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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892) Rita Duarte Cordeiro DISSERTAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS INGLESES E AMERICANOS Área de Especialização de Estudos Literários 2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892)

Rita Duarte Cordeiro

DISSERTAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS INGLESES E AMERICANOS

Área de Especialização de Estudos Literários

2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892)

Rita Duarte Cordeiro

Dissertação orientada pela Prof.ª Teresa Casal e co-orientada pela Prof.ª Ana Raquel Fernandes

MESTRADO EM ESTUDOS INGLESES E AMERICANOS

2016

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A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A

House of Pomegranates (1892) copyright © Rita Cordeiro

A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A

House of Pomegranates (1892) copyright © Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales (1888) e A

House of Pomegranates (1892) copyright © Universidade de Lisboa

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm licença não

exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório

institucional, esta dissertação, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso mundial. A

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa estão a

autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a dissertação entregue, para

qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,

para efeitos de preservação e acesso.

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IV

Resumo - A Representação do Amor Sacrificial em The Happy Prince and Other Tales e A House of Pomegranates

A presente dissertação, apresentada no âmbito do Mestrado em Estudos Ingleses e Americanos, tem como objectivo abordar a representação do amor sacrificial nas colectâneas de contos de Oscar Wilde, The Happy Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892), e articulá-la com a caracterização genológica dos contos, de forma a ponderar o modo como Oscar Wilde usa as convenções do conto de fadas na construção dos seus contos, tendo sempre em conta o duplo enquadramento do autor – o vitorianismo inglês e o contexto irlandês.

Esta dissertação consiste em três capítulos, para além da introdução e da conclusão. O primeiro capítulo incide sobre a contextualização de questões teóricas acerca da definição de fairy tale, enquanto género e forma de arte literária. O segundo capítulo apresenta uma contextualização dos contos de Wilde na época vitoriana. O terceiro capítulo analisa criticamente a representação de amor sacrificial em “The Happy Prince”, “The Nightingale and the Rose”, “The Fisherman and His Soul” e “The Star-Child” e considera o modo como estes contos utilizam as convenções dos contos das fadas.

Neste estudo sobre um corpus e um tema ainda pouco estudado pela crítica literária, apoiar-me-ei no trabalho de autores como Jarlath Killeen (2007), Jack Zipes (1983, 2000, 2012), Donald Haase (2008), Peter Raby (1997), Marina Warner (2014), Elisabeth Harris (2003), Anne Markey (2015), entre outros. Espero assim, trazer uma nova abordagem aos contos de Oscar Wilde em termos temáticos e genológicos.

Palavras-chave: fairy tale, amor sacrificial, Oscar Wilde, arte, vitorianismo.

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Abstract - The Representation of Sacrificial Love in The Happy Prince and Other Tales and

A House of Pomegranates

The present dissertation, presented within the Masters in English and American Studies, aims to address the representation of sacrificial love in Oscar Wilde's collections of fairy tales, The Happy Prince and Other Tales (1888) and A House of Pomegranates (1892); concurrently, it considers these narratives’ genre in order to assess how Oscar Wilde uses the fairy tale conventions in the construction of his tales, taking always in consideration the author’s dual framework - the English Victorianism and the Irish context.

This dissertation consists of three chapters, besides the introduction and the conclusion. The first chapter focus on the contextualization of theoretical questions about the definition of fairy tale as a genre and a form of literary art. The second chapter presents a contextualization of Wilde’s tales in the Victorian era. The third chapter critically analyses the representation of sacrificial love in “The Happy Prince”, “The Nightingale and the Rose”, “The Fisherman and His Soul” and “The Star-Child”; and considers the form how they make use of the fairy tale conventions.

In this study of a corpus and topic which still has been little studied by literary criticism, I rely on the work of authors such as Jarlath Killeen (2007), Jack Zipes (1983, 2000, 2012), Donald Haase (2008), Peter Raby (1997), Marina Warner (2014), Elisabeth Harris (2003), Anne Markey (2015), among others. I hope to bring a new thematical and genealogical insight into Oscar Wilde tales.

Key-words: fairy tale, Sacrificial Love, Oscar Wilde, art, Victorianism.

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Índice

Introdução 7

1 - Questões teóricas sobre Fairy Tales 11

1.1 – A génese do fairy tale 12

1.2 - A importância do fairy tale no Romantismo 17

1.3 - O fairy tale na época Vitoriana 22

2 – Os contos de Oscar Wilde na época Vitoriana 25

2.1 - O esteticismo e a estética de Wilde 27

2.2 - O contexto ficcional de Wilde 30

3 - A Representação do Amor Sacrificial 39

3.1 - “The Happy Prince” 42

3.2 - “The Nightingale and the Rose” 49

3.3 - “The Fisherman and His Soul” 57

3.4 - “The Star-Child” 65

Conclusão 76

Bibliografia 79

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Introdução

Quando, hoje em dia, se fala na obra de Oscar Wilde, é provável que o público adulto

se lembre mais frequentemente das suas peças, ensaios ou mesmo do seu único romance,

enquanto o público infanto-juvenil provavelmente recordará melhor os seus contos. Alguns

dos seus trabalhos mais conhecidos, como por exemplo, as peças Salome (1891) ou The

Importance of Being Earnest (1895), e até mesmo o romance The Portrait of Dorian Gray

(1890), despertaram e continuam a suscitar um grande e recente interesse literário, sobretudo

por parte de críticos e académicos, mas também do público em geral. Mas os contos (que são

o objecto de estudo do presente trabalho), por tenderem a ser associados à literatura infantil,

tradicionalmente considerada uma literatura menor, têm merecido menor atenção por parte da

crítica literária.

Oscar Wilde (1854-1900) foi, sobretudo, um poeta e dramaturgo, mas também um

ensaísta e contista irlandês, que foi considerado o primeiro líder do movimento estético ao

defender o conceito da “arte pela arte”. Não é por acaso que Wilde continua a ser considerado

por muitos estudiosos, como Jarlath Killen (2007) ou Jack Zipes (2000), como o grande génio

literário da época vitoriana. Considerando o duplo enquadramento do autor, isto é, o facto de

Wilde ter construído a sua identidade a partir das suas origens irlandesas e da sua vivência

adulta na Inglaterra vitoriana, foram sobretudo a sua singularidade e a sua excentricidade que

o fizeram destacar-se na sociedade inglesa como escritor anglo-irlandês. Por outro lado,

embora o escândalo da sua prisão, na sequência do seu julgamento sob a acusação de práticas

homossexuais, tenha manchado significativamente a sua reputação e afectado a sua carreira

literária, o certo é que a sua obra continua a ser lida e estudada com interesse.

O meu trabalho incide sobre os contos de Oscar Wilde, publicados em The Happy

Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892), que têm merecido menos

atenção por parte da critica literária, porventura por serem associados à literatura infantil. Na

verdade, a sua recepção no âmbito estrito da literatura infantil não é a mais correcta, até

porque o próprio autor não os considerava como tal; pelo contrário, descreveu-os, numa carta

em resposta ao jovem poeta George Herbert Kersley, em Junho de 1888, como “estudos em

prosa” dirigidos parcialmente às crianças e parcialmente aos adultos que mantiveram as

faculdades infantis da alegria e da maravilha: “They are studies in prose, put for Romance’s

sake into fanciful form: meant partly for children, and partly for those who have kept the

childlike faculties of wonder and joy” (Wilde 2008: xiii). Esta afirmação remete para parte da

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dificuldade em classificar estes contos, não só em termos de público-alvo, mas também

relativamente ao género literário, porque, por serem diferentes na sua composição e objectivo,

devido à forte subversão simbólica que carregam, estes contos parecem desviar-se da estrutura

do conto de fadas tradicional, tal como tem sido observado por alguns críticos, por exemplo

Jack Zipes (2012). No entanto, não deixam de ser fairy tales.

Os contos de Wilde têm, também por isso, sido objecto de estudo por parte de vários

críticos, que os interpretam sob diferentes pontos de vista. Por exemplo, Jack Zipes afirma

que são propositadamente subversivos, na medida em que o autor reutilizou o estilo e os

motivos dos contos de fadas clássicos e bíblicos de forma a transmitir a sua noção de

socialismo (Zipes 2012: 119-123); Anne Markey considera que o hibridismo destes contos

acrescenta à sua complexidade estética a resistência definitiva à interpretação e, por isso,

desafia os leitores de todas as idades a envolverem-se com as questões que os mesmos

levantam (Markey 2015: 4); e Jarlath Killeen argumenta que os contos de fadas de Wilde

foram construídos em camadas múltiplas e operam num elevado nível de simbolismo oculto,

considerando-os tanto subversivos como conservadores (Killeen 2007: 12). Outros, como

Gyles Brandreth, referem-nos como sendo contos ricos em ironia sobre o amor e o sacrifício

(Brandreth 2008: xv). Porém, nem estes, nem outros críticos literários interpretaram estes

contos em termos temáticos considerando o modo como representam o amor sacrificial.

Por um lado, acontece que um fairy tale não é uma mera história sobre fadas. Este

género literário, que adquiriu o respectivo estatuto apenas durante o século XIX, engloba

muitos outros elementos. Trata-se de uma narrativa curta na qual nos deparamos com toda a

espécie de criaturas extraordinárias, animais falantes, poderes mágicos, etc., e ao longo da

qual o herói ou heroína leva a cabo uma demanda exigente, à procura do respectivo lugar na

sociedade e no mundo. Regra geral, os contos de fadas tendem a concluir com uma “lição de

moral” sobre a qual o autor espera que o leitor reflicta. Mas esta moral nem sempre é inerente

à história; é, muitas vezes, apenas percebida pelo leitor. A própria formulação de abertura

(Era uma vez) e de finalização (Viveram felizes para sempre) nem sempre é explícita, o que

por vezes pode induzir numa interpretação incompleta, como acontece com os contos de

Wilde.

Por outro lado, entende-se por amor sacrificial aquele amor que é espiritual e

incondicional, não necessariamente recíproco e demonstrado abnegadamente, em

circunstâncias extremas com o sacrifício da própria vida. Como é dado sem que haja nenhuma

expectativa de retribuição, o amor sacrificial requer uma grande capacidade de amar e

perdoar. No fundo, é aquele amor que transcende todas as barreiras físicas e espirituais, à

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semelhança do amor e do sacrifício de Cristo; acontece que, por vezes e num sentido

religioso, aquele que se sacrifica em prol do bem-estar alheio, chegando ao ponto de dar a

vida pelos seus semelhantes, é elevado a mártir. O amor sacrificial é então caracterizado por

ser altruísta, compassivo, incondicional e transcendente.

A minha dissertação visa assim estudar temática e genologicamente a representação

do amor sacrificial em quatro contos seleccionados das duas colectâneas, designadamente os

dois primeiros contos de The Happy Prince and Other Tales (1888): “The Happy Prince” e

“The Nightingale and the Rose”; e os dois últimos de A House of Pomegranates (1892): “The

Fisherman and His Soul” e “The Star-Child”. Escolhi precisamente os dois primeiros e os

dois últimos contos dos nove que compõem as duas colectâneas para constituir o corpus de

análise do meu trabalho, porque são aqueles que partilham a centralidade do tema do amor

sacrificial, tal como demonstrarei no decurso da minha dissertação. Deste modo, o meu

trabalho tem como principal objectivo estudar a representação do amor sacrificial e,

paralelamente, considerar a caracterização genológica dos mesmos, no intuito de perceber de

que modo Wilde utiliza e recria as convenções do conto de fadas e com que objectivo o faz.

Esta análise sobre um corpus e um tema ainda pouco estudados pela crítica literária

será suportada, em grande parte, pela leitura e referência ao trabalho de autores tais como

Peter Raby (1997), Jarlath Killeen (2007) e Anne Markey (2015), que se dedicaram ao estudo

de Wilde e da sua obra; de Jack Zipes (1983, 2000, 2012) que se dedica tanto ao estudo da

obra wildiana como da definição genológica de fairy tale; de Donald Haase (2008), Elisabeth

Harris (2003), Marina Warner (2014), entre outros, que se dedicam ao estudo da definição de

fairy tale.

Em termos estruturais, esta dissertação consiste em três capítulos, para além da

introdução e da conclusão. Esta estrutura permite-me abordar separada e detalhadamente cada

um dos principais aspectos sobre os quais incide a minha dissertação: a génese do fairy tale, a

obra de Wilde na época vitoriana e a representação do amor sacrifical nos seus contos. Assim,

o primeiro capítulo incide sobre a contextualização de questões teóricas acerca da definição

de fairy tale, enquanto género e forma de arte literária. Ou seja, neste capítulo abordo várias

teorias e tentativas de definir fairy tale, bem como resumo a evolução do mesmo enquanto

género literário independente, de modo a propor uma definição minimamente satisfatória do

termo fairy tale.

No segundo capítulo, procedo à contextualização dos contos de Wilde, isto é, tento

estabelecer de que modo o seu trabalho influenciou a literatura da época vitoriana e qual o

impacto que causou na mesma, de forma a esclarecer em que consiste a teoria estética que é

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trabalhada no seu trabalho ficcional. E no terceiro capítulo analiso criticamente a

representação do amor sacrificial nos quatro contos seleccionados, ao mesmo tempo que

considero a correlação entre o tema e a caracterização genológica dos mesmos. A conclusão

deste trabalho reflecte sobre as ilações a retirar deste estudo dos contos de Oscar Wilde e o

seu contributo para a compreensão dos mesmos enquanto fairy tales. Espero assim trazer uma

nova abordagem a estes contos em termos temáticos e genológicos.

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1 - Questões teóricas sobre Fairy Tales

Fairy tales do not give the child his first idea of bogey. What fairy tales give the child is his

first clear idea of the possible defeat of the bogey. The baby has known the dragon intimately

since he had an imagination. What the fairy tale provides for him is a St. George to kill the

dragon. G.K. Chesterton. Tremendous Trifles, [1920] 2007. p. 36

Desde cedo que nos familiarizamos com o termo conto de fadas (fairy tale) e quando

chegamos à idade adulta este arrisca-se a ser uma idealização da infância recordada pelo olhar

adulto. No entanto, para perceber em que consiste esta forma de arte literária, torna-se

inevitável colocar a questão: o que é um fairy tale? Esta é uma pergunta que tem suscitado um

fervoroso debate entre os estudiosos do tema. A par desta surgem outras duas questões-chave

para a definição de fairy tale: Qual é a sua origem? Qual é a sua função? (Tolkien 1997:110).

Sabe-se que os fairy tales têm raízes nas antigas tradições orais, apesar de a sua

história enquanto género literário ser bastante recente, contando cerca de duzentos e poucos

anos, ao passo que determinar a sua função ou o seu objectivo levanta novas questões e

opiniões divergentes. Na verdade, aquilo que sabemos sobre os contos de fadas é muito

pouco, tendo em conta a história da literatura, mas hoje em dia descobrem-se cada vez mais

factos novos sobre os mesmos. Este género desenvolveu-se à sombra de vários outros

permanecendo imperceptível até ser aceite como género independente no século XVIII e

como literatura adequada ao público infantil no século XIX. Mas até que haja consenso

relativamente a uma definição satisfatória, há ainda muito a ser estudado. Neste capítulo

tentarei responder a questões genológicas relevantes para o desenvolvimento da minha

dissertação.

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1.1 – A génese do Fairy Tale

Antes de mais, como surgiu o termo fairy tale? Como é que o podemos definir? É

verdade que, na literatura moderna, os contos de fadas têm uma conotação meramente

infantil, ou seja, são frequentemente associados à literatura infantil, o que é insuficiente para

constituir uma definição consistente. Para além disso, há que ter em conta a correlação

existente entre fairy tale e folk tale, uma vez que existe uma forte tendência geral para se

considerar o termo conto de fadas como sendo a designação das adaptações escritas (ou ditas

literárias) dos contos de tradição oral ou folclore ou como uma tentativa de amenizar os

contos populares e torná-los mais apropriados a um público infantil. Porém, isto não

corresponde à verdade, porque este termo surgiu, de facto, em consequência do aparecimento

do termo conte de fées, utilizado pelas conteuses francesas do século XVII.

De acordo com as ideias avançadas por Carlos Ceia no verbete “Contos de Fadas”,

no E-Dicionário de Termos Literários, hoje em dia o termo conto de fadas inclui vários tipos

de narrativas, mantém os elementos “atemporais” e recorre a heróis ou heroínas, que passam

por aventuras estranhas ou mágicas, ou por um determinado teste, e que sofrem madrastas ou

padrastos, cuja função é dificultar-lhes a vida ao longo da narrativa. Além disso, apresenta

seres e acontecimentos extraordinários, desenrola-se num cenário temporal e geograficamente

vago, inicia e termina quase sempre da mesma forma: “Era uma vez...” e “Viveram felizes

para sempre”. Ceia afirma que, efectivamente, o conto de fadas sobreviveu através da tradição

oral até a sua forma escrita ser estabelecida e originalmente não se destinava às crianças,

porque se tratava de uma narrativa complexa que culminava num final infeliz.

Por seu turno, Daniel Haase procede à distinção entre fairy tale e folk tale, na The

Greenwood Encyclopaedia of Folktales and Fairy Tales (2008). Assim, afirma que os

académicos ingleses usam frequentemente a expressão folk tale para se referirem aos contos

de tradição oral e fairy tale para designar os contos escritos. Esta oposição aproximada do

conto popular e do conto de fadas, que coloca a oralidade e a literatura nas extremidades

opostas de um eixo, pode ser útil, especialmente se permitir a interacção das formas oral e

escrita ao longo desse eixo (Haase 2008: 322). Ou seja, a principal diferença entre estas

designações reside em que folk tale se refere à tradição oral e fairy tale à tradição literária, tal

como Haase salienta:

The folktale is a form of traditional, fictional, prose narrative that is said to circulate orally. [...] Accordingly, the folktale was conceived of as oral, whereas the "true" fairy

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tale was a literary genre. [...] The term "fairy tale" arose in the context of the seventeenth and eighteenth-century aristocratic French salon writers and their elaborate, layered, discursive conversational creations that were eventually put into print. (Haase 2008: 363)

Em termos etimológicos, talvez fosse mais correcto chamar-lhes fairy-stories, tal como J. R.

R. Tolkien as designa no ensaio “On Fairy-Stories” (Tolkien 1997:111), descrevendo-as como

sendo: “a) a tale about fairies, or generally a fairy legend; with developed senses, b) an unreal

or incredible story and c) a falsehood”. Porém, segundo Tolkien, este sentido de fairy-stories

é demasiado vago, não só porque em inglês não é de uso comum, mas também porque as

histórias que existem são apenas sobre a Faërie, o lugar onde as fadas existem; além disso as

histórias primeiramente relacionadas com fadas são raras e na sua maioria estão relacionadas

com as aventuras humanas na terra das fadas (Tolkien 1997: 113), ou seja, uma fairy-story é

aquela que usa ou toca a Faërie, qualquer que seja o seu objectivo principal: sátira, aventura,

moralidade, fantasia (Tolkien 1997: 114). Curiosamente, este argumento é válido para

qualquer conto de fadas, qualquer que seja a língua em que é escrito, porque em quase todas

as literaturas europeias, ou mesmo mundiais, existem muito poucas histórias directamente

relacionadas com as fadas ou que as incluam.

Contudo, existe ainda uma grande confusão entre fairy tale (a forma literária) e folk

tale (a forma oral), tal como salienta Jack Zipes na introdução de The Oxford Companion to

Fairy Tales (2000): “In fact, the confusion is so great that literary critics continually confound

the oral folk tale with the literary fairy tale and vice-versa” (Zipes 2000: 15). De acordo com

Zipes, esta confusão acontece porque acreditamos que ao saber mais sobre os contos de fadas

saberemos mais sobre nós mesmos:

We want to know more about ourselves by knowing something more about fairy tales. We want to fathom their mysterious hold on us. […] It is distinction that preserves the unique socio-historical nature of genres. It is distinction that exposes the magic of a genre while at the same time allowing us to preserve and cultivate it so that it will continue to flourish. (Zipes 2000:15)

De certo modo, Zipes corrobora as afirmações de Tolkien quando este último diz que a

história dos fairy tales é provavelmente mais complexa do que a história física da raça

humana e tão complexa quanto a história da linguagem humana (Tolkien 1997: 121). Mas

para melhor estabelecer uma definição para fairy tale, há que ter em conta que o respectivo

cenário engloba uma grande variedade de elementos, pois segundo o excerto:

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The realm of fairy tale is wide and deep and high and filled with many things: all manner of beasts and birds are found there; shoreless seas and stars uncounted; beauty that is an enchantment; and an ever-present peril; both joy and sorrow as sharp as swords. […] This contains more things besides elves and fays, and besides dwarfs, witches, trolls, giants, or dragons: it holds the seas, the sun, the moon, the sky, and the earth and all things that are contained in it: tree and bird, water and stone, wine and bread, and ourselves, mortal men, when we are enchanted. (Tolkien 1997: 110-113)

Segundo Jens Timar, citado por Zipes na introdução a The Oxford Companion to Fairy Tales

(2000), existem quatro princípios para definir o que é um fairy tale: 1) distingue-se do conto

popular, quanto mais não seja por ser escrito por um único autor identificável; 2) é sucinto,

artificial e elaborado em comparação com a formação primitiva dos folk tales que emanavam

das comunidades e tendiam a ser simples e anónimos; 3) as diferenças entre o fairy tale

literário e o folk tale oral não implicam que um género seja melhor do que o outro; e 4) de

facto, o fairy tale literário não é um género independente, só podendo ser compreendido e

definido pela sua relação com os contos orais, assim como com a lenda, a novela, o romance e

outras tipologias de conto usadas pelo género, que não só os usa, como também os adapta e

remodela de acordo com a concepção narrativa do autor (Timar apus Zipes 2000: 15).

À semelhança de Timar, Marina Warner afirma no prefácio de Once Upon A Time: A

Short History of Fairy Tale (2014), que a contínua sobrevivência deste género depende das

suas constantes transformações e identifica seis características definidoras de fairy tale: 1)

trata-se de uma narrativa breve; 2) a história é familiar, comprovadamente antiga; 3) a

presença necessária do passado faz-se sentir através das combinações e recombinações de

enredos e personagens, objectos e imagens familiares; 4) consiste sobretudo em actos

imaginários; 5) há inter-relação entre os agentes sobrenaturais e o prazer da maravilha e 6)

tem um happy ending.

As duas perspectivas completam-se, constituindo a base para uma definição

consistente. Assim sendo, o fairy tale consiste numa narrativa relativamente curta e sucinta,

mas artificial e elaborada, escrita por um único autor. Em termos genéricos, este género

depende da transformação constante para sobreviver e só pode ser entendido através da sua

relação com o folk tale, da sua ancestralidade, da sua familiaridade, e sobretudo do facto de

consistir em actos imaginários concentrados em algo simbólico, da inter-relação do

sobrenatural e do maravilhoso, e da expressão do “foram felizes para sempre”.

