durante o

processo deliberativo. O contrário certamente produzirá a percepção da inutilidade das

discussões e, consequentemente, o desinteresse da população em acorrer às

assembleias. A farta literatura sobre o Orçamento Participativo indica como uma das

principais causas do sucesso de Porto Alegre – responsável pelo aumento ininterrupto

do número de pessoas engajadas (pelo menos até o final da década de noventa,

período de predomínio do Partido dos Trabalhadores na cidade) nas reuniões – foi

justamente a conversão das demandas da população em programas de obras e

intervenções implantadas pelo Executivo. Já no caso de Belo Horizonte – outra

experiência de OP bastante estudada – a oscilação do número de participantes pode

ser explicado em função das incertezas relacionadas aos processos eleitorais e da

posterior substituição do grupo político que introduziu este arranjo participativo no

município, lançando muitas dúvidas e inseguranças acerca de sua capacidade

decisória.

Outro fator amplamente destacado diz respeito à tradição mobilizatória já

existente nos bairros e distritos envolvidos nas assembleias. As localidades que

contaram com elevado número de participantes caracterizavam-se pela existência de

diversas associações de bairro, comunidades religiosas de caráter político, movimentos

96

sociais, etc., os quais contribuíram para a disseminação de uma cultura política crítica e

participativa. Dessa forma, a aderência ao Orçamento Participativo se inseriu no bojo

das agitações políticas que corriqueiramente já se desenvolviam naquelas regiões.

Leonardo Avritzer realça as virtualidades dos arranjos institucionais urdidos

tanto em Porto Alegre como em Belo Horizonte, já que em ambos os casos foram

estabelecido critérios que dificultavam aos interesses particularistas – calcados na

capacidade mobilizatória e organizacional de grupos economicamente privilegiados e,

por este motivo, menos dependentes dos benefícios distribuídos pelas políticas

públicas – prevalecerem sobre disposições orientadas à redução das desigualdades

interregionais. O estabelecimento de critérios de hierarquização das áreas prioritárias

de atuação e, dentro destas, das obras que melhor correspondem aos anseios da

população, representa um importante mecanismo de promoção de justiça distributiva

na definição dos orçamentos municipais, voltados à mitigação das desigualdades

sociais que se manifestam no espaço urbano. A importância deste arranjo não se

restringe ao âmbito das realidades pragmáticas, projetando-se ainda sobre as

discussões em torno das teorias da democracia, na medida em que desfere um

consistente ataque a um dos pilares fundamentais sobre os quais se sustenta a

concepção de democracia que predominou durante todo o século vinte – e que,

embora já intensamente questionada no plano teórico, permanece hegemônica nas

representações sociais e na conformação das instituições dos regimes democráticos

contemporâneos. Trata-se da já comentada prevalência dos comportamentos

individualistas e atomizados dos atores sociais, que segundo Schumpeter e seus

seguidores – Giovanni Sartori, John Elster, Anthony Downs, entre outros – inviabilizam

a construção de consensos a respeito do “bem comum”, ainda que transitórias e

permanentemente sujeita a revisões. O autor enfatiza que:

“Ao conectar tal processo com critérios de justiça, o OP inova como teoria democrática de dois modos

coordenados: em primeiro lugar, estabelece limites ao particularismo, limites que não estão presentes

quer na versão representativa quer na versão participativa da teoria democrática. Em segundo lugar, os

interesses que são considerados legítimos no OP são justificados e, precisam ao mesmo tempo,

coincidir com os critérios de justiça explicados acima. Assim, a conexão estabelecida pelo OP entre

regras e participação democrática renova a discussão sobre o papel das formas de participação na teoria

democrática. Ela mostra que a solução weberiana para o aumento do nível de participação, que é o

97

aumento do controle dos indivíduos pela burocracia, não constitui a única solução possível para o

problema” (ibidem, p. 589)

8.2. - Conselhos Gestores de Políticas Públicas

Os conselhos gestores de políticas públicas estabelecem um novo padrão

de relacionamento entre sociedade civil e Estado, trazendo a primeira para o âmbito

dos processos decisórios intrínsecos ao segundo. Como observa Gohn, “com os

conselhos, gera-se uma nova institucionalidade pública. Eles criam uma nova esfera

social-pública ou pública não-estatal. Trata-se de um novo padrão de relações entre

Estado e sociedade, porque eles viabilizam a participação de segmentos sociais e

possibilitam à população o acesso aos espaços nos quais se tomam as decisões

políticas” (GOHN, pg. 85). Estes fóruns participativos refletem a emergência de atores

cuja atuação política estivera alijada dos arranjos institucionais até então existentes.

Tratam-se, portanto, de espaços de “explicitação de interesses em conflito, de

confronto de projetos sociais e de lutas pela hegemonia” (Correia, 2006, p. 58).

Além disso, a inclusão nos processos decisórios dos segmentos sociais para

os quais se destinam as ações e os programas implementados pela Administração

reverbera os argumentos que apontam para a virtuosidade desses mecanismos para o

aprimoramento da qualidade dos serviços públicos prestados. Vera Schattan Coelho

argumenta que:

“Esses „novos espaços‟ têm como fundamento a ideia de que boa parte da atual

incapacidade das políticas públicas em promover mudanças substantivas no status quo

resulta da não-inclusão (sic) dos destinatários dessas políticas nos processos

decisórios. Ou seja, cresce a aposta de que as políticas se tornaram mais reposnsivas

às necessidades da população à medida que esta for incluída nos processos

decisórios. Afinal, quem melhor do que a própria população para conhecer os

problemas que a afetam ou saber a qualidade dos serviços que está recebendo?”

(Coelho, 2007, p. 77/78)

Os conselhos, em geral, vinculam-se a alguma área específica das políticas

públicas do Estado, como educação, saúde, assistência social, meio ambiente, etc.

Sua composição reúne além de representantes do próprio governo – muitas vezes os

98

titulares das pastas relacionados ao setor em questão (secretários, nos casos de

municípios e Estados, e ministros, na esfera Federal) –, representantes de prestadores

de serviços e de profissionais da área e, ainda, representantes de usuários dos

serviços públicos. As vagas destinadas a estes dois últimos grupos são normalmente

ocupadas por membros de associações profissionais (como sindicatos e entidades de

classe) e de movimentos sociais (que podem ou não assumir o modelo das

organizações sociais), respectivamente. A princípio, nenhum segmento exerce papel

preponderante nos fóruns, já que sua composição é paritária: cada setor representado

responde por um terço das vagas disponíveis, o que reforça a natureza democrática

desta forma de participação sociopolítica.

Os conselhos não se limitam a apresentar propostas de ações e programas,

ou seja, não se restringem a participar da construção de soluções para os problemas

sociais definidos como de intervenção prioritária. Eles revestem, ainda, a condição de

instrumentos de controle social, na medida em que é facultado a seus membros o

acompanhamento concomitante das operações financeiras e da execução do programa

de governo dos respectivos Executivos (municipais, estaduais e federal). Neste sentido,

encerram um nível adicional de controle sobre os atos praticados pela Administração

Pública, além do realizado pelos setores de controle interno dos próprios órgãos

estatais e do controle legislativo empreendido com auxílio dos Tribunais de Contas.

Conquanto não sejam uma criação recente na vida institucional brasileira, já

que figuravam nas estruturas do Estado desde a década de 30 do século passado, o

estabelecimento de conselhos conheceu grande impulso após a redemocratização da

vida política brasileira, consagrada com a promulgação da Constituição Federal de

1988. Estudo realizado por Draibe (1998) verificou que dos 27 conselhos federais

analisados pela autora, somente quatro deles foram instituídos antes da década de

oitenta, ao passo que a criação da maioria ocorreu ao longo da década de noventa,

período em que foram aprovadas diversas leis destinadas a regulamentar alguns dos

mais importantes dispositivos constitucionais (p. 05). A tabela abaixo relaciona os

conselhos identificados pela autora:

99

Conselhos de Gestão de Políticas Públicas na Esfera Federal

Área Conselho Sigla

Assistência Social

Conselho do Programa Comunidade Solidária* CS

Conselho Nacional de Assistência Social CNAS

Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Assistência Social

Fonseas

Fórum Nacional de Secretários Municipais de Assistência Social

Fongemas

Ciência e Tecnologia

Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia CNTC

Conselhos de Direitos

Conselho de Coordenadoria Nacional para Integração das Pessoas Portadores de Deficiência

Corde

Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

CDDPH

Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos

CFGDDD

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

Conanda

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNDM

Cultura Conselho Nacional de Política Cultural CNPC

Educação

Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras

CRUB

Conselho Nacional de Educação CNE

Conselho Nacional dos Secretários de Educação Consed

União Nacional dos Dirigentes de Educação Undime

Meio Ambiente Conselho Nacional do Meio Ambiente Conama

Previdência Social

Conselho de Gestão de Previdência Complementar CGPC

Conselho de Recursos de Previdência Complementar

CRPC

Conselho Nacional de Seguridade Social CNSS

Conselo Nacional da Previdência Social CNPS

Saúde

Conselho Nacional de Saúde CNS

Conselho Nacional dos Secretários de Saúde Conasem

Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde

Conass

Trabalho

Conselgo Nacional de Imigração CIMG

Conselho Curador do FGTS CCFGTS

Conselho Deliberativo do FGTS Codefat

Conselho Nacional do Trabalho CNT

100

* O programa Comunidade Solidária, instituído pelo Decreto nº 1.366/95, foi substituído pelo Programa Bolsa Família (Lei Federal nº 10.836/04), ao qual se associa o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). Fonte: Draibe, 1998.