Por conseguinte, para além do folk tale, o fairy tale distingue-se ainda do wonder

tale, sendo que existem opiniões diferentes sobre esta distinção, pois enquanto Zipes afirma

que o fairy tale nada mais é do que um tipo de apropriação literária de uma tradição oral de

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contar histórias relacionada com o wonder tale (Zipes 2000:17), Warner afirma que o wonder

tale se trata de um termo alternativo para fairy tale, que provém do alemão Wundermärchen e

que reconhece a ubiquidade da magia nas histórias (Warner 2014: xvi). O facto é que este

termo é baseado numa formação híbrida que junta várias formas de narrativa oral, centrando-

se na transformação, tal como argumenta Zipes no seguinte excerto:

In fact, the wonder tale is based on a hybrid formation that encompassed the chronicle, myth, legend, anecdote, and other oral forms and constantly changed depending on the circumstances of the teller. [T]he definition of both the wonder tale and the fairy tale […] depends on the manner in which a narrator arranges known functions of a tale aesthetically and ideologically to introduce wonder and then transmits the tale as a whole according to customary usage of a society in a given historical period. (Zipes 2000: 17-20)

Este aspecto das «funções conhecidas» (known functions) (Zipes, 2000) remete-me para outro

ponto importante a abordar em termos genéricos: qual é a finalidade última do fairy tale? Tal

como foi referido inicialmente, a noção moderna que se tem é a de que os contos de fadas se

destinam somente à leitura por parte de um público infantil. Concordando com as ideias

avanças por Tolkien e Zipes, o fairy tale enquanto género e forma de arte literária deve ser

pensado como algo mais do que histórias sobre fadas (uma vez que são muito raros os contos

que as referem), do happy ending e do pressuposto contexto infantil, porque as eventuais

lições e morais contidas nos mesmos são captadas e pensadas de formas diferentes, razão pela

qual não se deve considerar os contos de fadas como um género literário dirigido única e

exclusivamente às crianças; e a respeito desta associação, Tolkien refere pertinentemente que

os fairy tales são relegados pelo senso comum para o espaço infantil da nursery1, embora as

crianças não tenham uma melhor compreensão dos contos de fadas do que os adultos, mas os

contos de fadas continuam a ser escritos ou adaptados às crianças:

It is usually assumed that children are the natural or specially appropriated audience for fairy tales. […] The common opinion seems to be that there is a natural connection between the minds of children and fairy-stories of the same order as the connection between children’s bodies and milk. […] The association of children and fairy-stories is an accident of our domestic history. Fairy-stories have in the modern lettered world been relegated to the ‘nursery’ as children as a class neither like fairy-stories more, nor understand them better than adults do. […] It is true that in recent times fairy-stories have been written or ‘adapted’ for children. (Tolkien 1997: 129-131)

1 Nursery é o termo em inglês utilizado para designar o “quarto das crianças” (actualmente foi substituído pelo “quarto dos brinquedos” ou referente apenas ao quarto do bebé), um costume muito comum em Inglaterra durante a época Vitoriana (e posteriormente Eduardina) entre as famílias abastadas e de classe média alta.

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Contudo, Tolkien também considera que os contos de fadas não devem ser especialmente

associados às crianças, embora estes lhes sejam associados: naturalmente, porque as crianças

são humanas e os fairy tales são um gosto humano natural; acidentalmente, porque os contos

de fadas são uma grande parte da literatura arrumada nos sótãos da Europa moderna; de modo

pouco natural, por causa da ideia errada que se tem sobre a sensibilidade das crianças

(Tolkien 1997: 136). E isto acontece porque são os pais (e restantes adultos) quem classifica

os contos de fadas como literatura infantil. Este facto deve-se, talvez, à associação entre as

possíveis lições transmitidas pelos contos de fadas e o processo de crescimento, em que

muitas vezes se perde a inocência do maravilhoso, tal como salienta no seguinte excerto:

It is parents and guardians who have classified fairy-stories as Juvenilia. […] The process of growing older is most necessarily allied to growing wickeder, though the two do often happen […] not to lose innocence and wonder; but to process the appointed journey […] it is one of the lessons of fairy tales (if we can speak of lessons of things that do not lecture) that on callow, lumpish, and selfish youth peril, sorrow, and the shadow of death can bestow dignity, and even sometimes wisdom. (Tolkien 1997: 137)

Por seu turno, Zipes afirma que um fairy tale é muitas vezes uma história sobre encontros

milagrosos, mudanças e iniciações que ilustram um ponto didáctico em particular, que o

escritor quis expressar de uma forma divertida, sendo que, em grande parte, os contos de

fadas iniciais não se destinavam às crianças. Na verdade, não eram sequer destinados à

maioria das pessoas, porque a maioria das pessoas não sabia ler (Zipes 2000: 21). Em suma,

isto significa que, num sentido mais objectivo, se for escrito com arte, o valor principal do

conto de fadas será simplesmente aquele valor que, como literatura, compartilha com outras

formas literárias.

Mas os contos de fadas oferecem também, de um modo peculiar, fantasia,

restabelecimento, escape e consolação, que são aspectos dos quais as crianças têm, por regra,

menos necessidade do que as pessoas mais velhas (Tolkien 1997: 138), ou seja, estes contos

destinam-se principalmente a entreter o público leitor, quer adulto quer infantil. E uma vez

que o fairy tale enquanto género literário resulta da fusão entre o folklore e o material literário

usado pelos primeiros autores extremamente letrados, o facto de este somente se ter tornado

um género independente durante o Romantismo não constitui grande surpresa, pois como

afirma Zipes: “from the beginning, fairy tales were symbolic commentaries on the mores and

costumes of a particular society and the classes and groups within these societies and how

their actions and relations could lead to success and happiness” (Zipes 2000: 21).

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1.2 - A importância do Fairy Tale no Romantismo

Quando se fala na importância do fairy tale na época do Romantismo, há que ter em

conta que apesar de o mesmo existir já em séculos anteriores, foi durante este período que o

fairy tale se afirmou como género literário independente. Ou seja, é um género literário

relativamente novo e moderno, sendo que se desenvolveu significativamente entre 1450 e

1700, devido a factores como: a padronização e categorização das línguas vernaculares, que

se tornaram línguas oficiais nacionais; a invenção da imprensa; o crescimento dos públicos

leitores pela Europa, que começaram a desenvolver o gosto pela narrativa curta de diferentes

tipos para ler por prazer, ou seja, estabeleceu-se a concepção de novos géneros literários na

língua vernacular e a sua aceitação pela elite (Zipes 2000: 20).

O storytelling sempre existiu – aliás, como afirma o filósofo Richard Kearney em On

Stories, contar histórias corresponde a uma necessidade humana: “Telling stories is as basic to

human beings as eating. More so, in fact, for while food makes us live, stories [...] make our

condition human” (Kearney 2002: 3). Mas, tal como refere Zipes, foram Novellio (séc. XIII

tardio, The Hundred Old Tales), Boccaccio (Decameron, 1345-50) e Chaucer (The

Canterbury Tales, 1387) que de certo modo auxiliaram o estabelecimento do fairy tale como

género independente, embora este tenha estabelecido a sua legitimidade enquanto género

apropriado às classes letradas em França, apenas na última década do século XVII.

Na sua maioria estes contos, que são agora designados literários, foram escritos por

mulheres aristocratas (como Mme d’Aulnoy, Mme d’ Auneuil, Mme de Murat, Mlle Lhéritier,

Mme de La Force, Mme Bernard, e outras), que foram chamadas conteuses, juntamente com

Charles Perrault e Jean de Mailly, tal como afirma Elisabeth Harris em Twice Upon a Time

(2003): “in France […] women were the primary producers of novels and, later, fairy tales,

from about 1650 on. Yet by the mid-nineteenth century their texts were all unknown” (Harris

2003: 21). Segundo Harris, isto que significa que “the only name from this group most

readers still know is Charles Perrault, and the only tales that are still endlessly reproduced are

Perrault’s” (Harris 2003: 21-22); ou seja, desde o início que as conteuses foram excluídas da

constituição do cânone do fairy tale, precisamente por causa do processo de exclusão sob o

qual foi construído este mesmo cânone, o qual é composto sobretudo pelos contos de Perrault

e dos irmãos Grimm (e mais tarde Andersen), sendo, por isso, limitada a nossa compreensão

daquilo que deve ser um conto de fadas, de acordo com a seguinte passagem:

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It is precisely the repetitive process of exclusion that obscures the construction of categories we tend to take for granted, like “the fairy tale” […] we read and reread and write about Perrault’s and the Grimms’ tales because they are the ones that have been available to us. Our understanding of what fairy tales should be is limited to the characteristics of the examples of the genre we have known. (Harris 2003: 21)

Foram estas conteuses, mulheres letradas da aristocracia e, mais tarde, da burguesia, que

instituíram “a moda” de escrever contos de fadas no final do século XVII. E apesar de os

contos escritos por mulheres serem duplamente suspeitos – primeiro, por não aspirarem à

rigorosa simplicidade de Perrault, e, segundo, por serem parte constituinte de uma nova

economia literária que ameaça a antiga (Harris 2003: 26) –, estes continuaram a ser

publicados durante o século XVIII (o fairy tale estabeleceu-se definitivamente como género

literário em 1720), constando no Cabinet des fées (1785-1789), mas somente até à Revolução

Francesa, após a qual Perrault se tornou o autor francês consagrado de fairy tales (Harris

2003: 26). Deste modo, Harris compara-os da seguinte forma:

The frontispiece of Perrault’s original collection has imprinted certain notions about the telling of tales on generations of readers. […] First, he does not sign his name to the edition of the Contes published in 1697 but rather ascribes them to his son Pierre Darmancourt, then nineteen. […] Perrault may not have been confident in 1696 or 1697 […] that the tales were worthy of him. Or perhaps […] he wanted to enhance his son’s reputation at court. The evasiveness of the signature, however, is part of the elaborate set of strategies that Perrault established […] to frame his tales and direct his readers’ responses. […] Far from simply copying or imitating the tales he may have heard (but probably read), he consciously framed them in a way that seemed to guarantee their stylistic naïveté and their connection to an oral folk tradition. (Harris 2003: 28-31)

Ao apresentara-se como contador de histórias, Perrault mostrava-se humilde e relutante em

assinar o seu trabalho, possivelmente, por acreditar que não era digno de o fazer, o que

resultou numa estratégia elaborada para estabelecer os seus contos, garantindo que os mesmos

mantinham o seu estilo inocente e a correlação com a tradição oral. Já as conteuses adoptaram

uma estratégia oposta. Estas mulheres desenvolveram modos sofisticados e técnicas literárias

complexas para escrever as suas histórias, contrastando com os autores masculinos pelo facto

de se apresentarem como escritoras sofisticadas e não meras contadoras de histórias, para

além de que escreviam explicitamente para adultos, como refere Harris:

In contrast, the women who wrote tales in the 1690s presented themselves […] as sophisticated writers rather as than simple peasant storytellers. […] If they identified themselves primarily as tellers of tales, they would find it more difficult to see themselves as writers of tales. Like Perrault, they were conscious of the implications of the “paratexts” that surrounded their work and their print mediums they used:

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frontispieces, title pages, choices of fonts and illustrations. […] But unlike Perrault, they were writing explicitly for adults, not children […]. And their stories, unlike Perrault’s, tend to be long, complex, and often full of digressive episodes and decorative detail. ( Harris 2003: 31-32)

É precisamente no seguimento desta afirmação que Harris enfatiza a grande questão: qual é a

importância dos fairy tales no Romantismo? A sua importância no decurso deste movimento

deriva do facto de começarem a ser escritos e pensados (talvez já a partir de Perrault) como

literatura infantil. Contudo, é necessário relembrar que este desenvolvimento provém de

aspectos como: a inserção de contos didácticos por parte de Fenélon nas suas lições a

Dauphin, ainda em 1690s; a impressão de La Magazin des infants (1743) por Mme Leprince

de Beaumont, que incluía dez ou mais contos moralistas para crianças; mas sobretudo porque

o storytelling se tornou parte do processo de civilização nas famílias aristocratas e burguesas,

sendo as histórias contadas por mães, amas, tutoras e governantas, nas chamadas nurseries

(Zipes 2000: 23). De acordo com Zipes, a grande produção de livros para crianças surgiu no

século XVIII e o fairy tale assumiu uma nova dimensão, incluindo a preocupação em

socializar as crianças através de literatura que fosse apropriada às mesmas, consoante a sua

idade, mentalidade e valores, tal como indica o excerto:

By the 18th century there began in France, German, England, a serious production of books for children and the genre of fairy-tales assumed a new dimension which now included concerns about how to socialize children and indoctrinate them through literary products that were appropriate for their age, mentality, and morals. The rise of ‘bourgeois’ children’s literature meant that publishers would make the fairy tales genre more comprehensive, but they would also […] pay great attention to the potential of the fantastic and miraculous in the fairy tale to disturb and enlighten children’s minds. (Zipes 2000: 24)

Por outro lado, no século XIX houve uma contribuição importante por parte dos autores

românticos, sobretudo dos germânicos, na grande alteração que o género sofreu: os contos de

fadas começaram a responder às preocupações práticas e filosóficas das classes médias e eram

escritos de forma a defender a imaginação e a criticar os piores aspectos do iluminismo e do

absolutismo, porque no fundo, não pretendem simplesmente entreter o público, mas sim

envolver o leitor ou ouvinte num debate sério sobre a arte, a filosofia, a educação e o amor

(Zipes 2000: 24). Por sua vez, os românticos britânicos, nomeadamente William

Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, John Keats, Lord Byron, Percy Bysshe

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Shelley, William Blake2, procuraram redescobrir a sua herança ao explorarem o folclore e a

história da chamada “gente pequena”3, o que resultou numa espantosa produção de fairy tales

em inglês durante a segunda metade do século XIX. E foi precisamente durante este século

que se verificou a principal alteração na função dos fairy tales para adultos e que, apesar da

existência de uma grande variedade de livros destinados às crianças, o conto de fadas infantil

foi controlado e censurado até 1820, como demonstra a seguinte passagem:

The function of fairy tale for adults underwent a major shift: it was made an appropriate means to maintain a dialogue about social and political issues within the bourgeois public sphere; while the fairy tale for children was carefully monitored and censored until the 1820s: although the published collections, they were not regarded as prime and ‘proper’ for the development of young people’s minds. (Zipes 2000: 25)

No entanto, foi somente a partir da década de 1820s, que o fairy tale se tornou aceitável como

literatura infantil, sobretudo porque os próprios adultos (os pais, tios ou avós) se tornaram

mais tolerantes perante a fantasia literária, como refere Zipes:

The publication of Wilhelm Hauff’s Märchen Almanach (1826), Edward Taylor’s translation of the Grimms’ tales as German Popular Stories (1823), and Pierre-Jules Hetzel’s Livre des infants (1837), indicated the acceptance of fairy tale for young readers. This acceptance was largely due to the fact that adults themselves become more tolerant of fantasy literature and realized that it would not pervert the minds of their children. (Zipes 2000: 26)

De entre os autores germânicos, foram efectivamente os irmãos Grimm que deram um maior

contributo para esta alteração, uma vez que o seu trabalho foi conscientemente destinado a

duas audiências em simultâneo, tendo tido o cuidado de trabalhar os contos de modo a serem

mais facilmente captados por crianças e adultos (Zipes 2000: 26). O seu trabalho foi muito

importante para a constituição do cânone do fairy tale infantil durante o Romantismo, embora

as suas opiniões fossem moldadas por várias noções românticas acerca dos contos de fadas

ainda dominantes, nomeadamente que os mesmos deviam ser primeiramente para crianças,

que seriam as reproduções ou transcrições mais correctas dos contos orais, entre outras, como

salienta Harris:

2 Que foram seguidos por autores como John Clare, Walter Scott, Mary Shelley, William Hazlitt e Charles Lamb; e posteriormente seguiram-se Robert Burns, Thomas Moore e as irmãs Brontë. 3 O termo ‘little people’ ou “gente pequena” refere-se à designação mitológica ou folclórica de seres como as fadas, os anões, os duendes, os gnomos, os leprenchauns, as pixies, etc. inerentes a várias culturas não só europeias (Céltica, Nórdica, Mediterrânica), como também asiáticas ou americanas.

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The Grimms’ opinions rest on a number of romantic notions about fairy tales that we still tend to share: that they are (or should be) primarily for children; that the best of them are accurate reproductions or transcriptions of oral tales; that oral tales are a kind of natural but marvellous growth from the folk itself, an expression of authentic national spirit; that oral storytelling is on the wane, and its traces must be preserved in print. […] The Grimms wanted fairy tales to be simple, “naïve,” economical, a reflection of their ideas about the folk, and appropriate for the social education of children; the ones they chose became canonical; and now when we read fairy tales we want them to be like the ones the Grimms promoted. (Harris 2003: 23-45)

Ou seja, os irmãos Grimm, inspiraram-se no trabalho de Perrault cerca de duzentos anos

depois e adaptaram as suas próprias ideias sobre o folclore, o romantismo e o nacionalismo, e

criaram uma versão um tanto ou quanto ingénua e simples da tradição de contar histórias que

transmite a ideia de que os fairy tales são, ou devem ser, uma continuação dos folk tales. Mas

ao mesmo tempo atribuem-lhes uma função educativa. Isto reflecte-se no facto de o cânone do

fairy tale ser baseado, como afirma Harris, nos contos que eles escolheram transmitir à sua

audiência, tendo recolhido mais de duzentos contos e lendas, que ainda hoje continuam a ser

publicados e lidos por várias gerações de autores e leitores.

Em suma, como afirma Joseph Jacobs, nas notas introdutórias de English Fairy Tales

(1890): “What Perrault began, the Grimms completed” (Jacbs 1890: 5). Por conseguinte, o

fairy tale para crianças obteve a sua forma definitiva entre 1830 e 1900, sendo Hans Cristian

Andersen o autor mais importante deste período (começou a publicar contos em 1835),

combinando humor, sentimentos cristãos, folklore e enredos originais em contos que

divertiam e instruíam leitores novos e velhos ao mesmo tempo (Zipes 2000: 26-27). Mas

Andersen, ao contrário dos Grimm, não só recolheu histórias populares, como se aventurou a

escrever algumas da sua autoria, recolhendo cerca de cento e cinquenta contos ou mais, e foi

considerado o “pai” da literatura infantil europeia. Contudo, o fairy tale infantil foi, em

grande parte, muito difícil de definir, porque apesar de ser o acontecimento cultural e social

mais importante na vida das crianças, os críticos e estudiosos não estudaram o seu

desenvolvimento histórico como género literário. Deste modo, pode dizer-se que o fairy tale

infantil é intemporal, terapêutico e belo e a sua história permanece um mistério, segundo

afirma Zipes:

Even though the fairy tale may be the most important cultural and social event in most children’s lives, critics and scholars have failed to study its historical development as genre.[...] Fairy tales for children are universal, ageless, therapeutic, miraculous, and beautiful. This is the way they have come down to us in history. Inscribed on our minds, as children and then later as adults, is the impression that it is not important to know about the mysterious past of fairy tales just as long as they are there and continue to be

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written. The past is mysterious. The history of the fairy tale for children is mystery. (Zipes 2012: 1-2)

Acontece que já no século XVII estes contos eram ouvidos por crianças de todas as classes

sociais, uma vez que o povo não excluía as crianças quando se contavam histórias e as amas-

de-leite e governantas, provenientes do povo, transmitiam estes mesmos contos às crianças

das classes altas. É por esta razão que a palavra “Folk” (que significa “povo”) deve ser

entendida como inclusiva e não exclusiva, sendo o folk tale a forma que precedeu aquilo que

se tornaria o fairy tale literário infantil (Zipes 2012: 7-8).

Seguindo esta linha de raciocínio, Zipes afirma que os contos de fadas e a literatura

infantil eram escritos com o objectivo de familiarizar as crianças com as expectativas geradas

na esfera familiar e pública (Zipes 2012: 9). Para além disso, há que ter em conta que as

formas do discurso do conto de fadas e as respectivas configurações dos contos, foram

moldadas e veiculadas pelo processo civilizacional europeu, que sofreu mudanças profundas

nos séculos XVI, XVII e XVIII. A profundidade do conto de fadas literário para crianças, a

sua magia e o seu apelo são marcados por essas mudanças, pois são uma das pedras basilares

da nossa herança cultural burguesa (Zipes 2012: 10).

1.3 - O Fairy Tale na época Vitoriana

Victorian England was an unusual time for fairy lore because many people from all social classes seriously believed in the existence of fairies, elves, goblins, selfies, and dwarfs, otherwise known as the little people, and their beliefs were manifested in the prodigious amount of fairy stories, paintings, operas, plays, music, and ballets from the 1820’s to the turn of the century. The need to believe in other worlds and other types of living people was certainly connected to a need to escape the pressures of utilitarianism and industrialism and a rebellious against traditional Christian thinking. (Zipes 2000: 27-28)

Tendo em conta que a época vitoriana decorreu ao longo de quase todo o século XIX, tal

como a industrialização e a institucionalização do fairy tale como género literário infantil, é

natural que exista uma correlação entre ambos. Esta correlação prende-se, exactamente como

Zipes refere, com a necessidade de evasão da realidade e de acreditar em algo que está para

além e ausente do mundo real.

Mas, na verdade, o conto de fadas sofreu uma outra alteração ou subversão durante a

época vitoriana, como lembra Zipes, “the fairy tale discourse was controlled by the same

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socio-political tendencies that contributed towards strengthening bourgeois domination of the

public sphere”, e, na segunda metade do século, mais propriamente “by the 1860s […] literary

conservatism in children’s book publishing was challenged by a new wave of innovative fairy

tales” (Zipes 2012: 104). Isto significa que, durante a época vitoriana, o fairy tale se tornou

um género muito mais abrangente em termos de público, deixando de ser exclusivo das elites.

Por conseguinte, na obra Beyond the Looking Glass, Jonathan Cott, citado por Zipes (Zipes

2012: 104) salienta:

Writing fairy tales for children had become an acceptable activity. Not only had Thackeray, Ruskin, Dickens, and Christina Rossetti done so, but Victorian children’s book writers were generally less involved than “adult” literary writers in the contemporary debates concerning “moral aesthetics” engaged in by Tennyson, Ruskin, Arnold, Buchanan, and Pater. In some way the Victorian writers for children had transcended the age-old debate concerning the purposes of “literature” (instruction vs. delight) as well as the equivalent moral tract vs. fairy story argument regarding children’s literature. Children’s fairy-tales of this period almost always had a moral or religious basis, but it was often just this conflict between morality and invention […] that created some of the era’s greatest works. (Cott apud Zipes 2012: 104)

A respeito desta alteração, Zipes aponta o desenvolvimento do proletariado, da

industrialização, da urbanização e das reformas educativas, como os principais factores

impulsionadores das mudanças sociais e culturais que afectaram o trabalho de autores nossos

conhecidos, incluindo Oscar Wilde, a par com George McDonald e L. Frank Baum (Zipes

2012: 105), sendo que foram estes três os principais autores que usaram o fairy tale como um

“espelho radical” que reflectia aquilo que estava errado no discurso geral sobre boas

maneiras, costumes e normas da sociedade, e, ao comentarem isso mesmo, alteraram o

discurso civilizacional específico do género do conto de fadas. De igual modo, estes três

autores expandiram o discurso civilizacional do conto de fadas de forma a criar mundos e

estilos de vida alternativos. Esta separação do método tradicional deu azo a uma

experimentação com os contos de fadas infantis no século XX ainda maior, e vários autores

começaram a cultivar o que se pode designar por "arte da subversão" no discurso do conto de

fadas (Zipes 2012:105-107).

Em conclusão, é possível definir o termo fairy tale como sendo uma narrativa curta,

elaborada, escrita por um único autor, distante da realidade no tempo e no espaço, cujo

discurso tem um efeito encantatório que possibilita ao leitor a evasão do real e contém

elementos mágicos ou maravilhosos que possibilitam o final feliz. Enquanto género literário,

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o fairy tale sobreviveu através da transformação e da alteração de circunstâncias do autor,

estabelecendo-se definitivamente no século XVIII, embora o cânone do fairy tale infantil só

tenha ganho forma durante o Romantismo. Acresce que, na viragem do século XVIII para o

século XIX (e posteriormente deste para o século XX), o objectivo do fairy tale deixou de ser

o mero entretenimento e a transmissão da noção de civilidade, para se tornar na crítica

subentendida face às disparidades da sociedade, ou seja, passou a reflectir aquilo que o

respectivo autor considerava estar errado nos valores sociais. Por conseguinte, Oscar Wilde

foi um dos grandes mestres desta arte subversiva e é precisamente sobre os seus contos dentro

do contexto vitoriano que me debruçarei no próximo capítulo.