Nem todos os conselhos indicados acima apresentam as características

anteriormente mencionadas; parte deles não reúne representantes dos destinatários

finais das políticas públicas. Além disso, alguns possuem caráter deliberadamente

opinativo, restringindo suas finalidades à emissão de pareceres e informações quando

provocados pelas autoridades públicas competentes.

Sem embargo das contribuições que estes colegiados podem oferecer à

Administração e à Gestão Públicas, interessam-nos, neste trabalho, os conselhos

paritários, que abarcam um escopo mais amplos de objetivos, envolvendo desde a

elaboração de diagnósticos acerca dos problemas relacionados à sua esfera de

atuação – passando pela identificação de casos pontuais que requerem a intervenção

emergencial do Poder Público – até a proposição de diretrizes para a formulação e

implantação de políticas públicas, podendo influir de maneira significativa na gestão

dos projetos elaborados pelas secretarias de governo, em todas as suas fases de

execução, ou seja, desde o planejamento das ações até o oferecimento do serviço à

população-alvo.

Por outro lado, o caráter vinculante ou não das decisões proferidas pelos

conselhos encerra uma questão ainda bastante controversa, entregue a filigranas

jurídicas. A eficácia das disposições emanadas por estes fóruns participativos não se

encontra pacificada até o momento. No caso, por exemplo, dos conselhos de saúde, o

artigo 1º, parágrafo 2º da Lei Federal nº 8.142/90, que regulou a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, dispõe que:

Art. 1° O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, contará,

em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias

colegiadas:

(...)

§ 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por

representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na

formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente,

101

inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do

poder legalmente constituído em cada esfera do governo. (grifo nosso)

Ora, se é deliberativo, suas decisões não podem ser ignoradas pelos

respectivos Executivos. Estes devem sujeitar-se à vontade emanada dos debates e

discussões desenvolvidas pelos colegiados – mesmo porque, em tese, aos

representantes governamentais é garantida a oportunidade de participar

democraticamente de todas as suas resoluções. Entretanto, há diversos exemplos de

deliberações que não foram acolhidas pelas Secretarias ou Ministérios

correspondentes, sem que razões tecnicamente fundamentadas tenham sido

apresentadas para justificar a adoção de alternativas contrárias às indicadas pelos

conselhos. Um caso emblemático desta tensão entre os Executivos e os fóruns

participativos é o da rejeição pelo Conselho Nacional de Saúde (acompanhado, nesta

questão, por seu homólogo no âmbito do Estado de São Paulo) da publicização dos

hospitais públicos, isto é, a transferência da responsabilidade pela execução de

serviços ambulatoriais e hospitalares às organizações sociais, através da celebração

de contratos de gestão. As razões da desaprovação deste modelo na área da saúde

envolvem uma série de questões extremamente relevantes, tais como a tendência à

privatização dos serviços de saúde, o fato de os cuidados dessa natureza incluírem-se

no rol das incumbências exclusivas do Estado, entre outros fatores. A despeito disso,

tanto a União quanto grande parte dos Estados da Federação – especialmente o

Estado de São Paulo (Sano & Abrucio, 1998) – têm recorrido fartamente à publicização

não apenas para a prestação de serviços de saúde, como também de educação,

cultura e lazer.

O boicote aos conselhos pelos Executivos produz, inevitavelmente, o

desestímulo ao ingresso de representantes de prestadores de serviços, profissionais e

usuários, que tendem a afastar-se dos colegiados em função das resistências

ferrenhas interpostas por agentes políticos e burocratas, que procuram reduzir os

conselhos à mera função consultiva e homologatória. Dessa forma, os governos logram

excluir a participação de movimentos sociais e associações que não se alinham

ideologicamente ao grupo político-partidário no poder, transformando os colegiados em

instrumentos dóceis a seus propósitos. Nessas circunstâncias, estes fóruns assomam

como mecanismos ordinários de legitimação de políticas e ações adotadas à margem

102

dos influxos dos diversos grupos sociais diretamente interessados nos respectivos

serviços públicos. Atuando de maneira subserviente, os conselhos podem chancelar a

adoção de políticas cujos objetivos subjacentes visam satisfazer interesses não-

públicos, isto é, programas de ação que respondam, acima de tudo, a interesses

essencialmente privados, como, por exemplo, os de natureza meramente partidária ou

eleitoreira, que buscam a permanência de determinados grupos políticos à frente dos

postos de comando do Estado; ou de poderosos lobbies econômicos, que almejam

benefícios que conflitam com as necessidades de amplos segmentos da população,

etc.

Há evidentemente uma dissimetria de poder entre os participantes dos

conselhos já que os representantes governamentais dominam uma série de

informações cruciais que normalmente não estão disponíveis aos dois outros

segmentos. Além disso, nem sempre os profissionais da área da saúde (ou, mutatis

mutandis, da educação, da assistência social, de defesa dos direitos da criança e dos

adolescentes, etc.) e, sobretudo, os usuários dos serviços do SUS dominam as

minúcias inerentes às atividades administrativa e burocrática. Dessa forma, os anseios

manifestados por esses dois segmentos podem ser obliterados em face de justificativas

– apresentadas pelos governos – cuja validade aqueles não detém capacidade técnica

para apreciá-las em profundidade. Ora, a mitigação deste importante obstáculo ao

adensamento da dimensão participativa dos conselhos pode encontrar acirradas

resistências por parte dos próprios Executivos, que não veem os mecanismos

participativos senão como empecilhos a seus planos de governo previamente

elaborados. Nessas circunstâncias, políticos e burocratas adotam uma série de

estratégias destinadas a esvaziar os conselhos, sonegando-lhes dados fundamentais,

apresentando informações propositalmente truncadas, subtraindo das pautas de

discussão as questões que o governo considera essenciais, entre outras.

Neste contexto, da paridade numérica dos segmentos representados,

garantida por lei, não decorre automaticamente a equivalência da magnitude das forças

que contrapõem nos colegiados. A este respeito Gohn ressalta que:

“Em relação à paridade, ela não e apenas uma questão numérica, mas de condições de uma certa

igualdade no acesso à informação, disponibilidade de tempo, etc. a disparidade de condições para

103

participar de um conselho de membros advindos daqueles advindos da sociedade civil é grande. Os

primeiros trabalham em atividades dos conselhos durante seu período de expediente de trabalho normal

remunerado, têm acesso aos dados e informações, têm infra-estrutura de suporte administrativo, estão

habituados com linguagem tecnocrática, etc. Ou seja, eles têm o que os representantes da sociedade

civil não têm (pela lei, os conselheiros municipais não são remunerados nem contam com estrutura

administrativa própria). Faltam cursos ou capacitação aos conselheiros de forma que a participação seja

qualificada em termo, por exemplo, da elaboração e gestão das políticas públicas” (p. 92)

Em pesquisa realizada junto aos conselhos de saúde da cidade de

Blumenau (06 Conselhos Regionais e 44 Conselhos Locais), que se baseou em

entrevistas não estruturadas realizadas com representante dos usuários dos serviços

entre os meses de julho a agosto de 2006, Inês Pellizzaro e Raquellen Milbratz

elaboraram algumas conclusões acerca do funcionamento dos colegiados naquela

cidade que revelam os principais obstáculos com os quais esta forma de participação

sociopolítica se defronta normalmente. Os resultados encontram-se sintetizados nos

itens abaixo:

1) Muitos conselheiros acreditam que seu papel se restringe à apresentação de

reivindicações pontuais às autoridades de saúde do município, negligenciando,

consequentemente, tanto suas prerrogativas de participação na definição das

prioridades de investimento e da arquitetura dos programas e ações promovidas

pelo Executivo, como de acompanhamento da aplicação dos recursos

destinados ao setor. Destarte, dentre os temas abordados nas reuniões,

prevalecem os relativos à “falta de medicamentos, falta de profissionais e a

qualidade do atendimento nas unidades [básicas de saúde]”, ao passo que “são

pouco enfatizadas as questões estruturais, relacionadas à formulação e

execução da política de saúde” (p. 09);

2) As discussões geralmente não se caracterizam pelo embate entre perspectivas

distintas acerca das questões em pauta, isto é, o processo decisório não se

caracteriza pela manifestação e pelo confronto de razões públicas distintas, que

concorreriam para revelar a multidimensionalidade e os interesses que subjazem

aos assuntos discutidos. A maioria dos conselheiros entrevistados revelou “que

a tomada de reuniões se dá por consenso” (p. 05), segundo uma dinâmica em

que a perspectiva de um dos participantes (ou de um grupo deles) prevalece

104

sem que suas inconsistências e limitações tenham sido discutidas pelos demais.

Prevalece, pois, a passividade da maioria dos representantes dos usuários, que

são facilmente “neutralizados” pelos representantes dos dois outros segmentos

– especialmente o governamental;

3) Diversos conselheiros, sobretudo os representantes dos usuários, não

compreendem plenamente as discussões travadas nos fóruns, sobretudo

quando versam sobre aspectos técnicos e financeiros da prestação dos

serviços. São poucos os conselheiros que dominam minimamente o arcabouço

conceitual e legal do Sistema Único de Saúde, caracterizado por sua intrincada

cadeia de transferência de recursos entre os três níveis governamentais e pela

complexa organização dos sistemas de atendimentos médico-hospitalares.