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2 – Os contos de Oscar Wilde na época Vitoriana

Wilde was public, erotic, active, formally dialogic, and concerned with the dialectical

inversions of middle-class language and life. Regina Gagnier, in “Oscar Wilde and the

Victorians”, The Cambridge Companion to Oscar Wilde, 1997. p.32

Oscar Wilde foi um grande mestre na arte da subversão. Esta mestria adveio,

possivelmente, em grande parte da sua condição “hifenizada” de anglo-irlandês (Moynahan

1995), sendo visto como estrangeiro tanto na Irlanda, onde era demasiado inglês, como em

Inglaterra, onde era demasiado irlandês. Deste modo, e como afirma Zipes, Wilde criticava a

hipocrisia e o peso das convenções da alta sociedade inglesa, procurava expressar, através da

sua arte, pontos de vista religiosos directamente opostos à Igreja Anglicana e pretendia

modificar o estilo e o conteúdo anacrónico dos contos de fadas, que não correspondiam às

sociedades sociais e políticas da Inglaterra moderna (Zipes 2012:116-117).

Como Zipes também observa, Wilde tornou-se um racounteur polido ao participar

nos jantares sociais dos pais desde muito cedo, mas também porque nos mesmos lhe foi dada

a oportunidade de testemunhar o modo como as pessoas refinadas jogavam com as

convenções sociais para exercerem uma troça dissimulada, e aprendeu a explorar modos

alternativos às formas de socialização asfixiantes impostas numa idade muito precoce. Assim,

empregava as suas extraordinárias capacidades retóricas e criativas, tanto para chamar à

atenção, como para manter o mundo à distância (Zipes 2012: 117).

Tal percepção articula-se com a de Declan Kiberd que, em Inventing Ireland – The

Literature of the Modern Nation (1996: 33), afirma que ao colocar o Mar da Irlanda entre si

próprio e a família, Wilde procedeu à reconstrução da sua imagem através da arte de saber

estar ou da pose. Deste modo, considera que a carreira literária do autor se desenvolveu em

torno da ironia e da crítica face à insistência dos senhores ingleses vitorianos em atribuir aos

irlandeses a emocionalidade que eles mesmos temiam; ou seja, Wilde questiona nos seus

ensaios sobre a Irlanda o pressuposto de que, os irlandeses eram vistos pelos ingleses como a

encarnação das emoções que em si reprimiam: “Wilde’s entire literary career constituted an

ironic comment on the tendency of Victorian Englishmen to attribute to the Irish those

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emotions which they repressed themselves. His essays on Ireland question the assumption

that, just because the English are one thing, the Irish must be the opposite” (Kiberd 1996: 35).

Contudo, como Kiberd argumenta, Wilde viu mais longe: viu que a imagem do palco

irlandês diz muito mais sobre os receios ingleses do que sobre as realidades irlandesas, assim

como a “piada irlandesa” revela menos sobre a insensatez inata dos irlandeses do que acerca

do desejo persistente e pungente dos ingleses de pagar por algo divertido. Wilde optou por

dizer que, para os ingleses, algo divertido seria uma performance contínua do “carácter

inglês”; que na realidade esperavam ver algo que se assemelhasse a uma paródia sobre a

própria noção do que seria o “carácter inglês” ou a “piada irlandesa” (Kiberd 1996: 36).

Assim sendo, pode dizer-se que Wilde se superou a si mesmo e aos limites da arte, tornando-

se num vanguardista, cuja técnica assenta fundamentalmente em opostos e acreditando que

um irlandês só se conhece realmente a si próprio fora da sua zona de conforto, isto é, quando

fala, não por si próprio, mas através de uma máscara. Eis como Kiberd descreve os paradoxos

sobre os quais assenta a arte de Wilde:

At all events, Oxford strengthened in Wilde the conviction than an Irishman only discovers himself when he goes abroad, just as it reinforced his belief that ‘a man is least himself when he talks in his own person’ but ‘give him a mask and he will tell you the truth’. […] to become a very Irish kind of Englishman, just as in Ireland his had been a rather English kind of Irish family. The truth, in life as well as in art, was that whose opposite could also be true: every great power evolved its own opposite in order to achieve itself, […] but from such opposition might spring reunion (Kiberd 1996: 37-38).

Deste gesto de abandonar a zona de conforto, ou seja, de deixar para trás tudo o que lhe era

familiar, resultou a invenção ou criação de si próprio, não só enquanto autor, mas também

enquanto homem e cidadão. A excentricidade na qual Wilde se refugiou, como defesa pessoal

(e não só), conferiu-lhe também uma certa singularidade, bastante evidente na sua persona

pública e no seu trabalho. O certo é que o constante equilíbrio entre as duas faces opostas de

si próprio resultou na sua afirmação como o autor vanguardista que maior impacto causou na

época vitoriana.

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2.1 - O Esteticismo e a Estética de Wilde

Segundo afirma Allison Pease no ensaio “Aestheticism and Aesthetic Theory”,

Wilde desenvolveu um apurado sentido estético, sendo a estética um elemento fulcral em toda

a sua obra, dos ensaios às peças e das peças aos contos, passando pelo romance, porque o

autor acreditava na multiplicidade do ego, razão pela qual Pease afirma que a sua noção

estética é simultaneamente idealista e materialista: “Oscar Wilde believed that the self is

multiple. […] Evidence and combined critical opinion suggest that Wilde’s aesthetics are both

idealist and materialist” (Pease 2004: 96). Esta prova combinada com a opinião crítica traduz

o facto de Wilde ser um autor cuja obra assenta em contradições, daí que construa a sua

própria teoria com base em ideias contrárias. Do mesmo modo, Pease esclarece “Wilde,

always a straddler of two worlds at once, is no different in his aesthetics” (Pease 2004: 96).

Isto significa, talvez, que a estética wildiana deve ser tida em conta de acordo com o

desenvolvimento da própria escrita do autor; ou seja, quer dizer que o conceito estético do

autor evoluiu a par da sua escrita.

Deste modo, há a ter em conta que o esteticismo consiste num movimento artístico

que coloca a ênfase dos valores estéticos na literatura, mais do que nos temas socio-políticos,

sendo que no século XIX este movimento estava relacionado com outros movimentos, como o

simbolismo e o decadentismo. Os artistas e escritores do esteticismo afirmavam que as artes

deveriam oferecer um sentido refinado de prazer, ao invés de conterem mensagens

sentimentais ou morais, isto porque acreditavam que a arte não tinha de ter necessariamente

um propósito didáctico; bastava-lhe ser bela. Ou seja, desenvolveram o culto da beleza, que

consideravam ser o factor básico da arte. Assim sendo, este estilo caracterizava-se pela

sugestão em vez da afirmação, pela sensualidade, pelo uso de símbolos e efeitos sinestéticos

ou idealísticos.

Mas Wilde criou a sua própria versão do estilo estético, sendo a sua teoria estética

resumida pela expressão art for art’s sake, até porque, como ele próprio afirma no ensaio

“Decay of Lying” (1889): “Art never expresses anything but itself. It has an independent life,

[...] and develops purely on its own lines” (Wilde 1889). O próprio ensaio fomenta este

argumento, uma vez que possui uma estrutura dramática, isto é, foi escrito sob a forma de

diálogo entre duas personagens num cenário familiar. Assim, segundo Pease, esta teoria

estética de Wilde caracteriza-se pela forma, pelo egoísmo, pela vontade e auto-expressão e

pela consciencialização e autoconsciência, sendo estes dois últimos aspectos fundamentais.

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Como Wilde afirma em “The Critic as Artist”, “for there is no art where there is no style, and

no style where there is no unity, and unity is of the individual” (Wilde 1891).

Importa também salientar que tanto o artista como o público fazem parte do processo

de construção da arte, porque ao testemunhar a auto-realização do autor através da obra, a

audiência ou público também se realiza a si próprio, mesmo que apenas parcialmente. Por

isso, Wilde centra-se na consciencialização do público, sendo este poder de

consciencialização aquilo que transforma a arte e resume o processo estético, como Pease

salienta:

Both artist and spectator are implied in this process: through witnessing the self-realization of the artist as expressed through the art object, the spectator realizes him or herself, at least partially. [...] Wilde focuses on art’s impressive power, centralizing it in the consciousness of the viewer, reader, or spectator of art. And again it is the power of that consciousness to transform itself in and through art [...] that comprises the aesthetic process (Pease 2004: 108-109).

Pease afirma também que Wilde foi mais longe do que qualquer outro pensador estético

vitoriano ao afirmar a superioridade da estética em relação à ética, porque a mesma pertence à

esfera espiritual, e o próprio Wilde afirma que discernir a beleza de algo é o melhor que

conseguimos alcançar: “[…] aesthetics is higher than ethics. They belong to a more spiritual

sphere. To discern the beauty of a thing is the finest point to which we can arrive.” (Wilde

“The Critic as Artist”, 1891). Com efeito, Pease salienta que para Wilde a ética está

correlacionada com a ideia do ser individual, um processo que é dependente da consciência

estética, ou seja, o ser conscientemente estético ou o acto de contemplar é uma acção ética

(Pease 2004: 112).

Para além disso, a ética faz parte dos valores sociais vitorianos postos em causa,

porque, no contexto da Revolução Industrial, existia um contra-senso entre a tradição e a

modernidade. Em “Wilde and the Victorians”, Regina Gagnier afirma “to the Victorian

modernists there were three such master narratives: the pursuit of bread or material well-

being, or freedom from Nature and scarcity; the pursuit of knowledge or Truth, or freedom for

ignorance, superstition and lies; and the pursuit of justice, or freedom from political tyranny

and economic exploitation” (Gagnier 1997:19).

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Quer isto dizer que os modernistas vitorianos acreditavam que a sociedade moderna

inglesa deveria assentar na tríade “Bread, Knowledge, Freedom”4, mas para que tal fosse

possível, a dita sociedade tinha de incorporar na prática a ideia central da modernidade: o

Individualismo – uma vez que o “eu” moderno era indubitavelmente racional e progressivo

(Gagnier 1997: 19). É precisamente nesta ideia que se centra a teoria estética de Wilde, que se

assume como dandy5 em tom provocatório e representativo das próprias afirmações, tendo os

wildianos tardios insistido em descrever Wilde como socialista por o mesmo ter sido um

profundo individualista. A bem da verdade, Gagnier sugere que Wilde captou a essência do

homem económico moderno quando nomeou o cigarro o género perfeito de um prazer

perfeito: aquele que deixa a pessoa insatisfeita (Gagnier 1997: 19-20).

Contudo, a obra de Wilde apresenta valores tanto da economia política clássica como

da neoclássica, sendo que a sua crítica apresenta fé na tecnologia e esclarecimento auto-

interessado, de forma a libertar o povo do trabalho forçado e das grilhetas da propriedade, e

de forma consistente promove o objectivo utópico da criatividade individual. Mas Wilde

também compartilhou muitos dos valores progressistas dos modernistas, também foi tentado

pelos cálculos mais subjectivos do prazer que a nova economia com base psicológica

introduzira, mostrando-se sensível à revelação da personalidade através da escolha e

preferência, como argumenta Gagnier:

Wilde’s work exhibits the values of both classical political economy and the neoclassical or “marginal school”. [...] His criticism shows a faith in technology and enlightened self-interested to liberate people from drudgery and the mind-forged manacles of property, and it consistently promotes the utopian goal of individual creativity [...] and if Wilde shared many of the progressive values of the modernists, he was also tempted by the more subjective calculations of pleasure that the new psychological based economics had introduced. [...] He was sensitive to the revelation of personality through choice and preference (Gagnier 1997: 23).

De igual modo, Gagnier considera que Wilde foi tanto romântico como cínico na sua teoria

política e estética, e que tem sido visto pelos críticos literários como mártir e modelo: “in his

political and aesthetic theory, Wilde was both romantic and cynical. In his drama he was both

sentimental and satirical. For literary critics, he has been seen both as a martyr and a

4 “Bread, Knowledge, Freedom”, são os pilares principais da economia Vitoriana: a transição económica da produção industrial para a economia da produção de massas, o desenvolvimento das artes e da cultura e a liberdade colectiva e pessoal. 5 Termo que designa aquele que valoriza a aparência física, a linguagem refinada e as ocupações prazerosas, aparentando indiferença pelo culto do “eu” e que tenta imitar o estilo de vida aristocrático, sendo proveniente da classe média.

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mannequin, a model of depth or a master of poses” (Gagnier 1997: 26). Isto significa que

situar Wilde no contexto social vitoriano tardio das instituições do jornalismo, publicidade,

educação pública, comunidades homossexuais, criminologia, etiqueta, teatro e prisão, não só

lança luz sobre o estilo paradoxal do próprio, como também sobre a circulação e o consumo

social do conhecimento (Gagnier 1997: 27).

Wilde foi um dos três maiores mestres do esteticismo do século XIX em Inglaterra, e

como tal, insistiu em “The Soul of Man Under Socialism” (1891) que uma base material

saudável e a igualdade de oportunidade eram os requisitos para uma sociedade liberal

democrata. Contudo, Gagnier também considera que Wilde tendia para o anarquismo ou

aquilo que se poderia chamar anarco-sindicalismo, e por isso esperava que o mundo se

tornasse livre da intolerância social ou da opressão do pensamento ou do comportamento

convencional. No fundo, Gagnier diz que a sua contribuição para o progresso da estética

obteve uma grande popularidade, por ser facilmente assimilada pelos valores de mercado, e o

próprio Wilde insistiu que as pessoas têm temperamentos e gostos diferentes, que devem

poder florescer de acordo com as suas próprias regras; e que os seus trabalhos de ficção

consistem em experiências ensinadas sobre os limites sociais da autonomia estética (Gagnier

1997: 28-31). Como o presente trabalho pretende demonstrar, estas experiências processam-se

também no uso que Wilde faz do conto de fadas.

2.2 - O contexto ficcional de Wilde

“To talk about Wilde’s fiction is to talk about everything, for Oscar Wilde was his

own best work of art”, afirma pertinentemente Jerusha McCormack, no artigo “Wilde’s

fiction” (McCormack 1997: 97), sobretudo atendendo àquilo que o escritor irlandês William

Carleton, considerado o precursor do Revivalismo Celta e conhecido sobretudo pela autoria

da obra Traits and Stories of the Irish Peasantry (1830), afirma sobre a ficção: é a base da

sociedade, o elo da prosperidade comercial, a via de comunicação entre nações e,

frequentemente, a intérprete entre um homem e a sua consciência (McCormack 1997: 96).

Para além disso, há ainda a considerar o facto de que Wilde se manteve de ambos os lados do

hífen anglo-irlandês, tornando-se um estranho tipo de irlandês, pois nasceu da “pequena

nobreza” irlandesa, mas assumiu a condição de aristocrata inglês, ocioso, extravagante,

charmoso e educado, sendo que estas virtudes eram, naturalmente, exageradas de modo a

parodiar o estereótipo irlandês: preguiçoso, imprevidente, charmoso e espirituoso; ou seja,

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Wilde apresentou-se como dandy ou forasteiro ocioso, que procurou estabelecer uma nova

aristocracia, segundo afirma McCormack:

Wilde created himself on both sides of the hyphen – he became a queer kind of Irishman: born of the ‘gentry’ in Ireland, Wilde assumed the status of an English aristocrat, leisured, extravagant, charming and mannered. These virtues were exaggerated to parodying the Irish stereotype: lazy, improvident, charming and witty. […] Wilde made himself over a dandy, one who as a leisured outsider, sought to establish a new kind of aristocracy. (McCormack 1997: 96)

Regressando às ideias avançadas por Kiberd, a arte de Wilde, assim como a sua persona

pública, foram fundadas na crítica à insistência vitoriana de instar uma antítese não só entre

todas as coisas inglesas e irlandesas, mas também entre o masculino e o feminino, o senhor e

o servo, o bem e o mal, etc. Além disso, Wilde foi o primeiro artista a desacreditar o ideal

romântico da sinceridade e a substituí-lo pelo imperativo obscuro da autenticidade, pois

compreendeu que ao ser fiel a um único ego, uma pessoa sincera pode ser falsa perante meia

dúzia de outros eus. Daí que, quando os vitorianos reconheciam alguém como tendo

“carácter”, estavam, no entender de Wilde, simplesmente a indicar a previsibilidade da sua

devoção a uma única auto-imagem (Kiberd 1996: 38).

Kiberd também afirma que Wilde troçava das convenções de vestuário e da rigidez

social a que eram forçados os vitorianos, dando primazia ao potencial subversivo da

teatralidade, que fazia com que as pessoas se esquecessem de qual era o seu lugar: “in the

same way, he mocked the drab black suit worn by the Victorian male […] as a sign of the

stable, imperial self. He, on the contrary, was interested in the subversive potential of the

theatrically which caused people to forget their assigned place and to assert the plasticity of

social conditions” (Kiberd 1996: 38). Assim sendo, pode dizer-se que a sua arte subversiva se

aplica, acima de tudo, aos estereótipos de género, aludindo assim à profunda divisão vitoriana

entre o masculino e o feminino, que o autor considerava ser a maneira errada de incutir a

noção excessiva de diferenciação entre os sexos. Assim, como Kiberd argumenta, Wilde

procurou demonstrar que esta antítese da época era pouco significativa:

Wilde’s is an art of inversion and this applies to gender stereotypes above all […] at the roots of these devices is his profound scorn for the extreme Victorian division between male and female, which he saw as an unhealthy attempt to foster an excessive sense of difference between sexes. […] Wilde always liked to create manly women and womanly men, as a challenge to the stratified thinking of his day. […] Wilde demonstrates that the gender-antithesis of the age was almost meaningless. (Kiberd 1996: 39-40)

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Quer dizer que, para Wilde, a noção da multiplicidade do “eu” assume um papel fundamental

na sua arte e é a principal razão pela qual o autor entende o “eu” como uma obra de arte que

deve ser feita e refeita, porque na sua opinião não podemos controlar a vida real, mas através

da imaginação é possível distanciarmo-nos da seriedade do dever e do destino. Por outro lado,

o momento wildiano ocorre quando os pólos opostos são transcendidos, sendo que a utopia é

construída sobre estes momentos, quando todas as hierarquias se tornam um prelúdio à

revolução (Kiberd 1996: 40-41).

Kiberd defende ainda que o envolvimento de Wilde é profético acerca do fim do

império, porque enquanto a Grã-Bretanha conquista novos territórios no exterior, encontra-se

internamente num estado de degradação extrema a nível social. E uma sociedade sem lugar

para os seus dissidentes, artistas ou jovens é uma sociedade que revela problemas. Kiberd

afirma que Wilde tinha conhecimento deste facto, porque veio de uma sociedade em

semelhante estado: a irlandesa, sendo que a Irlanda no século XIX era um local confuso e

devastado, suspensa entre duas línguas:

Wilde’s implication is prophetic of the end of the empire: for while Britain wins further victories overseas […] it will be in a state of terminal decay at home. A society which has no place for its dissidents, its creators or its youth is a society in trouble. Wilde knew this only too well, since he came from such a place: Ireland. […] Ireland in the nineteenth century was a confused and devastated place, suspended between two languages. (Kiberd 1996: 47-48)

Toda esta questão é muito mais complexa do que aparenta, porque ao afirmar-se através desta

voz, Wilde ecoa a sua herança cultural, uma vez que a sua ascendência irlandesa o tornou

sempre desconfiado face ao discurso oficial. De acordo com as ideias avançadas por Jerusha

McCormack: “Wilde turned the linguistic front into a kind of no man’s land […]

camouflaging his own attack in the language of the enemy, he blew it up. […] Wilde is able to

do this precisely because he uses the language of his audience – a language already faithless,

the language of common double talk” (McCormack 1997: 99). Por outras palavras, toda a sua

desconfiança e afirmação extravagante deveu-se também ao facto de a hipocrisia vitoriana

não ser nada mais do que a revelação da existência de uma crise de valores. Isto significa,

então, que Wilde se limitou a expor a destreza com que um conjunto de valores se opõe a

outro, razão pela qual o controlo da arte se tornou um modo de controlo social e político.

Consequentemente, Wilde escreveu os seus fairy tales cuidadosamente, fazendo-os

parecer inocentes, mas sem o serem, porque os mesmos foram inspirados numa cultura

degradada: “all, while posing as innocent, were dangerous; all drew their inspiration from the

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degraded culture, driven underground” (McCormack 1997: 102). Há também que atentar no

facto de que Wilde escreveu durante um ponto de viragem para a Irlanda, quando o equilíbrio

entre duas culturas divergentes, a inglesa e a irlandesa, começava a pender sobre a última.

Mas além disso, na medida em que recuperavam uma cultura considerada degradada, os seus

contos foram também o meio pelo qual ele se inventou a si próprio como escritor irlandês

para uma audiência inglesa (McCormack 1997: 102-103).

Deste modo, de acordo com as afirmações de McCormack, a construção da

identidade irlandesa do autor é multifacetada, reflectindo-se através da tradição literária

popular anglo-irlandesa, sem ser arrancada directamente ao folclore nativo. Ou seja,

McCormack afirma que aquilo que marca Wilde enquanto escritor da sua classe consiste na

sua preferência pela fantasia face ao realismo, por uma linha narrativa que opera em diversos

níveis (e que em si mesma é suspensa e complicada por uma série de variações) e pela

separação entre o enredo e o discurso, sendo a acção suspensa indefinidamente por uma

espécie de divagação. Isto na medida em que o único objectivo dos contos é o compromisso

da linguagem consigo própria, numa espécie de decoração verbal (McCormack 1997: 103).

Por outro lado, tal como referi inicialmente, Wilde pretendia opor-se à Igreja

Anglicana, sendo a oposição entre a igreja anglicana e a igreja católica outra fonte de

controvérsia. Contudo, como irlandês, o autor veio de uma cultura que foi durante muito

tempo (e possivelmente ainda é) das mais orais da Europa, pelo que se formou enquanto

pessoa através da conversação, tal como foi pela mesma que compôs literalmente as suas

versões das palavras de Jesus. Mas, segundo McCormack, Wilde não se limitou a atacar os

textos sagrados: ele aspirava a reescrevê-los, segundo o que ele próprio afirmou sobre a

Bíblia: “when I think of all the harm that book has done, I despair of ever writing anything to

equal it” (McCormack 1997: 100-101).