4) Grande parte das regiões abrangidas pelos conselhos estudados pelas autoras

caracteriza-se pela debilidade da tradição mobilizatória e participativa de sua

população, o que pode ser atestado, entre outros fatores, pelo reduzido número

de associações e movimentos sociais formalmente constituídos ao longo das

últimas décadas. Além disso, as entrevistas revelaram a fragilidade dos vínculos

estabelecidos entre os representantes dos usuários e as comunidades que, em

tese, justificam sua atuação no colegiado. As limitações evidentes da cultura

política local compromete a representatividade das posições defendidas por

estes conselheiros, que tendem a assumir posições que não necessariamente

coincidem com as que seriam referendadas pelos usuários, caso a estes fosse

facultada a possibilidade de manifestar-se diretamente;

5) Diversos entrevistados referiram-se à falta de autonomia e à passividade dos

representantes dos usuários, tolhidos por melindres que se remetem à

autoridade conferida a outros participantes pelos títulos acadêmicos que

ostentam e pelo domínio que possuem acerca do funcionamento dos aparatos

burocráticos. Nesses casos, como salientam as autoras, “a subalternidade de

uns e superioridade de outros, evidenciam que os conselhos constituir-se em

canais que reproduzem a submissão da sociedade civil aos interesses

dominantes, desmobilizando-a na luta para a efetivação dos direitos sociais” (p.

08);

105

6) Como já indicado anteriormente, as decisões proferidas pelos conselhos

exercem pouca – ou nenhuma – influência sobre os rumos dos programas e

ações executados pelos Executivos municipais, que, em geral, permanecem

pouco permeáveis à participação sociopolítica dos setores populares na gestão

de suas políticas públicas. Prevalece, na Administração dos três níveis de

governo no Brasil, o insulamento das instâncias decisórias, quer porque se

objetiva privilegiar os caracteres “estritamente técnicos” dos problemas em

questão, subtraindo-os da lógica das disputas político-partidárias; quer porque

os aparatos do Estado foram capturados por interesses privados e/ou

corporativos, que conflitam com as medidas destinadas a favorecer o interesse

público. Em ambos os casos, o resultado é a cristalização de um sentimento de

baixa eficácia política e, consequentemente, o desânimo por parte dos

movimentos sociais potencialmente interessados em participar dos colegiados;

7) Por fim, a pesquisa revelou a prevalência, mesmo entre os representantes dos

segmentos de usuários e de prestadores de serviços/profissionais, de algumas

entidades melhor estruturadas e capazes de mobilizar maior volume de recursos

(materiais, financeiros, simbólicos, etc.) em benefício de seus interesses

corporativos, lançando mão do espaço franqueado pelos conselhos para

patrocinar seus interesses privados por dentro do próprio Estado.

Blumenau não parece constituir uma excrescência no cenário político

brasileiro. Ao contrário, as limitações e deficiências apontadas por Pellizzaro e Milbratz

podem ser igualmente observadas na grade maioria das cidades brasileiras, talvez com

algumas poucas – e louváveis – exceções. De qualquer maneira, os resultados da

pesquisa indicados acima compreendem um padrão que reflete as condições

enfrentadas por grande parte dos conselhos de saúde de todo o país. Tais dificuldades

são, inclusive, recorrentemente invocadas por parte da literatura especializada como

provas das limitações imanentes dos conselhos gestores como instrumentos de

adensamento das relações democráticas entre Estado e sociedade civil. Soraya Vargas

e Alfredo Gugliano (2010), embora reconheçam algumas potencialidades inerentes ao

funcionamento dos colegiados, ressaltam seu caráter predominantemente corporativo.

A tendência de que grupos pouco representativos exerçam uma influência

desproporcional na condução dos processos decisórios, devido à sua maior

106

capacidade organizacional – que normalmente reflete seu melhor acesso a bens

políticos, econômicos e culturais essenciais –, associada à capacidade dos governos

de todas as esferas lançarem mão de expedientes ilegítimos para obterem a

cooperação dos conselheiros à realização de seus propósitos, fundamentam as teses

que consideram que “o participante [dos conselhos] é um defensor de interesses

particulares na condição de habitante de determinada região ou de usuário ou

beneficiário de políticas públicas” (p. 53). O chamado neocorporativismo não reconhece

aos conselhos a condição de espaços efetivos de deliberação pública, capazes de

facilitar a emergência dos “interesses gerais”, a partir de discussões transparentes e

imunes às coerções do poder. O inevitável desequilíbrio entre seus participantes, e o

controle de suas atividades pelos Executivos (do qual depende até mesmo o espaço

físico em que suas reuniões ocorrem), impedem que os conselhos exerçam um papel

congruente com os objetivos que inspiraram sua criação, quer seja: a promoção da

igualdade política entre todos os cidadãos, garantindo direito à voz a grupos

historicamente excluídos dos mecanismos decisórios do Estado.

Por outro lado, “um número crescente de estudos (...) sugere o oposto: sob

certas circunstâncias, esses foros podem não só incluir os segmentos sociais menos

privilegiados, mas também desempenhar papel significativo na definição das políticas

públicas” (Coelho, 2007, p. 79). As circunstâncias a que se refere a autora são,

basicamente, três:

1) As condições institucionais assumidas pelos colegiados para viabilizar a

participação dos diversos grupos sociais potencialmente interessados na área a

que se vincula o conselho. Em outras palavras, esta dimensão se refere às

normas que regulam o acesso de cidadãos e entidades da sociedade civil aos

postos destinados aos representantes dos usuários, bem como as possibilidades

de acompanhamento das discussões por indivíduos que não integram os

colegiados. Assim, estes tendem a ser mais democráticos quanto menores

forem os óbices interpostos à livre apresentação de candidaturas às vagas

existentes. Esta dimensão abrange ainda as definições acerca do período de

exercício do cargo de conselheiro, as possibilidades de reeleição, as regras para

a definição das questões controversas, os meios de divulgação das eleições,

107

entre outros. Coelho também considera fundamental a existência de “contatos

sistemáticos entre conselho, sociedade civil, sistema de saúde e o sistema

político, por acreditarmos que, com a intensificação dos contatos, os conselhos

tornam-se mais conhecidos, aumentando a probabilidade de eleições mais

competitivas” (p. 87);

2) A densidade mobilizatória da sociedade civil, ou seja, a quantidade de instituições

sem finalidades lucrativas que se dedicam à promoção de interesses de

natureza coletiva – e, sobretudo, o número de indivíduos engajados nessas

instituições. Como já abordado em outros capítulos do presente trabalho, este é

um dos principais desafios para o desenvolvimento da democracia no Brasil, já

que sua cultura política permanece fortemente marcada pelo autoritarismo e

pelas relações patrimonialistas que caracterizaram a formação histórica dos

espaços públicos no país;

3) E, por fim, a disposição dos gestores públicos em prestigiar os conselhos de

políticas públicas. O compromisso desses agentes com tais mecanismos de

participação se expressa através da disponibilização das informações

indispensáveis à apreciação das questões analisadas, de maneira tempestiva e

em linguagem que permita a compreensão de todos os envolvidos – inclusive

daqueles que não têm familiaridade com as rotinas técnicas e burocráticas da

Administração; o preenchimento dos postos reservados ao Estado por agentes

efetivamente empoderados, isto é, autorizados a assumir compromissos em

nome do Governo; e, sobretudo, a disposição em assimilar todas as decisões

proferidas pelos colegiados, apresentando, sempre que estas revelarem-se

tecnicamente inviáveis, as justificativas que impediram sua efetiva implantação.

Estas atitudes são fundamentais para que os participantes desenvolvam senso

de eficácia política e, consequentemente, sintam-se encorajados a acorrerem

aos fóruns de participação sociopolítica existentes.

Em suas pesquisas a respeito da atuação dos conselhos de saúde da cidade

de São Paulo, Vera Coelho procurou verificar justamente em que medida as variáveis

indicadas acima concorreram para a ampliação da participação social na Administração

pública. A autora centrou suas análises nos Conselhos Locais de Saúde instituídos

108

durante a gestão da prefeita Marta Suplicy, 2000-2004. Foram criados 31 colegiados:

um para cada região administrativa em que se subdivide a cidade. Os levantamentos

apontaram que nas localidades onde apenas um ou dois dos fatores considerados

obtiveram pontuação superior à da média de toda a cidade – segundo critérios

definidos pela autora – a quantidade de participantes dos conselhos permaneceu

extremamente reduzida, o que revela a insuficiência de qualquer um deles para,

isoladamente, determinar a densidade participativa e o caráter inclusivo dos

colegiados. Entretanto, esta afirmação não pode ser estendida às regiões onde as três

ordens de fatores estudadas obtiveram índices positivos. Coelho conclui que:

“Os resultados apresentados (...) confirmam as conclusões dos autores mais otimistas: as var iáveis

identificadas desempenham papel importante na explicação do perfil dos conselhos estabelecidos na

cidade. Entretanto, nossos resultados vão além, na medida em que demonstram a importância da

presença simultânea, na subprefeitura, de gestores comprometidos com o projeto de participação social,

de associativismo popular e cidadãos dispostos a participar nas políticas de saúde e de um certo

reconhecimento sobre como organizar instituições participativas” (p. 92)

109

Considerações Finais: o Tribunal de Contas e os Conselhos Gestores de Políticas Públicas

Uma vez assumida a importância dos espaços voltados à participação social

nos processos decisórios das instituições públicas, e tendo em vista a pertinência de os

mecanismos de controle da Administração atuarem de maneira coordenada (Torres,

2004), as considerações finais deste trabalho procurarão explorar, brevemente, as

possibilidades de interação entre os Tribunais de Contas e os conselhos gestores de

políticas públicas.