Por seu turno, Jack Zipes considera que a colectânea The Happy Prince and Other

Tales (1888) se tratou da obra ideal para iniciar o seu grande período criativo, por revelar o

quão perturbado Wilde se encontrava face à forma como a sociedade condicionava e punia os

jovens se estes não se conformassem com as regras aplicadas, tendo sido sempre sensível à

autoridade escolar e rigidez da Igreja que a maioria das crianças inglesas tolerava. Os seus

contos estão imbuídos de uma noção social cristã humanista, e contradizem o processo

civilizacional que era então praticado em Inglaterra. Para conseguir o efeito que desejava,

Wilde rompeu com a ideologia didáctica dos contos de fadas clássicos e das histórias infantis

vitorianas, de modo a espelhar os problemas sociais da Inglaterra vitoriana com um lampejo

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de esperança, ou seja, um impulso utópico de mudança, como Zipes defende no seguinte

excerto:

It is most fitting that the volume The Happy Prince should be the work that was to launch his great creative period, for it reveals how highly disturbed Wilde was by the way society conditioned and punished young people if they did not conform to the proper rules. […] Yet he had always been sensitive to the authoritarian schooling and church rigidity that most English children were expected to tolerate. His tales are imbued with a Christian social notion of humanism, and they contradict the civilizing process as it was practised in England. To achieve the effect he desired, Wilde broke with the apologetics of classical fairy tales and the puerile Victorian stories to mirror social problems in Victorian England with a glimmer of hope – with a utopian impulse for change. (Zipes 2012: 119)

Segundo as afirmações e ideias avançadas por Zipes, o propósito fundamental de Wilde ao

escrever estes contos é a subversão, tendo estes sido compostos para se enquadrarem no

discurso da tradição do fairy tale e para alterar o seu rumo de maneira drástica. Por sua vez, a

subversão detém também um fim específico, porque se trata de uma via para alcançar o

socialismo e, através deste, atingir o individualismo humanitário da arte, tal como Zipes

salienta, a propósito do ensaio “The Soul of Man Under Socialism”:

“The Soul of Man Under Socialism” brings together his disparate views on socialism […] and its importance rests not in its theoretical contribution to the cause of socialism but in the way it lends understanding to the unique socioaesthtics of Wilde. It does not take much to make humans socialists, but to make the socialism human is a great task. This is the central idea of his essay, which depends on Christ as its theoretical construct, and all his fairy tales evince the same sentiments. The major reason why Wilde argues for socialism is that it will lead to individualism in a humanitarian sense. (Zipes 2012: 120)

De acordo com Zipes, a convicção de Wilde de que Cristo foi a sua própria persona é

elucidativa sobre a importância que o socialismo como meio de chegar ao individualismo teve

para este autor. Acontece que o advento do socialismo fortalece a causa da arte, que é também

a forma mais intensa de individualismo universalmente conhecida. Para além disso, Wilde

considerava que é através do contentamento que o individualismo futuro se desenvolverá. Ou

seja, Cristo não fez nenhuma tentativa de reconstruir a sociedade e, consequentemente, o

individualismo que ele pregou aos homens poderia ser realizado apenas através da dor ou da

solidão.

Os ideais que devemos a Cristo são os ideais de um homem que resistiu

absolutamente à sociedade. Por um lado, Cristo é referido como um modelo de autoridade e

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humanismo, mas, por outro lado, deve ser transcendido através de uma luta comum de alegria

rumo ao socialismo (Zipes 2012: 120). Zipes esclarece ainda que o facto de o autor retratar

nos seus contos de fadas tantos protagonistas inspirados em Cristo não significa que quisesse

propagar a via cristã como o caminho para a salvação ou que se sentisse obrigado a introduzir

o moralismo cristão por causa das crianças. Na verdade, o crítico argumenta que Wilde usou a

figura de Cristo para mostrar a necessidade de subverter a mensagem cristã tradicional (Zipes

2012:120-121).

É pelas razões acima apresentadas que os seus contos consistem em

empreendimentos artísticos cujo intuito é expor a devassidão e a crueldade da aristocracia e

da burguesia inglesas, justapondo figuras inspiradas em Cristo contra as fortes normas do

processo civilizacional; acresce que estas figuras foram o objecto estético que Wilde

empregou nos seus contos como o dispositivo revelador dos conflitos e das contradições

sociais. Isto porque, atentando na seguinte consideração de Zipes, enquanto a rejeição social,

juntamente com a compaixão pelos pobres, é apregoada como sendo humana e bela, Wilde

deseja que nos tornemos mais conscientes daquilo que constitui mecanismos como a

dominação e a exploração:

All his fairy tales were artistic endeavours to expose their English aristocracy and bourgeoisie wanton and cruel ways by juxtaposing the Christlike figures to the norms reinforced by the civilizing process. […] This figure was Wilde’s aesthetic artefact, employed by his stories as a device to reveal social conflicts and contradictions. While the rejection of society along with compassion for the poor is upheld as human and beautiful, Wilde wants us to become more aware of what constitutes the mechanisms of ugly action such as domination and exploitation. (Zipes 2012: 122)

Como referi no capítulo anterior, a época vitoriana foi, sem dúvida, uma época invulgar para a

propagação dos contos de fadas em Inglaterra, quanto mais não seja tendo em conta a

fervorosa influência do pensamento católico, predominante em muitas sociedades da época.

Esta difusão forneceu a muitos autores a oportunidade de expressar, de uma forma mais ou

menos velada as suas convicções e opiniões acerca da devoção católica.

Por isso mesmo Wilde marcou a diferença através do seu estilo peculiar e ao fazer

convergir os temas bíblicos e os motivos dos contos de fadas com o objectivo de dar a

conhecer a sua ideia de socialismo cristão, como Zipes refere: “Wilde’s style, the mode that

he chose to present his views of religion, art and civilization, involved a subtle reutilization of

biblical language and traditional fairy tale motifs. That is, he transformed the style and themes

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of the Bible and classical fairy tales, and put them to new use to convey his notions of

Christian socialism” (Zipes 2012:123).

Ao expressar os seus pontos de vista deste modo, Wilde criou a sua própria noção de

ficção e de conto de fadas, deixando a todos aqueles que decidem estudá-lo um grande

desafio: como classificar os seus contos? Tem sido difícil responder a esta questão

academicamente, uma vez que os contos parecem não encaixar na habitual definição de

contos de fadas, até porque, como Zipes aponta “most of Wilde’s tales end provocatively with

Christlike figures dying, and the reader is compelled to ask why such remarkable protagonists

could not fulfil themselves within society” (Zipes 2012: 124).

A resposta é óbvia: como o próprio Wilde se vê e sente como um forasteiro na

sociedade inglesa, logo as suas personagens também não encaixam pacificamente nas regras

concebidas pela sociedade. Esta não conformidade consigo próprio resulta, sobretudo, de uma

subjectividade “hifenizada”, que é relativa tanto a questões nacionais como também sociais e

de género (ou seja, pela sua dificuldade em se ver descrito em termos de polaridades inglês-

irlandês, masculino-feminino, etc.). É por isso que as personagens e os enredos ficcionais que

criou são a sua forma de reflectir sobre a respectiva experiência de não pertença que o

acompanha tanto em Inglaterra, como na Irlanda.

Contudo, Wilde teve o cuidado de não retratar os contornos da utopia, estando

familiarizado com as condições sórdidas da Inglaterra vitoriana (incisivamente retratadas por

Charles Dickens) e compreendeu que a luta seria longa antes de haver qualquer vislumbre da

verdadeira utopia. Foi por esta razão que colocou tanta ênfase na reversão do processo de

socialização ou civilizacional na sua apropriação do discurso do conto de fadas. Deste modo a

configuração dos seus protagonistas implica uma crítica ao processo civilizacional e uma

noção utópica, que reflectiu as disparidades sociais e as condições sombrias da Inglaterra no

final do século XIX, conforme afirma Zipes no seguinte excerto:

Wilde was careful not to portray the contours of utopia because he was so familiar with the sordid conditions in Victorian England and realized that there would be a long struggle before we would even begin to catch a glimpse of real social utopia. This was the major reason why he […] placed so much stress on reversing the process of socialization or civilization in his fairy tale discourse. […] The configurative action of the heroes implied a critique of the civilization process and a notion of utopia that reflected on the actual social disparities and grim conditions in England at the end of the nineteenth century. (Zipes 2012: 125)

Wilde baseou-se na sua própria experiência de vida para incutir nos seus contos o reflexo de

si mesmo, tal como afirma Gyles Brandreth, na introdução a Complete Fairy Tales of Oscar

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Wilde, (2008): “the fairy tales reflect Wilde’s personality, his way of speaking and his way

with words. They reflect his profound knowledge of the Bible and his classical education.

They reflect the range and depth of his readings” (Brandreth 2008: vii). Por outro lado,

Brandreth considera que “the nine stories in Wilde’s two collections, being what they are,

also, inevitably, reflect the great tradition of European fairy tale writing” (Brandreth 2008:

viii), além de sintetizar e caracterizar a singular “marginalidade” de Wilde enquanto autor,

com base no seu carácter peculiar, sendo que o mesmo demonstrou ter amor à linguagem e

fascínio pelo teatro, pelo romântico e o grotesco, a par de uma obsessão pela beleza física e

um desejo de compreender o sofrimento e o amor, como o crítico refere na passagem abaixo:

A love of language, an interest in philology, a fascination with the theatrical, the romantic and the grotesque, an obsession with physical beauty, a belief in transfiguration, streaks of sentimentality and melancholia, and a desire to understand the nature of the suffering and love […] a deep-rooted feeling for the folkloric traditions. (Brandreth 2008: viii)

Em concordância, Jack Zipes afirma, no posfácio da mesma obra, que, de facto, a forma do

conto de fadas possibilitou a Wilde empregar o seu estilo elegante e sagacidade aguçada para

exprimir completamente tanto a sua filosofia da arte como a sua crítica à alta sociedade

inglesa. Contudo, os seus contos são considerados quase proféticos no modo como retratam o

sofrimento que o próprio Wilde teve de suportar ao recusar abandonar o seu papel como

escritor vanguardista: “his stories were not just decorative stepping-stones to this novel but

more like finely chiselled gems […] almost prophetic in the manner that they depict the

suffering that Wilde himself was to endure in the years to come because of his refusal to […]

abandon his role as avant-garde writer” (Zipes 2008: 205-206).

Por outro lado, pode dizer-se que era quase expectável que Wilde se virasse para a

forma do conto de fadas e, decerto, a sua familiaridade quer com o folclore tradicional quer

com o conto de fadas literário explica a sua facilidade em inovar nos seus contos, porque cada

um deles brinca com as expectativas da audiência e subverte o final feliz a que nos

habituaram os seus antecessores (Perrault, Grimm, Andersen), terminando com questões que

forçam o leitor a reflectir sobre os problemas sociais e o papel do artista ou do autor enquanto

inovador, como advoga Zipes no seguinte excerto:

It was almost natural for Wilde […] to turn to the fairy-tale as if it were his proper mode. And certainly his familiarity with traditional folklore and the literary fairy-tale explains why he was able to be so innovative in his own tales, for each one of them plays with standard audience expectations and subverts the customary happy ending

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with questions that make the reader think about social problems and the role of the artist as innovator. (Zipes 2008: 208)

Quer dizer que ambas as colectâneas de contos de fadas, The Happy Prince and Other Tales

(1888) e A House of Pomegranates (1892), podem ser tidas como empreendimentos artísticos

que confrontam aquilo que Wilde previra como tragédia iminente face à ideia de amor não

correspondido e às noções de vanguarda sobre a arte e a sociedade. De igual modo, Zipes

considera que, apesar de se identificar com os seus protagonistas, Wilde transcendeu os seus

problemas através de analogias simbólicas face às contradições entre o artista de vanguarda e

a sociedade britânica do seu tempo, porque “for Wilde, the artist’s role was to find the proper

means to let the beautiful be illuminated against the harsh background of society’s dark hues

of regimentation” (Zipes 2008: 213). Por seu turno, McCormark afirma pertinentemente que,

para Wilde, não houve nada tão comovedor como a morte de alguém jovem; e esta imagem

está presente no coração dos seus contos, ou seja, valida o sacrifício através do qual Wilde

resolve os seus dois amores de conforto e desespero: um sacrifício que os inscreve como

essenciais e sagrados, conforme McCormack propõe:

Nothing is as poignant to Wilde as the death of a young boy. This image lies as the heart of his fairy stories: in the radiant child of ‘The Selfish Giant’, the young king miraculously transfigured the glittering statue of the Happy Prince. […] In the end, it is the endorsement of sacrifice by which Wilde resolves his two loves of comfort and despair: a sacrifice which inscribes these loves as central and sacred. (MacCormark 1997: 107)

Em suma, Wilde foi um autor vanguardista do seu tempo, cujos pontos de vista e aparência

foram, muitas vezes, tidos como extravagantes, mas cuja obra causou bastante impacto na

literatura da época; ainda que as suas peças sejam a face mais visível desse impacto, na

medida em que o teatro é, desde logo, a mais pública das formas literárias, os seus contos têm

um impacto transgeracional, levando a sua crítica da sociedade britânica tanto junto de um

público infantil que as ouvia (e ouve), como junto do público adulto que os lia (e lê) às

crianças. Além disso, os seus contos foram escritos com uma irreverência que reflecte a

miséria e a disparidade sociais e expressa a crença numa sociedade mais justa e humilde.

Estes contos assentam, acima de tudo, na expressão da relevância do auto-sacrifício e do amor

sacrificial (tema sobre o qual incidirá a análise aos contos apresentada capítulo que se segue)

para alcançar a justiça e o equilíbrio social através da escolha individual e da subversão dos

ideais político-religiosos.

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3 - A Representação do Amor Sacrificial

Um novo mandamento lhes dou: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, vocês devem

amar-se uns aos outros. João, in NVI. 13:34.

Atendendo a que os contos wildianos resultam da auto-construção do autor enquanto

escritor irlandês, cuja obra emergiu na época vitoriana para uma audiência quase

exclusivamente inglesa6, o facto de o amor sacrificial ser apresentado como tema central dos

quatro contos aqui abordados (“The Happy Prince”, “The Nightingale and the Rose”, “The

Fisherman and His Soul” e “The Star-Child ) constitui um aspecto muito interessante. Mas na

verdade, acontece que, tal como afirma Jerusha McCormack no artigo “Wilde’s fiction”

(McCormack 1997: 97), não houve nada de mais pungente para Oscar Wilde do que o

sacrifício pessoal. Os seus contos de fadas reflectem este interesse no sacrifício pessoal, muito

embora este género de sacrifício seja mais evidente nos contos da primeira colectânea (The

Happy Prince and Other Tales, 1888) do que nos da segunda (A House of Pomegranates,

1892). Por conseguinte, o tipo de sacrifício representado pelo príncipe feliz, pela andorinha,

pelo rouxinol, pelo pescador, pela sereia, pela mulher pedinte e pela criança-estrela é

ilustrativo do modo como Wilde representa o amor sacrificial. Esta representação remete para

o sacrifício de Cristo, que consiste no principal exemplo de amor sacrificial, tema que será

analisado neste capítulo.

O que significa então amor sacrificial? Na minha perspectiva, o amor enquanto

sentimento é entendido e definido como a grande afeição, a ligação espiritual e o respeito, que

são dedicados à pessoa amada, embora este sentimento nem sempre seja recíproco; mas

também como aquele sentimento desmedido que não encaixa nas regras sociais da lógica e do

senso comum, designado por paixão. Por seu turno, entendo o amor sacrificial como aquele

que é desprovido de sentimentalidade, isto é, é espiritual, incondicional e demonstrado ao

outro abnegadamente, nomeadamente através do sacrifício da própria vida. É aquele amor que

transcende todas as barreiras físicas e espirituais, tal e qual o amor e o sacrifício de Jesus

Cristo, sendo que, por vezes, e num sentido religioso, é elevado a mártir aquele que se

6 Os seus contos consistem num produto literário híbrido, tal como afirma Jerusha McCormack: “What the reader has today in Wilde’s shorter fictions is, then, a hybrid: a literary fairy tale.” (1997:102)

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sacrifica em prol do bem-estar alheio, chegando ao ponto de dar a vida pelos seus

semelhantes.

Deste modo, considero que o amor sacrificial se caracteriza pelo altruísmo, pela

compaixão, pela incondicionalidade e pela transcendência; e recai geralmente numa

transformação espiritual, embora esta nem sempre ocorra. Os quatro contos que irei analisar

no presente capítulo, “The Happy Prince”, “The Nightingale and the Rose”, “The Fisherman

and His Soul” e “The Star-Child”, são ilustrativos destas qualidades, sendo que as mesmas se

correlacionam entre si. Ou seja, cada conto reúne duas ou mais destas qualidades, prova de

que neles se encontra representado o amor sacrificial, sendo o tema central nos quatro contos.

O que quer dizer que, entre si, estes quatro contos representam diferentes configurações do

amor sacrificial.

Na verdade, o amor sacrificial define o conflito entre a auto-transcendência, que é

demonstrada através das acções altruístas de alguém, e o amor-próprio, que é demonstrado

quando essas atitudes são egoístas. Além disso, este tipo de amor requer uma grande

capacidade de amar e de perdoar. Como Moshe Halbertal observa, na introdução de On

Sacrifice (2012), existe uma certa necessidade social do sacrifício pessoal, necessidade esta

que é inerente aos contos de Wilde aqui analisados: “self-sacrifice for another individual,

value, or collective seems key to much ethical life and political organisation” (Halbertal 2012:

4). Porém, há a ter em conta a distinção, em termos judaicos, que Halbertal faz entre sacrifice

for e sacrifice to, sendo que, no caso dos contos de Wilde constituintes do corpus do meu

trabalho, se aplica o primeiro.

Efectivamente, no imaginário ocidental cristão, a referência ao amor sacrificial remete

inevitavelmente para o sacrifício de Cristo, não fosse este o exemplo mais imediato deste tipo

de amor na cultura ocidental. Contudo, ao basear-se no exemplo de Cristo na composição dos

seus contos, Wilde transformou certos motivos bíblicos em metáforas artísticas e ao subverter

o sentido do final feliz habitual dos contos de fadas, o autor introduziu a noção de que os

mesmos não têm de acabar sempre bem. Nestes quatro contos (“The Happy Prince”, “The

Nightingale and the Rose”, “The Fisherman and His Soul” e “The Star-Child”), o enfoque no

sacrifício é tão pungente que não deixa margem para dúvidas quanto ao seu intuito, apesar de

toda a carga simbólica que estes contos carregam: só através do sacrifício abnegado e

individual, da tolerância e da compaixão para com o outro poderia ser possível alcançar a

utopia de uma sociedade livre de injustiça e desigualdades.

Conjugam-se pois aqui diversas facetas do amor sacrificial – pelo outro

individualmente, mas também por um valor (a justiça) e um colectivo (a humanidade). Tal

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está, porém, longe de acontecer, em tempo algum, sendo, talvez, uma simples projecção

artística na qual o autor explora as correlações entre a arte, o amor e o sacrifício, como sugere

Jack Zipes no posfácio de Complete Fairy Tales of Oscar Wilde (2008), quando afirma:

Through the stories in The Happy Prince and Other Tales there is a sense of impending doom. All the protagonists, the prince, the Nightingale, the giant, Hans, and the Rocket die through a sacrifice either out of love for humanity or love for art. The tales in A House of Pomegranates continue to explore the connections between love, art and sacrifice, but Wilde abandoned the naïve quality of the earlier tales as though he had become more painfully aware of the difficulties a “deviate” artist would encounter in British society, and his tales become more grave and less child-like than the earlier ones. […] As in The Happy Prince and Other Tales, the stories in A House of Pomegranates end on an unresolved or tragic note. The Star-Child, the dwarf, the fisherman all die because their love and sacrifices go against the grain of their societies. Only the young king survives, but it is evident that his future reign, based on humility and material equality, will encounter great obstacles. (Zipes 2008: 211-213)

Em concordância com as ideias avançadas por Zipes, Jalarth Killeen, autor de The Fairy Tales

of Oscar Wilde (2007), afirma que estes contos assentam numa simbologia com significados

irlandeses e católico-populares, são multifacetados e operam num nível elevado, tanto no

simbolismo oculto como na inflexão alegórica, sendo simultaneamente subversivos e

conservadores (Killeen 2007:12). São-no invariavelmente, mas são também um curioso

puzzle artístico, construído através de palavras meticulosamente escolhidas para alcançar o

efeito pretendido: a visão utópica do amor incondicional como possível meio de alcançar uma

solução para os problemas sociais, ao qual só se chega através do sacrifício pessoal.

É este sacrifício individual em nome do amor a outrem ou a uma causa, que marca tão

profundamente os contos de fadas de Oscar Wilde. Acresce que a par do amor sacrificial

representado nestes contos, nos deparamos também com o sofrimento, o orgulho, o

arrependimento, a ingenuidade e a esperança, etc.; sendo que estes estágios ou atitudes

permitem antever o desfecho triste, resignado e insatisfatório destes contos. Ou seja, é através

da consciencialização e percepção destes mesmos estágios por que passam os protagonistas,

que o autor pretende instigar o leitor ou ouvinte a reflectir sobre a realidade que o rodeia e

trazê-lo para fora da sua zona de conforto. É também tendo em conta esta consciencialização

daquilo que a representação do amor sacrificial acarreta para o objectivo destes contos que

procedo de seguida à análise de cada um deles, começando por “The Happy Prince”.

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3.1 - “The Happy Prince”

Este primeiro conto, da primeira colectânea (The Happy Prince and Other Tales,

1888) ilustra o amor sacrificial baseado no altruísmo e na compaixão. Este caracteriza-se por

ser incondicional e abnegado, sendo consideravelmente comum na tradição dos fairy tales,

como por exemplo, no conto “A Rainha da Neve” (1844), de Hans Christian Andersen, no

qual a pequena Gerda empreende uma perigosa jornada para salvar o seu melhor amigo, Kay,

descurando o seu próprio bem-estar, isto tendo em conta que a amizade é considerada uma

forma primária de amor. Este amor altruísta e compassivo é geralmente recíproco e pode

eventualmente levar ao sacrifício da vida. Neste caso, o sacrifício presente neste conto

desenrola-se com base na simpatia e na compaixão, existe reciprocidade e conduz à morte.

Com efeito, “The Happy Prince” narra a história de uma cidade, onde são muitos os

que sofrem de pobreza, e uma andorinha que, ao ser deixada para trás pelo seu bando, que

voou para o Egipto para passar o Inverno, encontra a estátua do falecido príncipe feliz.

Observando o sofrimento causado pela pobreza a partir do seu alto pedestal sobre a cidade, o

príncipe feliz pede à andorinha para tirar o rubi do cabo da sua espada, as safiras dos seus

olhos e as folhas de ouro que cobrem o seu corpo para dar às crianças pobres para poderem

comer: «“We have bread now!”» (Wilde 2008: 20). Aquando da chegada do inverno, o

príncipe encontra-se despojado da sua riqueza, isto é, reduzido ao metal que o compõe e a

andorinha morre em resultado do frio intenso e, consequentemente, o coração de chumbo da

estátua quebra-se. A estátua é então derrubada e derretida para ser feita uma nova estátua, por

decisão do presidente da câmara, deixando para trás o coração partido e a andorinha morta. A

pedido de Deus, são ambos levados para o céu por um anjo, que os considerou as duas coisas

mais preciosas na cidade, para que pudessem viver eternamente na sua cidade de ouro e no

jardim do paraíso.

Este pequeno conto, triste e encantador, inicia a primeira colectânea de contos de

fadas de Oscar Wilde, publicada em 1888. Sendo Wilde um escritor de classe média com

pretensões aristocráticas, encontrava-se numa posição privilegiada em termos de perspectiva

sobre a sociedade, mas poupada à experiência directa da pobreza; uma posição que lhe

permitia contemplar directamente as questões socio-económicas e políticas, presentes neste e

noutros contos de modo figurativo, análoga à posição em que se encontra o príncipe enquanto

estátua. Jarlath Killeen considera “The Happy Prince” um produto híbrido decorrente de

ocorrências vitorianas alusivas à pobreza londrina, no qual Wilde apresenta uma distorção da

Londres real, no intuito de facilitar uma interrogação que possibilite a procura de uma

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resposta para as questões que coloca; é por este motivo que para alcançar o novo reino, o

príncipe se conforma com um ritual de auto-sacrifício (sendo privado da beleza) e amor

(ilustrado pela lealdade da andorinha), à semelhança do que acontece no advento de Cristo,

inaugurado em termos bíblicos e da história da salvação (Killeen 2007: 24-25).