Conforme indicado no capítulo anterior, um dos principais obstáculos

enfrentados pelos representantes dos prestadores de serviço e, sobretudo, dos

usuários dos serviços públicos é justamente o desconhecimento acerca das

particularidades inerentes aos procedimentos operacionais empregados pela

Administração, bem como sobre o arcabouço legal que regulamenta a atuação dos

órgãos e dos agentes públicos em cada uma das áreas de intervenção estatal. Tais

conselheiros frequentemente desconhecem – ou conhecem precariamente – as

injunções decorrentes, por exemplo, da lei de licitações, das técnicas de controle

contábil das operações financeiras, dos procedimentos de elaboração das peças

orçamentárias, etc. Além disso, muitas vezes, sequer dominam os fundamentos da

legislação pertinente à sua área de atuação, já que muitas delas são, de fato,

extremamente complexas, como ocorre, por exemplo, com o Sistema Único de Saúde,

que além dos aspectos técnicos vinculados especificamente à área médica,

caracteriza-se por um intrincado sistema de transferência de recursos entre os três

níveis governamentais (União, Estados e Municípios). Como ressaltado anteriormente,

esta situação estabelece uma dissimetria fundamental entre os representantes

governamentais e os demais participantes dos colegiados, que, no limite, pode obliterar

a efetiva participação destes últimos nas decisões proferidas pelo conselho e

inviabilizar o exercício do controle social sobre os atos da Administração. O despreparo

dos conselheiros põe em risco os principais objetivos que inspiraram a criação dos

colegiados: o rompimento do insulamento burocrático e o combate às práticas

clientelistas que ainda hoje grassam no tecido social brasileiro, impedindo que os

110

conselhos se convertam em instrumentos efetivos de renovação da cultura política

predominante.

Parece-nos que, nesse sentido, os Tribunais de Contas, tendo em vista, por

um lado, a alta especialização de seu quadro de servidores, versados nas minúcias

legais que disciplinam a atuação do Estado, e, por outro, sua vocação eminentemente

pedagógica, já amplamente desenvolvida junto aos órgãos jurisdicionados, podem

desenvolver, outrossim, atividades de orientação destinadas especificamente aos

participantes dos colegiados de representação paritária, permitindo-lhes compreender

com maior profundidade as especificidades da atuação estatal. Nesse sentido, as

Cortes de Contas figurariam como um fator de equilíbrio entre os diversos agentes

engajados nas discussões e deliberações dos conselhos, reduzindo as assimetrias de

poder que normalmente se estabelecem entre seus membros, além de capacitá-los a

exercer de maneira qualificada o controle social. Ademais, contribuiriam ainda para o

adensamento do senso de eficácia política dos participantes, revertendo a tendência à

desmotivação que se abate sobre os que se veem alijados dos processos decisórios.

A outra oportunidade de integração entre estas instituições remete-se às

fiscalizações de natureza operacional que os Tribunais de Contas passaram a

desenvolver, sobretudo, a partir da última década, com amparo do disposto, no caso do

Estado de São Paulo, no art. 33, inciso V de sua Carta Constitucional16, que estabelece

a possibilidade da realização de avaliações sobre o desempenho operacional dos

órgãos e entidades públicas. Estes trabalhos objetivam não apenas analisar a sujeição

dos atos da Administração às prescrições legais pertinentes, mas também apurar o

cumprimento das metas previamente estabelecidas para os programas e as ações

executadas pelo Estado, analisando, ademais, os aspectos organizacionais da

máquina pública que, porventura, obstruam a consecução dos objetivos que

justificaram a criação dos programas em questão. Este tipo de fiscalização pode, ainda,

16

Artigo 33 - O controle externo, a cargo da Assembléia Legislativa, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete:

(...) V - realizar, por iniciativa própria, da Assembléia Legislativa, de comissão técnica ou de inquérito,

inspeções e auditoria de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério Público e demais entidades referidas no inciso II;

111

concentrar-se no exame de outros aspectos fundamentais da atuação estatal, como por

exemplo, a transparência, a publicidade, a economicidade, a eficiência, entre outros.

Trabalhos dessa natureza, dada a profundidade das questões e a

multiplicidade de ferramentas analíticas que normalmente mobiliza, exigem um tempo

maior de preparação, se comparado ao tempo despendido nas fiscalizações de

legalidade. Dependendo, naturalmente, do tamanho da equipe envolvida e da

complexidade do programa analisado, uma fiscalização operacional pode demorar de

três a oito meses e, consequentemente, não é possível que todas as políticas previstas

no orçamento sejam examinadas todos os anos. Destarte, é necessário que a cada

exercício seja estabelecido um novo plano de fiscalização, que selecione apenas um

grupo relativamente pequeno de programas e ações. Normalmente, esta operação é

amparada pela aplicação de uma série de critérios objetivos, como, por exemplo, o

montante de recursos destinados, o número de beneficiários atendidos, a abrangência

territorial, etc.

Parece-nos que, neste ponto, estabelece-se mais uma oportunidade de

aproximação entre os Tribunais de Contas e os conselhos. A montagem do plano anual

de fiscalização operacional pode incorporar, paralelamente à aplicação dos critérios

mencionados, algumas solicitações encaminhadas pelos participantes dos colegiados,

de modo a municiá-los das informações que consideram relevantes para suas

deliberações.

Parte da literatura especializada em avaliações de programas

governamentais ressalta que um de seus principais objetivos é, justamente, oferecer

subsídios para que os gestores públicos tomem decisões gerenciais fundamentadas,

contribuindo para o incremento da eficiência e da qualidade dos serviços oferecidos à

população. Worthen, Sanders e Fitzpatrick (2004) enfatizam que o propósito

fundamental deste tipo trabalho é:

“ajudar as pessoas que tomam decisões. Seu fundamento lógico é de que informação avaliatória é parte

essencial de decisões inteligentes e o avaliador pode ser eficiente trabalhando para administradores,

legisladores, diretorias e outros profissionais que precisam de boas informações avaliatórias. (...). Ao

enfatizar níveis diferentes de decisões e de pessoas que tomam decisões, essa abordagem lança luz

sobre quem vai usar os resultados da avaliação, como deve usá-los e sobre que aspecto(s) do sistema a

112

pessoa está tomando decisões. Pessoas que tomam decisões são o público ao qual a avaliação

concentrada na administração se dirige, e as preocupações, as necessidades de informações e os

critérios de eficiência dessa pessoa que toma decisões orientam o estudo (p. 151)”

Se as avaliações operacionais não podem negligenciar as necessidades dos

gestores, sob pena de não contribuírem de nenhuma maneira para o aperfeiçoamento

da gestão pública, parece-nos fundamental que correspondam, da mesma forma, às

demandas por informações apresentadas pela sociedade civil (através de seus

representantes que integram os conselhos), pois é a esta que, em última análise, se

destinam os esforços envidados pelos órgãos de controle externo. Ao fazê-lo, parece-

nos, os Tribunais de Contas não apenas ofereceriam uma importante contribuição para

o adensamento do caráter deliberativo dos colegiados, como também abririam seus

processos internos de trabalho aos influxos da participação social.

Além disso, os conselhos podem contribuir para a realização das

fiscalizações operacionais de duas outras maneiras:

1) Na fase de planejamento dos trabalhos, os agentes dos Tribunais empreendem

uma série de diligências – tais como visitas de estudo a equipamentos públicos,

entrevistas com usuários e gestores, pesquisas bibliográficas, etc. – destinadas

a apurar os principais problemas enfrentados na execução do programa em

questão. Esta tarefa pode ser facilitada através das contribuições dos

representantes dos prestadores de serviços e dos usuários que, por estarem

familiarizados com as dificuldades enfrentadas no setor, podem ajudar a

identificar os caminhos mais promissores para o sucesso da fiscalização;

2) A tarefa de avaliação envolve, necessariamente, a definição de critérios e

padrões que permitam julgar a qualidade dos serviços prestados pelos órgãos

públicos. A partir de que nível um determinado benefício pode ser considerado

satisfatório? A resposta para esta pergunta pode envolver diversas dificuldades,

pois sua definição normalmente exige a aplicação de conhecimentos

especializados em áreas bastante específicas, para as quais não há, no quadro

funcional dos Tribunais, profissionais com a formação acadêmica apropriada.

Dessa forma, a definição de um padrão de qualidade na área da educação pode

exigir o domínio de conhecimentos pedagógicos avançados. Contudo, se os

113

agentes de fiscalização não dispõem desses conhecimentos, é bastante

provável que pelo menos parte dos membros dos conselhos de educação os

detenha. Este tipo de interação pode facilitar os trabalhos de avaliação e, ao

mesmo tempo, dotá-los de maior densidade analítica.

Parece-nos, portanto, que existem algumas oportunidades relevantes de

aprofundamento das relações institucionais entre as Cortes de Contas e os fóruns

participativos, permitindo ganhos relevantes para ambos os lados.

114

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