O conto encontra-se estruturado em oito sequências ou momentos, que organizam as

diferentes situações narradas. A primeira sequência narra a descrição da estátua do príncipe

feliz e as considerações sobre a mesma, neste caso tecidas por “one of the Town Councillors”:

«“He is as beautiful as a weathercock […] only not quite so useful”», “a sensible mother”:

«“The Happy Prince never dreams of crying for anything”», “a disappointed man”: «“I am

glad there is someone in the world who is quite happy”» e “the Charity Children”: «“He looks

just like an angel”» (Wilde 2008: 9-10). Na segunda sequência é descrito o enamoramento da

andorinha por um junco, a partida do bando para o Egipto e o desapontamento da andorinha; a

terceira narra a chegada da andorinha à cidade e o seu encontro com o príncipe-estátua. A

quarta narra o pedido de ajuda que o príncipe faz à andorinha, a relutância e a cedência da

mesma em ajudá-lo, e a quinta incide no desenvolvimento da amizade de ambos, na

continuação das boas acções e na partilha de histórias. A sexta incide na decisão da andorinha

de ficar com o príncipe-estátua, tornando-se nos seus olhos uma vez que este se encontra

cego, e na continuação da sua ajuda ao distribuir a folha de ouro que reveste a estátua pelos

pobres; a sétima narra a morte da andorinha em consequência do frio extremo e o quebrar do

coração de chumbo da estátua; e a oitava conclui o conto com a persistente futilidade dos

dirigentes da cidade, face à sua crença de que a estátua perdeu qualquer utilidade sem a

riqueza que a revestia e deve ser substituída, e com a aprovação divina do príncipe feliz e da

andorinha.

A construção deste conto assenta nas dicotomias entre egoísmo e altruísmo,

materialidade e espiritualidade, simpatia e hostilidade, vaidade e humildade, cujo contraste

deixa transparecer quão espiritualmente superiores se tornam o príncipe feliz e a andorinha,

porque enquanto cresce a empatia entre eles, tal como demonstra o uso dos termos “little” e

“dear”, cresce também a futilidade ou materialidade dos conselheiros da cidade ou da dama-

de-companhia da rainha que deseja apenas ter o vestido pronto a tempo do baile. Note-se, por

exemplo, a seguinte passagem: “A beautiful girl came out on the balcony with her lover.

“How beautiful the stars are,” he said to her, “and how wonderful is the power of love!” “I

hope my dress will be ready in time for the State-ball,” she answered” (Wilde 2008: 14); este

diálogo indica que estamos perante o principal contraste do conto: egoísmo versus altruísmo.

Ou seja, enquanto o jovem apaixonado preza tanto o amor pela beleza natural como o ideal de

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amor, a rapariga valoriza somente os valores mundanos e materiais, como o facto de ter o

vestido pronto a tempo do baile.

Contudo, a afirmação do professor de letras da Universidade, já perto do fim do

texto, é a mais contundente prova da futilidade que é aqui representada: «“As he is no longer

beautiful he is no longer useful”» (Wilde 2008: 21); esta comparação opõe aqui a questão da

utilidade da arte e a teoria da arte pela arte; para além disso algo belo não é necessariamente

prático e vice-versa. Importa também referir que o Egipto adquire aqui a conotação de

paraíso: “Egypt” = “Paradise”; facto que remete para o contexto bíblico do episódio da fuga

para o Egipto. Porém, esta não se trata da única referência ao imaginário cristão, pois o texto é

também marcado por expressões como: “he looks like an angel” (Wilde 2008: 10), “[I am]

waited for in Egypt” (13), “There is no Mystery greater as Misery” (19), “House of Death”

(20), “garden of Paradise” (22), “city of gold” (22); expressões estas que remetem para o

exemplo de Cristo, precisamente porque, simbolicamente, o altruísmo do príncipe e da

andorinha se torna semelhante ao de Jesus.

Concordando com Killeen sobre o facto de este conto reflectir alegoricamente a

situação de pobreza que se fazia sentir na Londres do século XIX, é de referir que a dimensão

alegórica do conto permite tanto uma leitura historicamente contextualizada, como uma

leitura susceptível de transcender esse contexto. Esta dimensão alegórica pode pois ser vista

como uma actualização do exemplo de Cristo. Por um lado, considero que este é um conto

sobre o amor sacrificial com base no altruísmo e na compaixão, tal como mencionei

inicialmente. Este altruísmo compassivo surge sequencialmente no texto e traduz-se na

transformação espiritual da andorinha e do príncipe feliz. Ou seja, a representação do amor

sacrificial consiste na passagem do amor-próprio (self) para o altruísmo e para a compaixão

(selflessness), que são constituintes significativos do amor sacrificial.

Por outro lado, o conto é profundamente irónico, sendo que a ironia presente no

mesmo recai, sobretudo, na crítica social apontada por Killeen, porque o príncipe apenas foi

feliz enquanto viveu na ignorância e no conforto conferidos pelos muros do palácio de Sans-

Souci, que significa “sem preocupações”, e ao mesmo tempo alude ao antigo Palácio de Verão

de Frederico, o Grande, em Potsdam, perto de Berlim. Os muros do palácio marcam então a

divisão entre o conhecimento e a ignorância do príncipe-estátua sobre o que é realidade e o

que é fantasia; posteriormente enquanto estátua, o príncipe depara-se com a crua verdade

acerca do que se passa na cidade, onde predominam a hipocrisia, a injustiça e a pobreza,

sentindo-se impotente para corrigir a situação definitivamente:

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When I was alive and had a human heart, […] I did not know what tears were, for I lived in the Palace of Sans-Souci, where sorrow is not allowed to enter. […] And now that I am dead they have set me up here so high that I can see all the ugliness and all the misery of my city, and though my heart is made of lead yet I cannot choose but weep. (Wilde 2008: 12)

Este é o primeiro momento de altruísmo que o conto nos apresenta e surge na terceira

sequência. Mas precisamente porque o príncipe-estátua é impotente para realizar qualquer

acção por si próprio (os seus pés encontram-se fixos no pedestal), solicita a ajuda da

andorinha para levar aos desfavorecidos primeiro as jóias e depois as folhas de ouro que o

cobrem: «“Swallow, Swallow, little Swallow, will you not bring her the ruby out of my

sword-hilt?”» (Wilde 2008: 13). A andorinha começa por se mostrar relutante, isto é, mostra

um certo egoísmo por recear não ter tempo de chegar ao Egipto, mas acaba por aceitar,

porque sente pena do príncipe (sendo este sentimento de pena = compaixão para com o outro

que determina as decisões de ambos) e, posteriormente e de forma inesperada, sente-se

realizada com a sua boa acção, tal como demonstra a seguinte passagem:

“I am waited for in Egypt,” said the Swallow. […] I don’t think I like boys,” answered the Swallow. [...] But the Happy Prince looked so sad that the little swallow was sorry. “It is very cold here,” he said; but I will stay with you for one night, and be your messenger.” […] “It is curious,” he remarked, “but I feel quite warm now, although it is so cold.” “That is because you have done a good action”, said the Prince. (Wilde 2008: 13-15)

A transformação acima mencionada ocorre gradualmente ao longo das sequências quatro e

cinco, dando-se o segundo momento altruísta quando o príncipe-estátua pede à andorinha para

arrancar um dos seus olhos e ela recusa: «“Dear Prince,” said the swallow, “I cannot do that”;

and he began to weep. » (Wilde 2008: 16); mas obedece-lhe. Neste ponto, a andorinha ainda

deseja ir para o Egipto, como demonstra a passagem: «“Dear Prince, I must leave you, but I

will never forget you, and next spring I will bring you back two beautiful jewels in place of

those you have given away”» (Wilde 2008: 17). Porém, a andorinha é incapaz de recusar

quando o príncipe-estátua lhe suplica ajuda uma terceira vez, devido (como mencionei

anteriormente) à compaixão que sente por ele.

A sexta sequência incide no momento fulcral da alteração espiritual da andorinha: o

derradeiro sacrifício altruísta e a conversão da compaixão em altruísmo, quando esta decide

ficar com o príncipe-estátua contra a sua própria natureza de partir. Este momento é elucidado

pela seguinte passagem: «“Then the Swallow came back to the Prince. “You are blind now,”

he said, “so I will stay with you always” “No, little Swallow,” said the poor Prince, “you must

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go away to Egypt.” “I will stay with you always,” said the Swallow, and he slept at the

Prince’s feet”» (Wilde 2008: 18). Por outras palavras, a andorinha sacrifica-se pelo príncipe-

estátua, porque se compadece da sua impotência e respeita a sua determinação.

De igual modo, o príncipe passa por uma alteração semelhante, embora menos

profunda. Desde o início que demonstra altruísmo e compaixão pelos desfavorecidos da

cidade, chamando-lhes “seus”, e, por isso, concretiza apenas a transição do carácter altruísta

das suas acções, baseadas na compaixão, para um carácter sacrificial. O seu sacrifício é

salientado pelo facto de, numa última tentativa de redenção e de ajudar os necessitados,

renunciar ao ouro que o reveste: «“I am covered with fine gold,” said the Prince, “you must

take it off, leaf by leaf, and give it to my poor; the living always think that gold can make

them happy”» (Wilde 2008: 19). Assim, o príncipe sacrifica a riqueza que o torna bonito

enquanto estátua em prol do bem-estar que lhe é possível conferir aos pobres da cidade. No

entanto, o último diálogo entre o príncipe e a andorinha, que marca a sétima sequência, é a

derradeira prova de amor sacrificial presente neste texto, devido à forma como ambos

expressam o sentimento recíproco, isto é, a sua declaração mútua de amor:

The poor little Swallow grew colder and colder, but he would not leave the Prince, he loved him too well. […] But at last he knew he was going to die. He had just strength to fly up to the Prince’s shoulder once more. “Good-bye, dear Prince”, he murmured, “will you let me kiss your hand?” “I am glad that you are going to Egypt at last, little Swallow,” said the Prince, “you have stayed too long here; but, you must kiss me on the lips, for I love you.” […] And he kissed the Happy Prince on the lips, and fell down dead at his feet. And a curious crack sounded inside the statue, as if something had broken. The fact is that the leaden heart had snapped right in two. (Wilde 2008: 20-21)

Porém, o esforço de ambos, ou seja, o facto de o príncipe-estátua se privar daquilo que o

tornava belo aos olhos dos dirigentes da cidade e de a andorinha permanecer na cidade

durante o Inverno, é infrutífero e ineficaz na erradicação dos problemas sociais de que sofre

aquele que foi outrora o seu povo, uma vez que o poder político de decisão continua a ser

detido pelo presidente da câmara e pelos conselheiros. Contudo, ambos encontram na

realização destas acções generosas e abnegadas alguma paz de espírito por terem tentado. Por

esta razão, no término da oitava sequência são elevados a mártires por Deus, sendo o

sacrifício de ambos reconhecido apenas divinamente, como demonstra a conclusão do conto:

«“Bring me the two most precious things in the city,” said God to one of His Angels; and the

Angel brought Him the leaden heart and the dead bird. “You have rightly chosen,” said God,

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“for in my garden of Paradise this little bird shall sing for evermore, and in my city of gold

the Happy Prince shall praise me”» (Wilde 2008: 22).

Verifica-se uma ausência de transformação no plano terreno, tutelado pelos

conselheiros que permanecem insensíveis a tudo o que comoveu o príncipe-estátua e motivou

as suas acções, visto a sua inacção anterior se dever ao desconhecimento estruturante do

status quo político, ou seja, ao poder hierárquico de que usufruía o Príncipe e de que

usufruíam os que o serviam directamente, e que ditou a sua ignorância sobre as vidas dos seus

súbditos. É só a mudança de perspectiva que a morte lhe traz que lhe permite ter

conhecimento da situação real em que se encontra a cidade e assim tomar a decisão ética de

agir ou não agir. Contudo, só o leitor ou ouvinte tem plena consciência do modo como se

desenvolve o sacrifício aqui representado e o consequente reconhecimento divino.

Em termos de perspectiva, existem três planos hierárquicos neste conto: o plano

terreno, onde se movem as pessoas da cidade, o presidente da câmara e os conselheiros; o

plano intermédio, onde se move a andorinha e se encontra fixa a estátua do príncipe, e o plano

divino, onde se movem Deus e o anjo. O plano intermédio e o plano divino podem ser

considerados como sendo equivalentes, uma vez que a perspectiva do príncipe enquanto

estátua pode ser considerada semelhante à de Deus, porque vê tudo o que sucede na cidade,

tal como supostamente Deus vê tudo o que acontece no mundo.

Por conseguinte, a afirmação inicial dos órfãos relativamente à estátua parecer um

anjo (Wilde 2008: 10), confirma esta equivalência de planos e perspectivas. Obviamente que a

verticalidade destes planos ocorre nos dois sentidos: de cima para baixo e de baixo para cima;

uma vez que a estátua é observada pelas pessoas no plano terreno quando estas olham para

cima, como se estivessem a olhar para Deus e o príncipe-estátua olha para baixo para as ver.

De facto, o próprio texto não poderia ser mais claro, devido à recorrência de expressões como

“high above” (Wilde 2008: 9), “tall column” (9), “flew over” (10), “looked up” (12), “flew

away” (14), “passed over” (14), “flew down” (15), “below” (18), “flew into” (19), “flew

back” (19), “fly up” (20), “fell down” (20), “went up” (21), “pulled down” (21), que

enfatizam a correlação entre os diferentes planos. Estas expressões estabelecem,

nomeadamente, a altura do pedestal da estátua e o voo da andorinha.

A conclusão deste conto é muito semelhante à do conto “O Soldadinho de Chumbo”

(1838), de Hans Christian Andersen, onde o pequeno soldado de chumbo termina a sua longa

jornada na lareira, acompanhado pela bailarina, restando apenas algo semelhante a dois

corações nas cinzas. De igual modo, a alusão à pequena vendedora de fósforos remete para

um outro conto de Andersen, “A Pequena Vendedora de Fósforos” (1845), cuja protagonista

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morre de frio e fome, porque não conseguiu vender todos os molhos de fósforos. Isto sugere

claramente a influência da tradição dos fairy tales na escrita de Wilde e remete para a segunda

grande questão da minha dissertação, se em termos genológicos este conto será um fairy tale.

Considero que “The Happy Prince” é, de facto, um conto de fadas, porque reúne elementos e

qualidades do respectivo género literário, apesar da inexistência de um final feliz. Embora

neste não seja tão perceptível como noutros contos, designadamente em “The Star-Child”,

existe a oposição entre a natureza e a sociedade e entre a fantasia e a realidade, que é marcada

pelo rio, geralmente considerado como sendo a fronteira entre a natureza e a civilização ou

entre o real e o irreal. Por outro lado, a narrativa desenrola-se sobretudo na cidade, onde existe

um herói que procura redenção, neste caso, por ter sido descuidado e ignorante, e um ajudante

animal na realização de uma tarefa particular, que é necessária para alcançar a realização.

Estes são elementos muito comuns à maioria dos contos de fadas, mas precisamente

por isso, permitem-me afirmar que este conto é um fairy tale: o rio como fronteira entre o

espaço natural e aberto da fantasia ou do sobrenatural, que é o campo ou a floresta, e o espaço

restrito e fechado, que é a cidade; o herói que procura redimir-se dos seus erros passados, e a

tarefa realizada com a ajuda de um animal. Curiosamente, neste conto, o suposto vilão não

termina vencido, porque o presidente da câmara e os conselheiros continuam a exercer o

poder político na sua futilidade e ignorância após a estátua do príncipe ser derrubada. Este

aspecto é designado por Vladimir Propp em Morphology of the Folktale (1968) como “vilania

repetida”, ou seja, acontece um novo infortúnio ou há a continuidade do inicial: “A great

many tales end on the note of rescue from pursuit. […] Nevertheless, this is far from always

being the case. […] There are no specific forms of repeated villainies (i.e., we again have

abduction, enchantment, murder, etc.), but there are specific villains connected with the new

misfortune” (Propp 1968: 38). Importa salientar que este aspecto também se verifica nos

restantes contos analisados neste capítulo.

Consequentemente, este conto, sendo subversivo, não passa propositadamente uma

moral, nem a ideia de que tudo termina bem ou tem solução, mas sim a noção de que é

preciso agir contra a degradação dos valores e ideais sociais, questionar o que está errado e

procurar entender o sacrifício pessoal como o sacrifício do eu egoísta, um sacrifício que

permita o nascimento de um eu mais compassivo e mais altruísta. Além disso, e tal como

Anne Markey afirma em Oscar Wilde Fairy Tales – Origins and Contexts (2011): “Although

the primary emphasis is on self-sacrifice, ‘The Happy Prince’ draws attention to the

redemptive appeal of storytelling and shows that the fairy tale can negotiate the spaces

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between childhood and adulthood, the material and the spiritual, the real and the ideal” (2011:

103).

Considerando a afirmação de Markey, isto significa que este conto se prende com a

redenção espiritual do protagonista, que adquire plena consciência da negligência que

cometeu para com o seu povo ao não questionar o que se passava para lá dos muros do

palácio, sendo que a dita redenção é alcançada através do amor sacrificial. Mas também refere

a capacidade redentora da arte de contar histórias, a qual se prende com o facto de o acto de

contar e escutar estabelecer uma aliança entre quem conta e quem escuta, ao mesmo tempo

que nos mostra aquilo que o príncipe-estátua não vira até então e nos permite sentir com os

outros, tal como ele sentiu. Para além disso, Markey afirma que o conto estabelece também

um equilíbrio entre pólos opostos, por exemplo a materialidade e a espiritualidade ou a

infância e a idade adulta. Apesar de tudo, no conto seguinte, “The Nightingale and the Rose”,

a noção de sacrifício pessoal em nome do amor é ainda mais acentuada e ineficaz.

3.2 - “The Nightingale and the Rose”

A representação do amor sacrificial presente neste conto reúne todas as qualidades

deste sacrifício: o altruísmo, a compaixão, a incondicionalidade e a transcendentalidade.

Quero com isto dizer que este conto ilustra o amor sacrificial de uma forma mais completa,

porque contrariamente aos restantes contos analisados neste capítulo, levanta directamente a

questão da auto-transcendência através da superação do amor-próprio, isto é, do sacrifício

pessoal e abnegado em prol do bem-estar de outrem ou por uma causa. Como neste caso não

existe reciprocidade, o sacrifício aqui representado é ainda mais infrutífero do que no conto

anterior e nos contos subsequentes, mas remete igualmente para o sacrifício de Cristo.

“The Nightingale and the Rose” narra a história de um rouxinol que ouve um jovem

estudante a lamentar-se que a filha do seu professor não dançará com ele, uma vez que não

tem uma única rosa vermelha para lhe dar. O rouxinol ao ouvi-lo e crendo-o um verdadeiro

amante, visita então todas as roseiras do jardim, e uma delas diz-lhe que, apesar de ter sido

maltratada pelo Inverno, há uma maneira de produzir uma rosa vermelha, uma forma que

funciona apenas se o rouxinol estiver disposto a cantar-lhe a sua canção mais doce durante

toda a noite, pressionando o coração contra um espinho e sacrificando a vida. Valorizando o

ideal de Amor e a vida humana acima da vida de um pássaro, o rouxinol aceita e executa o

ritual. No dia seguinte, o estudante leva a rosa à filha do professor, que o recusa novamente,

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argumentando que a rosa não condiz com o seu vestido e que o sobrinho do camareiro lhe

ofereceu jóias verdadeiras, que valem mais do que flores; e o estudante atira furiosamente a

rosa para a valeta, regressa ao estudo da metafísica e da filosofia, e decide nunca mais

acreditar no amor verdadeiro.

Neste segundo conto da colectânea The Happy Prince and Other Tales (1888), a

noção de amor sacrificial é muito mais acentuada do que no primeiro, mas não existe aqui

nenhuma transformação redentora, apenas o sacrifício ainda mais insignificante do rouxinol.

Apesar disso, este sacrifício remete-nos directamente para a imagem do imaculado coração de

Maria e para a coroa de espinhos usada por Jesus na crucificação, através dos vocábulos

“heart’s blood” e “thorn” (Wilde, 2008: 26); tal como aponta Willoughby, citado por Killeen:

“the self-immolation of the Nightingale on the rose-tree thorn should clearly be read as a

version of the crucifixion of Christ” (Willoughby apus Killeen 2007: 42). Por seu turno,

Killeen considera o conto de Wilde pessimista acerca da capacidade universal de alguma vez

entender o trabalho supremo do artista e afirma “Wilde’s story tries to answer the question of

what happens once this perfected love has come into being. One possible reading of the

shocking end of the story is as an indication that the Nightingale [...] has so radically

misunderstood her audience that her sacrifice is useless” (Killeen 2007: 49).

Formalmente, o conto encontra-se estruturado em seis sequências, que organizam as

situações narradas. A primeira narra o lamento aparentemente desesperado do estudante, por

não ter uma rosa vermelha para oferecer à sua suposta amada (a filha do professor), que

dançaria com ele se lhe desse uma rosa vermelha, e a empatia sentida pelo rouxinol, com base

na sua ingénua noção do que será um verdadeiro amante. A segunda narra a busca quase

infrutífera do rouxinol pelas roseiras do jardim e a terceira narra a solução arriscada revelada

pela última roseira, a par da decisão irredutível do rouxinol. A quarta incide sobre a tentativa

do rouxinol de consolar o estudante, que se mostra insensível e ignorante perante a simpatia

do mesmo, e a sua despedida do carvalho com uma última canção. A quinta incide sobre a

realização do ritual de criação da rosa e a consequente morte do rouxinol e, por fim, a sexta

conclui o conto com a rejeição da rosa e do estudante por parte da filha do professor e a

rejeição do amor verdadeiro por parte do estudante, sendo que ambos se revelam materialistas

e superficiais, ignorado por completo o sacrifício abnegado do rouxinol.

Contrariamente a “The Happy Prince”, que assentava em várias dicotomias, a

construção deste segundo conto assenta somente na dicotomia entre amor e lógica. Esta

dicotomia é apresentada ao longo do conto, conferindo-lhe um tom trágico e fazendo antever

o desfecho do conto, logo na primeira sequência quando o rouxinol comenta que finalmente

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se depara com um verdadeiro amante: «“Here at last is a true lover”, said the Nightingale.»

(Wilde 2008: 23). Estes ideais confrontam-se nas perspectivas do rouxinol e do estudante.

Assim, o rouxinol idealiza o Amor e encara-o como sendo algo maravilhoso e digno de todos

os sacrifícios, inclusive e sobretudo o da vida: «“ Surely Love is a wonderful thing. It is more

precious than emeralds, and dearer than fine opals. Pearls and pomegranates cannot buy it,

nor is it set forth in the market-place. It may not be purchased of the merchants, nor can it be

weighed out in the balance for gold.” (Wilde 2008: 24). E esse mesmo amor é desprezado no

fim do conto pelo estudante, que o considera inútil face à razão, porque induz em falsas

esperanças, tal como demonstra a seguinte passagem: «“What a silly thing Love is,” said the

student as he walked away. “It is not half as useful as Logic, for it does not prove anything,

and it is always telling one of things that are not going to happen, and making one believe

things that are not true.”» (Wilde 2008: 31).

É claro desde o início que o rouxinol acredita na superioridade do ideal de Amor; daí

que o considere maravilhoso e mais precioso do que as esmeraldas, as pérolas e as opalas,

etc., no fundo melhor do que qualquer riqueza; ou seja, o rouxinol recorre à comparação do

amor com bens materiais, de modo a evidenciar essa crença na superioridade do mesmo. Em

contrapartida, o estudante, que inicialmente fala como um verdadeiro apaixonado, desiste do

amor à primeira contrariedade e compara-o à lógica, que não é material, mas é explicável

através da razão.

Porém, esta necessidade que ambos têm de idealizar, comparar e pesar a noção de

amor, resulta efectivamente da inexperiência de ambos em relação ao mesmo, porque nenhum

deles alguma vez vivenciou quer o amor verdadeiro por outrem, quer o ideal de amor, isto é,

não têm uma noção clara do que é viver verdadeiramente o amor para o poderem definir

concretamente. Na minha perspectiva, este conto centra-se no amor sacrificial, embora, tal

como já referi, não seja aqui apresentada uma transformação espiritual que possa ter um efeito

redentor, porque não existe aqui a procura da redenção. Acontece que neste conto o sacrifício

acima descrito ocorre devido ao erro do rouxinol ao interpretar a “tristeza” do estudante como

paixão e, por isso, considerá-lo um verdadeiro amante. Este facto é anunciado imediatamente

pela primeira fala do rouxinol:

“Here at last is a true lover,” said the Nightingale. “Night after night have I sung of him, though I knew him not: night after night have I told his story to the stars, and now I see him. […] “Here indeed is the true lover,” said the Nightingale. “What I sing of, he suffers, what is joy to me, to him is pain.” (Wilde 2008: 23-24)

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É precisamente com base nesta idealização do amor e do amante que, na segunda sequência, o

rouxinol cumpre a demanda de encontrar uma rosa vermelha (e note-se o facto, irónico, de a

mesma ser um símbolo de paixão e de devoção pela pessoa amada). Ou seja, o rouxinol está

de tal modo enamorado pelo ideal de amor, que, na sua ingenuidade, se dispõe a tudo,

incluindo dar a vida, de forma a ajudar o estudante a realizar aquilo que julga ser um

sentimento sincero e verdadeiro. Por seu turno, o estudante e a filha do professor medem a

respectiva noção de amor de uma forma mais frívola e tornam-no dependente de coisas

materiais, por exemplo, o estudante considera que o acto de oferecer a dita rosa vermelha é

suficiente para demonstrar o seu afecto (amor = afecto) para que a rapariga o ame, mas para a

rapariga a oferta de jóias é uma demonstração de amor (amor = admiração) superior ao gesto

de oferecer uma flor. E é por isso que, ao incorrer numa ingenuidade cega, o rouxinol voa

sobre as três roseiras, de rosas diferentes, pedindo a cada uma delas que lhe dê uma rosa

vermelha em troca de uma canção. Apenas a última pode satisfazer o seu pedido, mas com um

custo elevado, como indica o excerto:

“Give me a red rose”, she cried, “and I will sing you my sweetest song”. But the Tree shook its head. “My roses are red, […] But the winter has chilled my veins, and the storm has broken my branches, and I shall have no roses at all this year”. “One red rose is all I want,” cried the Nightingale, “only a red rose! Is there no way by which I can get it?” “There is a way,” answered the Tree, “but it is so terrible that I dare not to tell you.” “Tell it to me,” said the Nightingale, “I am not afraid.” “If you want a red rose,” said the Tree, “you must build it out of music by moonlight, and stain it with your own heart’s-blood. You must sing to me with your breast against a thorn. All night long you must sing to me, and the thorn must pierce your heart, and your life-blood must flow into my veins, and become mine. (Wilde 2008: 26)

Esta solução avassaladora e tenebrosa surge na terceira sequência, a par com a decisão do

rouxinol de executar tal ritual, porque, apesar de a morte ser um preço elevado, o mesmo

considera que o amor é superior à vida e que o coração de um pássaro não se compara a um

coração humano, como se nota na seguinte passagem: “Death is a great price to pay for a red

rose,” cried the Nightingale, “and Life is very dear to all. […] Yet Love is better than Life,

and what is the heart of a bird compared to the heart of a man?” (Wilde 2008: 27).

Efectivamente, ao considerar o amor superior à vida, o rouxinol está a equacionar a ideia de

morrer por uma causa. Isto quer dizer que aquilo que o rouxinol preza realmente é o ideal de

Amor como algo belo, nobre e sublime. Na sequência seguinte é possível notar a antecipação

do desfecho do conto, porque enquanto o rouxinol tenta consolar o estudante, este mostra

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somente incompreensão e indiferença perante a complexidade da empatia do rouxinol, como

exemplifica o excerto:

“Be happy, cried the Nightingale, “be happy; you shall have your red rose. I will build it out of music by moonlight, and stain it with my own heart’s-blood. All I ask of you in return is that you will by a true lover for Love is wiser than Philosophy, though she is wise, and mightier than Power, though he is mighty.” The Student looked up from the grass, and listened, but he could not understand what the Nightingale was saying to him, for he only knew things that are written in books. (Wilde 2008: 27)

Deparamo-nos aqui com outra comparação feita pelo rouxinol, quando este considera o amor

mais sábio do que a filosofia e mais poderoso do que o poder. Mas, mais uma vez, esta

comparação resulta da sua ingenuidade face à definição de amor verdadeiro. De igual modo, o

estudante é incapaz de compreender o rouxinol, porque o facto de conhecer apenas o

conhecimento escrito nos livros significa que carece de sensibilidade espiritual para

compreender qualquer coisa que seja imaterial. Na passagem seguinte, quando o rouxinol se

despede do carvalho, o estudante reconhece a arte da pequena ave, mas mostra-se sempre

descrente da sua sinceridade, afirmando que a mesma não seria capaz de se sacrificar pelos

outros, uma vez que todas as artes são egoístas.

Contudo, estas considerações são meros reflexos do próprio estudante e provam a

subversão latente neste conto quando o mesmo afirma: «“In fact, she is like most artists; she

is all style, without any sincerity. She would not sacrifice herself for others. She thinks merely

of music, and everybody knows that the arts are selfish.”» (Wilde 2008: 28). Importa

considerar esta afirmação, porque a mesma salienta a questão do reconhecimento da arte

(questão abordada no capítulo anterior), ou melhor dizendo, da incompreensão da arte e dos

sacrifícios a que se prestam os artistas. Isto é, os artistas e as artes em geral são considerados

egoístas, como se a sua maior preocupação fosse unicamente o próprio ego, facto este que

evidencia a oposição entre a artificialidade (style) e a autenticidade (sincerity). Por outro lado,

uma das grandes questões nos contos de Wilde, segundo Zipes (2000), é a correlação entre

self, selflessness e sacrifice e a associação da mesma à questão da arte como meio de

compreender a noção de individualismo do autor, sendo que esta noção surge quase sempre

ligada à questão da arte. Além disso, é em torno destas três palavras-chave que gira a

representação de amor sacrificial nos contos abordados neste capítulo.

É exactamente o que acontece no decurso da sequência seguinte: o rouxinol

sacrifica-se pelo estudante, mas este não lhe presta a mínima atenção ou reconhecimento.

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Assim, a canção final do rouxinol divide-se em três partes, assinalando a evolução do

desabrochar da rosa: primeiro canta sobre o amor entre um rapaz e uma rapariga, o que

significa a amizade e o altruísmo; depois canta sobre a paixão entre um homem e uma mulher,

o que significa a lealdade e a paixão (e o desejo sexual) entre um casal; e, por fim, canta sobre

o amor que dura para lá da morte, o que significa a transcendência espiritual do amor para

além do mundo físico. Em consequência desta canção que se intensifica num crescendo de

auto-transcendência, a rosa floresce como algo maravilhoso, ao passo que a vida do rouxinol

se desvanece gradualmente. Isto significa que, à medida que a canção cresce em intensidade e

sobe de tom, o rouxinol vai perdendo as forças e o controlo da própria voz. O seguinte excerto

ilustra, em simultâneo, o desabrochar da rosa, a intensificação gradual da canção e o

desfalecimento do rouxinol:

She sang first of the birth of love in the heart of a boy and a girl. And on the top-most spray of the Rose-tree there blossomed a marvellous rose, petal following petal, as song followed song. […] So the Nightingale pressed closer against the thorn, and louder and louder grew her song, for she sang the birth of passion in the soul of a man and a maid. And a delicate flush of pink came into the leaves of the rose, like the flush in the face of the bridegroom when he kisses the lips of the bride. […] So the Nightingale pressed closer to the thorn, and the thorn touched her heart, and a fierce pang of pain shot through her. Bitter, bitter was the pain, and wilder and wilder grew her song, for she sang of the Love that is perfected by Death, of the Love that dies not in the tomb. And the marvellous rose became crimson, like the rose of the eastern sky. […] Then she gave one last burst of music. […] The red rose heard it, and it trembled all over with ecstasy, and opened its petals to the cold morning air. (Wilde 2008: 28-30)

Este é o derradeiro momento de amor sacrificial representado neste conto, porque o sacrifício

da vida, seja pela vida de outrem ou por uma causa, é a expressão máxima do amor sacrificial.

Neste caso, o protagonista sacrifica-se pelo ideal de Amor, sendo que este sacrifício é

realizado sem pedir nada em troca e, por isso, torna perfeito o amor para além da morte, que é

o amor sacrificial: altruísta, compassivo, incondicional e transcendente. A sexta sequência

conclui o conto de uma forma ainda mais desconcertante do que no conto anterior, porque o

sacrifício do rouxinol não é sequer notado, muito menos reconhecido.

Acresce que o desenlace trágico deste conto assenta tanto no equívoco do rouxinol

(ao considerar o estudante um verdadeiro amante), como no equívoco do estudante (ao

considerar o rouxinol egoísta e incapaz de se sacrificar por outrem e de considerar a “amada”

merecedora dos seus sentimentos); equívocos dos quais só o leitor ou ouvinte tem plena

consciência. Além disso, a rosa é atirada para estrada, onde acaba por ser esmagada pela roda

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de uma carroça, como algo que é dispensável, e tanto o estudante como a filha do professor se

revelam superficiais, cépticos e materialistas, tal como prova o seguinte excerto:

“I am afraid it will not go with my dress,” she answered; “and besides, the Chamberlain’s nephew has sent me some real jewels, and everybody knows that jewels cost far more than flowers.” “Well, upon my word, you are very ungrateful,” said the Student angrily; “Ungrateful!” said the girl. “I tell you what, you are very rude; and after all you are you? Only a Student. Why, I don’t believe you have got silver buckles to your shoes as the Chamberlain’ nephew has”; [...] So he returned to his room and pulled out a great dusty book, and began to read. (Wilde 2008: 31)

Considerando o conto em termos de perspectiva, existe somente o plano terreno, embora se

possa estabelecer um plano intermédio correspondente à perspectiva do voo do rouxinol, tal

como justificam as expressões: “looked out through the leaves” (Wilde 2008: 23), “spread

[her brown] wings for flight” (25), “soared into” (25), “passed through” (25), “sailed across”

(25), “flew over” (25). Em termos linguísticos, este conto assenta na repetição do próprio

discurso narrativo, como é o caso do diálogo ou encontro entre o rouxinol e as roseiras, no

intuito de acentuar o tom trágico em que se desenrola a narrativa, e enfatizando assim o

desenlace do conto. Esta repetição acarreta também marcas de oralidade e tem um efeito

encantatório, que remete tanto para o público-alvo infantil dos contos de Wilde, como para a

tradição oral dos contos de fadas e dos contos populares. Além disso, relembra as próprias

celebrações litúrgicas, nas quais a congregação é exposta ao texto bíblico.

Este conto parece não remeter para qualquer influência da tradição europeia dos fairy

tales, mas, na verdade, o mesmo foi inspirado no conto “O Rouxinol” (1843), de Andersen,

talvez no intuito de parodiar a tentativa do imperador de copiar o canto do rouxinol. Por outro

lado, a própria tragicidade do acto do rouxinol relembra que todas as nossas acções têm

consequências, pelas quais nos devemos responsabilizar; este aspecto é algo que qualquer

fairy tale tradicional tem tendência a transmitir, embora a interpretação de cada leitor ou

ouvinte seja diferente. Assim, este aspecto remete-me para a outra grande questão do meu

trabalho, se este conto será, em termos genológicos, um fairy tale. Na minha perspectiva,

“The Nightingale and the Rose” é um conto de fadas, uma vez que reúne elementos e

qualidades deste género literário, embora os mesmos sejam apresentados distorcidos, e não

detenha um final feliz.

Existe aqui oposição entre a natureza e a sociedade, a fantasia e a realidade, que é

demarcada pela oposição entre o jardim e a casa/rua, e a acção desenrola-se maioritariamente

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no jardim. Neste conto deparamo-nos com um anti-herói que, apesar disso, cumpre a demanda

aqui exigida, sabendo antecipadamente o seu desfecho. Por outro lado, este anti-herói poderia

ser considerado o ajudante animal. Pode também afirmar-se que, tal como no conto anterior, o

vilão não termina vencido, porque o estudante e a filha do professor prosseguem com a sua

petulância material, precisamente porque também ocorre o que Vladimir Propp classifica

como vilania repetida ou continuada (Propp 1968: 38).

Como referi acima, alguns dos elementos comuns a um conto de fadas estão

distorcidos neste texto: o herói é um anti-herói, porque as suas acções o conduzem à morte, o

suposto ajudante animal é o próprio protagonista e a demanda a que se propõe é vazia de

qualquer significado. Contudo, importa ter em conta que a transcendentalidade é alcançada

em plena consciência, quase sem contraposição; isto porque, apesar de conscientemente

considerar a morte um preço muito alto, o rouxinol aceita voluntariamente a proposta da

roseira. Sendo de igual modo subversivo e remetendo para o sacrifício de Cristo, tal como foi

anteriormente mencionado, este conto é, de entre todos os contos, aquele que melhor traduz o

ideal de amor sacrificial, tema em torno do qual se desenvolve o respectivo enredo. À

semelhança do conto anterior, procura suscitar a reflexão do leitor acerca dos valores sociais,

mas também sobre as concepções individuais, porque ao interpretar erradamente o estudante,

o rouxinol condenou-se a si mesmo a um sacrifício vazio de significado, já que nem o

estudante, nem a filha do professor mostram a mínima consideração pelo seu altruísmo.

Em suma, o verdadeiro amante é o rouxinol, que está apaixonado pelo ideal de Amor

e representa o conceito de morrer por amor, enquanto os dois jovens representam a natureza

caprichosa do materialismo social; ou seja, o rouxinol exemplifica concretamente aquilo que

deve ser entendido por amor sacrificial ou morrer por amor. Mas também suscita dúvidas

relativamente a este mesmo ideal e à forma como é pensado na história e na literatura,

sobretudo nesta última, na qual o ideal de amor tende a ser expresso de forma excessiva e, por

vezes, chega mesmo a ser ridicularizado e desprezado. Esta forma de amor sacrificial está

estritamente correlacionada com o exemplo apresentado no conto que se segue, “The

Fisherman and His Soul”, através da concretização do amor romântico presente no mesmo.

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3.3 – “The Fisherman and His Soul”

Após analisar duas representações do amor sacrificial baseadas em mais do que uma

das qualidades do amor sacrificial, analiso agora a representação de amor sacrificial assente

sobretudo na incondicionalidade (romântica), que este conto ilustra. Este exemplo de amor

sacrificial caracteriza-se sobretudo pela afeição ou paixão (que muitas vezes não é recíproca)

pela pessoa amada, dando por vezes forma à tão célebre expressão “morrer por amor”, tal

como acontece com o altruísmo. Apesar da importância da alma humana ser a principal

questão neste conto e de o amor sacrificial surgir como tema secundário, estes estão

correlacionados, sendo exactamente nessa correlação que assenta o sacrifício pessoal

representado neste conto.

Assim, “The Fisherman and His Soul” narra a história de um jovem pescador que

encontra uma sereia, se apaixona por ela e nada mais deseja do que casar com ela, mas não

pode, porque tem uma alma humana. O padre diz-lhe que a alma é o seu bem mais precioso,

os comerciantes dizem-lhe que não vale nada, mas uma bruxa diz-lhe que a sua sombra é o

corpo da alma e que pode ser cortada. Depois de o pescador cortar a sombra e libertar a alma

do seu corpo, a alma pede-lhe que lhe dê o seu coração, mas ele manda-a embora e junta-se à

sereia. A alma viaja pelo mundo, regressando a cada ano para tentar o pescador com a

sabedoria e a riqueza absoluta, mas este preza o amor acima de tudo o resto. Pelo terceiro ano,

deixa-se tentar pela descrição que a alma faz dos pés de uma dançarina e concorda em segui-

la para ver a dita dançarina, e ao erguer-se da água, reúne-se com a alma. Pelo caminho, a

alma impele-o a roubar uma taça de prata, a bater numa criança e a matar e roubar o homem

em cuja casa era hóspede. Quando o pescador a confronta, esta relembra-lhe que não tem

coração e, por isso, só conhece a maldade. O pescador tenta cortá-la de novo, mas descobre

que não pode, porque a recebeu de volta. Regressa então à costa, constrói um abrigo perto da

água e chama a sereia diariamente, mas ela nunca vem. Anos volvidos, o corpo da sereia dá à

costa e o pescador segura-o enquanto as ondas o afogam. O padre, ao encontrar o pescador

afogado, embalando a sereia morta, pronuncia-os amaldiçoados e manda enterrá-los numa

cova sem marcação no canto do campo. Três anos mais tarde, o padre vê o altar coberto de

flores e ao perguntar aos diáconos de onde vieram as flores, estes disseram-lhe que eram do

canto do campo. No dia seguinte, o padre abençoou o mar e a costa, mas as flores nunca mais

cresceram ali e o povo do mar mudou-se para outra baía.

Este penúltimo conto da segunda colectânea, A House of Pomegranates (1892), foi,

de facto, inspirado no conto “A Pequena Sereia” (1837) de Hans Christian Andersen, sendo

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que neste caso é um humano que pretende erradicar a sua alma para cortejar uma sereia e ser

amado por ela; porém, a questão da alma estende-se para além do sacrifício em nome do

amor, o qual não é totalmente desinteressado, uma vez que a motivação do pescador é mais

egoísta. Para além disso, estruturam este conto dicotomias muito discutidas na literatura, por

exemplo, entre bem e mal, paz e violência, cristianismo e paganismo, que directa ou

indirectamente, sustentam toda a questão da existência da alma humana. Mas tudo isto

coexiste com o amor sacrificial, uma vez que este consiste numa forma de amor espiritual.

Segundo afirma Killeen, este conto é considerado o mais obscuro, ambíguo e

complexo dos nove contos wildianos, por causa das dicotomias conflituosas em que se centra.

O crítico aponta para o facto de este conto wildiano representar a transição da superstição e do

paganismo, que ocorreu na Irlanda na altura em que A House of Pomegranates foi publicado

(1892). Por isso mesmo, o exemplo de amor sacrificial deve ser entendido como a ilustração

da necessidade de reformular as relações entre as classes sociais de modo a possibilitar a

harmonia social, relação esta que é representada pela relação entre o pescador e a sereia

(Killeen 2007: 141-156).

Em termos estruturais, este conto encontra-se organizado em onze sequências, que

contemplam as diferentes situações narradas. Estas são consequentemente mais longas do que

nos contos anteriores, porque este conto é também o mais longo dos nove contos wildianos. A

primeira sequência narra o encontro do pescador com a sereia e a promessa de esta de vir à

superfície quando ele a chamar em troca da sua liberdade; a segunda narra o enamoramento

do pescador pela sereia e a questão da alma e a terceira narra o encontro do pescador com o

padre e com os comerciantes, numa primeira tentativa de se livrar da sua alma. A quarta

sequência narra o seu encontro e acordo com a bruxa, a quinta incide sobre o cumprimento

desse acordo e a separação entre a alma e o pescador e a sexta narra a primeira viagem da

alma, após a qual esta seduz o pescador com o Espelho da Sabedoria. A sétima incide sobre a

segunda viagem da alma, no fim da qual esta seduz o pescador com o Anel da Riqueza e a

oitava narra a última viagem da alma, que tenta o pescador com a descrição de uma bonita

dançarina, e a reunião dos dois, quebrando-se o feitiço de separação. A nona sequência incide

sobre a viagem de ambos em busca da dançarina, durante a qual a alma compele o pescador a

cometer actos criminosos, devido a não ter coração, e a percepção do pescador de que a alma

é maldosa e de que não se pode separar dela novamente; a décima sequência narra o seu

regresso à costa, a contínua insistência da alma em tentá-lo a desistir da sereia, a espera

silenciosa do pescador até que o corpo da sereia dá à costa e o consequente sacrifício do

pescador ao deixar-se afogar, e o regresso da alma ao coração do pescador. E, por fim, a

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décima primeira sequência incide na condenação proferida pelo padre, no julgamento e no

reconhecimento divino e na reconsideração do padre.

Há que atentar na questão da alma humana como sendo imortal, tecendo para esse

efeito as devidas comparações entre o conto de Wilde e o de Andersen. A questão é abordada

de forma directa em ambos, deixando antever o desfecho desastroso da demanda impulsiva de

cada protagonista, cuja ingenuidade permite a aceitação de todos os sacrifícios em prol de um

desejo que é quase caprichoso. Os respectivos diálogos não poderiam ilustrar melhor este

aspecto e, por isso mesmo, atentando no conto de Andersen:

“We have no immortal soul; we never have life again. […] Mortals, on the other hand, have a soul which lives forever after the body has turned to dust.” […] “Why didn’t we get an immortal soul?” […] “Isn’t there anything at all I can do to win an immortal soul?” […] “Only if a mortal fell so much in love with you that you were dearer to him than a father and mother; only if you remained in his thoughts and he was so deeply attached to you that he let the priest place his right hand in yours with a vow of faithfulness now and forever; only then would his soul float over into your body, and you would also share in the happiness of mortals. He would give you a soul and still keep his own”. (Andersen 1994: 50-51)

Seguidamente, ao atentar no conto de Wilde, o diálogo que se nos apresenta na segunda

sequência é algo semelhante, mas distinto na medida em que é sobretudo o pescador a falar

directamente com a sereia, contrariamente ao que sucede no conto de Andersen, onde é a avó

da pequena sereia que discursa sobre a alma humana:

“Little Mermaid, little Mermaid, I love thee. Take me for thy bridegroom, for I love thee”. […] “Thou hast a human soul”. […] “If only thou would’st send away thy soul, then could I love thee”. […] “I will send my soul away […] and you shall be my bride, and I will be thy bridegroom,” […] “But how shall I send my soul from me? […] Tell me how I may do it, and lo! It shall be done.” “Alas! I know not, […] the Sea-folk have no souls.” (Wilde 2008: 134)

Existe aqui uma diferença não só face aos contos abordados anteriormente, como também

perante o conto de Andersen, que de igual forma se refere ao amor romântico como

sacrificial, isto é, que se baseia na ideia de morrer por amor; porque enquanto, no conto de

Andersen, a pequena sereia dá a vida abnegadamente em vez de matar o príncipe, no conto de

Wilde, o pescador é, na verdade, responsável pela morte da sereia, escolhendo depois afogar-

se como auto-punição. As personagens da pequena sereia e do pescador são semelhantes

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apenas no facto de encontrarem paz de espírito no respectivo sacrifício, tal como elucidam as

conclusões de ambos os contos.

Assim, em “A Pequena Sereia” (1837), a sereia transforma-se num espírito do ar e é-

lhe dada a oportunidade de criar a sua alma imortal se praticar boas acções. Isto significa que,

apesar de tudo, ela pode, por fim, concretizar o seu desejo, embora apenas de uma forma

espiritual: «“To whom have I come?” […] “You have suffered and endured and have risen to

the world of the spirits of the air. Now by good deeds you can create an immortal soul for

yourself after three hundred years”» (Andersen 1994: 63-64); ao passo que em “The

Fisherman and His Soul”, o pescador, porque alcançou o amor da sereia e realizou o seu

desejo, enaltece o ideal de Amor como sendo o exponente máximo do mundo e conforma-se

com o seu destino, abdicando da sua vida em nome do amor que sente pela sereia, à

semelhança daquilo que o rouxinol em “The Nightingale and Rose” idealizava como

verdadeiro amor: «“Love is better than wisdom, and more precious than riches, and fairer than

the feet of the daughters of men. […] And now that thou art dead, surely I will die with thee

also”» (Wilde 2008: 175). Porém, há a ter em conta que o conto de Andersen é, talvez,

propositadamente moralista, ou seja, a própria personagem chega à moral no fim do seu

percurso, ao passo que no conto de Wilde a moral é subentendida apenas pelo leitor ou

ouvinte, tratando-se de uma narrativa tecida em torno de contrastes, como bem e mal ou certo

e errado.

Por conseguinte, aquando da separação entre corpo e alma, na quinta sequência, a

alma do pescador viaja pelo mundo desprovida da capacidade de amar: «“If indeed thou must

drive me from thee, send me not forth without a heart.”» (Wilde 2008: 145). E por isso

mesmo, é corrompida pela maldade moral e social do mundo. Ao regressar, no decurso da

sexta e da sétima sequências, a alma tenta aliciar o pescador, primeiro com a Sabedoria: «“Do

but suffer me enter into thee again and be thy servant, and thou shall be wiser than all the wise

men, and Wisdom shall be thine. Suffer me to enter into thee and none will be as wise as

thou.”» (Wilde 2008:154). E depois com a Riqueza: «“He who has this Ring is richer than all

the kings of the world. Come therefore and take it, and the world’s riches shall be thine.”»

(Wilde 2008:163). Mas de ambas as vezes o pescador responde-lhe que o Amor é melhor:

«“Love is better than Wisdom” […] “Love is better than Riches”» (Wilde 2008: 154-163).

Por fim, na oitava sequência, a alma consegue seduzi-lo com a imagem dos pés de

uma dançarina (Beleza/Luxúria): «“Her face was veiled with a veil of gauze, but her feet were

naked. Naked were her feet, and they moved over the carpet like little white pigeons.”»

(Wilde 2008: 164), levando-o a constatar que, como a sereia não tem pés, não pode dançar.

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Em consequência da cedência do pescador ocorre a reunião de ambos, embora não sejam um

só, porque o pescador continua apaixonado pela sereia. É no decurso da sequência seguinte

que a alma revela a sua verdadeira natureza, quando tenta corromper o pescador através de

actos maldosos: «“Take that silver cup and hide it” [...] “Smite that child” [...] “Rise up and

go to the merchant’s room […] and slay him, and take from him his gold”» (Wilde 2008: 165-

166). Ao compreender o seu erro, o pescador confronta a alma e esta responde-lhe que sem

um coração para amar, aprendeu somente a ser cruel; o pescador tenta separar-se da alma

novamente, mas descobre que, como a aceitou de volta, isso não é possível, tal como elucida

o seguinte excerto:

“I may not be at peace, for all that thou hast made me to do I hate. Thee also I hate, and I bid thee tell me wherefore thou hast wrought with me in this wise”. And his Soul answered him, “When thou didst send me forth into the world thou gavest me no heart, so I learned to do all these things and to love them.” […] “Nay, but thou art evil, and hast made me forget my love, and hast tempted me with temptations, and hast set my feet in the ways of sin.” […] And he turned his back to the moon, and with the little knife […] he stove to cut from his feet that shadow of the body which is the body of the Soul. Yet his Soul stirred not from him nor paid heed to his command, but said to him, “[…] Once in his life may a man send his Soul away, but he who receiveth back his soul must keep it with him for ever, and this is his punishment and his reward”. (Wilde 2008: 168-169)

A décima sequência dá continuidade à batalha de vontades entre o pescador e a alma, sendo

que o primeiro resiste a todo o custo ao desafio da segunda: “And his Soul tempted him and

said, “Who is thy love that thou should’st return to her? The world has many fairer than she

is. […] Come with me and I will show it to thee. […] But the young Fisherman answered not

his Soul, but closed his lips with the seal of silence.” (Wilde 2008:170-171).

Consequentemente, o pescador regressa à costa à procura da sereia, e, sem obter resposta,

inicia uma vigília que dura dois anos, durante os quais a alma continua a tentá-lo, durante o

primeiro com actos maldosos e ao longo do segundo com actos bondosos: «“And ever did his

Soul tempt him with evil, and whisper of terrible things. Yet did it not prevail against him, so

great was the power of his love. […] “I have tempted my master with evil, and his love is

stronger than I am. I will tempt him now with good”» (Wilde 2008: 172).

Mas o pescador recusa-se a desistir da sereia, dispondo-se a esperar eternamente por

ela. É claro desde o início que o pescador ama a sereia, mas o derradeiro momento de amor

sacrificial ocorre quando, ainda nesta sequência, o corpo da sereia dá à costa. Tal como referi

anteriormente, o pescador não só se entrega a uma alegria desgostosa, como se conforma com

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o seu destino, sendo que as alusões eróticas tocadas pela frieza da morte, que se encontram

presentes nesta passagem do texto, também remetem para o tipo de “amor aperfeiçoado pela

morte” que é cantado pelo rouxinol em “The Nightingale and the Rose”, como demonstra o

seguinte excerto:

And as he spake there came a great cry of mourning from the sea, even the cry that men hear when one of the Sea-folk is dead. […] And the surf took it from the waves, and the foam took it from the surf, and the shore received it, and lying at his feet the young Fisherman saw the body of the little Mermaid. […] Weeping as one smitten with pain he flung himself down beside it, and he kissed the cold red of the mouth, and toyed with the wet amber of the hair. He flung himself down beside it on the sand, weeping as one trembling with joy, and in his brown arms he held it to his breast. (Wilde 2008: 174)

Isto significa que, à semelhança do que acontece nos dois contos abordados anteriormente

neste capítulo, está aqui representado o amor sacrificial, muito embora o seu significado seja

diferente, porque enquanto a andorinha em “The Happy Prince” e o rouxinol em “The

Nightingale and the Rose” se sacrificam abnegadamente, respectivamente, pelo outro e por

um ideal, o pescador deixa-se afogar tanto pelo ideal de Amor, como pelo amor da sereia, que

pereceu voluntariamente porque o amava; ou seja, existe aqui um duplo sacrifício

incondicional por amor, evidenciado pelo discurso apaixonado do pescador:

Love is better than wisdom, and more precious than riches, fairer than the feet of the daughters of men. The fires cannot destroy it, nor can the waters quench it. I called on thee at dawn, and thou didst not come to my call. The moon heard thy name, yet hadst thou no heed of me. For evilly had I left thee, and to my own hurt had I wandered away. Yet ever did thy love abide with me, and ever was it strong, nor did aught prevail against it, though I have looked upon evil and looked upon good. And now that thou art dead, surely I will die with thee also. (Wilde 2008: 175)

Este último discurso reflecte concretamente aquilo que o rouxinol em “The Nightingale and

the Rose” cantava como sendo o ideal de amor verdadeiro. Por seu turno a alma vê

concretizado o seu desejo e volta a ser una com o pescador na morte, através do coração

partido deste7: “And as through the fullness of his love his heart did break, the Soul found an

entrance and entered in, and was one with him even as before” (Wilde 2008: 176). Apesar de

não remeter imediatamente para nenhum episódio bíblico concreto, este conto apresenta um

contexto de oposição religiosa, isto é, uma guerra de vontades entre o cristianismo e o

paganismo, que termina numa possível conciliação. Esta conciliação é proporcionada pelo

7 Note-se a semelhança com “The Happy Prince”, cujo coração de chumbo se parte aquando da morte da andorinha (Wilde 2008: 20-22) e com “The Birthday of the Infanta”, em que o anão morre de coração partido.

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duplo sacrifício retratado neste conto e ilustrada pela reacção do padre, na décima primeira

sequência, perante a miraculosa fertilidade momentânea de um pedaço de terra que era

considerado estéril, o que reflecte o reconhecimento divino da legitimidade do amor do

pescador e da sereia. Este aspecto é assinalado no final do conto, quando o padre abençoa a

costa e o mar, como demonstra a seguinte passagem:

And when the third year was over, […] he saw that the altar was covered with strange flowers that never had he seen before. […] “What are the flowers that stand on the altar?” […] “What flowers they are we cannot tell, but they come from the corner of the Fuller’s Field”. And the Priest trembled, and returned to his own home and prayed. And in the morning, […] he went forth with monks and the musicians, […] and come to the shore of the sea, and blessed the sea, and all the wild things that are in it. […] All the things in God’s world did he blessed, and the people were filled with joy and wonder. (Wilde 2008: 177-179)

Atendendo à complexidade deste conto, ao lê-lo pela perspectiva do amor sacrificial é preciso

ter em atenção o facto de que este tema surge articulado com a questão da alma humana.

Porém, a questão da alma é abordada em consequência do desejo do pescador de casar com a

sereia e, por isso, as duas questões são indissociáveis, de modo que para cumprir o seu desejo

amoroso, o pescador renuncia à alma, que por sua vez persiste em ser novamente una com o

pescador. A forma de amor sacrificial presente neste conto não requer nenhuma mudança

espiritual em particular, porque a aspiração à redenção provém naturalmente da afeição

genuína e do desejo mútuo que se estabelece entre o pescador e a sereia, como comprova a

seguinte passagem: “he plunged into the water, [...] and the little Mermaid rose up to meet

him, and put her arms around his neck and kissed him on the mouth” (Wilde 2008: 146). Mas,

por ser um romance pouco ortodoxo, é claramente visto como aberrante e desafiador da

religião cristã, facto que é posto em evidência nas palavras do padre: «“Accursed be the Sea-

folk, and accursed be all they who traffic with them”» (Wilde 2008: 177).

A complexidade acima descrita é corroborada pela taciturnidade que envolve o

conto, e que está presente quer na reacção inicial do padre perante a decisão do pescador de se

separar da sua alma, pois considera-o perdido para a fé e condena o seu amor, quer na maneira

como é descrito o homem de preto, que representa o diabo, ou até mesmo no modo como a

alma do pescador demonstra a sua malignidade. Considerando o texto em termos prosódicos e

linguísticos, Wilde serve-se de termos arcaicos nos diálogos (thee, thou, thy, wilt, would’st,

desirest, art, hast, doth, knowest, sayest, shalt, telleth, slay, nought, nay, flee, etc.) de forma a

conferir ao texto uma sonoridade semelhante à bíblica. Além disso, o uso repetido de palavras

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como: “sea” (Wilde 2008: 129), “water” (129), “wind” (129), “land” (129), “shore” (129),

“sank down” (131), “rose out” (131), “love” (133), “soul” (133), “sin” (135), “forgiven”

(135), “beasts” (135), “good” (135), “evil” (135), “vile” (135), “pagan things” (135), “peace”

(136), “shadow” (144), “heart” (173), define os três planos existentes no conto: o plano

terreno, onde se movem o padre, os comerciantes e, parcialmente, o pescador; o plano

espiritual, onde se move a alma, e o plano sobrenatural, onde se movem a sereia e o povo do

mar e a bruxa. Estes planos cruzam-se na costa, que é considerada o lugar intermédio e que

define não só a fronteira, mas também a interacção entre a realidade e a fantasia ou entre a

natureza e a civilização e entre os diferentes planos.

O facto de este conto ser facilmente comparado ao conto “A Pequena Sereia” de

Andersen, aponta para a influência da tradição dos fairy tales como uma das principais fontes

da inspiração de Wilde. Fazendo uso da subversão, o autor apresenta, tal como referi

inicialmente, o reverso da situação apresentada por Andersen, não sendo aqui necessário

adquirir uma alma humana, mas sim, a erradicação da mesma. Por conseguinte, há que

considerar se, em termos genológicos, este conto será um fairy tale. Na minha perspectiva,

“The Fisherman and His Soul” é um conto de fadas, porque apresenta elementos e qualidades

deste género literário, embora não contemple um final feliz, tal como acontece, sobretudo, em

muitos dos contos de Andersen.

Existe aqui uma clara oposição entre a natureza e a sociedade, que são separadas pela

costa, sendo no lugar intermédio que se desenrola grande parte da narrativa. Contudo, em vez

de uma demanda, talvez seja mais correcto dizer que existem duas demandas: a do pescador

para se livrar da alma e conquistar o amor da sereia e a da alma para tentar reconquistar o

coração do pescador. No entanto, este conto apresenta duas diferenças em relação aos contos

abordados anteriormente: não detém um ajudante animal e não se pode dizer que haja um

vilão propriamente dito, embora se possa considerar o comportamento da alma como um acto

de vilania, segundo as considerações de Vladimir Propp (1968: 38).

Na verdade, este comportamento nefasto da alma resulta das acções do pescador, ou

seja, é ele próprio quem origina o seu castigo. Apesar disso, as qualidades comuns dos fairy

tales tradicionais estão presentes: a oposição entre natureza e sociedade, a oposição entre o

sobrenatural e a realidade, a demanda empreendida pelo herói que se redime das suas falhas.

Pode dizer-se que, neste caso, o desenlace resulta igualmente do erro do pescador ao

concordar em seguir a alma para ver a dita dançarina, equívoco do qual, mais uma vez, apenas

o leitor tem plena consciência, facto que traduz o apelo à reflexão do público imbuído nos

contos de Wilde.

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Resumindo, este conto persiste em alertar o leitor ou ouvinte para a necessidade do

mesmo ter consciência de que o sacrifício pessoal pode ser realmente um transformador

necessário à mudança social, mas é ineficaz quando carecido de fundamento, ou seja, a

persistência do pescador em legitimar o seu amor pela sereia é um esforço vão face às

convicções religiosas socialmente impostas. De igual modo, reitera o exemplo de amor

sacrificial representado em “The Nightingale and the Rose”, na medida em que este se

concretiza no relacionamento do pescador e da sereia. Acresce ainda que este conto nos

transmite a ideia de que para se alcançar um determinado objectivo ou desejo, é necessário ter

consciência de que existem consequências pelas quais nos devemos responsabilizar. Esta

questão é igualmente tratada em “The Star-Child”, mas de forma mais acentuada e, talvez,

também mais objectiva, uma vez que a concretização da representação do amor sacrificial

resulta das acções/atitudes da criança-estrela.

3.4 - “The Star-Child”

Ao longo deste capítulo abordei diferentes formas de amor sacrificial, baseadas numa

ou mais das qualidades deste tipo de sacrifício: altruísmo, compaixão, incondicionalidade e

transcendentalidade. Este conto reúne sobretudo o altruísmo, a compaixão e a

incondicionalidade sob a forma do amor maternal/filial, que é outro expoente importante

deste género de sacrifício. Este amor, que pode conduzir ao sacrifício da vida em

circunstâncias extremas, é geralmente recíproco (mas nem sempre) e não é muito perceptível

nos contos de fadas, uma vez que a grande maioria dos protagonistas são órfãos ou têm

madrastas (sinalizando assim uma marcada oposição ou afastamento entre a infância e a idade

adulta). Porém, no caso deste conto de Wilde, o amor sacrificial incondicional entre mãe e

filho assume-se como tema central, exactamente porque é a rejeição do amor maternal e da

própria mãe que conduz o protagonista ao sacrifício pessoal e, consequentemente, à

apreciação e retribuição deste mesmo amor.

“The Star-Child” narra a história de um bebé que é encontrado na floresta por dois

lenhadores muito pobres, sendo que um deles se compadece dele e o acolhe. O rapaz cresce

bonito, mas vaidoso, cruel e arrogante, crente de que é filho das estrelas. As outras crianças

seguem-no com devoção, mesmo nas suas mais cruas demonstrações de maldade perante os

desfavorecidos e os animais da floresta. Um dia chega uma mendiga à aldeia que procura o

seu filho perdido, que é a criança-estrela; mas ele rejeita-a e, ao fazê-lo, transforma-se num

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misto de sapo e cobra como castigo. Percebendo a sua crueldade, parte então à procura da

mãe para lhe pedir perdão e deambula pelo mundo durante três anos, até que, por fim, chega a

uma cidade, onde é capturado e vendido como escravo. O mágico que o comprou trata-o

cruelmente e destina-lhe a tarefa de encontrar três pedaços de ouro escondidos na floresta. Ao

prosseguir a sua demanda, o rapaz depara-se com uma lebre presa numa armadilha e liberta-a.

Em agradecimento, a lebre mostra-lhe onde está o ouro e o rapaz recolhe-o (a lebre ajuda-o

por mais duas vezes). Mas ao regressar à cidade com o ouro, por três vezes encontra um

leproso, a quem dá os pedaços de ouro. Ao regressar à cidade pela terceira vez, o povo

aguarda-o para o coroar como novo rei, e aí descobre que a mendiga e o leproso são, na

verdade, os seus pais e governantes da cidade. É nessa altura que recupera a sua beleza,

porque mostrou arrependimento e compaixão. O seu reinado dura apenas três anos, seguindo-

se-lhe um rei cruel.

Em termos formais, este conto está organizado em seis sequências longas que

definem as situações narradas. É também mais longo do que a maioria dos contos de Wilde,

embora não tanto como o anterior. Assim, a primeira sequência narra o desconforto dos

animais da floresta face ao frio intenso do inverno, a descoberta do príncipe pelos lenhadores

e a decisão de um deles de o acolher; a segunda sequência narra a personalidade egoísta e

cruel do príncipe e a terceira narra o encontro do príncipe com a mendiga que é a sua mãe, a

sua rejeição, o consequente castigo e a sua partida à procura da mãe para lhe pedir perdão. A

quarta sequência incide sobre a sua chegada à cidade, a sua captura e venda por parte dos

guardas e compra por parte do mágico; a quinta narra a execução da tarefa que lhe é atribuída

pelo mágico e a fase final da sua transformação espiritual. Por fim, a sexta sequência conclui

com o reencontro do príncipe com os seus pais, a sua recompensa pelo seu sacrifício e a sua

ascensão a governante justo e clemente, terminando numa nota negativa sobre o seu sucessor.

Killeen afirma que a oposição entre a cidade e o campo demonstra o motivo por que

a acção social se tornou uma necessidade no século XIX, sendo que a cidade é

tradicionalmente vista como uma fonte de poluição e o campo é normalmente considerado um

lugar seguro para a moral e a regeneração, e que no conto “The Star-Child” Wilde retrata a

crise provocada pelo processo de secularização. Acima de tudo, o crítico considera litúrgica a

solução que Wilde apresenta para o principal problema da cidade, porque, na prática, o

sofrimento da criança-estrela se assemelha à dor de alguém que está sujeito à vontade

daqueles que detêm o poder do estado. Contudo, a criança-estrela não é simplesmente um

qualquer individuo: é a representação de Cristo (Killeen 2007: 159-169).

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Na minha perspectiva, este último conto, que encerra A House of Pomegranates

(1892), é o mais invulgar dos contos de Wilde. Ao atentar na abertura do conto, deparamo-nos

com a tão familiar fórmula de “once upon a time”, que não encontramos em mais nenhum dos

contos de Wilde, e que reflecte a influência da tradição dos fairy tales e dos folk tales: “Once

upon a time two poor Woodcutters were making their way home through a great pine-forest”

(Wilde 2008: 181). De igual forma, é o único que poderia, eventualmente, ter um final feliz,

não fosse terminar numa nota pessimista sobre o que sucede após a ascensão do príncipe

(criança-estrela), tal como prova a seguinte passagem: “Yet ruled he not long, so great had

been his suffering, and so bitter the fire of his testing, for after the space of three years he

died. And he who came after him ruled evilly” (Wilde 2008: 204), sendo por isso tão

subversivo e diferente do conto de fadas tradicional como os restantes, tal como evidencia

este final.

Mais do que isso, este conto assenta nas dicotomias entre egoísmo e altruísmo e

ganância e humildade. Estas dicotomias surgem na sequência inicial do conto, de forma a

estabelecer um contraste entre os dois lenhadores; a primeira ocorre quando encontram a

criança-estrela: «“Let us leave it here, and go our way, seeing that we are poor men, and have

children of our own whose bread we may not give to another” “Nay, but it were an evil thing

to leave the child to perish in the snow, […] yet will I bring it home with me, and my wife

shall have care of it”» (Wilde 2008: 184-5). E a segunda quando chegam à aldeia onde vivem:

«“Thou hast the child, therefore give me the cloak, for it is meet that we should share” “Nay,

for the cloak is neither mine nor thine, but the child’s only”» (Wilde 2008: 185).

Há que atentar também na dicotomia que se estabelece, na segunda sequência, entre

belo e feio, na qual incorre a necessidade da transformação espiritual da criança-estrela. Este

confronto decorre ao longo da narrativa, entre a beleza exterior e a maldade interior do rapaz,

que ao crescer cada vez mais bonito, também se torna mais cruel. Por outro lado, esta mesma

dicotomia vem problematizar a questão do amor pela beleza salientada em contos anteriores,

sugerindo um padrão de amor espiritual, no qual o bom e o belo sejam sinónimos. Assim, o

rapaz é comparado fisicamente ao branco do ébano esculpido, ao amarelo do narcisso, ao

vermelho das pétalas de uma flor e ao azul das violetas, ou seja, é descrito como possuidor de

uma beleza excepcional, análoga à da natureza, que acabou por lhe moldar uma personalidade

maldosa e egocêntrica, que é demonstrada através do seu desprezo pelos desfavorecidos e

crueldade para com os animais, tal como prova o seguinte excerto:

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And every year he became more beautiful to look at, so that all those who dwelt in the village were filled with wonder, for, […] he was white and delicate as sawn ivory, and his curls were like the rings of the daffodil. His lips, also, were like the petals of a red flower, and his eyes were like violets by a river of pure water, and his body like the narcissus of a field where the mower comes not. […] Yet did his beauty work him evil. For he grew proud, and cruel, and selfish. […] No pity had he for the poor, or for those who were blind or maimed or in any way afflicted, but would cast stones at them and drive them forth on to the highway; and bid them beg their bread elsewhere, so that none save the outlaws came twice to the village to ask for alms. Indeed, he was as one enamoured of beauty, and would mock at the weakly and ill-favoured, and make jest of them; and himself he loved. (Wilde 2008: 187)

Por conseguinte, e como mencionei inicialmente, a criança-estrela rejeita a própria mãe

aquando do seu reconhecimento, durante a terceira sequência, sendo, por essa razão, privado

da sua beleza como castigo pelo seu desprezo e crueldade, o que inicia a modificação acima

mencionada, como demonstra esta passagem:

“If in very truth thou art my mother,” he said, “it had been better hadst thou stayed away, and not came here to bring me to shame, seeing that I thought I was the child of some Star, and not a beggar’s child, as thou tallest me that I am. Therefore get thee hence, and let me see thee no more.” [...] “Surely this has come upon me by reason of my sin. For I have denied my mother, and driven her away and been proud, and cruel to her.” [...] “Wherefore I must go hence, and wonder through the world till I find her, and she give me her forgiveness”. (Wilde 2008: 191-192)

O confronto entre belo e feio anteriormente referido, semelhante àquele que encontramos em

“The Birthday of the Infanta” entre a Infanta e o anão, é então ultrapassado através do auto-

sacrifício, sendo que ainda na terceira sequência surge o primeiro gesto de arrependimento do

rapaz: “And the Star-Child wept and bowed his head, and prayed forgiveness of God’s things,

and went on through the forest, seeking for the beggar-woman” (Wilde 2008: 193).

Além disso, o príncipe vê-se, deste modo, confrontado com a situação inversa,

porque ao longo da sua deambulação é gozado e ninguém lhe concede qualquer simpatia:

“For the space of three years he wandered over the world, and in the world there was neither

love or love-kindness nor charity for him, but it was even such a world as he had made for

himself in the days of his great pride” (Wilde 2008: 194). Esta passagem distingue amor

(love), bondade (love-kindness) e caridade (charity), sendo as duas últimas demonstrações

primárias de simpatia ou amizade, ou seja, são formas mais ou menos carinhosas de mostrar

compaixão por alguém. Ambas se baseiam na preocupação desinteressada com o outro e, por

essa razão, podem ser consideradas como virtudes morais.

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É no decurso da quinta sequência que ocorre a fase crucial da sua transformação

espiritual, num primeiro momento quando demonstra compaixão pela lebre e a liberta: “And

forgetting his own sorrow he ran back to the place, and saw there a little Hare caught in a trap

that some hunter had set for it. And the Star-Child had pity on it, and released it, and said to it,

“I am myself but a slave, yet I may give thee thy freedom” (Wilde 2008: 198). Isto significa

que a criança-estrela, que dava por adquirida e sobrevalorizava a sua liberdade, aprendeu a

respeitar a liberdade alheia, nomeadamente a dos animais da floresta, que costumava torturar

e maltratar. Por mostrar compaixão, é então auxiliado pela lebre, que perante o seu

agradecimento lhe responde: «“Nay, […] but as thou dealt with me, so I deal with thee”»

(Wilde 2008: 198); esta afirmação pode, eventualmente, remeter para os textos bíblicos,

nomeadamente para um dos dez mandamentos que salienta que não se deve cometer

assassínio nem dano físico ou moral, ao próprio ou ao próximo.

E, num segundo momento, apieda-se do leproso e dá-lhe o ouro: “But the leper

entreated him, and prayed him, till the Star-Child had pity, and gave him the piece of white

gold. […] But the leper entreated him sore, so that the Star-Child had pity on him, and gave

him the piece of yellow gold. […] and the Star-Child had pity on him again, and gave him the

piece of red gold” (Wilde 2008: 198-202). Se por um lado, o leproso constitui por si uma

referência bíblica (remetendo para o leproso que foi curado por Jesus), por outro lado o facto

de estes dois momentos se repetirem por três vezes, reflecte a importância da recorrência do

número três ao longo do conto, uma vez que o número três detém uma simbologia fortemente

religiosa, remetendo para a Santíssima Trindade. Este é um elemento recorrente na tradição

dos contos de fadas, por exemplo, três desejos, três tarefas, três ajudas, três objectos, etc., que

também se encontra presente aos longo dos contos anteriores.

Deste modo, a criança-estrela aceita o seu destino como sendo irrevogável: “Yet was

his heart heavy, for he knew what evil fate awaited him” (Wilde 2008: 202). Porém, apesar do

seu sofrimento auto-imposto, o seu sacrifício incondicional é recompensado, na sexta

sequência, com o reencontro com os pais, razão pela qual considero este conto ilustrativo do

amor sacrificial. Porém, é um facto que só existe retribuição do amor e reconhecimento do

sacrifício da mãe, que abdicou de todo e qualquer conforto para vaguear pelo mundo durante

dez anos à procura do filho para lhe dar o seu amor, ao ponto de mendigar comida e abrigo,

após o auto-sacrifício da criança-estrela. Ou seja, quando reconhece o seu erro, a criança-

estrela segue o mesmo percurso, embora num menor espaço de tempo, para lhe pedir perdão,

transformando-se assim espiritualmente e recuperando a sua beleza.

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Na verdade, de entre todos os protagonistas de Wilde, este é aquele que passa pela

mudança mais drástica, uma vez que o seu temperamento cruel, prepotente e orgulhoso,

moldado em consequência de uma beleza excepcional, se transforma em piedoso, humilde e

compreensivo. Esta alteração espiritual acontece de forma gradual, sendo percebida em plena

consciência pelo leitor e por outras personagens, como a lebre, o leproso (pai), o povo da

cidade, mas não pelo próprio. Além disso, esta modificação é semelhante àquela pela qual

passa o gigante em “The Selfish Giant”, mas mais profunda e significativa; para além disso,

esta mudança não só tem um efeito redentor, como traduz o sacrifício representado neste

conto. Este aspecto em particular é salientado quando a criança-estrela pede perdão à mãe:

And a cry of joy broke from his lips, and he ran over, and kneeling down he kissed the wounds on his mother’s feet, and wet them with his tears. He bowed his head in the dust, and sobbing, as one whose heart might break, he said to her “Mother, I denied thee in the hour of my pride. Accept me in the hour of my humility. Mother, I gave thee hatred. Do thou give me love. Mother, I rejected thee. Receive thy child now”. (Wilde 2008: 203)

Este excerto é o mais importante para a compreensão deste texto na perspectiva do amor

sacrificial, porque é aquele cujas ressonâncias bíblicas evocam episódios importantes e

particulares: a renúncia de Cristo por parte de Pedro (considerado o primeiro apóstolo), que o

negou três vezes e se arrependeu, e o primeiro encontro entre Maria Madalena e Jesus, quando

esta lhe “lava” os pés com as suas lágrimas (no conto de Wilde é o filho que “lava” os pés da

mãe). Não é por acaso que a comparação é feita, porque, tal como referi ao longo deste

capítulo e do anterior, Wilde inspirou-se no exemplo de Cristo para escrever estes contos e,

como tal, subverteu vários motivos bíblicos importantes de modo a moldá-los à crítica social

inerente em todos os seus contos. De igual modo, o excerto relembra também a parábola do

filho pródigo, pela arrogância e vaidade com que o mesmo exige a sua herança e a esbanja

desmedidamente, para depois regressar humilhado a casa do pai, sendo recebido de braços

abertos; apesar de que neste conto o protagonista regressa à mãe (sugerindo uma ordem

matriarcal em vez de patriarcal).

Importa ter também em consideração que, em termos prosódicos e linguísticos,

Wilde também utiliza neste conto vocábulos arcaicos nos diálogos das personagens (thee,

thou, thine, thy, ye, doth, nay, needst, careth, cometh, dealst, art, (Wilde 2008: 181-204) para

enfatizar o discurso entre as personagens e evocar a sonoridade do discurso do texto bíblico,

tal como acontece em “The Fisherman and His Soul”, mas também para criar alguma

distância temporal entre a realidade e a narrativa. Por outro lado, a repetição do discurso

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narrativo na voz do narrador, por exemplo, quando a criança-estrela parte em busca da mãe,

reforça o facto de este conto ilustrar um exemplo de amor sacrificial, porque explica a

necessidade latente de uma transformação espiritual por parte da criança-estrela para que o

interior reflicta o exterior, isto é, que a atitude justifique a beleza e, assim, haja a retribuição

do amor maternal (e paternal).

No entanto, resta responder ainda à segunda questão do meu trabalho, se em termos

genológicos, este conto é um fairy tale. Considero que “The Star-Child” é um fairy tale,

porque reúne elementos e qualidades deste género literário. A evidência mais óbvia é

certamente a abertura do conto, sob a fórmula do “Once upon a time”, mas mais do que isso:

em termos espaciais, a narrativa desenrola-se, primeiramente, na floresta, depois entre a aldeia

e a floresta e, por fim, entre a floresta e a cidade. Ou seja, tal como em qualquer fairy tale

tradicional, existe a oposição entre a natureza e a sociedade, a fantasia e a realidade, e também

entre o espaço aberto e ambíguo, que é a floresta e o espaço fechado, que é a cidade. Existe

também uma tarefa, concretizada com a ajuda de um ajudante animal: a pequena lebre que

retribui a compaixão da criança-estrela conduzindo-a a cada um dos pedaços de ouro. De

igual modo, o mágico é o vilão derrotado e expulso da cidade quando a criança-estrela assume

o governo da cidade. Contudo, quem se lhe seguiu após o seu curto reinado desencadeou um

novo caos, ou seja, originou aquilo a que Vladimir Propp designa por um novo acto de vilania

(Propp 1968: 38).

Os contos de fadas que conhecemos, na sua maioria, reúnem os elementos acima

mencionados, e são precisamente estes elementos que me permitem afirmar que este conto é

um fairy tale: a floresta como espaço natural da fantasia ou sobrenatural, a aldeia e a cidade

como espaço da realidade, o herói que parte à procura de redenção, a tarefa tripla (ou três

tarefas), o ajudante animal e o vilão subjugado; mas acima de tudo o triunfo da humildade e

do amor sobre o egoísmo e a iniquidade. Para além disso, há que reter a importância da auto-

consciência que este protagonista alcança através do seu sacrifício e a reflexão que este

exemplo acarreta. De igual modo, temos a presença de um narrador omnisciente, isto é, que

não se limita a contar a história, pois conta-a e comenta-a. Este aspecto é algo também

comum na tradição dos fairy tales e também se encontra presente nos contos anteriores.

Este conto poderia perfeitamente terminar com um final feliz, mas sendo Oscar

Wilde um dos grandes mestres da subversão, esta questão não é assim tão simples, pelo que o

final feliz do conto de fadas não encaixaria no seu propósito de provocar a reflexão do leitor

ou ouvinte, ou seja, de desafiar a audiência, sem esquecer, obviamente, que os ditos contos de

fadas tradicionais visam igualmente suscitar uma reflexão. É por isso que, nem este, nem

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nenhum dos contos anteriores termina da forma expectável, mas sim num reverso

interrogativo do que poderia ser. Isto significa que, ao reverter as expectativas da audiência,

Wilde procurou incutir, não uma moral, tal como referi ao longo deste capítulo, mas uma

longa reflexão e introspecção pessoal e social acerca das convicções e valores sociais

impostos pela sociedade vitoriana.

Existe, em relação ao tema abordado no meu trabalho, um factor importante a

considerar: o facto de o amor sacrificial ser essencialmente baseado num ideal de cariz

religioso que assenta profundamente no sacrifício de Cristo. Wilde fundamentou os

protagonistas dos seus contos neste mesmo sacrifício e fê-lo tanto para exemplificar aquilo

que estava errado nos valores e ideais da sociedade vitoriana, como para marcar uma posição

de oposição face à Igreja Anglicana. Apesar de todas estas e outras considerações, considero

que é possível ler os quatro contos analisados neste capítulo, “The Happy Prince”, “The

Nightingale and the Rose”, “The Fisherman and His Soul” e “The Star-Child”, sob a

perspectiva do amor sacrificial. Este tema manifesta-se aos longo dos contos abordados nas

suas quatro qualidades, que estão correlacionadas entre si: o altruísmo, a compaixão, a

incondicionalidade e a transcendentalidade.

Isto significa que o amor sacrificial se encontra representado nos contos de Wilde.

Em cada um dos contos analisados está presente o sacrifício da própria vida em nome do

amor a outrem ou a um ideal ou causa: a andorinha sacrifica-se pelo príncipe-estátua, o

príncipe sacrifica-se pelos pobres da cidade, o rouxinol sacrifica-se pelo ideal de amor

verdadeiro, o pescador e a sereia sacrificam-se um pelo outro, e a criança-estrela sacrifica-se

pelo perdão da mãe. Por um lado, a representação deste tipo de sacrifício consiste

essencialmente na derradeira hipótese de redenção individual, como, por exemplo, em “The

Happy Prince” e “The Star-Child”, porque socialmente prevalecem o egoísmo, o orgulho, o

materialismo, entre outros factores, que conduzem à ineficácia deste sacrifício quanto a

provocar uma mudança sólida na sociedade. Por outro lado, evoca a necessidade de reflectir,

agir e lidar com as consequências, como acontece em “The Nightingale and the Rose” e “The

Fisherman and His Soul”. Ou seja, os contos mostram tanto o que precisa de mudar como o

status quo vigente e as suas consequências.

Na minha perspectiva, as representações de amor sacrificial que encontramos nestes

quatro contos implicam, de um ponto de vista moral e social, a ponderação numa forte

alteração de mentalidade ou consciencialização, que deve acontecer quer a nível individual,

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quer a nível social. Mas atendendo a que nos contos o amor sacrificial é motivado pela

renúncia do egocentrismo em prol da concretização do altruísmo, esta alteração torna-se

ineficaz quando apenas ocorre a consciencialização individual, que é a principal precursora da

mudança, mas cujos efeitos são efémeros e se desvanecem rapidamente na história sem que

nada se altere verdadeiramente. Por conseguinte, à luz do século XX, o conceito de morrer

por amor ou por um ideal também se manifestou, não só no contexto da Grande Guerra

(1914-1918), mas também no contexto da Guerra da Independência (1919-1921) e da Guerra

Civil irlandesa (1922-1923), no sentido oposto àquele em que surge nos contos de Wilde.

Enquanto que nos contos a morte por amor é apresentada como benigna, porque é para o bem

de alguém e não atinge terceiros; na circunstância da guerra o mesmo género de sacrifício por

um ideal e envolve não só a disponibilidade para morrer, mas também para matar.

De igual modo, considero que, quando lidos sob a perspectiva dos dias de hoje, estes

contos nos transmitem a noção de que a prática do altruísmo e da compaixão continua em

falta na nossa sociedade, que é falsa e hipócrita quando se considera liberal e inclusiva. E a

grande maioria das sociedades do século XXI são tudo menos isso, porque nos falta saber

amar incondicionalmente, de forma aberta e sem exigências, mas também saber colocarmo-

nos no lugar do outro, de forma a sentirmos com e pelo outro e não apenas por nós mesmos.

Desta forma, estes contos levam-nos a considerar a provável decadência dos nossos próprios

valores morais, tendo em conta que dificilmente sabemos mostrar compaixão ou altruísmo.

É por isto que, para que a nossa sociedade moderna se transforme numa sociedade

mais compassiva e inclusiva, é necessário que, enquanto seres sociais, interpretemos o amor

sacrificial como a necessidade de uma identidade egoísta dar lugar a uma identidade altruísta

e mais atenta ao outro, na medida que devemos ponderar também o que se passa à nossa

volta. Todavia, este esforço não pode ser meramente individual, tem de ser colectivo, embora

deva partir de cada indivíduo enquanto ser social. Isto significa que a crítica de Wilde à

sociedade vitoriana não terá perdido acuidade nos dias de hoje.

Ao frustrar quase por completo as expectativas do leitor ou ouvinte, relativamente à

constituição e ao desfecho dos contos aqui analisados, bem como dos restantes que compõem

as colectâneas The Happy Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892),

Wilde assume-se novamente como um escritor vanguardista do seu tempo. Quer isto dizer que

o mesmo introduziu uma nova variante de fairy tales literários, considerada como a

precursora dos contos de fadas modernos e que é menos moralista e mais reflexiva. Isto

porque, para o autor importava, sobretudo, frisar a necessidade de questionar os valores

morais e sociais impostos na época vitoriana. Tal implica um envolvimento mais atento por

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parte do leitor, uma vez que o mesmo, tal como salientado por Pease (2004), também faz

parte do processo de construção da arte, ou seja, a reacção do leitor ao texto surge como a

causa e como o efeito da auto-realização do autor; e isto acontece porque Wilde se focou

principalmente na consciencialização do leitor ou ouvinte relativamente ao espaço que o

rodeia.

Ao fazer uso da subversão dos motivos tradicionais nos seus contos, Wilde aponta

para uma perspectiva que apresenta o amor sacrificial como uma resolução efémera dos

problemas sociais, porque o mesmo é insuficiente por si só para que uma mudança sólida

aconteça. É, fundamentalmente, para o efeito de tecer uma crítica velada aos erros da

sociedade e levá-la a reflectir que Oscar Wilde usa a forma do conto de fadas. O autor usa,

especificamente, esta forma de arte literária, porque a mesma lhe permite dissimular o

verdadeiro sentido das suas palavras, conferindo-lhe uma dimensão simbólica. Quero com

isto dizer que Wilde se serve da forma do conto de fadas de modo subversivo e, ao mesmo

tempo, tira partido do facto de se insinuar nas consciências infantis e adultas, escapando a

uma ostensiva censura social. Para além disso, importa também salientar que estes contos são,

de facto, fairy tales, na medida em que conservam, no seu todo, algumas das qualidades

principais do género literário: o herói à procura de redenção, o contraste entre a natureza e a

civilização, a concretização de uma demanda, entre outras. Tal como mencionei no capítulo

anterior, tem sido difícil responder academicamente a esta questão genológica, sobretudo

devido à inexistência de um final feliz e à ausência generalizada da tão célebre fórmula “Once

upon a time”, entre outros aspectos.

Mas, ao ponderar atentamente os contos de fadas que são considerados como contos

de fadas tradicionais (Perrault, Grimm, Andersen, etc.) ou constituintes do cânone, constata-se

que os mesmos nem sempre abrem dessa forma ou terminam no tão esperado “Foram felizes

para sempre”. De igual modo, é curioso o modo como existem tantas semelhanças entre os

contos de Wilde e os de Andersen, cujas realidades são separadas por cerca de cinquenta anos,

atendendo a que ambos se apropriam tanto da tradição dos fairy tales como dos folk tales,

reescrevendo-as de acordo com as suas próprias ideias e procurando, de igual modo, suscitar

uma reflexão pessoal e colectiva sobre as respectivas sociedades. A diferença está no facto de

Andersen incutir um carácter moralista aos seus contos e Wilde um apelo à abertura de

pensamento.

Há ainda que constatar a estreita relação que é possível estabelecer entre o tema do

amor sacrificial e a forma do conto de fadas. Isto porque, na sua maioria, os contos de fadas

são baseados no sacrifício pessoal, sobretudo no altruísmo ou na compaixão, de modo a que o

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protagonista consiga atingir um determinado objectivo ou superar um obstáculo. Por exemplo,

e voltando aos contos de Andersen, é o altruísmo de Gerda que a leva a empreender a viagem

até ao castelo da rainha da neve para salvar Kay; e é esse mesmo altruísmo e compaixão que

levam a pequena sereia a atirar-se ao mar em vez de matar o príncipe.

Em conclusão, é por esta razão particular (por existir uma estreita relação entre o

tema do amor sacrificial aqui estudado e a forma do conto de fadas) e por todas as outras

apresentadas neste capítulo (os protagonistas remeterem para Cristo, os textos conterem

marcas textuais que evidenciam a representação do tema), que o facto de o tema do amor

sacrificial ser central nos contos de Wilde aqui analisados se torna mais interessante do que

surpreendente. Por outras palavras, estes contos parecem sugerir que para existir uma

sociedade justa, esta tem que partir do esforço pessoal e ser suportada pelo esforço colectivo,

na medida em que é necessário desenvolver a compaixão e o altruísmo, de forma a que estes

valores sejam o motor de uma mudança social significativa e estruturada. Deste modo, estes

contos continuam a apelar à necessidade de o leitor ou ouvinte, quer seja criança, quer seja

adulto, reflectir sobre o que se passa à sua volta, fora da sua zona de conforto, fora dos muros

do seu jardim.

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Conclusão

Tal como afirmei na introdução desta dissertação, os principais objectivos do

presente trabalho foram, em termos temáticos, estudar o modo como é representado o amor

sacrificial e, em termos genológicos, provar que estes contos são susceptíveis de serem

considerados fairy tales. Para esse efeito, procedi a uma pesquisa cuidadosa sobre a obra do

autor e sobre contos de fadas e a uma leitura atenta de ambas as colectâneas, The Happy

Prince and Other Tales (1888) e A House of Pomegranates (1892), para posteriormente

seleccionar o corpus sobre o qual incidiu a minha análise. Por conseguinte, no primeiro

capítulo tentei sintetizar e esclarecer questões teóricas acerca da definição de fairy tale; no

segundo, procurei situar tanto o autor, Oscar Wilde, como os respectivos contos dentro do

contexto vitoriano; e, por fim, o terceiro capítulo consistiu na minha análise crítica dos quatro

contos que constituem o corpus da minha abordagem: “The Happy Prince”, “The Nightingale

and the Rose”, “The Fisherman and His Soul” e “The Star-Child”.

Definir o termo fairy tale é difícil, sem dúvida, mas não impossível. É preciso ter em

consideração aspectos históricos e literários, a forma como a literatura tem influência na nossa

auto-construção enquanto pessoas e na maneira como analisamos certas situações. Assim, o

termo fairy tale pode ser sucintamente descrito como uma narrativa literária relativamente

curta, de discurso encantatório e reflexivo ou moralista, de forma moldável às circunstâncias

do autor ou narrador e de público generalizado. Por seu turno, Wilde foi, como mencionei

anteriormente, um autor vanguardista no seu tempo, cujos pontos de vista e aparência foram,

muitas vezes, tidos como sendo extravagantes, mas cuja obra causou bastante impacto na

literatura da época. No caso dos seus contos, estes têm um impacto transgeracional, e

veiculam a sua crítica à sociedade britânica tanto ao público infantil que os ouvia, como ao

público adulto que os lia às crianças.

Estes contos são, geralmente, interpretados e considerados como reflexos da

experiência de vida do autor ou como subversões dos motivos de várias tradições,

nomeadamente literárias (como por exemplo, do fairy tale tradicional, ou mesmo da Bíblia),

ou como expressão subtil de uma crítica social. E, indiscutivelmente, são tudo isto, sendo

também representativos, tematicamente, do amor sacrificial. É este tipo de amor que o

príncipe feliz, a andorinha, o rouxinol, o pescador, a sereia e a criança-estrela representam: o

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amor altruísta, compassivo, incondicional e transcendente, cujo sacrifício por amor a outrem

ou a uma causa se manifesta na morte.

Em termos genológicos, estes contos podem ser considerados como sendo fairy tales,

porque reúnem as principais características estruturais do género literário: são relativamente

curtos, expressam um contraste entre a natureza e a civilização e entre a fantasia e a realidade,

possuem um herói (ou anti-herói) e também uma tarefa ou objectivo a ser cumprido no intuito

da realização do protagonista. Acresce que nos contos abordados no meu trabalho

encontramos uma forte inspiração nos contos de fadas tradicionais, que incide sobretudo nos

motivos trabalhados por Andersen no século XIX. Isto porque, nos contos recolhidos pelos

irmãos Grimm, durante parte do século anterior e a primeira metade do mesmo século, existe,

quase sempre, um reverso da sorte do protagonista e a grande maioria termina no esperado

final feliz, muito embora possam carregar, por vezes, um discurso mais sombrio. O mesmo

não acontece nos contos de Andersen, mas a sua intenção foi semelhante à de Wilde: instigar

a reflexão do público em geral, tanto das crianças como dos adultos, acerca das convenções

sociais impostas, através do carácter subversivo e crítico que empregou nos seus contos.

Além disso, Wilde não escreveu estes contos como literatura infantil, mas sim com o

propósito de desafiar o público e instigar tanto as crianças como os pais a reflectir e a

questionar os valores morais instituídos socialmente durante o vitorianismo. E é por isso que,

ao serem compostos de forma diferente dos contos de fadas tradicionais, os contos wildianos

suscitam múltiplas questões e um vasto leque de possíveis interpretações. Na verdade, a

necessidade de transformação do conto de fadas literário é até expectável e natural, porque,

segundo afirma Zipes, a definição de fairy tale depende da maneira como o autor apresenta os

elementos constituintes do conto, estética e ideologicamente, para introduzir o maravilhoso e

transmitir o conto no seu todo de acordo com os usos e costumes da sociedade num dado

período histórico (Zipes 2000: 20).

Em suma, a genialidade que Oscar Wilde transmitiu em toda a sua obra manifesta-se

muito claramente nos seus contos, porque o autor usou a forma do fairy tale com vista não só

a tecer uma crítica social, mas também para demonstrar (através do amor sacrificial) que o

sacrifício pessoal é necessário, mas ineficaz na concretização da mudança se não for parte de

uma dinâmica colectiva motivada por princípios menos egoístas e mais altruístas. Por outras

palavras, Wilde aponta para aquilo que motiva o sacrifício (a compaixão para com o outro) e

para o gesto abnegado que (julgando pela ineficácia do dito sacrifício) dispensa esse mesmo

sacrifício e aponta para a necessidade de formas de coexistência que sejam capazes de

conciliar as necessidades próprias com as necessidades alheias.

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Deste modo, pode considerar-se que os objectivos propostos inicialmente foram

cumpridos e espero que o meu trabalho contribua para uma nova linha de pensamento crítico

sobre estes contos, porque, sem dúvida, há ainda muito a dizer sobre eles, sobretudo acerca

dos cinco contos que não foram aqui abordados.

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